poder pastoral e estado moderno
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Aula de 15 de fevereiro de 1978 (pp. 181-216)
O modelo político do pastor-rebanho, frequente na literatura egípcia, assíria e
hebraica, não teve a mesma importância para os gregos. (“a relação pastor-rebanho não é um
bom modelo político para os gregos” p. 182).
Objeções: 1) Em Homero encontra-se a denominação “pastor dos povos” para
caracterizar o soberano (denominação de influência indo-europeia, particularmente assíria). 2)
Há referências ao tema do pastor no pitagorismo e neopitagorismo, para quem o termo lei
(nómos) derivaria de pastor (nomeús); em todo caso, trata-se apenas de um “caso limite” entre
os gregos (p. 183). 3) Debate entre Gruppe e Delatte: o primeiro acredita que a metáfora do
pastor entre os gregos é uma influência oriental (sobretudo hebraica) trazida através dos
pitagóricos; o segundo acredita que tal metáfora é um lugar-comum que não traduz influência
oriental nem pitagórica mas que “é um tema relativamente sem importância [...] simplesmente
do vocabulário, da retórica política da época clássica” (p. 184).
Mas tal metáfora não se encontra em quase nenhum texto político grego importante,
nem em Isócrates nem em Demóstenes, à exceção capital de Platão, onde a metáfora aparece
em Crítias, na República, nas Leis e no Político. Destes quatro textos, o último merece exame à
parte: 1) No Crítias (e, após, também no Político), a metáfora do pastor designa o poder dos
deuses sobre a humanidade nos primeiros tempos. 2) No livro X das Leis (e de certa forma
também no Político), há a figura do magistrado-pastor, posterior ao tempo em que os deuses
apascentavam os homens diretamente. 3) Nos textos da República (livro I), Trasímaco diz,
como se se tratasse de uma obviedade, que o bom magistrado é um verdadeiro pastor.
Mas é o Político que tratará de saber se a figura do pastor pode efetivamente
caracterizar, não este ou aquele magistrado, mas o bom magistrado por excelência, “a própria
natureza do poder político tal como se exerce na cidade” (p. 187). O Político rejeita a
metáfora do pastor. Tal texto procura diferenciar a arte propriamente política de um
magistrado das outras ações em geral, para após criticar o modo comum de caracterizá-la como
atividade de um pastor, criticando-a posteriormente: o político é aquele que prescreve ordens
a uma espécie particular de seres vivos que vivem em rebanho, a espécie humana : “O
homem político é o pastor dos homens, é o pastor desse rebanho de seres vivos que a
população de uma cidade constitui” (p. 189).
O pastor de ovelhas tem como característica ser apenas um e possuir numerosas
funções (alimentação, cuidados, terapêutica, arranjo das uniões): aqui é que o pastor é
contestado por Platão, pois não pode haver uma só pessoa encarregada de todas essas coisas
numa cidade. Os médicos, agricultores, pedagogos deveriam ser tão pastores quanto o rei,
portanto. Só havia pastores da humanidade no tempo em que os deuses se relacionavam com os
homens diretamente, na era de Cronos, quando o mundo girava no sentido correto. No tempo
presente, os deuses se retiraram, e os homens passaram a necessitar uns dos outros, donde
surgiu a figura do homem político. Mas este não está acima da humanidade, como estavam os
deuses; ele é um homem entre os outros, portanto não pode ser um pastor.
Para Platão, o homem político é, não um pastor, mas um tecelão. Ele não pode se
ocupar de tudo, mas apenas “pode se desenvolver a partir e com ajuda de certo número de
ações adjuvantes ou preparatórias” (pp. 193-194). A atividade política propriamente dita será
“ligar, como o tecelão liga a urdidura e a trama” (p. 194). No Político, Platão diz que a arte
da política consiste em constituir uma trama com o tecido vivo da população, os escravos e os
homens livres, buscando levar o Estado à felicidade. A atividade do pastorado e submetida à
ação política de tessitura.
Concluindo, tem-se que a raridade com que o tema do pastorado é encontrado no
vocabulário político grego (à exceção do pitagorismo, em todo caso uma sociedade fechada),
acrescida à crítica explícita que lhe é dirigida por Platão no Político, revela que o pensamento
político grego rejeita o tema do pastor.
“Essa história do pastorado, como foco de um tipo específico de poder sobre os homens,
a história do pastorado como modelo, como matriz de procedimentos de governo dos homens,
essa história do pastorado no mundo ocidental só começa com o cristianismo” (p. 196). Mas o
“cristianismo” compreendido como “uma comunidade religiosa que se constituiu como Igreja,
isto é, como uma instituição que aspira ao governo dos homens em sua vida cotidiana a
pretexto de levá-los à vida eterna no outro mundo, e isso na escala não apenas de um grupo
definido, não apenas de uma cidade ou de um Estado, mas de toda a humanidade” (p. 196).
Nascimento, com essa definição precisa de “cristianismo”, de um dispositivo de poder que
não cessou de se aperfeiçoar nos últimos quinze séculos (p. 197). Tal modelo político está a
tal ponto arraigado em nossa cultura política que nunca houve um processo de revolução
antipastoral (p. 199).
Mesmo quando aos hebreus em sua relação com Deus, a relação de pastorado era
apenas uma das muitas existentes, tais como as de legislador; e não havia na sociedade hebraica
uma instituição pastoral propriamente dita (exceção do rei Davi): “Fora de Deus, não há
pastor” (p. 201).
Na Igreja cristã, ao contrário, é que o tema do pastor assuma o primado, passando a ser
o principal aspecto da relação entre Deus e os homens, a relação fundamental, essencial, a
qual envolve todas as outras, institucionalizando-se “num pastorado que tem as suas leis, as
suas regras, as suas técnicas, os seus procedimentos” (p. 201). Há uma organização hierárquica
em que primeiro Cristo é pastor, depois os apóstolos, depois os bispos, prepostos, abades etc.
Trava-se um debate no interior da Igreja cristã a respeito da questão de saber se os
padres de cada paróquia poderão ser pastores. A Igreja responde que não. Os reformadores das
igrejas protestantes dirão que sim, e eis um dos temas que inspiraram a Reforma. Porém, tal
fato não modifica a estrutura pastoral da Igreja cristã, toda constituída em torno do modelo
pastor-rebanho, uma vez que o poder sacramental é em si um poder pastoral (batismo,
comunhão, penitência, jurisdição-excomunhão): “O poder religioso é portanto o poder
pastoral” (p. 203).
O poder cristão permaneceu distinto do poder político. Isso não significa que o poder
pastoral não implicasse uma intervenção sobre a vida dos indivíduos, “na condução cotidiana,
na gestão das vidas, mas também dos bens, nas riquezas, nas coisas” (p. 204).
Poderes paralelos (o poder político-estatal e o poder religioso-pastoral), específicos e
diferentes um do outro até o século XVIII, mas que mantêm toda uma rede de relações “de
interferências, de apoios, de intermediações, toda uma série de conflitos, [...] de modo que o
entrecruzamento do poder pastoral e do poder político será efetivamente uma realidade
histórica no Ocidente” (p. 204).
Enigma: o fato de que o poder estatal e o poder religioso tenham mantido a sua
especificidade ao longo de todos esses séculos (o mesmo não se deu no Oriente – China, Irã
etc.). No Ocidente, “apesar disso tudo, o rei continuou sendo rei e o pastor continuou sendo
pastor” (p. 205).
Aula de 22 de fevereiro de 1978 (pp. 217-252)
Institucionalização do pastorado: Há descontinuidade entre o pastorado cristão que
nasceu por volta do século III e as influências orientais ou hebraicas; o pastorado cristão é
quase essencialmente diferente. Primeiro porque este deu lugar a toda uma intricada rede de
relações institucionais que não havia antes. Doravante haverá, p.ex., pastores estendidos por
toda a cristandade, com suas ramificações hierarquizadas (para os hebreus havia apenas um
pastor que era Deus). Tal deu origem a toda uma arte de governar os homens – uma
governamentalidade.
“O Estado moderno nasce quando a governamentalidade se torna efetivamente
uma prática política calculada e refletida” (p. 219).
Características do pastorado, isomorfas a qualquer tipo de poder: 1) ele está
relacionado com a salvação (p. 221), permitindo que os indivíduos progridam no caminho da
salvação; 2) ele está relacionado com a lei, encaminhando os indivíduos ao cumprimento das
ordens de Deus; 3) ele está relacionado com a verdade, aquela que está escrita e em que se
deve crer.
O que distingue a pastoral cristã das demais formas de poder. 1) salvação:
comumente, há uma reciprocidade moral entre o chefe (pastor) e o rebanho, os quais se perdem
ou se salvam sempre juntos. Mas na pastoral cristã, o pastor e o rebanho estão ligados por
relações mais tênues e complexas, “integral e paradoxalmente distributivas” (p. 223). Integral,
pois o pastor deve assegurar a salvação de todos e de cada um em particular. Paradoxalmente
distributivo porque é necessário aceitar, para salvar o todo, sacrificar uma ovelha que possa vir
a comprometê-lo. Porém, sem nunca abandonar essa ovelha desgarrada, donde o paradoxo.
SALVAÇÃO: Quatro princípios específicos da pastoral cristã: 1) princípio da
responsabilidade analítica: O pastor deve prestar contas de cada ovelha em particular; 2)
princípio da transferência exaustiva e instantânea: o pastor deverá computar como ato
próprio cada um dos atos, de mérito ou demérito, de cada uma das ovelhas, devendo
experimentar tudo no momento exato em que acontece; 3) princípio da inversão do sacrifício:
o pastor deve se perder por suas ovelhas, no lugar delas, aceitando morrer para salvá-las; aquele
a quem se confiam as confissões, não estará exposto às tentações que lhe foram relatadas? 4)
princípio da correspondência alternada: o mérito do pastor se constitui ao salvar as ovelhas
perdidas e depende, portanto, em certa medida, dessa perdição mesma, de sua rebeldia, de sua
exposição ao perigo; e, paradoxalmente, as fraquezas do pastor contribuem para a salvação do
rebanho, desde que ele conheça as suas imperfeições e não as oculte hipocritamente, em suma,
que ele não seja orgulhoso. Conclusão: “O pastor cristão age numa sutil economia do mérito e
do demérito, uma economia que supõe uma análise em elementos pontuais, mecanismos de
transferência, procedimentos de inversão, ações de apoio entre elementos contrários [...] entre
os quais, por fim, Deus decidirá” (pp. 228-229). O pastor administra tudo isso sem certeza
terminal, a qual só será atribuída por Deus no dia do Juízo.
LEI: à diferença do cidadão grego, que não se deixava governar senão pela lei ou pela
persuasão (retórica), o cristão se deixa governar por obediência (uma “obediência pura”, p.
230), que tem seu fim e sua razão de ser em si mesma. O pastor não é o homem da lei, “sua
ação será sempre conjuntural e individual” (p. 231), devendo tratar cada um segundo seu caso
particular (comparação com o médico da alma). À diferença das religiões da lei (a judaica,
p.ex.), o pastorado cristão opera por individualização, criando uma relação de dependência
integral da ovelha para com o pastor, a qual significa três coisas: 1) relação de submissão de
um indivíduo a outro indivíduo (e não a conjunto de leis ou de regras ordenadas); relação de
servidão integral; cada um dos atos do indivíduos deve ter sido ordenado por alguém, de modo
irrefletido e imediato; 2) não há finalidade na obediência cristã, a qual só leva a si mesma, a
um estado de obediência plena, a que se chama humildade, a de sentir-se “o último dos
homens, em receber ordens de qualquer um [...] em renunciar à vontade própria [...] [pois]
toda vontade própria é uma vontade ruim” (p. 235) (à diferença da obediência grega, em
que o aprendiz sempre ansiava, ao cabo, inverter a relação de obediência e se tornar um dia
senhor de si; ou ansiava a sua cura, à virtude, à verdade ou qualquer outra finalidade); renúncia
à vontade, “fazer que não haja outra vontade senão a de não ter vontade” (p. 235); entre os
gregos, a obediência era direcionada à apátheia – ausência de paixões – ausência de
passividade – para se tornar senhor de si, e não escravo de suas paixões; mesmo o pastor só
comanda porque lhe deram ordem de comandar; há um campo de obediência generalizado no
espaço criado pelo pastorado cristão, o qual “não garante nenhuma liberdade, que não leva a
nenhum domínio, nem de si nem dos outros” (p. 237).
VERDADE: novamente há relações com o mundo grego; o pastor tem uma tarefa de
ensino. O exemplo deve ser a própria vida do pastor; o ensino não se deve dar de modo
unívoco, mas individualizado. 1) esse ensino deve ser uma direção da conduta cotidiana (p.
238), devendo passar por uma “observação, uma vigilância, uma direção exercida a cada
instante e da maneira menos descontínua possível, sobre a conduta integral, total, das ovelhas”
(pp. 238-239). O pastor deve formar um saber perpétuo do comportamento das pessoas a partir
dessa vida cotidiana das ovelhas que ele vigia; 2) esse ensino deve ser também uma direção da
consciência (p. 239), à diferença da Antiguidade, em que a direção da consciência era
voluntária (chegando até mesmo a ser paga – sofistas, p.ex.), e era circunstancial, pois ninguém
aceitava ser dirigido a vida toda nem a respeito de todos os aspectos da vida, e era, por fim, e
essencialmente, apenas uma condição para o controle de si; já no cristianismo, essa direção de
consciência não é voluntária, podendo ser absolutamente obrigatória (no caso dos monges);
ela não é circunstancial, mas absolutamente permanente: a pessoa dirigida deve sê-lo a
propósito de tudo e durante toda a vida; esse exame de consciência não tem por função
assegurar o domínio de si, mas, inversamente, ancorar melhor ainda a relação de dependência
ao outro. Tal culmina numa produção de verdade, aquela formada pelo indivíduo na sua relação
de dependência com o pastor.
1ª CONCLUSÃO: O pastorado cristão inaugurou uma forma de poder
absolutamente nova: “Essas novas relações dos méritos e deméritos, da obediência absoluta,
da produção das verdade ocultas, é isso que, a meu ver constitui o essencial, a originalidade e a
especificidade do cristianismo, e não a salvação, não a lei, não a verdade” (p. 242).
2ª CONCLUSÃO: O pastorado cristão criou modos absolutamente específicos de
individualização: Essa individualização vai ser definida por três aspectos: 1) Identificação
analítica: o jogo e a circulação dos méritos e dos deméritos; 2) Sujeição: toda uma rede de
servidões de todo mundo com relação a todo mundo, a qual exclui o egoísmo como forma
central, nuclear do indivíduo; 3) Subjetivação: a produção, e não o reconhecimento, de uma
verdade secreta e oculta. Tal foi efetivamente utilizado pelo pastorado cristão e por suas
instituições (p. 243). Trata-se de uma história do sujeito.
A pastoral cristã constitui o prelúdio da governamentalidade, “tal como vai se
desenvolver a partir do século XVI” (p. 243): 1) porque estabelece novas redes de relações
por sob os temas antigos da lei, da salvação e da verdade; 2) porque inicia a forma de
constituição de um sujeito específico (o sujeito ocidental moderno) cujos méritos e deméritos
são identificados analiticamente, o qual é sujeitado pela obediência, e é, por fim, subjetivado
pela extração da verdade que lhe é imposta (p. 243).
Aula de 1º de março de 1978 (pp. 253-303)
A relação estabelecida entre Religião e Política não passa pelo jogo entre Igreja e
Estado, mas entre pastorado e governo (p. 253).
CONDUTA DAS ALMAS: a noção de economia das almas, de regime das almas,
encontra no vocabulário francês moderno seu sinônimo na noção ambígua de conduta, a qual se
refere tanto à atividade que consiste em conduzir, quanto à maneira como uma pessoa se
conduz ou se deixa conduzir.
CRISE DO PASTORADO – existência simultânea ao pastorado de formas de
resistência ao poder como conduta: o pastorado se expandiu e originou a
governamentalidade. Não se tratará das condições limitadores externas do poder pastoral,
apenas por não ser esse o ponto abordado, mas sim das resistências e ataques produzidos
internamente no próprio campo do pastorado. Houve movimentos de resistência à conduta
imposta pelo poder pastoral, os quais objetivavam outra conduta, “querer ser conduzido de
outro modo, por outros condutores e por outros pastores, para outros objetivos e para outras
formas de salvação, por meio de outros procedimentos e de outros métodos” (p. 257), buscando
escapar à condução por outrem.
Características das “revoltas de conduta”: 1) correlação imediata e fundadora
entre a conduta e a contraconduta: o próprio pastorado já se formou como uma forma de
enfrentamento ou reação ou hostilidade ou guerra contra uma certa conduta (uma certa
“embriaguez dos comportamentos religiosos” dos séculos II a IV); 2) sobre a especificidade
não autônoma das revoltas de conduta: são distintas das revoltas contra o poder soberano e
contra a exploração tanto em sua forma quanto em seu objetivo; o maior exemplo é o de
Lutero, e não se trata de revolta econômica ou política, ao menos em seu princípio; mas tais
revoltas sempre estiveram ligadas a um mais amplo conjunto de conflitos e problemas, nunca
são autônomas, apesar de serem específicas em sua forma e em seu objetivo; 3) a partir do fim
do século XVIII, os conflitos de conduta vão passar a se produzir muito mais na esfera das
instituições políticas que na das instituições religiosas.
CONTRACONDUTA: Insuficiência do termo “revoltas de conduta” (ou dos termos
“desobediência” ou “insubmissão”); melhor seria talvez utilizar o termo dissidência (p. 264).
Mas ele também não é bom, porque embora tenha sido utilizada com frequência para designar
os movimentos religiosos de resistência à organização pastoral, embora seu emprego atual (nos
países do Leste europeu e na URSS – o poder pastoral se infiltrou nos partidos comunistas e na
URSS) signifique uma forma de resistência e de recusa perante uma certa forma de circulação
do poder pastoral chamada de “comunismo”, trata-se de um termo muito localizado e que
remete incontornavelmente a tais fenômenos. Por isso, prefere-se a utilização do termo
contraconduta (p. 266): “luta contra os procedimentos postos em prática para conduzir os
outros” (p. 266).
Crise do pastorado na Idade Média pelo desenvolvimento de contracondutas: 1)
houve uma extensa institucionalização rigorosa e densa do pastorado; 2) houve a formação de
um dimorfismo (estrutura binária) no interior do campo pastoral, opondo os clérigos aos
leigos, cada um dos quais possuindo seus tipos próprios de obrigações e de privilégios, seja na
ordem econômica, civil, mas principalmente na ordem espiritual (os clérigos estão, via de
regra, mais próximos da salvação); 3) houve a definição de uma teoria e de uma prática do
poder sacramental dos padres. Conclusão: houve, por fim, o entrelaçamento desse pastorado
com o governo civil e o poder político (as crises religiosas passaram a atingir o poder político e
civil). Com a introdução do modelo judicial (séculos XI-XII), p.ex., tornou-se obrigatória a
prática da confissão (1215), com a criação de um tribunal permanente para que todo fiel se
apresentasse regularmente, havendo, portanto, a penetração de um modelo judicial na Igreja,
“uma das grandes razões das lutas antipastorais” (p. 269).
Cinco formas de contracondutas desenvolvidas na Idade Média: 1) o ascetismo: o
pastorado se desenvolveu contra as práticas ascéticas (os excessos das práticas ascéticas),
porque o ascetismo era incompatível com a organização de um poder (p. 217), com a
obediência; o ascetismo é um exercício de si sobre si, onde a interferência de um outro é
desnecessária; o ascetismo é um exercício, um caminho a seguir o qual possui uma escala de
dificuldade crescente (o critério dessa dificuldade é o sofrimento do próprio asceta), que leva o
asceta à superação de tais dificuldades; trata-se também de um desafio interior; tal conduz a um
estado de apathéia (ausência de paixões); tal deve levar tanto a uma recusa do corpo como,
principalmente, a uma identificação com Cristo: “o cristianismo não é uma religião ascética”
(p. 274), porque o que o caracteriza é, não o ascetismo (que implica uma inacessibilidade por
um poder exterior), mas o pastorado. 2) as comunidades: a formação de uma comunidade é
uma forma de se insubmeter ao poder pastoral, pois esta recusa a autoridade do pastor e das
justificações teológicas ou eclesiológicas propostas; as comunidades que se formaram na Idade
Média partem do princípio de que Roma é a nova Babilônia, representa o Anticristo; a
obediência a um pastor infiel à lei é uma heresia; as comunidades questionam o poder do padre,
recusam o batismo das crianças (pois não é voluntário), recusam a confissão das intimidades a
um estranho, recusam a eucaristia; tais comunidades tendem a diminuir o dimorfismo entre
clérigos e leigos que caracterizava a organização pastoral – há igualdade absoluta entre todos os
membros da comunidade; há toda uma inversão “carnavalesca” (p. 279) da hierarquia pastoral
em algumas comunidades. 3) a mística: “o privilégio de uma experiência que, por definição,
escapa do poder pastoral” (pp. 279-280); na mística a alma não se mostra ao exame, pelo
sistema da confissão; ela própria se vê a si mesma em Deus, e vê Deus em si mesma (p. 180); a
mística também escapa da estrutura do ensino e da repercussão da verdade, não há mais uma
lenta circulação da verdade através do mecanismo de poder confessional; há uma relação direta
e imediata entre Deus e a alma segundo um mecanismo da inspiração sensível que faz a alma
reconhecer que Deus está presente (p. 281). 4) a Escritura: a importância da Escritura foi
relegada a segundo plano pela pastoral, pois deveria estar submetida ao ensino, à intervenção e
à palavra do pastor; o retorno aos textos da Escritura é, de certa forma, uma maneira de curto-
circuitar o poder pastoral; “a Escritura é um texto que fala sozinho e que não necessita do
mediador pastoral” (p. 281); deve haver uma relação direta entre o fiel e o texto sagrado; a
intervenção do pastor deve ser apenas no sentido de auxiliar a compreensão de uma passagem
obscura, ou para chamar a atenção a um ponto importante, mas visando a uma mais direta
relação do fiel com a Escritura. 5) a crença escatológica: esta desqualifica o poder do pastor ao
dizer que os tempos estão se consumando e que Deus voltará para reunir seu rebanho, Deus que
é o único e verdadeiro pastor e que, por isso, pode dispensar os demais pastores; outra forma de
escatologia é a crença na vinda do Espírito Santo que não se encarnará num profeta (como
Abraão) ou numa pessoa (como Cristo), mas se disseminará por todo o mundo, e cada fiel será
uma de suas centelhas, dispensando também a intervenção pastoral.
CONCLUSÃO: Esses cinco temas, que não pertencem ao “cristianismo” (pastoral), não
lhe são, contudo, exteriores, mas lhe são elementos-fronteira, e foram, volta e meia,
retomados pela própria Igreja, reatualizados por ela (como nos casos da Contra-Reforma); a
contraconduta não é exterior, mas integra um sistema político dado: “o ponto de vista do
poder é uma maneira de identificar relações inteligíveis entre elementos exteriores uns aos
outros” (p. 284).