piseque e negritude

Upload: alisson-batista

Post on 30-Oct-2015

55 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 124618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:49 Page 1

  • 5 Elementos - Instituto de Educao e Pesquisa AmbientalAo Educativa - Assessoria Pesquisa e InformaoANDI - Agncia de Notcias dos Direitos da InfnciaAshoka - Empreendedores SociaisCedac - Centro de Educao e Documentao para Ao ComunitriaCENPEC - Centro de Estudos e Pesquisas em Educao, Cultura e Ao ComunitriaConectas - Direitos HumanosFundao Abrinq pelos Direitos da Criana e do AdolescenteImprensa Oficial do Estado de So PauloInstituto KuanzaISA - Instituto SocioambientalMidiativa - Centro Brasileiro de Mdia para Crianas eAdolescentes

    Conselho Editorial

    Comit Editorial Antonio Eleilson Leite - Ao EducativaAmabile Mansutti - CENPECDenise Conselheiro - ConectasFranoise Otondo - AshokaHubert Alqures - Imprensa OficialLiegen Clemmyl Rodrigues - Imprensa OficialLuiz Alvaro Salles Aguiar de Menezes - Imprensa OficialMaria Angela Leal Rudge - CENPECMaria de Ftima Assumpo - CedacMaria Ins Zanchetta - ISAMonica Pilz Borba - 5 ElementosRosane da Silva Borges - Instituto KuanzaVera Lucia Wey - Imprensa Oficial

    24618001 miolo:Layout 1 08.07.08 09:24 Page 2

  • OS EFEITOS PSICOSSOCIAISDO RACISMO

    O que havia de mais difcil nas naes antigas era modificar a lei;

    nas modernas, modificar os costumes e,

    para ns, a dificuldade real comea onde a antiguidade

    a via terminar... A lei pode destruir a servido;

    mas...(como) fazer desaparecer as suas marcas (?).

    Alxis de Tocqueville (1805-1859) A Democracia na Amrica.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:49 Page 3

  • Diretor-presidente

    Diretor Industrial Diretor Financeiro

    Diretora de Gesto de Negcios

    Hubert Alqures

    Teiji TomiokaClodoaldo PelissioniLucia Maria Dal Medico

    INSTITUTO AMMA PSIQUE E NEGRITUDE

    Diretora-presidenteDiretora Administrativa

    Diretora Financeira

    Maria Lcia da SilvaMaria de Lourdes Arajo AlmudiFabiane da Silva Reginaldo

    IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SO PAULO

    Governador Jos Serra

    GOVERNO DO ESTADODE SO PAULO

    24618001 miolo:Layout 1 18.07.08 09:00 Page 4

  • OS EFEITOS PSICOSSOCIAISDO RACISMO

    So Paulo, 2008

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:49 Page 5

  • SUMRIO09 PALAVRAS INICIAIS

    12 APRESENTAO INSTITUCIONAL

    14 POR QUE DISCUTIR OS EFEITOS PSICOSSOCIAIS DO RACISMO?

    16 A FORMAO E O MTODO

    6

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 6

  • 22 O CONTO E A HISTRIA

    29 A EDUCAO

    38 O OLHAR

    47 O CORPO

    57 A DOMINAO

    72 IMPACTOS

    74 GLOSSRIO

    78 PARA SABER MAIS

    79 PARTICIPANTES, FORMADORES,FACILITADORAS

    83 APOIOS

    7

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 7

  • 24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 8

  • 9PALAVRASINICIAIS

    A suposta inferioridade do negro e a crena na supremacia de um

    grupo sobre outro foram sustentadas pela cincia do sculo XIX, com

    o intuito de justificar a escravizao de negros.

    O perodo escravagista foi marcado pela forma animalizada e coisifi-

    cada como o africano era tratado , uma estratgia que resultou na

    construo de uma imagem desumanizada do negro, e na desconstru-

    o de sua identidade.

    Outra herana da escravizao o conjunto de atributos destinado ao

    negro, que permanece vivo e atuante no inconsciente coletivo. A sua

    excluso do processo produtivo, aps a abolio, promoveu uma situa-

    o social na qual foram reforados estigmas e esteretipos tais como:

    incompetentes, preguiosos e indolentes, malandros, sujos, margi-

    nais.... Essas representaes, mediadoras das relaes intertnico-

    raciais, mantm e reproduzem o racismo.

    Os sentimentos de inferioridade e de no pertencimento categoria

    de humanos nefastos efeitos do racismo so responsveis pelo

    acometimento sade psquica da populao negra.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 9

  • 10

    neste cenrio e com estas reflexes que o Instituto AMMA Psique e

    Negritude constata que as leis antidiscriminatrias, embora de funda-

    mental importncia para a democracia racial, no conseguiriam, por

    si s, eliminar o preconceito, pois para tanto tambm necessrio

    intervir em crenas e valores de longa existncia.

    Assim, desde sua fundao, o Instituto AMMA tem por desafio inves-

    tigar a dimenso psicolgica do racismo atravs de uma abordagem

    psicossocial e buscar compreender a dinmica dos mecanismos discri-

    minatrios que fazem perpetuar as desigualdades tnico-raciais.

    A partir de reflexes e experincias, o Instituto AMMA desenhou

    uma proposta piloto de formao sobre "Os Efeitos Psicossociais do

    Racismo", voltada para educadores, psiclogos, trabalhadores da rea

    da sade em geral e militantes do movimento negro.

    Este projeto foi realizado em 2004, em So Paulo, com o objetivo

    principal de desenvolver habilidades para a elaborao dos sentidos

    do racismo inscritos na psique. Sentidos estes que no so apreendi-

    dos completamente na luta poltica contra a discriminao racial,

    devendo ser enfrentados tanto politicamente quanto psicologicamen-

    te. As marcas emocionais, causadas por uma discriminao continua-

    da, exigem estratgias de defesa e, ao mesmo tempo, recursos inter-

    nos para ir adiante.

    Todos sabem das peculiaridades do racismo brasileira um racismo

    sem racistas. A pessoa negra conhece a discriminao desde seus pri-

    meiros anos de vida, sem que nunca o outro lado se declare. Quando

    perguntamos para a maioria dos brasileiros: Voc racista? A res-

    posta invarivel : No..

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 10

  • 11

    As instituies pblicas tambm se declaram no-racistas, universalis-

    tas. No entanto, no o que experimenta a criana negra, por exem-

    plo, na escola. Para ela, a escola pode tornar-se num espao de exclu-

    so. O contexto, sua volta, muitas vezes, reproduz experincias de

    rebaixamento concorrendo para o enfraquecimento da auto-estima e

    para o desencorajamento. Alguns fatos relacionados a isso incluem a

    maneira pela qual a histria do povo negro brasileiro foi, tradicional-

    mente, contada; a forma pela qual o negro representado nos livros

    didticos e na mdia (submisso ou coadjuvante); os apelidos postos

    pelos coleginhas brancos: macaco, piche, cabelo ruim, entre outros.

    A longa exposio s situaes de desvalorizao causa efeitos mlti-

    plos de dor, angstia, insegurana, auto-censura, rigidez, alienao,

    negao da prpria natureza e outros, deixando marcas profundas na

    psique. Como lidar com essa realidade? Como proteger a sade ps-

    quica? Como estabelecer o dilogo entre as populaes cultural e feno-

    tipicamente diferentes? Como ampliar as aes de polticas pblicas

    para a superao do massacre psicolgico sofrido pela populao

    negra?

    Grandes perguntas que s podem ser respondidas com determinao e

    com muito trabalho. A Formao sobre "Os Efeitos Psicossociais do

    Racismo" parte desde trabalho.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 11

  • 12

    APRESENTAOINSTITUCIONAL

    ORIGEMO Instituto AMMA Psique e Negritude uma organizao no-governamental que foi criada, em 1995, por um grupo de psic-logas1 com o objetivo de trabalhar as complexas relaes inter-tnico-raciais, em especial as relaes entre populaes fenotipi-camente diferentes, por meio de uma abordagem psicossocial.Por entenderem que muitas das representaes que habitam oimaginrio brasileiro foram constitudas a partir de idias racis-tas, de certa poca, e que continuam a se reproduzir, ao longodo tempo, causando srias conseqncias sade psquica dapopulao negra, optou-se por um trabalho visando resgatar aauto-estima da populao negra e promover a conscientizaosobre os efeitos do racismo para a sociedade.

    MISSOElaborao das conseqncias do racismo introjetado.

    ESTRATGIAEstimular o Dilogo entre populaes cultural e fenotipicamentediferentes.

    REAS DE ATUAODireitos Humanos, Sade, Educao, Psicologia.

    ATIVIDADES Oficinas de sensibilizao para o reconhecimento do racismoinstitucional;

    Ciclos formativos sobre os efeitos psicossociais do racismo;

    Assessoria para grupos, instituies, organizaes governamen-tais e no-governamentais; bem como para profissionais dasreas de sade e educao;

    Grupos de discusso e de vivncia temticos;

    Orientao Familiar;

    Produo de conhecimento.

    1 Ana Maria Silva, Maria Lcia da Silva, Marilza de Souza Martins, Silvia de Souza

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 12

  • 13

    AMMA

    Deus AMMA - esprito

    fecundador, verbo original,

    inaugurador de todas as

    coisas - simbolizado por

    um pote envolvo por uma

    espiral de cobre vermelho

    em trs voltas.

    Para ns, do Instituto

    AMMA, a espiral um

    smbolo muito especial.

    Ela representa um

    crescimento sem deformar

    sua base original. Crescer

    sem destruir a prpria

    essncia nos parece a

    grande lio da espiral.

    CONSELHO DIRETIVO

    Ana Clara Demarchi Bellan

    Elisabeth Belizrio

    Fabiane da Silva Reginaldo

    Jussara Dias

    Mrcia Ferreira Meireles

    Maria de Lourdes Arajo Almudi

    Maria Letcia Puglisi Munhoz

    Maria Lcia da Silva

    Marilza de Souza Martins

    Regina Maria Ferreira de Oliveira

    Rosa Maria Alves de Almeida

    REPRESENTAESComit Tcnico de Sade da Populao Negra. SecretariaEstadual da Sade. So Paulo.

    PARCERIASAshoka Empreendimento Social

    Fundo ngela Borba

    Global Fund for Women

    Hospital Geral de So Mateus

    Instituto de Anlise Bioenergtica de So Paulo

    Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitrio

    Instituto Papai

    PRMIO, MENESPrmio Franz de Castro Hotzwarth de Direitos Humanos oferecido pela Ordem dos Advogados do Brasil - OAB - Seo So Paulo, na categoria Meno Honrosa, em 2006.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 13

  • 14

    Entrevista com Maria Lcia da Silva, Presidenta do Instituto AMMA Psique e Negritude

    Maria Lcia - As conquistas do Movimento Social Afro-brasileiro, no mbito da

    legislao e das aes polticas, no tm sido suficientes para as mudanas

    necessrias das relaes intertnico-raciais do pas. Por exemplo, o debate sobre

    as aes afirmativas, embora respaldado pela demonstrao das precrias condi-

    es materiais de existncia da populao negra, no tem sensibilizado a socie-

    dade a ponto de legitimar a sua aplicao enquanto instrumento de superao

    das desigualdades, que perpetuam h sculos, provocadas pelo racismo.

    POR QUE DISCUTIR OS EFEITOS PSICOSSOCIAISDO RACISMO?

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 14

  • 15

    As aes afirmativas no se popularizaram?

    Maria Lcia - Ainda no. Temos assistido frequentemente a manifestaes queevidenciam a resistncia da sociedade em relao s aes afirmativas. H umdiscurso que responsabiliza os negros por eventuais retrocessos e que caracterizaas aes afirmativas como um racismo s avessas. Tambm notvel que maiorconscincia e maior conhecimento da realidade, por parte de setores da popula-o negra, no so suficientes para desconstruir o discurso racista. Esta situaonos leva a buscar outras dimenses do conhecimento, para a compreenso daperpetuao das prticas discriminatrias.

    Como a compreenso da dimenso subjetiva do racismo pode ajudar?

    Maria Lcia - necessrio saber que as relaes entre brancos e negros estopermeadas por representaes que precisam sair do plano latente e vir para oplano da conscincia. Isto tambm significa que aes envolvendo a dimensosubjetiva do racismo precisam ser introduzidas na pauta do Movimento Negro,descortinando o impacto da imagem que brancos e negros tm de si e do outro.Essas imagens manifestam-se por meio de atitudes, brincadeiras, chacotas, des-respeitos, humilhaes. As aes que praticamos no cotidiano esto mediadaspor fatores subjetivos que, na maioria das vezes, desconhecemos. Levar em con-siderao este aspecto ser um passo importante para comearmos a compreen-der de que lugar se fala. A idia trabalhar a conexo entre percepo, senti-mento, ao. Tal conexo poder facilitar a busca de sadas mais satisfatrias.

    Quais os objetivos principais da Formao?

    Maria Lcia - A formao os efeitos psicossociais do racismo parte de umaproposta mais ampla que visa elaborao do racismo introjetado atravs deuma abordagem psicossocial, com vistas a favorecer o estabelecimento de novosparmetros de convivncia. Esperamos tambm, a partir da formao, criar umarede de interlocutores na rea de sade mental e educao.

    uma formao s para pessoas negras?

    Maria Lcia - No. Um dos princpios fundamentais da nossa atuao o est-mulo ao dilogo intertnico-racial.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 15

  • A FORMAOE O MTODO

    A formao sobre Os Efeitos Psicossociais do Racismo foidesenvolvida em mdulos no formato de woorkshop residen-cial e de oficinas, totalizando 120 horas de atividades, das quais80 horas foram presenciais e 40 horas foram dedicadas a trabalho de investigao.

    A experincia buscou sensibilizar e habilitar os participantes paraavaliar e monitorar suas prticas cotidianas, no que diz respeitoao enfrentamento da discriminao racial. Tal medida faz partede uma estratgia para a desconstruo do racismo introjetadoe, conseqentemente, para a superao dos efeitos do racismona dimenso psquica dos indivduos.

    A metodologia contemplou exposies dialogadas, dinmicas degrupo, expresso corporal e grfica, tudo partindo, na maioriadas vezes, da realidade dos participantes.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 16

  • OBJETIVOS ESPECFICOS Possibilitar aos participantes a apropriao de suas vivncias deexcluso, de emoes e efeitos gerados pelo racismo e prticasdiscriminatrias;

    Subsidiar os participantes na construo e implementao deaes para resoluo de conflitos intertnico-raciais vivenciadosem seu cotidiano pessoal e profissional;

    Fortalecer a auto-estima dos participantes por meio da identifi-cao de recursos pessoais e profissionais disponveis para lidarcom os efeitos psicolgicos do racismo.

    PRESSUPOSTOS TERICOS EMETODOLGICOS As estratgias de transferncia de conhecimentos, por meioda concepo interdisciplinar, privilegiando as reas de psicolo-gia, psicanlise, sociologia, histria e educao.

    O acolhimento das emoes dos participantes e a escutaatenta sobre suas vivncias de humilhao e excluso.

    O grupo como espao privilegiado de apropriao de vivn-cias de excluso e a construo coletiva de um saber sobre si esobre o outro.

    A auto-observao e o registro de situaes de discrimina-o vivenciadas e/ou testemunhadas atravs das interaessociais, ou de veculos de comunicao.

    O educador enquanto sujeito privilegiado para desencadearprocessos de mudana de atitude.

    A prtica da investigao sobre as representaes de negros ebrancos no imaginrio social.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 17

  • ESTRUTURA DOS WOORKSHOPS EDAS OFICINAS

    As aes formativas foram previstas visando assegurar a amplia-o da conscincia dos participantes acerca de suas experincias,no exerccio de sua identidade tnico-racial. Esforos foram fei-tos para conjugar informao e vivncia, apropriao e compar-tilhamento de lembranas, emoes e percepes.

    O desafio foi lanado, e para trabalhar os contedos que possi-bilitassem o reconhecimento de preconceitos e esteretiposracistas que habitam o imaginrio social, estruturamos as ofici-nas em seis momentos: aquecimento; jogos interativos eexpresso grfica; fundamentao terica; trabalhos dirigidos degrupo e individual; identificao e prtica; avaliao e monitora-mento.

    (1) AQUECIMENTO

    O aquecimento consiste em aes destinadas a identificar aenergia grupal (o clima) e preparao dos participantes paraque se encontrem nas melhores condies possveis para ocontato consigo e com o outro.

    Ao iniciar o grupo, atravs de uma atividade comum, busca-seque cada integrante expresse seu estado de nimo, uma estra-tgia para diminuir os estados de tenso e promover a interao.

    So vrios os recursos a serem utilizados, optamos por priorizaro corpo, tendo em vista a sua funo de ncora das emoes, eo fato de ser moldado pelas circunstncias histricas e sociaisdos indivduos.

    A expresso corporal ajuda cada integrante a encontrar seuritmo interno, evidencia conflitos e pode indicar situaes temi-das ou problemas de difcil abordagem. E, ainda, contribui paradesenvolver a auto-percepo e o auto-conhecimento, na medi-da em que coloca o sujeito constantemente em contato consigomesmo, exercitando-o a identificar e a compreender os efeitosdas diferentes discriminaes vividas (por raa/etnia, gnero,orientao sexual, condio social, religio, etc.).

    (2) JOGOS INTERATIVOS E EXPRESSO GRFICA

    Os jogos interativos so utilizados em vrios momentos do desenvolvimento das oficinas atendendo a mltiplos propsitos:intensificar a proximidade entre os participantes; ampliar a per-cepo de si e do outro; exercitar a busca de consenso; identifi-car similaridades e divergncias de vises; estimular a empatiaatravs da inverso de papis; explorar diferentes possibilidadesde resoluo de conflitos intertnico-raciais.

    18

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 18

  • Ainda na fase de integrao, os jogos interativos auxiliam nolevantamento de expectativas e receios, e na construo coletivade acordos de convivncia e funcionamento do grupo.

    As tcnicas de criatividade e desbloqueio contribuem para a ela-borao de contedos emocionais emergentes e preparam osujeito para uma melhor recepo de informaes conceituais.

    (3) FUNDAMENTAO TERICA

    As informaes histricas, a cincia poltica e os dados scio-econmicos a partir do recorte tnico-racial so fundamentaisno processo de desconstruo do racismo introjetado e desuperao de seus males mentais.

    Temrio desenvolvido:

    Histria da criana e do adolescente negros no Brasil.

    Educao e Cultura: os desafios de um educador para aincluso social.

    Racismo e Psiquismo: impactos no desenvolvimento psi-colgico da criana e do adolescente.

    Humilhao Poltica: dominao e angstia.

    Corpo Real e Corpo Simblico representao e auto-representao.

    Auto-estima: preconceitos e esteretipos.

    O contedo desenvolvido em cada tema apresentado logoadiante nesta publicao, atravs de entrevistas realizadas comos formadores.

    (4) TRABALHOS DIRIGIDOS DE GRUPO E INDIVIDUAL

    Os trabalhos dirigidos de grupo so realizados aps cada expo-sio terica ou utilizao de recurso udio-visual. Atravs deroteiros ou consignas pr-elaborados os participantes so esti-mulados a correlacionar a informao recebida com a sua reali-dade pessoal e profissional. E tambm so incentivados a criarespao para relatar e escutar as experincias de discriminaoque marcaram sua trajetria. Como exemplo, podemos observaradiante o resultado de uma reflexo sobre o papel da escola nocontexto tnico-racial (ver pginas 34 a 37).

    Os trabalhos dirigidos individuais consistem num conjunto deprocedimentos que visam habituar o sujeito, em situao de dis-criminao, a identificar seus sentimentos; dimensionar oimpacto emocional; interpretar suas reaes; monitorar o seugrau de satisfao com as atitudes tomadas.

    19

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 19

  • Compartilharemos a seguir alguns instrumentos utilizadosdurante a formao para desenvolver auto-conhecimento eauto-percepo:

    CADERNO DE BORDO

    Inspirado no Caderno de Viagem2 , um instrumento de registro das reflexes a partir de pensamentos, sentimentos,emoes, sensaes corporais e aes, surgidas frente a situaes de discriminao vivenciadas, lidas ou ouvidas.

    O caderno de bordo ajuda na resignificao das experinciasde racismo e promove mudanas de atitudes e novas habilida-des para o enfrentamento de situaes de discriminao.

    20

    AS SITUAES DEDISCRIMINAO

    vividas ou presenciadas(o fato)

    O CONTEXTO (local/circunstncia/

    envolvidos)

    OS SENTIMENTOS

    IDENTIFICADOS

    AS REAES TIDASNA SITUAO

    MONITORAMENTO: em que medida se teriauma reao diferente a

    daquele momento?

    2 Yasbec, Vnia C. Refletindo em Contextos de Formao. In Novos Paradigmas em Mediao. Dora Fied Schnitman e Stephen Littlejohn (organizadores).ARTMED Editora, Porto Alegre, 1999.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 20

  • APRIMORANDO A AUTO-PERCEPO

    Atravs de conceitos como esteretipo e preconceito, o exerccioprope uma reflexo sobre a diversidade dos grupos sociais e oreconhecimento dos prprios preconceitos (ver pginas 53 a 56).

    (5) IDENTIFICAO E PRTICA

    Foi prevista uma carga horria para atividades extra-curso com ointuito de:

    Criar condies para aplicao da aprendizagem;

    Aprimorar a escuta e o olhar em relao ao impacto doracismo nas aes pessoais e profissionais;

    Ampliar o auto-conhecimento atravs de exerccios coti-dianos de auto-observao;

    Identificar o significado das questes trabalhadas nocaderno de bordo.

    Os participantes realizaram um trabalho de investigao sobrerepresentaes sociais, especificamente sobre os atributos dis-pensados a negros e brancos. Dois dos trabalhos realizadosesto descritos nesta publicao (ver pginas 45 a 46).

    (6) AVALIAO E MONITORAMENTO

    Atravs de tcnicas de associao livre investigam-se emoes,sentimentos e opinies no incio e final de cada atividade. Aidentificao do impacto emocional das atividades constitui-senum importante treino.

    No final da formao os integrantes do grupo, atravs de expres-so grfica, traaram uma linha do tempo indicando descober-tas, e mudanas no seu desenvolvimento geradas pela participa-o desta experincia.

    Aps alguns meses do trmino da formao foi realizada umaavaliao para estimular os participantes ao monitoramentoconstante (ver pginas 72 a 73).

    Passaremos a seguir ao bloco de entrevistas com os formadores.

    21

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 21

  • 22

    Desde crianas, aprendemos que o povo brasileiro formou-se apartir da contribuio de trs raas-etnias: os indgenas, os euro-peus e os africanos. Tambm vivenciamos uma fenomenal mis-cigenao, a ponto de ser impossvel eleger o tipo brasileiro.Muito diferente, por exemplo, do tipo alemo ou do tipo bolivia-no. Na verdade, no temos um tipo, e sim uma caudalosa diver-sidade tnico-racial.

    Tudo lindo! No fosse a histria de como essas trs etnias secolocaram dentro do pas. Os europeus, encarnados em portu-gueses, chegaram para conquistar, dominar, explorar. Os indge-nas, antes os donos da terra, foram exterminados ou expulsospara o interior. Dos sculos XVI ao XIX, os africanos foram trazi-dos como escravos para servirem no eito, no leito, no leite, nalavoura, na casa, no campo e na cidade.

    Tanto indgenas quanto africanos empreenderam uma luta semfim contra a tirania. Mas apenas no sculo XX, as histrias deresistncias e de vitrias comearam a ser contadas pela histriaoficial. Foi, tambm, nas ltimas dcadas do sculo XX, que achamada abolio da escravatura, ocorrida em 1888, comeou aser problematizada. Afinal, que abolio foi esta que vem man-tendo negros e negras do Brasil nos piores ndices de qualidadede vida? Que abolio foi esta que mantm as mulheres negrasna base da pirmide socioeconmica, e os jovens negros emsituaes vulnerveis?

    Assistimos ao desmoronamento de um dos maiores mitos dahistria do Brasil: a democracia racial. A condio de vida denegros e negras tornou-se uma das importantes pautas da vidanacional. Graas aos esforos do movimento negro sustentadopor organizaes mistas e de mulheres compreendeu-se queenquanto o Brasil no resolver a profunda desigualdade entrenegros e brancos, ele no ser uma democracia digna do nome.

    O que est na ordem do dia a procura de formas de inclusoda populao negra nos benefcios socioeconmicos da socieda-de brasileira. Isso tem a ver com o acesso moradia com sanea-mento bsico, sade com eqidade, educao com qualida-de, imagem com dignidade.

    O CONTO E A HISTRIA

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 22

  • DESCONSTRUIR, RESIGNIFICARRever a histria do Brasil de um ponto de vista no racista e nosexista talvez seja trabalho para geraes inteiras. Mas a largada jfoi dada e seus pilotos so, principalmente, socilogos, antroplo-gos, educadores, psiclogos, negros ou brancos comprometidoscom a tarefa de passar a limpo os contedos da nossa histria.

    No Mdulo I da Formao sobre Os Efeitos Psicossociais doRacismo foi trabalhado um breve panorama da histria da crian-a negra no Brasil. Tambm buscou-se identificar o surgimento deinstituies de correo e confinamento, matrizes das atuaisFEBEMs e FUNABEMs.

    Como formador foi convidado o historiador Marco AntonioCabral. Ele apontou para o itinerrio da criana e do jovem mar-ginalizados.

    O historiador situou sua fala na So Paulo do comeo do sculoXX, uma cidade frentica caracterizada pelo final da escravido -sem nenhuma poltica de compensao para os libertos e seus filhos -, e a entrada de enormes contingentes de imigrantes paracumprir uma dupla funo: trabalhar nas lavouras paulistas ebranquear o pas. Nesse momento, h um significativo aumentoda criminalidade e observa-se a criana e o adolescente (chama-do de menor) sendo punido por desordens, vadiagens e peque-nos furtos (qualquer semelhana com a So Paulo do sculo XXIno mera coincidncia).

    Marco Antonio ressaltou que para combater os delitos juvenis, oEstado azeita seus aparelhos de represso e correo. Assimnasce, em 1902, o Instituto Disciplinar destinado a recolherpequenos mendigos, vadios, viciosos, abandonados, maiores de 9e menores de 14 anos que l deveriam ficar at completarem 21anos. Estava dado o empurro para o confinamento de muitascrianas e adolescentes pobres da cidade de So Paulo. SegundoMarco Antonio, era o comeo da transformao do menino darua em menino de rua.

    No debate com os participantes, ficou claro que os atuais meninose meninas de rua bem como os institucionalizados, na sua maio-ria negros, no surgiram nas esquinas urbanas de repente. Atrsdeles, h uma histria de discriminao e excluso sistmicas.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 23

  • 24

    ENTREVISTA COM MARCO ANTONIO CABRAL

    Marco Antonio Cabral dos Santos, nascido em 1973, doutor emHistria, pela Universidade de So Paulo (USP). Passou a infncia ea adolescncia ouvindo da me, diarista por profisso e com letrasescassas, a voz de comando: estude, estude, estude! Foi o que elefez. No obstante o precrio ensino da escola pblica, Marco mer-gulhou nos livros e conseguiu entrar, em 1992, na USP.Seu primeiro emprego foi como contnuo em um banco. Para conse-

    gui-lo, ele fez provas de portugus e de matemtica. Saiu-se muitobem. Para mim, o banco foi uma excelente oportunidade de apren-dizado, quando entrei no sabia nem preencher um cheque. Minhame nunca teve conta em nenhum banco. Quando j era caixa,Marco Antonio entrou na Faculdade de Histria. Ento, viu-se emuma encruzilhada: Durante o dia eu trabalhava no sistema finan-ceiro, de noite eu respirava a liberdade da universidade. Era umavida dupla. Marco Antonio pediu demisso e foi trabalhar no Arquivo do Estadode So Paulo, ganhando um quarto do salrio do banco. Foi provi-dencial. No Arquivo do Estado, ele tomou contato com documentosque seriam fundamentais para sua futura tese de doutorado. Eletambm ganhou tempo para fazer o que mais gostava: estudar.Hoje, Marco Antonio vive o cotidiano de um intelectual ipsis litteris:escreve artigos acadmicos, desenvolve projetos, ensina. Tambm nose furta de colaborar para crescimento das idias entre os jovens.Participa de um curso de formao poltica no distante bairro deErmelino Matarazzo, So Paulo. um curso amplo, com carterapartidrio. A gente discute de violncia policial televiso de quali-dade.Na entrevista a seguir, Marco Antonio Cabral dos Santos conta deseu amor pela Histria, fala de questes raciais e, principalmente,de seu entusiasmo pelo conhecimento.

    A HISTRIA COMO ALIADA

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 24

  • 25

    Como historiador e professor de Histria, voc cr que o conhecimento dos fatoshistricos pode nos ajudar na resoluo de problemas cotidianos? Marco Antonio - Bom, a maneira como a Escola de primeiro e segundo graus apresenta aHistria no ajuda muito. O currculo escolar de Histria deveria ser repensado para que oaluno pudesse associar o passado coletivo ao seu presente individual. Eu me interessei peloestudo da Histria, justamente, por vislumbrar nela a possibilidade de ao social e de enten-der o Brasil. Quando eu era criana, assistia ao telejornal e no entendia o que as pessoasfalavam. Eu no compreendia qualquer notcia sobre poltica. Verdade que eu era bem jovem,natural que no atinasse. Mas no compreender, me incomodava muito. Eu acredito que, nos a Histria mas tambm as Cincias Humanas nos ajudam a ler a realidade e, a partir da,podemos pautar nossas aes.

    Por anos a fio, os livros didticos brasileiros contaram a Histria de um pontode vista branco e masculino. Voc concorda com esta afirmao?Marco Antonio - Os livros de Histria esto melhores, mas ainda longe do ideal. Na prti-ca, existe um descompasso entre o que se discute na universidade e o que se transmite na salade aula do ensino fundamental. A discusso da Histria do Brasil, dentro da academia, avanada e delicada. uma discusso preciosa. O problema que essa discusso de qualida-de demora muito para chegar ao ensino fundamental. A Histria estudada na universidade jno tem esse carter eurocntrico, masculino. H muitas pesquisas sobre a Histria daMulher no Brasil e sobre a Histria do Negro tambm. Por exemplo, a escravido muitoestudada. Diria at que a academia est se voltando para a frica, principalmente, paraentendermos como se comps a nacionalidade brasileira, ou de onde vieram os negros. Enfim,compreender as conexes. Hoje se considera, inclusive, uma Histria Atlntica: Europa, fri-ca e Brasil, tendo o Oceano Atlntico como ponte e palco de atuao. Repito: o problema odescompasso entre o conhecimento acadmico e a transmisso desse conhecimento na EscolaFundamental. Cabe aos historiadores se organizar e fazer valer seus saberes.

    A Lei 10.639/03 (11.645/08) institui a obrigatoriedade do ensino das histrias eculturas africana e afro-brasileira. Isso pode melhorar o ensino da Histria na EscolaFundamental? Marco Antonio - Quando eu entrei na Universidade de So Paulo, em 1992, no existiauma cadeira dedicada frica no Departamento de Histria. Hoje j temos. Vrios pesquisa-dores se interessam pelo tema. Esse interesse tem muito a ver com a Lei. Ela cria umademanda. Agora, o professor que ensina na base no tem livros didticos que dem conta dafrica. Muitos professores no tm a mnima idia do assunto. Eles ainda vem o continenteafricano como fonte de mo-de-obra. Sou otimista. As mudanas so lentas, mas vo acabaracontecendo.

    Quando se fala em Educao pela Igualdade Racial, comenta-se muito em resga-tar heris e heronas negros, com o objetivo de aumentar a auto-estima do alu-nato afrodescendente. Heris e heronas so necessrios? Marco Antonio - O ideal seria no precisarmos de heris e nem cultu-los. Mas havendoheris brancos, que haja heris negros. Tem que existir um equilbrio. Como temos um pan-

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 25

  • 26

    teo de heris da Histria do Brasil, e dificilmente nos livraremos disso, que os heris negrostambm estejam representados. Nos Estados Unidos, em 1986, foi institudo o Dia deMartin Luter King como feriado federal, ou seja, uma vitria para os negros norte-america-nos. Da mesma forma, o 20 de Novembro Dia da Conscincia Negra, em homenagem luta de Zumbi de Palmares, fundamental para a afirmao da populao negra brasileira.

    A educao pode ser um canal de ascenso social para os negros?Marco Antonio - Como pregava a minha me, na dcada de 1970, a educao quase umdos nicos canais de ascenso social para a juventude pobre em geral, e negra pobre em parti-cular. Ocorre que o ensino pblico est muito degradado. Muito mais do que h vinte anos.Se compararmos com cinqenta anos atrs, um escndalo. A derrocada do ensino pblicosignifica, entre outras mazelas, que o negro est perdendo cada vez mais a possibilidade deascenso socioeconmica. Quando entrei na universidade, a minha primeira aula foi com oMilton Santos. Eu no sabia quem ele era. O auditrio estava lotado para ouvir aquelehomem negro e baiano. Hoje imagino que muito difcil que surja um Milton Santos. Porqu? cada vez mais difcil entrar em uma universidade pblica. A escola pblica no dconta. Nas dcadas de quarenta e de cinqenta, a escola pblica era uma escola de exceln-cia. As pessoas se digladiavam para entrar. Em suma, se o Milton Santos estudasse na escolapblica atual, ele teria mais dificuldades de entrar na universidade e talvez no chegasse aolugar em que chegou, mesmo com a sua genialidade.

    O vestibular injusto?Marco Antonio - Trata-se de um Sistema de Mrito. A pessoa avaliada com dezessete,dezoito anos. Quer dizer, a formao bsica dela j aconteceu. Se ela for pobre, certamenteno conseguiu pagar um ensino de qualidade, enquanto o rico pagou. Ento o sistema demrito, representado pelo vestibular, para a maioria dos brasileiros, sobretudo para osnegros, representa uma barreira. Do jeito que est, o vestibular perpetua as desigualdadesraciais. Ora, meritocracia pressupe que haja igualdade de oportunidade entre os concorren-tes. Na minha opinio, o Movimento Negro tem que lutar tambm por uma escola pblica dequalidade. A est uma chave importante. Lutar por polticas de reparao bom, mas no tudo. A meu ver, a luta maior por um ensino pblico melhor.

    O que voc acha do sistema de cotas para negros?Marco Antonio - A cota um instrumento da poltica afirmativa. Ela no a poltica afir-mativa, e sim uma de suas facetas. Acredito que est havendo uma confuso. A cota no deveser vista como soluo para todos os problemas. preciso tambm olhar para outros espaosalm da universidade. Espaos onde os negros esto sub-representados.

    Por exemplo? Marco Antonio - Na chamada alta cultura. O negro sub-representados na pintura, naescultura, na msica erudita. Ele aparece no Domingo do Fausto, programa da RedeGlobo, tocando cavaquinho. Nada contra, o cavaquinho um instrumento maravilhoso. Masexistem negros que tocam piano, violoncelo, obo. Em suma, aparecer com a bola no p oucom o pandeiro na mo contribui muito pouco para a afirmao do negro no Brasil.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 26

  • 27

    uma espcie de reserva cultural em favor dos brancos...Marco Antonio - Isso pssimo. Alguns programas sociais tm srias limitaes. Quando euera garoto, morava na periferia da perifrica Embu. Era um lugar sem Lei. O poder pblicono aparecia; a criminalidade era altssima. Eu estudava numa pssima escola, quando surgiuum programa do Governo Franco Montoro para tirar a garotada da rua. Funcionava em umacasa grande. Eu fui at l, tinham s dois cursos: Marcenaria e Sapataria. O de Marcenariame encantou, fazer mveis, brinquedos. Mas como eu tinha treze anos, no podia mexer comserra eltrica. Tive que ir para a Sapataria. Aprendi a fazer sapato, chinelo, bolsas, foitimo. No entanto, hoje, eu vejo que naquele momento no era Marcenaria o que eu necessi-tava. Precisava de algum que pusesse um livro nas minhas mos. Eu precisava ter educaoformal melhor do que eu tinha na escola que ficava a poucos metros. O Brasil, do sculo XXI,est cheio de programas sociais que continuam levando a garotada para batucar. Tudo bem,mas quem quer outra coisa se sente excludo. No fundo, esses programas reforam o negroapenas como pagodeiro, capoeirista.

    No curso do AMMA, voc discorreu sobre Criana e Criminalidade no incio dosculo em So Paulo. Qual a idia principal?Marco Antonio - A minha tese de Doutorado sobre a Polcia em So Paulo na passagemdo sculo XIX para o sculo XX. Ela abrange um momento chave da histria de So Paulo. Spara termos uma idia, em vinte anos, de 1890 at 1910, So Paulo passou de setenta milhabitantes para duzentos e cinqenta mil! Um assombro. Foi um momento de aceleraofantstica. Eu estudei os mecanismos de regulamentao dessa cidade. Por isso que eu fui pes-quisar a polcia. Como que se administra uma cidade dessa? Foi um perodo maluco dacidade em que a polcia tinha muito poder, e o cidado no tinha cidadania. Dentro desseestudo que eu dedico um captulo criana. Em sntese: as crianas tinham uma relaocom as ruas da cidade que o Poder Pblico vai comear a reprimir. A indstria, que cresciaem So Paulo, abocanhava uma parcela dos trabalhadores. A maior parte da populao viviada economia informal, nos interstcios da economia formal. Era comrcio, servios, lavadeiras,enfim, essa coisa toda. As crianas pobres descobriram no agito da cidade formas de obterum ganho. O garoto rouba um pedao de tecido numa loja na 25 de Maro e vende alimesmo para outro dono de loja. As crianas comeam a fazer da rua seu sustento por meiode pequenos delitos. Ento o Estado se viu na obrigao de tomar providncias. Resolveu ins-titucionalizar essas crianas e jovens. Em 1902, cria-se o Instituto Disciplinar do Tatuap embrio da atual FEBEM. Triste! Estamos vivendo com isso at hoje.

    Pela virada do sculo XIX para o XX, tambm houve o projeto de imigrao?Marco Antonio - Claro. O projeto imigrantista, cuja justificativa oficial era que, uma vezabolida a escravido, seria preciso importar mo de obra para as lavouras. Como se o ex-escravo no fosse gente ou desconhecesse os ofcios agrcolas. Foi um projeto de branqueamen-to, de europeizao do Brasil. Foi uma poltica tnica to descarada, que a imigrao de asi-ticos, chamada de imigrao amarela, sofreu muitas barreiras. A inteno era mesmo tra-zer europeus, leia-se, brancos.

    Voltando para o presente. Os negros so discriminados porque so pobres ou ospobres so discriminados porque so negros?Marco Antonio - Eu creio que h muita confuso entre condio racial e condio social.Quer dizer, quando se fala em raa, refere-se no a uma condio, mas a uma essncia.Condio social e discriminao racial so problemas distintos. No Brasil, h discriminao

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 27

  • 28

    em relao condio social de uma pessoa. Mas h tambm a discri-minao racial. Esta vai muito alm da questo socioeconmica. Oimbrglio que o problema racial no encarado pela sociedade bra-sileira. As pessoas tratam a questo racial com dissimulao. Osnegros que tm coragem de reclamar so taxados de neurticos.Muita gente acha um absurdo que os negros fiquem indignados com oracismo.

    O negro de classe mdia menos discriminado?Marco Antonio - No por a, no como consumidores que vamosequacionar os problemas raciais no Brasil. Eles so bem mais profun-dos. Nos Estados Unidos, a cidadania do negro se conquistou peloconsumo. Eu acho isso pssimo. terrvel que se conquiste cidadaniapelo consumo, isso para qualquer pessoa independentemente da suaetnia. Cidadania est para alm disso.

    O Brasil est menos racista? Marco Antonio - Eu no acho que ele est menos ou mais racista.Acho que o problema do racismo est sendo encarado de uma manei-ra diferente. Hoje, os negros esto mais organizados e conquistandoespaos. O racismo no vai acabar por decreto. um processo longo.Talvez o racismo nunca acabe. Nos Estados Unidos, por exemplo, huma lista imensa de Polticas Afirmativas e nem por isso a sociedadenorte-americana deixou de ser racista.

    O que fazer?Marco Antonio - So inmeros os caminhos. Dentre eles, eu avalioa ao do AMMA como muito importante. Porque o AMMA traba-lha com os efeitos psicossociais do racismo. Eu creio que o cerne daquesto. , justamente, nesse carter pouco tangvel do racismo queresidem as maiores seqelas para os afro-brasileiros.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 28

  • 29

    A EDUCAO

    Sempre que algum pergunta: qual asada para o Brasil crescer e distribuirmelhor sua renda, suas oportunidades,suas riquezas? Nove entre dez pessoasapontam a educao como condiosine qua non para seguirmos em frente.

    curioso que essa aposta na educaoseja quase unnime e, ao mesmo tempo,as escolas pblicas brasileiras sejam tomaltratadas. Certamente, essa situaono surgiu hoje nem ontem. A escolabrasileira j nasceu complicada: branca epara poucos. Eurocntrica e etnocntrica.

    Agora, no sculo XXI, os nmeros ofi-ciais do motivo comemorao: nuncatanta gente esteve dentro das escolas.Garantido pela Constituio Brasileira,artigo 208, o ensino fundamental, obriga-trio e gratuito, para todos sem distin-o de classe, gnero e raa.

    No entanto, a esmagadora maioria dascrianas, adolescentes e jovens no bran-cos, alm de gramtica e portugus, conhecem tambm o b--b da discri-minao racial na escola. Discriminaotraduzida em olhares, desatenes, indi-ferenas, inadequaes culturais, palavrasofensivas.

    Mas no apenas os alunos tm lies deintolerncia, os educadores negros tam-bm enfrentam preconceitos dentro daescola alm de barreiras para a suaascenso profissional.

    Como sempre, no Brasil, muitas vozes selevantam para dizer que a escola nopratica o racismo, que trata todos com

    igualdade. Tal afirmao faz parte doracismo brasileira na maioria dasvezes, dissimulado e escorregadio.Praticado nas entrelinhas.

    Mas como no reconhecer o racismoquando um professor desqualifica ouofende um aluno por sua raa/etnia?Como no ler racismo e sexismo noslivros didticos que insistem em atribuirpapis sociais subalternos aos negros es mulheres? Como no se indignar comaulas de histria que so useiras e visei-ras em retratar a histria da escravidocomo uma histria de submisso dapopulao negra. Ou nas aulas de geo-grafia que ignoram, solenemente, a com-plexidade do continente africano? Setodas essas manifestaes no foremracistas, so o que?

    Durante a formao sobre Os EfeitosPsicossociais do Racismo, Eliana Oliveira,responsvel pela Oficina Educao eCultura, discorreu acerca dos temas: Opapel do Educador; Histria pessoal esua influncia na aprendizagem; Funodos esteretipos na manuteno doracismo.

    Na seqncia, leia a entrevista, dadapor Eliana Oliveria, especialmentepara esta publicao.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 29

  • 30

    ENSINAR COM RESPEITO

    Pedagoga, mestre em Educao com doutorado em antropologiasocial, Eliana uma educadora que, atualmente, trabalha comoutros educadores para a sensibilizao e o enfrentamento das dis-criminaes tnico-raciais no ambiente escolar, professora universi-tria e coordenadora de curso de Pedagogia.

    Quando criana, Eliana morou na pequena So Sebastio doParaso, sul de Minas Gerais, cidade com ascendncia predominan-temente italiana. Sua me era costureira. Algumas vezes, Eliana e airm mais velha iam na casa das clientes tirar medidas de roupas.Em algumas ocasies, Eliana ouvia meninas brancas perguntarempara irm e para ela: Essa cor pega?

    A discriminao no se limitou infncia, acompanhou a vida deEliana. No primeiro dia de aula, os alunos quase morreram deespanto ao verem uma professora negra dando um curso de ps-gra-duao. O preconceito no parte apenas dos alunos. Eliana contaque em uma reunio de Coordenadores de Ps-Graduao e de rei-tores de vrias faculdades, uma professora branca se incomodoumuitssimo com a presena de uma mulher negra e perguntou: O que voc est fazendo aqui? Eliana respondeu na lata: O mesmo que voc..

    Eliana Oliveira reconhece: Todos os dias da minha vida so dias dedesafios. No entanto, tenho sido feliz nas minhas escolhas, mesmo que difceis.

    ENTREVISTA COM ELIANA OLIVEIRA

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 30

  • 31

    Qual o compromisso da escola na promoo da igualdade racial?Eliana - Na escola encontramos um caldeiro, no qual fervilham todas as etnias. A culturabrasileira est na sala de aula, principalmente na escola pblica. Portanto, caberia escola ocompromisso fundamental de trabalhar a promoo da igualdade racial. E o que vemos? Umparadoxo: a escola o espao que no poderia discriminar, mas acaba sendo o que mais dis-crimina. Uma das origens desse paradoxo vem do fato de, por sculos, a escola ter trabalhadocom um currculo de modelo europeu.

    Um modelo que no tem nada a ver com os brasileiros?Eliana - Exatamente. Esse modelo favorece a homogeneizao. Como se houvesse, no pas,uma nica cultura, no caso, branca e de ascendncia europia. Dentro dessa concepo, ficaquase impossvel trabalhar com as diferenas. Trata-se de um currculo que favorece a discri-minao racial/tnica.

    Discriminao que incide sobre os alunos negros?Eliana - Discriminao que expulsa as crianas negras da escola. Elas sofrem um desgastecontinuado quando so chamadas de negrinho ou de negrinha. Muitas vezes, o professornem tem conscincia do quanto isso di na criana, e do quanto isso dificulta o aprendizado.Assim, cada vez que a criana negra vai para a escola ela ridicularizada e tem sua complexi-dade reduzida a atributos estereotipados. Isso provoca menos interesse pelos estudos, alm darecusa em ir para a escola, dificuldade de aprendizagem e, por fim, provoca a evaso escolar.H tambm outra conseqncia da discriminao: o no-pertencimento. O aluno negro no sev representado na maioria dos livros didticos. Como exemplo, a contribuio dos africanosna construo do pas, constituio da diversidade, valores culturais etc. Tambm no percebenem um pingo de respeito por ele, pela sua origem familiar e social. Quando chega na idadedo ensino mdio, ele no est mesmo na escola, ele est na rua.

    Qual o caminho para transformar essa situao?Eliana - No existe um caminho. H vrios. Hoje, temos discutido como trabalhar a partir doaluno e no do professor. Tambm estamos esperanosos com a Lei 10639/2003 que inclui aobrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira no currculo oficial da Redede Ensino. Mas, por fim, insistimos para que os professores parem de naturalizar as desigualdades, repetindo velhas mentiras: pobre negro e no aprende, para qu eu vou meesforar? Ela vai ser empregada domstica mesmo. O pai dele faxineiro, ele vai conti-nuar sendo faxineiro.Dentro desse determinismo no h espao para um pensamento maiorem favor da criana. No h um trabalho para aproveitar o potencial inerente a todo o serhumano.

    Os professores no tm sensibilidade?Eliana A Lei 10.639/2003 (11.645/08) no basta. preciso qualificar o professor.Poucos so sensveis s questes raciais, mas quando se sensibilizam tornam-se professores epessoas melhores. A transformao pode ser rpida, na medida em que eles comeam a com-preender a riqueza da diversidade. O racismo a maior causa dos problemas educacionaisdos alunos negros. A escola pode e deve desempenhar um papel decisivo no sentido de elimi-nar o racismo institucional. Da perceber a necessidade de um currculo multicultural, que leveem considerao todas as culturas. Nesse momento, o professor ou professora desperta nacriana ou o adolescente para o gosto de estudar. Precisamos ajudar o professor a entenderque a desigualdade tambm passa pela escola e que eles tm um papel importante para diri-mir os danos causados por essa desigualdade.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 31

  • 32

    Voc acredita que a escola est menos racista? Eliana - No! A gente percebe pelos apelidos, pelos esteretipos, pela falta de refernciaspositivas nos livros didticos e pelo tratamento que grande parte dos professores dispensa aoaluno negro. O professor refora todos esses esteretipos ao no chamar a criana pelo nome,ou a ignor-la. Uma das solues desconstruir os esteretipos. Ns temos feito isso e chama-do a ateno dos professores. necessrio parar de rotular, parar de achar que o aluno noaprende porque pobre, porque est sujo, porque vem com ranho no nariz. A partir domomento em que o educador comea a olhar a criana e a enxergar o potencial dela, a crian-a mesma desabrocha e se desenvolve.

    A famlia tambm tem um papel na promoo da igualdade racial?Eliana - Claro. Mas a famlia, muitas vezes, no trabalha a questo racial. No consegueorientar a criana. Por conseqncia, a menina ou o menino ficam sem autodefesa e seminterlocutores. Isso acontece porque ser negro no Brasil ruim. Reconhecer-se como negro uma questo de depreciao. Tudo que se aproxima do negro mostrado como negativo. O negro o perdedor, o submisso, o cidado de segunda categoria. Quando a famlia noconsegue trabalhar com as questes raciais, a responsabilidade da escola aumenta.

    Deveria haver uma conexo escola-famlia?Eliana - Se a escola trabalhar a questo racial, a famlia passa a ser sensibilizada, uma vezque o aluno leva a informao da escola para dentro de casa. Com a escola e a famlia traba-lhando juntas, as crianas e os adolescentes negros podem criar estratgias de enfrentamento.Podem entender a sua posio na sociedade, entender o Brasil, entender os azeitados meca-nismos de excluso. Um outro problema que, na maioria das vezes, a escola rejeita a origemdo aluno, isto , rejeita a famlia dele. Ela desvaloriza o que o aluno aprende com a famlia. um desastre! Em casa, o aluno recebe informaes maravilhosas. O Brasil mltiplo. Hmuitas linguagens.

    A escola est preparada para trabalhar com a diversidade?Eliana No momento, eu no vejo uma educao aberta diversidade, pois preciso repen-sar o sistema educacional brasileiro a partir das diferenas para o currculo e para as aespedaggicas. Para abrir-se diversidade tem que haver dilogo. Dilogos entre as culturas.Esse o papel do multiculturalismo: o reconhecimento da cultura do outro.Sem o conhecimento e o mtuo reconhecimento no h dialogo. necessrio tambm estar aberto para as influncias. Uma cultura pode alterar a outra.Para isso, o melhor caminho entender quais so as historias de cada uma. Entender comoas vrias culturas contriburam para a formao do pas. Em sntese, entender a formao dopovo brasileiro. Qual o papel das diferentes culturas, das etnias que nos construram. E qualo extrato social que cada grupo tnico ocupou e ocupa na sociedade. Tambm responder apergunta: por que o referencial o branco de ascendncia europia?

    Por qu?Para encontrar respostas preciso estudar a histria, compreender como as coisas se deram,compreender para modificar. Se essa reflexo no for feita, no h dilogo entre as culturas.Quando o educador comea a entender a questo da diversidade, ele entende de onde vemas crianas, suas origens, suas famlias, suas linguagens.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 32

  • 33

    O racismo deixa marcas psicossociais?Eliana - Muito mais do que isso! O racismo gera efeitos psicossociais duradouros sobre as pes-soas. Como o racismo brasileira no transparente, para a pessoa negra, em geral, a suaidentidade multifacetada. H uma certa ambigidade na construo da sua identidade.Ns estamos trabalhando com educadores e educandos a questo da auto-estima e a necessi-dade de fomentar a conscincia negra. Um grande entrave a falta de referenciais positivos.No h referencial nos livros didticos, no h representatividade suficiente na televiso, e professores negros so poucos. Fica difcil se aproximar daquilo que invisvel

    H interseo entre as discriminaes de raa e de gnero?Eliana - A mulher negra sofre a dupla discriminao, por ser mulher e por ser negra. Contraas mulheres, a discriminao mais acentuada. Veja meu exemplo: apesar da minha forma-o e dos anos de estrada, eu trabalho muito mais do que uma mulher branca e o reconheci-mento sempre menor.

    Voc enxerga luz no fim do tnel?Eliana - Acho que fundamental a formao de quadros. Mulheres e homens negros se tor-nando mestres, doutores. Isso ir fazer diferena. Agora, a pessoa no pode ascender e esque-cer da sua comunidade de origem. Temos que ajudar a populao negra a se desenvolver,ajud-la a sair do limbo econmico no qual foi colocada. Para isso preciso discutir as mani-festaes do racismo. A conscincia ajuda a ser menos submisso, menos infeliz tambm. Oque est em questo criar mecanismos e estratgias de enfrentamento das discriminaes.H tambm a questo da visibilidade! importante ver negros e negras em cargos de statussociais. Quanto mais gente discutir a questo racial, nas escolas e em outros espaos, maisvisibilidade teremos.

    E os brancos?Eliana - Aqueles que forem parceiros na luta anti-racista so bem-vindos. Parece bvio queum Brasil melhor ser construdo com os brancos ao nosso lado.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 33

  • 34

    ALGUNS RELATOS DAS(OS) PARTICIPANTESSOBRE DISCRIMINAO NA ESCOLA

    P1 - Eu sou professora de educao infan-til. Trabalho na rede municipal de ensino.Tenho uma turma com vinte e cincocrianas, na faixa etria de quatro anos.Fazemos um trabalho de prontido paraalfabetizao. As crianas com quatroanos j trazem muitas vivncias das suasfamlias. J trazem, na verdade, os precon-ceitos que a famlia tem. s vezes, umacriana pequena j est vivendo um con-flito interno, se debatendo com precon-ceitos.

    Outro dia, minha filha de cinco anos che-gou para mim e disse: Me, eu no queromais ser negra. O pai dela branco, elatem a pele de tom bem claro. Mas elasempre se considerou negra, por causade mim e porque est junto da minhafamlia. Ela tem uma convivncia muitoprxima com as tias maternas etc.Quando ela me disse que no queriamais ser negra, eu quase entrei em para-fuso. Perguntei: "Como assim, filha?. Elarespondeu: Quero ser branca igual aminha amiguinha Lele. Quer dizer, temalgo acontecendo na escola... Ela estaprendendo que ser branco melhor (?).E como ela tem a pele clara, de repente,ela pensou: Posso escolher...

    Da creio que as reflexes que estamosfazendo, nesse curso do AMMA, trazempossibilidades de lidar melhor com assituaes. lgico que a negao da raasempre causa uma dor incomensurvel. duro saber que minha prpria filha estsofrendo com isso. Mas eu sei que possolidar com essa histria de forma maisconsciente, porque eu tenho um acmu-lo de reflexes. Tambm preciso termuita sensibilidade para lidar com ascrianas confrontadas com situaes deracismo. O importante no passar porcima, no fingir que a questo no existe.No fundo, o tempo inteiro a gente temque fazer uma interveno.

    Eu tambm trabalho com o pessoal dacreche, uma populao mais carente. Ospais trabalham, e a maioria negra. Querdizer, essas crianas se deparam, o tempotodo, com o racismo na escola. Tenhocolegas professoras que no se do contada questo e discriminam muitas vezes.Elas tambm precisam ser trabalhadas.

    Por fim, acho que a dor, causada pela dis-criminao racial, sempre existir inde-pendentemente de querermos falar ouno acerca dela. Se voc finge que noest vendo a discriminao, voc acabatransferindo a dor para outro lugar. Porexemplo, a pessoa pode somatizar, ficarcom uma srie de doenas. s vezes, nasruas, vemos muitos negros completa-mente loucos e desvairados. Consideroisso como um sintoma da presso dosilncio.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 34

  • 35

    P2 - Meu primeiro dia de escola foi horrvel.Minha av era lavadeira. Ela tinha umaamiga mais velha que ela e tambm negra.As duas ficavam o dia inteiro lavando roupae conversando baixinho. Falavam dos tem-pos da escravido. Minha me dizia que elasfalavam em nag para ningum entend-las. No meu primeiro dia de escola, acheique a minha av, a qual chamava de me,estava me abandonando. Chorei muito!Depois me acostumei.

    Uma vez tive dor de dente e procurei odentista da escola. Mostrei-lhe o dente e eleo arrancou a sangue frio. Doeu muito.Depois daquela experincia, peguei traumade dentista. Quando tinha dor de dente,sofria silenciosamente. Naquela poca,1969, segundo relatos de amigos, muitosdentistas de escolas pblicas tratavamassim a maioria dos negrinhos e negrinhas.

    P3 - Fui discriminada recentemente nafaculdade. Em uma aula da disciplina dePsicologia Social, eu falei acerca do bran-queamento da escola. Critiquei o modelode escola imposto pelos brancos. Levanteidados histricos. Fiz tudo direitinho. A salaera predominantemente branca. O profes-sor da disciplina interrompeu vrias vezes aminha explanao. Chegou a dizer que euestava fazendo uma piada. Ou seja, ele medesqualificou e desqualificou as questesque eu estava trazendo.

    Fazendo um trabalho proposto pelo AMMApara os participantes deste curso, entrevisteialgumas pessoas que responderam per-gunta: Voc j sofreu alguma discriminaoem sua vida? De que tipo? Se sim, comovoc se sentiu e como reagiu a ela?

    Confira duas respostas:

    1) Estudante, 20 anos:

    Quando eu estava na primeira srie, umcoleguinha de classe falou: Essa preta a.Eu respondi: Seu burro! Mas pegou tantoem mim, que eu lembro at hoje...

    2) Arte-educadora, 22 anos:

    No magistrio, eu era considerada forados padres, diziam que eu no tinha pos-tura de professora. Porm nem foi precisoreagir. Minhas aulas foram as prprias res-postas, s que na voz dos alunos. O fato que a escola, alm de ranosa, nos ensinadesde cedo a segregao.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 35

  • 36

    O vdeo Olhos Azuis (Blue Eyed), realizado em 1995, registra

    uma oficina, criada e conduzida pela educadora norte-ameri-

    cana Jane Elliot. A oficina de Jane foi contundente: propor

    que pessoas brancas sentissem, por duas horas e meia, parte

    da discriminao sentida, por toda a vida, pelos cidados

    negros dos Estados Unidos. Por exemplo, ela chamava os

    brancos de irremediavelmente incompetentes, irrespons-

    veis, burros, preguiosos e inferiores.

    O vdeo tambm documenta uma experincia-jogo, feita em

    1970, com crianas brancas na sala de aula. A professora

    Jane Elliot dividiu a turma entre as crianas com olhos cas-

    tanhos e as crianas com olhos azuis. Combinou que as

    crianas de olhos azuis teriam a prerrogativa de discriminar

    as crianas de olhos castanhos. Fez mais: as crianas de

    olhos castanhos ganharam um estigma, simbolizado por

    um leno no pescoo.

    Durante o recreio, os olhos azuis se recusaram a conversar ou

    brincar com os olhos castanhos. Assumiram uma atitude

    provocadora forando os portadores de olhos castanhos a

    se retrarem. Na volta sala, a professora perguntou como

    havia sido a vivncia de ser discriminado. Pssima, respon-

    deram. O acontecido foi justo? No, disseram em coro.

    O vdeo finaliza com a questo, posta por Jane Elliot: As pes-

    soas brancas acharam insuportveis serem tratadas com dis-

    criminao e desvalorizao. O que devem sentir, ento, as

    pessoas negras que so discriminadas e desvalorizadas o

    tempo todo?

    Por fim, ela afirma: no basta que os brancos digam eu no

    discrimino, eu no sou racista. preciso que eles lutem, ao

    lado dos negros, para que ningum seja discriminado e vio-

    lentado em sua humanidade.

    ATIVIDADE COMPLEMENTAR: EXIBIO DO

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 36

  • 37

    No primeiro momento,achei o vdeo agressivo. Pensei: aconscincia da violncia da discri-minao poder ser conquistada deforma menos traumtica. Fiqueiincomodada da professora ter pro-posto um jogo to cruel para crian-as. No estou desmerecendo a dorda criana negra ao ser constante-mente discriminada, mas no sei sejogar de inverter papis, tornaro indivduo um cidado melhor.Por outro lado, talvez eu estejapensando com cabea de branco, seconsiderarmos que as crianasbrancas viveram a situao porhoras, enquanto as crianas negrasa vivem constantemente.

    O vdeo Olhos Azuisme fez lembrar de coisas que sentina faculdade, por seu cartermuito opressor. Ela tem a dinmi-ca de um querer negar o outro, deum querer negar a condio dooutro. Eu me sentia pssima,quando o professor devolvia umtexto meu todo riscado. Eu pensa-va: ser que ele no v que eu nofiz cursinho? Ele no percebe queeu vim da escola pblica? Fico con-fusa. No sei se faculdade discrimi-na por uma questo racial ou seela assim mesmo, incapaz deenxergar os alunos em suas dife-renas.

    O que eu achei mais inte-ressante no vdeo o tema de queo racismo uma questo para serresolvida por toda a sociedade.No uma questo que diz respei-to somente aos negros. Isso signifi-ca que a luta anti-racista tem queincluir os brancos. A soluo deresponsabilidade de brancos enegros.

    O vdeo Olhos Azuisconfirmou que eu tenho que tra-balhar duro para entrar em conta-to com a dor. S assim poderei dis-cernir e sair das confuses.

    Uma das caractersticasdo racismo fazer com que a pes-soa discriminada tenha dvidas seest sendo discriminada, ou se estparanica. Por exemplo, no Brasil,j existem recursos em favor dosdiscriminados, s que pouca gente,de fato, vai na delegacia fazer aqueixa. Acho que a pessoa fica emdvida. Ela pergunta: ser que istoest acontecendo de verdade?

    Eu vejo a professora dovdeo como aliada. Uma mulherbranca aliada. Ter parcerias combrancos pode ser de grande ajudapara o negro. Mas a gente aindano conseguiu juntar um grupoanti-racista com 50% de negros e50% de brancos.

    Eu desconfio um poucoda professora branca de OlhosAzuis. Talvez ela se sinta to con-fortvel e segura, exatamente, porser uma mulher branca puxando aorelha de outros brancos. Tenhodvidas se uma mulher negra, ocu-pando o lugar dela, se sentiria tosegura.

    O que mais gostei naexperincia Olhos Azuis foi otrabalho em grupo. Ele permitiu oacordo e que as pessoas aceitassemparticipar de um jogo traumtico.

    Tenho que dar os para-bns para a ousadia da educadoraJane Elliot. Pois deve ser difcilpara o outro reconhecer que eleno uma pessoa to bacana comose imaginava.

    Achei significativo obser-var como as crianas tm umaprontido para experimentarmuito mais aguada do que osadultos. Os adultos parecementrar em pnico com as pergunta:Como vou agir diferente?.Muitas vezes, a cristalizao impe-de a transformao. Fazendo a lei-tura corporal das crianas e dosadultos, a hora em que um dosmeninos tira o leno (o estigma), oritmo rpido. Ele se livra rapida-mente. Isso tem a ver com a flexi-bilidade das crianas. J o adultotira o estigma mais lentamente,com uma expresso meio semgraa.

    Eu gostei muito. A Elliottambm deu uma oportunidadepara os brancos. Porque, de umamaneira geral, brancos no discu-tem sua etnia. como se ela pai-rasse. Quando os brancos pensamem raa, parece que a raa sem-pre do outro. Parece que s existea raa negra.

    Comentrios dos debatedores:

    DOCUMENTRIO OLHOS AZUIS E DEBATE

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 37

  • 38

    OLHAR EAUTO-ESTIMA

    O seu olhar l fora / O seu olhar no cu

    O seu olhar demora / O seu olhar no meu/

    O seu olhar melhora / Melhora o meu

    Onde a brasa mora / E devora o breu

    Como a chuva molha / O que se escondeu

    O seu olhar o seu olhar melhora / Melhora o meu

    O seu olhar agora / O seu olhar nasceu

    O seu olhar me olha / O seu olhar seu

    O seu olhar o seu olhar melhora / Melhora o meu

    O seu olhar, de Paulo Tati e Arnaldo Antunes.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 38

  • 39

    A auto-estima um sentimento que algum capaz de nutrirpor si mesmo. o reconhecimento e a valorizao das prpriasqualidades e atributos fsicos, mentais, intelectuais etc. tambmuma atitude de respeito para as prprias imperfeies e limita-es.

    Existem alguns aspectos relevantes na construo da auto-esti-ma: o olhar dos pais e da sociedade, pois o sujeito se constituino olhar do outro; o desejo de existir no olhar do outro, de sergostado; a famlia.

    No que diz respeito famlia, o primeiro olhar e o desejo mani-festo dos pais representam a janela pela qual a criana olhar omundo, determinam a qualidade das relaes pessoais e coleti-vas. O papel dos pais dar sustentao material e emocional criana, reafirmando sua existncia no mundo e auxiliando nodesenvolvimento do senso de individualidade. Alm disso, omodo como a criana tratada, incluindo a linguagem verbal ecorporal que os pais usam para demonstrar o seu poder, poderepresentar o respeito ou o desrespeito s manifestaes infan-tis, interferindo na formao do auto-conceito da criana.

    Outro espao importante no desenvolvimento da auto-estima o sentimento de pertencimento a um grupo. Um grupo podereafirmar ou no valores, dar ou no referncia de adequao deum indivduo, bem como dar uma referncia de como as outraspessoas reagem diante da presena de algum.

    Auto-estima, ento, um valor individual e coletivo que tem aver com o modo pelo qual algum ou algum grupo se v,sendo, portanto, um sentimento necessrio sade fsica, men-tal e emocional que varia de acordo com a influncia externa. Oprocesso de construo da auto-estima envolve amor, identida-de, respeito, positividades, valorizao e sentir-se sujeito.

    A psicanalista Isildinha Baptista Nogueira foi convidada paradebater temas cruciais na Formao sobre Os EfeitosPsicossociais do Racismo. Em duas horas eletrizantes, ela falouacerca da estruturao emocional do racismo e da construopsquica dos indivduos.

    A seguir, leia entrevista exclusiva com Isildinha.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 39

  • 40

    Isildinha Baptista Nogueira psicanalista. Adoro o meu trabalho.Sinto imenso carinho pelas pessoas que eu atendo. Minha clien-te mais velha tem 89 anos; o mais novo, 4 anos. A bem-sucedi-da profisso, aparte os esforos e os estudos integrais, teve, naspalavras de Isildinha uma ajuda da sorte. Em 1984, ela viajoupara a Frana com o objetivo de se especializar.

    De cara, em Paris, foi jantar na casa do renomado filsofo FelixGattari. Ele a convidou para falar, no dia seguinte, em um con-gresso de psicanlise. Isildinha tremeu nas bases, ficou aflita,pois deveria falar sobre Psicanlise e Negritude, mas nuncahavia pensando no tema negritude. Gattari ento sugeriu: Contede voc mesma. Fale da sua experincia como uma mulhernegra. Ela topou e passou a noite escrevendo acerca do que eraser uma brasileira negra morando em So Paulo. O que era tersido a nica aluna negra na escola e, mais tarde, uma das nicasda universidade. Escrevi sobre como sofrido ter um lugar queaparentemente seu, mas que de fato no o .

    Sua fala no congresso foi um sucesso. A ponto de a grande psi-canalista Radmila Zygouris declarar: Isildinha, seu texto sangra,seu texto voc. Ns temos que nos envergonhar de nunca ter-mos pensado a questo dos negros dentro da psicanlise. Apartir da, a brasileira passou a conviver com monstros sagrados,entre eles, a brilhante Maud Mannoni (1923-1998). Isildinha foiconvidada a concluir sua formao nos Atelis Psicanalticos uma escola com viso socialista.

    De volta ao Brasil, ela no parou de trabalhar nem de produzirconhecimento. No seu entendimento: o psicanalista no atuafora das estruturas de poder. Sou uma profissional que trabalhalevando em conta as questes sociais e as questes clnicas pro-priamente ditas.

    Isildinha, que passa grande parte do seu tempo perscrutandoexperincias infantis de seus clientes, relata uma experinciafundamental da prpria infncia. Uma vez brincando na rua,outra criana disse que meu cabelo era ruim. Fui correndo, cho-rando at a minha av. Ela me acolheu e disse: Isildinha, seucabelo no ruim, duro. Seu cabelo lindo, ele como omeu. Eu gosto dele, eu gosto de voc.

    ENTREVISTA COM ISILDINHA BAPTISTA NOGUEIRA

    NINGUM FOGE DA PRPRIA HISTRIA

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 40

  • 41

    Isildinha Nogueira descobriu, ento, que acontecesse o que acontecesse em sua vida,existia algum que a amava do jeito que ela era. Enfim, somos, porque somos no olhardo outro.

    Faz sentido falarmos de efeitos psicossociais do racismo?Isildinha - Acho fundamental pensar como a questo social bate no inconsciente. Eu nuncadeixei de trabalhar esse vis. um assunto essencial, pois os efeitos psicossociais do racismoacabam por moldar a nossa conduta e o modo como ns pensamos, produzimos e sentimos.Eu entendo que preciso, alm da clareza das questes sociais, curar as feridas psquicas.Elas existem e so as piores. s vezes, a pessoa luta e consegue uma vitria pessoal ou social.Mas, ao mesmo tempo, ela se auto-destri porque no se acredita. No se v capaz daquilo.No se gosta. Internaliza a discriminao de tal forma que passa a se auto-discriminar semse dar conta. Este o perigo maior!

    As pessoas negras so continuamente discriminadas, como lidar com essa violn-cia em termos emocionais e afetivos?Isildinha - As pessoas negras so contnua e permanentemente discriminadas e lidar com adiscriminao muito difcil, pois ela destri a possibilidade de ser. Porm, no momento emque percebemos que a nossa histria pessoal se insere na histria da sociedade e da cultura,comeamos a produzir antdotos contra o veneno da discriminao.

    As marcas da infncia so difceis de serem removidas? Isildinha - Eu diria que quase impossvel. O que se imprime na primeira infncia parasempre. De 0 a 6 anos vivemos muito prximos da famlia. Algum pode perguntar: mascomo que o racismo chega se ns vivemos muito prximos da famlia? A resposta que oracismo internalizado. Nossos pais, certamente, sofreram o olhar da discriminao. A pr-pria famlia vivencia essa dor, essa ferida. As relaes originais as primeiras da vida queincluem pai e me - so importantssimas. A maneira como nossos pais nos vem, como nsvamos nos ver para o resto das nossas vidas. Feridas da infncia no saram nunca. O que agente pode aprender, ao longo da vida, como lidar com elas.

    Como fazer o curativo?Isildinha - Um curativo permanente. E de to bom que fica, a gente consegue andar bem.Mas se esse curativo nunca foi feito difcil. A gente caminha, mas caminha cheio de dor.No um caminhar muito firme, um caminhar cambaleante.

    importante o olhar do outro?Isildinha - Ns s somos sujeitos porque existimos no olhar do outro, por isso somos quemsomos. Eu s sou psicanalista porque o outro me reconhece psicanalista. Eu no posso meauto nomear desse lugar do sujeito. Ser no prprio olhar algo que construmos ao longo davida, mas essa construo no nos nomeia enquanto sujeitos. O sujeito feito e anunciado naprimeira infncia.

    Se eu sou s sujeito no olhar do outro e se o outro no me v, eu no sou!Isildinha - Uma das conseqncias disso, algo muito triste, quando voc percebe que a gran-de populao dos hospitais psiquitricos do Pas negra. Por qu? Eu tenho a impresso quetem a ver com a histria de no ter um lugar, de no ser. medida que a pessoa se sente uma coisa e no se sente como pessoa. No ser visto enlou-quecedor.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 41

  • 42

    Conhecer as origens de uma dor ajuda a super-la?Isildinha - a nica maneira! No sei se de fato ns vamos s origens, mas creio que a genteconsegue se aproximar muito daquilo que provoca a dor. Ao descobrirmos o que que provo-ca a dor, podemos escolher se queremos aquilo ou no. Quando me perguntam qual o obje-tivo da psicanlise, eu respondo com as palavras da grande psicanalista Maud Mannoni: oobjetivo da anlise tornar a pessoa sujeito da sua prpria histria. Quando sabemos qual a nossa histria, podemos nos tornar donos dela. Enquanto no se entende direito e no sesabe que histria essa, no assumimos o personagem principal, ou seja, a pessoa no setorna o sujeito da prpria histria. muito bom ter o controle da nossa histria. Ir derivapara a vida e na vida muito dolorido, porque nunca se sabe onde vai bater. Quando agente se conhece um pouquinho, ns sabemos onde, como, quando e contra quem se bater. qualitativamente diferente.

    No Brasil, a discriminao tenta pr os negros na invisibilidade? Isildinha - Exatamente. Ao ser colocada na invisibilidade, a pessoa se torna um fantasma. Agoraquando se tem noo clara dos mecanismos de discriminao - como e por que ela surgiu; quais asideologias que a sustentam - a pessoa tende a tomar posse dessa histria de um outro lugar. Apartir desse conhecimento, ela se transforma em um cidado ou cidad que se d o direito de, seoutorga o direito de. Quando entendemos que temos direto a ter direitos, lutar um prazer. Caso contrrio?

    Isildinha - Quando a pessoa no entende que tem direito, a luta passa a ser um peso, vira tor-mento, porque no se sabe exatamente pelo que se est lutando, nem para qu, nem contra oqu, nem a favor do que, nem para onde se vai, e nem para onde isso vai levar. muito ruim.

    Em geral, as palavras preconceito, discriminao e racismo so empregadasindiscriminadamente. Como voc conceituaria cada termo?Isildinha - De uma certa forma, o preconceito nos faz preservar nossa identidade, nosso car-ter identitrio. Por exemplo, se eu sou corintiana obviamente acharei que os so-paulinos soum horror. Direi: o So Paulo pssimo, ele no joga. J Corinthians por mais que perca, o melhor time do mundo. Nesse caso, o preconceito ajuda a me perceber parte de umgrupo. Em outros casos, ele ajuda a me perceber parte de um lugar, de uma etnia, de umconjunto de valores. A discriminao mais perigosa, porque segrega. Voltando ao exemplodas torcidas: quando eu impeo os so-paulinos de ir para o estdio, eu estou discriminando.Agora, o dia em que eu disser: todos os so-paulinos devem morrer, eu estou obviamentesendo racista. O racismo busca se justificar em supostas inferioridades de ordem biolgica,se liberando para o descarte.

    Ento somos todos preconceituosos?Isildinha - O ser humano na sua natureza preconceituoso. Para criar o carter identitrio,temos como base o preconceito. O preconceito ajuda a diferenciar um grupo de outro. Agora,quando esse vis da natureza humana se exacerba, camos na discriminao e quando ela sefecha absolutamente camos no racismo. A partir da o horror. Hitler no nos deixa mentiracerca das conseqncias do racismo.

    Na formao do AMMA, voc falou do ideal de alcanar a brancura.Explique melhor.Isildinha - A brancura est posta para a humanidade como a perfeio. No importa qual araa, a etnia, a cultura em que viemos, todos temos o ideal da perfeio. A brancura seria aperfeio. Quem no gostaria de ter nascido um grande msico, um grande poeta, um gran-de mdico? As crianas dizem: Quando eu crescer, quero ser um grande cientista, um gran-

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 42

  • 43

    de bombeiro, uma grande bailarina. Ningum que ser pequeno. Posto que o modelo dasgrandes atitudes ou das grandes obras vieram dos brancos e no dos negros, eu digo que ahumanidade desejante da brancura. At porque Deus e Cristo so representados comobrancos, o cu dos brancos! Quando falo brancura penso no branco como ideal de pureza.Os humanos so desejantes da pureza, mesmo porque nenhum ser humano, de nenhumaetnia, se sente puro, brancos e negros. A brancura est para alm dos brancos.

    Ento sempre existiu esse af de alcanar a pureza? Isildinha - Pureza inatingvel. Mesmo aquilo que consideramos perfeito est sempre aliado imperfeio. Na verdade, nenhum gnio foi desprovido de defeitos ou do seu lado malvolo.Isso interessante. Por exemplo, Amadeus Mozart (1756-1791) foi um gnio da msica maspsiquicamente desequilibrado. Louis Althusser (1923-1998), outro gnio, matou a mulher.No existe a perfeio nem entre os chamados gnios. A brancura um ideal porque elano existe. No fundo, todos ns, negros e brancos, temos esse desejo de perfeio.

    No Curso, voc falou tambm sobre a importncia de as pessoas refletirem acer-ca de seus ancestrais. Isildinha - A idia de famlia para os negros muito recente. Os negros chegaram no Brasilcomo escravos. ramos considerados peas, coisas, objetos e vendidos enquanto tal. No ra-mos vistos como seres humanos. A famlia nuclear tem origem no casamento e os negros nopodiam se casar entre si. Podiam e deviam procriar. Cada senhor tinha um negro que era oreprodutor. As crianas negras eram vendidas antes de nascerem. A escrava tinha como fun-o amamentar o filho do senhor, mas no o seu prprio filho. O seu filho era amamentadopor quem estivesse disponvel na senzala.

    At que chegou a Lei do Ventre Livre.Isildinha - Foi a primeira possibilidade da criana negra permanecer com a matriz, isto , coma me. A origem da famlia negra matriarcal, no patriarcal. Com o Ventre Livre (1871)a escrava tinha o direito de ficar com o seu filho, mas no havia nada em relao ao direitodo pai ou acerca do casamento. Como herana dessa circunstncia, at hoje, as figuras fortesdas famlias negras so as mulheres. E muitas famlias ainda seguem gregrias. Muitas crian-as no sabem quem o pai.

    Ou ele foi embora.Isildinha - Durante sculos de escravido, os homens negros no tinham o direito a pensar emcasamento, porque a escrava era um objeto do senhor. O senhor poderia possu-la. Vamoslembrar que a idia de casamento idia de territrio e de posse. O homem negro nuncapde ser dono de uma mulher. Ele no tinha direito a nada. Era desprovido de qualquersentido de posse, seja de coisas materiais ou de vnculos afetivos e sociais. Jogar luz nessaquesto desmonta o mito de que os negros so incapazes de fazer famlia.

    Essa fora da mulher negra se estende at os nossos dias?Isildinha - A mulher negra tem uma posio de poder dentro do que se entende por famlia.Quem manda na famlia negra a mulher. O homem negro est subordinado mulher. Noentanto, do lado de fora da famlia o masculino segue representando o poder. O falo ainda um poder muito grande. preciso entender que a categoria me recente para a mulhernegra. Mas quando ela pde ser me, ela usou de toda a sua fora para manter isso. Em geral,a me negra uma me feroz, controladora, dominadora. Lembrando um pouco de Jung(1875-1961), pensando na fora dos arqutipos, entendo que a maternidade absolutamenteforte para a mulher negra. Dificilmente ela abre mo dos seus filhos, nem que seja para andarcom eles na rua, arrastando meia dzia de filhos. Ela no abre mo da maternagem.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 43

  • Afinal o que auto-estima? Qual a relao entre auto-estima e assumir a negritude?Isildinha - A auto-estima importante para brancos e negros. Ela uma construo. Nenhumde ns, branco ou negro, nasce com auto-estima. Ns construmos nossa auto-estima aolongo das relaes originais, afetivas, sociais. A auto-estima aquilo que nos reconhece dolugar positivo, do lugar do possvel, da possibilidade. Sempre que h uma impossibilidade dereconhecimento, instala-se a baixa auto-estima. Quem sofre discriminao no pode ter umaboa auto-estima, porque no tem o reconhecimento. At para que o racismo se mantenha,tem que se manter a baixo auto-estima. Como fazer isso? Por meio da ideologia de que ooutro inferior.

    Voltamos histria do olhar.Isildinha - A auto-estima o que nos d confiana de que somos queridos, amados, capazes.Agora se somos vistos como uma coisa suja, ruim, nojenta, como que ns vamos ser capa-zes de fazer alguma coisa de bom? Impossvel! impossvel ter auto-estima num regimeracista.

    A sociedade brasileira est menos racista?Isildinha - Ela sempre foi e continua sendo racista. A diferena que hoje o racismo estmais exposto. A mscara comeou a cair e quanto mais ela cair menos dor teremos. medidaem que o mito da Democracia Racial ruiu, ns, os negros, deixamos de nos imaginar birutas,loucos, lutando contra o nada. A Democracia Racial era uma enorme mentira que s nos fezmal.

    O racismo feito de ignorncia ou de dio? Isildinha - O racismo feito da ignorncia e o dio um elemento da ignorncia. O racismo destruidor na sua essncia. Normalmente se racista por ignorncia. As pessoas no tm ohbito de pensar por que que elas optam por uma coisa e no por outra. Porque optarampor um modo de pensar ou por um modo de ser. Nenhum racista sabe explicar porque racis-ta. O motor fundamental do racismo a ignorncia.

    Voc acredita que as leis anti-racistas, a Lei Educacional do Estudo da frica, asAes Afirmativas ajudaro a populao negra brasileira a melhorar a sua qua-lidade de vida?Isildinha - Entendo que as leis so importantes at que a gente aprenda. Uma lei nos obriga apensar, a nos posicionar em algum lugar. Ento a lei nos educa. As Aes Afirmativas aju-dam os negros a pensar acerca dos seus direitos e ajuda os brancos a pensar nos direitos dosnegros. Tambm h problemas, sabemos que as Aes Afirmativas no trouxeram para osnegros norte-americanos nenhum paraso; trouxeram alguns benefcios. Em suma, penso asAes Afirmativas como uma etapa, no como uma panacia para todos os males. Elas signi-ficam um bom comeo.

    O que ainda no aprendemos?Isildinha - No aprendemos que a diferena no faz mal. A diferena rica. Sonho com o diaem que possamos ver na diferena estmulos de crescimento, enriquecimento, possibilidade desermos felizes.

    44

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 44

  • 45

    N E G R O S Populao mais vulnervel em todos os

    aspectos. As mulheres negras so todas guerreiras,

    pois, mesmo com o mundo contra elas,resistem.

    Elas reerguem seu povo, reencantando ereconstruindo a nossa histria.

    Imagem dos negros, (homem e mulher)mais negativa do que positiva em relaoaos brancos.

    Vivem em um mundo diferente dos brancos, por causa do preconceito.

    Sofrem preconceitos. As negras so mais discriminadas. Os homens negros so menos discrimina-

    dos, impem mais respeito. Pessoas vencedoras, pois conseguiram

    driblar o racismo que no os deixa viver em igualdade.

    Sofrem com o preconceito da sociedade. Enfrentam preconceitos para trabalhar

    nas empresas. Ganham menos do que os brancos. Sofrem em um mundo racista e

    preconceituoso. So socialmente desfavorecidos. So julgados pela sua cor, no por

    aquilo que so. A mulher negra uma mulher guerreira

    e muito sofrida. Esto excludos tanto do mercado de

    trabalho quanto da sociedade.

    ATIVIDADE COMPLEMENTAR: A REPRESENTAODE NEGROS E BRANCOS NO IMAGINRIO SOCIAL

    Parte integrante da metodologia do Curso Efeitos Psicossociais do Racismo foi a aplicao deatividades extra-curso. Os participantes foram instigados a entrevistar pessoas nas ruas eno ambiente de trabalho. A seguir, o resultado do trabalho de dois participantes .

    Leia as respostas pergunta formulada: Qual a imagem que voc tem de negros e brancos?

    B R A N C O S Alguns brancos continuam reproduzindo

    a opresso. Os homens so oportunistas, se

    fundamentam em preconceitos para explorar e degradar outras pessoas.

    A mulher cmplice e beneficiria da opres-so gerada sobre mulheres e homens deoutras etnias.

    Conseguem sempre uma boa imagem. Pessoas sem problemas. So cheios de preconceitos. Sempre levam vantagem na busca

    de empregos. Pessoas preconceituosas (...) que esto

    aprendendo que o preconceito no leva a lugar nenhum.

    Alguns se acham melhores do que os negros. Eles tm muitas facilidades, principalmente

    no mercado de trabalho. Muita facilidade para trabalharem em

    qualquer empresa. Detm mais privilgios. No sofrem os mesmos preconceitos. So socialmente favorecidos. So preconceituosos com as pessoas negras. Acessam mais oportunidade, especialmente

    no mercado de trabalho. No sofrem a desconfiana dos outros. Tm mais oportunidades na vida do

    que um negro. Penso que todos os brancos se beneficiam

    direta ou indiretamente do racismo. A imagem de riqueza, fama e de muita

    inteligncia.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 45

  • 46

    Negra, 20 anos, auxiliar administrativoAcredito que a cor ou a textura do cabelode uma menina negra, crespo ou liso, noinfluenciar a sua conscincia racial. Oprincipal o que est no interior da cabeae no no seu exterior. Afinal, ns queremosigualdade para todas as etnias. A versatili-dade bem-vinda: as pessoas podem mudaro cabelo e ningum vai dizer que esto indocontra as suas razes. A evoluo da hist-ria faz com que as pessoas queriam serdiferentes das pessoas dos sculos passados.

    Negra, 24 anos, estudante de Cincias Contbeis Essa me precisar buscar mais conheci-mento, pois se sua filha for aprender sozinha ser pior, uma vez que a sociedade fria e calculista. A menina talvez no con-siga descobrir a verdadeira beleza de sernegra.

    Negra, 23 anos, estudante de Jornalismo Totalmente errada a conduta da me. Eladeve procurar exaltar as qualidades damenina, a beleza de ser negra e no camu-flar a situao. Comprando uma peruca elaest admitindo que ser branca melhor.Deve fazer um trabalho para que a filha seaceite, tenha auto-estima por ser negra, eno reforar o estigma de que o cabelolouro e liso melhor. Pela atitude da me,percebe-se que ela no possui boa auto-esti-ma e muito menos conscincia racial.

    AUTO-IMAGEM DA CRIANA NEGRA

    Formulou-se a seguinte questo: uma menina negra queria ter o cabelo louro eliso como o da apresentadora Xuxa, tendo entrado num processo de auto-rejei-o to doloroso, a me, em desespero, comprou uma peruca para ela. Confiraalgumas opinies:

    Branca, 42 anos, psicloga Esta me, ao comprar a peruca, refora oprocesso de anulao e auto-rejeio vividopela filha. Nem o desespero justifica estaatitude, pois imprime na filha a certeza deque s assim ser aceita. Ser que a meno partilha desta convico? Pois de outramaneira, teria investido na valorizao desuas prprias caractersticas e facilitado osentimento de auto-aceitao.

    Negra, 21 anos, auxiliar administrativo A me deveria se informar sobre sua pr-pria etnia para passar uma imagem positivado negro, e no tentar resolver o proble-ma comprando uma peruca loira. A meninacom certeza ir crescer preconceituosa comsua prpria cor.

    Negra, 29 anos, advogada Eu considero que enorme a influncia damdia no processo de embranquecimento danossa cultura, bem como nos nossos concei-tos de beleza. Tudo leva a crer que noseria exigvel, quando se trata de uma garo-ta jovem, conscincia racial. Especialmentequando se v, como no caso levantado, queos pais no possuem essa conscincia e notiveram condies de preparar os filhosnegros para viverem num mundo branco.Necessrio se faz um trabalho psicolgico ede contato com a cultura negra.

    No declarou a etnia, 18 anos, secretria Do meu ponto de vista, isto acontece quan-do ns no nos gostamos. Quando a pessoase gosta no deixa que sua admirao poralgum ultrapasse seu prprio eu.

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:50 Page 46

  • 47

    O corpo nossa casa. Casa que habitamos do nascimento at morte. O corpo tambm a nossa presena indelvel nos espaos domundo. Ele tambm o lugar onde carregamos nossas razes e emo-es.

    O corpo nunca passivo: o mundo imprime marcas no nosso corpo enosso corpo imprime expresses no mundo. H todos os tipos de cor-pos: gordo, magro, alto, mdio, baixo.

    Corpos brancos, corpos indgenas, corpos asiticos, corpos negros sorigorosamente iguais: cabea, tronco, membros, um corao, umfgado, dois rins, uma bexiga, um bao, dois pulmes etc. Uma nicadiferena fundamental: corpos femininos, corpos masculinos.

    Ento qual o sentido de falarmos em corpos negros e corpos no-negros? um sentido poltico. Os corpos carregam, para alm dosmembros e dos rgos internos, paisagens da Histria.

    A cor dos corpos, os traos da exterioridade so colocados em espa-os desiguais no mundo.

    Durante a Formao sobre Os Efeitos Psicossociais do Racismo,os debates em torno do corpo foram uma presena constante. Nosomente o corpo fsico, mas tambm o corpo simblico.

    Tambm foram propostos vrios exerccios corporais, entre eles, derelaxamento e autoconhecimento.

    Liane Zink foi responsvel por aprofundar o tema e desenvolveu umadinmica 100% emoo. Ela props que o grupo de participantespusesse o dedo na ferida, dramatizando o silncio familiar emtorno do sofrimento dos escravos.

    O CORPOSer negro ser violentado de forma constante, contnua ecruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injuno: a deencarnar o corpo e os ideais de ego do sujeito branco e orecusar, negar e anular a presena do corpo negro.

    Jurandir Freire Costa

    24618001 miolo:Layout 1 03.07.08 17:51 Page 47

  • 48

    ENTRE O SILNCIO E O GRITO

    Para Liane Zink, o corpo e a mente batem em um scompasso. Sendo o corpo a ancoragem das emoes,advindas do prprio eu e, tambm, das circunstn-cias sociais e histricas nas quais cada indivduo seinscreve. Psicoterapeuta e educadora corporal, Liane uma das diretoras do Instituto Brasileiro deBiossntese ramo do conhecimento que integra sen-timento e pensamento.

    Sua experincia profissional larga e enrgica comoela. Com trinta anos de estrada, trabalhou em vriospases. Portanto, teve o privilgio de conhecer e refle-tir acerca de culturas e posturas corporais diferentes.

    Liane Zink enfrentou muita ignorncia e preconceitoem relao ao seu trabalho. Foi tachada de superficialou muito sexualizada por intelectuais engessados.Por ser filha de um general do exrcito, durante osanos de ditadura, sofreu a desconfiana de colegas dauniversidade.

    Dona do prprio nariz e da prpria cabea, Liane nose intimidou e construiu uma vigorosa histria profis-sional.

    Corpo e cultura