piratas de galochas - compilação teórica

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Compilação teórica sobre o processo de montagem do espetáculo Piratas de Galochas na Luz, espetáculo em formato de passeio realizado pelo Coletivo de Galochas pelas ruas do bairro da Luz, na estigmatizada região da Crackolândia.

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  • Coletivo de Galochas

    Piratas de Galochas na Luz

    Reflexes sobre o processo

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    ndice

    Introduo ......................................................................................................................... 3 Pedro Paulo Rosa

    Fico, realidade e calejamento ........................................................................................ 4 Daniel Lopes

    O lugar de onde se v ....................................................................................................... 7 Nina Nussenzweig Hotimsky

    Jogo e improviso: um olhar do ator sobre o processo .................................................................................. 12 Ighor Walace

    A Luz, os Piratas e seu pblico ...................................................................................... 15 Pedro Paulo Rosa

    Hierofania na Helvtia: Princpios do mascaramento no espetculo Piratas de Galochas ................................... 21 Las Trovarelli

    Processo de criao Corporal ......................................................................................... 25 Felipe Bitencourt

    A criao da voz do ator no espao pblico: Origem no corpo, projeo no espao ............................................................................ 29 Gabriel Hernandes

    Operacionalizao da prtica: Iluminao e Sonoplastia ................................................................................................ 40 Cau Martins

    Teatro de Invaso e Ocupao: Espao, suas determinaes e sua potncia criativa ....................................................... 43 Rafael Presto

    Referncias ..................................................................................................................... 55

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    Introduo

    Reflexes acerca da criao teatral Piratas de Galochas nas ruas do bairro da

    Luz, So Paulo.

    Pedro Paulo Rosa

    Aps realizar a temporada da pea Piratas de Galochas nas ruas do bairro da

    Luz, o Coletivo de Galochas teve como proposta debruar-se sobre seu fazer teatral, de

    modo a refletir teoricamente a partir do processo vivenciado. Durante quatro meses (de

    maio agosto) o Coletivo realizou ensaios semanais no bairro da Luz, a fim de re-criar

    o espetculo Piratas de Galochas. A pea foi originalmente criada em 2011, fruto de

    um processo colaborativo realizado nos prdios da Ocupao Prestes Maia, um conjunto

    de prdios que, anteriormente abandonados, foram ocupados pelo Movimento dos Sem

    Teto do Centro (MSTC) e servia de moradia para mais de 380 famlias. Concomitante

    criao da pea, o Coletivo de

    Galochas participou da criao de

    um Ncleo Cultural na Prestes

    Maia, e foi l que a pea Piratas de

    Galochas teve sua primeira

    temporada, em novembro de 2011.

    Em 2012, o grupo teve

    anseios por experimentar essa pea

    em outros espaos, e escolheu as

    ruas da Luz, regio estigmatizada como Cracolndia. A proposta era deixar o prdio da

    Ocupao e ocupar as prprias ruas da cidade. Apesar de j ter uma dramaturgia e

    montagem bem definidas, ao chegar s ruas o grupo percebeu a necessidade de re-criar

    a pea, a partir desse novo espao.

    Depois de quatro meses de ensaio, Piratas de Galochas estreou na Luz, ficando

    em cartaz de incio de setembro at meados de outubro. Passada a vivncia, cada um

    dos integrantes do grupo escolheu um ponto do processo a ser debatido, elaborando uma

    breve reflexo escrita sobre o assunto. Aqui, temos a compilao desses textos, escritos

    pelos participantes do Coletivo de Galochas.

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    Fico, realidade e calejamento

    Daniel Lopes

    Antes de qualquer coisa a dor - sinto uma profunda e inexplicvel. Tentando

    refletir sobre o processo de ator com a adaptao do espetculo Piratas de Galochas no

    bairro da Luz, sinto o peso de todo o processo de criao, cujo gozo proporcional.

    Ao idealizar o projeto, que posteriormente foi contemplado pelo Programa de

    Valorizao de Iniciativas Culturais (VAI) da Prefeitura de So Paulo, queramos

    continuar a pesquisar atravs da re-significao do espao, discutir temas como a

    especulao imobiliria e a gentrificao do centro.

    Em nossa primeira montagem dentro da ocupao de sem-teto Prestes Maia,

    percebemos a potncia do jogo da pirataria como matria ficcional e a realidade dos

    ocupantes, interpondo nossa dramaturgia corrosidade do espao.

    A adaptao seguiu os mesmos preceitos, mas ingenuamente acreditvamos que

    o mais difcil j estava feito. Ao depararmos com nosso novo espao cnico

    percebemos que as questes abordadas dentro da ocupao no dariam conta da

    complexidade do bairro.

    Analisando a adaptao, o que mais me marcou foi a diferena entre a situao

    da ocupao e a das ruas do bairro. Dentro da Ocupao, apesar de sempre estar em

    conato com o lado mais podre da gentrificao e da desvalorizao do ser humano,

    estvamos embotados por um sentimento de luta; por nossos direitos, contra a violncia

    vivida todos os dias pelas famlias ocupantes.

    Quando iniciamos nosso processo nas ruas o que vimos era violncia tambm,

    mas ela estava materializada de uma forma muito mais desanimadora; a violncia da

    polcia quanto aos usurios de crack, pessoas em situao de rua, moradores de penses

    temendo perder seus lares, crianas e nenhuma luta aparente, sem perspectivas de

    mudana. Isso destri qualquer um, at mesmo o mais bravo dos piratas, mesmo

    pensando ter velejado todos os mares e enfrentado todos os monstros. Al estava um

    oponente invisvel, inominvel, encontramos apenas uma pista para o tal, o Projeto

    Nova Luz, projeto urbanstico que pretende operar grandes mudanas na regio

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    estigmatizada de Cracolndia pela prefeitura, a partir de uma perigosa lei de Concesso

    Urbanstica, sem nenhum dilogo com moradores, desapropriando para valorizar as

    propriedades no mercado imobilirio.

    Por que todas essas questes so invisveis, mesmo que a mdia trate sempre da

    Cracolndia? Por que agora sinto esse incomodo e dio que antes era apenas um

    pequeno mal-estar?

    Na pea sou o capito dos piratas, e assim como meu pattico pirata me encontro

    perdido, deriva com muitas questes e nenhum mapa do tesouro.

    Na rua a possibilidade de nossa fico tornar-se apenas fantasia, uma brincadeira

    de criana, perante a constante interveno dispersiva da realidade ainda maior. O que

    podemos fazer? O que um grupo de

    artistas est fazendo em um local

    como aquele? Muitas dvidas

    tumultuavam nossos ensaios e

    apresentaes.

    Em uma de nossas

    apresentaes um senhor transtornado

    exclamou: Eles (apontando para

    usurios de crack que estavam

    amontoados na calada, prximos a nossa cena) No precisam de fantasia, eles precisam

    de ajuda.. Esse senhor nos acertou em cheio, conversamos muito sobre o assunto. De

    incio defendi que no estvamos l para ajudar, no era essa a nossa inteno, mas essa

    parece ser uma soluo fcil para o problema. No queremos transformar os problemas

    daqueles sujeitos em espetculo, assim como vemos diariamente na televiso. Ento

    qual a importncia da potica do pirata?

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    Pensando em todas essas questes e tantas outras que viriam, decidi me preparar

    fisicamente para o trabalho na rua, que convenhamos exige um esforo hercleo tanto

    do ator quanto do pblico. Pretendendo ganhar condicionamento fsico, comecei a

    treinar Muay Thai em 2012. Diferentemente de todas outras artes marciais, esta luta de

    origem tailandesa usa as canelas ao invs dos ps para executar os chutes e as defesas

    tambm, o que muito dolorido. Com o tempo a dor diminui, devido ao trabalho de

    calejamento e tambm pelo fato de nos

    acostumarmos com a mesma.

    Como ator, associo todas as

    experincias cotidianas ao meu fazer artstico.

    Assim, penso que o teatro funciona de forma

    oposta ao calejamento executado nas artes

    marciais. Nossos piratas descobrem feridas da

    cidade e as abrem, mesmo que comicamente,

    uma piada indigesta, e por isso que se torna

    uma experincia to intensa.

    Dentro da cidade o normal o total

    calejamento, fazemos isso como uma defesa

    inconsciente, uma forma de convivermos com

    tanta violncia sem prejudicar nossas vidas,

    mas essa defesa extremamente perigosa. Sem

    perceber que somos violentados e que o ser humano est em ltimo lugar nas polticas

    pblicas, deixamos tambm de nos revoltar. A mdia nos mostra a violncia, mas ela usa

    do artifcio sensacionalista e a transforma em um produto que compramos para

    sentirmo-nos mais humanos, essa sensibilizao nunca associada s suas causas, quase

    sempre apenas mais uma forma de calejamento alienador.

    O teatro nossa forma de ter uma experincia compartilhada com o pblico.

    Atravs da fico tentamos interagir com a realidade, participar e transform-la

    Agradeo a todos meus companheiros de barco, ao pblico, as crianas que

    acompanharam todo o processo, que enfrentaram todas as dificuldades da rua; a

    fragilidade de nosso trabalho perante a tudo, a insuficincia de nossas vozes, ao frio,

    chuva, e principalmente ao desgaste emocional. Vocs abriram uma ferida em mim.

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    O lugar de onde se v

    Nina Nussenzweig Hotimsky

    [Teatro, da palavra grega Theatron: lugar de onde se v.]

    I.

    Praa Jlio Prestes, Helvetia, Dino Bueno: lugares que estiveram em evidncia

    desde Janeiro de 2012. Operao policial, manifestaes da sociedade civil organizada,

    cobertura intensa da mdia. Segundo semestre de 2012: o que um grupo de teatro vai

    fazer por ali?

    A exposio ou o ocultamento de situaes sociais no so fortuitos, so opes

    que servem a determinados interesses. O Estado moderno faz viver ou deixa morrer.

    Rubens Adorno 1, etngrafo que estudou o bairro da Luz, fala da invisibilidade de

    populaes como um dispositivo para deixar morrer. Certas pessoas morrem enquanto

    no falo sobre elas.

    Talvez por isso o acmulo de usurios de crack em determinados pontos da

    cidade incomode tanto; mais difcil ignorar as pessoas quando elas se renem em um

    mesmo tempo-espao. Diz Henrique Carneiro que o crack a faceta visvel da

    misria. Visvel, mas silenciada por longos perodos. O bairro da Luz sofreu uma

    operao policial intensa em 2008, andou um tempo em banho-maria, e voltou a

    estourar (com armas e noticirios) em 2012...

    Qual o motivo de olharmos a Luz? Existe um novo projeto para o bairro, a

    chamada Nova Luz, amparada por um projeto de Concesso Urbanstica. Para que

    Parcerias Pblico Privadas funcionem, preciso atrair investimentos para a regio e os

    investidores precisam de garantias. Foi criado o termo Cracolndia: preciso

    estigmatizar os bairros do centro para ento revitaliz-los. Comprar a preo de

    1 Fala realizada no seminrio A cracolndia muito alm do crack. Faculdade de Sade Pblica da USP, 28 a 30/05/2012.

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    Cracolndia, vender a preo de Nova Luz2. Desenhar simbolicamente a Cracolndia

    exige alarde, espetacularizao.

    Falamos sobre fluxos populacionais e urbansticos e sua ligao com a

    circulao de discursos. As pessoas, a cidade, e o campo simblico. Esconder ou dar a

    ver, tornar invisvel ou visvel, objetificar ou espetacularizar? Resta fazer a passagem

    o que a mdia e a polcia agiram na Luz, e o que os artistas teatrais foram fazer ali no

    segundo semestre de 2012.

    Uma coisa ensaiar; quando ensaio estou desarmada. No perodo de criao da

    pea, o Coletivo de Galochas acostumou- se a viver ao menos uma interveno por dia.

    Ao menos uma pessoa pertencente ao bairro fazia questo de tornar-se visvel.

    Uma senhora me beija: voc parece tanto a minha filha de dezesseis anos!

    Olha, t vendo as trs estrelas? (Aponta para o cu, volta para a terra). Voc vai me

    ajudar?.

    Um palhao profissional latino-americano escuta o ator falar em liberdade, entra

    em cena e pergunta: O que es Libertad?.

    Hernandez, clarinetista bbado (mas sem preconceito com outras drogas) v os

    atores em roda e impe-se cenicamente: Isso algo, isso algo! Eu, vocs, esse

    crculo, a iluminao. Deus no lgico, porque a vida no lgica. Deus para ser

    sentido. A vida tambm improviso.

    Uma senhora atravessa o aquecimento corporal gritando suas bravatas: Cis

    moram com a me! Paga um cursinho da Poli pra mim! O saber pesa, n?. Respondo

    aflita que ela tem razo de estar brava. Voc no psicloga!. Um ator pondera:

    Voc j chegou atacando.... Ela responde: A melhor defesa o ataque. Luta de

    classes, pois . Os atores do Coletivo de Galochas se assemelham em algo com os

    futuros moradores da Nova Luz, com os espectadores da Sala So Paulo, com as

    pessoas que passam com medo por aquelas ruas. Vocs esto fugindo, esto fugindo!,

    gritava a senhora ao final. No, senhora, precisamos mesmo ensaiar a prxima cena na

    prxima esquina.

    2 Frase de Mariana Fix, urbanista, no debate: Cracolndia. Faculdade de Sociologia e Poltica de So Paulo, 15/06/2012.

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    Anedota ltima: o homem que senta na roda de conversa tendo na boca um

    cigarro ao contrrio. Ele responde, Eu sei, eu sei. Vocs no tm noo de onde eu

    estou. (Respira fundo em sua brisa). Aqui a Cracolndia, porra!.

    Perodo de ensaios. A cidade nos atravessa, e atravessa a dramaturgia.

    II.

    a Luz, A p,

    o Oceano e o Barco.

    Outra coisa apresentar. Paramentada por uma barba, maquiagem, figurino, luz,

    sonoplastia: o que fao nas ruas da Luz? O que se torna aquele lugar? Oceano e bairro

    em concesso urbanstica. preciso jogar com os colegas atores, e preciso jogar com

    a platia - sem esquecer

    quem j estava ali antes de

    chegarmos...

    Parte de quem j

    estava ali so os

    moradores das penses

    prximas. Famlias,

    trabalhadores, imigrantes,

    ciganos e crianas. Pessoas

    que receiam ter de se

    mudar, caso a transformao em Nova Luz faa o aluguel subir muito. Os adultos

    nem sempre saem de suas casas, mas elegem uma ou outra cena para assistir de suas

    janelas. As crianas entram de cabea na pea, a nova brincadeira nas noites de final de

    semana.

    Mas h quem j estava ali como bode expiatrio. Quem vivia a sua festa at a

    polcia chegar. Quem veio provocar ao longo dos ensaios. Aqueles que apanharam,

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    aqueles de quem a mdia tanto falou, aqueles que acostumaram-se a ver passar pessoas

    com medo. Qual era a relao deles com a pea?

    Um teatro na rua no pode obrigar ningum a ter interesse. Alguns usurios de

    crack tinham prazer em assistir a pea, mas muitos deles no se mobilizavam para tanto.

    Essa uma opo que no cabe criticar. O grupo pode se perguntar: at que ponto a

    pea convidava esses espectadores?

    Alm de possveis espectadores, os usurios de crack tornavam-se elemento de

    leitura da pea. Espectadores que vinham de fora passavam seus olhares pelas pessoas

    nas caladas, e essa viso necessariamente integrava a sua experincia ao assistir

    Piratas de Galochas. Estar em cena na rua faz perceber como a cidade mais

    interessante que o ator. No cabe competir, preciso lidar com o que a rua oferece

    (grande desafio para atores to jovens!). O que a pea fez dos usurios de crack?

    Duas foram as preocupaes:

    1. No quero torn-los invisveis.

    Moradores de So Paulo esto acostumados a no ver a misria.

    Para qu montar uma pea na to alardeada Cracolndia se pretendo tocar a todo

    custo a fbula dos Piratas? Qual o peso simblico de uma cena atravessada por um

    carroceiro, se o ator o ignora?

    2. No quero a visibilidade espetacularizada.

    A pea um passeio pelo centro. Ela pde permitir que alguns espectadores de

    classe mdia olhassem ao vivo o que a televiso retratou. Pisar a Helvetia com a Dino

    Bueno. No ter tanto medo.

    As cmeras televisivas captaram os usurios do crack como bodes expiatrios.

    Como os espectadores de Piratas de Galochas (espectadores intencionais, vindos de

    outras regies da cidade para assistir a pea) captaram quem estava diante deles?

    III.

    Desenvolvidas algumas das preocupaes e contradies, um apontamento final.

    Nos ltimos finais de semana da temporada, a regio da Luz foi pesadamente

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    higienizada. A operao policial se intensificou quem sabe, por conta do segundo

    turno das eleies municipais.

    Subitamente, as esquinas barulhentas silenciaram, e as caladas lotadas se

    esvaziaram. Que paz. Paz. Paz.

    Uma batida policial violenta em frente ltima cena fez lembrar o custo da

    aparente limpeza. Impossvel saber quantos espectadores perceberam essa outra cena.

    Como atriz, preferia as contradies da rua lotada ao silncio cruel do

    higienismo.

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

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    Jogo e improviso: um olhar do ator sobre o processo

    Ighor Wallace

    Cracolndia o nome pelo qual conhecida uma regio do bairro da Luz na cidade de

    So Paulo, situada prxima a uma grande estao metro-ferroviria. Incrustrado neste espao

    de grande circulao urbana existe uma rea expressiva aonde drogas so comercializadas e

    consumidas abertamente. Uma vida marginal - hoje sob intensa vigilncia, que varia da total

    passividade agressividade ostensiva - mas que ambiente comum de trabalhadores, crianas,

    empreendedores...

    O Coletivo de Galochas, carregando consigo a experincia do trabalho de um ano na

    Ocupao Prestes Maia, escolheu adaptar o espetculo Piratas de Galochas para o contexto da

    Cracolndia, remontando pesquisa de teatro na rua realizada no primeiro trabalho do

    coletivo.

    No incio do processo realizvamos treinamentos corporais dentro da Estao da Luz e

    suas imediaes, assim como improvisos onde as peculiaridades dos espaos eram os maiores

    provocadores e nossa principal funo era jogar com o entorno. Pouco a pouco fomos nos

    aproximando da praa Prestes Maia, em frente Sala So Paulo - uma luxuosa casa de

    concertos e eventos - e desta Cracolndia em questo (posto que a terminologia tornou-se um

    conceito que se espalhou pela cidade com o aumento do policiamento naquela regio

    especfica), intensificando os treinamentos, nos preocupando mais com a preparao vocal e

    definindo cada cena do novo espetculo em seu respectivo espao de representao.

    No havia um dia sequer em que no fossemos abordados por algum durante os

    ensaios. Esses encontros fortuitos que algumas vezes nos tocaram profundamente eram com

    pessoas dos mais variados tipos. O comunista inconformado, a prostituta, o senhor que cresceu

    e viveu sempre ali, o bbado chato, o compositor bomio, o nia, o palhao argentino, a me

    adolescente, o empreendedor, as crianas... Claro que era muito importante seguir adiante e

    continuar o trabalho de montagem da pea, mas essas interrupes eram momentos

    preciosssimos. Cada uma daquelas individualidades exigindo ateno, ansiando por se

    comunicar e evitando que a misria os despersonificassem, nos desestabilizava em algum

    nvel. Fazia com que ponderssemos o nosso trabalho, descobrindo novos caminhos.

    No que essa condio de luta seja exclusividade dos que esto a margem da sociedade.

    Manter a individualidade tambm uma batalha para todos que se colocam em posio de

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    mercadoria, ao empregar sua fora de trabalho. Era natural que para ns, ao trabalhar no

    campo das artes cnicas e colocando nosso prprio corpo como parte da obra, o temor de nos

    tornarmos mera mercadoria fosse recorrente. Insistimos, portanto, em estabelecer um dilogo

    mais prximo com os moradores e comerciantes da regio. Isto ajudou muito no sentido de

    fazer com que se estabelecesse um vnculo entre o Coletivo e o cotidiano daquele bairro, e

    assim a construo do espetculo se tornasse um acontecimento pertencente a todos nalguma

    medida. Angarivamos tambm estofo para os improvisos de cena que dariam liga entre uma

    nova linha dramatrgica que no se desconectasse completamente da original e a temtica

    provocada pela vivncia da organizao social da Luz.

    Sentimos logo a necessidade de estabelecer

    certos parmetros de permeabilidade interferncia do

    pblico. Era notrio que seramos abordados tambm

    durante as apresentaes e estvamos conscientes de

    que a pea que construamos tinha como alvo, alm de

    nossos convidados, aquele pblico especfico de

    moradores que seria barrado de qualquer sala de

    espetculos e, portanto, no est acostumado com todo

    o cdigo de postura do teatro tradicional. Mais do que

    isso, nos encontrvamos em um territrio aonde o

    trato social estava completamente deslocado.

    Todos estamos presos condio de ator, sem

    distino. O homem um ser social e a capacidade de

    se comunicar imprescindvel. Geralmente um emprego pede um figurino apropriado ou

    paramentos prprios. Lidamos o tempo todo com a construo e interpretao simblica. Fora

    isso seguimos uma conduta que o corpo da sociedade espera de ns. Tudo isso nos desloca de

    nosso verdadeiro eu - somos uma construo da qual nem sempre tomamos parte. Por isso foi

    relativamente simples estabelecer um contato pacfico com a ronda policial (que se tornou um

    smbolo da coroa britnica em cena), com os proprietrios de penso e comrcio (que cederam

    espaos de representao e contrarregragem), com os espaos culturais e instituies do

    entorno.

    Lidar com as crianas e os embriagados era um grande desafio. Estes partilhavam da

    mesma parcela de liberdade para fugir de determinadas regras sociais que ns. A maior parte

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    dos adultos parava para julgar se o que fazamos era bom ou no e, quando gostavam, alguns

    agiam como as crianas: queriam entrar em jogo e entravam, mesmo sem autorizao!

    O conceito de jogo, to inerente ao Teatro nas lnguas francesa e inglesa, fica camuflado

    na nomenclatura do acontecimento cnico em portugus. Isso no quer dizer que jogo e

    improviso sejam a mesma coisa. Quando assistimos a uma pea com quarta parede, o jogo se

    d somente entre os atores e j est previamente combinado - a brincadeira consiste em fazer o

    combinado valer. Quando o seu pblico exige ser colocado em ao passa a ser

    responsabilidade nossa faz-lo e queramos que a montagem permitisse isso, ainda que

    impelindo-os a refletir sobre o que estavam acompanhando, somente.

    Tambm existiam aqueles interessados apenas em atrapalhar e fazer pouco de nosso

    trabalho, que deflagravam uma espcie de existncia para o desdm. Quando lidvamos com

    esse tipo de situao optvamos por suspender o trabalho momentaneamente e pedir para que

    se retirassem, e se no dava certo ns que nos afastvamos. Seria no mnimo injusto e

    prepotente tratar da mesma forma aqueles que se colocavam genuinamente em ao, e para

    atender essa demanda era necessria constante prontido e escuta por parte dos

    atores/criadores. Isso quer dizer que nada pode ser ignorado, toda provocao gerando um

    retorno vigoroso, tornando em esttico o inesperado.

    Por isso o intrprete realiza uma funo mltipla. Ao mesmo tempo em que age

    ativamente no dar a ver de sua personagem, permanece permevel s alteraes do entorno.

    Esta uma constante no jogo de cena entre atores de todo tipo de teatro, mas quando estamos

    lidando com o improviso, torna-se essencial, pois inclui-se a plateia e o momento presente se

    transforma em amparo e guia de nossa arte.

    O ato de criar em ao opera de forma diferente no corpo de cada um. Em geral

    tentvamos no quebrar a personagem que interpretvamos a no ser que corrssemos risco.

    Muitas vezes chegar neste estado de prontido nos incita a criar o tempo todo e ento preciso

    diminuir, da a necessidade de equilbrio com a escuta, pois a compreenso da fbula e dos

    dilemas morais apresentados ainda um valor muito caro ao Coletivo. tambm comum que

    o ator se prenda criao verbal e abandone o corpo construdo para sua figura, fragilizando o

    potencial energtico de sua interpretao.

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    A Luz, os Piratas e seu pblico

    Pedro Paulo Rosa

    O teatro de rua instala-se no espao pblico, e se constitui como surpreendente acontecimento artstico. Este acontecimento provoca ruptura na funcionalidade espacial cotidiana, modifica o repertrio de usos do espao. Em virtude disso, o pblico do teatro de rua fundamentalmente um pblico acidental, que presencia o espetculo porque se encontra casualmente com este acontecimento. Por princpio, a relao do pblico com o espetculo da rua, est condicionada pela surpresa e alterao das expectativas ou at mesmo pela inverso desta quanto ao uso da rua. H grande quota de acaso neste encontro e isso contribui de forma significativa para a construo de sentidos do espetculo.3

    Como vemos na citao acima, para Andr Carreira a caracterstica primeira do

    pblico do teatro da rua o acaso, o pblico acidental, algum que no pretendia assistir

    a uma pea, mas encontrou uma na rua. Encontrou e, ao invs de simplesmente

    continuar passando (como muitos fazem), por algum motivo parou, constituindo-se

    assim como pblico.

    Como Piratas de Galochas foi um espetculo realizado em via pblica, pelas

    ruas do bairro da Luz em So Paulo, seria lgico concluir, de acordo com Carreira, que

    seu pblico seria, principalmente, acidental. O espetculo comearia e o pblico viria ao

    longo, passante e fragmentado. Porm, a expectativa do grupo com relao ao pblico

    no era essa, ou pelo menos no apenas essa. Que os passantes acabassem por

    integrarem-se ao grupo e acompanhassem a pea, isso era previsto, mas havia uma

    expectativa de atrair um pblico intencional, de chegar Praa Julio Prestes s 20h, em

    frente Sala So Paulo, e encontrar um grupo de pessoas aguardando pelo incio da

    pea. Quando no havia um nmero grande de pessoas espera dos atores, estes no

    deixavam de sentir uma leve frustrao: ora, mas, se era uma pea da rua, por que os

    artistas queriam tanto esse pblico do teatro?

    Quando Piratas de Galochas foi criado, em 2011, na Ocupao Prestes Maia, a

    pea acontecia dentro do prdio ocupado e todo seu pblico era intencional. O espao

    era alternativo, pois no se tratava de um edifcio teatral, e no havia palco tradicional.

    Os espectadores, depois de subirem nove andares de escada, passando pela porta das

    casas dos moradores, chegavam ao local do espetculo, onde sentavam-se em

    banquinhos de papelo e eram convidados a se mover pelo espao durante a pea. Para 3 CARREIRA, Andr, Teatro de Rua: (Brasil e Argentina nos anos 1960): uma paixo no asfalto, So Paulo: Aderaldo & Rothchild Editores LTDA, 2007.

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    os moradores, fazia parte da experincia vivenciar uma pea de teatro dentro de suas

    casas, ou seja, no prdio onde eles moravam. Para aqueles que vinham de fora, fazia

    parte da experincia entrar em uma Ocupao de moradia e visitar a casa de algum.

    Mas, ainda assim, o pblico era formado por pessoas que, tendo conhecimento sobre a

    existncia da pea, escolhiam sair de suas casas (seja essa casa no oitavo andar da

    Ocupao ou no bairro de Higienpolis), deslocarem-se at o nono andar da Ocupao

    Prestes Maia e l compartilhar o acontecimento teatral. Era um pblico intencional,

    pessoas que se propuseram a ir ao teatro, apesar de no irem um edifcio teatral.

    Ao levar a pea para as ruas da Luz o processo de divulgao da pea e a

    expectativa de atrair um pblico intencional continuaram. Aqui visitar a chamada

    Cracolndia fazia parte da experincia proposta pelo Coletivo de Galochas para um

    pblico de teatro que provavelmente no freqentaria (ou muitas vezes nem conheceria

    pessoalmente) essa regio da cidade.

    Podemos dizer que a vontade de ter um pblico intencional vem do desejo de

    propor uma experincia, e mais que isso, um contraste de experincias, uma ruptura (ou

    pelo menos uma micro-fissura) em um fluxo j estabelecido para aquele espao. Ao

    convidarmos freqentadores de teatro para assistirem a um espetculo nas ruas da Luz

    no estamos apenas convidando-os para uma pea de rua estamos chamando essas

    pessoas para as ruas da Cracolndia, convocando-as a estarem presentes fisicamente

    nesse espao. A partir dessa presena fsica a pea percorre o espao, interfere sobre e

    interage com ele, criando relaes com os fluxos urbanos existentes naquela regio, e o

    pblico convidado, a partir dessa vivncia, a criar sua prpria experincia com relao

    quele espao, ser atravessado pelo espao e tudo que ele contm: os atores (pelo menos

    durante aquelas duas horas), moradores, cracmanos, policiais, crianas, donos de bares,

    moradores das ruas.

    O desejo de atrair um pblico intencional no anula nem diminui, de maneira

    alguma, a importncia e a necessidade de um pblico acidental. No justo, tampouco

    preciso, generalizar o perfil dos dois tipos de pblico em questo (intencional e

    acidental), mas vale apontar que era comum que o primeiro fosse composto, muitas

    vezes, por pessoas que conheciam o Coletivo de Galochas e seu trabalho, ou que tinham

    algum tipo de contato com algum integrante do grupo. Muitos deles tinham pouca

    familiaridade com aquela regio da cidade, e podemos dizer que tinham como principal

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    referncia daquele espao a imagem espetacularizada de Cracolndia, difundida pela

    mdia, fazendo daquelas ruas uma regio desconhecida, mas de certo muito perigosa. J

    o segundo contava com os freqentadores da regio, nesse caso moradores de casas,

    penses e cortios, transeuntes, usurios de drogas, policiais, crianas, moradores de

    rua, donos de botecos. Estes sim, estavam passando pelas ruas quando encontraram um

    pea de teatro. Alguns paravam para olhar e continuavam at o fim. Outros passavam

    batido. Alguns espiavam pela janela de casa a

    cena que acontecia ali em frente, mas nem

    sempre desciam para virar a esquina e

    acompanhar a prxima.

    A composio desses dois pblicos,

    colocados lado a lado devido a um

    acontecimento artstico, torna-se potente quanto

    proposio de experincia. Possibilitar um

    pblico-mosaico, que venha de regies diferentes

    da cidade (e do pas), de opinies e escolhas

    polticas diferentes, de escolaridades diferentes

    mas, principalmente, de classes sociais

    diferentes. Colocar essas pessoas frente a frente,

    mediadas por uma pea, de mondo que elas compartilhem uma mesma experincia,

    criem e modifiquem sua relao com aquele espao, e com as relaes sociais que ele

    representa na construo urbana atual.

    Se as ruas so pblicas, por que no podemos estar todos nelas?

    Alguns passantes, freqentadores do bairro, ao se deparar com a pea olhavam,

    curiosos. Acompanhavam por um tempo e depois seguiam seu caminho. Alguns

    assistiam um pedao e voltavam no dia seguinte para acompanhar a pea desde o incio

    aqui, o pblico acidental de ontem o pblico intencional de hoje. Conforme os

    ensaios e as apresentaes foram se tornando recorrentes, a pea passou a fazer parte da

    dinmica de funcionamento daquelas ruas. Moradores que passavam reconheciam os

    atores como tais, eram familiares com a realizao daquela pea inclusive alguns

    nunca assistiram pea inteira, mas sabiam que ela acontecia ali. Depois de um tempo,

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    no era mais surpresa encontrar um pirata bebendo e cantando pela rua, no meio do

    caminho de casa.

    Dentre os espectadores acidentais que se tornavam pblico voluntrio, no

    podemos deixar de mencionar as crianas. Assim que a pea estreou, logo teve um

    grande nmero de crianas no pblico. Moradoras da regio, por vezes acompanhavam

    partes do ensaio, e com o incio das apresentaes, passaram a ser freqentadoras

    assduas. Uma criana assistia uma cena em um dia, no outro, vinha assistir a pea

    inteira, no terceiro trazia um amigo e no dia seguinte, os pais. Muitas das crianas

    tornaram-se um pblico cativo estavam presentes praticamente todos os dias,

    esperavam pela pea,

    ansiavam pelas piadas, j

    sabiam onde posicionar-se

    para ver melhor cada cena,

    ficavam decepcionadas

    quando a pea era cancelada

    devido chuva. As crianas

    foram, sem dvida, uma dos

    pontos mais fortes de

    ligao do Piratas de Galochas com os moradores da regio, pois elas passaram a trazer

    seus pais para acompanhar a pea. Todas as crianas da regio da Rua Helvetia e da

    Alameda Dino Bueno conheciam e acompanhavam a pea e seus pais comentavam com

    o grupo o quanto no agentavam mais ver seus filhos brincando de piratas, ou, em

    outro caso, a menininha que quis comprar um par de galochas para assistir pea.

    Apesar de conhecer j a histria e os personagens, os pequenos no se cansavam de

    acompanhar os atores, dia aps dia.

    Piratas de Galochas nunca pretendeu ser um pea infantil, mas inegvel que

    havia algo naquela montagem que cativava as crianas. Talvez os personagens, piratas

    caricatos, talvez o humor, talvez o cio das crianas ao brincar na rua, ou talvez uma

    combinao disso tudo, uma espcie de estar no lugar certo na hora certa. Porm, ao

    mesmo tempo que a pea era apreciada por crianas de todas as idades, havia algo de

    indigesto nela. Por diversas vezes, espectadores intencionais comeavam a assistir a

    pea mas a abandonavam no meio. s vezes vinham justificar, seja se manifestando

    pela internet ou conversando com algum integrante do Galochas. Foi recorrente a

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

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    meno um incmodo, uma sensao de desconforto extremo, que fizesse a pessoa

    querer se retirar daquela situao. Ora, o que uma comdia sobre piratas, muitas vezes

    assistida por crianas, pode der de to intragvel?

    Refletindo, pudemos perceber que o incmodo tinha uma localizao temporal e,

    mais importante, geogrfica na pea. O espetculo comeava em frente Sala So

    Paulo, passeava pela Praa Jlio Prestes e seguia a Alameda Cleveland, entrava na Rua

    Helvtia, depois virava esquerda na Alameda Dino Bueno e caminhava novamente at

    a Praa Julio Prestes. O primeiro trecho da pea, na Praa Jlio Prestes, era bem

    recebido, o pblico ia se aquecendo e tornando-se mais caloroso durante o decorrer da

    cena. Porm, quando os atores dobravam a esquina da Alameda Cleveland e entravam

    na Rua Helvtia, algo acontecia. Era a esquina fatdica. Al, algo acontecia que causa

    incmodo. Coincidentemente ou no (acredito muito que no), era nessa regio que

    havia uma maior concentrao de usurios de crack e moradores de rua. A cena

    acontecia em meio a eles. Muitas vezes, os cracmanos eram mais interessantes que

    qualquer pirata. Estar na Cracolndia tornava-se mais forte que estar assistindo uma

    pea, em uma instncia coletiva. Para alguns, era incmodo demais, preferiam ir

    embora.

    Alguns desses espectadores comentaram que o desejo de partir vinha de uma

    sensao de invaso, de desrespeito para com aqueles que j estavam ali, e no de medo

    ou incmodo. No posso deixar de pensar que tal constatao uma desculpa, ainda

    acredito que o que faz as pessoas abandonarem um navio o mal-estar, um incmodo.

    De qualquer maneira, apesar dos desertores, a pea costumava ter mais

    espectadores ao final do que no incio de cada apresentao algo esperado para uma

    pea na rua. Apesar de ter crticas e abandonos, havia tambm espectadores

    absolutamente imersos na experincia proposta.

    Independentemente de receber crticas e elogios, o que vale frisar com relao

    Piratas de Galochas na Luz que algo acontecia com as pessoas que estavam ali, que

    se propunham a vivenciar aquilo. Seja algo positivo ou negativo, mas algo se passava

    creio que seja seguro dizer que poucos espectadores passavam impunes. Podiam odiar a

    pea, podiam amar, podiam analisar a estrutura cnica, admirar (ou condenar) a

    coragem-quase-estpida dos jovens atores, mas algo a dizer a respeito dos Piratas,

    teriam, pois eram atravessados por ela, de alguma maneira. A esse atravessamento,

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

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    chamamos de experincia um espao em que o homem efetivamente vivencia algo,

    atravessado e, portanto transformado de alguma maneira, ainda que sutilmente. Um

    espao onde podemos deixar de lado nosso calejamento cotidiano para, de fato, ver,

    sentir, pensar e ser nossa cidade, pelo menos por um instante.

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

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    Hierofania na Helvtia: Princpios do mascaramento no espetculo Piratas de

    Galochas na Luz

    Las Trovarelli

    A prtica dos Piratas de Galochas sempre partiu da invaso e ocupao artstica

    do espao. A partir da construo da primeira verso do espetculo, quando ainda

    ocupvamos o nono andar da Ocupao Prestes Maia, chegamos a uma estrutura

    malevel da pea capaz de nos conferir o tamanho adequado a qualquer lugar que

    pisssemos. Entretanto, a estrutura dramatrgica segura e conhecida foi o elemento

    propulsor para o que viria a ser, acredito, a base para que pudssemos transpassar as

    regras que ns mesmos havamos traado. O esmiuar das especificidades fsicas e

    simblicas de um espao determinado nos deu ferramentas para o alcance da

    universalidade, que aqui tratarei especialmente no que tange ao trabalho de ator. Assim

    como as atrizes do coro, que concretamente valiam-se de mscaras de ltex idnticas, os

    atores da tripulao tambm passavam por um processo de mascaramento ainda que

    com outras especificidades. A mscara aquilo que revela atravs do ocultamento. Ao

    vesti-la, o ator se veste internamente de preciso, racionalidade e distncia. como se

    fosse capaz de revestir-se de quilmetros.

    A idia era ocupar as ruas da chamada Cracolndia. Antes de ancorarmos,

    entretanto, era preciso tatear. Foi perceptvel, logo que chegamos, que a roupagem de

    artistas e estudantes era demasiado estrangeira. Ainda em primeiros encontros, fizemo-

    nos os duplos necessrios. Samos em trio para coletar pistas do novo territrio,

    absorver o lugar. O gatilho era tocar todas as campainhas e ao sermos atendidos

    inventar alguma desculpa que nos permitisse desenvolver as descobertas, e se possvel

    entrarmos nas casas, no ntimo daqueles que vivem expostos nos jornais

    sensacionalistas. Como se vestidos de estudantes de arquitetura, de pesquisadores do

    censo, de curiosos. Por dentro, distncia.

    Chegado o perodo do levantamento das cenas no novo espao, era tambm hora

    de reaquecer os corpos. O treinamento de quedas, que havia se feito rotina desde o

    incio do Piratas, sempre trouxe imensas contribuies ao preparo corporal e ao

    detalhamento da composio das personagens. O treinamento nos norteava fisicamente,

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

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    nos puxava a um registro interpretativo grande, violento, grotesco. E no foi diferente

    nas ruas da Luz. O mascaramento fsico das personagens foi sendo recuperado, mas

    mesmo em seu nvel mximo parecia engolido pela cidade. Era preciso fazer-se maior

    que o Gigante da Praa Julio Prestes, talvez maior que a Sala So Paulo, para no

    sermos engolidos pelos discretos e os nem tanto transeuntes e moradores daquele bairro.

    Ao contrrio do que se possa acreditar atravs da mdia, no se trata de um bairro

    despovoado: pulsa.

    Durante os nossos encontros, as interferncias eram uma constante. Haviam as

    agressivas, as interessadas, as vazias, as carentes, as chorosas, as ininteligveis.

    Recebamos, todas, tentando filtrar e

    absorver aquilo que pudesse se converter em

    material. Entretanto, chegado o momento

    em que tnhamos desenhada a nova verso

    da pea, no podamos parar. Tampouco

    ignorar as interferncias. Era dado que

    havamos optado por um espao pblico, e

    ignorar a vida daquele espao seria uma

    enorme perda. Foi preciso, ento, que

    aprendssemos a acessar um estado de jogo

    com o imprevisto. No era novidade que

    precisssemos vez ou outra lidar em cena

    com algo que sasse diferente do planejado,

    mas desta vez as intempries eram maiores e

    mais capazes de desestabilizar o rumo da

    pea. Era preciso mais - mais sintonia com os demais atores, mais relao fsica e

    simblica com o espao, mas principalmente, mais apropriao do ator sobre o

    mascaramento da sua personagem/figura.

    Quando se trabalha com a mscara da maneira convencional, o distanciamento

    (por parte do ator) claro medida em que o centro da persona representada (rosto) est

    to distante do prprio centro que chega a no mais fazer parte do prprio corpo

    externo. O princpio do duplo do ator pode ser exemplificado em um paralelo com o

    trabalho com tteres: enquanto boneco-vivo (fisicalizador da ao), o ator deve estar

    ciente de cada movimento que realiza, controlando o tnus, o ritmo, a respirao, a

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    amplitude dos movimentos e todos os outros aspectos da ao fsica. Enquanto

    manipulador, o ator deve ser capaz de distanciar-se para observar e captar a fisicalizao

    daquilo que deseja representar ou narrar. preciso ativar uma escuta corporal e dar

    vazo s reaes, ao mesmo tempo em que preciso raciocinar e ser capaz de perceber

    o que e o que no pertinente ao corpo que se deseja construir. Trata-se de um estado

    extra-cotidiano, implacvel, que no deixa dvidas quanto justeza ou no de cada

    ao.

    Para a construo dos corpos das personagens, no incio da pesquisa do

    espetculo Piratas de Galochas, valemo-nos de muitos exerccios de composio

    corporal proposio de postura, das mos, do

    eixo, dos quadris, dos joelhos, etc. Entenda-se

    aqui este processo de composio como anlogo

    confeco de uma mscara. Diante, ento, das

    proposies fsicas (no caso da mscara

    convencional, o desenho - expresses, linhas

    faciais, etc.), o ator opta e desenvolve os

    componentes mais sutis daquela figura. Assim

    fizemos e quando chegamos s ruas da Luz as

    personagens j tinham corpo, voz e jeito. Naquele

    espao, cada personagem era um nariz de clown:

    a mscara que podia nos dar voz frente uma

    interveno externa. Um ser de outra realidade e

    que exige outro nvel de comunicao, no mais um(a) artista que representa

    exatamente o que .

    Claro que o entendimento corpreo desse estado de jogo foi gradual. Durante os

    ensaios, os imprevistos eram contornados de diversas maneiras, inclusive atravs da

    interrupo das cenas. Entretanto, quando comeamos a apresentar a pea efetivamente,

    essa possibilidade inexistia. Se antes os transeuntes e moradores vinham a ns pelos

    mais diversos motivos, mas principalmente estabelecendo contato atravs da conversa,

    quando estreamos a situao mudou. Sejam pelas figuras e figurinos extravagantes,

    sejam pelos equipamentos de iluminao e sonoplastia, seja pela movimentao do

    pblico (quase sempre numeroso), fato que as interferncias externas cresceram. De

    incio, talvez pela nsia de fazer o espetculo exatamente como o planejado, era comum

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

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    que ignorssemos uma rplica inesperada de um morador de rua ou mesmo a passagem

    de um nibus barulhento que no permitia que o pblico ouvisse alguma fala. E foi em

    crescente que a escuta interna e externa do grupo aumentou: em um segundo momento,

    alguns de ns interagiam com determinado fato, outros ignoravam; ou todos

    interagamos com uma situao e ignorvamos uma outra mais complicada. Em um

    terceiro momento, entretanto, o domnio das personagens/figuras nos permitiu um

    estado apurado de escuta e reao imediata dois princpios fundamentais da mscara.

    Samos pelas ruas da Cracolndia tendo em ns pouco menos que um nariz de

    clown. Mascarados de idias, de tenses corporais calculadas. Mscara como escudo.

    Uma defesa burlesca, mas capaz de reverter uma fora no sentido de uma ao

    determinada. Um equilbrio dinmico entre o inesperado e o pressuposto - e a aceitao

    de um caminhar grotesco na contramo da altivez de quem sabe pra onde vai.

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

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    Piratas de Galochas: Processo de criao Corporal

    Felipe Bitencourt

    I . Ocupao Prestes Maia primeira criao corporal

    Quando penso em procedimentos de preparo corporal, no percebo estes

    somente como uma espcie de preparo fsico, mas, tambm, como elaborao de um

    corpo especfico para cada ator e a juno destes corpos visando uma assinatura do

    coletivo.

    Acredito que nosso processo de trabalho fsico, assim como todo o nosso

    trabalho, sempre foi colaborativo. Temos idias individuais, claro, mas que juntas

    acabaram por compor esta palheta que temos agora. Para a criao do trabalho de corpo

    fomos inspirados por vrios campos artsticos, no somente cnicos, mas tambm pelas

    Artes Visuais, o Cinema, Seriados e, at mesmo, Animaes. Como alguns (de tantos)

    exemplos, poderia citar, no campo das Artes Plsticas, a artista Marina Abramovic,

    performer e artista visual que tinha o limite fsico como base de suas pesquisas e

    apresentaes. No mbito do teatro, o grupo Cena 11, que trabalha com quedas e

    encenaes performticas, testando o limite entre cena e performance. Nos

    Seriados, o grupo Monty Python, - criadores e intrpretes da srie cmica Monty

    Python's Flying Circus. E por, fim, no cinema, tambm tivemos como referncia (quase

    inevitvel, por ser parte to forte do imaginrio coletivo contemporneo de pirata) os

    filmes Piratas do Caribe.

    No incio, no saberamos ao certo o resultado que teramos, porm, sabamos

    que, de alguma forma, viria das necessidade deste espetculo, um espetculo

    diferenciado, fruto do que o assunto pirata pode surtir.

    Como uma de nossas primeiras pesquisas, em 2011, trabalhamos com exerccios

    de aquecimento, alongamento e, principalmente, com quedas. Para tal, tnhamos o

    grupo Cena 11, citado acima, como guia para o entendimento desta prtica. A proposta

    a de aprender a elaborar quedas livres no cho, sem nenhum resqucio de defesa, sem

    se machucar. Este j foi o incio de um formato corporal que o grupo comeou a

    adquirir. Acabou sendo, tambm, um pequeno incio de uma futura pesquisa em nossos

    figurinos: as quedas nos exigiam certas protees como cotoveleiras e joelheiras, que

    acabaram incorporadas ao nosso figurino final.

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    Por meio do treinamento de quedas, h essa altura do processo j havia uma raiz

    de unio, uma pauta comum de movimentaes e objetos, um vocabulrio corporal para

    todos os atores. Neste momento tambm j tinhamos um certo trabalho textual sobre a

    dramaturgia. Havia, agora, a necessidade de comear a estabelecer, dentro deste

    universo criado, qual o carter individual que cada personagem teria. Como cada um

    anda, como cada um fala, como cada um interage com os outros e com o pblico.

    Comeamos, ento, a desenvolver workshops experimentais. O interessante

    destes workshops que eles permitiram uma explorao do corpo de cada um consigo

    mesmo e com o espao: muitos acabavam saindo da nossa sala de ensaio caminhando

    para lugares externos como locais descampados, gramados e estacionamentos. Uma

    destas propostas era a de

    cada ator trazer, para o

    prximo ensaio, alguma

    imagem alegrica do

    universo dos piratas. Ento,

    no caso, no consistia em

    trabalhar uma cena ou um

    monlogo em si, mas a de

    criar uma figura mtica,

    pessoal e iconogrfica. Um ator virou de gente para um estranho bicho acorrentado,

    uma atriz virou um ser isolado em um banheiro pblico com diversas moedas grudadas

    em seu corpo enquanto estas caiam com sua respirao, outra colocou uma barba

    postia e virou mulher-homem, e por a vai.

    Observando agora todos estes passos que demos no incio do processo, me

    parece claro que este espetculo claramente uma juno de todos estes procedimentos.

    Ainda assim, em meados de 2011 nossos corpos ainda estavam confinados no espao de

    uma sala, de modo que a expanso espacial que os corpos tomavam ainda possua esta

    limitao espacial.

    Embora j estivssemos ensaiando pelos andares da Ocupao Prestes Maia,

    uma vez por semana ensaivamos nas salas de aula do departamento de artes cnicas da

    USP, o CAC, e era l, nesse espao seguro, que realizvamos a pesquisa corporal. No

    espao universitrio, alm de ns, muitos outros coletivos estavam ali tambm, cada

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    qual com suas pesquisas. Porm, com o desenvolvimento do processo, sentimos cada

    vez mais necessidade de abraar o espao alternativo de uma vez por todas, e abandonar

    o conforto das salas de ensaio. Quando passamos a realizar todo nosso trabalho corporal

    no prdio de ocupao localizado na Prestes Maia, no bairro da Luz, conseguimos

    desenhar com mais preciso vrios fatores , o principal deles sendo, talvez, a nossa

    relao social com os moradores, j ento observadores, e, de certa forma, o pblico

    prvio que teramos.

    Na Prestes Maia, estvamos fora daquele espao confinado. Agora, todos nossos

    exerccios e cenas j comeavam a criar relao com outros corpos, definindo conceitos

    para a pea e afunilando a criao de nossos personagens. No trabalhamos com uma

    trajetria rpida ou simples, mas sim um processo que criou um corpo nico, um corpo

    do Coletivo de Galochas.

    II. Piratas na Luz

    Ao chegar s ruas da Luz, em 2012, retomamos nossos exerccios de

    alongamento, aquecimento e quedas citados no incio desta fala. Continuamos, agora j

    treinados e aprimorando tcnicas, nosso trabalho fsico na regio da Luz. Percebemos

    que sempre estvamos lidando com lugares de passagem: mesmo no sendo locais

    especificamente cnicos, (sem um palco ou um aviso prvio de espetculo aos

    moradores e transeuntes do local, por exemplo) parece que a ao de nossos corpos

    estabeleceram uma comunicao e um acordo: uma rua, que era somente um local de

    travessias, se transformou em lugar de espetculo. Em dado horrio e dia, as crianas,

    moradores e transeuntes viam assistir nossa apresentao. Repetitivamente.

    Afirmo isto desde nossos ensaios e treinamentos, e no somente com nossa pea

    finalizada. Ento comeamos a ensaiar, caamos no cho no meio da rua. O cho j no

    era mais seguro, o espao no era seguro e, tambm, no conhecamos at ento

    aquele pblico que ali se aglomerava.

    Parece que nossos corpos cnicos ganham fora quando h platia. Eles se

    esforam, se jogam mais alm, se transformam em mquinas quase indestrutveis.

    Tnhamos pblico sempre. No sei bem ao certo se esse foi o caso de todos ns termos

    nos adaptado a um cho to duro, concreto e desconfortvel. Mas sei que, sem dvida,

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    foi um dos fatores que nos impulsionou. Platia gera compromisso. E o corpo cnico

    sempre responde.

    III. Relaes de Comportamento

    Ao trabalhar com espaos alternativos, sair do edifcio teatral e interagir com os

    fluxos da cidade, acabamos por ocupar locais j ocupados. Logo, ali j existem suas

    prprias hierarquias, colocaes scias, funes... enfim. Uma sociedade local com sua

    organizao. Ento, como poderamos nos dar ao direito de tamanha invaso? Isto se

    apresentou com um novo olhar sobre a sociedade construda em um local. Quando

    convidvamos e recebamos pblico, tnhamos ali o que podemos chamar de uma certa

    elite em um local no comum. Mas parece que a relao hierrquica entre corpos se

    invertia. Esse pblico convidado recebia, da populao local, falas e cenas antecipadas

    s nossas aes, pois j haviam decorado nosso trajeto e manifestaes. Uma forma de

    deixar claro que eram bem familiares com o que era apresentado. Assim, quem tem o

    maior poder de visualizao e compreenso? Quem apreende o contedo do que dito?

    Seria o convidado que descobre terras novas, ou aquele que ali mora e se identifica com

    o que lhe apresentado?

    Quedas no cho e ensaios abertos. Me impressiona como algo to absurdo

    primeira vista possa virar algo tradicional, mesmo que sempre sendo quase o mesmo

    procedimento, e que continuamente acompanhado. Obtivemos fs.

    Percebemos que um mesmo discurso, inevitavelmente, modifica um espao e

    suas relaes pessoais. Modifica seu tempo, sua percepo e valor visual. Me recordo

    que, em um dado momento, uma moradora de uma das casas do ambiente nos disse algo

    assim: No deixem de apresentar o trabalho de vocs, mesmo sem pblico, porque ns

    assistimos da janela. Coisas como esta nos propulsionam, incentivam e locomovem a

    continuar nosso trabalho e pesquisa.

    Deixamos na mo do outro possveis crticas, ganhos ou perdas do que

    apresentamos. Afinal, fazemos teatro. Sem relaes scias, no h comunicao

    tampouco manifestaes artsticas. Queremos trocas e comunicaes. Creio que

    conseguimos.

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

    Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais VAI 2 semestre / 2012

    A criao da voz do ator no espao pblico:

    Origem no corpo, projeo no espao

    Gabriel Hernandes

    I. Introduo

    Esse relatrio tem como objetivo fazer um registro do processo de treinamento

    de voz com os atores do Coletivo de Galochas para a apresentao da pea Piratas de

    Galochas na Luz, encenada nos espaos entre a Praa Jlio Mesquita e Rua Dino Bueno.

    Relatarei alguns aspectos que chamaram a minha ateno nesse processo que fiz parte

    como ator e treinador de voz.

    Aps pesquisas, em vo, atrs de alguma bibliografia ou registro que me

    ajudasse a criar um treinamento de voz para teatro em espao pblico da cidade de So

    Paulo, resolvi experimentar uma metodologia prpria que levaria em considerao a

    minha experincia pessoal de voz como ator, exerccios aprendidos no curso de Artes

    Cnicas e auxlio do Prof. Zebba Dal Farra (CAC/ECA/USP). Iniciei essa metodologia

    com a idia de que deveramos estudar a criao da voz individual e dividi esse trabalho

    em dois eixos: corpo e espao. Estudaramos em cada um desses eixos onde e como

    essa voz pode ser criada e, com base nesse conhecimento, como projet-la.

    II. Prtica

    1. Corpo

    Cada corpo nico e a sua forma de desenvolvimento reflete o desenvolvimento

    de uma vida, suas conseqncias e traumas psicolgicos, fsicos e genticos. Com esse

    entendimento, escolhi trabalhar a origem da voz a partir da musculatura corporal em

    busca de uma voz neutra e mais livre o possvel de traumas que possam silenci-la.

    Primeiramente fizemos um reconhecimento das principais partes responsveis pela

    criao da voz, partindo de uma postura neutra, verificando como a postura ssea e a

    musculatura auxiliam na descoberta dessa postura. Depois fizemos estudo aprofundado

    de cada parte do rosto, relaxando a musculatura responsvel pela emisso da fala nesse

    local: toda a musculatura do rosto, interior e exterior das bochechas, lngua, palato,

    assoalho e cu da boca, lbios. Dessa forma acabamos por criar um aquecimento que se

    construiu a cada encontro com as novas descobertas de voz encontradas nesse

    treinamento.

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

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    Comeamos ento o estudo de uma respirao torxica para a criao da voz a

    partir do corpo. Primeiro a percepo do movimento de costelas e diafragma nos

    estgios separados da respirao, inspirao e expirao. Reconhecendo as costelas,

    massageando-as e, com uma mo em cada conjunto de costelas experimentamos a

    emisso do som das vogais na ordem da mais fechada para a mais aberta: I-E--A--O-

    U. O foco deveria estar na relao entre o movimento de abertura e fechamento que a

    musculatura intercostal prope ao inspirar/expirar e o ar que entra, naturalmente pela

    diferena de presso no interior e exterior do corpo, e empurrado para fora, para assim

    comear a emisso de uma voz. Em seguida treinamos a ativao do abdmen para a

    sustentao da nova postura descoberta. Aps a experimentao individual propus que

    se dividissem em duplas e realizassem o seguinte exerccio:

    Exerccio n1

    Vibrando no outro

    I. Duplas: colocar mo e/ou ouvido da dupla durante a emisso do

    som.

    II. Sentir qual parte do corpo vibra mais em cada vogal.

    III. Sentir qual parte do corpo vibra mais, de modo geral.

    VI. Tentar descobrir o movimento do som atravs da vibrao no

    corpo da dupla ao fazer a seqncia i-e--a--o-u.

    V. Explorar as intensidades de emisso dessa(s) voga(l)(is).

    VI. Comentar explorao e inverter funo das duplas.

    Depois desse exerccio com o foco nas musculaturas intercostais para a

    realizao da respirao torxica, orientei a todos os atores que ficassem atentos a esse

    movimento daquele instante em diante, at o final do processo de ensaios, sempre que

    fossem emitir a voz.

    Tendo experimentado um processo de criao da voz a partir da estrutura do

    corpo individual comeamos a estudar a projeo dessa voz: orientei que primeiro

    estimulassem o bocejo algumas vezes, espreguiassem, e percebessem como a estrutura

    do corpo se comporta nesse movimento. Depois, instru para que escolhessem uma fala

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    do seu personagem e a emitissem em forma de bocejo, organizando a estrutura corporal

    da mesma forma percebida anteriormente. Ento fizemos o seguinte exerccio coletivo:

    Exerccio n 2

    Telefone sem fio

    I. Um ator emite um som de vogal continuamente a partir do

    bocejo. Outro ator se distancia at que consiga ouvir

    minimamente aquele som projetado pelo primeiro. O prximo

    ator realiza o mesmo procedimento do ltimo at que todos os

    atores ficassem espalhados pela Praa Jlio Prestes na distncia

    mxima que as suas vozes poderiam alcanar o prximo.

    II. O primeiro ator fala uma frase, criada aleatoriamente, a partir

    do bocejo, para o prximo, que dever repeti-la para o ator

    seguinte.

    III. O ltimo ator deve repetir o que ouviu para o primeiro.

    IV. O grupo se rene novamente e o primeiro diz o que ouviu do

    ltimo ator e qual era a frase original.

    A partir de observaes realizadas nesse exerccio percebi que o trabalho da

    projeo deveria ser aprofundado na idia de projetar a voz para algum, ter uma pessoa

    em determinada distncia para receb-la e estimular a sua projeo. Elaborei, ento o

    prximo exerccio, em duplas:

    Exerccio n 3

    Imitando o som do outro

    I. Duplas.

    II. Escolher um texto do seu personagem, falar com as intenes,

    mas com a voz natural do ator.

    III. Esse ator vai abraar levemente (sem fazer peso, sem apertar

    nada, apenas para estimular a movimentao muscular) o parceiro

    de dupla pelas costas.

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

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    IV. O parceiro, abraado, vai utilizar do corpo do outro para

    respirar e falar o texto, com projeo. Quem est abraando deve

    respirar junto e falar o texto ainda em voz natural. Repetir esse

    procedimento quantas vezes for necessrio.

    V. O texto volta para a boca original e deve ser experimentado

    com o que foi sentido do corpo do outro.

    VI. Sem mudar o mecanismo de emisso desse texto o

    companheiro que est assistindo deve ficar no lugar no espao

    onde o texto deve chegar (e aumentar essa distncia: perto, mdio

    e longe; frente, lado e costas).

    VII. Inverter as funes nas duplas.

    Aps a prtica em duplas propus outro exerccio com o mesmo objetivo de

    trabalho de projeo da voz, individualmente, na tentativa de que houvesse um

    aprofundamento maior:

    Exerccio n 4

    Projetando

    I. Encontrar, a partir dos comentrios do exerccio anterior, o

    lugar do seu corpo onde a vibrao mais intensa.

    II. Imaginar uma bolinha no meio de um fio, voc est segurando

    essa bolinha pelas extremidades desse fio e a bolinha esse foco,

    esse lugar que mais vibra na emisso da voz.

    III. Movimentar a bolinha, dentro do corpo, para baixo e para

    cima, emitindo o som.

    IV. Movimentar a bolinha, externa ao corpo, para baixo e para

    cima, emitindo o som.

    Durante a conversa ps-treinamento de voz alguns atores relataram dificuldade

    na realizao desse exerccio, entre eles as atrizes, as mesmas que vinham comentando

    algumas dificuldades de projetar a voz. Para o prximo treinamento ento planejei

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    trabalhar com perturbaes que tirassem o corpo do ator de um lugar confortvel na

    hora de emitir a sua voz, pensando que deveramos tentar escapar a voz de suas tenses,

    todas aquelas conseqncias e traumas responsveis pela formao do corpo individual.

    Exerccio n 5

    Jogo do Busnardo

    Aes:

    1. falar Busnardo vendar e caminhar falando texto

    previamente escolhido.

    2. desmaiar o grupo ergue o corpo do ator com este falando um

    texto seu previamente escolhido.

    3. separar-se do coro o ator deveria voltar ao coro, que criar

    resistncia corporal para aceit-lo novamente, empurrando-o e

    falando texto previamente escolhido.

    * todas as falas sero realizadas com a dinmica da respirao

    torxica.

    I. O grupo todo deve caminhar junto e vagarosamente pelo espao

    da Praa Jlio Prestes.

    II. Cada um do coro deve estar falando uma seqncia de texto

    previamente escolhida em intensidade mais baixa a possvel.

    III. Ator e, conseqentemente, coro realizam uma das 3 aes

    descritas acima.

    Aps a realizao desse exerccio conversamos sobre o desenvolvimento da voz

    junto ao desenvolvimento do corpo e o lugar de cada um no grupo. Percebemos que

    muitas pessoas no eram ouvidas ou percebidas quando realizavam uma das trs aes e

    algumas identificaes sobre voz dentro do coletivo, iniciativa, traumas de

    desenvolvimento corporal e o lugar de onde sai a voz de cada um.

    2. Espao

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    O segundo eixo de criao de uma voz comeou com o reconhecimento do

    espao. Nos reunimos na praa adjacente a Praa Jlio Prestes, de espao menor, menor

    circulao de pessoas porm maior circulao de carros. Pedi aos atores que

    caminhassem por todo espao da praa e sempre que ouvissem um som tentassem

    segui-lo e imit-lo com a voz. Todos os sons eram vlidos: avies, trens chegando e

    partindo da estao logo ao lado, sirenes de polcia, msica, voz e passos dos outros

    atores. Deveriam seguir o som at no ouvi-lo mais, dentro dos limites daquela praa.

    Para estudarmos a voz partindo do reconhecimento do espao seria necessrio tom-lo

    em presena coletiva, a partir do trabalho individual adquirido por cada um no eixo

    anterior (do corpo), para que pudssemos explorar a projeo da voz entre as

    imprevistas estruturas fsicas e sonoras do espao pblico da cidade.

    O prximo jogo tinha como objetivo a criao de um barco, necessrio para a

    encenao da pea. Esse barco seria criado atravs dos sons suscitados por uma

    embarcao pirata. Ento propus um exerccio anterior como preparatrio para em

    seguida criarmos o barco da tripulao dos Piratas de Galochas.

    Exerccio n 6

    Super-carro-trem

    I. Todo o grupo em coro colocando sua voz em fryin'.

    II. Coletivamente ir acelerando o fryin' at o surgimento da voz.

    III. medida que a intensidade da voz vai aumentando o coro

    comea a caminhar e conforme essa voz vai ganhando corpo a

    caminhada aumenta at a corrida.

    IV. A intensidade da voz vai, aos poucos, diminuindo junto com

    a velocidade de movimentao do coro.

    V. Caminhar na direo linear reta sempre, virar apenas em face a

    obstculos.

    Exerccio n 7

    Navio-coro

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    1. Funes no barco:

    Remar

    Orientar: expandir, juntar, virar, parar

    Frear

    I. Em coro cada um deve assumir uma funo do barco.

    II. Cada funo deve ter um som criado intuitivamente e

    executado sempre que for realizada a devida funo

    III. O navio-coro dever navegar pelo espao realizando as

    funes descritas.

    Comeamos a realizar prticas vocais que envolvessem elementos individuais

    (voz partindo do seu corpo a partir da respirao torxica) e coletivos para superar os

    obstculos do espao pblico (a escuta como principal ferramenta para essa superao).

    Como auxiliar na projeo trabalhamos tambm com o conceito de palavra cantada, um

    estudo do movimento da voz (prosdia) durante toda a extenso de uma fala, e que

    auxiliaria tambm na emisso das falas com as vozes dos respectivos personagens em

    vez da voz natural-cotidiana do ator. Pedi que os atores dessem suas falas cantando, em

    forma de msica de livre improvisao meldica.

    Exerccio n 8

    Palavra cantada

    I. Duplas.

    II. Cada ator escolhe uma fala de seu personagem e a canta para a

    sua dupla.

    III. A dupla se distancia na extenso da largura de uma rua (cada

    um em um lado da rua).

    IV. O primeiro deve cantar a sua fala ao prximo que s vai

    prosseguir com o exerccio se tiver escutado detalhadamente tudo

    o que foi dito. Em caso negativo o primeiro deve repetir a fala

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

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    cantada.

    V. O prximo canta a sua fala para o primeiro da prxima dupla.

    VI. A dinmica segue assim at todos terem participado.

    Executamos esse exerccio com a inteno do bocejo, proporcionando algumas

    descobertas e comentrios de evoluo por parte dos atores. Em seguida revisamos os

    nossos aprendizados nos dois eixos de treinamento vocal para que aprendssemos a

    cantar uma msica (criada por mim, tema dos Piratas de Galochas na Luz, em anexo).

    Para isso separei o grupo em naipes de graves e agudos e criei linhas meldicas para

    cada naipe. Integramos a execuo dessa msica tambm ao nosso aquecimento de voz

    pr-ensaios e pr-apresentaes.

    III. Concluso

    possvel, sim, a projeo da voz no espao pblico. Aps trs meses de curto

    processo de treinamento de voz acredito que deve ser dado o devido cuidado para no

    se cair em uma tradicional rotina chata de aquecimento e treinamento de voz. Muitas

    vezes a treinamos como cumprimento ritualstico de ensaio ou apresentao e, por conta

    desse comodismo, no h aparente evoluo nas chamadas tcnicas de voz que

    aprendemos, por parecerem sempre como mais do mesmo, uma repetio enfadonha.

    No h outra maneira de treinar a voz seno partindo do treinamento do corpo,

    exerccios bsicos de foco nos rgos responsveis pela emisso e pela explorao

    consciente do lugar do corpo individual e do espao atravs do corpo coletivo, lugares

    esses onde a voz criada.

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    OS PIRATAS DO KUTTEL DADDEL DU Tom: C ' ' ' ' ' ' ' ' Intro: F C F G C C G F C Ns somos os piratas do Kuttel Daddel Du F C D7 G Ns vamos saqueando pelos mares da Luz C G F C Ns somos violentos, matamos sem razo F C F G C O servio completo, cabea, p e mo. C G F C Ns somos os piratas, piratas bem legais! F Ns vamos entrar C Sem nos importar D7 G O quanto dinheiro ns vamos levar F No fique nervoso C Se no for gostoso F G C Furamos seu olho e roubamos um bar!

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    OS PIRATAS DO KUTTEL DADDEL DU 1 VOZ SOL D SOL D MI SOL SOL SOL L SOL L D SOL Ns so - mos os pi ra - tas do Ku - ttel Da - ddel Du SOL L D SI L SOL MI MI F R MI F SOL Ns va - mos sa - que - an - do pe - los ma - res da Luz SOL D SOL D MI SOL SOL SOL L SOL L D SOL Ns so - mos vi o - len - tos, ma - ta - mos sem ra - zo SOL L D SI L SOL MI MI F MI F R D O ser - vi - o com - ple - to, ca - be - a, p e mo. SOL D SOL D MI SOL SOL SOL L SOL L D SOL Ns so - mos os pi - ra - tas, pi - ra - tas bem le - gais! L L L L L Ns va - mos en - trar L SOL SOL SOL SOL Sem nos im - por - tar R R R R MI MI F SOL SOL SOL SOL O quan - to di - nhei - ro ns va - mos le - var L L L L L L No fi - que ner - vo - so L SOL SOL SOL SOL SOL Se no for gos - to - so R MI R MI F MI R F MI R D Fu - ra - mos seu o - lhoe rou - ba - mos um bar!

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    2 VOZ SOL D D D D SI SI SI D D SI L SOL Ns so - mos os pi ra - tas do Ku - ttel Da - ddel Du SL MI MI MI MI R SI D R D SI D R Ns va - mos sa - que - an - do pe - los ma - res da Luz SOL D D D D SI SI SI D D SI L SOL Ns so - mos vi o - len - tos, ma - ta - mos sem ra - zo SL MI MI MI MI R SI SOL L F SI SOL D O ser - vi - o com - ple - to, ca - be - a, p e mo. SOL D D D D SI SI SI D D SI L SOL Ns so - mos os pi - ra - tas, pi - ra - tas bem le - gais! MI MI MI MI MI Ns va - mos en - trar MI R R R R Sem nos im - por - tar SI SI SI SI D D D R R R R O quan - to di - nhei - ro ns va - mos le - var MI MI MI MI MI MI No fi - que ner - vo - so MI R R R R R Se no for gos - to - so SOL L SOL L SI L SI D D D D Fu - ra - mos seu o - lhoe rou - ba - mos um bar!

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    Operacionalizao da prtica: Iluminao e Sonoplastia

    Cau Martins

    Para entender como foi o processo de iluminao e sonoplastia do Piratas de

    Galochas pelas ruas da Luz, na sua idealizao e prtica, temos que levar em conta o

    espao com o qual estvamos lidando e a trajetria dos atores.

    O primeiro passo foi pensar em como transportar ou prender as caixas de som,

    microfones, o projetor e os refletores de iluminao e sonoplastia. Necessitvamos de

    algo mvel, que facilitasse o transporte de todos os equipamentos. O segundo foi

    elaborar como ligar esses equipamentos sem que necessitasse-mos puxar fios de energia

    dos locais da regio. Essa foi uma de nossas maiores preocupaes.

    I. Parte Tcnica

    1 Estrutural

    O Carinho industrial foi a soluo para o transporte de todos os equipamentos.

    Incorporamos nele uma estrutura de madeira, onde nosso sistema eltrico era todo

    ligado, alm disso, ele

    continha uma barra que

    suportava dois refletores,

    que era de onde uma parte

    da iluminao era disparada.

    O carrinho tambm

    acomodava a caixa de som,

    de onde toda trilha sonora

    era disparada. Alm de

    acomodar os equipamentos,

    tambm era de fundamental importncia ter espao no carrinho para guardar os diversos

    acessrios de figurino e contra-regragem.

    Uma bateria de caminho 12V, ligada a um inversor de corrente para 110V com

    capacidade de 2000watts de potencia foi a nossa fonte de energia para suportar os

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

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    equipamentos do espetculo.A bateria, assim como o inversor, tambm ficavam

    alojados no carrinho, na base da estrutura de madeira descrita acima.

    A caixa de som foi colocada estrategicamente no carrinho, para possibilitar a

    manipulao das musicas, e para que ficasse direcionada para o publico.

    2 Iluminao

    Os refletores foram pensados em questo de economia de energia, j que

    estvamos lidando com uma fonte no fixa de energia, que era a bateria de caminho.

    Outra questo foi a de ter como modificar a iluminao de uma forma rpida, durante a

    pea, pois no teramos tempo de trocar gelatinas. Para isso tnhamos 4 refletores Par

    Led, e uma mesa controladora

    DMX de Luz. Os quatro

    refletores tinham que ficar

    plugados um no outro, pois o

    sinal lanado da mesa, e isso

    nos exigia ter toda uma

    movimentao certeira dos

    refletores, de uma cena para a

    outra. Tambm for utilizamos set-

    ligths de lmpada incandescente e de lmpada Led.

    Em alguns momentos nos utilizamos dos prdios e construes edificadas para

    suporte de imagens, lanadas por um projetor de dentro do carrinho. O desafio descobrir

    em quais suportes projetar sem que perdesse muita luz pelas interferncias da rua.

    O conceito aplicado para as escolhas de luz era criar um contraste entre a cena e o

    espao. Em diversos momentos os piratas eram iluminados pela luz natural do

    ambiente, e os refletores eram utilizados para iluminar o prprio espao, que era assim

    valorizado com as cores.

    3 Sonoplastia

    A Sonoplastia tem um papel muito importante para a pea, em diversos momentos

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    de transio, planos de fundo para as cenas, trilha para brigas, alem de criar tenso em

    momentos especficos da pea. As msicas utilizadas eram emitidas diretamente da

    caixa de som ativa. Outra forma utilizada de musica e trilhas era o acordeo que uma

    das atrizes tocava durante a pea. Alm disso, tnhamos cenas em que todos os atores

    cantarolavam, e para isso foram necessrios diversos exerccios de canto. Alem desses

    efeitos, tambm foram utilizados mega-fones para projetar a voz de cenas que no se

    conseguiam ouvir.

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    Teatro de Invaso e Ocupao:

    Espao, suas determinaes e sua potncia criativa

    Rafael Presto

    No confundir a cidade com o discurso que a descreve,

    ainda que haja uma relao entre eles

    talo Calvino, As Cidade Invisveis

    Este artigo tem o intuito de debater o processo de ressignificao do espao

    pblico atravs da invaso e ocupao teatral do ambiente urbano, partindo da anlise

    do processo de construo do espetculo Piratas de Galochas na Luz, ao empreendida

    pelo Coletivo de Galochas no bairro da Luz.

    O trabalho desde o incio era apoiado no conceito de invaso teatral 4. Essa

    invaso parte da compreenso do espao como uma somatria de fluxos. Os fluxos

    caracterizam um lugar, so aquilo que o tornam singular, diferente de tantos outros. So

    as linhas que ditam as formas de uso social do espao e tambm o que define nossa

    percepo cultural. So determinaes de naturezas diversas.

    A primeira determinao que podemos pensar a do espao fsico tomado em

    suas dimenses estruturais muros, caladas, bancos, paredes, portas, pilares, colunas.

    A arquitetura de um lugar define muito dele.

    Mas o que permanentemente anima esse espao fsico, o que define seus fluxos,

    so as rotinas de uso que as pessoas estabelecem nele. So elas que demarcam uma

    espcie de lgica do espao, responsvel pela forma como apreendemos o territrio da

    urbe em nosso dia-a-dia.

    Existe um projeto por detrs do espao, herdamos suas caractersticas nas rotinas

    de uso que estabelecemos com ele. No entanto, no vivemos o projeto do mundo,

    vivemos seu cotidiano concreto: ao mesmo tempo que o espao nos determina, o

    transformamos o tempo todo, em um permanente processo de rupturas e suturas

    dialticas de determinaes e criaes.

    Esta a abordagem que toma o espao enquanto ambiente, uma organizao que

    parte de um projeto mas necessariamente o transforma dando-lhe caractersticas

    4 CARREIRA, Andr. Teatro de Invaso: redefinindo a ordem da cidade in LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Espao e Teatro: do edifcio teatral a cidade como palco. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.

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    Piratas de Galochas na Luz Reflexes sobre o processo

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    singulares, fruto dos deslocamentos culturais e de comportamentos. O ambiente est em

    constante transformao, sua dinmica interna imprime mudanas o tempo inteiro.

    A invaso teatral praticada pelo Coletivo de Galochas parte de um jogo com os

    fluxos de um determinado ambiente. Atravs da ao teatral o grupo busca alterar as

    rotinas de uso especificas de um determinado espao, ressignificando-as. Assim, o

    ambiente onde a ao teatral acontece no tomado como suporte, mas antes como

    dramaturgia, potncia criativa. A ideia produzir, por meio de uma interveno cnica,

    rupturas e reordenamentos temporrios nas rotinas que constituem o espao. Tomar o

    ambiente enquanto objeto cultural, uma narrativa que define o que somos, para ento

    interferir nele.

    A invaso teatral , por princpio, uma ao poltica. Seu foco est em atritar os

    fluxos do espao gerando

    possibilidades inusitadas de

    uso, possibilidades essas para

    alm dos regimes de produo

    daquele ambiente. Busca o

    rompimento momentneo das

    categorias; uma fala de

    resistncia que ocupa o espao.

    uma interferncia na lgica

    da cidade, uma intromisso ao uso cotidiano do espao. (Andr Carreira, 2008).

    Para praticar este teatro, preciso repensar o instrumental de trabalho do ator.

    Este deve partir de um principio de porosidade e adaptabilidade absoluta. Enquanto joga

    com determinado ambiente, o ator precisa estar aberto para perceber e incorporar em

    sua ao teatral todos os elementos nicos que a frico com o espao oferece. Buscar

    estes pontos de interseco passa a ser o ponto principal do trabalho do ator, que parte

    de uma interpretao permanentemente criativa, fundamentalmente improvisacional.

    A rotina de invases constantes faz com que a prtica teatral, pouco a pouco, se

    introduza nos fluxos do ambiente, alterando as possibilidades de uso do espao de

    maneira mais perene. A capacidade de interveno teatral se amplia, passa a figurar

    como um dos elementos que constitui aquele cotidiano. Momento de maturao nas

    relaes estruturais, simblicas e de convivncia entre prtica esttica e zona ocupada: o

    que era invaso torna-se ocupao.

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    As invases teatrais realizadas servem de instrumento de investigao do espao.

    Neste segundo momento, de ocupao, temos a reflexo do material cnico produzido

    pelas invases teatrais. O intuito constituir, partindo de um repertrio de experincias

    concretas, uma ao teatral mais complexa, mais profundamente entrelaada entre os

    muitos fluxos que definem o ambiente. No trabalho do Coletivo de Galochas, a fronteira

    entre esses dois momentos, invaso e ocupao, demarcada pela finalizao da

    dramaturgia do espetculo, construda ao longo das muitas aes de tomada do espao.

    O espetculo, portanto, torna-se indissocivel do espao que ocupa.

    Antecedentes: Da Ocupao Prestes Maia as ruas da Luz

    Esse conceito de invaso e ocupao teatral foi praticado pelo Coletivo de

    Galochas, inicialmente, dentro de uma Ocupao de Moradia. Durante um ano, em

    parceria com o MSTC Movimento Sem Teto do Centro, o grupo trabalhou dentro da

    Ocupao Prestes Maia, maior ocupao vertical da Amrica Latina, casa retomada de

    mais de 360 famlias. L o Coletivo participou de mutires de limpeza, assembleias,

    atos pblicos, da ocupao de outro imvel. Os ensaios do espetculo transcorriam em

    paralelo com toda essa movimentao, acontecendo cada dia em um andar diferente dos

    dois prdios do imvel.

    Todo esse processo desembocou na consolidao do Ncleo Cultural Prestes

    Maia, atrelado finalizao do espetculo Piratas de Galochas. A pea, finalmente

    ancorada no nono andar de um dos prdios, era uma comdia sobre piratas que

    ocupavam uma ilha sem funo social. A construo da dramaturgia do espetculo

    partiu do atrito do universo da pirataria clssica com o cotidiano da ocupao, cotidiano

    experienciado pelo grupo atravs da convivncia cotidiana e de muitas invases teatrais.

    Durante esse processo, por estar ao lado dos ocupantes, o grupo acompanhou

    diversas intempries polticas externas, como as constantes ordens de despejo e os

    discursos miditicos estigmatizantes. Mas o cotidiano de ensaios, a produo teatral

    especfica l dentro, no era marcada por fortes atritos. A relao dos teatristas com o

    espao era pacfica e acordada, tinham a segurana de estar em um ambiente privado

    onde tudo partia de uma construo em conjunto com o Movimento de Moradia. Um

    jogo cordial com os fluxos de uma organizao social. A dramaturgia do espetculo

    buscava um atrito com o imaginrio e ideologia dos ocupantes, mas posicionada: o

    Coletivo de Galochas, afinal, lutava politicamente ao lado dos moradores.

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    Dentro das lutas polticas do movimento de moradia, um projeto figura como um

    dos grandes viles: o Projeto Nova Luz. Atualmente a Ocupao Mau, tambm tocada

    pelo MSTC, corre risco de