planos de salvaguarda e reabilitação de «centros históricos» em portugal

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VIII ENCONTRO NACIONAL DOS MUNICÍPIOS COM CENTRO HISTÓRICO Centros Históricos e Planos Municipais de Ordenamento do Território Porto, 24 de Outubro de 2003 1 Planos de Salvaguarda e Reabilitação de «Centros Históricos» em Portugal Joaquim Flores, Arq.to Introdução A presente comunicação tem por base a dissertação homónima de Mestrado, em Reabilitação da Arquitectura e Núcleos Urbanos, defendida em Maio de 2000 na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa. A temática escolhida prendeu-se com a necessidade prática de estudar os «Planos de Salvaguarda e Valorização», na medida em que surgiu a oportunidade de realizar profissionalmente um destes planos, no ano de 1996. Ao realizar as primeiras recolhas de informação, nomeadamente ao nível legislativo, encontrou-se uma situação caricata, a do vazio legal e técnico relativamente a esta tipologia de Plano. Paradoxalmente, perante os avanços e recuos legislativos que se foram verificando ao longo do tempo, o Estado, via Gabinetes Técnicos Locais (GTL‟s), insistia na necessidade de elaborar Planos de Salvaguarda para as áreas de intervenção deste Gabinetes, na sua maioria coincidentes com centros históricos. Deste modo a tese desenvolveu-se através do estudo desta tipologia de Plano, assim como das linhas metodológicas internacionais que influenciaram as diferentes modos de intervir nos centros históricos em Portugal. Tendo por base o acima descrito, esta comunicação teve por objectivos específicos, clarificar as linhas metodológicas que influenciaram a experiência de reabilitação de centros históricos em Portugal, ao mesmo tempo que se realiza a historiografia desta tipologia de Plano. Paralelamente, efectuou-se uma actualização, na medida em que, desde a realização do trabalho base, foram saindo diplomas legais fundamentais, tais como a Lei de Bases do Património (Lei 107/2001 de 8 de Setembro) ou o Diploma que rege os instrumentos de ordenamento do território (DL 380/99 de 22 de Setembro), ambos por regulamentar, como é hábito na praxis portuguesa. Pretende-se assim, fazer também uma reflexão sobre a actualidade e as perspectivas para esta figura de Plano perante a realidade portuguesa. A Reabilitação de Centros Históricos A prática portuguesa de reabilitação de centros históricos vive da dicotomia entre as linhas de intervenção normativa e operativa, decorrentes de influência directa das experiências francesa e inglesa, às quais se junta a experiência inovadora e abrangente da cidade italiana de Bolonha, que influenciou decisivamente a «doutrina da conservação integrada», emergente do ano europeu do património arquitectónico, em 1975, do qual resultou a declaração de Amesterdão. Seguidamente explicamos de um modo sucinto estas três linhas que nos influenciaram e posteriormente explicita-se como se fez sentir esta influência na prática portuguesa. A Experiência Internacional Os anos sessenta marcam uma viragem social com reflexos em todos os campos do saber. Em arquitectura

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VIII ENCONTRO NACIONAL DOS MUNICÍPIOS COM CENTRO HISTÓRICO Centros Históricos e Planos Municipais de Ordenamento do Território Porto, 24 de Outubro de 2003

1

Planos de Salvaguarda e Reabilitação de «Centros Históricos» em Portugal

Joaquim Flores, Arq.to

Introdução

A presente comunicação tem por base a dissertação homónima de Mestrado, em Reabilitação da

Arquitectura e Núcleos Urbanos, defendida em Maio de 2000 na Faculdade de Arquitectura da Universidade

Técnica de Lisboa.

A temática escolhida prendeu-se com a necessidade prática de estudar os «Planos de Salvaguarda e

Valorização», na medida em que surgiu a oportunidade de realizar profissionalmente um destes planos, no

ano de 1996. Ao realizar as primeiras recolhas de informação, nomeadamente ao nível legislativo,

encontrou-se uma situação caricata, a do vazio legal e técnico relativamente a esta tipologia de Plano.

Paradoxalmente, perante os avanços e recuos legislativos que se foram verificando ao longo do tempo, o

Estado, via Gabinetes Técnicos Locais (GTL‟s), insistia na necessidade de elaborar Planos de Salvaguarda

para as áreas de intervenção deste Gabinetes, na sua maioria coincidentes com centros históricos.

Deste modo a tese desenvolveu-se através do estudo desta tipologia de Plano, assim como das linhas

metodológicas internacionais que influenciaram as diferentes modos de intervir nos centros históricos em

Portugal.

Tendo por base o acima descrito, esta comunicação teve por objectivos específicos, clarificar as linhas

metodológicas que influenciaram a experiência de reabilitação de centros históricos em Portugal, ao mesmo

tempo que se realiza a historiografia desta tipologia de Plano. Paralelamente, efectuou-se uma

actualização, na medida em que, desde a realização do trabalho base, foram saindo diplomas legais

fundamentais, tais como a Lei de Bases do Património (Lei 107/2001 de 8 de Setembro) ou o Diploma que

rege os instrumentos de ordenamento do território (DL 380/99 de 22 de Setembro), ambos por

regulamentar, como é hábito na praxis portuguesa. Pretende-se assim, fazer também uma reflexão sobre a

actualidade e as perspectivas para esta figura de Plano perante a realidade portuguesa.

A Reabilitação de Centros Históricos

A prática portuguesa de reabilitação de centros históricos vive da dicotomia entre as linhas de intervenção

normativa e operativa, decorrentes de influência directa das experiências francesa e inglesa, às quais se

junta a experiência inovadora e abrangente da cidade italiana de Bolonha, que influenciou decisivamente a

«doutrina da conservação integrada», emergente do ano europeu do património arquitectónico, em 1975, do

qual resultou a declaração de Amesterdão.

Seguidamente explicamos de um modo sucinto estas três linhas que nos influenciaram e posteriormente

explicita-se como se fez sentir esta influência na prática portuguesa.

A Experiência Internacional

Os anos sessenta marcam uma viragem social com reflexos em todos os campos do saber. Em arquitectura

VIII ENCONTRO NACIONAL DOS MUNICÍPIOS COM CENTRO HISTÓRICO Centros Históricos e Planos Municipais de Ordenamento do Território Porto, 24 de Outubro de 2003

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cai o mito, até aí sedimentado, do internacionalismo e do funcionalismo racionalista. No desenvolvimento da

década surgem novas abordagens à cidade contemporânea por autores como Kevin Lynch, Gordon Cullen,

Christopher Alexander, Françoise Choay, A. Mitscherlich e Jane Jacobs.

Paralelamente, começam a desenhar-se as teorias contextualistas do meio urbano, de que a publicação de

A paisagem e a obra do homem1, de Norberg-Schulz, constituiria uma abordagem, aprofundada depois ao

longo das duas décadas seguintes. Esta concepção da cidade como um organismo global, em que se

relacionam no tempo, homem, instituições e meio ambiente, criando um sedimento memorial, tinha já sido

abordada na década anterior por Halbwachs, ao desenvolver o conceito de memória colectiva.

Fica assim justificado o interesse renovado que a partir dos anos sessenta, começa a interessar a

comunidade internacional que debate os problemas urbanos, agora ampliada a sociólogos, geógrafos e

historiadores.

Institucionalmente, também os diversos governos nacionais começam a aperceber-se da perda irreparável,

para o património urbano, que advém das operações de «renovação urbana». Redigem-se assim

legislações especificamente tendentes a salvaguardá-lo, ameaçado que estava por fortes pressões

urbanísticas. Às leis do início do século aprovadas para salvaguardar o património, entendido ainda no

redutor conceito de monumento, vêm agora juntar-se as que alargam esta concepção ao conjunto urbano.

Em 1953, na Historic Buildings and Ancient Monuments Act, a Lei do Património Inglesa, é criada a

Conservation Area, definida como “… area of special architectural or historic interest the character of

appearance of which it is desirable to preserve or enhance”.2

A França avança em 1962 com uma nova Lei destinada a proteger o património nacional, que ficou na

história com o epíteto de Loi Malraux. São então criados na legislação francesa os Secteurs Sauvegardés,

delimitando sectores que “… présentent un caractère historique, esthétique ou de nature à justifier la

conservation, la restauration et la mise en valeur de tout ou partie d’un ensemble d’immeubles.”3

Ainda que a legislação desenvolvida nestes países da Europa não afaste a perspectiva monumental e o seu

enquadramento, a protecção abrange agora áreas urbanas que, mesmo não possuindo um valor

monumental, podem pela sua harmonia e valor estético ser protegidas. Esta concepção ainda não abarca

os centros urbanos, limitando-se a pequenas áreas, cuja classificação equivalia a idêntico procedimento

para com uma qualquer obra arquitectónica, sendo assim apenas mais um grau de protecção para com o

património. É necessário salientar que a manutenção do contexto social estava ainda ausente destas

legislações.

Muito similares na definição inicial, as experiências francesa e inglesa acabam por merecer especial

referência pelas operações de reabilitação urbana que a delimitação destas áreas acabou gradualmente por

induzir. Estas operações acabam por seguir caminhos diversos, baseadas que são nos já históricos

1 - NORBERG-SCHULZ, Christian, «A paisagem e a obra do homem», in Arquitectura, nº102, Lisboa, Sindicato Nacional dos

Arquitectos, 1968 Março/Abril, pp.52-58. Este artigo foi publicado originalmente na revista Edilizia Moderna, nº87-88, no período em

que esta era dirigida por Vittorio Gregotti.

2 - Planning (listed buildings and conservation areas) Act 1990, Her Majesty‟s Stationnery Office.

3 - FRANCK, Claude, «L‟envers du décor ou comment faire d‟une vieille pierre deux coups», in L’Architecture d’Aujourd’hui, nº180,

Paris, Groupe Expansion, 1975 Julho-Agosto, pp.4.

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fundamentos culturais dos dois países, empirismo e racionalismo. A sua divergência não é porém

inultrapassável, como o atesta o percurso português, onde estas duas linhas operativas influenciaram

experiências, podendo-se até afirmar que a sua complementaridade é perfeitamente possível.4

A Experiência Inglesa

Embora as Conservation Areas tenham sido criadas em meados da década de cinquenta, só cerca de dez

depois foi consequente, em termos de reabilitação urbana, esta nova filosofia de protecção.

Dentro da filosofia pragmática que caracteriza o saber Britânico, as intervenções nos centros urbanos não

se desenvolvem através de um planeamento oficial normativo, mas sim sob a forma do que actualmente se

denomina de «estudo-piloto». A criação destes estudos nasceu exactamente da necessidade de actualizar

a lei de 1953, integrando as áreas protegidas na política de planeamento urbano e territorial, que culminaria

na redacção do Civic Amenities Act de 1967, onde pela primeira vez a protecção patrimonial e o

planeamento urbano se juntam. Durante a preparação deste texto legal o Governo decidiu patrocinar a

realização de estudos-piloto (Conservation Studies) em Bath, Chester, Chichester e York.

Paralelamente a este processo o ministro criava o Preservation Policy Group, cujo objectivo era definir uma

política nacional de reabilitação. As acções deste Grupo centravam-se na recolha de informação

relativamente às experiências de reabilitação, obtidas inclusive pelo estudo de operações similares

realizadas em outros países. Simultaneamente, este gabinete coordenava os conservation studies que se

encontravam a decorrer, avaliando os seus resultados de modo a retirar soluções aplicáveis a um contexto

mais geral.

Tomando como exemplo o relatório York A Study in Conservation, podemos referir que, metodologicamente,

este estudos foram realizados tendo por base inquéritos individuais ao edificado e estudos de natureza

social. Os estudos revelam ainda uma natureza incipiente, sendo notória a predominância da caracterização

física sobre a social. Tal é demonstrado na cartografia funcionalista que sintetiza os estudos, em que a

maioria dos desenhos se referem à análise física dos imóveis e cuja única vaga aproximação social diz

respeito aos usos do edificado. A caracterização social é realizada em diversos apêndices, incluindo a

caracterização da tipologia social e os aspectos económicos e turísticos. É interessante referir que se nota

uma clara influência do conceito Towscape de Gordon Cullen, quer pela caracterização ambiental realizada

em apêndice, quer pelas inúmeras fotografias que ilustram todo o relatório, onde é notória a preocupação

de retratar pequenos momentos da vida urbana que, conjugados, dão identidade própria a uma cidade.

Relativamente aos estudos realizados, o relatório comporta os seguintes: a análise da morfologia e o

historial das intervenções urbanas que configuraram a cidade contemporânea; caracterização do contexto

regional da cidade; caracterização do edificado em termos funcionais (com especial incidência na sector

comercial, que se pretendia revitalizar), valor arquitectónico, época de edificação e estado de conservação;

estudos pormenorizados de tráfego no centro histórico (incluindo propostas de sentidos de trânsito,

estacionamento e pedestrianização); definição de prioridades e políticas de reabilitação; estudos de

pormenor (a cidade de York era dividida em oito sectores); análise dos custos e dos benefícios da

4 - Convém também lembrar que estas filosofias e metodologias de intervenção foram absorvidas em Portugal pela participação directa

de bolseiros da antiga Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização.

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intervenção; programa de realização e definição de políticas globais.

York A study in conservation – Cadastro e Estado de conservação do edificado (1968)

York A study in conservation – Fachadas de Low Petergate (1968)

De entre estes podemos destacar os estudos relativos às análises da morfologia urbana e do edificado,

assim como a caracterização do tráfego no centro histórico, muito semelhantes aos que hoje se realizam,

durabilidade que atesta o seu valor. No campo dos objectivos e propostas convém realçar a intenção de

revitalizar o comércio e reabilitar o edificado, de modo a tornar o centro atractivo.

O controle da qualidade arquitectónica dos novos edifícios a erguer na zona histórica de York, de modo a

manter uma elevada qualidade ambiental, era outro dos objectivos fundamentais propostos. A criação de

uma rede de circulações pedestres, onde a circulação automóvel fosse proibida ou fortemente restringida,

aparece também no campo das propostas. Tal não é de estranhar se tivermos em atenção que o Ministério

dos Transportes Britânico publica em 1963 um relatório sobre a separação das diferentes tipologias de

tráfego, onde esta filosofia de circulação urbana é desenvolvida de um modo sistemático. As sugestões

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contidas no Relatório Buchanan5 foram aplicadas em muitos projectos urbanos dos anos sessenta, entre os

quais se contam algumas new towns e o plano de ordenamento do centro de Liverpool (1966).

Em termos económicos o estudo desvaloriza o custo da operação, pondo a tónica na necessidade de

considerar a reabilitação como um longo processo de planeamento e acções integradas, que permitam a

conservação por oposição à correcção. Esta posição revela as verdadeiras características da filosofia de

intervenção britânica, onde o pragmatismo leva a que seja a experiência de intervenção in loco a ditar as

regras do planeamento, numa gestão em contínuo, no tempo, que auxilia e se conjuga com o processo

tradicional de planeamento.6

Estes relatórios iniciais entendidos como verdadeiros planos estratégicos, como já o referimos, deram

origem às correspondentes operações de reabilitação urbana, conduzidas pelos departamentos municipais

de planeamento urbano e traduzidas em Local Plans para as zonas definidas como prioritárias.

Paralelamente, a legislação britânica evoluiu no sentido de integrar as conservation areas nos processos de

planeamento urbano, restringindo ao mesmo tempo as possibilidades de demolição nestas zonas. Uma

política de financiamento, caracterizada pelos empréstimos às obras de reabilitação, públicas ou privadas,

permitiu que estas experiências evoluíssem com algum sucesso. Deste modo, considerava-se em 1978 ser

possível em Bath reabilitar os edifícios de qualidade num prazo de cinco anos, situação realmente

significativa nesta cidade onde imperam os edifícios históricos.

A transformação destes estudos em operações práticas não lhes retirou o seu carácter experimental, que foi

perpetuado pela publicação de outros relatórios nos anos setenta7 e por uma contínua discussão sobre os

resultados obtidos.

A validade destas propostas é reconhecida pelo Conselho da Europa em 1974-75, quando cidades como

Chester e Bath são escolhidas como Projectos Piloto Britânicos no âmbito do Ano Europeu do Património

Arquitectónico. Obtinha-se assim, não só o reconhecimento, como também a internacionalização destas

experiências, que ainda hoje são termos de referência nesta matéria, apesar de todas as vicissitudes que

qualquer experiência neste domínio sempre encerra.8

A Experiência Francesa

A Lei do dia 4 de Agosto de 19629, do Ministère des Affaires Culturelles, criou os secteurs sauvegardés

como foi referido. As características destas áreas são muitos semelhantes às das conservation areas, como

é possível verificar-se pela comparação já feita anteriormente, fazendo-se especial referência em ambos os

textos ao restauro, salvaguarda e valorização. Todavia, o texto francês vai mais longe ao permitir, na sua

5 - Cf. BUCHANAN, Colin D., The Traffic in Towns, Londres, 1963.

6 - Como já o referimos, esta metodologia aparece reflectida na situação portuguesa pela acção dos bolseiros da D.G.S.U., cuja acção

permitiu perpetuar estas filosofias e metodologias de intervenção até ao aparecimento dos primeiros planos de salvaguarda, realizados

também eles por arquitectos formados profissionalmente no sucedâneo desta instituição pública.

7 - Por exemplo Chester: Conservation Review Study, Chester, Chester City Council, 1976 e Saving Bath – A Programme for

Conservation, Bath, Bath City Council, 1978.

8 - Basta atentar que a experiência de Bath, hoje património mundial, é correntemente criticada por ter conduzido à musealização do

seu centro histórico.

9 - Loi 62.903, de 4 de Agosto de 1962.

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primeira regulamentação, a criação de uma figura de planeamento destinada a cumprir com os objectivos

da protecção do património urbano, consagrada com a denominação de Plano de Salvaguarda.

Como referido, a experiência inglesa revela-se essencialmente empírica, isto é, baseada na experiência

prática, num processo de tentativas que, pelo erro e pelo sucesso, permitem seguir um caminho evolutivo.

Ao contrário, a experiência francesa revela-se logo à partida normativa, definindo uma figura oficial de

planeamento, ainda que de um modo vago, o que permite a sua evolução e adaptação à realidade.

A Lei Malraux marca um ponto importante de viragem nas intervenções urbanas nos centros históricos em

França, pela introdução de uma política de reabilitação do edificado. O planeamento nos centros históricos

franceses já tinha começado nos anos trinta, com exemplos esporádicos e limitados como era o do bairro

parisiense de Le Marais. Posteriormente, as destruições provocadas pela IIª Guerra Mundial tinham

proporcionado várias abordagens à cidade existente, que, numa primeira fase corresponderam à construção

urgente de habitações na periferia, ignorando o centro, o que permitiu, depois dos anos 50, preparar as

operações de renovação ou de reabilitação imobiliárias nos centros. Verifica-se assim um gradual

deslocamento do interesse urbano da periferia para o centro, seguido das correspondentes políticas

urbanas. Todavia, em termos práticos, estas operações de «renovação» provocaram quase sempre a

deslocação dos habitantes para os subúrbios, operação essencial para garantir a valorização imobiliária.

Bourges – Delimitação do Secteur Sauvegardé

Nesta conjuntura interventiva, o aparecimento da Lei Malraux10 vem tentar suprir, entre outros, dois

problemas de base que então se verificavam em França: por um lado suster as operações de «renovação

urbana» ou reconstrução especulativa, como lhe quisermos chamar, que iam delapidando lentamente o

património urbano11; por outro, com a criação dos Planos de Salvaguarda, preconizava-se a elaboração de

normas de intervenção, aplicáveis a todos os centros históricos, tentando suprir as deficiências e dispersões

metodológicas que se faziam sentir nesta área.

A filosofia de classificação inerente à Lei de 1962, essencialmente historicista, não permitia ainda

10 - Em conjunto com a sua regulamentação efectuada pelo Décret 63-691, em 13 de Julho de 1963.

11 - A Lei objectiva fundamentalmente a salvaguarda do património monumental, permitindo que se continuem a realizar operações do

tipo que referenciámos.

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ultrapassar os problemas levantados pela reabilitação dos centros históricos, dando origem também ela a

duas situações distintas: a exclusão para a periferia dos habitantes dos secteurs sauvegardés12, que as

operações de reabilitação operavam, e a musealização dos centros urbanos, de que Carcassone é um

exemplo paradigmático.

Carcassonne – «A Vila Museu Medieval»

O já mencionado bairro de Le Marais pode ser apontado como um caso exemplar das dinâmicas geradas

pela delimitação dos secteurs sauvegardés. O 3è arrondissement Parisiense foi classificado em 1969 como

o primeiro destes sectores, constituindo-se mais uma vez como um caso paradigmático da experiência

francesa. Consequente à classificação, o bairro começa a ser abandonado pelos característicos artesãos

que o habitavam, vendo-se em seguida ocupado pela classe média, pelos artistas do espectáculo, pelo

comércio e por uma grande comunidade gay, que lhe transformaram completamente o tecido social.

Basicamente, pode-se considerar que os resultados obtidos com esta tipologia de zonamento cumprem com

os objectivos previstos, a preservação do ambiente criado pela moldura edificada, à custa do ambiente

social, cuja preservação estava ausente da filosofia da lei, perdendo-se assim a identidade do local

(conjugação do físico com o social).

Ainda assim, a criação destas áreas protegidas inaugurou a junção da política de habitação com a política

de salvaguarda do património, visto que, para fazer frente às operações de reabilitação que a delimitação

de tais áreas implicavam, tornou-se necessário alargar o seu âmbito para além da esfera cultural,

atendendo aos magros orçamentos que normalmente suportam as respectivas tutelas.

O carácter redutor que o estrito conceito de património urbano, inerente à Lei Malraux, produzia nas

intervenções de reabilitação urbana, cedo foi institucionalmente reconhecido, dando origem a acertos

publicados na primeira regulamentação da Lei em 13 de Julho 1963. Para além de ser criado oficialmente o

Plan Permanent de Sauvegarde et de Mise en Valeur, aplicável directa e exclusivamente aos secteurs

sauvegardés, o Decreto 63-691 encerra em si o despontar de um conceito de património urbano que

ultrapassa já a simples classificação museológica e estética. A criação de uma Commission Nationale des

12 - Quase sempre coincidentes com as zonas centrais das cidades, normalmente degradadas, situação esta também muito

semelhante à que se verificava com as conservation areas.

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Secteurs Sauvegardés, onde tinham assento representantes dos ministérios da cultura e do ordenamento

do território, representa uma primeira abordagem à definição de políticas conjuntas, assim como ao

entendimento do Plano de Salvaguarda como um instrumento de ordenamento territorial. Torna-se

necessário sublinhar que se trata apenas de uma abordagem, pois não só está ainda longe a completa

integração destes planos nas leis do urbanismo, como a estratégia turística da reabilitação é ainda

considerada determinante, como o demonstra a integração de um elemento afecto ao sector turístico na

constituição da referida organismo.

A ambiguidade ainda presente na Lei, entre património e urbanismo, uma constante nesta tipologia de

planeamento, é revelada na execução das operações a dois tempos. Numa primeira fase são delimitados os

sectores a salvaguardar, pela acção exclusiva do Ministério da Cultura, o que personifica ainda o

entendimento destes sectores como «cortes» precisos na cidade existente e independentes desta, o que

entra em contradição com a visão global que o ordenamento do território personifica. A Segunda fase do

processo diz respeito à elaboração do Plano de Salvaguarda respectivo, cuja autoria seria acometida a um

arquitecto directamente pela Câmara Municipal, com o acordo conjunto dos dois ministérios envolvidos na

citada Comissão Nacional. Continua assim a dar-se primazia à delimitação de ordem estético-turística.

Resumindo, podemos afirmar que, apesar de se incluir o Plano de Salvaguarda nos instrumentos de

planeamento urbanístico, na medida em que este se sobrepõe a qualquer outro em vigor para o local, a

intenção acaba por se centrar apenas na salvaguarda patrimonial, entendida como simples promoção

estética do edificado, enquadrando ambientes característicos, mas sem vertente social. A dissociação entre

as acções preconizadas nas duas fases do processo descritas, acaba por impedir tanto a celeridade, como

a eficácia do processo, de tal modo que em 1974, onze anos após a regulamentação destas operações, dos

54 sectores delimitados apenas 4 tinham o seu Plano aprovado.

A ausência de um sentido programático em todo este processo reflecte-se na própria estrutura do Plano de

Salvaguarda prevista, onde são incluídas análises que se debruçam do físico (morfologia urbana,

características do edificado, arqueologia) ao social (demografia, sociologia), dando corpo a inúmeros

volumes que acompanham e complementam o Plano. Todavia, apenas as características físicas do

edificado dão origem a sínteses cartográficas, onde são assinaladas as possibilidades de cada lote/imóvel

(a proteger, a reabilitar, a demolir ou a construir). Nesta medida, apenas ténues estratégias são delineadas

com o traçar de alinhamentos a cumprir, parques de estacionamento a criar e com a definição dos recursos

do subsolo. Os conteúdos do edificado são completamente ignorados nestas sínteses, quer quanto ao

carácter funcional, quer quanto à composição sociológica, sendo apenas mencionadas as actividades

comerciais a criar ou a conservar, dependentes de uma teoria de «animation urbaine»13, o que reforça a

ideia de que a reabilitação é essencialmente uma medida turístico-comercial.

Em 1970, reforçando a vertente normalizadora, são definidas as classificações do edificado e dos espaços

urbanos, uniformizando e oficializando a sua denominação em todos os Planos de Salvaguarda, obrigando,

inclusive, a reformular os entretanto terminados. Na nova regulamentação eram previstas quatro categorias

de imóveis, definidoras de diferentes tipologias de intervenção: a conservar; a proteger; a demolir tendo em

vista a sua salubrização ou valorização; passíveis de substituição ou de renovação. São igualmente

13 - Cf. FRANCK, Claude, Op. Cit., pp.5.

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previstas novas zonas: sectores de capacidade construtiva com regulamentos específicos, submetidos a

uma protecção especial ou expectantes de novos dados; os espaços verdes ou arborizados; as situações

de compromissos particulares já definidos. Em termos programáticos são localizados os lotes a ocupar com

serviços públicos, as instalações de interesse geral e os espaços livres públicos.

Bourges – Plan de Sauvegarde et de mise en valeur – Classificação do edificado (1965-69)

Pode-se assim verificar como estes Planos se tornam em instrumentos que regulam também a ocupação do

solo e, nesta medida, verdadeiras figuras do planeamento urbano. Há ainda que considerar o

enquadramento deste texto legal de 1970, que surge em simultâneo com a regulamentação dos primeiros

Planos de Ocupação do Solo franceses14.

Apesar desta evolução o Plan Permanent de Sauvegarde et de Mise en Valeur, continua a ser

essencialmente um instrumento de valorização patrimonial, onde o elemento social está ausente, assim

como ausentes estão as políticas globais de cidade.

Assim, o Plano de Salvaguarda de 1ª geração assume-se como um indefinido instrumento de planeamento,

mencionando políticas (sem nunca as definir concretamente), ignorando o conteúdo social dos centros

urbanos, limitando-se meramente ao contexto físico da cidade. Simultaneamente, fica inserido nos

instrumentos de planeamento urbano, sobrepondo-se a qualquer outro plano em vigor, ainda que

verticalmente superior. Tal situação é obviamente uma incongruência e um dos pontos fracos desta

tipologia de intervenção urbana. O Plano de Salvaguarda constitui-se assim como uma figura «estanque»

do urbanismo, dando expressão ao problema, ainda hoje actual, do entendimento da reabilitação dos

centros históricos como uma questão exclusiva da cultura (salvaguarda patrimonial), por oposição à

definição de uma estratégia urbana global.

Em termos operacionais, os Plans de Sauvegarde deram origem a duas tipologias genéricas de reabilitação:

14 - Note-se que os P.O.S. foram introduzidos na legislação francesa só em 1967, ou seja, são posteriores aos Planos de Salvaguarda

que, mesmo assim, se continuam a sobrepor a estes.

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as grandes operações de sectores ou quarteirões, de iniciativa pública, que se estendem também

pontualmente ao privado, quer por indução, quer por obrigação; as operações pontuais de reabilitação de

edifícios, onde a iniciativa tanto poderá caber aos privados, com créditos especificamente criados para o

efeito, como aos poderes públicos. A filosofia de intervenção, como já o referimos, consistia na valorização

estética de determinado período estilístico ou característica arquitectónica da zona delimitada,

assemelhando-se frequentemente a uma espécie de «folclore» arquitectónico.15

O facto de a iniciativa de criação dos secteurs sauvegardés e da elaboração dos respectivos planos ser do

poder central, contém em si uma situação de conflituosidade latente com as autoridades locais, onde se

situa o teatro de operações. É também com foco neste conflito que podemos entender a reduzida aplicação

dos Planos, cuja aprovação teria de passar por ambos os níveis do poder. De notar porém, que tal situação

nem sempre se poderá classificar de negativa porque, muitas vezes, a recusa municipal tem como base

uma intenção de prosseguir com as políticas de «renovação urbana», associadas ainda a um conceito

deturpado de desenvolvimento e modernidade.

Em 1983, vinte anos passados sobre a regulamentação da Lei Malraux, é aprovado um novo texto legal na

tentativa de resolver alguns dos problemas entretanto levantados pela aplicação prática dos documentos de

1962 e 63. Pela Lei de 7 de Janeiro são criadas as Zones de Protection du Patrimoine Architectural et

Urbain (Z.P.P.A.U.), abrangendo sectores mais vastos, de acordo com a revisão que se vinha operando no

conceito de património, tendente a englobar os conjuntos urbanos. De carácter e iniciativa regionalista,

dando portanto um passo no sentido da descentralização, esta nova figura não vem substituir os secteurs

sauvegardés, mas sim as zonas de protecção aos monumentos. No fundo, reconhece-se que, ainda que a

protecção do património continue a ser incumbência do Estado, não se pode ignorar a municipalidade na

sua gestão. Diferencia-se dos secteurs por não ter consequências em termos de planeamento, sendo assim

essencialmente um documento que impõe restrições à intervenção patrimonial e que se sobrepõe aos

Planos de Ocupação do Solo.

Paralelamente, esta evolução dos conceitos também se faz sentir na filosofia subjacente à delimitação dos

secteurs sauvegardés, cujas políticas evoluem. Nesta medida, passam agora a ser englobadas zonas

urbanas historicamente «mistas» e integradas no todo que é a cidade existente. Caminha-se também para a

descentralização, sendo a elaboração dos Planos de Salvaguarda concertada a nível local, com a

respectiva política urbana municipal e com os restantes níveis de planeamento. A descentralização, opção

política do Estado Francês nos anos oitenta, é acompanhada pela inserção dos Plans de Sauvegarde no

Code de l’Urbanisme de França. Completa-se assim a integração quer destes planos, quer dos Secteurs

Sauvegardés, nas políticas globais de ordenamento do território, como quaisquer outros plans d'occupation

des sols. O Plan de Sauveguarde et de Mise en Valeur perde também o carácter rígido, que se revelava na

anterior denominação de Permanent, sendo agora revisto periodicamente no sentido de se adaptar às

mutações constantes do organismo urbano, não perdendo porém a vertente normativa, característica

constante da experiência francesa.

15 - Nesta linha de actuação podemos mencionar o caso de Rouen, onde se expuseram diversas fachadas de travejamento em

madeira, como grande opção de planeamento museográfico. Situação idêntica havia já sido realizada na cidade alemã de Alsfeld,

seguindo as indicações do plano para o centro histórico realizado em 1966.

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Tal não só reflecte a evolução dos conceitos, mas também a permeabilidade que todos os sectores da

sociedade demonstraram no sentido de se adaptar às novas mutações sociais iniciadas nos anos sessenta.

A Experiência de Bolonha

Apesar de se assumir como a mais relevante e inovadora experiência dos anos setenta, o Plano de Bolonha

não se encontra isolado no contexto italiano. A filosofia de «conservação integrada», institucionalizada nos

textos finais do «Ano Europeu do Património Arquitectónico», tem a sua génese numa metodologia que

vinha a ser desenvolvida em Itália, onde os centros históricos, núcleos urbanos isolados pela expansão pós-

industrial, constituíam um quarto do património monumental e uma reserva cultural de valor incalculável. Um

tal volume de património urbano, impossível de ignorar em qualquer operação de natureza urbana, conduz

a um desenvolvimento metodológico preciso na abordagem urbanística a estes núcleos.

Como refere L. Benevolo, esta nova metodologia, derivada de várias fontes, é devedora em termos

operativos da “… aplicação ao património histórico dos estudos tipológicos característicos da primeira fase

da moderna investigação (…) tentada pela primeira vez por Saverio Muratori (1910-1973) (…).”16 Temos

obviamente que acrescentar a posição ímpar de Gustavo Giovannoni, que certamente contribuiu para uma

evolução dos conceitos e práticas de salvaguarda em Itália. A sua influência far-se-á sentir de um modo

subterrâneo17, já que, por motivos ideológicos18, a sua obra é sistematicamente escamoteada, sendo

reconhecido publicamente o seu valor só nos anos 90, através de diversos trabalhos académicos. Ainda

que de modo indirecto, a sua influência é agora bem visível, na medida em que as novas filosofias de

intervenção se aproximam bastante daquilo que este arquitecto romano tinha já tinha defendido nos anos

trinta.

As experiências levadas a cabo por algumas administrações municipais de cidades da Lombardia, da Emília

Romana e do Veneto, com centros fisicamente bem conservados, permitem desenvolver e aperfeiçoar esta

metodologia. São agora validados todos os elementos intervenientes na cidade histórica, físicos ou sociais,

o que permite o abandono gradual do conceito museográfico e monumentalista que até então tinha

orientado a maioria das políticas de salvaguarda.

Para além da consideração pelos habitantes do centro histórico, agora um dado incontornável, esta

metodologia fazia apelo à integração do centro histórico na totalidade do organismo urbano, cujos

problemas interdependentes teriam de ser analisados e resolvidos em conjunto. Esta filosofia opõe-se, entre

outras, à inerente aos secteurs sauvegardés, envolvidos por perímetros estanques, no interior dos quais se

procurava resolver problemas que eram globais e cuja resolução passava pela compreensão das

interacções territoriais. Nesta medida, também a situação italiana se constitui como um passo em frente no

16 - BENEVOLO, Leonardo, O Último Capítulo da Arquitectura Moderna, Lisboa, Edições 70, 1985, pp.160. Um dos seus discípulos, G.

F. Caniggia, foi o responsável entre 1968 e 1970 pelo Plano do Centro Histórico de Como.

17 - Apenas por pequenos episódios se sente a influência de Giovannoni, como seja a presença de um seu discípulo directo, Piero

Gazzola, na redacção da Carta de Veneza em 1964.

18 - A salvaguarda patrimonial acaba por adquirir também um carácter ideológico na medida em que foi utilizada pelos regimes

fascistas para fazer vingar a sua estratégia ultra-nacionalista. Assim, todos os vestígios a ela ligados são apagados no pós-guerra,

mesmo pelos mais eminentes teóricos italianos, como Zevi, Rossi ou Tafuri, que praticamente ignoraram Giovannoni.

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sentido da conservação integrada19.

A matéria edificada pré-existente é vista como um capital construído, infraestruturado, com identidade

própria e, por tudo isso, constituía também uma mais valia económica que era indispensável aproveitar.

Dentro deste princípio defendia-se a reutilização destes conjuntos edificados, adaptando-os segundo as

necessidades e os usos actuais; ou seja, desmistifica-se o carácter monumental do património integrando-o

na vida contemporânea. Por outro lado, as administrações públicas adquiriam também uma maior

consciência social. Suportadas por um eleitorado de esquerda saído das contestações sociais dos anos

sessenta, atreviam-se agora a quebrar a lógica do mercado imobiliário. Deste modo, às operações de

«renovação urbana», geradoras de grandes perturbações sociais (agora politicamente mais difíceis de

suportar), e às expansões periféricas, o poder público vai contrapor novas políticas nos centros urbanos,

obrigando os privados a alinhar nesta nova estratégia (facto a que não é também alheia a crise económica

então instalada).

Neste contexto, emerge a política urbana implementada em Bolonha, cuja conferência de 1974, integrada

na Campanha Europeia mencionada, permitiu a divulgação em larga escala.

O processo levado a cabo por esta cidade da Emília-Romana é indissociável do contexto ideológico que

rodeou a sua implementação. O crescente acumular de um eleitorado de esquerda nos finais dos anos

sessenta permite que subam ao poder municipal administrações socialistas e comunistas, adquirindo esta

cidade o epíteto de «vermelha». As mudanças em termos de política urbana depressa são visíveis,

produzindo uma inversão na habitual política expansionista, alimentada por um sistema baseado nos

valores económicos que o Estado, ao implantar equipamentos periféricos à estrutura urbana tradicional20,

ajudava a suportar.

Paralelamente a este processo político, assiste-se a uma «democratização» da gestão municipal que as

novas forças políticas dominantes vão delegar nos habitantes da cidade. Dentro deste princípio, são

definidos conteúdos programáticos e estratégias urbanas, numa escala crescente, que se estende do lote

ao território. Prosseguindo a política de reutilização do edificado, são definidos os usos possíveis para cada

edifício, conciliando os desejos privados com as necessidades públicas. Este processo dá origem à

celebração de contratos entre o município e os proprietários. A partir de 1964 as decisões municipais

passam a ser compartilhadas com os habitantes, organizados em Conselhos de Quarteirão, dando forma a

uma original filosofia de gestão directa dos problemas urbanos. Estes Conselhos definiam o programa de

desenvolvimento para o seu quarteirão, conjugando-o com a promoção do desenvolvimento equilibrado da

cidade, formada por um conjunto de 18 quarteirões. Estes órgãos definiam directamente as diversas

políticas urbanas (equipamentos, habitação, transportes, apoio social, etc.), em coordenação directa com as

Comissões municipais respectivas. Finalmente, alargando a escala a toda a cidade e a todos os cidadãos,

realizavam-se reuniões onde as grandes opções estratégicas eram discutidas ponderando todos os pontos

de vista e onde todos podiam intervir.

É esta estrutura organizativa que vai criticar e levar ao abandono do Esquema de Ordenamento elaborado

em 1958 onde, de acordo com a previsão e o incentivo a um grande crescimento populacional, se

19 - Também Giovannoni já tinha formulado teoria idêntica, assumindo-se uma vez mais como um percursor destas matérias.

20 - Onde a propriedade fundiária era mais facilmente expropriável ou de menos onerosa aquisição.

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projectavam ampliações urbanas periféricas apoiadas por um pólo terciário a Norte do centro da cidade21.

Passou-se então ao que se usou denominar de política de «crescimento zero», coadjuvada por uma

estratégia de retorno ao centro. Com esta atitude inédita Bolonha assumia-se também como um paradoxo

no desenvolvimento urbano das cidades. Quebrava-se assim com o enquadramento tradicional do

desenvolvimento urbano, que Bolonha se atrevia a questionar e subverter. Retiravam-se também os

preconceitos ideológicos à salvaguarda patrimonial, então uma atitude tradicional de «direita», introduzindo-

lhe a componente de reutilização social.22

A limitação ao crescimento da cidade originou também uma política de «democratização» territorial, ou seja,

evoluiu-se de um cenário regional polarizado em Bolonha, cujo crescimento seria realizado à custa dos

aglomerados vizinhos, para uma situação de equilíbrio, onde a estrutura envolvente, rural ou paisagística, é

tão importante como o sistema citadino.

Podemos encontrar aqui a génese de algumas políticas e filosofias de intervenção que são hoje

vulgarmente defendidas, como sejam «coesão social», «sustentabilidade» ou o termo mais amplo de

reabilitação que é a «regeneração urbana».

O início do processo que conduz a estas práticas urbanas experimentais está ligado ao assumir do cargo

municipal de Assessore all’edilizia publica por parte do arquitecto Pier Luigi Cervellati, que o ocupou entre

1965 e 1980. O Plano do Centro Histórico de Bolonha, iniciado em 1963, é então redireccionado de modo a

enquadrar as novas ideologias de intervenção. Os estudos e projectos, anteriormente realizados por ateliers

particulares de arquitectura, vão agora ser executados no interior dos departamentos públicos, num

processo de experimentação e aferição contínuas. Desta procura incessante de soluções, ao abrigo da

estrutura municipal, sobressaem os que se podem considerar como os primeiros arquitectos especialistas

nesta temática, Roberto Scannavini e Carlo De Angelis, que em conjunto com Cervellati implementaram as

políticas urbanas referidas23.

Metodologicamente, esta experiência assenta em rigorosos estudos de morfologia urbana e tipologia

arquitectónica, desenvolvidos no sentido de identificar a «adaptabilidade» do edificado aos usos

contemporâneos necessários. Estes estudos eram suportados por um inquérito, realizado directamente a

todos os edifícios, que dava origem a fichas individuais do edificado. A recuperação foi depois realizada

pela municipalidade, nos edifícios de excepção, espaços públicos ou operações de conjunto nos

quarteirões. As intervenções particulares eram efectuadas de acordo com a assinatura de uma

Convenzione24 negociada caso a caso com a estrutura municipal.

21 - Cujo projecto ainda chegou a ser elaborado por Kenzo Tange, arquitecto japonês de renome mundial, que o apresentou ao

Conselho Municipal em 1970. Com o desenvolvimento da nova política urbana o plano acabou por ser abandonado, tendo o Presidente

da Câmara da época, Guido Fanti, considerado que este se tratava apenas de uma base de trabalho, contornando desta forma esse

entrave à nova estratégia definida.

22 - É possível compreender assim melhor as acções de reabilitação do centro histórico Porto, levadas a cabo pelo C.R.U.A.R.B. a

partir de 1974, ou os textos escritos pelo arquitecto Nuno Portas no início dos anos oitenta.

23 - A estrutura municipal criada, assessoriada por P.L. Cervellatti e coordenada por R. Scannavini, era composta por quatro

arquitectos, quatro desenhadores, dois investigadores e uma secretária.

24 - Estes contratos assinados com a autarquia, normalmente com a duração de 20 a 25 anos, previam desde os empréstimos

bonificados a longo prazo, até ao apoio técnico municipal, passando pela definição de usos e limitações construtivas e/ou destrutivas.

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Estudos histórico/tipológicos do edificado – Bolonha

Também do ponto de vista jurídico e financeiro a operação de Bolonha se constitui uma novidade, na

medida em que reinterpreta leis existentes, até então utilizadas para expropriações e financiamento de

habitação social «nova» e que são agora e pela primeira vez canalizadas para a recuperação da cidade

existente. Paralelamente, incentivou-se a criação de pequenas cooperativas de artesãos especializados nas

técnicas construtivas tradicionais, com o triplo objectivo de fomentar o emprego, diminuir o preço da

construção e obviar à perca destas tecnologias25.

Em termos de práticos, para além das recuperações de inúmeros edifícios, públicos e privados, podem-se

ainda referir a política de socialização dos logradouros privados dos quarteirões, transformados em espaços

públicos para uso dos seus habitantes.26

25 - O cair em desuso das técnicas tradicionais é um dos factores que aumenta o custo da recuperação e da conservação. Em Portugal

também se tentou, amiúde, incentivar cursos de técnicas tradicionais de construção, com pouco sucesso, continuando a «ditadura» do

betão a ser dominante. Refira-se ainda que a estratégia de reabilitação das técnicas e actividades tradicionais foi também adoptada

pelo Conselho da Europa que, no seguimento directo da campanha de 1975, aprovou duas recomendações nesse sentido:

Recommandation Nº R(81) 13 – concernant les actions à entreprendre en faveur de certains métiers menacés de disparition dans le

cadre de l’activité artisanale (adoptada a 1 de Julho de 1981); Recommandation Nº R(86) 15 – relative à la promotion des métiers

artisanaux intervenant dans la conservation du patrimoine architectural (adoptada a 16 de Outubro de 1986). Cf. CONSEIL DE

L‟EUROPE, Recueil de textes fondamentaux du Conseil de l’Europe dans le domaine du patrimoine culturel, Estrasburgo, Conseil de

l‟Europe, 1997

26 - Sublinhamos particularmente esta tipologia de intervenção pela influência que directa na situação portuguesa, tendo sido aplicada

em Beja de acordo com a proposta do seu Plano Parcial de Urbanização do Centro Histórico, devedor directo na sua concepção

teórica da experiência de Bolonha.

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Reabilitação de conjunto habitacional no quarteirão San Léonardo – Bolonha

Largamente divulgada em toda a Europa, esta experiência chegou a Portugal essencialmente através da

obra Bologna, politica y metodologia del restauro27, onde Cervellati e Scannavini explicitam em detalhe

todos os contornos práticos e teóricos da operação.

A Experiência Portuguesa

Em Portugal, onde a Segunda Guerra Mundial não fez estragos físicos nas cidades e o processo de

industrialização foi tardio, se comparado com o resto da Europa, as mutações e intervenções na cidade

existente, histórica ou não, desenvolveram-se num processo muito mais lento. Ainda assim, as políticas

que, durante o final do século XIX e já durante o século XX, nortearam o desenvolvimento urbano,

causaram quase invariavelmente estragos nos tecidos urbanos pré-existentes.

Como vimos, emergem do contexto internacional três linhas experimentais que se vão complementar e dar

forma a várias operações de planeamento em Portugal: a experiência empírica inglesa, a normativa

francesa e o Plano de Bolonha, que permitiu consolidar internacionalmente a doutrina da «conservação

integrada».

A experiência efectiva de reabilitação urbana dos centros históricos, de acordo com os conceitos que

inicialmente explicitámos, só começa em Portugal após a revolução de 1974, com a experiência pontual do

CRUARB. A sua generalização acontece apenas nos anos 80, permitida pela sensibilização e discussão

teórica do tema e suportada pelo lançamento de normativas e programas de financiamento.

27 - CERVELLATI, Pier Luigi, SCANNAVINI, Roberto, Bologna, politica y metodologia del restauro, Bolonha, Ed, Il Mulino, 1973. Esta

obra foi divulgada em Portugal essencialmente pela versão Castelhana Bolonia - Política y metodologia de la restauracion de centros

historicos, Barcelona, Ed. Gustavo Gili, 1976, mas também na sua versão francesa La nouvelle culture urbaine - bologne face à son

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Anos 60 - Uma Nova Atitude

Entre 1955 e 1960 realizou-se em Portugal o «Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa», publicado pelo

Sindicato Nacional dos Arquitectos em 1961. Esta operação de «investigação disciplinar»28, como a

classifica M. Mendes, revela sem dúvida um outro olhar sobre um património, até então «menor», assim

como corporiza um sentimento de rotura com um movimento «internacionalista» defensor de uma

arquitectura descaracterizada, no sentido em que não tinha raízes no genius loci. Este trabalho permitiu

ainda dar a conhecer aos arquitectos formados no «modernismo» as soluções construtivas e plásticas da

arquitectura tradicional, que foram depois assimiladas e incorporadas na arquitectura contemporânea

portuguesa.

De notar que esta atitude é distinta da que criou o modelo «português suave», porquanto, não se tratava

aqui da criação de um estilo nacional, «pastiche», mas sim da incorporação/reinvenção das soluções

mencionadas, «verdadeiras», fruto de séculos de experiência na adaptação ao meio e à escala humana,

expressão de uma autêntica versão arquitectónica da «evolução das espécies» Darwiniana.

Paralelamente, também nas estruturas oficiais as mentalidades mudavam, ainda que essencialmente numa

perspectiva teórica e de investigação, com resultados práticos pouco visíveis.

O número de colóquios e de congressos realizado entre os anos 50 e 60, na sua maioria em Lisboa e

organizados pelo Ministério das Obras Públicas (M.O.P), através da Direcção-Geral dos Serviços de

Urbanização (D.G.S.U.), é revelador do debate institucional então empreendido.

Dando mostras desta evolução conceptual o Director-Geral dos Serviços de Urbanização – engenheiro

Macedo dos Santos – cria em Outubro de 1968 o Serviço de Defesa e Recuperação da Paisagem Urbana

(S.D.R.P.U.), cuja chefia foi atribuída ao arquitecto Joaquim Cabeça Padrão. Este serviço manteve-se até à

extinção da D.G.S.U., em 1976, constituindo-se como um centro de debate de novas práticas que, não

tendo consequências urbanísticas visíveis, não deixa de ser uma referência conceptual, estimulante e

formativa para outros técnicos e estagiários.

A consistência metodológica dos estudos realizados nesta Direcção-Geral não é de estranhar se tivermos

em atenção que os arquitectos que a integravam vinham já desde os anos 50 realizando estágios em

diversos países da Europa, com predominância na Inglaterra, onde a conservação de «centros históricos»

tinha já bases profundas. Não é pois também de estranhar que os estudos realizados em algumas cidades

Inglesas - Bath, Chester, York ou Chichester - no sentido da sua preservação patrimonial, tenham servido

de base aos primeiros estudos portugueses.

A escolha recaiu inicialmente sobre os arquitectos Manuel Laginha e Cabeça Padrão, que realizaram

estágios respectivamente em 1953 e 1959. Na primeira destas viagens, como bolseiro do Instituto de Alta

Cultura e do British Council, Manuel Laginha tem oportunidade de conhecer as experiências Inglesas,

Holandesas, Belgas e Francesas. Tendo permanecido nas grandes cidades e nas «New Towns» para

estudo e análise dos respectivos planos de Urbanização. O estágio do arquitecto Cabeça Padrão,

patrocinado pelos mesmos institutos, incidiu sobre a região Londrina onde, durante um ano, estudou as

patrimoine, Paris, Ed. du Seuil, 1981.

28 - Ibidem.

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questões levantadas pela temática «Preserving of Old City Areas in England and Scotland». Este arquitecto

repetiria um estágio idêntico em 1962, ano em que também o arquitecto Campos Matos beneficiaria de uma

visita de estudo a França, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Alemanha, Dinamarca, Suécia e Finlândia, onde

estudou as «New Towns» e os Novos Centros Cívicos.

Como resultado destas experiências surgiram alguns textos teóricos e realizaram-se alguns estudos

urbanos que visavam a temática da reabilitação e preservação urbanas.

Em termos de prática urbana, a equipa onde estavam inseridos Manuel Laginha e Campos Matos, realizou

sob a liderança de Cabeça Padrão o «Estudo de Prospecção e Defesa da Paisagem Urbana do Algarve»,

em 49 volumes, dos quais se concluíram 31 até 197029.

Estudo de Prospecção e Defesa da Paisagem Urbana do Algarve (Pera) - «zonas protecção» e «estado de conservação

do edificado»

Este estudo continha já em si um método de análise e levantamento da situação dos núcleos urbanos

históricos, baseado em fichas individuais para os edifícios e espaços públicos urbanos, que se viria a

revelar inspirador para os arquitectos que realizaram os primeiros «Planos de Salvaguarda» em Portugal.

Se compararmos o conteúdo e a terminologia usados nas fichas de inquérito verificamos que são muito

semelhantes às que hoje é usual usarem-se para inquéritos desta tipologia. Os resultados do inquérito eram

posteriormente cartografados lote a lote, metodologia seguida também actualmente. Com o objectivo de

divulgar este trabalho elaborou-se uma pequena publicação em inglês30, onde se explanavam a

metodologia e os objectivos deste estudo, utilizando-se como exemplo um excerto do levantamento da

localidade de Pera. Os estudos sociais não eram ainda contemplados no inquérito.

O investimento realizado na formação do pessoal técnico, permitindo-lhes contactar com as mais recentes

29 - Ibidem, p.43. 30 - PADRÃO, Joaquim Cabeça, Townscape, it’s classification, preservation and recuperation, Lisboa, D.G.S.U./S.D.R.P.U., s/data.

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práticas urbanas realizadas na Europa, foi fundamental para o desenvolvimento da preservação e

reabilitação urbanas em Portugal. Ainda que inicialmente esta não tenha tido resultados práticos

significativos, a aposta na formação acabaria por dar frutos nos anos 80, resultado do contacto havido

entres estes técnicos e os estagiários que com eles colaboraram, que se tornariam nos autores dos

primeiros Planos de Salvaguarda realizados em Portugal.

Anos 70 - O C.R.U.A.R.B.

Através do Decreto-Lei nº8/73 era previsto um novo instrumento de intervenção urbana com o objectivo de

renovar sectores urbanos sobreocupados ou com más condições de salubridade, solidez, estética ou

segurança contra risco de incêndio. Denomina-se Plano de Urbanização de Pormenor e a responsabilidade

da sua elaboração e execução era do Fundo de Fomento da Habitação ou das Câmaras Municipais. Estes

planos deveriam obedecer ao estabelecido no Decreto-Lei nº560/7131, de 17 de Dezembro, que criava a

figura do Plano de Pormenor na legislação Portuguesa.

As expectativas que este texto legal criou em termos de intervenção urbana nos centros históricos,

acrescidas com a referência ao Instituto da Renovação dos Sectores Urbanos cuja criação era prevista no

diploma básico do urbanismo em preparação na altura, não tiveram tempo para se concretizar, tão perto

que estava a revolução de Abril de 1974.

O novo Governo, pós revolução, prevê a nomeação de Comissários “... encarregues da missão de preparar

relatórios ou estudos de carácter legislativo e de coordenar acções de diferentes departamentos do Estado

e, no caso especial do Ministério da Administração Interna, da administração local.”32

Com base nesta situação de excepção é criado em 7 de Outubro de 1974 o Comissariado para a

Renovação Urbana da Área da Ribeira-Barredo (C.R.U.A.R.B.), também ele protagonista de uma situação

excepcional no panorama da intervenção urbana nos centros históricos portugueses. 33

Importa salientar, para além da dimensão inédita da operação, a independência do Comissário

relativamente ao poder municipal, o que permitia quebrar pequenos vícios e relações de interesse que todas

as operações de intervenção urbana desta natureza enfermam e que até aqui tinham impedido o sucesso

das operações anteriores que visavam acabar com a miséria e sobreocupação no centro histórico do Porto.

Em termos operativos o Comissariado vai basear a sua actuação num plano elaborado em 1969 pelo Grupo

de Trabalho criado no âmbito da Direcção dos Serviços de Habitação – Repartição de Construção de Casas

(Câmara Municipal do Porto), cuja orientação cabia ao arquitecto Fernando Távora.

Este arquitecto mais uma vez protagonizava uma operação inovadora na arquitectura e urbanismo

portugueses, levando a cabo um estudo que reconhecia esta área como sendo composta por todas as suas

características, quer físicas, quer sociais. Este estudo opõe-se ao Plano Director Municipal do Porto,

realizado sob a supervisão de Robert Auzelle, cuja proposta final é datada de 1962.

O urbanista francês tinha proposto um plano que se caracteriza essencialmente por aquilo que são as

operações de «renovação urbana». Neste sentido era prevista a demolição do interior de alguns

31 - Decreto-Lei nº560/71 de 17 de Dezembro, Diário do Governo nº295, 1ª Série, pp. 1921-1923. 32 - Decreto-Lei nº315/74 de 9 de Julho, Diário da República nº158, I Série, p.796. 33 - Despacho conjunto dos Ministérios da Administração Interna e do Equipamento Social e do Ambiente, Diário da República nº233, II Série, 7 de Outubro de 1974, p.6398.

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quarteirões, com a manutenção das fachadas de interesse turístico, sendo os seus habitantes deportados

para as periferias e para os bairros sociais. Cumpre-se assim com o que já tinha sido previsto para as

«ilhas», preconizando mais uma vez o planeamento por zonamento, aqui simultaneamente funcionalista e

classista. Onde era possível adaptavam-se as vias à circulação mecânica, racionalizando o tráfego,

reservando-se para a Zona Ribeirinha, em prol da salubridade, um processo de demolição sistemática para

dar lugar à construção de novos edifícios e estacionamentos.

O conceito de preservação que Auzelle defendia caracterizava-se assim por uma potenciação turística da

zona, renovando-a social e fisicamente mas mantendo na aparência um aspecto antigo, valorizando

economicamente a sua estrutura fundiária. Esta atitude só se destaca das típicas operações de «renovação

urbana» pela manutenção da fachada, porque na essência o objectivo é o mesmo, obter uma mais valia

económica terciarizando a zona, desprezando por completo a componente social existente. É de referir que

a terciarização dos nossos centros históricos, um dos seus maiores problemas por levar à desertificação, foi

levada a cabo por operações deste tipo, não em grande escala como previsto no Plano do Porto, mas sim

consentida pelos municípios na renovação edifício a edifício, mais discreta e tão eficaz como esta.

Procurando ultrapassar esta situação, Fernando Távora reconhece no «Relatório de 1969» o valor histórico

particular da zona designada por Ribeira e vai propor a sua salvaguarda com base num estudo piloto

realizado no Barredo. Vem a proceder à delimitação da área de intervenção, conjugando critérios de valor

histórico e de insalubridade, estabelecendo os limites que vigorarão até 1980.

Ao contrário da concepção anterior, o valor histórico integra aqui não só o espaço físico no seu conjunto,

mas também a comunidade que o habita e o impregna de significado. Assim, a execução desta proposta

traduzir-se-ia numa valorização da função residencial e sócio-cultural da zona, afirmando nesta medida a

salvaguarda da sua identidade cultural. Contudo, a excessiva ocupação dos edifícios não permite a

manutenção de todo o seu tecido social. Para obviar a este problema prevê-se a saída de parte da

população, segundo o critério da sua menor ligação à zona. Melhoravam-se deste modo as condições de

habitabilidade, na medida em que a manutenção da população estava subordinada à capacidade que os

edifícios podiam suportar. Esta proposta implicava a participação da população, prevendo-se que o

alojamento alternativo se verificasse em condições e local atenuantes deste movimento.

Este plano não foi aplicado pela Câmara Municipal do Porto, pois contrariava as expectativas de valorização

fundiária que uma operação menos preocupada pelo aspecto social poderia proporcionar.

Ao retirar da «gaveta» este estudo, o C.R.U.A.R.B. recolocava novamente o processo no campo da

«Reabilitação». A aplicação do estudo piloto realizado pela equipa de F. Távora permite que o

Comissariado comece a funcionar rapidamente após a sua criação. “Este mesmo projecto foi posteriormente

ajustado às novas concepções metodológicas numa sucessão de experiências fruto de discussões

sistemáticas em que intervieram diferentes técnicos. Ultrapassada uma fase em que os projectos de

recuperação de edifícios são entregues a gabinetes particulares de arquitectura como o de Álvaro Siza,

Rolando Torgo, Bernardo Ferrão e Francisco Guedes, o C.R.U.A.R.B. passa a possuir o seu Departamento

de Arquitectura.”34

Este organismo vai funcionar inicialmente com 30 funcionários, onde se incluem arquitectos, engenheiros,

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desenhadores, historiadores e técnicos do serviço social, numa verdadeira génese daquilo que, a partir dos

anos 80, seriam as experiências multidisciplinares dos Gabinetes Técnicos Locais35. Os arquitectos Viana

de Lima e Fernando Távora prestaram também consultadoria ao Comissariado.

Projecto de recuperação do Quarteirão QIII do Barredo (Porto) – Fernando Távora (1975)

Entre os anos de 1978 e 1980 assiste-se a um processo de «municipalização» marcado “... pelo

alheamento progressivo da intervenção do poder central e das organizações locais. Na medida em que se

reforça o poder local acentua-se na operação a tendência para a terciarização em detrimento da valorização

da sua identidade sócio-cultural, objectivo expresso do Relatório de 1969. Retoma-se assim o espírito do

Plano Director de 1962 na preservação, com funções turísticas, do valor histórico global da zona,

contemplando ao mesmo tempo parte das propostas contidas no Relatório de 1969 – a manutenção de

parte da população – resultando esta do movimento social proporcionado pelo 25 de Abril.”36

A municipalização da operação e a redução drástica do orçamento, acabaram por inviabilizá-la tal como

tinha sido inicialmente concebida, ou seja, uma experiência concertada entre vários níveis do poder, com

uma forte componentes social e com um carácter de entendimento global da zona e da cidade. Sem estas

bases de sustentação uma operação sistemática e com a escala abrangente que esta possuía nunca

poderia subsistir. De notar que uma operação de revitalização urbana com esta escala, e movimentando

avultadas verbas, só se voltou a verificar com a Expo‟98, em Lisboa, ainda que, obviamente, sejam

operações muito distintas e com objectivos muitos díspares.

Em termos operativos a actuação do C.R.U.A.R.B. pautou-se desde o início pela recuperação do edificado,

mantendo tanto quanto possível a sua estrutura interior, adaptando-a quando necessário, de modo a

proporcionar uma qualidade razoável de habitabilidade. Era uma actuação em que o projecto era realizado

edifício a edifício, integrado numa política global para o Centro Histórico. Não chegou porém a delinear-se

um instrumento de planeamento urbanístico específico para a operação. Como já foi referido seguia-se o

estudo do arquitecto Fernando Távora, sendo nítidas as influências conceptuais do Plano da Cidade Italiana

de Bolonha, onde já tinham sido levadas a cabo as políticas de recuperação e revitalização das

componentes físicas e humanas do centro histórico. Porém, ao contrário do que acontecia em Bolonha,

onde a reabilitação incidia essencialmente nos edifícios públicos, aqui realiza-se uma forte intervenção nas

34 - ESTEVES, José Luís Pereira, A Preservação dos Centros Históricos - Porto/Quito, Porto, F.A.U.P., 1989 - (policopiado - Seminário de Pré-Profissionalização - Tema IV), p. 59. 35 - Também no Porto funcionou um G.T.L., ao abrigo do Programa de Reabilitação Urbana. Coordenado pelo arquitecto António Moura, este gabinete representa essencialmente uma forma de diversificar as fontes de financiamento, nunca se chegando a sobrepor ao Comissariado.

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habitações privadas. Este facto implica fortes expropriações e tem como consequência tornar a Câmara do

Porto num dos grandes proprietários do centro histórico. Também nesta medida se inviabilizou a operação,

na medida em que sem um alargado suporte financeiro não é possível prosseguir com esta filosofia de

intervenção.

Anos 80 - As Primeiras Experiências de Salvaguarda

A década de 80 materializa e institucionaliza as transformações nas mentalidades que se vinham

verificando já desde a década de sessenta relativamente ao conceito cada vez mais alargado de património.

Passa-se sucessivamente de um conceito que abarca apenas o monumento passando posteriormente a

englobar o conjunto e o sítio. Alcança-se assim a actual concepção de «centro histórico» que,

gradualmente, passa de um conceito discutido apenas por alguns técnicos e eruditos para um sentir

colectivo que se institucionaliza, quer a nível central, quer a nível local.

“Os «centros históricos» foram eleitos como um dos problemas mais importantes das cidades dos anos 80.

É necessário mantê-los e revitalizá-los devido aos valores culturais que transportam. Estes testemunhos

vivos de épocas passadas são uma expressão da cultura e um dos fundamentos da identidade do grupo

social, vector indispensável face aos perigos da homogeneização e despersonalização que caracterizam a

civilização urbana contemporânea.”37

O lançamento em 1980 da «Campanha Europeia para o Renascimento da Cidade» assinala simbolicamente

a redescoberta da cidade e do seu «centro histórico». Assinala-se assim o entendimento destes como locais

onde era possível alcançar um nível elevado de qualidade de vida, a que hoje se chama «urbanidade»,

sendo por isso indispensável a sua revitalização.

Esta Campanha foi acompanhada e gerida em Portugal pelo M.H.O.P., através do estabelecimento de 2

Projectos de Demonstração, pela implementação de políticas de reabilitação em algumas cidades

portuguesas, assim como pela realização de campanhas de divulgação38. Ainda que os tempos políticos

agitados e a falta de meios financeiros tenham determinado uma campanha «low-profile», a sensibilização

para a problemática da qualidade urbana, em geral, e para a reabilitação dos centros históricos, em

particular, é minimamente conseguida, permitindo evoluir para uma nova direcção nas políticas da cidade,

em especial pelas de iniciativa municipal. O acompanhamento próximo das teorias de

«renovação/reabilitação» dos centros urbanos que o Poder Central vinha realizando desde os anos 60

permite-lhe agora assimilar com relativa rapidez as transformações dos conceitos e das práticas

contemporâneas.

Em 1976 a Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização dá lugar à do Planeamento Urbanístico (D.G.P.U.).

Nesta última integra-se a Divisão de Estudos de Renovação Urbana (D.E.R.U.), herdeira directa do Serviço

de Defesa e Recuperação da Paisagem Urbana. Vários técnicos destes serviços privaram de perto com a

dinâmica que os bolseiros no estrangeiro trouxeram para o interior da instituição. É com este grupo que se

realizam as primeiras experiências de planeamento em «centros históricos», com tipologias de intervenção

36 - MEIRELES, Miguel, ROCHA, Cristina, TEIXEIRA, Isabel, SOUSA, Virgínia, «Ribeira-Barredo, operação de „renovação urbana‟», in Sociedade e Território, nº2, Fevereiro de 1985, Porto, Ed. Afrontamento, p.66. 37 - SALGUEIRO, Teresa Barata, A Cidade em Portugal – Uma Geografia Urbana, Porto, Ed. Afrontamento, 1992, p.392.

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muito próximas do que hoje se entende por um Plano de Salvaguarda e Valorização, em que o objectivo da

reabilitação social acompanha a do edificado.

Estudo de Preservação e Renovação Urbana de Ponte do Lima – D.G.P.U. (1979-82)

Em 12 de Outubro de 1979 o presidente da Câmara Municipal de Ponte de Lima solicita à D.G.P.U. a

elaboração de um «Estudo de Preservação e Renovação Urbana»39. O processo foi então iniciado por

aquela Direcção-Geral que o remeteu para elaboração à Direcção dos Serviços de Estruturação Urbana

(D.S.E.U.), onde se inseria a D.E.R.U., a quem ficou acometida a responsabilidade operativa da tarefa.

Parece-nos assim possível estabelecer uma linha de evolução metodológica, iniciada nos estágios

realizados pelos arquitectos da D.G.S.U. nos anos 50/60 a vários países da Europa, em particular na

Inglaterra, a cujas experiências se juntam as teorias de intervenção propostas para a cidade de Bolonha,

que o contexto político do pós 25 de Abril permitiu. Tal como já foi referido, este estudo Italiano serviu

também de base metodológica para as intervenções realizadas na 1ª fase do C.R.U.A.R.B., introduzindo,

com um forte cariz ideológico, a questão social no planeamento urbano dos centros históricos.

No mês de Dezembro de 1981 este estudo é considerado «Projecto de Demonstração Português», no

âmbito da «Campanha Europeia para o Renascimento das Cidades».

Paralelamente a este trabalho, realizou-se o Plano de Salvaguarda e Recuperação do Centro Histórico de

Beja, também ele Projecto de Demonstração em 1981. Este estudo foi entregue ao Atelier Cidade Aberta,

que contava com elementos que também pontuavam na equipa do plano de Ponte do Lima.

Estes dois estudos pioneiros, a par com as influências metodológicas referidas, constituem a base

bibliográfica dos primeiros Planos de Salvaguarda realizados em Portugal, em especial os de Arouca e

Ponte da Barca. A iniciativa de elaboração deste último estudo partiu também de uma entidade

governamental, a Direcção-Geral do Equipamento Regional e Urbano (D.G.E.R.U.), por cuja iniciativa se

realizaram vários estudos nesta matéria, nomeadamente o de Caminha.

A década de 80 conhece também um multiplicar de conferências, seminários e encontros, onde as políticas

38 - Foi publicada uma brochura da responsabilidade da D.G.P.U, Campanha Europeia para a Renascença da Cidade – uma vida melhor numa cidade melhor, Lisboa, D.G.P.U.-D.G.D., 1981. 39 - D.G.P.U., Ponte do Lima – Estudo de Preservação e Renovação Urbana, Lisboa, D.G.P.U., 1984.

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de reabilitação dos centros urbanos e da salvaguarda do património são abordadas e discutidas. Como

escreve o arquitecto Nuno Portas em 1981: “o ano em curso foi instituído pelo Conselho da Europa como

sendo o ano do renascimento dos centros urbanos. Tal facto leva ao inevitável aparecimento de reflexões,

debates e tentativas de definição de soluções por parte das mais variadas entidades não só em Portugal

mas também em todo o velho continente.”40

A reabilitação dos núcleos urbanos antigos é assim colocada no campo das preocupações políticas, ao

mesmo tempo que se desmistificava ou, pelo menos, se tentava desmistificar a sua carga ideológica. Em

1985, o segundo número da revista Sociedade e Território é dedicado significativamente à «cidade

existente», onde o arquitecto Nuno Portas, num texto intitulado «Notas sobre a intervenção na cidade

existente»41, desenvolve precisamente este conceito.

O emergente interesse por esta temática, iniciada com a discussão a propósito dos centros históricos, é

atribuída por Nuno Portas, numa síntese brilhante, à confluência de quatro linhas vectoriais: a ampliação do

conceito de património; a tomada de consciência pelo poder local da importância do «stock» construído,

para além do seu eventual valor monumental; a componente humana, pela emergência de movimentos

sociais nos bairros históricos que se opunham à «erradicação» dos seus habitantes; “a crise de conceitos e

receitas na arquitectura urbana face à decepção com os resultados das novas urbanizações dos anos 60,

que leva os profissionais a aprender a cidade, a valorizar sequências de espaços públicos bem

identificáveis, animados pela mistura de actividades e gerações.”42

Este autor apontava já aqui, premonitoriamente, soluções que hoje o urbanismo começa cada vez mais a

seguir. A crise que actualmente se faz sentir ao nível dos seus instrumentos tradicionais de intervenção,

com base quase exclusiva nos planos, e que é já apontada pela quase generalidade dos interventores na

actividade, leva a que se procure diversificar as soluções, materializadas em estudos e acções muito mais

amplas e maleáveis, resultado de conhecimentos multi e interdisciplinares.

As duas linhas de força apontadas neste texto, programação e actuação de pormenor, são certamente cada

vez mais válidas para a intervenção ao nível do «centro urbano antigo», conjugadas com estas novas

políticas de intervenção e gestão urbanas.

Os Planos de Salvaguarda e Valorização

Quando se iniciaram as primeiras experiências de planeamento nos centros históricos, ainda a figura de

Plano de Salvaguarda não estava prevista em nenhum texto legal Português. Tal vazio legal explica a

«odisseia» de 10 anos pela qual passou o Plano de Salvaguarda do Centro Histórico de Beja na sua

tramitação pela D.G.P.U.

Apesar de não previstos legalmente, as referências internacionais forneciam o método, como já o referimos.

40 - PORTAS, Nuno, «Velhos Centros Vida Nova», Destacável nº6, pp. 1, in Cadernos Municipais, n.º 12, Ano 3, Algés, Fundação Antero de Quental, Maio 1981. Este texto seria também publicado pelo Museu Machado de Castro, em Coimbra, na sequência da conferência proferida por Portas em 27 de Maio de 1981, inserida no Programa «Coimbra Antiga e a Vivificação dos Centros Históricos». 41 - PORTAS, Nuno, «Notas sobre a intervenção na cidade existente», in Sociedade e Território, nº2, Porto, Edições Afrontamento, Fevereiro 1985, pp.8-13. 42 - Ibidem, p.9.

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A Lei Malraux, famoso texto legislativo francês redigido em 196243, foi de uma influência decisiva para a

redacção da Lei do Património Cultural Português, vinda à luz no ano de 1985.44

Esta Lei criou pela primeira vez em Portugal a figura do Plano de Salvaguarda: “No prazo de 180 dias,

contados a partir da comunicação de determinação da classificação, prorrogável por iguais períodos,

elaborar-se-ão planos de salvaguarda de responsabilidade central, regional ou local, consoante os casos e

as regras de competência.” Determina-se ainda que “todos os planos de ordenamento territorial,

nomeadamente os de urbanização, deverão considerar e tratar de maneira especial o património cultural

existente na sua área, quer se trate de imóveis classificados quer de imóveis em vias de classificação,

propondo medidas de valorização em todos os casos.”45 De notar que esta tipologia de plano se destinava a

ser aplicada nas áreas delimitadas pelas diversas hierarquias de poder - nacional e local – e que se

destinavam a proteger os conjuntos e os sítios. Frequentemente este conceito é confundido com a Zona

Especial de Protecção aos imóveis classificados, non aedificandi, que era automaticamente aplicada, num

raio de 50 m, aquando da classificação do monumento, regra perpetuada da legislação dos anos 30. A

evolução dos conceitos rapidamente levou, nos centros urbanos, a que a ideia de conjunto fosse alargada a

todo o centro histórico.

Porém, tal instrumento de salvaguarda e valorização urbanística nunca foi regulamentado legalmente.

Apenas a Secretária de Estado da Cultura emitiu um Despacho, em 1988, obrigando o então I.P.P.C. a

regulamentar esta tipologia de Plano, “... tendo em conta a sua necessária compatibilização com os

regulamentos dos planos municipais de pormenor, em preparação na Secretaria de Estado da

Administração Local e do Ordenamento do Território, e a necessária articulação de políticas entre as duas

Secretarias de Estado no domínio do património construído.”46

É de notar neste texto, de alguma sensibilidade, rara entre legisladores, a tónica colocada na atitude

pedagógica de elaborar Planos para salvaguardar, dando o exemplo com qualidade, de modo a obter um

efeito gerador de dinâmicas de reabilitação. O conceito de património a salvaguardar pelo Plano sofreu

também aqui uma evolução, utilizando-se agora expressões como «conjuntos», «regras» para o

desenvolvimento das «zonas» e, acima de tudo, dos «raros ambientes arquitectónicos», ao invés da

redutora «zona de protecção do imóvel». Não será também alheio a esta evolução o facto de o Plano de

Salvaguarda do centro histórico de Beja se encontrar aprovado à 2 anos e se encontrarem outros planos em

elaboração, estando assim também o Poder Central a acertar o passo com a realidade do País, que o tinha

claramente ultrapassado.

A necessidade da regulamentação dos Planos de Salvaguarda era sublinhada por várias entidades com

responsabilidade na matéria, como sejam o I.P.P.C. e o L.N.E.C., assim como era também reivindicação

obrigatória nos inúmeros encontros que se realizaram na época sobre o tema.

43 - Esta Lei criou pela primeira vez a figura do Plan Permanent de Sauvegarde et de Mise en Valeur, aplicável aos Secteurs Sauvegardés. De referir que os ingleses possuíam já um conceito semelhante de protecção patrimonial por zonamento, as Conservation Areas, ainda que não existisse nenhuma figura de planeamento que se lhes aplicasse. 44 - Lei n.º 13/85 de 6 de Julho, Diário da República n.º 153, Iª Série, pp.1865-1874. 45 - Ibidem, p.1868.

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Plano de Salvaguarda e Valorização de Ajuda/Belém – IPPC/CML (1988)

Na sequência desta necessidade sentida na sociedade assim como nos poderes local e central e

instituições tutelares, é realizado o Plano de Salvaguarda e Valorização de Ajuda/Belém, de iniciativa

conjunta do I.P.P.C. e Câmara Municipal de Lisboa, que, de certo modo, personifica uma primeira

experiência oficial nesta tipologia de planeamento.

O carácter experimental deste plano fica bem patente na necessidade de realizar diversas sessões de

trabalho em várias fases dos estudos, onde, para além da equipa do plano, participaram técnicos da

Direcção-Geral do Ordenamento do Território (D.G.O.T.)47, do I.P.P.C., Administração do Porto de Lisboa

(A.P.L.), Ministério das Obras Públicas (M.O.P.), Câmara Municipal de Lisboa (C.M.L.), assim como a

intervenção pontual de um grupo de técnicos da Associação Internacional de Urbanistas e de outros

técnicos portugueses.

Apesar das boas intenções da S.E.C., nem o I.P.P.C. elaborou nenhuma proposta de regulamento, nem o

aludido diploma em preparação pela S.E.A.L.O.T., publicado 2 anos após o despacho de 1988, o faz.

O Decreto-Lei 69/90 de 2 de Março, que regulamentou o planeamento urbano em Portugal, especificava

laconicamente que “os planos de salvaguarda e valorização para as zonas de protecção de imóveis ou

conjuntos classificados, previstos na Lei nº13/85, de 6 de Julho, serão objecto de regulamentação

especial.”48

As razões do abandono da regulamentação dos Planos de Salvaguarda têm de ser procuradas entre os

critérios de natureza política, ou seja, na falta de vontade da mesma. A regulamentação dos planos, com a

sua consequente generalização como instrumento usual de intervenção nos centros históricos, iria colidir

com interesses instituídos que, tal como acontece ainda hoje, preferem uma actuação mais «livre» nestas

áreas. Por outro lado, a estrutura prevista para a sua elaboração necessitava de meios avultados, na

medida em que era necessário proceder a inventários patrimoniais e inquéritos de vária índole, o que

46 - Despacho 45/88 do Gabinete do Secretário de Estado da Cultura, Diário da República nº108, IIª Série, 10 de Maio de 1988, p.4201. 47 - Que entretanto tinha substituído a Direcção-Geral do Planeamento Urbanístico. 48 - «Decreto-Lei nº 60/90, de 2 de Março, Artigo 2º, nº2» in CORREIA, Fernando Alves, Direito do Urbanismo (Legislação Básica), Coimbra, Livraria Almedina, 1998, pp.155.

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desencorajava a iniciativa da sua elaboração por parte do poder municipal, habituada a um investimento

mais burocrático e menos oneroso nestas matérias. Assim, na ausência da iniciativa local a

responsabilidade recaía no I.P.P.C., a quem tal investimento também não agradaria, quer por falta de

recursos, quer por estar vocacionado para a intervenção pontual em edifícios (tal como acontece hoje com o

I.P.P.A.R.).

Apesar desta situação ambígua, a valorização e salvaguarda patrimonial começaram a transformar-se em

objectivos de alguns municípios49, que elaboraram planos para os seus centros históricos baseados na

legislação existente. Até 1990, ano em que foi aprovado o Decreto-Lei nº69/90, estes eram aprovados como

Planos Parciais de Urbanização, tal como acontece com o de Beja, ou como Planos de Pormenor, como

acontece em Arouca e Ponte da Barca. Obviamente que tal ausência de regulamentação tem como

consequência uma elaboração casual e uma apreciação aleatória, que pode causar, como já o referimos,

verdadeiras «odisseias».

Mais recente, o Decreto-Lei nº 380/9950 que estabelece o regime jurídico dos instrumentos de gestão

territorial, cria a figura do Plano de Conservação, Recuperação ou Renovação do Edificado, versão

simplificada do Plano de Pormenor. Contudo, como se pode atestar pelo título, não é claro o seu objectivo,

não sendo assim possível classificá-lo como um substituto do Plano de Salvaguarda.

Os Gabinetes Técnicos Locais

Paralelamente às primeiras experiências de planeamento em centros históricos, é lançado em 1985 o

Programa de Reabilitação Urbana (P.R.U.), que vem adicionar a esta temática uma nova vertente. É criado

pelo Despacho nº4/85 da responsabilidade do Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, onde se

afirma que “a política de habitação não pode deixar de considerar a conservação e condições de utilização

do parque já construído, a par da produção de habitação nova. Esta preocupação justifica-se não só tendo

em vista a racional utilização dos recursos mas também tendo em conta os objectivos do bom

funcionamento das estruturas urbanas, posto em causa por intervenções e processos de crescimento

demasiado grandes ou rápidos, de que não se conhecem à partida todas as consequências, de modo a

evitar sempre que possível a ruptura social causada pela alteração inorgânica do ambiente tradicional de

vastas populações urbanas.”51

Concretiza-se aqui uma mudança na filosofia de intervenção dos programas de financiamento, já que,

passa-se da intervenção no imóvel isolado para a Reabilitação Urbana. Um outro aspecto a salientar

prende-se com o focalizar conceptual da área urbana de intervenção que, gradualmente, se começava a

identificar com os centros urbanos. Tal como afirmava o arquitecto Nuno Portas nesse mesmo ano52, se a

reflexão tinha partido do debate sobre os centros históricos, iniciada nos anos 70 e princípios de 80, é agora

a estes centros que se retorna. Estes não são mais identificados com o simples repositório de estruturas

monumentais, mas sim com o centro urbano da «cidade existente», em todas as suas componentes. Nesta

medida coloca-se em jogo a dualidade Salvaguarda do Património/Planeamento e Gestão Urbanística. Tal

49 - Assiste-se à criação, por parte dos municípios, de pelouros dedicados à reabilitação urbana ou de gabinetes do património, num atestar deste crescente interesse. 50 - Decreto-Lei nº 381/99, de 22 de Setembro, Diário da República nº 222, 1º Série. 51 - Despacho nº4/SEHU/85, Diário da República nº29, IIª Série, 4 de Fevereiro de 1985, p.1158.

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não deixa de ser significativo se tivermos em atenção que cinco meses após o aparecimento deste

Despacho era também publicada a Lei do Património, onde pela primeira vez é referenciada a figura do

Plano de Salvaguarda e Valorização.

Contudo a principal contribuição do P.R.U. acaba por ser a criação dos Gabinetes Técnicos Locais

(G.T.L.‟s), cuja constituição era financiada pelo Programa, em alternativa à componente de financiamento

de obras.

Assim, não só os G.T.L.‟s se instituíam como interventores directos do planeamento e gestão, isto é,

encurtando o binómio espaço-tempo entre a concepção e a prática urbana, mas também, ao afirmarem-se

como uma prática local, aumentavam as hipóteses de sucesso, porquanto intervinham directamente com

todos os actores em cena nesta complexa peça que é a cidade.

Dos Gabinetes que funcionaram nesta primeira vaga vários foram os que elaboraram Planos para a área de

intervenção proposta, frequentemente coincidente com o Centro Histórico, porém, apenas 2 se

«assumiram» oficialmente como Planos de Salvaguarda, os de Arouca e Figueiró dos Vinhos. Torna-se

necessário referir que o Despacho nº4/SEHU/85 estipulava que os Gabinetes Técnicos Locais, a funcionar

na dependência das respectivas câmaras municipais, deveriam elaborar projectos de reabilitação de

espaços públicos comuns e de recuperação de edifícios, caso fosse necessário, não se definindo, porém, a

tipologia do planeamento a efectuar. Com a assinatura do último Contrato realizado ao abrigo deste

Programa, o de Viseu em 1987, “... corrigiu-se uma lacuna: passou a ser obrigatório a existência de Plano

de Pormenor da Área a Reabilitar.”53

Globalmente podemos considerar que, não tendo sido de grande envergadura as operações realizadas, ou

seja, não tendo logrado inverter a degradação crescente nos centros urbanos, conseguiu-se criar uma

dinâmica municipal de reabilitação54, ao mesmo tempo que se mudavam lentamente as mentalidades.

Apesar da insuficiência de resultados, a validade da experiência foi reconhecida, sendo por duas vezes

reformulado o Programa ao abrigo do qual se constituem os Gabinetes Técnicos Locais, que a partir de

1988 se passa a denominar por Programa de Recuperação de Áreas Urbanas Degradadas (P.R.A.U.D.).

Este Programa reveste-se ainda de uma componente pedagógica, na medida em que se pretendeu, com a

criação dos Gabinetes, gerar dinâmicas locais de reabilitação, o que é paradoxal se atendermos a que dois

anos não conseguem responder a este objectivo. Sendo operações que só obtêm resultados ao fim de

algum tempo, a que os dois anos não conseguem dar resposta, a sua visibilidade é assim habitualmente

reduzida. Deste modo, os resultados obtidos podem frequentemente ser confundidos com um fracasso.

Assim, se alguns municípios têm capacidade técnica e financeira para reconhecer isto, integrando nos seus

quadros o pessoal do G.T.L. e continuando com os Programas iniciados, outros, por falta dessas mesmas

capacidades (por vezes a técnica, por vezes a financeira e por vezes ambas), acabam por liquidar

abruptamente todo um trabalho iniciado dois anos antes.

52 - PORTAS, Nuno, «Notas sobre a intervenção na cidade existente», in Op. Cit., pp.8-13. 53 - AAVV, «Historial e Trabalho GTL‟s», in Jornal Arquitectos, nº59, Ano 6, Lisboa, Associação dos Arquitectos Portugueses, Julho 1987, p.17. 54 - Muitos dos técnicos dos GTL´s foram integrados nos quadros das autarquias, que criaram assim departamentos para o centro histórico, permitindo a continuidade do trabalho realizado após o encerramento dos respectivos Gabinetes. Foi também publicado um diploma legal que previa e enquadrava exactamente esta situação.

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Ao virar da década realiza-se uma nova reformulação do P.R.A.U.D., através do Despacho nº23/9055, da

autoria do S.E.A.L.O.T. No essencial, tudo permanece, desde a filosofia de intervenção até à tipologia de

financiamento dos G.T.L.‟s e ao seu campo e prazo de actuação.

Reflexão sobre a Situação Actual

Com a substituição do Decreto-Lei 69/90 pelo actual diploma que rege os instrumentos de ordenamento do

território (Decreto-Lei 380/99), desapareceu a figura do Plano de Salvaguarda e Valorização. São criadas as

novas figuras do Plano de Pormenor simplificado, onde eventualmente se poderá vislumbrar uma tipologia

aplicável aos centros históricos. Referimo-nos ao «Plano de conservação, recuperação ou renovação do

edificado», que na revisão entretanto ocorrida do DL 380/99 (DL 310/2003, de 10 de Dezembro), se passou

a denominar de «Plano de conservação, reconstrução e reabilitação urbana», especificando-se que é

aplicável a zonas históricas e ACRRU.

Estas últimas, criadas pela Lei dos solos de 1970, têm sido aproveitadas para realizar delimitações não

oficiais de centros históricos, na medida em que, para além de em Portugal os centros históricos

corresponderem habitualmente a zonas degradas, este instrumento permite ainda agilizar expropriações.

Assim, recorrendo à base de dados da DGOTDU, podemos de uma forma rápida verificar que estas ACRRU

têm sido maioritariamente aplicadas em centros históricos (69%), como se pode verificar no gráfico

seguinte.

Fonte: DGOTDU 2003 (universo de 68 ACRRU)

Apesar de se poder inferir pela legislação mencionada que possivelmente esta tipologia será directamente

aplicável em centros históricos, não temos nenhum outro indício que nos confirme isso mesmo. A

regulamentação ainda não foi efectuada, como é aliás hábito, e o seu conteúdo não é ainda conhecido. Não

55 - Despacho nº23/90 do S.E.A.L.O.T., Diário da República nº269, IIª Série, 21 de Novembro de 1990, pp.12699-12700.

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podemos assim saber se houve alguma investigação que determine procedimentos específicos para esta

tipologia de instrumento de gestão territorial, que possa responder às especificidades dos centros históricos.

O conteúdo previsto na actual legislação é genérico e mesmo os anteprojectos de regulamentação a que foi

possível ter acesso, não especificam metodologias de elaboração que possamos mencionar como sendo

específicas de centros históricos. Refere-se aliás que “nas modalidades simplificadas o conteúdo pode ser

ajustado em função das especificidades de cada Plano”.

Esta constatação é pertinente se fizermos a comparação com o anteprojecto de regulamentação de uma

outra tipologia de Plano de Pormenor simplificado, o «Projecto de intervenção em espaço rural», que pelo

grau de pormenor na sua regulamentação e metodologia de elaboração especificada, revela um esforço de

investigação específico para este instrumento de ordenamento e gestão territorial.

Paralelamente a nova Lei de Bases do Património Cultural (Lei 107/2001), volta a mencionar a necessidade

de elaborar «Planos de Pormenor de Salvaguarda», da responsabilidade dos municípios e serviços

regionais competentes, para as áreas de protecção aos monumentos. Refere-se ainda a possibilidade de

elaboração de um plano integrado, que actue no sector específico da salvaguarda do património cultural,

onde já existam instrumentos de gestão territorial com eficácia. É também definido, para além dos aspectos

já mencionados na restante legislação, que o conteúdo destes planos deverá contemplar uma série de

pontos que não merecem relevância por não terem um grau de pormenor que permita vislumbrar alguma

aplicabilidade metodológica aos centros históricos. Como se percebe pelo mencionado, a visão deste Plano

de Pormenor de Salvaguarda apresenta um recuo conceptual, na medida em que é previsto apenas para a

área a proteger, decorrente do acto de classificação de Monumentos, conjuntos ou sítios. É possível aplicar

este Plano a Centros Históricos, se a área classificada for coincidente (como é o caso do Centro Histórico

do Porto ou da Baixa Pombalina) e nesse sentido podemos considerar que existe abertura e maleabilidade

para a sua aplicação a estas áreas. Contudo, a sua generalização será a das comuns «Zonas de

Protecção» ou «Zonas Especiais de Protecção». Por outro lado cria-se uma figura que não tem

correspondência na legislação do sistema de gestão territorial, criando mais uma vez uma fractura entre

planeamento e salvaguarda.

O que se pode deduzir do acima escrito, na sequência do que já havia sido anteriormente mencionado a

propósito da historiografia do Plano de Salvaguarda em Portugal, continua-se num estado de confusão

generalizado, quer legislativo, quer metodológico.

A atestá-lo podemos referir o modo como se denominam os Planos que têm incidência específica nos

centros Históricos e que são registados na DGOTDU. Em Maio de 2000 estes eram registados como Planos

de Urbanização de Reabilitação Urbana (P.U.R.U.) ou Planos de Pormenor de Reabilitação Urbana

(P.P.R.U.), por exclusiva responsabilidade daquela Direcção Geral, já que esta tipologia não existia na

legislação em vigor. Encontravam-se nessa data aprovados 33 planos nestas condições, dos quais apenas

6 eram considerados como P.U.R.U.56

Em Outubro de 2003, a confusão era ainda maior, na medida em que a DGOTDU apresentava uma série de

denominações para os planos com incidência nos centros históricos, unidos agora todos pela tipologia do

VIII ENCONTRO NACIONAL DOS MUNICÍPIOS COM CENTRO HISTÓRICO Centros Históricos e Planos Municipais de Ordenamento do Território Porto, 24 de Outubro de 2003

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Plano de Pormenor. Do total de 45 Planos identificados (7 Planos de Urbanização; 38 Planos de Pormenor),

as denominações são as seguintes:

- Planos de Pormenor (genéricos)

- Plano de Pormenor do Centro histórico

- Plano de Pormenor de Revitalização

- Plano de Pormenor de Recuperação

- Plano de Pormenor da Zona Histórica

- Plano de Pormenor da Zona mais antiga

- Plano de Pormenor de Reabilitação Urbana

- Plano de Pormenor da Área Urbana Degradada

- Plano de Pormenor de Salvaguarda e Valorização

Fonte: DGOTDU 2003 (universo de 615 Planos de Pormenor)

Só um estudo muito mais vasto poderia fazer um ponto exacto da situação actual em termos de reabilitação

urbana de centros históricos em Portugal. Ainda assim, pensamos que a visão aqui expressa é já suficiente

para compreender o seu momento actual, que se caracteriza essencialmente pela falta de clareza no

processo de intervenção nos centros históricos, em particular, e na cidade existente, em geral.

Por outro lado, continuamos na expectativa sobre o futuro da tipologia do Plano de Pormenor simplificado,

já que poderia configurar um modelo mais «leve» de gestão territorial, em confronto com os já existentes

que não respondem com celeridade às mudanças do território. Tal situação é por demais importante,

porque neste momento o grande desafio é o da gestão é não o do ordenamento, no que respeita aos

centros históricos em Portugal.

56 - Estes planos são os de Beja, Penela e Lisboa (P.U. do Núcleo Histórico da Mouraria, P.U. do Núcleo Histórico da Madragoa, P.U. do Núcleo Histórico de Alfama e Colina do Castelo, P.U. do Núcleo Histórico do Bairro Alto e Bica).