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POEMAS EM LIBRAS SOBRE NATAL UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE POESIA SURDA Carolina Hessel Silveira Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Discutindo literatura e cultura surda Os estudos sobre cultura surda são bastante recentes e também as pesquisas sobre a literatura surda, que é um elemento importante desta cultura. Estes estudos são realizados dentro dos Estudos Surdos, que se aproximam dos Estudos Culturais. Conforme Rosa e Klein (2011, p. 93), “os Estudos Surdos surgiram a partir da necessidade de outros olhares sobre a surdez e os surdos.” Os autores também mostram que é muito importante para o ser surdo compartilhar com outros surdos a língua de sinais, a história cultural surda, a arte surda, entre outros elementos. Os Estudos Culturais sempre se interessaram pelas culturas, sem fazer diferenças de valor entre elas, e os Estudos Surdos se interessam especialmente pela Cultura surda. Para definir cultura surda, podemos citar Wrigley (1996, p. 45), que diz que o traço significante que define a cultura dos surdos é o uso de uma língua de sinais, que é uma língua natural dentro dos corpos surdos. É importante entender que se trata de uma cultura que é construída pelos surdos, e não é uma cultura traduzida da cultura dos ouvintes. Os surdos usam suas línguas de sinais, utilizam predominantemente a percepção visual, têm seus costumes, hábitos, ideias, convivem entre si e comemoram suas datas como eventos importantes para eles. Strobel (2009), autora surda, estudou muitos aspectos da cultura surda e ela nos lembra que, dentro dessa cultura, existem artefatos culturais diferentes, que são específicos do povo surdo, como a língua de sinais; a literatura surda e artes visuais específicas da comunidade. Quando se fala em literatura e artes visuais, é importante compreender que, na cultura surda, as produções linguísticas, literárias, artísticas, científicas são todas visuais. Assim como a literatura é importante para muitos grupos, como é o caso da literatura indígena, literatura negra, a literatura surda é um dos elementos relevantes da cultura surda. Para defini-la, podemos utilizar a conceituação de Karnopp (2010, p. 161): A expressão “literatura surda” é utilizada no presente texto para histórias que têm a língua de sinais, a identidade e a cultura surda presentes na narrativa. Literatura

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POEMAS EM LIBRAS SOBRE NATAL – UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE

POESIA SURDA

Carolina Hessel Silveira

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Discutindo literatura e cultura surda

Os estudos sobre cultura surda são bastante recentes e também as pesquisas sobre a

literatura surda, que é um elemento importante desta cultura. Estes estudos são realizados

dentro dos Estudos Surdos, que se aproximam dos Estudos Culturais. Conforme Rosa e Klein

(2011, p. 93), “os Estudos Surdos surgiram a partir da necessidade de outros olhares sobre a

surdez e os surdos.” Os autores também mostram que é muito importante para o ser surdo

compartilhar com outros surdos a língua de sinais, a história cultural surda, a arte surda, entre

outros elementos. Os Estudos Culturais sempre se interessaram pelas culturas, sem fazer

diferenças de valor entre elas, e os Estudos Surdos se interessam especialmente pela Cultura

surda. Para definir cultura surda, podemos citar Wrigley (1996, p. 45), que diz que o traço

significante que define a cultura dos surdos é o uso de uma língua de sinais, que é uma língua

natural dentro dos corpos surdos. É importante entender que se trata de uma cultura que é

construída pelos surdos, e não é uma cultura traduzida da cultura dos ouvintes. Os surdos

usam suas línguas de sinais, utilizam predominantemente a percepção visual, têm seus

costumes, hábitos, ideias, convivem entre si e comemoram suas datas como eventos

importantes para eles.

Strobel (2009), autora surda, estudou muitos aspectos da cultura surda e ela nos

lembra que, dentro dessa cultura, existem artefatos culturais diferentes, que são específicos

do povo surdo, como a língua de sinais; a literatura surda e artes visuais específicas da

comunidade. Quando se fala em literatura e artes visuais, é importante compreender que, na

cultura surda, as produções linguísticas, literárias, artísticas, científicas são todas visuais.

Assim como a literatura é importante para muitos grupos, como é o caso da literatura

indígena, literatura negra, a literatura surda é um dos elementos relevantes da cultura surda.

Para defini-la, podemos utilizar a conceituação de Karnopp (2010, p. 161):

A expressão “literatura surda” é utilizada no presente texto para histórias que têm a

língua de sinais, a identidade e a cultura surda presentes na narrativa. Literatura

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surda é a produção de textos literários em sinais, que traduz a experiência visual, que

entende a surdez como presença de algo e não como falta, que possibilita outras

representações de surdos e que considera as pessoas surdas como um grupo

linguístico e cultural diferente.

Também existe uma relação muito grande entre a literatura surda e a história do povo

surdo. Strobel (2009, p. 61) afirma que a literatura surda “traduz a memória das vivências

surdas através das várias gerações dos povos surdos”. Isso também acontece porque, muito

antes de se fazer gravações de histórias surdas em vídeo, já aconteciam encontros de surdos

nas associações, nas festas, nos eventos, etc. Nesses encontros, havia muitas trocas de

histórias, de piadas e de outras produções. Mesmo não havendo registro filmado, essas

produções já faziam parte da literatura surda, que, conforme Karnopp (2010, p. 171), abrange

“histórias produzidas em língua de sinais pelas pessoas surdas, pelas histórias de vida que são

frequentemente relatadas, pelos contos, lendas, fábulas, piadas, poemas sinalizados, anedotas,

jogos de linguagem e muito mais”.

Assim, percebe-se que a Literatura Surda é a literatura que os surdos produzem que

não é registrada com a língua escrita, mas se expressa através da língua de sinais. De acordo

com Rosa e Klein (2011, p. 95), “A literatura surda, quando produzida por um surdo, torna-se

diferente das produzidas por pessoas ouvintes. Isso se dá porque o surdo é aquele que

vivencia as experiências surdas, sua cultura e a Libras.” Os autores ainda afirmam que até

mesmo ouvintes com fluência em Libras e que participem da comunidade surda têm

experiências diferentes das experiências que os surdos têm. Então, a literatura surda não é

uma tradução da Literatura Brasileira ou de qualquer outra literatura nacional. Mas também é

claro que a literatura surda também pode incorporar alguns temas e assuntos que aparecem na

literatura dos ouvintes.

Como se registra a literatura surda ? Este é um caso diferente da literatura escrita de

ouvintes. Podemos citar a opinião de Wilcox (2005, p. 96), que escreve sobre esse assunto e,

se referindo à ASL (American Sign Language, que é a língua de sinais americana) afirma que:

... a maioria das línguas no mundo não são escritas. Isso certamente não significa

que nessas línguas não exista trabalho literário. Muitos dos “clássicos” da literatura

– a Bíblia, os dramas gregos – originalmente não eram escritos. Embora a ASL seja

ainda uma língua não escrita, ela possui uma longa e rica história de literatura

popular. Grande parte dessa literatura tem sido gravada em filme ou fitas de vídeo.

Muitas criações da tecnologia nas últimas décadas facilitaram o registro, a divulgação

e o conhecimento da literatura surda. Podemos lembrar como exemplo o surgimento e a

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popularização da internet, nos últimos vinte anos, com a criação de sites de fácil acesso para

postagem e visualização de vídeos. Também ficou muito fácil a gravação de vídeos com

celulares, smartfones e outros artefatos, por qualquer pessoa. Isto tudo tornou mais fácil o

acesso à literatura surda, tanto para os surdos que querem conhecer estes artefatos quanto para

os que querem estudar esta literatura, que é uma literatura visual.

Dentro do campo dos Estudos Culturais e dos Estudos Surdos, que se interessam sobre

as relações entre culturas, representações e identidades, vamos, neste artigo, fazer um breve

estudo de um gênero da literatura surda no Brasil: poemas em Libras (Língua Brasileira de

Sinais). Alguns poemas serão analisados como exemplos desse artefato cultural.

Alguns aspectos dos Poemas em Libras

Dentro da literatura surda, encontram-se os poemas em língua de sinais e, no caso

brasileiro, os poemas em Libras, que utilizam os recursos expressivos de LIBRAS. Alguns

autores dizem que poemas em línguas de sinais são uma forma de arte recente, que teria

começado aproximadamente na década de 1970 nos Estados Unidos. Para Rachel Sutton-

Spence (2008, p. 340), “nos anos 70, surgiram algumas mudanças relacionadas à consideração

da poesia em línguas de sinais não apenas como concebível, mas, também, como uma

realidade” e isso permitiu um espaço para as performances de poetas das línguas de sinais,

inicialmente nos Estados Unidos e depois em outros países. Entretanto, encontrei um registro

mais antigo de vídeo de poema no site Gallaudet, de uma performance em 1913, com a

poetisa americana Mary Williamson Erd1, do poema "Death of Minnehaha" (“morte de

Minnehaha”), que talvez seja inspirada no poema épico americano do autor Henry Wadsworth

Longfellow, em ASL . O poema fala de uma lenda índia e a temática é muito popular nos

Estados Unidos. .

.

1 http://videocatalog.gallaudet.edu/?video=18920

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Vê-se, assim, um poema antigo, numa apresentação de 1913, que mostra que, com

mais de 100 anos, a poesia surda não é recente. Só que atualmente existem pesquisas que

mostram produções poéticas; também a facilidade de divulgação começou há pouco tempo,

com as novas tecnologias, como já falamos. O acesso dos surdos a estes poemas faz com que

eles se reconheçam e alguns procurem se expressar de forma poética.

Fazer poemas em línguas de sinais e não em língua escrita (ou falada) é um avanço no

conceito de literatura. A estudiosa Sutton-Spence (2008, p. 340) afirma que, antes de esta

produção existir, “Pessoas surdas e ouvintes achavam que a poesia deveria ser escrita apenas

em inglês, devido ao status dessa língua”. Isso pode ser transferido para o Brasil, onde a

literatura era entendida somente como a “arte da palavra”.

Sobre a poesia surda no Brasil, podemos fazer um resumo da situação da seguinte

forma: nas décadas de 1980 e 1990, alguns poucos sujeitos surdos faziam alguns poemas

escritos. Depois começou a haver modificações, com os surdos apresentando poemas em

Libras, mas que eram traduções de poemas escritos. Apenas posteriormente surgiu a poesia

em Libras- este fato era alguma coisa nova para a comunidade surda brasileira; hoje, entre os

surdos, os poemas em Libras têm mais receptividade, mas há alguns surdos que continuam

usando poesia escrita (em Língua Portuguesa) ou poesia traduzida (da Língua Portuguesa para

Libras). O início da produção dos poemas no Brasil foi com o famoso ator surdo Nelson

Pimenta, com registro em DVD em Língua de Sinais. Também aconteceram apresentações de

poemas nos eventos, tanto de Nelson Pimenta como da poeta paranaense Rosani Suzin, no

final da década 90. Mas, na verdade, conforme Morgado (2011b, p. 167), “existem muitos

poetas surdos no mundo. Os considerados profissionais são os que tiveram formação em

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poesia da língua gestual, normalmente na Inglaterra ou nos Estados Unidos da América”.

Mesmo os poetas surdos que não tiveram formação (estudo) nestes dois paíes também têm

importância no panorama da poesia surda.

Para podermos fazer nossa análise dos poemas, neste trabalho, precisamos ver o que

são as características das poesias em línguas de sinais. Assim como nos poemas em línguas

verbais (escritas), é a linguagem que merece atenção nos poemas em línguas de sinais. De

acordo com Quadros e Sutton-Spence (2006, p. 112), a “poesia em língua de sinais, assim

como a poesia em qualquer língua, usa uma forma intensificada de linguagem [“sinal arte”]

para efeito estético”. Morgado (2011a, p. 62) faz um paralelo entre recursos da linguagem

verbal (rima, ritmo, verso, estrofes) e os recursos dos poemas em línguas gestuais. Morgado

apresenta os recursos que são usados em poemas de línguas de sinais. São eles:

- escolha e modificação de gestos. Os poetas surdos trabalham com os gestos, podendo

escolher e modificar gestos como: “pássaro”;

- variação de gestos. Pode-se fazer rimas com diversos gestos que têm significado semelhante,

como: “dia”, “especial” (em Língua Gestual Portuguesa);

- utilização de componentes não-manuais. Nesse caso, pode se utilizar um aspecto não-

manual, usando apenas expressão corporal e facial;

- classificadores. A autora considera que o recurso a um classificador é uma das principais

riquezas da língua gestual;

- metáforas. A autora afirma que, se um poeta surdo quer descrever a vida de uma flor, pode

compará-la à sua vida, utilizando assim uma metáfora. Este aspecto se aproxima da poesia

ouvinte;

- interiorização de personagens. Outro recurso interessante vem da possibilidade de

interiorizar uma personagem com suas características, como um bebê, um rapaz rebelde, uma

senhora vaidosa;

- mudança de papéis. A poesia surda pode usar a mudança de papéis, que é feita através da

interação de duas ou mais personagens: pode ser um adulto falando com uma criança, por

exemplo. Apenas um (1) poeta surdo pode representar mais de um personagem.

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Também é preciso abordar um tipo de composição especial da literatura surda, que são

as Histórias ABC e Números. Elas apareceram na comunidade surda brasileira a partir de

2000 e, neste tipo de composição, uma história é apresentada em sequência de configurações2

de mãos, usando alfabeto manual, números, nomes próprios ou outras palavras.. Quando a

pessoa começa a aprender a contar uma história em sinais, pode usar seu próprio nome como

forma de produção.

Outro aspecto importante sobre poemas surdos, é que a maioria deles são autorais, isto

é: os poemas não são transmitidos para outros surdos, mesmo que alguns sinais sejam iguais.

O que mais permanece são as configurações das mãos durante poesias. Por exemplo, uma

configuração de mão “MÃO ABERTA”, que apresenta movimentos do mar, montanha, rena,

árvore de natal, anjo, pássaro, sereia, Língua de Sinais etc. está presente em muitos poemas.

Podemos citar a estudiosa Sutton-Spence (2000, s/p) que descreveu, no artigo Aspectos da

poesia em BSL, o uso da configuração de mão numa poesia. Ela afirma:

A estrofe [Manhã em Trio] contém 18 sinais, dos quais dez usam uma forma de mão

em B ou em 5. O sinal final ÁRVORES-GEMÊAS usa duas mãos, cada uma com

forma em 5. (...) A forma de mão em 5 é vista nos sinais LEÃO, JUBA-DO-LEÃO,

e ATAQUE-COM-GARRAS.

Temos visto que esta configuração é a mais usada durante poemas, como pode ser

visualizado nas ilustrações abaixo, com momentos de poemas brasileiros.

A

“Cor” Bandeira Brasileira

Nelson Pimenta

B

“Onda” Poesia das Rosas

Rosani Suzin

C

“Presente” A Arvore de Natal Fernanda Machado

Figura 1 – Momentos de poemas em LIBRAS

Fontes: (A) DVD LITERATURA EM LSB, 1999; (B) DVD LIBRAS 03, 2001; (C) DVD

Poesia A Árvore de Natal em LSB, 2005

2 Usa-se o termo “configurações” para referir a Configuração da mão (CM): é a forma que a mão assume

durante a realização de um sinal. Pelas pesquisas linguísticas, foi comprovado que na LIBRAS existem 46

configurações de mãos ( BRITO, 1995).

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Análise comparativa ilustrativa

Os poemas que trago para este artigo foram registrados em vídeo e estão disponíveis para

acesso do público. Seu tema é o Natal, e são bastante conhecidos na comunidade surda.

Escolhemos para análise três materiais. O primeiro é o DVD Poesia A Árvore de Natal em

LSB, produzido por poeta Fernanda Machado (2005) (poema A). O segundo material é um

vídeo postado no YouTube, com a poeta Rosani Suzin (2009), disponível em

http://www.youtube.com/watch?v=xeGtxbI7tF4&feature=plcp, (poema B). O terceiro

material é um vídeo postado no YouTube, com a poeta Rosana Grasse (2014), disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=y5E0Q2DcxEQ (poema C).

O poema mais longo, com cerca de oito minutos, é da poeta Fernanda Machado

(poema A), com mais elementos e detalhes, e referências sobre nascimento do Jesus e Papai

Noel. Não usou nenhuma soletração e apresentou mais sinais poéticos e neologismos.

Observo que neologismos, que existem nas línguas de ouvintes, também existem em línguas

de sinais. Quadros e Sutton-Spence (2006, p.147) explicam que o neologismo “pode ser usado

para efeito poético de muitas maneiras, trazendo a língua ao primeiro plano porque o poeta

produziu a forma que ainda não é parte da língua”. A autora traz uma narrativa sobre uma

pessoa pegando bolas coloridas, colocando-as na Árvore de Natal; cada bola se referia a um

elemento do nascimento de Jesus: anjo, Maria, José, Rei Herodes, três Reis Magos, burro.

Fernanda sinalizou a cor de cada bola relacionando-a a um personagem ou a objetos como

estrela. No final, quebra-se a bola vermelha, que simbolizava Rei Herodes, e dela sai uma luz

que voa para céu e se transforma em trenó com renas, Papai Noel e saco de presentes.

A poeta Rosani Suzin (poema B) apresentou o poema com nome FELIZ NATAL

como história ABC, relacionando com o nascimento de Jesus, mas não fala do personagem

Papai Noel. Cada letra, por exemplo, se transforma numa ideia; o L se transforma em estrela

e sorriso, o N se transforma na manjedoura em que nasceu Jesus etc.

A poeta Rosana Grasse (poema C) apresentou um poema curto, com única

configuração de mão “F” em Libras. Ela traz a história da Árvore de Natal, nascimento Jesus,

família e amor, sem referência ao personagem Papai Noel. Por exemplo, no sinal Jesus, ela

usa configuração de mão F, em substituição à configuração de mão original do sinal Jesus.

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Para comparar os três poemas, em relação aos sinais utilizados e recursos expressivos,

apresentamos o quadro abaixo. Depois, vamos ilustrar os achados com imagens que são

exemplos.

QUADRO I

Poemas sobre NATAL – síntese Sinais

de Libras

utilizados

Poema A

(Fernanda Machado)

Poema B

(Rosani Suzin)

Poema C

(Rosana Grasse)

ÁRVORE Neologismo

(sinal produzido com

efeito poético, com

ênfase na forma

visual.)

Sinal em Libras

(sinal conforme uso

cotidiano, sinal

dicionarizado)

Neologismo

(configuração de mão F

produzida com efeito

poético, com ênfase na

forma visual.)

JESUS Imitação rosto de

Jesus, usando

configuração de mão

“S”

(refere Jesus, usando

CM “S”, com ênfase

no rosto do bebê)

Imitação rosto de

Jesus, usando

configuração de mão

“A”

Neologismo

(sinal Jesus, usando

configuração de mão “F”.)

SOLETRAÇÃO Nenhuma FELIZ NATAL Nenhuma

BOLA DE

NATAL

Neologismo

(sinal produzido com

efeito poético, com

ênfase na forma

visual.)

Não utilizado Neologismo

(configuração de mão F

produzida com efeito

poético, com ênfase na

forma visual.)

CORAÇÃO Não utilizado Letra “T”, duas mãos

“T” sacudindo

lentamente como dor,

outra mão segurando

coração no peito.

Letra “F”, duas mãos “F”

fazendo forma de coração.

MANJEDOURA

Neologismo

Sinal “4”, duas mãos

cruzando em baixo

Neologismo

Letra “N”, balançando

como cesta

Não utilizado

OBJETO que se

QUEBRA

Bola caiu, saiu

fumaça, voou para

céu, se transformou

Letra “E”, duas mãos

“E” abrindo, das quais

sai luz, voando rápido

Não utilizado

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em trenó. no céu, que se

transforma em cometa,

estrelas....

O que podemos concluir deste quadro é, em primeiro lugar, que as três poetas

apresentaram ÁRVORE e JESUS nos poemas (ver figura 2 e figura 3, abaixo). Mas só dois

poemas (A e C) criaram neologismo para ÁRVORE, enquanto a poeta do poema (B) usou

sinal dicionarizado ÁRVORE. Dois poemas (A e B) usaram sinal expressando nascimento do

Jesus (ver figura 3). Vê-se que outro poema (C) usou sinal JESUS com letra “F”. No poema

A, a poeta fez configuração de mão “S” como mãos de Jesus nenê se movendo. No poema B

foi usada a configuração de mão “A” por causa da letra A - “Natal” como mãos de Jesus se

movendo (ver figura 3). Nos poemas A e B, as poetas fizeram expressão facial semelhante ao

rosto do Jesus como bebê (também ver figura 3).

Poema Natal – Árvore

Poema A

Poema C

Figura 2: Poema Natal – Árvore.

Fontes: Poema A - DVD Poesia A Árvore de Natal em LSB.

Poema C - https://www.youtube.com/watch?v=y5E0Q2DcxEQ

Poema Natal – Jesus

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Poema A

Poema B

Figura ilustrativa

Expressando história A até Z, sobre bebê. Ênfase cara do bebê, letra A.

Figura 3: Poema Natal – Jesus.

Fontes: Poema A - DVD Poesia A Árvore de Natal em LSB.

Poema B - http://www.youtube.com/watch?v=xeGtxbI7tF4&feature=plcp.

Figura ilustrativa – DVD A to Z: ABC Stories in ASL. Atriz Stefanie Ellis-Gonzales. Ano

2010

Observamos que as figuras mostram como as poetas mulheres dão importância ao

rosto do bebê “Jesus”, e isso pode estar relacionado com o gênero das poetas, porque,

culturalmente, se espera que as mulheres deem mais importância para os bebês. A autora

Sutton-Spence (2011, p. 180) explica sobre expectativa da sociedade em relação a gêneros

masculino e feminino, e diz que “as expectativas podem relacionar-se à cultura geral, quando

se considera o gênero, ou cultura surda, quando a situação auditiva é considerada.”

Poema Natal – Bola de Natal

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Poema A

Poema C

Figura 4: Poema Natal – Bola de Natal.

Fontes: Poema A - DVD Poesia A Árvore de Natal em LSB.

Poema C - https://www.youtube.com/watch?v=y5E0Q2DcxEQ

Em relação à bola de natal (figura 4), no poema A, a poeta utilizou sinal produzido

com efeito poético, com ênfase na forma visual: uma mão segura fio da bola, outra mão estala

círculos em volta dela. No poema C, a poeta usou letra F, com duas mãos “F” fazendo

“circular a bola”, para significar bola de natal. As duas poetas apresentam movimento de

círculo como bola de natal ou festão na árvore de Natal, como no poema C, que pode ser

ambíguo: bola de natal ou festão.

Poema Natal - Coração

Poema B

Poema C

Figura 5: Poema Natal – Coração.

Fontes: Poema B - http://www.youtube.com/watch?v=xeGtxbI7tF4&feature=plcp.

Poema C - https://www.youtube.com/watch?v=y5E0Q2DcxEQ

Sobre coração (figura 5), no poema B, a poeta utilizou uma mão com letra “T”,

sacudindo lentamente como sinal de dor, enquanto a outra mão segura coração no peito. No

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poema C, a poeta usou letra “F”, duas mãos “F” fazem forma de coração, com ênfase na

forma visual. Ambas apresentam “coração” como amor ou dor de coração como saudades.

Em relação à soletração, que às vezes é uma estratégia rica para os poemas em línguas

de sinais, dois poemas usaram: o poema B usou soletração para FELIZ NATAL, organizando

o poema com cada letra da expressão, como história ABC. Em relação à “estrela” (ver figura

6), o poema A usou o sinal de estrela, segurando a estrela voando como cometa; o poema B

expressou várias estrelas.

Poema Natal – Estrela

Poema A

Poema B

Figura 6: Poema Natal – Estrela.

Fontes: Poema A - DVD Poesia A Árvore de Natal em LSB.

Poema B - http://www.youtube.com/watch?v=xeGtxbI7tF4&feature=plcp.

A referência à manjedoura (figura 7), foi usada por duas poetas. No poema A, a poeta

utilizou mão aberta como iluminação que se transforma em manjedoura; usou duas mãos

cruzadas para baixo como se fosse manjedoura. No poema B, a poeta usou letra N (Natal),

com duas mãos “N” fazendo “xis”, balançando, para significar manjedoura.

Poema Natal – Manjedoura

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Poema A

Poema B

Figura 7: Poema Natal – Manjedoura.

Fontes: Poema A - DVD Poesia A Árvore de Natal em LSB.

Poema B - http://www.youtube.com/watch?v=xeGtxbI7tF4&feature=plcp.

Sobre “objeto que se quebra” (Figura 8), no poema A, a poeta pegou a bola vermelha,

lembrando o Rei Herodes, que perseguia as crianças para matá-las e é perverso; a poeta

fechou os olhos, deixando cair a bola e quebrar (no chão). Então, expressou sinal de fumaça,

um pedaço que voa para céu, que se transforma em trenó de Papai Noel. No Poema B, a letra

E (segunda letra de Feliz), se faz com duas mãos “E” juntando, abrindo como se fosse ovo

quebrando, de onde sai uma luz que voa para céu e se transforma em estrelas.

Poema Natal - Objeto que se quebra

Poema A

Poema B

Figura 8: Poema Natal – Objeto que se quebra.

Fontes: Poema A - DVD Poesia A Árvore de Natal em LSB.

Poema B - http://www.youtube.com/watch?v=xeGtxbI7tF4&feature=plcp.

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O destaque que fazemos, neste momento, é sobre semelhanças - os sinais JESUS e

MANJEDOURA foram usados nas poesias A e B de forma bem próxima. Também a

sinalização de OBJETO que se QUEBRA, ambas as poesias A e B apresentaram.

Se comparamos resumidamente os três poemas sobre a temática Natal, vemos que o

que permanece são as configurações das mãos, sinais simbólicos do Papai Noel, Pinheiro de

Natal e renas, além do aproveitamento de elementos das histórias tradicionais de Natal,

presentes em relatos e poemas da cultura cristã dos ouvintes.

Considerações finais

Fizemos uma pequena análise comparativa de três poemas de autoras surdas sobre um

mesmo tema. Com ela, quisemos mostrar a relevância da literatura surda, e fazer alguma

aproximação com teóricos que analisam poemas surdos, embora este estudo seja só

exemplificativo. É importante observar que este estudo se enquadra nos Estudos Surdos, em

sua interface com os Estudos Culturais, que procuram mostrar as conexões entre produtos

culturais, representações e identidades, entre outros temas. Vimos que, assim como na

literatura escrita em relação à palavra, a literatura surda também usa recursos que não são do

uso cotidiano e simples de Libras e criam efeitos estéticos, que têm uma repercussão positiva

entre a comunidade surda e contribuem para o desenvolvimento de sua identidade.

Relembremos, com Machado (2013, p. 59), que

A língua de sinais é carregada de elementos pertinentes somente a ela, tem estética e

estilo próprios e cada usuário apropria-se da língua de maneira diferente. Nesse

sentido, a língua de sinais não é somente uma vocação, mas sim uma construção que

acontece por meio das experiências, por isso existem pessoas que sinalizam de modo

mais brando e suave, enquanto outras, de modo mais firme e vibrante. Mesmo sendo

toda a sinalização uma forma de inspiração, nunca será reproduzida no mesmo

estilo, pois a língua é dinâmica.

Com o estudo que fizemos sobre os poemas, pensamos que foi possível ilustrar como a

língua de sinais é dinâmica e tem uma estética que é apropriada por cada surdo, no caso, as

poetas, de forma original.

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