platão e a matemática - irineu bicudo

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  • 5/10/2018 Plato e a Matemtica - Irineu bicudo

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    LETRAS CLAsSICAS. n. 2. p. 301-315.1

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    IJICUf)(). Irineu. Plara o c a rnatcmauca.

    remoto. Cada tcntativa de reencontni-las sc tccc de conjecturas rnais ou rncnosconsubstanciadas nos tcstcmunhos, quasc sempre duvidosos, de cpocas bem menosrccuadas, No cuso que nos intercssa, 0 historiador assernelha-sc a um cquilibristuque andassc em fio de aco preso entre dois distantcs cdificios, a uma altura cston-teanrc, scm rcr par baixo a redc protctora que Ihe arnortcca a possivcl qucda, Nocntanto, pulsam 0 coracao e a audticia hurnana: e precise ousar!

    Assim 0 vcrcmos, Szabo arrisca-sc a explicar a rcferida rnudanca na marc-m.itica, dando por motivo 0 impacto, ncssa cicncia, da filosofia clcatica , ou, maisprccisarncntc, da dialetica de Zcnao. Hajarnos por bem accitar tal cxplicacao.

    Ora, se a dialetica de Zcnao, urna tecnica rctorica, pode dar conta doprincipio da axiomarizacao da matcrnatica grcga, nao nos parece bast ante parafirrnar essa axiornatizucao como um program a a ser lcvado a cfeito. Para tanto,forum ncccssarias a influenciu de Plarao c a extcnsao que de faz da dialcticaclcatica. Pia tao elege a dialetica ( i , lhuAEK't tK11) como a mais importantc das cicn-cias, a unica "nao hipoterica", Enquanto as ciencias, em particular a matcmatica ,tern "hipotcscs" como pontes de partida, c van dessus, em movimento descendcn-re, a dcducao de suas conscqucncias, a dialetica, tendo pronta tal cstrutura dasciencias (espccialmentc da matcrnatica, que c urna propcdcutica a cla) parte, emmovirncnto ascendcJlte (E1t&vo8o~), para sua caminhada "para 0alto", "aindu rnaisalto" (Hej). VI 511a; Fed. 101-d-c), ate alcancar, sc possfvel, 0 fundamento incon-dicional c pcrfcitarncntc seguro a que sc aspira. Tal escalada fica facilitada, scfcita a partir de uma axiornarizacao das cicncias, E isso, afigura-sc-nos, que fixa aaxiomatizacao da rnatcmatica como urn projeto du Academia e que rcdunda nocnrater basico dessa ciencia, Essa, a nossa rcsel

    1. Platflo, matematico?Quem pretenda falar sobre "Platao e a Matcmatica" havcra de cnfrcntar,

    de inicio, a qucsrao: Foi Platao, a parte 0cstudioso de maternatica, 0cntusiastapor essa ciencia, tambcm urn cfctivo matcmatico? Isto c, dcscobriu de resultadosmutcrnaticos, resolveu complexes problemas, vislurnbrou novas rcorins, em surna,imprirniu sua pcgada no solo fertil dcssa disciplina?

    Parecc facil a rcspostalDo seguinte modo, sobre isso, sc cxprirncrn do is cmincntes historiaclores.

    Allman:

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    [)c\'c--;e rccor dnr que Pi a te l 0 - que em matcmarica parece tcr sidemal' dtllgCl1lc que invc nt ivo ( ... ) . De fato, t crnos somcnte de com-par ar ;1 soluc.io at nbui.I a I'Iutuo, para 0 problema de achar duasmCella:,proporciori.us - ( ... ) - com as solucocs alturncntc r actoriais,par.i () rncsrno problema, de Arquita:, c de Mcnccrno, para ver 0.unplo mtcrvalo entre estes c aquclc, de urn ponto de vista mate-rn.it rco. ( ... ). E , cnt.ro, prov.ivcl que Plarao, que, tanto quanto 0sabcruos, nunea rcsolvcu urna qucst ao gcoructricu (Allman, 1976,p. 124).

    Bourbaki:

    Poclc-sc di:er que Plat ao era quasc obsccado pcla matcm.itica: sernscr ell' mcsrno U111 inventor nesse dominio (Bourbaki, 1969, p. 12).A pr oxuna qucst.io vern naturalmente: Podc Platuo, scm ter side propna-

    mente urn matcrnutico, tel' dado urna contribuicuo importante para 0cstabclcci-mento da marcm.iticn grega?

    Eis abcrro urn arnplo campo de debate.A trudicao, hem como alguns modernos historiadores, consider am dccisi-

    va sua colabor acao ao dcscnvolvirncnro da mat crruiuca, morrncntc no que res-pcita a metodo, 1 1 sisrcmatizacao c aos fundamentos da mesma, bem como a suaemancipac.io da cxper icncia. Outros ncgarn-lhe a influencia significativa.

    Ao:, cxcrnplos! Van der \Vacrdcn:

    o pcr iodo (scculo do Plat ao) corncca com a morrc de Socrates (399)c sc cnccrrn no morncnt o ern que Alexandre, 0 Grande, cspalha ascrncnt da cultur.i hclcnist ica sobre 0 mundo todo da antiguida-.lc. Es,e pcriodo c de dccudcncia pohricu: mas para a filosofiu cpara as cicnci.u, cxatas Curn a era de florcscimcnto scm prcccdcntc,N() centro du vida cicntffica cncontra-se a pcrsorialidudc de Plarao.Ell' guiou c inspir ou 0 trabalho cicntffico dentro e torn de sua Aca-deIl1la 0:, grande" mut cm.iticos T cetcto e Eudoxo, c todos os ou-tros cnumcr ados no Cat~\l()go de Proclus, Coram seus arnigos, scusmcst rcs em matcm.it icu e scus discipulos em filosofia, Seu grandea lurio Ar istotclcs, 0 professor de Alexandre, 0Grande, passou vmtc~1I10i de su a Vida no glorioso mu rido da Academia (van derWacrden, 1954, p. liS).

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    IJICUDO. lrincu. Pia tao c a maternatrca.

    Gow:

    Platao foi mais um forjador de rnatcrnaticos do que um matcrnati-co distinguido par dcscobertas originals e suas contribuicoes a ge-ometria estao rnais no melhorarnento de seu metodo do que emadicocs a seu conteudo, Foi de que transformou a logica intuitivados antigos geometras em um rnetodo a ser usado conscientementee sern receio. Com elc, aparcntcmentc, cornecararn aquclas defini-coes dos termos geornctricos, aqucle enunciado disrinto de postu-lados e axiomas que Euclides adotou (Gow, 1968, p. 175-6).

    Gino Loria:

    Mais direta e vistvc] foi a benefica influencia de PIntao sobrc aciencia cxata (Loria, 1929, p. 78).

    Mas, tambem temos Neugebauer:

    Parcce-rne igualmente impossive! dar qualquer "explicacao" con-c1usivapara a origem da matcrnatica superior nos seculos V e IV,em Arenas e nas colonies italianas. Do lado negativo, entretanto,penso que e evidente que 0 papcl de PIatao foi arnplamcnte cxage-rado. Sua contribuicao dircta ao conhecimento matcmatico foiobviarncntc nub. Que, por um curto perfodo, matcmaticos da es-tatum de Eudoxo ten ham pertencido a seu circulo nao c prova dainflucncia de Platao na pesquisa matermitica. 0 carater excessiva-mente clcrncntar dos cxcrnplos de procedimentos rnatcmaticos ci-tados par Platao e par Arist6tcles nao dao suporte il hip6tese deque Teeteto ou Eudoxo tenharn aprendido qualquer coisa comPiatao (Neugebauer, 1969, p. 152).Cube mencionar, agora, a visao de Eudcrno, discipulo de Aristctcles, 50-

    bre a qucstao. 0 fragrnento da obra de Eudemo que nos intercssa foi exposto porProclus, no famoso Catalogo dos Gcornetras:

    Platao, que viveu depois desses, deu urn impulse a toda a cienciarnarcrruitica e, em particular, a geometria, pclo apaixonado estudoque este lhe dedicou, c que tornou conhecida, seja enchendo seusescritos de argumentos matcrnaticos, seja despertando em toda parte

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    LETRAS CLAsSICAS, n. 2. p. 301-315, IlJ9H.

    a udmirucao por esse cstudo naqueles que se dedicam a filosofia.Nessc tempo, rarnbcm vivcrarn Lcodamas de Tasos, Arquitas deTarcnto e Tcctcto de Arenas, que aumcntaram 0 numero de tcorernasc der.un a des urna ordcnacao mais cicntffica, Depois, scguernNcoclidcs, mais novo do que Lcodamus, c scu discfpulo Leon, queadicionaram muitus coisus novas aquclas de seus prcdecessores, tan-to que Leon compos tarnbcrn Elementos muito mais acurados pclonurncro c pclo valor das dcmonstracocs, (... ). Mas Eudoxo de Cnido,um pouco mais jovcrn do que Leon, c que foi cornpanheiro de disci-pulos de PIa tao, foi 0 prirnciro a aumcntar 0 nurnero dos cham adostcoremas gerais c juntou outras trcs proporcocs a s tres ja conheci-das; alcm disso, aumcntou 0numcro de proposicoes sobrc a secaoiniciacla pm Platao, scrvindo-sc para isso do metodo de analise ('tul~a v u A : u c r E 0 1 V ) . Amiclas de Hcraclca, um dos scguidores de Platao, cMcnecmo, urn csrudante de Eudoxo, mais tarnbcrn frcquenrador dePlatao, c scu irrnao Dinostrato apcrfeicoararn ainda mais a gcome-tria em scu todo. Tcudio de Magnesia aparccc como cxcepcionalnao so em rnatcrruitica, mas tarnbem em todas as partes da filosofia;e de faro, compos Elementos de um modo cxcelentc e tor no 11 rnaisgerais muitas proposicocs particularcs. E ainda Atcncu de Cizico,vivcndo na mcsma cpoca, tornou-se celebre em toda a cicncia mate-matica, mas cspccialmcnte em geometria. E Euderno arremata: "Es-ses viviam todos juntos na Academia c fizerarn suas pesquisas emc omu rn " ( Pr oc lu s, 1 87 3, p, 66-7).Como Eudemo c uma das rcsternunhas mais proxirnas de Pia tao que co-

    nheccmos, dcvcmos-lhc, scm duvida, crcdito, Talvez seja ele 0 inspirador deCajori, quando cstc cscrcve:

    Com Platuo como chcfe da Escola, nao nos devcmos surprcenderque a cscola platonica tcnha produzido urn tao grande numero dematcrnaticos. Platuo rcalizou pouco trabalho realrnentc original,mas fez apcrfcicoarnenros valiosos na logica enos rnerodos empre-gados (Cnjori, 1985, p. 26).

    Assirn, nccitarcmos que, rnesrno nao sendo efetivarnente urn matcrnatico,Platao contribuiu para 0 dcscnvolvirncnto da rnatcmarica grega, em especial dagcometria, como cla aparccc em uma das obras maiores da antiguidade, os Ele-mentos de Euclidcs.

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    lJICU[)O. Ir;II('II. Platao e a matcnuitica.

    2. Como sc organiza amaternaticaCornccernos por descrever, concisamente, em que consiste, hoje em dia,

    uma tcoria matcmatica.Ao dcsenvolver uma teoria, a rnissao do maternatico e definir os conceitus

    da tcoria c demomtrar as tJrolJriedaeles de tais conceitos. Ora, dcfinir um conceitosignifica cxplica-lo em termos de outros conceitos j,l dcfinidos, c demonstraruma proposicao significa argumentar sobrc sua validadc, usando as regras deinfcrencia fornecidas pcla logica, a partir de proposicocs ja anteriormente de-monstradas, Entao, um ccrto conceito c" e definido em termos dos conceitos, c.,c2 ' " ' ' ck ' todos elcs dcfinidos antcriorrnentc: cada um desses foi dcfinido emrerrnos de outros conceitos, e "assim por diantc". Por exemplo, na rcoria marc-rnatica dos grupos, 0 conceito de "grupo" c definido como "urn rnonoidc em quetodo clemente c inverttvcl", ou scja, a nocno de "grupo" c cxplicada em terrnosdas nococs de "monoide" c de "clernento invertivcl". Por sua vez, um "monoidc"c definido como "urn scrnigrupo com clemento idcnridadc": um "sernigrupo",como um "conjunto (nao vazio) com urna lei de composicao associativa", c "as-sim por dianrc", Dc modo similar, para provarmos uma proposicao P" , usarnosproprosicocs, PI' Pp"" P" , ja demonstradas. E, na dcmonstracao de cada urnadessas proposicoes, aparecem outras, anteriormente dcmonstradas, e "assim pordiante".

    Qucr na definicao de conceitos, quer na dcmonstracao de proposicocs, 0problema sc aloja na frasc "assim por diante". Por nao termos a possibilidade deum rctroccsso ae l in fin itum, devemos oferecer urna solucao cxequtvel ao "assirnpor diantc".

    Ha a solucao dos dicionarios, para 0caso da dcfinicao de conccitos, ou asolucao do "cfrculo vicioso", em que urn conceito e dcfinido em tcrrnos de urnoutro e esse outro, em terrnos do primeiro; c ha a solucao do rnatcrruitico, queconsistc em aceitar alguns conceitos scm definicao, com 0compromisso dc, apartir dcsscs, definir todos os dernais conceitos da teoria em qucsrao, No caso dadcmonstracao de proposicoes, por urn procedimento aruilogo, 0matcmritico aceitaalgumas proposicocs scm dcrnonstracao, com 0acordo de, a partir dessas, de-monstrar todas as outras. Como diz Duhamel:

    E por cntcnde-lo dcsse modo que dircrnos que a dcfinicao de umacoisa c a cxpressao de suas rclacocs com coisas conhecidas. E, porconscquencia, ncm todas as coisas podem scr definidas, pois que,

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    LETRAS CI.ASSICAS.n. c. p. 301-315. I'J'JX.

    pam isso, scriu ncccssario conhccer jti as outras (Duhamel, 1885,p. 16-7).

    Os conceitos nao definidos sao chamados c once it vs p r im i t iv o s, c todos osoutros, conceuos derivados . As proposicoes aceitas scm dcmonstracao s;10 ditasax iomas , c as dcmonstradas, teorcmas. Assim, rcsumidamcntc, urna teoria mate-rnatica c constituula de conccitos prirnitivos c derivados, de axiomas e teoremas.

    Essa estruturacao da matcmatica c, csscncialmente, urna hcranca grega.Conforme afirrna Bourbaki, a "nocno de demonstracao, nesses autores (sc, Euc-lides, Arquimcdcs, Apolonio), n;10 difere em nada da nossa" (Bourbaki, 1969,p. 10).

    3. A matcmatica gregaUrn dos mais importantes capitulos da historia da maternatica, embora

    bern pouco conhccido, c a transforrnacao do primitivo conhecimento matcmati-co empfrieo dos egfpcios c babilonios na ciencia matermitica grcga, dedutivasistematica, bascada em dcfinicoes c axiornas.

    Quem se achcguc deseuidadamente a essa hisroria, tera a imprcssao de amatcrruitica (gcomctria) tcr naseido udulta da cabcca de Euclides, como Arenastriunfante da cabcca de Zeus. Tal foi 0 sueesso de seus Elemen tos no resumir,corrigir, dar base solida c arnpliar os resultados ate cntao conhecidos - Proclusdiz-nos que Euclides "colctou os Elementos , ordenou no sistema muitas eoisas deEudoxo, aperfeicoou muitns de Teeteto, e transformou em dernonstracoesirrcfuravcis aquelas que seus prcdcccssores tinham demonstrado poueo rigorosa-mente" (Proclus, 1873, p. (8) - que Euclides apagou, quase que completamcntc,os rastros clos que 0prcccdcrarn.Bourbaki salient a que "nao lui, hoje, qualquer duvida de que houve urnam.itcm.it ica prc-hclcnica bern dcscnvolvida, Nao somente sao as nocoes (ja mui-ro abstrntus) de ruuncro intciro c de medici a de quantidadc eomumente usadasno" documentos muis untigos que nos chcgararn do Egito ou da Caldcia, mas ajlgebr'l b.ibilonia, por causa dn clcgancia c scguranca de sells metodos, nao deve-cr conccbidu como lima simples colccao de problemas rcsolvidos por urn tatcarl'm;liriuJ" (Bomh,lki, 1969, p. 0). No cntanto, nao encontrarnos, seja nos docu-111

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    /JICUf)(), lrincu. Plarao c a mutcmut ic.i.

    qucr trace do que se asscrnclhc a uma "dcrnonstracao", no scntido formal dapalavra. 0 co nee ito de cicncia dedutiva era desconhccldo dos povos orientais daantiguidade. Seus textos maternaticos, que chegaram ate nos, sao, em geral, co-letaneas de problemas, mais ou menos intcressantes, e suas solucoes, em formade prcscricao, como as indicacoes das ctapas de urn ritual, oferecido a urna deida-de. Nada de teorernas c dcrnonstracocs, nada de dcfinicoes, nada de axiomas.

    Agora, a questao fundamental!Ao herdarern esse conhecimento matcrmitico - po is Herodoto, Aristorclcs

    e Eudemo sao unanimes em garantirem ter a geornctria vindo do Egito, c noCatalogo dos Geornetras le-se: "Tales, que viajou ao Egiro, foi 0 primciro a intra-duzir cssa ciencia na Grecia" -, por que os grcgos nao sc contcntararn com scufundamento empirico? Por que substituiram a colccao existcntc das rcccitas rna-ternaticas por uma ciencia dedutiva sistematica? 0 que as lcvou a confiar rnaisno que podiam demonstrar do que no que podium "vcr" como correto? Por quea mudanca no critcrio de vcrdadc em rnarcmatica, da justificacao pcla cxpcricn-cia aqucla por razocs teoricas?

    E nessa nova configuracao da rnarcmatica, julgamos, que a influencia dePia tao foi decisiva.

    4. A mudancaNo Egito l'na Mesopotamia, era a classc sacerdotal a detentora do conhe-

    cimento, em geral, e do conhecimento rnatcrruitico, em particular. Ora, os saccr- ,dotes eram as intcrrncdiarios entre a divindade c a povo. Os designios da divin-dade nao carecem de cxplicacocs: seus desejos devem ser satisfeitos e os rituais eas ofcrcndas aplacarn-lhe a ira, atracm seu bcncplacito, Aos sacerdotes cabiurnintcrprctar a vontade dos deuses e guiar 0 povo nas erapas do rita apaziguador.

    Seguem esse mcsmo estilo seus documentos maternaticoslQuando esse tipo de conhecimento chega a Grccia, por volta do seculo

    VI a.C., nao havia la uma classc sacerdotal, pois, segundo Burnet, "foi provavel-mente devido aos aqueus que os gregos nunca tiveram uma classc sacerdotal, eisso pode bern ter tido alga a ver com 0aparecimento da ciencia livre entre des"(Burnet, 1957, p. 4). Alern disso, "a visao tradicional do mundo e as costumcirasregras de vida tinham co\apsado" (id., ib., p. 1) e os mais antigos filosofos especu-

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    LETRAS CLASSICAS, n. 2. p. 301-315. 1l)l)K

    lavarn sobre 0 mundo a sua volta. Essa pesquisa cosmologica deu origem" ilarnpla divcrgenciu entre cicncia c scnso comum, que era, por si rnesma, urnproblema que dcmandava solucao, c, alcm disso, forcava os filosofos ao esrudodos meios de defender seus paradoxos contra os preconceitos da (visao) naocicnrffica" (id., ib., 1957, p. 1). Entao, ha que sc acresccntar, com Bourbaki, "airnprcssao gcrul que parccc rcsultar dos tcxtos (muito fragmcntarios), que possu-Imos sobrc 0pcnsarncnto filosofico grego do V seculo a.C., e que ele e dominaclopor urn csforco rnais e mais conscicntc para estcndcr a todo 0 campo do pcnsu-menta os proccdirncntos de articulacao do discurso empregado com tanto SUCl~s-so pela ret6rica c pela matcrnatica contcmporaneas - em outras palavras, paracriar a Logica, no senti do mais gcral dessa palavra, 0 tom dos escritos filosoficossofrem, ncssa epoca, urna mudanca basica: enquanto que, nos seculos VII e VI,as filosofos afirrnam ou vaticinarn (au, ao menos, esbocam vagos raciocinios,fundados sobrc igualmcnre vagas analogias), a partir de Parrnenides c, sobrctu-do, de Zcnao, elcs argurncntum e procurarn rcsgatar principios gerais que possarnscrvir de base a sua dialctica (ol

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    lJICU/)(). lrineu. Plutao e a marcmanca .

    do mesmo tipo de risco que correm as pessoas, quando veern eestudam um eclipse do sol; clas rcalmente prcjudicarn scus olhos,algumas vezes, a menos que estudem seu reflexo na agua ou emalgurn outro meio. (... ). Assim, decidi recorrer a teorias c a usa-lasna renrativa de descobrir a verdadc sabre as coisas, (...). Em todocaso, primciro cstabcleco a tcoria que julgo ser a mais corrcta e,cntao, 0 que parccc concordar com cia - em rclacao a causas au aqualqucr outra coisa - assumo scr verdadciro, co que nao, assumonao ser verdadei ro.

    5. A conjectura de SzaboVamos, agora, 1 1 argumcntacao de Szabo (Szabo, 1967) em favor da in-

    flucncia cia dialctica cleatica na rnatcmatica gregaj rna is corrctarnenrc, em comoesta aparcce csrruturada na grande obra de Euclides.

    Euclides abre os Elementos arrolando tres tipos de princfpias marcrnaticos:as definic;:ues ((SpOl),os postlliados (aitiU.Lu'ta) c as noc;:(}escomuns (xoivcd EVVotat) ou(lxiomas.

    Apenas para servir de ilustracao.Dcfinicao 1: Ponto e aquilo de que nuda c parte (O'TU.u::1:0VO''ttV,ou f.LEpo~ou8\').Dcfinicao 2: E linha e cornprimento scm largura (ypaf.Lf.LT]e FfiKO~ a1tA.a'tE~).Definicao 3 : E as extremidades de urna linha sao pontos (ypaf.Lf.Lfi~D e 1tEpa'taO'llf.LEta).

    Postulado 1: Fique postulado conduzir a partir de todo ponte ate to do pontouma linha rcta (Tlit~0'8CJ.)1 tO 1taV'to~ 0'11f.LE10U1tl mxv O'Tlf.LElovEu8Elav ypaf.Lf.LT]vayaYElv).

    Nocao comum 8: E 0 todo e maier do que a parte (Kat 'to DA.OVtaU f.LEpOUC;~lEI1;ov).

    No scculo V d.C., Proclus, () cscoliasra nco-platonico dos Elementos, cxa-mina os principios nao provados da maternatica, nos scguintes termos:

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    LETRAS CLAsSICAS. n. 2. p. 301-3IS. l 'l ')S.

    Como cssa ciencia da geometria c baseada, como disscrnos, emhipotcses c demonstra suus proposicoes posteriores a partir de de-terminados primeiros principios - porque ha somente uma cicncianao hipotctica, as outrus cicncias rcccbcndo dela seus primeirosprincipios - c ncccssario que 0ordcnudor dos elementos na gco-metria uprcscntc scparudamentc as principios da cicncia c as conclu-sees que scguern dos principios, clando razoes, nao para os pr inci-pios, mas somente para suus conscquencias, Pois nenhuma cicnciadcmonstra sells proprios principios ou aprcsenra razocs para clcs:antes, cada lima tern-nos como auto-evidences, isto c, como maiscvidcntcs do que suas conscquencias, E a ciencia conhece os prin-cipios por si mcsmos c as consequcncias por rncio daqucles (Prod us,1873, p. 76).Ao cscrevcr isso, parccc que Produs faz eco a seguinte passagem de Platao,

    l~cpublica 5 1 0 cod:Sabes [cliz Socrates], imagino, que os que se aplicam a geometria, aaritmetica ou as ciencias que tais sup6em 0 par c 0 Irnpar, as figu-ras, as tres espccies de angulo e outras coisas analogas (a8EA,

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    IIICUDO.lrilll'lI. Plarao e a matcrnrinc.i.

    ca, e um ponto de parrida, impossive! de demonstrar; c nao necessita de demons-tracao, porque os participanrcs do debate aceitam-na de comum acordo. Entao,segundo Szabo, os maternaticos chegararn il conclusao de que os principios desua ciencia nao podiam ser provados, e nao neccssitavarn de dcmonsrracao, pelapratica da dialetica. Estavam habituados com 0fato de que, quando um dosdebatedores queria provar algo para 0 outro, estava limitado a cornecar a partirde uma afirrnacao aceita por ambos.

    6. A tcseA mudanca, pois, da rnatcrnatica "empfrica" para a matcmatica "pura"

    cstri intima mente associada ao canitcr idealista, anti-ernpfrico da filosofia clciiticae, sobretudo, da filosofia de Plarao, Como nota van dcr Waerden a respeito doplutonismo:

    Verdade, que significa as ideias. Sao as idcias que tern Ser verda-deiro, nao as coisas que sao observadas pe!os sentidos, As ideiaspodern, as vczes, scr contcmpladas, em momentos de Graca, atra-ves cia reminiscencia do tempo em que a alma vivia mais perto deDeus, no reino da Verdade; mas isso pode acontccer sornente de-pois de os erros dos sentidos terem sido conquistados pe!o pcnsa-mcnto conccntrado, 0 caminho que leva a esse estado e aquele dadialctica (van der Waerden, 1954, p. 148).

    Platao inccntiva a estruturacao dcdutiva sistematica da ciencia rnatcmati-ca, porquc a considcra propcdcutica a dialcrica, pois

    scparando-sc, ao mesmo tempo, dos pitagoricos, que mantinhamno mesmo plano ciencia e filosofia, c de Socrates, cuja investigacaoprudcnre parccc ter-se detido na dctcrrninacao da hiporcsc, Piataoconduz a filosofia marcrnatica a urn caminho todo novo. A mate-marica situada na regiao da OtUvoux. apcnas urna ciencia intcrrnc-diaria (ta IlEta~U, 1tEPl.a ta~ llaeTJlla'tll(a~ EiVat cnv 1tlO't~lla

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    LETRi\S CL/\SSICi\S. n. 2. p. 301-315. l 'l

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    IiICUDO. lrineu.

    roda qucstao posstvcl, Platao aprcscntou scu programa. Scus disci-pulos, cm grandc parte, rcalizararn-no. Tcmos 0rcsultado final,codificado por Euclides (Lucas, 1967, p. 13).Afinal, dc acordo com Plutarco (Q ua est. C onv. VIII, 2):

    n~ nAa'tolV EAEYeVrov SeO Vad 'YeO)~e'tPetV;

    NOTA

    * Professor Titular do Departamento de Matcmatica do Institute de Gcocicncias eCicncias Exutas da UNESP de Rio Claro.

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