poderes perifÉricos no impÉrio marÍtimo portuguÊs - a atuaÇÃo da justiÇa no brasil colonial...

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Introdução Desse modo o arrocho da Coroa nos territórios ultramarinos, a agregação do excedente das zonas conquistadas às trocas atlânticas e o enfrentamento entre autoridades, clero e colonos acerca do controle dos nativos configuram problemas distintos no teatro das descobertas. No Peru, em Angola, em Goa, em Moçambique, no Brasil, noutros lugares ainda, o domínio colonial desanda logo de saída. 1 Este trabalho tem como um de seus objetivos, demonstrar os contrastes atuantes na administração régia de Portugal sobre a América Portuguesa, tendo como ponto de partida o princípio de que as forças centralizadoras do poder régio português no ultramar eram dispersas e de níveis de intensidades variadas. Pretendemos, estudando os mecanismos e práticas em que atores sociais se envolviam traçar um perfil da relação existente entre metrópole e periferia do império português, exibindo que a negociação era de um costume muito mais usual que a imposição. Negociação que se grassava por toda a América Portuguesa e em quase todos os âmbitos burocráticos institucionais, desde o fiscal até o judiciário as relações eram intensas e obedeciam a uma lógica própria que intermediava elites locais, funcionários régios e o clero. Mas para a compreensão da complexa conjuntura que orientava e reorientava o processo de colonização na América-lusa, é preciso compreender tanto o reino quanto a colônia, torna se relevante dessa maneira o fato de que o modelo de colonização, 1 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul . São Paulo. Companhia das Letras, 2000, p. 12. 5

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Page 1: PODERES PERIFÉRICOS NO IMPÉRIO MARÍTIMO PORTUGUÊS -  A ATUAÇÃO DA JUSTIÇA NO BRASIL COLONIAL (SÉCULOS XVI-XVIII)

Introdução

Desse modo o arrocho da Coroa nos territórios ultramarinos, a agregação do excedente das zonas conquistadas às trocas atlânticas e o enfrentamento entre autoridades, clero e colonos acerca do controle dos nativos configuram problemas distintos no teatro das descobertas. No Peru, em Angola, em Goa, em Moçambique, no Brasil, noutros lugares ainda, o domínio colonial desanda logo de saída. 1

Este trabalho tem como um de seus objetivos, demonstrar os contrastes atuantes na

administração régia de Portugal sobre a América Portuguesa, tendo como ponto de partida o

princípio de que as forças centralizadoras do poder régio português no ultramar eram

dispersas e de níveis de intensidades variadas.

Pretendemos, estudando os mecanismos e práticas em que atores sociais se envolviam

traçar um perfil da relação existente entre metrópole e periferia do império português,

exibindo que a negociação era de um costume muito mais usual que a imposição. Negociação

que se grassava por toda a América Portuguesa e em quase todos os âmbitos burocráticos

institucionais, desde o fiscal até o judiciário as relações eram intensas e obedeciam a uma

lógica própria que intermediava elites locais, funcionários régios e o clero. Mas para a

compreensão da complexa conjuntura que orientava e reorientava o processo de colonização

na América-lusa, é preciso compreender tanto o reino quanto a colônia, torna se relevante

dessa maneira o fato de que o modelo de colonização, no plano burocrático-institucional,

proposto pelos portugueses tinha como fulcro a recriação na colônia da maioria dos órgãos

metropolitanos. E como toda transliteração corre o risco de perder seu sentido original, e não

nos parece que no caso português foi diferente, de fato foram adaptadas para que finalmente

fossem assimiladas. Como intentamos demonstrar além de uma lógica de burocratização, até

certo ponto bastante racional, se faz necessário lançar luzes sobre as estratégias utilizadas

pelos vassalos de vossa majestade para a aquisição de prestígio e defesas de seus próprios

interesses.

Dessa forma procuramos, ainda, com este estudo demonstrar que a “descentralização”

do poder da metrópole sobre a colônia brasileira em concomitância com uma, limitada mais

existente, “liberdade” de seus colonos, ocorre à custa de complexos estratagemas elaborados

não somente pelo grupo senhorial, visando à aquisição de honrarias e maiores riquezas, mas

muita das vezes pelos próprios reinóis interessados em algumas das variadas possibilidades de

1 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo. Companhia das Letras, 2000, p. 12.

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fortuna e prestígio que o além-mar fornecia. Haveria então uma mescla de interesses entre a

Coroa e as diversas partes integrantes do seu império que muita das vezes caminhavam em

paralelo, mas em outras haviam divergências.

Como dito apesar de termos neste contexto os lusos-americanos desempenhando o

papel principal, o diálogo com a Coroa, no que diz respeito as suas Ordenações, atos régios e

posicionamentos será intenso ao longo do trabalho. Paralelo a este dado iremos observar

também alguns acontecimentos em todo o império marítimo português com o objetivo de

entendermos melhor a dinâmica imperial e o papel da colônia brasileira nele. Somente assim

entenderemos o quanto às relações podiam ser inconstantes variando sempre que fosse

requisitado pelos membros integrantes da estrutura social.

Posto isso procuramos fornecer a este trabalho uma sequência de informações

justapostas com lógica, contudo devido ao extenso dimensionamento de informações e dados

é possível que em determinados momento da leitura o foco se desvie de seu caminho original,

mas isto não ocorre se não para um reforço das inúmeras afirmações que aqui serão efetuadas.

O terreno definitivamente é meandroso e extremamente complexo exigindo atenção elevada

do leitor.

Na primeira parte procuramos fornecer as ferramentas necessárias para a compreensão

do Antigo Regime, estabelecendo sempre que possível um diálogo Portugal e colônia luso-

brasileira. Nem todos os exemplos se restringiram a este ciclo, por diversas vezes

necessitamos exemplificar através de outros caminhos, o interessante neste caso é que assim

poderemos amplificar a nossa visão, principalmente quando as questões tangiam o modo de

governar português, entendendo que este não era homogêneo. Quando falamos no período

estudado as palavras, estado moderno, rei ou qualquer outra similar, muita das vezes nos vem

acompanhado o termo de absolutismo ou a imagem de um rei onipotente, no entanto

historiograficamente obtivemos – e continuamos a ter - sérias revisões sobre o assunto.

Precisaremos devido a isso estabelecer uma conexão com a concepção de estado moderno que

estamos trabalhando, situando a historiografia portuguesa e brasileira em posições de

destaque, alcançando a objetividade esperada. É por isso que a primeira parte se inicia pela

questão historiográfica.

A continuação do trabalho serve praticamente como exercício de afirmação aonde

novos componentes serão apresentados. Entenderemos melhor a relação entre colonos,

funcionários régios e a própria Coroa portuguesa. Servirá também como preparação de terreno

para a terceira parte.

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A terceira etapa deste trabalho representa a sua essência, é através dela que

justificamos todo o processo de construção do presente projeto, se nos permitem a analogia é

o nosso núcleo. Nela tentaremos demonstrar o equilíbrio de forças, os jogos estratégicos,

arranjos e rearranjos sociais de representantes da alta burocracia colonial, para tanto

utilizaremos membros da magistratura como objeto de estudo. Esta etapa visa analisar o

envolvimento dos mais altos funcionários régios letrados na administração portuguesa com os

colonos, análise esta que se dará no primeiro tribunal superior do Brasil colonial a Relação da

Bahia.

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1. Exorcizando paradigmas: Construindo um panorama imperial.

1.1 Perspectivas historiográficasSempre houve no meio acadêmico histórico os temas ditos polêmicos, estes ganham

este adjetivo por vários motivos que vão desde a complexidade de descrever determinado

processo histórico ate embates teóricos e por que não ideológicos. De tempos em tempos

novas teorias são geradas em contraponto a alguma existente, outras reafirmadas, outras

modificadas e algumas são até revividas, se não integralmente, parcialmente – vejamos o

exemplo de como o clássico trabalho de Freyre, Casa-Grande e Senzala, está reavendo seu

valor, devido a revisões historiográficas que ocorrem no mínimo desde a década de 19802.

Estas reavaliações são normais na historiografia, como já foi dito a História é fruto de seu

tempo e como tal sofre influências deste, isso desde os primórdios, somente para não passar

em branco lembremo-nos do positivismo e do marxismo que a tantos historiadores

influenciaram. O diálogo da história com outras disciplinas como sociologia, antropologia etc.

também tem modificado posições historiográficas consagradas a partir do momento que

obrigam historiadores a reverem conceitos. Não obstante o processo de centralização da

monarquia portuguesa parece ser um destes temas, presente nas historiografias portuguesa e

brasileira é gerador de inúmeros embates e linhas teóricas. Nestes trabalhos, basicamente são

as relações entre metrópole e colônia - no nosso caso específico Portugal e América

Portuguesa - que acabam gerando mais conflitos entre os historiadores da área. Logo, aqui se

encontra mais um.

Antes de adentrarmos no matiz principal deste trabalho optamos por nos alongarmos

um pouco mais na questão historiográfica, não só porque ela clareia nossas mentes sobre

como chegamos à perspectiva atual sobre o tema, e na ajuda da compreensão do presente

trabalho, mas, mais do que isto a sua polêmica nos serviu de inspiração.

Para tanto, nas próximas linhas procuramos desenhar brevemente, com algumas das

suas particularidades, o quadro historiográfico anterior ao nosso no que diz respeito à

concepção do Estado Moderno Português e a natureza de sua administração nas conquistas, e

2 Referimo-nos aqui a questão da contribuição das diversas etnias escravas a cultura brasileira, se esta existiu ou foi aniquilada pela cultura predominante que era branca. Para uma abordagem rápida sobre o tema ver o artigo da Dra. Sheila de Castro Faria em Identidade e comunidade escrava: um ensaio. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/tem/v11n22/v11n22a07.pdf>. Acesso em 19/09/2011.

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que, diga-se de passagem, ainda prevalece no senso comum, sendo ainda latente, infelizmente,

para alguns colegas de profissão.

Por muito tempo dominação colonial fora entendida como “exploração colonial”, os

responsáveis por esta análise a forjaram, sobretudo, durante as décadas de 1960 e 1970.

Remonta-se a este período o contexto histórico de Guerra Fria, a ascensão de governos

militares na América-Latina em concomitância com o regime militar de Salazar em Portugal.

Assim sobre a clara influência do marxismo estes historiadores debuxaram um quadro

bipolarizado entre colonizadores e colonizados. 3

Contudo os fatores descritos acima não foram os únicos bipolarizar as relações entre

colônia e metrópole. Segundo António Manuel Hespanha, um especialista na História

institucional portuguesa, na tendência historiográfica anterior, prevalecia à visão de uma

monarquia portuguesa absolutista e que o poder político era homogeneizado e concentrado no

estado4, isto advém de fatores políticos e ideológicos assim a:

[...] sobrevivência dessa imagem pode ser explicada por uma interpretação ingênua – ainda que ideologicamente significativa – das instituições históricas, fundada em preconceitos enraizados acerca da relação colonial. 5

Estes fatores eram reforçados pelos dois lados, colonizador e colonizados, ambos

visando interesses. Sendo assim seria digno, além de enobrecedor para Portugal a glamorosa

ideia de uma empreitada imperial, e admitir a hipótese de que o poder real era partilhado com

elites coloniais, com certeza não traz nenhum brilho a mais neste feitio. Houve manifestações

de diversas naturezas em Portugal que constatam tal orgulho, no campo literário

manifestações, de caráter romântico e nacionalista, que exaltavam a natureza intencional e

programada da expansão marítima portuguesa. Destarte se tornam ótimos exemplos as ideias

de Plano das Índias e da Escola de Sagres. Por outro lado, para as elites coloniais, nada mais

legitimador para um movimento de independência do que a noção de que esta foi conquistada

através de tempestuoso conflito contra um inimigo tenaz e poderoso, neste caso de proporções

imperiais.6 Após a tão sonhada liberdade um “inimigo” em comum é sempre bem vindo com a

intenção de fortalecer a unidade nacional, o que dizer do forte anti-lusitanismo existente 3 GOUVÊA, Maria de Fátima. Redes governativas portuguesas e centralidades régias no mundo português c. 1680-1730 In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de F. Na trama das redes: Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2010, pp. 158-1594 Desta linha de pensamento destacamos os trabalhos de Vanhargen, com a História Geral do Brasil (1854-57), continuada nas palavras de autores como Capistrano de Abreu, Capítulos de história colonial (1907) e principalmente Caio Prado Junior, Formação do Brasil Contemporâneo (1942).5 HESPANHA, António M. A constituição do império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 167.

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durante o regime imperial brasileiro. E que, por conseguinte libertaria finalmente a colônia da

metrópole que subjugou e durante séculos furtou as nossas riquezas através do dito “pacto

colonial”, afinal de contas de que outra forma enxergar este conceito.7 Depois, tal visão

justificaria, ainda, o genocídio dos índios, ignorando assim acontecimentos do século XIX,

assim como a explicação de más administrações.

Além dos motivos político-ideológicos citados anteriormente, a perspectiva

“mitológica” que a corrente historiográfica formulou no passado é oriunda da sua

proximidade com os acontecimentos referentes à forma de organização de Estado que

conhecemos como contemporâneo. Ou seja, o privado separado do público assim como a

sociedade civil seccionada do poder estatal. Com isso não foi possível aos historiadores

oitocentistas resistir à tentação de padronizar e diferenciar os “tempos” das mudanças

político-sociais de maneira que:

[...] a Coroa é a forma larvar da soberania estatal; as assembleias de estado, a antecipação dos parlamentos; as comunas, os antecedentes da administração periférica delegada; os senhorios, o eterno elemento egoísta que o Estado deve dominar e subordinar ao interesse geral. 8

Configurava-se assim um quadro historiográfico elaborado por historiadores que

influenciados pelo seu tempo cometeram o erro de opor exacerbadamente colonizados e

colonizadores e pecarão ao serem anacrônicos transportando o estado forte de seu tempo para

Portugal da idade moderna. Alguns ainda foram parciais ao procurarem exaltar sua nação,

como fora o caso dos nacionalistas portugueses. Alguns erros foram originados das

proximidades dos fatos o que muita das vezes deturpa a visão do historiador, neste sentido

concordamos com o célebre historiador Eric J. Hobsbawm que atribuía ao seu livro a Era dos

Extremos um alto grau de dificuldade na sua elaboração porque ele havia vivido a História

que ali escrevia9.

Contudo uma nova perspectiva historiográfica começaria a se delinear a partir da

década de 1980, nesta à questão da centralização vem sendo alvo de profundas revisões e

novas explicações têm surgido destas, de modo que um maior equilíbrio nas relações

6 HESPANHA In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.), 2001, pp. 167-169.7 Agradeço ao meu mestre Rodrigo Amaral que tantas vezes explicou melhor a ideia. 8 HESPANHA, António M. As vésperas do Leviathan: Instituições e Poder Político Portugal – séc. XVII. Coimbra. Livraria Almedina, 1994, p. 22.9 Hobsbawm, Eric J. Era dos Extremos: O breve século XX: 1914-1991. São Paulo. Companhia das Letras. 2° edição. – 2009, p. 7.

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envolvendo centro e periferia tem se destacado. 10 Mediante estes fatores cada vez mais se

torna difícil sustentar o maniqueísmo anterior e:

A tentativa de compreender a totalidade da história colonial como a história de uma relação monótona que submete colonizados a colonizadores é, vistas as coisas assim, uma simplificação grosseira, pouco aceitável pelas atuais regras de arte da história. 11

Cumpre-se ressaltar que a micro-história italiana possui participação fundamental nas

revisões que conduziram a nova “corrente historiográfica”, esta ao valorizar cada vez mais o

indivíduo, evitava o erro de menosprezar os atores sociais que se aventuravam pelos Mares de

Camões em busca de ascensão social. Quando analisamos tanto o econômico quanto o

político no Antigo Regime, o cultural deve sempre estar presente, porque muito deste

norteava ações dos dois primeiros, típica característica de uma sociedade patrimonial onde o

particular e o público se misturavam em um só quadro. Para tanto não há um modelo ou

conceito definido para a compreensão de tais relações isto porque variam conforme algumas

determinantes que também não são constantes e podem ser consideradas voláteis. Imaginemos

um quebra-cabeça com um desenho não formado e as peças podem ser encaixadas de

múltiplas formas. Em melhores palavras João Fragoso define assim:

As práticas culturais, parentais, econômicas, políticas etc. tornaram-se inseparáveis. Compunham as experiências e as estratégias de pessoas e grupos sociais. Por meio destes fenômenos, podia-se perceber a lógica da sociedade estudada, não mais petrificada, porém em movimento. 12 (grifo nosso)

Devemos levar em consideração que a governança tanto no reino quanto no ultramar

iam para além de questões relacionadas à administração, pois se tratando de uma sociedade

senhorial e patrimonial as relações entre os indivíduos tornam-se chaves tanto para a

formatação quanto para a sua organização. A mobilidade social também marca esta sociedade,

sendo mais comum do que se previa esta demonstra que as relações de poderes vão mais

além, são geradas no dia-a-dia, através de relações pessoais inseridas em um meio social de

extrema complexidade, em que as regras do jogo são mais flexíveis do que imaginávamos,

elas se “humanizam”. A despeito da estrutura social que iremos trabalhar o historiador

Rodrigo Amaral tece o seguinte comentário partindo do:

10 HESPANHA In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.), 2001, p. 165. 11 HESPANHA In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. 2010, p. 75.12 FRAGOSO, João. Afogando em nomes: temas e experiências em História Econômica. In: Topoi, Rio de Janeiro, n.5, 2002, p. 62. Disponível em: <http://www.ifcs.ufrj.br/~ppghis/pdf/topoi5a2.pdf> acesso 14/12/2011.

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[...] pressuposto que as sociedades em análise eram hierarquizadas, mas não cimentadas, dinâmicas, mas com atores sociais ciente de deveres e obrigações, móveis, ainda que tal mobilidade possa ocorrer para cima ou para baixo. Em suma, temos em panorama uma visão dinâmica daquilo que chamamos sociedade. 13

Por mais que estejamos tratando de questões relacionadas ao “poder” devemos ter

consciência de que estamos tratando de atores sociais que possuíam sentimentos logo eles se

“moviam, pensavam, agiam, erravam, acertavam, amavam, odiavam, gostavam, enfim,

sentiam e viviam.” 14

Com o fim da bipolarização entre colonizados e colonizadores, a constatação de que

havia possibilidade de mobilização social - quer sejam horizontal ou vertical - em junção do

caráter patrimonial e patriarcal da sociedade moderna portuguesa, foi possível perceber a

importância da análise de “redes” no contexto político, de forma que nos últimos anos a sua

aplicação tem se tornado corrente.15 A constatação da existência de redes no interior da

sociedade colonial portuguesa demonstrou uma lógica única, em que os atores sociais

conseguiam através de relações como parentesco, apadrinhamento, amizade etc. criar laços

que permitiam a organização em grupos que melhor representariam seus objetivos em comum

ou até mesmo individuais. Uma vez formado determinada “rede” seus componentes poderiam

articular-se acionando dispositivos para alcançar determinado objetivo. Contudo o

reconhecimento de uma “rede” pode ser um pouco mais complicado, Mafalda Soares da

Cunha consegue clarear a questão definindo que:

[...] o conceito de rede pressupõe sempre a existência de relações interpessoais e que estas podem ser segmentadas e analisadas a partir dos suportes que a configuram. [...] Mas para que se considere que a miríade de relações interpessoais que os indivíduos detinham configurava uma rede, há que determinar a sua operacionalidade em contexto de ação. Dito de outro modo, se esses laços e conexões eram acionados com vista a atingir certos objetivos. Exige, por isso, um estudo dos fenômenos assente na dimensão relacional dos atores sociais. 16

O que pretendemos com tal abordagem é que as articulações destas redes ao

procurarem atingir seus objetivos poderiam vir a interferir, é interferiam, na governabilidade

13AMARAL, Rodrigo de Aguiar. Sob o paradigma da diferença: Estratégias de negociação, submissão e rebeldia entre elite e subalternos no Rio de Janeiro e em São Tomé e Príncipe (c.1750-c. 1850). Tese apresentada para obtenção de doutorado em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2010 pp. Xxxix-xl. O autor realiza está análise com um propósito distinto do nosso, entretanto também é pertinente para o nosso estudo por se tratar da mesma sociedade a do Antigo Regime.14 Idem. 15 CUNHA, Mafalda Soares da. Redes sociais e decisão política no recrutamento dos governantes das Conquistas 1580-1640. In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de F. 2010, p. 119. Deve-se ressaltar que a autora discorre sobre a importância do conceito de redes e de seu uso corrente pelos historiadores, no entanto, a explicação aqui dada é algo particular a este trabalho.16 Idem.

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tanto do reino quanto do ultramar. Exemplo disto é o de António Coelho Guerreiro que tornou

se burocrata para melhor mercadejar.17 Se trata da elevação destas redes para a própria

compreensão da administração e constituição do estado moderno português:

Ou seja, sublinha-se o relevo dos laços e das conexões interindividuais para, em detrimento ou a par dos laços formais ou juridicamente definidos, descrever o funcionamento das diversas instâncias de poder e em última análise das próprias monarquias.18

Destarte a noção de negociação entre o monarca e a nobreza da terra ganham relevo

em obras históricas acerca do tema corrente, demonstrando assim uma maior lucidez sobre o

tema, Portugal possuía um império sim, entretanto este era fundamentado em relações

comerciais, portanto de mão dupla, que eram basicamente estabelecidas através de feitorias

em posições estratégicas – exceto na América Portuguesa o que representava exceção é não

regra. Na Ásia podemos identificar perfeitamente como se deu o controle português, este era

assegurado em cidades estratégicas e que viabilizavam melhor acesso aos objetivos

“comerciais” dos portugueses. Boxer diz que as cidades de Goa, Malaca e Ormuz garantiam o

controle das principais rotas comerciais e por onde escoavam as especiarias do Índico.19 É do

mesmo autor a análise aonde ele conclui que a sociedade portuguesa vivia sobre um

verdadeiro paradoxo aonde seus principais valores eram senhoriais, eclesiásticos e militares,

contudo o incrível consistia em “depender em tão grande medida, para seu desenvolvimento e

sobrevivência, do negócio e do comércio” 20. Concordamos em parte, é verdade que a

característica comercial se destacava, mas, não achamos isto um paradoxo porque de que

outra forma seria possível chegar tão longe, sem o apoio do mercantilismo - composto por

agentes comerciais na maioria das vezes privados - dificilmente Portugal teria ultrapassado o

cabo da Boa Esperança. Não acreditamos que Portugal tivesse um leque de opções e optou

por este caminho, mas que na verdade talvez fosse o único condizente com as suas limitações,

o estado ainda caminhava em direção a seu fortalecimento. Prerrogativa esta que não

pertencia somente a Portugal e segundo Jack P. Greene em estudo sobre o sistema de

assembleias adotado pela Inglaterra em suas possessões conclui que:

17 Para mais informações a respeito ver GOUVÊA, In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de F., 2010, p. 172 et. seq.18 CUNHA, In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de F. 2010, pp. 121-122. 19 BOXER, Charles Ralph. O Império Marítimo Português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 62.20 Ibidem, p. 331.

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No começo da era da colonização moderna, nenhuma dos Estados-nação emergentes da Europa tinha quer os recursos coercitivos necessários para estabelecerem sua hegemonia em partes do Novo Mundo, quer os meios para mobilizar aqueles recursos. Como consequência, durante os primeiros estágios da colonização qualquer Estado-nação que contemplasse empreendimentos de risco no ultramar delegava a tarefa a grupos particulares organizados em companhias de autorizadas ou a pessoas influentes. 21

Havia ainda limitações ligada a população portuguesa. Não obstante, havia uma clara

preferência da política lisbonense pela doutrina talassocrática22, aonde há uma preferência do

domínio do mar ao terreno, podemos então conjecturar que esta opção era advinda da

importância das rotas marítimas que por sua vez asseguravam o comércio lusitano.

Isto nos demonstra que o domínio régio português era pautado principalmente através

de negociações entre colonos, nativos e autoridades reais, justamente ao contrário do que

pregava a historiografia anterior, aonde o domínio militar prevalecia e o rei com poder

absoluto poderia fazer o que quisesse. Não afirmamos com isto que a política da “canhoneira”

não existia, somente alegamos que era exceção e não regra. Algumas regiões do “mare

lusitano” podem ser consideradas emblemáticas para a nossa defesa como a presença

portuguesa que fora negociada na China e em Nagasaki no Japão. No Congo a convivência se

dava de forma pacífica, e o governo era realizado sob a égide de reis “cristãos congoleses”

desde 1651, até o Conselho Ultramarino reconhecia que “El-rei de Congo não é vassalo desta

Coroa, senão irmão em armas dos reis dela” 23. Esta situação durou até a chegada do

governador de Angola André Vidal de Negreiros que muda a política, devido a interesses

“comerciais”, e opta por subjugar o Congo e derrota os nativos na histórica batalha de

Ambuíla em 1665.

Alguns destes estudos trabalham justamente com a noção de periferização24 no império

marítimo português que uma vez formado por complexas redes comerciais e constituído por

relações pessoais vão conceder um novo significado aos “modos de governar” português.

Sacramentando assim uma nova perspectiva historiográfica que modifica a visualização do

processo histórico ocorrido nas colônias portuguesas, no nosso estudo na luso-brasileira, e

afastam incisivamente os paradigmas do pacto colonial. E é nos moldes desta historiografia

21 GREENE, Jack P. Tradições de governança consensual na construção da jurisdição dos Estados nos impérios europeus da Época moderna na América in: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de F. 2010, p. 98.22 ALENCASTRO, Luiz Felipe O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul - São Paulo – Companhia das Letras, 2000. P. 28423 Consulta do Co. Uo., 15/09/1651, MMA, XI, p.64. apud ALENCASTRO, Luiz Felipe, 2000, p.290.24 Referimo-nos aqui a noção de periferização utilizada pelo Hespanha nas suas diversas obras sobre o tema. Com relação às obras que aborda a tema a lista é extensa, no entanto acreditamos que as fontes bibliográficas deste trabalho fornecem o suficiente para que se entenda tal noção.

14

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que este trabalho se apresenta, justamente como fruto de seu tempo e concordando com

Hespanha no que diz respeito à questão da centralização de “[...] que parece difícil sustentar

[...] a imagem de um império centrado, dirigido e drenado unilateralmente.” 25

1.2 Centralização e equilíbrio no Estado Moderno português

É normal encontrar trabalhos sobre os estados modernos em que se abordam

diretamente as suas definições, entretanto tergiversando um pouco deste paradigma, e para

melhor situarmos o nosso trabalho gostaríamos de elucidar algumas questões relativas ao

processo que culminou nos chamados estados modernos, e mais a frente entenderemos como

o cerne da questão está ligado intrinsecamente ao estado moderno português e ao

fortalecimento da burocracia colonial. Ou seja, gostaríamos de exemplificar a respeito dos

dispositivos que deram início ao processo de busca por uma maior centralização e

fortalecimento do poder real, que independente de resultados levou a significativas mudanças

na sociedade em questão.

O fenômeno onde o estado representado na figura do rei procura fortalecer seu poder

começa a se esboçar mais concretamente a partir do século XVII quando a Europa sofre de

inúmeras crises26. Podemos demarcar como pontos de partida, dos motivos que conduziram

as monarquias europeias à procura de uma maior centralização, dois, as disputas coloniais e

os conflitos entre as nações europeias, desta forma:

[...] o processo de centralização territorial e política foram impulsionados por três imperativos que conferiram uma tonalidade própria aos estados modernos: a guerra exterior, a pressão fiscal sobre seus domínios e a militarização e arregimentação de seus súditos. 27

É interessante reparamos que a busca pelo fortalecimento do poder central se dava

principalmente através da expansão e fortalecimento da burocracia estatal, fato que a

expansão ibérica contribuiu ao ampliar as vagas para serviços burocráticos. O poder central

representado pela figura do rei limitava-se às funções de manter o equilíbrio entre os poderes

existentes e defesa da paz. É constante a analogia de uma monarquia orgânica em que o rei

25 HESPANHA, António M. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.), 2001, p.165. 26 BICALHO, Maria Fernanda. A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro no Século XVIII. Rio de janeiro. Civilização Brasileira, 2003, p. 342.27 Ibidem, p.340.

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era a cabeça incumbida de direcionar o restante dos membros, no entanto este jamais tomaria

o lugar dos membros. O equilíbrio seria alcançado marcadamente através da justiça. 28

Na tentativa de melhor explicitar a questão nos aproximamos da explicação fornecida

pela historiadora Maria Fernanda Bicalho que afirma que a:

[...] administração de homens, o exercício da justiça, a cobrança do fisco e o gerenciamento da guerra parecem ter sido os principais imperativos sobre os quais se fundaram os Estados Monárquicos dos Tempos Modernos. 29

Características também inerentes a Portugal e as suas “conquistas”, guardado logicamente as

suas devidas proporções e especificidades.

A busca por uma maior centralização não era fácil e a própria configuração do estado

muitas das vezes atrapalhava, isso sem falar nas complexas redes comerciais, políticas e

sociais que pairavam pelos domínios portugueses. De fato os empecilhos eram muitos e a

Coroa recorria a instituições e/ou autoridades régias presentes no ultramar para a

concretização de tal empreitada, nas palavras do historiador Hespanha termos como

“’Estado’, ‘centralização’ ou ‘poder absoluto’, por exemplo, perderam sua centralidade na

explicação dos equilíbrios de poder nas sociedades políticas do Antigo Regime.” 30

Na tentativa de padronizar os principais obstáculos, aliás, hábito de historiador,

bastante explicativo é o modelo de monarquia corporativa que o historiador nos fornece e que

teria prevalecido na Coroa portuguesa até meados do século XVIII, vejamos:

• O poder real partilhava o espaço político com poderes de maior ou menor hierarquia;• O direito legislativo da Coroa era limitado e enquadrado pela doutrina jurídica (ius commune) e pelos usos e práticas jurídicos locais;• Os deveres políticos cediam perante os deveres morais (graça, piedade, misericórdia, gratidão) ou afetivos, decorrentes de laços de amizade, institucionalizados em rede de amigos e de clientes;• Os oficiais régios gozavam de uma proteção muita alargada dos seus direitos e atribuições, podendo fazê-los valer mesmo em confronto com o rei e tendendo, por isso, a minar e expropriar o poder real. 31

Subtraindo todos os elementos acima do poder real podemos inferir previamente que

pouco restava ao poder político régio, contudo acreditamos que não se tratava de um jogo de

ganha-ganha e sim de conciliação e equilíbrio entre os poderes, logicamente em diversos

momentos a balança poderia pender mais para um lado do que para outro. O que determinaria

28 BICALHO, 2003, pp. 339-346.29 Ibidem, p. 340.30 HESPANHA, In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.), 2001, p.165.31 Ibidem, pp.166 Et. seq.

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estes momentos e/ou espaços de desequilíbrio, seriam diversos elementos variantes, como os

já descritos interesses comerciais, e o produto poderia variar de acordo com o objetivo. Na

África o objetivo poderia ser o controle de alguma feira de escravos, na Ásia alguma rota que

levasse às especiarias e no Brasil regiões mineradoras, ilustremos melhor o último caso.

Em 1729 há o conhecimento oficial de diamantes na região de Minas Gerais, isto por

sua vez leva a atitudes extremas e inovadoras na política lusitana, baixando se “[...] então, um

conjunto de medidas de rigor implacável e inédito em terras portuguesas.” 32 A começar pelo

fato da extração se tornar monopólio régio no mesmo ano em dezembro, o próximo passo da

Coroa viria em 1731, com a proibição da extração de ouro na área. A situação culminaria com

o Regimento Diamantino datado de dois de agosto de 1771, nele ficava determinando que a

administração do distrito se desse através de um intendente, um fiscal e mais três caixas, todos

eles subordinados à administração Diamantina que era sediada em “Lisboa”. O fato da

intendência se reportar somente a Lisboa também se caracterizava como uma situação

bastante particular. A austeridade da Coroa neste caso era tão atípica que chegou ao ponto de

ser proibida a circulação de negros e mulatos livres na região diamantífera33. Todas estas

medidas acabaram por gerar muitos descontentamentos. Por mais que consideremos um

contrabando na região com certeza este era mais diminuto se comparado a outras regiões em

que a distensão régia predominava. Boxer procurando descrever este isolamento utilizou a

expressão “uma colônia dentro de outra colônia” 34. A própria Minas Gerais sofria de um

controle maior por parte das autoridades régias, porém não sejamos ingênuos de acreditar que

a fiscalização era sempre efetiva e o contrabando sempre foi um dos principais problemas

para as autoridades reais e o erário régio deixava, fatalmente, de arrecadar a cada transação

ilegal.

No âmbito jurídico também podemos notar algumas atitudes contraditórias na política

então vigente, notadamente, Arno Wehling percebe que em meio às tendências

centralizadoras a Coroa portuguesa ainda promulgava leis que favoreciam poderes locais e

nota que:

A própria monarquia absoluta dos séculos XVI e XVII era ainda estamental e corporativa, concedendo privilégios e gerando direitos que se contrapunham, ou poderia contrapor-se, aos esforços centralizadores. Mesmo no século XVIII, no apogeu da atuação centralizadora dos burocratas absolutistas de Portugal, França,

32 FARIA, Sheila de Castro. Distrito Diamantino. In: VAINFAS, Ronaldo (direção). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro. Objetiva. 2001, p.188.33 Para maiores informações sobre o distrito Diamantino vide BOXER, Charles Ralph. A Idade de Ouro do Brasil. Companhia Editora Nacional – São Paulo – 2º edição – 1969, pp. 222 et seq. 34 Ibidem, p. 239.

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Espanha ou Toscana, ainda existiam setores do estado e mecanismos institucionais que continuavam a emitir privilégios e isenções, gerando assim novos direitos particulares. 35

O estado moderno português possuía em seu interior propriedades corporativistas,

patrimonialistas e senhoriais, isto torna-se interessante quando relacionamos estes

componentes a uma expansão territorial acompanhada de ampliação da rede burocrática que

deveria agir como polos de poder do rei no ultramar, mas a sua natureza humana parece ter

atrapalhado um pouco esta meta como veremos mais a frente.

Em contrapartida as elites locais, que funcionavam como força centrífuga, também

faziam prevalecer o seu domínio no mesmo Império Português. A nobreza da terra colonial

não só se relacionava com as autoridades reais como muitas das vezes faziam parte dos

centros de poderes, possibilidades existentes não só por situações criadas pelos poderes locais,

mas também oriundas de certa dependência da Coroa para com os seus vassalos. Podemos

perceber as suas influências nitidamente em órgãos ultramarinos como as câmaras municipais,

“locus de negociação entre a nobreza da terra local e os poderes do centro.” 36

A câmara de Macau é um bom exemplo deste fenômeno. Implementada em 1582 esta

sempre desfrutou de uma autonomia que poucas outras desfrutaram, quando da morte do

governador entre 1697-1698 a câmara chegou a assumir o governo literalmente. E quando a

Coroa procurou fortalecer sua presença na região através do governador os representantes

camareiros protestaram junto ao vice-rei de Goa, “afirmando que durante os 226 anos

anteriores haviam governado aquela colônia sem qualquer subordinação aos funcionários

régios.” 37

Estes órgãos gozavam realmente de autonomia e talvez fosse no âmbito das câmaras

ultramarinas que adquiriam destaque. Cada câmara procurava seguir o padrão de uma

congênere na metrópole o que permitia a estas gozar dos mesmos privilégios das câmaras

reinóis, a do Rio de Janeiro, por exemplo, se modelava conforme a câmara do Porto 38. Apesar

dos privilégios serem idênticos aos do reino o mesmo não pode ser dito da sua estrutura, as

câmaras necessitavam de adaptação quando da sua implementação no ultramar “heterogêneo”,

estas acabavam adquirindo características próprias o que as tornavam únicas39. Bastante

35 WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial - O tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). – Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 15.36 FRAGOSO, João, 2002, p. 42.37 BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras ultramarinas e o governo do império. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.), 2001, p, 194 et seq.38 BOXER, 2002, p. 291.39 BICALHO, 2003, pp. 193-221.

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perspicaz foi a Coroa neste aspecto, ao perceber que na vastidão de seu império encontrava se

uma multiplicidade de culturas e que devido a especificidades não poderiam ser tratadas

igualmente. Há uma outra forma de enxergar esta pluralidade, como via de aquisição para

maior autonomia, prejuízo que a Coroa não podia evitar e estava ciente, pelo menos no

regimento de Salvador Correia de Sá (25-03-1644):

E porque as cousas do mar são incertas e há casos que não se podem prevenir antecipadamente: hei por bem que Vos, com o Almirante da dita frota, auditor, e sargento-mor, e capitão e guerra de capitania, disponham nos tais casos, o que se vencer por mais votos [...] 40

No próximo capítulo iremos destrinchar um pouco mais sobre as câmaras municipais e

suas questões relativas à autonomia, por ora devemos pensar que o importante não é somente

os seus privilégios, mas como e de que forma alguns destes privilégios poderiam se mover em

favor de determinado grupo ou indivíduo destas elites coloniais, por fim interagindo entre os

membros atuantes desta sociedade.

A historiadora Maria Fernanda Baptista Bicalho remete em seu livro a um curioso

caso ocorrido no Rio de Janeiro em que um juiz de fora decidira a favor da “nobreza local” e

devido à representatividade deste caso optamos por reproduzir o trecho em que a autora o

descreve na íntegra, ele ocorreu em:

[...] 1729 quando o governador Luiz Vahia Monteiro quis impor ao senado “um intruso vereador de barrete”. O juiz de fora tomou partido dos representantes da nobreza e, valendo-se das ordens régias, tentara embargar a eleição, o que causou muito alvoroço na cidade. Solicitavam, enfim, ao monarca, que mandasse observar as leis, provisões e alvarás a esse respeito, evitando desta forma “errôneas interpretações” por parte dos seus funcionários, por serem prejudiciais aos “naturais, os filhos e netos de cidadãos descendentes dos conquistadores daquela capitania, de conhecida e antiga nobreza”. 41

Temos aqui um caso excelente, cheio de significados, e que deve ser analisado

cuidadosamente, mas mesmo assim iremos nos aventurar a formular algumas hipóteses.

Primeiramente temos a figura do governador Monteiro que procura utilizando-se de artífices,

eleger um vereador, um possível aliado? Posto que o juiz de fora, ficou a favor da nobreza

local, podemos considerar que o governador estava atuando de maneira a fortalecer, mesmo

que por meios ilícitos, o poder central? Talvez, ele também poderia estar agindo em benefício

próprio. Mas o paradoxo da história é o fato de que temos um juiz de fora interagindo com 40 MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da formação administrativa do Brasil, dois vols. Rio de Janeiro: IHGB, p. 621 apud HESPANHA, In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.), 2001, p. 175.41BICALHO, op. cit., p. 375.

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membros desta sociedade colonial a ponto de defender seus interesses. O porquê do juiz de

fora defender os interesses das elites locais, indo contra o governador local é um mistério para

nós, são muitas as conclusões possíveis, podiam ser dois “bandos” locais disputando espaços

de poder, alguma rixa antiga com o governador ou pode ser que o governador estivesse

tentando de fato cumprir o seu papel de ser um braço burocrata atuando em nome do rei. Esta

situação assim como as suas possibilidades nos indicam que a complexidade das relações

coloniais não eram solidificadas e sim maleáveis e mais uma vez podemos perceber a

natureza humana atuando na alta burocracia.

Ser detentor de conhecimentos geográficos assim como da tecnologia existente em

determinado período histórico é importante para que não caiamos no erro do anacronismo ou

para que detalhes não passem despercebidos, no período em questão o transporte e

consequentemente a comunicação ainda eram obstáculos a serem superados. Viagens levavam

meses e naufrágios eram constantes. Deveriam ser considerados ainda os fatores climáticos

como as monções que facilitavam ou não à navegação costeira. Consequentemente estes

fatores poderiam intervir seriamente na administração colonial e não podem ser subestimados.

A situação era tão complicada neste ponto, que até colônias “exemplos” adquiriam mais

“independência” como o Estado da Índia que “[...] era objeto de um controle tornado muito

remoto pelos nove meses que demorava a comunicação com a metrópole”. 42 Da mesma

forma uma travessia atlântica poderia levar quase três meses43. O “tempo administrativo”

ganha desse jeito um novo significado em que este poderia atuar de forma determinante na

administração colonial, é só imaginar quantas coisas não acontecem em três ou nove meses.

Este tempo interferia diretamente na dinâmica e até nas estruturas lusitanas.

Não é de se admirar que um dos motivos da ampliação da margem de atuação das

câmaras derivava do fator distância e os:

[...] obstáculos físicos, além de outros, à existência de comunicações eficientes deixavam, inevitavelmente, as câmaras com larga margem de autonomia, e estas continuaram a administrar a tributação local até 1822. 44

Esta é a leitura de uma pequena parcela da dinâmica que pairava sobre os mares de

Camões, estamos longe da pretensão de lançar luz sobre todos os elementos existentes, mas,

como parte de um todo acreditamos que estes “minúsculos” casos detalhem melhor um pouco

42 HESPANHA, In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.), 2001, p. 167. 43 BELLOTO, Heloisa L. O estado português no Brasil: Sistema administrativo e fiscal. In: Silva, Maria Beatriz N. da (Coor.) – O império luso-brasileiro (1750-1822), Lisboa. Editorial Estampa. 1986. p.265 apud BICALHO, 2003, p. 35444 BOXER, 2002, p. 291.

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da lógica pertencente ao mundo moderno português. Todavia podemos realizar uma breve

inferência a cerca das características delineadas acima. A primeira delas é a necessidade de

nos situarmos geograficamente no império português, não só quando nos movimentamos

continentalmente, como vimos há situações em que a Coroa dispensava tratamentos diferentes

aos seus súditos, conforme a importância daquela localidade e o deslocamento de quilômetros

pode representar uma mudança desta natureza. Outra possível conclusão, e conectada a

primeira, é a flexibilização possível dentro sistema, como no caso das câmaras ultramarinas.

Isso reforça nossa argumentação em cima das inúmeras possibilidades existentes nas colônias

portuguesas.

Feito isso acreditamos que a etapa necessária para alicerçar a linha de pensamento

desejada esteja concluída, é importante para nós que fique claro ao leitor a importância dos

detalhes e de algumas das principais características da sociedade portuguesa, incluindo as

colônias, não porque estas eram determinantes, até porque esperamos a esta altura ter

demonstrado que o sistema não era engessado e sim flutuante, mas porque interagiam

juntamente com sujeitos sociais responsáveis pela administração colonial. Sujeitos que

munidos de uma cultura metropolitana reproduziam na medida do possível os costumes deste

último, o que por sua vez iria se materializar em regras inconstantes e mutáveis.

Procuraremos a partir de agora realizar uma análise mais sistemática de alguns dos

elementos inerentes às vicissitudes e nuances que se caracterizavam como forças centrípetas e

centrífugas, de modo que possamos racionalizar melhor o movimento dos corpos sociais no

ultramar e que fundamentava o império português.

2. Exemplificando a práxis no império marítimo português.

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2.1 Visões de uma Monarquia Corporativa e sua aplicação no mundo colonial

Já tivemos a oportunidade de entrar em contato com alguns elementos constituintes do

império marítimo português assim como da sua atuação, entretanto não nos aprofundamos no

assunto. Os componentes, que aqui classificamos como centrífugos e centrípetos são muitos e

merecem, portanto, uma análise mais consistente, até para que possamos prosseguir nosso

trabalho com um grau de lucidez maior.

Não há dúvida de que predominava a ideia de que Coroa e consequentemente o estado

era personificado na imagem do rei, isto podia passar uma noção de que o rei controlava a

tudo e a todos intervindo:

[...] nos mínimos detalhes da vida cotidiana de seus súditos, ordenando-os, disciplinando-os, normatizando-os. Esta ideia se valia para o reino, abrangia igualmente a amplitude de seus domínios ultramarino e coloniais. Basta passar os olhos pelas consultas do Conselho Ultramarino para ser convencido de que seus membros deliberavam sobre cada minúcia da vida econômica, política e militar das sociedades coloniais, chegando mesmo a ordenar os mais insignificantes detalhes do cotidiano de seus habitantes. 45 (grifo nosso).

O que devemos refletir, entretanto, e o quanto a Coroa de fato intervinha nas relações

de seus vassalos e aferir da mesma forma o quanto esta intervinha na administração colonial.

Paralelo a isso o que realmente pretendemos demonstrar é que na prática o poder “real” era

partilhado com outras instituições e autoridades sejam de natureza metropolitana ou colonial.

Neste sentido nos questionamos a respeito do alcance mental que a figura do rei

conseguia exercer sobre os seus vassalos, como será que estes se comportavam e agiam

estando tão distantes do rei, quais seriam os seus sentimentos em relação. Podemos falar de

certo sentimento de abandono por parte dos colonos para com o rei, o que os levava a crer em

“uma imagem do espaço ultramarino como lugar que possibilita a consecução da tirania e da

injustiça. ”46 A distancia agravava este sentimento a partir do momento que:

[...] a vivência da separação do reino representou para eles [colonos] um sentido fundamental. O sentimento de afastamento se manifestou em um sem número de ocasiões, estando geralmente associado ao abandono e à desproteção em relação ao rei. 47 (grifo nosso)

45 BICALHO, Maria Fernanda. A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro no Século XVIII. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 340.46 FIGUEIREDO, Luciano de A. – Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na América Portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1640-1761, Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História da FFLCH da USP, São Paulo, 1996, pp. 277-280. apud BICALHO, 2003. pp. 355-356.47 FIGUEIREDO, Luciano de A. pp. 277-280 apud BICALHO, 2003, pp. 355-356.

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Juntamente com o sentimento de abandono podemos concluir então que esta abria

espaço, também, para um sentimento de liberdade, e devemos sublinhar que tais sentimentos

englobavam tantos agentes sociais “comuns”, como aqueles indivíduos relacionados à

administração colonial. Estes sentimentos teriam incentivado a práticas ilícitas por parte dos

colonos, como o contrabando? Neste quesito preferimos não ousar e nos restringir somente ao

que há de concreto sobre o assunto.

Neste sentido a política de “graça” da Coroa portuguesa fornecia um contraponto,

ajudando a reforçar os vínculos e votos de vassalagem com o seu rei.

Doravante iremos apresentar profusas características do poder político no ultramar

assim como das naturezas que as competem, e para que não corramos o risco de perder

objetividade e acabemos falando de tudo sem falar de nada, optamos por apresentar elementos

que compactuam com as noções do conceito de monarquia corporativa. 48

2.2 Convivências de poderes paralelos: “Modus Vivendi”

Temos afirmado o tempo todo que uma das premissas básica para qualquer descrição

do império marítimo português - e neste sentido poderíamos adota-la tanto nas colônias

quanto no reino - é de que o poder político era seccionado e hierarquizado por vários

componentes do mare lusitano. Na prática o poder político e econômico podia ser dividido

entre várias esferas, podendo até ocorrer o caso de uma total exclusão da Coroa em regiões

específicas. O mais interessante e perceber na postura e atitudes adotadas pela Coroa a

legitimação destes poderes, mesmo que às vezes tacitamente. Tal fato nos admira pois

significa reconhecer as suas limitações enquanto estado monárquico.

Dialogar sobre outros poderes nos remete sempre, e obrigatoriamente, a falar sobre a

Igreja Católica, muito presente no período estudado e que possui relações estreitas com

Portugal devido ao regime de padroado se configurando como um órgão independente e

autônomo na Época Moderna.49 Esta não só aparenta como realmente participa de todos os

âmbitos sociais, resumindo:

[...] de todos os poderes que então coexistiam, a igreja é o único que se afirma com bastante eficácia desde os âmbitos mais humildes, quotidianos e imediatos, como as famílias e as comunidades, até ao âmbito internacional, em que convive com os poderes dos reis e imperadores. 50

48 Vide página 16.49 HESPANHA, António Manuel. As estruturas políticas em Portugal na época moderna. In: MATOSSO, José, TENGARRINHA, José (Orgs.). História de Portugal. Lisboa: Instituto Camões, 2000. p. 124.50 HESPANHA In: MATOSSO, José, TENGARRINHA, José (Orgs.), 2000, p. 124.

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A constância da igreja era tanta em determinados pontos do ultramar que na Índia Portuguesa

o povo goense possuía o seguinte provérbio “vice-rei vá, vice-rei vem, padre jesuíta sempre

tem”.

Estruturalmente falando a igreja estava mais bem amparada que a própria Coroa, pois

desempenhar “a sua missão (de condutora, de mãe e de mestra) a igreja dispunha, quer de

normas disciplinares, quer de uma malha administrativa e jurisdicional sem paralelo na

época.”51

O historiador Arno Wehling nos lembra de que mesmo sobre o regime do padroado a

doutrina do Estado Português era regalista, ou seja, governo em que o estado é superior a

igreja, mas isto não impedia que acontecessem diversos conflitos entre o clero e as

autoridades coloniais52. A ordem dos jesuítas protagonizou inúmeros embates contra

autoridades régias e normalmente a sua presença gerava tensões entre os colonos53.

A igreja católica melhor estruturada tanto quantitativamente quanto qualitativamente

fazia com que a sua presença nas colônias fosse constante e não obstante o clero ainda gozava

de inúmeros privilégios. Grande parte dos padres:

[...] estavam imunes à jurisdição civil; as ordens religiosas e a igreja possuíam cerca de um terço das terras disponíveis em Portugal, e muita das terras mais produtivas da Índia portuguesa; havia padres e prelados que passavam a vida inteira na Ásia, tendo, portanto, influência constante [...] 54

Não podemos afirmar que as instituições rivalizavam, conquanto houvesse casos de serem

geradas tensões entre estas. Mas uma via de mão dupla talvez seja a melhor caracterização,

um dom e contra dom em instâncias superiores. Quando do conflito luso holandês, fora

travada uma batalha no campo teológico, isso porque a República das Sete Capitanias Unidas

estavam sobre a égide do protestantismo, e neste quesito Portugal levava vantagem a partir do

momento em que:

Diversos funcionários e comerciantes holandeses no Oriente observaram que os portugueses gozavam de significativa vantagem sobre os holandeses em face da influência e do prestígio que os missionários católicos romanos adquiriram em várias regiões. 55

51 Idem.52 WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José, Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005, p. 318.53 Referimo-nos principalmente nos embates gerados entre paulistas e padres jesuítas quando a questão do cativeiro indígena para mais informações vide livros aqui citados como O Trato dos Viventes, de Alencastro, e a Idade de Ouro do Brasil, de Boxer.54 BOXER, C. R. O Império Marítimo Português 1415-1825. São Paulo. Companhia das Letras, 2002, p. 89. 55 BOXER, 2002, p. 136.

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Fica bem explicito neste caso a cooperação entre a Coroa e a igreja, é interessante observar

este tipo de relação na idade moderna e que lembra, guardadas as devidas proporções e

conjuntura diferente, a troca que havia entre estado e igreja na Idade Medieval, sendo que

agora, obviamente, com predomínio do estado sobre a religião. Uma analogia, claro, e como

tal imperfeita.

O poder real muita das vezes necessitava ser conciliado com colonos e autoridades

nativas. Essa conciliação se dava às vezes com conflitos, às vezes sobre imposição mas o que

parece ter predominado no caso português foram as negociações.

Em terras africanas, na Zambézia, distante do diferentemente pleno domínio que

Portugal exercia sobre a sua colônia angolana, nos poderíamos encontrar formatos

organizacionais peculiares como os prazos56 (terras). Que era regulado pelo contrato de

enfiteuse, este estipulava que a Coroa concedia as terras aos colonos por um período de três

gerações, após a passagem deste período podendo ser o direito renovado ou revogado. Outra

regulamentação concernente à herança da propriedade é que esta somente se daria em

linhagem feminina, fato bastante curioso já que a legislação portuguesa não permitia heranças

e ou bens outorgados a mulheres, além de outra imposição que era a de que a mulher se

casasse com um indivíduo oriundo do reino.57 Se torna óbvia a intenção da Coroa com tais

regulamentações sobre o regime dos prazos, manter laços fortes com o reino. Alencastro nos

adverte que o sistema não funcionou direito e supervalorizava as mulheres no mercado

matrimonial, conforme as palavras do mesmo:

Sem funcionar direito, o sistema acabou dando lugar a casamentos insólitos nos quais a mão das prazeiras era tão cobiçada quanto a de princesas. Muitas dessas damas enviuvaram e logo tornaram a casar com pretendentes desejosos de se tornar proprietários. 58

O autor cita ainda o curioso caso de Dona Catarina de Leitão, proprietária de um

grande prazo em Quelimane e que acabou casando em 1770 pela quarta vez, quando se

encontrava por volta dos oitenta anos de idade. 59

A obstinação da Coroa em reforçar os laços, fez com que esta não observasse a própria

legislação, chamamos para este ponto a atenção porque acreditamos que seja uma situação

56 ALENCASTRO, 2000, p. 16 et. Seq.57 Ibidem, p. 18.58 ALENCASTRO, 2000, p. 18.59 NEWITT, M. Portuguese settlement on the Zambezi, pp.87-8 e 145 apud ALENCASTRO, 2000, p. 18.

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emblemática de como a heterogeneidade do ultramar forçava Portugal a possuir

comportamentos variáveis e adaptáveis a seu meio, não possuindo uma estrutura engessada.

Em contrapartida mesmo com as medidas adotadas pelo rei parece que estas não

surtiram efeito, pois os colonos estavam mais sujeitos a prestar contas com as autoridades

nativas do que com a Coroa portuguesa os:

[...] prazeiros continuaram dependendo mais dos arreglos pactuados com os nativos que do reconhecimento legal da metrópole. Dos 55 prazos existentes em 1750 na Capitania de Tete, apenas cinco possuíam um título real de concessão em boa e devida forma [...] Dividindo o poder com os prazeiros, os quais dependiam eles próprios de pactos contraídos com súditos e autoridades nativas, Lisboa tarda a assentar sua soberania na região.60

No caso acima podemos perceber um paradoxo em que o poder parecia ser repartido

entre três facções diferentes à Coroa portuguesa, os prazeiros e as autoridades nativas. Apesar

de que possamos afirmar que a maior presença com certeza era dos prazeiros e das

autoridades nativas que faziam valer sua supremacia pela singela presença física, longe dos

braços do monarca.

Ainda acerca dos prazeiros Bicalho tece o seguinte comentário:

Detentores de grandes propriedades e de verdadeiros exércitos escravos – que em meados do século XVII podiam totalizar 5.000 homens -, os prazeiros assemelhavam-se mais a chefe guerreiros do que a colonos, pois sua função principal era a cobrança de tributos vários sobre um extenso e mal definido território. 61

Com dimensões de terras tão grandes e com recurso a tantos escravos podemos

realmente concluir que se tratava de verdadeiros “régulos”. Não obstante a Coroa parece ter

notado o potencial mercantil da região, mesmo que tardiamente, pois somente em 1756 é que

o porto daquela região conheceria a primeira tabela aduaneira portuguesa de cobrança de

direitos de exportação sobre escravos. 62 Em 1761 Moçambique é elevado à vila e recebendo

também uma câmara municipal, por ordem de D. José I. Este último fato desencadeou na

elevação de outras povoações a vilas. O que se infere destas medidas e que a Coroa desejava

60 ALENCASTRO, 2000, p.18.61 BICALHO in: As câmaras ultramarinas e o governo do império. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.), O Antigo Regime nos trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII), 2001, p. 201.62 ALENCASTRO, 2000, p.17.

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submeter seus colonos a preceitos da ordem legal e régia 63 o que parece não ter surtido muito

efeito posto que:

[...] numa sociedade onde imperavam os senhores de prazos apoiados em exércitos particulares, os senados das câmaras tornavam-se instrumentos de alguns senhores ou revelavam-se impotentes para fazer executar as decisões municipais. 64

Aqui nos deparamos novamente com as limitações do estado português e percebemos

cada vez mais que os braços régios possuíam alcance limitado que variava conforme alguns

indicadores como distância, disponibilidade de recurso militar, se o domínio territorial era

completo, se havia acordos com autoridades nativas ou se a colônia era independente e etc.

Pudemos notar que a câmara municipal retornou pela segunda vez no presente texto,

isto não ocorre por acaso, as câmaras ultramarinas tiveram um papel especial no mundo

colonial e por isso merece novo destaque.

2.3 Que se ouça a voz da nobreza da terra: as câmaras ultramarinas como interlúdio da

comunicação com a Coroa

Dada a sua relevância como lugar comum de negociação entre poderes periféricos e

centrais, redirecionaremos nosso estudo novamente para as câmaras ultramarinas, dessa vez

com uma abordagem mais densa e descritiva. Boxer as descreve como um dos pilares da

sociedade portuguesa colonial do Maranhão até Macau. 65

Era composta por um juiz presidente que podia ser juiz ordinário, quando indicado

localmente, ou juiz de fora se fosse nomeado pelo rei. Contava ainda com dois vereadores e

um procurador, a vereação podia indicar alguns oficiais como almotacés e escrivães judiciais,

podendo variar a denominação para escrivão da câmara.66 Ao que parece a sua composição

também não era engessada podendo variar os números de componentes conforme a

necessidade da vila.

Para ser um membro o indivíduo deveria possuir características específicas que o

classificassem como “homem bom”. O “homem bom” podia ser caracterizado da seguinte

forma: 63 RODRIGUES, Eugénia. “Municípios e poder senhorial nos rios de Sena na segunda metade do século XIII”, in: VIEIRA, Alberto (coord.). O município no mundo português. Funchal: CEHA/ Secretária Regional de Turismo e Cultura, p. 587 apud BICALHO, In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. 2001, p. 202.64 Idem.65 BOXER, 2002, p. 286.66 BICALHO In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.), 2001, p. 192.

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[...] era aquele que reunia as condições para pertencer a um certo estrato social, distinto o bastante para autorizá-lo a manifestar sua opinião e a exercer determinados cargos. Na América Portuguesa, associava-se em particular àqueles que podiam participar da governança municipal, elegendo e sendo eleitos para os cargos públicos que estavam reunidos nas câmaras, principal instância de representação local da monarquia.67

A participação nesta, além de aumentar o status, condição importante para a sociedade

do Antigo Regime, garantia aos seus membros privilégios:

Os oficiais da câmara [...] não podiam ser presos arbitrariamente, nem sujeitos à tortura judicial, nem acorrentados, a não ser em casos (como os de alta traição) que envolvessem pena de morte e em relação aos quais nem fidalgos eram isentos. Estavam também dispensados do serviço militar, salvo se a sua cidade fosse diretamente atacada. Além disso, seus cavalos, carroças e etc. não podiam ser requisitados para utilização a serviços da Coroa. 68

Os privilégios não paravam por aí ainda havia outras imunidades judiciais além da

possibilidade do Senado da Câmara poder se corresponder diretamente com o monarca

reinante.69 Era através desta conexão direta que as elites locais reivindicavam privilégios e

liberdades que poderiam determinar maior autonomia. A outorga destes privilégios era

condicionada aos serviços prestados pela aquela cidade ao império, perpassava então pelo

condicionamento de um pacto entre súditos e o rei que reforçava a sua relação, na

historiografia este fato é conhecido como “economia moral do dom” ou “economia política de

privilégios”. Sumariamente era uma troca em que:

[...] o indivíduo ou o grupo que, em troca de serviços prestados (mormente na conquista e colonização do ultramar), requeria uma mercê, um privilégio ou um cargo ao rei, reafirmava a obediência devida, alertando para a legitimidade da troca de favores e, portanto, para a obrigatoriedade de sua retribuição. 70

O envolvimento de Portugal tanto no processo de Restauração quanto da guerra luso-

holandesa representou um período de certa autonomia para as câmaras, já que a metrópole

concentrava seus esforços em outra direção sem ser a governança do ultramar. Não era

incomum a Coroa deixar a despesa militar por conta da própria colônia, como foi no caso do

Brasil, tendo que se defender sozinha.71 Dívidas que seriam posteriormente cobradas, após o

término dos conflitos, por todas as partes do mar lusitano:

67 NEVES, Guilherme Pereira das. Homens Bons. In: VAINFAS, Ronaldo (direção), 2001, pp.284-286.68 BOXER, 2002, 289.69 Idem.70 BICALHO In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.), 2001, p.219.71 BICALHO In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.), 2001, p. 199.

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Em 1642, dois anos após a restauração e a aclamação de D. João IV, os cidadãos da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro recebiam os mesmo privilégios, honras e liberdade conferidos por D. João II à cidade do Porto. Em 1646 seria a vez da dos cidadãos de São Salvador da Bahia de Todos os Santos serem agraciados com os mesmo privilégios. Os vereadores de são Paulo de Luanda receberam-nos em 1662, em reconhecimento aos sofrimentos passados durante a ocupação holandesa de Angola (1641-1648). 72

Em diversos momentos no ultramar encontramos casos de câmaras se autogovernando

como o caso da São Paulo de Luanda que foi governada pela municipalidade entre os anos de

1667 e 1669, isto porque seu governador, Tristão da Cunha, havia fugido de Angola devido a

rebelião de uma guarnição. A câmara se veria novamente no poder quando o governador

Bernardo da Távora veio a falecer em 1702, em decorrência da demora de Lisboa nomear um

sucessor, o autogoverno durou três anos desta vez. Mas o episódio mais marcante havia

ocorrido em 1593 quando os “camareiros” participaram diretamente da deposição do

governador Francisco de Almeida.73 Em alguns casos as câmaras possuíam autonomia de

eleger o sucessor do governador em casos de óbito deste último. Como aconteceu com a

câmara da cidade de São Sebastião do Rio de janeiro que através de uma provisão régia de 26

de setembro de 1644 obtinha a referida mercê, com a única condição de passar pelo crivo do

governador-geral que ficava alocado na Bahia.74 A câmara da cidade não tardaria a utilizar seu

privilégio e em 1645 quando da morte do governador Luís Barbalho Bezerra a vereança

escolheria Duarte Correa Vasqueanes como seu substituto.75

Não é a toa que ulteriormente as guerras da Restauração (1640-1668), é dado início a

um processo de fortalecimento do poder central nas municipalidades76, representação máxima

do cerceamento dos poderes locais é a constatação da maior presença do cargo de juiz de fora,

que prativamente desconhecido durante a idade média possui seu crescimento a partir da

segunda metade do século XVII. Na América-portuguesa mais precisamente a partir de 1696

é que o juiz de fora iria figurar nas grandes cidades Bahia 1696, Pernambuco 1700 e Rio de

Janeiro 1701.

Entretanto muito tem se discutido academicamente quanto ao verdadeiro papel

desempenhado por estes oficiais letrados. Assim teríamos duas interpretações como bem

assinalou Bicalho:72 Ibidem, pp. 205-206. 73 Ibidem, p. 197.74 Ibidem, p. 198.75 Idem.76 Entretanto é digno de nota o fato do Leal Senado de Macau manter trato com a Manila espanhola durante as guerras de Restauração.

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O fato de este oficial ser nomeado pela Coroa e a ele caber à presidência da câmara – substituindo o antigo juiz ordinário eleito pela comunidade – obscureceu o papel que desempenhou. Sendo um oficial letrado, fomentaria a aplicação do direito oficial, e com isso não deixaria de ser um elemento de desagregação da autonomia jurídico-político local – fundado em práticas consuetudinárias, marcado pelas disputas entre grupos, baseado nos usos e costumes da terra -, promovendo sua desqualificação por meio da argumentação técnica e letrada. 77

Ou seja, o simples fato de ser um oficial preparado para aplicação do direito “oficial”

não garantia que os juízes de fora desempenhassem seu papel conforme o script e por mais

que a Coroa o blindasse com certas medidas, como a proibição de casar nas terras de

conquista sem uma prévia autorização78, não parece ter resultados efetivos, pois estes

continuavam a se envolver com a nobreza local. 79 O seu papel poderia ser ainda mais

subestimado uma vez diante do dado de que no século XVI menos de 10% dos concelhios

eram presididos por juízes de fora. 80

As câmaras ultramarinas conferem assim um capítulo especial a história do império

marítimo português, cada uma portando uma dinâmica diferente de interação entre os poderes

central e local. Não sendo somente um dos pilares mais importantes da administração régia,

mas também melhor representante da multiplicidade sociocultural encontrada nos mares

lusitanos. Serve-nos também de balizadora das variadas políticas implementadas pela Coroa

no seu vasto império, uma vez que seus atos representam pensamentos e ou mentalidades

quanto à imagem de um estado monárquico moderno.

2.4 A serviço da Coroa: Breve reflexão sobre o oficialato régio

Na procura pela centralização o Estado moderno português via nos seus funcionários

régios a principal arma para fortalecer o poder central e consequentemente anular os poderes

tidos como periféricos. Destarte não é estranho que sempre que a Coroa procurava centralizar

mais a administração novos cargos eram criados, ou preenchidos nos casos em que a região

visada não possuísse determinado funcionário. Outra opção era a ampliação de poderes de um

ofício já existente e ocupado, exemplo clássico e amalgama das opções anteriores foi a

criação dos cargos de governador-geral e ouvidor-geral em 1548, e que progressivamente

77 BICALHO, In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.), 2001, p. 200.78 WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Direito e justiça no Brasil colonial: O tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808), Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p.75.79 Vide página 17.80 HESPANHA, As vésperas do Leviathan: Instituições e Poder Político Portugal – séc. XVII. Coimbra. Livraria Almedina, 1994, p. 35.

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tiveram seus poderes ampliados. O que podia acontecer, e acontecia, era que ao designar

amplos poderes a estes funcionários, eles podiam se configurar como enfraquecimento da

autoridade régia se tornando assim mais um elemento com o qual Coroa deveria dividir seus

poderes. Um mal necessário posto que preferível um frágil domínio a nenhum. Estaríamos

diante então de uma estrutura administrativa em grande parte centrífuga e que por incrível que

pareça legitimada pela própria coroa.

Esse era o caso dos mais altos representantes do monarca no ultramar os vice-reis e

governadores e que gozavam de extrema autonomia para melhor governar. A começar pelo

vice-rei que detinha poderes extraordinários – extraordinária potestas – e que podiam a

exemplo dos reis derrogar leis. 81 Não parava por aí nos “regimentos” dos vice-reis era comum

encontrar uma clausula que permitia a desobediência das instruções caso esta fosse a nome do

“real serviço”. Contudo estas instruções eram respaldadas pelos adventos das situações mais

variadas e incertas, normal se tratando de regiões tão heterogêneas e que poderiam gerar as

situações mais diversas, e que não eram previstas nem em regimentos muito menos nas

“Ordenações”. No que tange a América portuguesa seus governadores-gerais poderiam tomar

decisões por conta própria desde que consultassem o bispo, o chanceler da Relação da Bahia e

o provedor da fazenda real.82 Como representantes diretos do rei a responsabilidade era

enorme e quanto maior fosse a distância mais esta aumentava. Em consequência a autonomia

também. Outra atribuição do rei e que irradiava para estes cargos o direito de conceder

“graça”. Quando verificamos que a concessão de privilégios como mercês, ofícios e tenças

ajudavam o rei a reforças vínculos com os seus vassalos, em hipótese é possível que

semelhante situação ocorresse com os governadores, claro que em outra escala, mas que

permitiria, todavia o manuseio desta concessão, para além do “real serviço”, em benefício

próprio. Outra função que merece menção atributo do governador-geral e dos governadores de

capitanias era a distribuição de sesmarias, e que diante de uma economia de plantation ganha

certa notoriedade. 83 Em um criterioso estudo sobre o papel dos governadores Francisco

Carlos Consentino conclui que ao delegar determinadas funções e responsabilidades a aqueles

o rei transferia a regalia – “hum sinal exterior, demonstrativo da autoridade & Magestade

Real” 84 - aos privilegiados oficiais encarregados pela governança.

81 HESPANHA, António M. Antigo Regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo político do império colonial português In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de F. Na trama das redes: Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro. Civilização brasileira. 2010, pp. 60-62.82 Idem.83 HESPANHA In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima, 2010, pp. 62-63.84 CONSENTINO, Francisco C. Governo-Geral do Estado do Brasil: Governação, jurisdições e conflitos (séculos XVI e XVII) in: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de F. 2010, p. 403 et. Seq.

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Uma prática comum da Coroa portuguesa, a venalidade de ofícios, muita das vezes

acabava sendo um fator desagregador dos objetivos “reais” de centralização, isto porque a

nobreza da terra se aproveitava desta prática para atingir seus objetivos, ou seja, ofícios régios

sendo utilizados como mecanismos de atuação das elites coloniais. Hespanha nos lembra de

que não devemos subestimar este fato:

Não apenas devido a importância dos impostos arrecadados pelos ofícios, mas principalmente por causa da centralidade desses cargos na assim chamada civilitá della carta bollata (civilização do “papel selado”). Esse era um mundo no qual documentos escritos eram centrais para certificar matérias decisivas, desde status pessoal até direitos e obrigações patrimoniais. Regimentos régios de doação [...] ou de foral, concessão de sesmarias [...] são exemplos de documentos escritos por um notário, e mantidos sob seu cuidado. 85

Diante da importância destes documentos infere-se que a “preservação, ocultação ou

manipulação de documentos era algo politicamente decisivo” 86 e que neste quadro “pode-se

facilmente imaginar as disputas sociais travadas pelo controle dos arquivos notariais ou

judiciais”. 87

Devido à natureza deste tópico nos deparamos diante da obrigação de citar

antecipadamente um ofício que abordaremos de maneira mais minuciosa no próximo capítulo

e, portanto nos é uma questão muita cara. Trata-se dos magistrados, e principalmente dos

desembargadores principais responsáveis pela aplicação da justiça tanto no reino quanto no

ultramar. Estes eram revestidos de ampla autonomia e representavam o mais alto posto

“letrado” no aparelho burocrático moderno português. Consideramos assim porque apesar de

encontrarmos em outros ofícios oficiais “letrados” esta condição não era obrigação, ao

contrário dos desembargadores. Para não nos alongarmos demais na questão, cabe somente

ressaltar que as decisões tomadas nos tribunais superiores não poderiam ser revogadas nem

por um diploma régio. 88

O fato de alguns funcionários régios gozarem de elevada autonomia não significa que

necessariamente representavam um poder concorrente ao do rei, à tendência era que fossem

paralelos. A representação do poder real nas regiões sobre o domínio de Portugal dependiam

diretamente destes funcionários e, portanto de reinóis e colonos, ao mesmo tempo em que

ambos dependiam da legitimação do rei enquanto membros de elevado status quo. É inserido

neste contexto que o poder de “constranger” do monarca adquire relevância. Mesclavam-se

85 HESPANHA, op. cit., p. 69.86 Idem.87 Idem.88 HESPANHA In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima, 2010, p. 64.

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assim os objetivos régios com os interesses particulares dos diversos agentes espalhados pelo

ultramar português e que eram responsáveis pela administração. 89

2.5 Cai por terra o “monstro” do absolutismo

O nosso intento ao aprofundarmo-nos na administração da Coroa portuguesa, e mais

exaustivamente no âmbito colonial, foi procuramos identificar elementos que se

configurassem de natureza periférica ou metropolitana, após o reconhecimento destes

procuramos dinamizá-los, ou seja, literalmente entender o movimento de seus corpos. Assim

pudemos perceber que o poder do monarca era seccionado e compartilhado entre os diferentes

corpos sociais existentes no império marítimo português e que de certa forma estes poderes

eram dependentes no que diz respeito a sua legitimação e integridade jurisdicional. Ao mesmo

tempo inferimos que apesar de uma miríade de ações da Coroa visando à centralização havia

regras que não poderiam ser desrespeitadas para que a governança fosse considerada boa, em

outras palavras:

O poder não só deveria ser repartido para o bom funcionamento do corpo político, mas também a sua distribuição adequada na república era sinal de bom governo: a cada uma das partes constituintes dos corpos sociais deveria ser conferida a autonomia necessária, para que pudesse desempenhar o seu papel sem comprometimento da articulação natural dos corpos [...]. 90

Esta tradição de “governança consensual” iria permanecer por um bom tempo, sendo

possível visualizar algumas mudanças somente na passagem do século XVIII para o XIX.

No âmbito colonial devemos destacar no que diz respeito ao estatuto colonial que era

em essência multifacetado. Não havia uniformidade no tratamento dispensado ao diferentes

colonos ou vassalos do rei e cada região continha características próprias. Por exemplo, o caso

de Macau aonde os portugueses se dirigiam a autoridades chinesas como verdadeiros

funcionários imperiais 91 e a própria situação dos “prazos” de Moçambique corroboram este

fato. A resposta a esta heterogeneidade do estatuto político contribuía para a formação de uma

pluralidade de laços políticos92 que por sua vez “impedia o estabelecimento de uma regra

89 GOUVÊA, Maria de Fátima. Redes governativas portuguesas e centralidades régias no mundo português c. 1680-1730 In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de F., 2010, pp. 169 et. Seq.90 CONSENTINO, Francisco C. in: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de F. 2010, p. 423.91 HESPANHA In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.). 2001, pp. 171-172.92 Idem.

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uniforme de governo, ao mesmo que criava limites ao poder da Coroa ou dos seus delegados.” 93

O pluralismo também servia para caracterizar o direito existente nas colônias que

fundamentado na doutrina jurídica do direito comum não favorecia muito a homogeneidade, a

partir do momento que este possuía claras preferências pelos costumes locais, à jurisprudência

dos tribunais e até pelos privilégios.94 As nações subjugadas podiam ainda, através de tratados

ou até mesma pela própria doutrina de direito comum, gozar do privilégio de manter o seu

direito. Fato que obrigava os juízes portugueses julgarem os nativos conforme a sua

legislação, quando a causa em questão não entrasse em conflitos com preceitos de ordem

jurídica ou ética europeia, marcadamente do foro religioso. O quadro se agravava quando se

permitia a população autóctone quando desejasse recorrer ao direito português em detrimento

do próprio. E sendo mais “do que uma versão estrita do direito nativo, o que tendia então a

vigorar na prática era uma espécie de justiça “crioula”. De qualquer jeito, criava-se uma ilha

de direito autônomo e não oficia.” 95

3. A administração da Justiça Real.

3.1 A proeminência da justiça na governança da Coroa portuguesaDentro do conceito de monarquia corporativa também é possível à observação de um

estado organicista em que cada elemento que compunha a administração executava

determinado papel no sistema e mediante a esta análise reforçamos novamente à ideia de que

o papel do rei neste caso era o de fornecer equilíbrio para as demais esferas de poder. Outra

função do rei era a defesa, mas esta não é a questão em voga para nós e sim a de mediador

perante seus súditos. Entretanto nos vemos obrigados a ressaltar que no período estudado não

93 Idem.94 Idem.95 Ibidem, p. 173.

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estava bem delineado o processo de divisões de tarefas entre o legislativo, judiciário e

executivo. Na América-lusa o principal exemplo desta indiferenciação talvez fosse

incorporado no Tribunal da Relação que se encarregava de medidas legislativas e executivas,

ao mesmo tempo, que das judiciárias. 96

Inclusive era principalmente através da justiça que o rei procurava realizar a sua

função de “juiz arbitrário”, havendo um consenso entre os historiadores de que a principal

ferramenta do rei fosse à justiça. Gouvêa resume nas seguintes palavras:

Essa definição tomava como ponto de partida a noção ampla de que a monarquia portuguesa se constituía como um “corpo social”, do qual o rei era a cabeça que harmonizava as diversas partes desse imenso organismo por ser ele uma espécie de “pai”, “chefe-supremo”, “representante de Deus na terra”, regulador nato de seus súditos e vassalos. Era a justiça, portanto, a primeira e mais importante atribuição do rei, constituindo-se no mecanismo fundamental da relação entre súditos e soberano. 97

A justiça ganha um papel proeminente entre os estudos de administração régia, se

configurando como um dos mecanismos pelo qual a Coroa portuguesa intervinha nas

municipalidades, juntamente com a fazenda e milícia.98 Em outro modelo de gestão colonial

desta vez mais amplo e seccionado encontramos novamente a justiça além de encontrar as

seguintes esferas “civil, militar, judiciária, fazendária e eclesiástica” 99 sendo inclusive o de

nossa preferência por sua abrangência. Há ainda uma posição mais radical a respeito da

justiça, Arno Wehling acredita que as atribuições legislativas em comunhão com a aplicação

do direito nos tribunais, por oficiais letrados, concediam ao “monarca os meios efetivos de

consolidar a centralização e o ‘absolutismo’, tanto ou mais do que as demais agências deste

poder, como a administração fazendária, a militar e a eclesiástica.” 100 Stuart Schwartz

analisou de forma semelhante o papel dos magistrados responsáveis pela justiça, segundo este

quem melhor para executar a tarefa de fortalecimento do poder central que os juízes da Coroa

ávidos por uma promoção na hierarquia judicial e até social assim:

Quem haveria de melhor que os sóbrios magistrados reais para controlar as forças centrífugas do Império geradas pelos senhores de engenho brasileiros e pelos mercenários em Goa? E quem teria mais a ganhar do que eles obedecendo à vontade e protegendo os interesses do rei? Em tese, os magistrados representavam a Coroa e

96 GOUVÊA, Maria de Fátima S. Verbete Administração In: VAINFAS, Ronaldo (direção). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro. Objetiva. 2001, p. 1797 Ibidem, verbete Justiça, p.337.98 BICALHO, Maria Fernanda. A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro no Século XVIII. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.346.99 GOUVÊA, Op. cit., loc. cit. (Grifo nosso).100 WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial - O tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). – Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 30. (grifo nosso).

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mereciam confiança devido aos controles burocráticos e ao desejo profissional de atingir objetivos carreiristas. 101

Outra maneira de interpretar a centralidade da justiça é a própria organização do

Estado português, recheado de órgãos, conselhos, juntas com jurisdições confusas e profusas,

para complicar este quadro não era incomum a criação de novas instituições em que a Coroa

esquecia-se de checar se os princípios destas não feriam os de alguma já existente. Este parece

ter sido a o caso de querelas envolvendo o Desembargo do Paço e o recém-criado Conselho

Ultramarino (1642). 102 Mais do que um órgão necessitando se afirmar era a jurisdição que

estava em voga nestes imbróglios e é justamente na existência destes conflitos que cabia a

aplicação da justiça na tentativa de reequilibrar às jurisdições das diferentes instituições. 103

Assim era a aplicação correta da justiça que levava a um “bom governo”.

Para nota devemos lembras que o rei realizava o exercício da justiça delegando esta a

seus funcionários régios. No caso da administração judiciária colonial brasileira não foi

diferente:

A esfera judiciária estava definida a partir da figura do rei como fonte de justiça. E a justiça apresentava-se como delegação administrativa cedida pelo rei, primeiro pelas cartas de doação aos capitães-donatários [..]. 104

O que estamos propondo neste primeiro momento é a identificação da justiça como

principal responsabilidade e esfera de atuação do rei, até o ato de conceder mercês pode ser

encarado como justiça a alguma injustiça ou reconhecimento por prestação de serviço.

Conectando este fato com a indistinção dos poderes, o que fazia com que juízes

transcendessem suas obrigações adquirindo responsabilidades fiscais e executivas, -

atribuições embasadas na confiança do monarca para com os seus oficiais da lei mais do que

em outros funcionários régios - podemos concluir que não há em todo o sistema

administrativo português esfera melhor para entender a dinâmica e natureza governativa do

Império marítimo português. Tal noção é encontrada no próprio discurso “real” e fica bem

transparente no regimento da Relação do Brasil:

101 SCHWARTZ, S. B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial, 1609-1751. São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 35.102 CARDIM, Pedro. “Administração” e “governo”: Uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime In: BICALHO, M. F. e FERLINI, Vera L. A. (organizadoras). Modos de governar: Ideias e Práticas Políticas no Império Português (Séculos XVI a XIX). São Paulo, Alameda, 2005, pp. 45 et seq.103 Ibidem, pp. 55-56. 104 GOUVÊA, Maria de Fátima S. Verbete Administração In: VAINFAS, Ronaldo (direção), 2001, pp. 17-18.

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Dom João, por Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d’aquem d’alem mar, em Africa. Senhór de Guiné e da Conquista, Navegação, Commercio da Ethiopia, Arabia, Persia, e da India, etc. Faço saber que, considerando que a principal obrigação minha, é que a meus Povos e Vassallos do Brazil se administre e faça justiça com igualdade. [...] restituir-lhe a Casa da Relação de Desembargadores, que nelle houve em tempos passados, no número, e com os officios, officiaes e jurisdicção, que se contém no Regimento seguinte, que lhe mando dar para seu melhor governo. 105

Assim em um mundo, Antigo Regime, cujos ritos, imagens e símbolos são claros

sinais de demonstração de poder, de posição social e de hierarquização é bastante sugestivo

que o pelourinho símbolo da justiça e autoridade real ficasse nos corações das cidades

portuguesas. 106

3.2 Trajetória do aparelho judicial no Brasil colonial: de ouvidores de capitania a

instalação do tribunal superior

Ao observarmos a trajetória da história jurídica na colônia luso-brasileira

encontraremos um interessante padrão no seu crescimento em que no início da colonização

portuguesa, e quando o Brasil ainda não “tinha nada a oferecer além de pau-brasil”, o sistema

jurídico era um caos, com sobrecarga de serviço e poucos funcionários. Em um segundo

momento com o “advento” da cana de açúcar e do lucrativo tráfico negreiro já podemos

observar significativas mudanças estruturais de modo a efetivar a lei “real” na colônia – este

parece ter sido o caso da criação do cargo de ouvidor-geral e da instalação do primeiro

tribunal superior no Brasil, conforme veremos a frente. Dentro desta lógica podemos

definir ,então, que o ápice desse crescimento é o surgimento da Relação do Rio de Janeiro em

1751.

No Brasil os capitães-donatários recebiam, através de cartas de doações ou forais, o

privilégio de representar o rei e como tal possuíam a autonomia de executar a justiça em seu

nome. Realizavam tal tarefa nomeando um ouvidor-mor que se incumbia de aplicar a lei na

capitania, mas não parava por ai. A já citada indissociação de tarefas do legislativo, executivo

e judiciário aparece aqui, pois, ainda fazia parte da sua rotina à fiscalização do senado da

câmara e a possibilidade de legislar visando medidas sobre o cotidiano da população. 107 O

105 Como veremos mais detalhadamente a Relação do Brazil, ou da Bahia, foi criada em 1609 tendo esta durado até 1626, este regimento se refere à segunda Relação do Brazil restituída em 12-09-1652. Cf. Collecção Chronologica da Legislação Portugueza 1854 (doravante será denominado como Collec. Chron. 1854) Regimento da Relação do Brazil 1652. Disponível em <http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/~ius/verlivro.php?id_parte=100&id_obra=63&pagina=352 > acesso em 24/11/2011.106 SCHWARTZ, 2011, p. 27.107 GOUVÊA, Verbete Justiça In: VAINFAS, Ronaldo (direção), 2001, p. 338.

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que acontece e que com a implementação do governo geral em 1548 e consequentemente a

criação do cargo de ouvidor-geral, a jurisdição local se vê cerceada. 108

Não obstante, na passagem dos séculos XVII para o XVIII há uma mudança no

cenário internacional do império marítimo português. Com o arrefecimento econômico do

estado da Índia no século XVII, que ocorre em parte devido ao conflito luso-holandês 1568-

1669 quando Portugal perde algumas de suas possessões no Oriente e também por ser muito

oneroso manter este estado109. Enquanto isto na América-portuguesa nos deparamos não só

com a descoberta de ouro no final do XVIII, mas mais do que isso a percepção da Coroa para

com o potencial agrário. Mediante esta conjuntura a Coroa portuguesa inicia um processo de

maior “valorização” da colônia luso-brasileira no cenário imperial. Como comprovação deste

fato os estudiosos recorrentemente apontam para a elevação da colônia brasileira a vice-

reinado em 1720, conhecendo desta forma uma estrutura mais pesada da administração régia e

consequentemente a “expansão da malha jurídica”. 110 O desenvolvimento do aparato judicial,

entendendo este como substituição de um direito não letrado pelo letrado, não oficial pelo

oficial, justifica-se assim a uma gama de interesses que pode ser amplificada pelo franco

desenvolvimento de uma determinada sociedade colonial:

À medida que estas populações se desenvolvem economicamente e que os interesses da Coroa, do ponto de vista político, comercial e fiscal, se tornam capitais, várias destas magistraturas não letradas serão substituídas por juízes da Coroa, num movimento de retirada progressiva dos poderes judiciais dos donatários coloniais a favor da justiça letrada. 111

Com base nestas afirmações Nuno Camarinhas divide o aparelho judicial em dois

momentos:

[...] num primeiro momento, o controlo das regiões-chaves através da criação de ouvidorias de carácter territorial mais vasto; depois da descoberta do ouro (segundo momento), observamos a profusão de novas ouvidorias que, nas regiões auríferas, tem um âmbito extremamente localizado e, ao mesmo tempo, uma missão bastante específica de manutenção da ordem e do funcionamento da extracção e do envio da produção para a metrópole. 112

108 Idem.109 BOXER, 2002, pp. 141 et. Seq.110 CAMARINHAS, Nuno. O aparelho judicial ultramarino português. O caso do Brasil (1620-1800) In: Almanack Braziliense nº 9, 2009, p. 85. Disponível em <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S1808-81392009000900006&script=sci_arttext > Acesso em 30/09/11.111 CAMARINHAS, 2009, p. 87.112 Idem.

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A trajetória de ampliação da malha judicial brasileira no período em questão nos

esclarece bastante a despeito dos diferentes posicionamentos que a Coroa grassava nas suas

colônias, na verdade se trata de um único sistema, mas com adaptações locais. Sistema que

adquiria respaldo mediante a lógica mercantilista. Em contrapartida, ainda segundo Nuno

Camarinhas, o caso do aparelho jurídico brasileiro realmente foi atípico se comparado ao

restante do império colonial português, sendo este o que mais se assemelhou ao aparato

metropolitano mesmo em períodos de distanciamento com a Coroa portuguesa.113 E quando

nos voltamos para outros domínios portugueses no ultramar como “Extremo Oriente ou em

determinados pontos costeiros do Oceano Índico, onde a presença de oficiais de justiça

enviados pela Coroa é praticamente nula.” 114

3.3 Da metodologia vêm à escolha

Precisamos antes de explorarmos afinco a Relação da Bahia, compreender o fundo

teórico e metodológico que nos levou a escolher este tribunal superior. A obra escolhida para

esta abordagem foi o clássico trabalho de Stuart Schwartz, Burocracia e sociedade no Brasil

colonial que detêm características que de certa forma convergem para a natureza deste

trabalho. Apesar de muitas colocações e noções trabalhadas por Schwartz já se encontrarem

defasadas, a essência de seu trabalho no que condiz com a estrutura do tribunal baiano e a

predominância na sua análise da “classe” burocrática dos magistrados de muito nos serve,

desde que trabalhada sobre uma nova perspectiva. Mais precisamente é a sua análise da

relação estabelecida entre os desembargadores e a sociedade colonial que mais nos interessa,

posto que através dela possamos identificar elementos dos conceitos de monarquia

corporativa e do conceito de redes, ambos citados anteriormente nesta obra.

3.4 Um tribunal superior na colônia brasileira

Apesar da importância atribuída à justiça, não era em todo lugar que presenciávamos

um oficial letrado e, portanto, representante do direito “oficial”, quando elevamos esta visão a

instituições superiores, que é o que nos interessa, de caráter recursal o quadro se agrava. Os

fatores que levavam a administração da justiça a ser esparsa e incipiente merecem reflexão. O

113 Ibidem, p. 85. 114 Idem.

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primeiro fator é já citado neste trabalho115 está ligado diretamente ao prestígio de determinada

colônia para a Coroa portuguesa, a instalação de um tribunal superior significava elevação do

status daquela sociedade colonial. Assim enquanto a colônia brasileira receberia somente em

1609 o seu primeiro tribunal superior, o Estado da Índia já havia adquirido tal instituição em

1544. Localizado em Goa a Relação da Índia, fazia jus à alcunha de a “Goa Dourada”. O

segundo fator que determinava se aquela colônia estava pronta ou não para receber um

tribunal superior era o seu potencial econômico e comercial116, requisitos que a capital da

colônia brasileira já atendia no início do século XVII. No que toca ao comércio o interesse era

claro, este estava estritamente ligado a um dos principais setores de atuação da administração

reinol que era fazenda, não seria exagero de nossa parte afirmar que o principal sustentáculo

financeiro do império português era a verba oriunda de impostos, ou da venda de contratos

“reais” que monopolizavam o controle sobre os impostos comerciais de determinado produto

para o indivíduo que pagasse mais alto em uma espécie de leilão, prática bastante comum da

Coroa portuguesa.117 Com a presença de um tribunal superior na colônia brasileira, Portugal

possuía expectativas de que haveria um controle maior sobre o comércio em geral mais,

sobretudo no açúcar. Não é de se espantar então que a Relação do Brasil era encarregada de

estipular o preço praticado do açúcar.118 Em um último e lógico fator necessário para a

instalação de um tribunal superior é a existência de uma demanda constante condizente com

um tribunal superior, somente assim seria justificável o pesado fardo de criar e manter este

aparato judiciário. Nos locais aonde havia alguma representação da justiça, delegada aos

capitães donatários, eram constante reclamações quanto à venalidade e abusos por partes dos

funcionários judiciais, aumentando também a pressão por magistrados “leais” a Coroa e

representantes do direito oficial. Apesar dos receios da Coroa em relação a existência de

demanda a verdade é que esta já existia há algum tempo e mesmo com a implementação do

ouvidor-geral no Brasil e desde o seu primeiro ocupante, Pero Borges, já existiam

reclamações quanto a administração da justiça por excesso de trabalho, poucos funcionários,

venalidade de oficiais e injustiças de modo que a criação do ofício de ouvidor geral também

não funcionou pois:

115 Ver página 37 em diante.116 SCHWARTZ, 2011, p. 68.117 Para mais informações a respeito vide OSÓRIO, Helen As elites econômicas e a arrematação dos contratos reais: O exemplo do rio Grande do Sul (século XVIII) In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 107 et. Seq.118 GOUVÊA, Verbete Justiça In: VAINFAS, Ronaldo (direção), 2001, p. 338.

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[...] as condições que predominavam na colônia e a existência de tantos abusos e injustiças representaram para Pero Borges e seus sucessores (ouvidores-gerais) uma tarefa hercúlea. O fracasso desses homens na tarefa de aperfeiçoar a lei e a ordem vinha não apenas das condições de vida na fronteira, mas também do acúmulo de responsabilidades adicionais do cargo de ouvidor-geral. 119 Grifo Nosso

A conjunção de todos estes fatores levaram a criação da Relação do Brasil e em 1609

o mais novo tribunal superior do império marítimo já se encontrava funcionando.

3.5 Estrutura e funcionamento da Relação do Brasil

Conforme o regimento da primeira Relação do Brasil está ficaria subordinada a Casa

da Suplicação em Portugal, seus componentes deveriam ter os mesmos privilégios de

qualquer outro tribunal superior e inclusive os salários deveriam ser equivalentes às

remunerações da Relação do Porto. O governador-geral do Brasil era seu presidente, apesar

das suas severas limitações nesta posição. De fato era o posto de chanceler que realmente

presidia o tribunal, sua importância era checada no seu alto salário e prestígio. Quando da

ausência do governador-geral da Bahia o chanceler ficava encarregado administrativamente

pela capital da colônia, tais fatos nos levam juntamente com Schwartz a afirmar que o posto

de chanceler era o segundo mais alto da estrutura colonial brasileira.120 A estrutura contava

ainda com três desembargadores dos agravos, um ouvidor-geral – herança do sistema antigo -,

um juiz da Coroa, um procurador da Coroa, um provedor dos defuntos e resíduos. Para além

destes membros citados no regimento ainda tínhamos dois desembargadores extravagantes e

uma série de funcionários incumbidos de auxiliar os magistrados e no funcionamento do

tribunal eram seis secretários, um médico, um capelão e por fim um meirinho e um guarda-

mor responsáveis pela coleta de multas aplicadas pelo tribunal. 121

Como já descrito anteriormente havia uma clara indistinção entre os poderes de forma

que tarefas administrativas e judiciárias se mesclavam nas atribuições e rotina da Relação

baiana. A citada tarefa de estipular o preço do açúcar é um claro exemplo desta afirmação,

mas havia outros. Muito corrente era o caráter de conselho atribuído ao tribunal pela própria

Coroa fato que era justificado pela confiança do rei nos seus magistrados que eram:

[...] vistos pela Coroa como funcionários leais e confiáveis, geralmente eram convocados para realizar tarefas não judiciais. No Brasil a Relação funcionou com frequência como conselho consultivo em questões de bem-estar comum. Ao

119 SCHWARTZ, 2011, pp. 48-49.120 Ibidem, p. 71.121 SCHWARTZ, 2011, pp. 70-73.

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voltar para Portugal, tanto os desembargadores como os governadores-gerais eram chamados para aconselhar a Coroa no que dizia respeito a problemas ou nomeações no Brasil. 122

Ao término do mandato dos desembargadores, quando estes voltavam para Portugal,

era comum o rei solicitar conselhos a estes, a exemplo do que ocorria muita das vezes com os

ex-governadores-gerais. Isso dá indícios de que o rei confiava nestes oficiais letrados, de uma

classe nem sempre nobre, mas letrada e experiente, quase que da mesma forma que na velha

aristocracia militar.

Assim, segundo Schwartz, a Relação participava ativamente na administração da

colônia e acumulava uma série de tarefas administrativas e semiadministrativas e de 1604 a

1621 quando era constante a ausência do governador na capital baiana o chanceler ou o

provedor-mor assumia a responsabilidade administrativa pela Capitania, a fé da Coroa se

justificava na confiança da relação acreditando que o tribunal “em questões locais sempre

levavam em conta os interesses reais”. 123

Não obstante a função que mais ocupava o tempo dos desembargadores eram as de

juízes itinerantes e de investigadores especiais. 124 Ao final do mandato de alguns oficiais

portugueses – como o próprio ofício de governador de capitania - era comum se realizar uma

residência que poderia “colocar em xeque” a administração do oficial efetuada durante o

exercício do seu ofício, verdadeiro trabalho de um corregedor, mas que era constantemente

delegada tal tarefa aos desembargadores do tribunal superior na colônia. A viagem poderia se

dar também por querelas específicas que demandavam uma investigação especial por parte

dos magistrados. Estas investigações especiais eram normalmente motivos de inúmeros

conflitos entre os colonos de outras regiões administrativas125 e os funcionários do tribunal.

Esses conflitos se originavam porque os colonos de outras regiões administrativas, distantes

do polo central da Coroa na colônia, estavam acostumados com um “grau maior de

independência” e ao mesmo tempo acostumados a resolver seus problemas com base em

decisões locais. A região meridional era a mais afetada por este tipo de problema e em

“nenhum outro lugar isso era mais evidente que do que nas capitanias meridionais onde o

122 Ibidem, p. 137.123 Idem.124 Ibidem, p. 141.125 Segundo Schwartz o Brasil colonial no período em questão era dividido em quatro regiões administrativas: O Norte distante, representado pelo Maranhão; a costa do nordeste representada por Pernambuco; a costa central representada pela Bahia; e as capitanias meridionais sendo lideradas pelo Rio de Janeiro. Entretanto acreditamos que possamos diminuir para três as regiões administrativas: os Estados do Maranhão e Grão-Pará e uma subdivisão no Estado do Brasil entre Bahia e mais ao sul o Rio de Janeiro, neste último caso consideramos assim em função do poder de influência de uma região para a outra que era muito pouca.

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status judicial semi-independente e o curto histórico de separação administrativa tornavam

seus habitantes muitos sensíveis ao controle ou à interferência centrais.” 126 Um exemplo deste

tipo de conflito é a questão da escravização dos índios por parte dos moradores da capitania

de São Vicente e que gerava conflitos constantes entre os primeiros e os magistrados,

principalmente quando a Coroa adotava posturas mais rígidas no que tange a escravidão

autóctone e exigia conduta igual de seus funcionários para com o tema.

Com base nos dados apresentados acima podemos notar então que as funções dos

oficiais da Relação poderiam ter mais de uma natureza, seja de caráter administrativo, judicial

e até semiadminsitrativo. Com relação a esse hibridismo podemos afirmar que:

Apesar de ser possível descrever as funções da Relação como judiciais e administrativas, às vezes era difícil distinguir os dois domínios. Na verdade nenhum conceito real de divisão de poderes existia, e não era raro que os mesmos homens fossem investidos de poderes próprios a mais de um cargo ou jurisdição. Não há dúvida de que a Relação, como seus modelos europeus, deveria funcionar basicamente como um tribunal de segunda instância, mas as funções tradicionais, somadas à necessidade da Coroa de contar com funcionários leais e experientes nas colônias, ampliaram o âmbito de suas ações. Isso geralmente cumulava os magistrados de responsabilidades pesadas e às vezes conflitantes. 127

Inferimos diante desta análise que os magistrados que serviam no tribunal superior

eram dotados de ampla jurisdição e gozavam de uma confiança considerável da Coroa

portuguesa.

3.6 Desembargadores e sociedade colonial: Constituição de redes no tribunal superior da

Relação do Brasil

Já tivemos a oportunidade de constatar anteriormente a existência de redes no âmbito

administrativo do luso império128, estas redes em alguns casos poderiam criar ramificações até

a metrópole como demonstra o estudo da historiadora Maria de Fátima Gouvêa no artigo

Redes governativas portuguesas e centralidades régias no mundo português, c. 1680-1730129.

É possível identificarmos estas redes também no tribunal superior entre magistrados e a

sociedade colonial. É bastante lógica, além de óbvia, a procura por alianças com magistrados

por parte da sociedade colonial, os magistrados eram os supremos representantes da justiça na

colônia, poderiam agilizar trâmites burocráticos e tinham o poder do julgamento. Ao se

126 SCHWARTZ, 2011, p. 142.127 Ibidem, pp. 136-137.128 Ver página 12 do presente trabalho.129 Artigo encontrado na obra de FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de F. Na trama das redes: Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2010.

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alinhar a um determinado bando poderia prejudicar o rival deste em ordem inversa impedindo

recursos, tornando o processo lento e até indeferindo determinados recursos. Outro motivo

para alianças com magistrados era o alto status social que estes detinham além dos privilégios

que gozavam se tornando uma efetiva nobreza judiciária. 130 Deste modo...

[...] o poder e o prestígio dos magistrados e favoritismo que lhes demonstrava a Coroa tornaram a aliança com a magistratura particularmente atraente para os senhores de engenho coloniais, que buscavam fortalecer sua posição de preponderância econômica com o status social e a legitimidade da magistratura. 131

Entretanto pode se dizer que muita das vezes os magistrados também eram tentados a

uma vida mais “mundana” nos possibilitando encontrar magistrados envolvidos com o

sustentáculo do império marítimo português, o comércio. Afonso Garcia Tinoco foi um destes

que apesar de receber elogios quanto a sua capacidade não hesitou em dedicar se a outras

tarefas como o comércio de escravos. 132 Tal atividade com certeza exigia relacionamentos

sociais para além dos que a Coroa desejava para os seus magistrados.

O fato é que a Coroa procurava isolar os magistrados da sociedade através de

proibições como a já citada negação de se poder casas com mulheres brasileiras, expressa no

alvará de 22 de novembro de 1610133, exceto nos casos em que a Coroa permitisse, e também

uma proibição de estabelecer negócios ou de possuir terras na jurisdição do magistrado. Na

prática os magistrados não só se casavam em sua jurisdição como mantinham negócios e

logicamente terras. No primeiro caso não podemos deixar de notar que quase 20% (32 de 168)

dos magistrados acabaram se casando com brasileiras e “Cada união enredava o noivo numa

extensa rede de ligações de famílias e obrigações sociais.” 134 Logo no grupo inicial de

desembargadores da Relação de 1609 dois se casaram com brasileiras, Antão de Mesquita,

que recebeu permissão para se casar com Antônia Bezerra, filha de senhor de engenho e

vereador da câmara municipal de Olinda, e Manoel Pinto da Rocha que se casou com

Catherina de Friela, igualmente membra da aristocracia de Pernambuco. 135 Perspicazmente

Schwartz percebe que não é somente através do casamento que uma união é sacramentada,

laços de compadrio também significam muito para a sociedade colonial. 136 Havia ainda uma

130 WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José, 2004, pp. 135-136.131 SCHWARTZ, 2011, p. 90.132 Ibidem, p. 85.133 Cf. Collec. Chron. 1854, 295. Disponível em <http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/~ius/verlivro.php?id_parte=94&id_obra=63&pagina=904>. Acesso em 17/12/2011.134 SCHWARTZ, 2011, para a porcentagem aqui apresentada ver p. 273 e com relação à afirmação do autor vide p. 152.135 Ibidem, p. 152.136 Ibidem, p. 153.

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outra forma de relação social entre os magistrados e a sociedade, notadamente teríamos então

dois tipos de laços um ritualizado através do casamento e outro não ritualizado. Exemplo

deste último é a “associação voluntária, de amizade e de parceria”. 137 Manoel Pinto da Rocha

se destaca ao ser, não por acaso, chanceler da Relação do Brasil e ao mesmo tempo ocupar o

posto de provedor da Santa Casa da Misericórdia. 138

Não obstante porque a Coroa aceitava tantas exceções à regra? Adotando uma postura

flexível mediante em relação ao que determinava e ao que era posto em prática, para esta

resposta Schwartz formula o critério de “comportamento aceitável” em que a explicação

advém seguinte ideia:

Para compreender por quê, precisamos inserir uma terceira categoria, a de “comportamento aceitável”, em algum entre a legalidade e a prática efetiva. Embora a lei estipulasse que nenhum juiz podia ter laços de parentesco dentro da área de sua jurisdição, a Coroa podia permitir certo grau de desvio desses princípios legais. Mas quando um magistrado ultrapassava os limites do comportamento aceitável, então a letra da lei podia ser estritamente aplicada e a violação punida. Tal modelo punha a avaliação da conduta e o controle definitivo do desempenho burocrático nas mãos da Coroa apesar de dar margem a considerável flexibilidade. Esta era, talvez, a única maneira de conciliar as demandas do governo real com os desejos dos magistrados e as necessidades dos moradores da colônia. 139

Concordamos em boa parte com o critério de “comportamento aceitável”, entretanto,

acreditamos que somente esteja completo com algumas ressalvas a mais. Em primeiro o autor

não deixa muito claro a sua posição neste trecho a respeito das limitações da Coroa

portuguesa no âmbito burocrático, como já vimos anteriormente às forças centralizadoras do

império podiam ser seriamente enfraquecidas, em alguns casos anuladas, pelos poderes

periféricos, além do mais, existem as próprias limitações do próprio Estado português na sua

integralidade, como restrições financeiras, militares e até jurisdicionais. A segunda

observação tem justamente a interpretação de que a Coroa reconhecia essas limitações,

portanto, aceitando desvios de seus princípios, mas em contrapartida sabia que qualquer ato

ou poder deveria ser legitimado pelo rei, por isso que um dos principais dispositivos do

monarca era o poder de “constranger” seus vassalos. Sobre esta justaposição de interesses,

jurisdições e poderes a tendência, então, eram que os caminhos do monarca, dos agentes reais

e até dos colonos fossem convergentes, mas, é claro que percalços ocorriam.

137 Ibidem, p. 151.138 Para Boxer um dos pilares gêmeos do império marítimo português eram as Santas Casas de Misericórdia. Cf. O Império Marítimo Português 1415-1825. São Paulo. Companhia das Letras, 2002, p. 286. 139 SCHWARTZ, op. cit., p. 154.

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Não obstante a sociedade colonial obteve grandes êxitos em “abrasileirar” os

magistrados140, mas, havia também os casos em que estes nasceram na colônia o que podia

tornar o vínculo com esta sociedade maior ainda, como foram os casos de Cristóvão de

Burgos, João de Góes e Araújo, João da Rocha Pitta, Luís de Sousa Pereira, Antônio

Rodrigues Banha, João Elizeu de Sousa e Cristóvão Álvares de Azevedo Osório todos

nascidos na Bahia, portanto com vínculos coloniais e para, além disso, na região do tribunal.

Havia ainda casos como o de Simão Álvares da Penha que nasceu em Pernambuco e morreu

enquanto exercia seu ofício na Relação e de Francisco da Silveira Sottomayor nascido no Rio

de Janeiro. 141 Além de observar todas as implicações teóricas precisamos ressaltar que seria

ingenuidade de nossa parte calcular que estes magistrados eram imparciais em seus

julgamentos quando os envolvidos em determinada querela fossem membros do seu ciclo

social.

Os magistrados podiam usar de seus poderes e prestígios para atingir determinados

objetivos, inclusive em causas que eles mesmos estivessem envolvidos, chegando a

demonstrar claramente seus interesses. Este foi o caso de José de Freitas Serrão que “recusou-

se a desocupar as casa que alugava, apesar de um mandado de despejo, e impediu que seu

senhorio conseguisse uma audiência nos tribunais.” 142 Recusas a pagar dívidas também

ocorrerão e Caetano Brito de Figueiredo após considerável empréstimo se recusou a pagar

este durante nove anos. 143 É possível perceber que a interferência direta de um magistrado

normalmente ocorria quando se tratava de ganho pessoal. Um caso de natureza distinta e

bastante curioso além de explicativo é o do sobrinho de Balthasar Ferraz, desembargador que

viera para a primeira tentativa de implementação de um tribunal superior na colônia luso-

brasileira em 1588144, o sobrinho do desembargador foi acusado de seduzir a mulher de outro

home e enviá-la para Portugal, este crime era previsto com a pena de morte na legislação

portuguesa. Mesmo com acusação tão grave o jovem rapaz foi inocentado graças a artimanhas

e “influência” do velho desembargador Balthasar Ferraz. 145 A própria igreja se manifestou e

140 SCHWARTZ, 2011, p. 154.141 Ibidem. Para a listagem completa ver as páginas 362-378.142 Ibidem, p. 265.143 Idem.144 É o seguinte a Coroa já havia optado pela instalação de um tribunal superior em 1588, mas o galeão São Lucas que trazia os dez magistrados teve dificuldades com correntes e ventos adversos. Após aportar em Santo Domingo, incapazes de velejar, a maior parte dos magistrados voltaram para Portugal, frustrando a tentativa de implementar um tribunal superior na colônia naquele momento. Dos dez desembargadores quatro conseguiram de alguma forma chegar ao Brasil e um deles é Balthasar Ferraz. 145 SCHWARTZ, 2011, p. 134.

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disse que “Deus faria a sua justiça”. 146 Palavras vingadas, pois pouco tempo depois o

sobrinho de Balthasar Ferraz morreu juntamente com seu único filho em um naufrágio. 147

Tendo em vista os casos relacionados acima acreditamos que as relações sociais

estabelecidas, intervinham diretamente e indiretamente no julgamento e ações conduzidas

pelos magistrados, quer seja com interesses pessoais diretos ou de laços ritualizados e não

ritualizados. Ao aliarmos este fato a observação de que os magistrados eram membros da alta

burocracia real, podemos inferir que o corpo magistrático que se fazia representar na Relação

do Brasil poderia atuar em outra lógica que não fosse a qual a Coroa havia planejado,

podendo em determinados casos representarem mais uma elite local, portanto de caráter

periférico, do que o poder centralizador do monarca. Este fenômeno se explica por causa da

natureza humana dos burocratas que faziam a burocracia. Tal constatação não passou

despercebida por Schwartz que sabiamente diagnosticou que burocratas “são humanos e

ignorar esse truísmo é perder de vista as relações dinâmicas entre burocracia e sociedade.” 148

Conclusão

Procuramos ao longo deste trabalho demonstrar que não houve um Estado Moderno

Português “absolutista”, pelo menos não com aquela persspectiva em que um rei com um

forte poder centralizador dispusesse de “autonomia total” sobre os seus súditos, chegamos a

esta conclusão ao observamos a existência de forças centrífugas que conviviam com o poder

da Coroa portuguesa. É exatamente a isto que se refere o conceito corporativista da sociedade

lusa - divisões de poderes. Pudemos ainda aferir que Portugal possuía limitações no campo

146 Idem.147 Idem.148 Ibidem, p. 147.

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financeiro – talvez com exceção durante o boom do ouro das Minas do Brasil que ocorreu

entre o início e meados do século XVIII – e militar, com estas a única forma viável de manter

um império seria contando com iniciativas particulares de seus súditos que eram acionadas

principalmente por iniciativa própria ou através da economia política de privilégios da Coroa.

No próprio campo jurisdicional e do “direito comum” que imperava na sociedade lusitana

havia impedimentos.

A nossa intenção ao trabalhar com a justiça era de demonstrar como esta enquanto

“principal tarefa do rei” podia ser subvertida a favor das elites locais. Para tanto, o nosso

objeto de estudo principal neste trabalho, a relação do Brasil, um tribunal superior, se torna

óbvia porque é em órgãos desta natureza que se encontram membros da alta burocracia

“letrada”. Podemos assim chegar à conclusão de que a historiografia anterior pecou ao

esquecer o lado humano dos burocratas, que eram responsáveis pela burocracia, e ao

considerarmos este fator foi possível compreender como pressões sociais coloniais interferiam

no julgamento e administração exercida pelos magistrados e como essa dinâmica se ajustava

também aos desejos da Coroa. Eram complementares posto que interdependentes.

Todo trabalho histórico deve responder a questões contemporâneas, ou seja, que

correspondem ao período em que foi formulado e é através deste exercício que ele ganha

legitimidade e se justifica. Posto desta forma acreditamos sinceramente que conseguimos

concluir esta tarefa, em parte pela consonância com a historiografia atual de que instituições

são formuladas por indivíduos humanos e portanto agentes históricos ativos que se

manifestam através de uma miríade de expressões sociais. E foi assim que os magistrados,

apesar do seu “dever real”, agiram como integrantes do meio social em que viviam, mas seus

singelos atos e expressões fizeram muito mais e são bastante esclarecedores sobre o

“absolutismo português da era Moderna”.

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Fontes utilizadas:

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