piratas de galochas compilação teórica (1)

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Coletivo de Galochas Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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Coletivo de Galochas

Piratas de Galochas na Luz

Reflexões sobre o processo

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012

Índice

Introdução ......................................................................................................................... 3 Pedro Paulo Rosa

Ficção, realidade e calejamento ........................................................................................ 4 Daniel Lopes

O lugar de onde se vê ....................................................................................................... 7 Nina Nussenzweig Hotimsky

Jogo e improviso: um olhar do ator sobre o processo .................................................................................. 12 Ighor Walace

A Luz, os Piratas e seu público ...................................................................................... 15 Pedro Paulo Rosa

Hierofania na Helvétia: Princípios do mascaramento no espetáculo Piratas de Galochas ................................... 21 Laís Trovarelli

Processo de criação Corporal ......................................................................................... 25 Felipe Bitencourt

A criação da voz do ator no espaço público: Origem no corpo, projeção no espaço ............................................................................ 29 Gabriel Hernandes

Operacionalização da prática: Iluminação e Sonoplastia ................................................................................................ 40 Cauê Martins

Teatro de Invasão e Ocupação: Espaço, suas determinações e sua potência criativa ....................................................... 43 Rafael Presto

Referências ..................................................................................................................... 55

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012

Introdução

Reflexões acerca da criação teatral “Piratas de Galochas” nas ruas do bairro da

Luz, São Paulo.

Pedro Paulo Rosa

Após realizar a temporada da peça Piratas de Galochas nas ruas do bairro da

Luz, o Coletivo de Galochas teve como proposta debruçar-se sobre seu fazer teatral, de

modo a refletir teoricamente a partir do processo vivenciado. Durante quatro meses (de

maio à agosto) o Coletivo realizou ensaios semanais no bairro da Luz, a fim de re-criar

o espetáculo Piratas de Galochas. A peça foi originalmente criada em 2011, fruto de

um processo colaborativo realizado nos prédios da Ocupação Prestes Maia, um conjunto

de prédios que, anteriormente abandonados, foram ocupados pelo Movimento dos Sem

Teto do Centro (MSTC) e servia de moradia para mais de 380 famílias. Concomitante à

criação da peça, o Coletivo de

Galochas participou da criação de

um Núcleo Cultural na Prestes

Maia, e foi lá que a peça Piratas de

Galochas teve sua primeira

temporada, em novembro de 2011.

Em 2012, o grupo teve

anseios por experimentar essa peça

em outros espaços, e escolheu as

ruas da Luz, região estigmatizada como Cracolândia. A proposta era deixar o prédio da

Ocupação e ocupar as próprias ruas da cidade. Apesar de já ter uma dramaturgia e

montagem bem definidas, ao chegar às ruas o grupo percebeu a necessidade de re-criar

a peça, a partir desse novo espaço.

Depois de quatro meses de ensaio, Piratas de Galochas estreou na Luz, ficando

em cartaz de início de setembro até meados de outubro. Passada a vivência, cada um

dos integrantes do grupo escolheu um ponto do processo a ser debatido, elaborando uma

breve reflexão escrita sobre o assunto. Aqui, temos a compilação desses textos, escritos

pelos participantes do Coletivo de Galochas.

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012

Ficção, realidade e calejamento

Daniel Lopes

Antes de qualquer coisa a dor - sinto uma profunda e inexplicável. Tentando

refletir sobre o processo de ator com a adaptação do espetáculo Piratas de Galochas no

bairro da Luz, sinto o peso de todo o processo de criação, cujo gozo é proporcional.

Ao idealizar o projeto, que posteriormente foi contemplado pelo Programa de

Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da Prefeitura de São Paulo, queríamos

continuar a pesquisar através da re-significação do espaço, discutir temas como a

especulação imobiliária e a gentrificação do centro.

Em nossa primeira montagem dentro da ocupação de sem-teto Prestes Maia,

percebemos a potência do jogo da pirataria como matéria ficcional e a realidade dos

ocupantes, interpondo nossa dramaturgia à corrosidade do espaço.

A adaptação seguiu os mesmos preceitos, mas ingenuamente acreditávamos que

o mais difícil já estava feito. Ao depararmos com nosso novo “espaço cênico”

percebemos que as questões abordadas dentro da ocupação não dariam conta da

complexidade do bairro.

Analisando a adaptação, o que mais me marcou foi a diferença entre a situação

da ocupação e a das ruas do bairro. Dentro da Ocupação, apesar de sempre estar em

conato com o lado mais podre da gentrificação e da desvalorização do ser humano,

estávamos embotados por um sentimento de luta; por nossos direitos, contra a violência

vivida todos os dias pelas famílias ocupantes.

Quando iniciamos nosso processo nas ruas o que vimos era violência também,

mas ela estava materializada de uma forma muito mais desanimadora; a violência da

polícia quanto aos usuários de crack, pessoas em situação de rua, moradores de pensões

temendo perder seus lares, crianças e nenhuma luta aparente, sem perspectivas de

mudança. Isso destrói qualquer um, até mesmo o mais bravo dos piratas, mesmo

pensando ter velejado todos os mares e enfrentado todos os monstros. Alí estava um

oponente invisível, inominável, encontramos apenas uma pista para o tal, o Projeto

Nova Luz, projeto urbanístico que pretende operar grandes mudanças na região

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012

estigmatizada de Cracolândia pela prefeitura, a partir de uma perigosa lei de Concessão

Urbanística, sem nenhum diálogo com moradores, desapropriando para valorizar as

propriedades no mercado imobiliário.

Por que todas essas questões são invisíveis, mesmo que a mídia trate sempre da

Cracolândia? Por que agora sinto esse incomodo e ódio que antes era apenas um

pequeno mal-estar?

Na peça sou o capitão dos piratas, e assim como meu patético pirata me encontro

perdido, à deriva com muitas questões e nenhum mapa do tesouro.

Na rua a possibilidade de nossa ficção tornar-se apenas fantasia, uma brincadeira

de criança, perante a constante intervenção dispersiva da realidade é ainda maior. O que

podemos fazer? O que um grupo de

artistas está fazendo em um local

como aquele? Muitas dúvidas

tumultuavam nossos ensaios e

apresentações.

Em uma de nossas

apresentações um senhor transtornado

exclamou: “Eles (apontando para

usuários de crack que estavam

amontoados na calçada, próximos a nossa cena) Não precisam de fantasia, eles precisam

de ajuda.”. Esse senhor nos acertou em cheio, conversamos muito sobre o assunto. De

início defendi que não estávamos lá para ajudar, não era essa a nossa intenção, mas essa

parece ser uma solução fácil para o problema. Não queremos transformar os problemas

daqueles sujeitos em espetáculo, assim como vemos diariamente na televisão. Então

qual é a importância da poética do pirata?

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Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012

Pensando em todas essas questões e tantas outras que viriam, decidi me preparar

fisicamente para o trabalho na rua, que convenhamos exige um esforço hercúleo tanto

do ator quanto do público. Pretendendo ganhar condicionamento físico, comecei a

treinar Muay Thai em 2012. Diferentemente de todas outras artes marciais, esta luta de

origem tailandesa usa as canelas ao invés dos pés para executar os chutes e as defesas

também, o que é muito dolorido. Com o tempo a dor diminui, devido ao trabalho de

calejamento e também pelo fato de nos

acostumarmos com a mesma.

Como ator, associo todas as

experiências cotidianas ao meu fazer artístico.

Assim, penso que o teatro funciona de forma

oposta ao calejamento executado nas artes

marciais. Nossos piratas descobrem feridas da

cidade e as abrem, mesmo que comicamente,

uma piada indigesta, e é por isso que se torna

uma experiência tão intensa.

Dentro da cidade o normal é o total

calejamento, fazemos isso como uma defesa

inconsciente, uma forma de convivermos com

tanta violência sem prejudicar nossas vidas,

mas essa defesa é extremamente perigosa. Sem

perceber que somos violentados e que o ser humano está em último lugar nas políticas

públicas, deixamos também de nos revoltar. A mídia nos mostra a violência, mas ela usa

do artifício sensacionalista e a transforma em um produto que compramos para

sentirmo-nos mais humanos, essa sensibilização nunca é associada às suas causas, quase

sempre é apenas mais uma forma de calejamento alienador.

O teatro é nossa forma de ter uma experiência compartilhada com o público.

Através da ficção tentamos interagir com a realidade, participar e transformá-la

Agradeço a todos meus companheiros de barco, ao público, as crianças que

acompanharam todo o processo, que enfrentaram todas as dificuldades da rua; a

fragilidade de nosso trabalho perante a tudo, a insuficiência de nossas vozes, ao frio,

chuva, e principalmente ao desgaste emocional. Vocês abriram uma ferida em mim.

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O lugar de onde se vê

Nina Nussenzweig Hotimsky

[Teatro, da palavra grega Theatron: lugar de onde se vê.]

I.

Praça Júlio Prestes, Helvetia, Dino Bueno: lugares que estiveram em evidência

desde Janeiro de 2012. Operação policial, manifestações da sociedade civil organizada,

cobertura intensa da mídia. Segundo semestre de 2012: o que um grupo de teatro vai

fazer por ali?

A exposição ou o ocultamento de situações sociais não são fortuitos, são opções

que servem a determinados interesses. O Estado moderno faz viver ou deixa morrer.

Rubens Adorno 1, etnógrafo que estudou o bairro da Luz, fala da invisibilidade de

populações como um dispositivo para deixar morrer. Certas pessoas morrem enquanto

não falo sobre elas.

Talvez por isso o acúmulo de usuários de crack em determinados pontos da

cidade incomode tanto; é mais difícil ignorar as pessoas quando elas se reúnem em um

mesmo tempo-espaço. Diz Henrique Carneiro que “o crack é a faceta visível da

miséria”. Visível, mas silenciada por longos períodos. O bairro da Luz sofreu uma

operação policial intensa em 2008, andou um tempo em banho-maria, e voltou a

estourar (com armas e noticiários) em 2012...

Qual o motivo de olharmos a Luz? Existe um novo projeto para o bairro, a

chamada “Nova Luz”, amparada por um projeto de Concessão Urbanística. Para que

Parcerias Público Privadas funcionem, é preciso atrair investimentos para a região – e os

investidores precisam de garantias. Foi criado o termo Cracolândia: é preciso

estigmatizar os bairros do centro para então “revitalizá-los”. Comprar a preço de

1 Fala realizada no seminário “A cracolândia muito além do crack”. Faculdade de Saúde Pública da USP, 28 a 30/05/2012.

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Cracolândia, vender a preço de Nova Luz2. Desenhar simbolicamente a Cracolândia

exige alarde, espetacularização.

Falamos sobre fluxos populacionais e urbanísticos e sua ligação com a

circulação de discursos. As pessoas, a cidade, e o campo simbólico. Esconder ou dar a

ver, tornar invisível ou visível, objetificar ou espetacularizar? Resta fazer a passagem –

o que a mídia e a polícia agiram na Luz, e o que os artistas teatrais foram fazer ali no

segundo semestre de 2012.

Uma coisa é ensaiar; quando ensaio estou desarmada. No período de criação da

peça, o Coletivo de Galochas acostumou- se a viver ao menos uma intervenção por dia.

Ao menos uma pessoa pertencente ao bairro fazia questão de tornar-se visível.

Uma senhora me beija: “você parece tanto a minha filha de dezesseis anos!

Olha, tá vendo as três estrelas? (Aponta para o céu, volta para a terra). Você vai me

ajudar?”.

Um palhaço profissional latino-americano escuta o ator falar em liberdade, entra

em cena e pergunta: “O que es Libertad?”.

Hernandez, clarinetista bêbado (mas “sem preconceito com outras drogas”) vê os

atores em roda e impõe-se cenicamente: “Isso é algo, isso é algo! Eu, vocês, esse

círculo, a iluminação. Deus não é lógico, porque a vida não é lógica. Deus é para ser

sentido. A vida também é improviso”.

Uma senhora atravessa o aquecimento corporal gritando suas bravatas: “Cêis

moram com a mãe! Paga um cursinho da Poli pra mim! O saber pesa, né?”. Respondo

aflita que ela tem razão de estar brava. “Você não é psicóloga!”. Um ator pondera:

“Você já chegou atacando...”. Ela responde: “A melhor defesa é o ataque”. Luta de

classes, pois é. Os atores do Coletivo de Galochas se assemelham em algo com os

futuros moradores da Nova Luz, com os espectadores da Sala São Paulo, com as

pessoas que passam com medo por aquelas ruas. “Vocês estão fugindo, estão fugindo!”,

gritava a senhora ao final. Não, senhora, precisamos mesmo ensaiar a próxima cena na

próxima esquina.

2 Frase de Mariana Fix, urbanista, no debate: “Cracolândia”. Faculdade de Sociologia e Política de São Paulo, 15/06/2012.

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Anedota última: o homem que senta na roda de conversa tendo na boca um

cigarro ao contrário. Ele responde, “Eu sei, eu sei. Vocês não têm noção de onde eu

estou. (Respira fundo em sua brisa). Aqui é a Cracolândia, porra!”.

Período de ensaios. A cidade nos atravessa, e atravessa a dramaturgia.

II.

É a Luz, é A pé,

É o Oceano e é o Barco.

Outra coisa é apresentar. Paramentada por uma barba, maquiagem, figurino, luz,

sonoplastia: o que faço nas ruas da Luz? O que se torna aquele lugar? Oceano e bairro

em concessão urbanística. É preciso jogar com os colegas atores, e é preciso jogar com

a platéia - sem esquecer

quem já estava ali antes de

chegarmos...

Parte de “quem já

estava ali” são os

moradores das pensões

próximas. Famílias,

trabalhadores, imigrantes,

ciganos e crianças. Pessoas

que receiam ter de se

mudar, caso a transformação em “Nova Luz” faça o aluguel subir muito. Os adultos

nem sempre saem de suas casas, mas elegem uma ou outra cena para assistir de suas

janelas. As crianças entram de cabeça na peça, a nova brincadeira nas noites de final de

semana.

Mas há quem “já estava ali” como bode expiatório. Quem vivia a sua festa até a

polícia chegar. Quem veio provocar ao longo dos ensaios. Aqueles que apanharam,

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aqueles de quem a mídia tanto falou, aqueles que acostumaram-se a ver passar pessoas

com medo. Qual era a relação deles com a peça?

Um teatro na rua não pode obrigar ninguém a ter interesse. Alguns usuários de

crack tinham prazer em assistir a peça, mas muitos deles não se mobilizavam para tanto.

Essa é uma opção que não cabe criticar. O grupo pode é se perguntar: até que ponto a

peça convidava esses espectadores?

Além de possíveis espectadores, os usuários de crack tornavam-se elemento de

leitura da peça. Espectadores que vinham de fora passavam seus olhares pelas pessoas

nas calçadas, e essa visão necessariamente integrava a sua experiência ao assistir

“Piratas de Galochas”. Estar em cena na rua faz perceber como a cidade é mais

interessante que o ator. Não cabe competir, é preciso lidar com o que a rua oferece

(grande desafio para atores tão jovens!). O que a peça fez dos usuários de crack?

Duas foram as preocupações:

1. Não quero torná-los invisíveis.

Moradores de São Paulo estão acostumados a “não ver” a miséria.

Para quê montar uma peça na tão alardeada Cracolândia se pretendo tocar a todo

custo a fábula dos Piratas? Qual o peso simbólico de uma cena atravessada por um

carroceiro, se o ator o ignora?

2. Não quero a visibilidade espetacularizada.

A peça é um passeio pelo centro. Ela pôde permitir que alguns espectadores de

classe média olhassem ao vivo o que a televisão retratou. Pisar a Helvetia com a Dino

Bueno. Não ter tanto medo.

As câmeras televisivas captaram os usuários do crack como bodes expiatórios.

Como os espectadores de “Piratas de Galochas” (espectadores intencionais, vindos de

outras regiões da cidade para assistir a peça) captaram quem estava diante deles?

III.

Desenvolvidas algumas das preocupações e contradições, um apontamento final.

Nos últimos finais de semana da temporada, a região da Luz foi pesadamente

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“higienizada”. A operação policial se intensificou – quem sabe, por conta do segundo

turno das eleições municipais.

Subitamente, as esquinas barulhentas silenciaram, e as calçadas lotadas se

esvaziaram. Que “paz”. “”Paz””. “””Paz”””.

Uma batida policial violenta em frente à última cena fez lembrar o custo da

aparente limpeza. Impossível saber quantos espectadores perceberam essa outra cena.

Como atriz, preferia as contradições da rua lotada ao silêncio cruel do

higienismo.

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Jogo e improviso: um olhar do ator sobre o processo

Ighor Wallace

Cracolândia é o nome pelo qual é conhecida uma região do bairro da Luz na cidade de

São Paulo, situada próxima a uma grande estação metro-ferroviária. Incrustrado neste espaço

de grande circulação urbana existe uma área expressiva aonde drogas são comercializadas e

consumidas abertamente. Uma vida marginal - hoje sob intensa vigilância, que varia da total

passividade à agressividade ostensiva - mas que é ambiente comum de trabalhadores, crianças,

empreendedores...

O Coletivo de Galochas, carregando consigo a experiência do trabalho de um ano na

Ocupação Prestes Maia, escolheu adaptar o espetáculo Piratas de Galochas para o contexto da

Cracolândia, remontando à pesquisa de teatro na rua realizada no primeiro trabalho do

coletivo.

No início do processo realizávamos treinamentos corporais dentro da Estação da Luz e

suas imediações, assim como improvisos onde as peculiaridades dos espaços eram os maiores

provocadores e nossa principal função era jogar com o entorno. Pouco a pouco fomos nos

aproximando da praça Prestes Maia, em frente à Sala São Paulo - uma luxuosa casa de

concertos e eventos - e desta Cracolândia em questão (posto que a terminologia tornou-se um

conceito que se espalhou pela cidade com o aumento do policiamento naquela região

específica), intensificando os treinamentos, nos preocupando mais com a preparação vocal e

definindo cada cena do novo espetáculo em seu respectivo espaço de representação.

Não havia um dia sequer em que não fossemos abordados por alguém durante os

ensaios. Esses encontros fortuitos que algumas vezes nos tocaram profundamente eram com

pessoas dos mais variados tipos. O comunista inconformado, a prostituta, o senhor que cresceu

e viveu sempre ali, o bêbado chato, o compositor boêmio, o nóia, o palhaço argentino, a mãe

adolescente, o empreendedor, as crianças... Claro que era muito importante seguir adiante e

continuar o trabalho de montagem da peça, mas essas interrupções eram momentos

preciosíssimos. Cada uma daquelas individualidades exigindo atenção, ansiando por se

comunicar e evitando que a miséria os despersonificassem, nos desestabilizava em algum

nível. Fazia com que ponderássemos o nosso trabalho, descobrindo novos caminhos.

Não que essa condição de luta seja exclusividade dos que estão a margem da sociedade.

Manter a individualidade também é uma batalha para todos que se colocam em posição de

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mercadoria, ao empregar sua força de trabalho. Era natural que para nós, ao trabalhar no

campo das artes cênicas e colocando nosso próprio corpo como parte da obra, o temor de nos

tornarmos mera mercadoria fosse recorrente. Insistimos, portanto, em estabelecer um diálogo

mais próximo com os moradores e comerciantes da região. Isto ajudou muito no sentido de

fazer com que se estabelecesse um vínculo entre o Coletivo e o cotidiano daquele bairro, e

assim a construção do espetáculo se tornasse um acontecimento pertencente a todos nalguma

medida. Angariávamos também estofo para os improvisos de cena que dariam liga entre uma

nova linha dramatúrgica que não se desconectasse completamente da original e a temática

provocada pela vivência da organização social da Luz.

Sentimos logo a necessidade de estabelecer

certos parâmetros de permeabilidade à interferência do

público. Era notório que seríamos abordados também

durante as apresentações e estávamos conscientes de

que a peça que construíamos tinha como alvo, além de

nossos convidados, aquele público específico de

moradores que seria barrado de qualquer sala de

espetáculos e, portanto, não está acostumado com todo

o código de postura do teatro tradicional. Mais do que

isso, nos encontrávamos em um território aonde o

trato social estava completamente deslocado.

Todos estamos presos à condição de ator, sem

distinção. O homem é um ser social e a capacidade de

se comunicar é imprescindível. Geralmente um emprego pede um figurino apropriado ou

paramentos próprios. Lidamos o tempo todo com a construção e interpretação simbólica. Fora

isso seguimos uma conduta que o corpo da sociedade espera de nós. Tudo isso nos desloca de

nosso verdadeiro eu - somos uma construção da qual nem sempre tomamos parte. Por isso foi

relativamente simples estabelecer um contato pacífico com a ronda policial (que se tornou um

símbolo da coroa britânica em cena), com os proprietários de pensão e comércio (que cederam

espaços de representação e contrarregragem), com os espaços culturais e instituições do

entorno.

Lidar com as crianças e os embriagados era um grande desafio. Estes partilhavam da

mesma parcela de liberdade para fugir de determinadas regras sociais que nós. A maior parte

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dos adultos parava para julgar se o que fazíamos era bom ou não e, quando gostavam, alguns

agiam como as crianças: queriam entrar em jogo e entravam, mesmo sem autorização!

O conceito de jogo, tão inerente ao Teatro nas línguas francesa e inglesa, fica camuflado

na nomenclatura do acontecimento cênico em português. Isso não quer dizer que jogo e

improviso sejam a mesma coisa. Quando assistimos a uma peça com quarta parede, o jogo se

dá somente entre os atores e já está previamente combinado - a brincadeira consiste em fazer o

combinado valer. Quando o seu público exige ser colocado em ação passa a ser

responsabilidade nossa fazê-lo e queríamos que a montagem permitisse isso, ainda que

impelindo-os a refletir sobre o que estavam acompanhando, somente.

Também existiam aqueles interessados apenas em atrapalhar e fazer pouco de nosso

trabalho, que deflagravam uma espécie de existência para o desdém. Quando lidávamos com

esse tipo de situação optávamos por suspender o trabalho momentaneamente e pedir para que

se retirassem, e se não dava certo nós é que nos afastávamos. Seria no mínimo injusto e

prepotente tratar da mesma forma aqueles que se colocavam genuinamente em ação, e para

atender essa demanda era necessária constante prontidão e escuta por parte dos

atores/criadores. Isso quer dizer que nada pode ser ignorado, toda provocação gerando um

retorno vigoroso, tornando em estético o inesperado.

Por isso o intérprete realiza uma função múltipla. Ao mesmo tempo em que age

ativamente no dar a ver de sua personagem, permanece permeável às alterações do entorno.

Esta é uma constante no jogo de cena entre atores de todo tipo de teatro, mas quando estamos

lidando com o improviso, torna-se essencial, pois inclui-se a plateia e o momento presente se

transforma em amparo e guia de nossa arte.

O ato de criar em ação opera de forma diferente no corpo de cada um. Em geral

tentávamos não quebrar a personagem que interpretávamos a não ser que corrêssemos risco.

Muitas vezes chegar neste estado de prontidão nos incita a criar o tempo todo e então é preciso

diminuir, daí a necessidade de equilíbrio com a escuta, pois a compreensão da fábula e dos

dilemas morais apresentados ainda é um valor muito caro ao Coletivo. É também comum que

o ator se prenda à criação verbal e abandone o corpo construído para sua figura, fragilizando o

potencial energético de sua interpretação.

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A Luz, os Piratas e seu público

Pedro Paulo Rosa

“O teatro de rua instala-se no espaço público, e se constitui como surpreendente acontecimento artístico. Este acontecimento provoca ruptura na funcionalidade espacial cotidiana, modifica o repertório de usos do espaço. Em virtude disso, o público do teatro de rua é fundamentalmente um público acidental, que presencia o espetáculo porque se encontra casualmente com este acontecimento. Por princípio, a relação do público com o espetáculo da rua, está condicionada pela surpresa e alteração das expectativas ou até mesmo pela inversão desta quanto ao uso da rua. Há grande quota de acaso neste encontro e isso contribui de forma significativa para a construção de sentidos do espetáculo.”3

Como vemos na citação acima, para André Carreira a característica primeira do

público do teatro da rua é o acaso, o público acidental, alguém que não pretendia assistir

a uma peça, mas encontrou uma na rua. Encontrou e, ao invés de simplesmente

continuar passando (como muitos fazem), por algum motivo parou, constituindo-se

assim como público.

Como Piratas de Galochas foi um espetáculo realizado em via pública, pelas

ruas do bairro da Luz em São Paulo, seria lógico concluir, de acordo com Carreira, que

seu público seria, principalmente, acidental. O espetáculo começaria e o público viria ao

longo, passante e fragmentado. Porém, a expectativa do grupo com relação ao público

não era essa, ou pelo menos não apenas essa. Que os passantes acabassem por

integrarem-se ao grupo e acompanhassem a peça, isso era previsto, mas havia uma

expectativa de atrair um público intencional, de chegar à Praça Julio Prestes às 20h, em

frente à Sala São Paulo, e encontrar um grupo de pessoas aguardando pelo início da

peça. Quando não havia um número grande de pessoas à espera dos atores, estes não

deixavam de sentir uma leve frustração: ora, mas, se era uma peça da rua, por que os

artistas queriam tanto esse público do teatro?

Quando Piratas de Galochas foi criado, em 2011, na Ocupação Prestes Maia, a

peça acontecia dentro do prédio ocupado e todo seu público era intencional. O espaço

era alternativo, pois não se tratava de um edifício teatral, e não havia palco tradicional.

Os espectadores, depois de subirem nove andares de escada, passando pela porta das

casas dos moradores, chegavam ao local do espetáculo, onde sentavam-se em

banquinhos de papelão e eram convidados a se mover pelo espaço durante a peça. Para 3 CARREIRA, André, Teatro de Rua: (Brasil e Argentina nos anos 1960): uma paixão no asfalto, São Paulo: Aderaldo & Rothchild Editores LTDA, 2007.

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os moradores, fazia parte da experiência vivenciar uma peça de teatro dentro de suas

casas, ou seja, no prédio onde eles moravam. Para aqueles que vinham de fora, fazia

parte da experiência entrar em uma Ocupação de moradia e “visitar a casa de alguém”.

Mas, ainda assim, o público era formado por pessoas que, tendo conhecimento sobre a

existência da peça, escolhiam sair de suas casas (seja essa casa no oitavo andar da

Ocupação ou no bairro de Higienópolis), deslocarem-se até o nono andar da Ocupação

Prestes Maia e lá compartilhar o acontecimento teatral. Era um público intencional,

pessoas que se propuseram a ir ao teatro, apesar de não irem à um edifício teatral.

Ao levar a peça para as ruas da Luz o processo de divulgação da peça e a

expectativa de atrair um público intencional continuaram. Aqui visitar a chamada

Cracolândia fazia parte da experiência proposta pelo Coletivo de Galochas para um

público de teatro –que provavelmente não freqüentaria (ou muitas vezes nem conheceria

pessoalmente) essa região da cidade.

Podemos dizer que a vontade de ter um público intencional vem do desejo de

propor uma experiência, e mais que isso, um contraste de experiências, uma ruptura (ou

pelo menos uma micro-fissura) em um fluxo já estabelecido para aquele espaço. Ao

convidarmos freqüentadores de teatro para assistirem a um espetáculo nas ruas da Luz

não estamos apenas convidando-os para uma peça de rua – estamos chamando essas

pessoas para as ruas da Cracolândia, convocando-as a estarem presentes fisicamente

nesse espaço. A partir dessa presença física a peça percorre o espaço, interfere sobre e

interage com ele, criando relações com os fluxos urbanos existentes naquela região, e o

público é convidado, a partir dessa vivência, a criar sua própria experiência com relação

àquele espaço, ser atravessado pelo espaço e tudo que ele contém: os atores (pelo menos

durante aquelas duas horas), moradores, cracômanos, policiais, crianças, donos de bares,

moradores das ruas.

O desejo de atrair um público intencional não anula nem diminui, de maneira

alguma, a importância e a necessidade de um público acidental. Não é justo, tampouco

preciso, generalizar o perfil dos dois tipos de público em questão (intencional e

acidental), mas vale apontar que era comum que o primeiro fosse composto, muitas

vezes, por pessoas que conheciam o Coletivo de Galochas e seu trabalho, ou que tinham

algum tipo de contato com algum integrante do grupo. Muitos deles tinham pouca

familiaridade com aquela região da cidade, e podemos dizer que tinham como principal

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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referência daquele espaço a imagem espetacularizada de Cracolândia, difundida pela

mídia, fazendo daquelas ruas uma região desconhecida, mas de certo muito perigosa. Já

o segundo contava com os freqüentadores da região, nesse caso moradores de casas,

pensões e cortiços, transeuntes, usuários de drogas, policiais, crianças, moradores de

rua, donos de botecos. Estes sim, estavam passando pelas ruas quando encontraram um

peça de teatro. Alguns paravam para olhar e continuavam até o fim. Outros “passavam

batido”. Alguns espiavam pela janela de casa a

cena que acontecia ali em frente, mas nem

sempre desciam para virar a esquina e

acompanhar a próxima.

A composição desses dois públicos,

colocados lado a lado devido a um

acontecimento artístico, torna-se potente quanto

proposição de experiência. Possibilitar um

público-mosaico, que venha de regiões diferentes

da cidade (e do país), de opiniões e escolhas

políticas diferentes, de escolaridades diferentes

mas, principalmente, de classes sociais

diferentes. Colocar essas pessoas frente a frente,

mediadas por uma peça, de mondo que elas compartilhem uma mesma experiência,

criem e modifiquem sua relação com aquele espaço, e com as relações sociais que ele

representa na construção urbana atual.

Se as ruas são públicas, por que não podemos estar todos nelas?

Alguns passantes, freqüentadores do bairro, ao se deparar com a peça olhavam,

curiosos. Acompanhavam por um tempo e depois seguiam seu caminho. Alguns

assistiam um pedaço e voltavam no dia seguinte para acompanhar a peça desde o início

– aqui, o público acidental de ontem é o público intencional de hoje. Conforme os

ensaios e as apresentações foram se tornando recorrentes, a peça passou a fazer parte da

dinâmica de funcionamento daquelas ruas. Moradores que passavam reconheciam os

atores como tais, eram familiares com a realização daquela peça – inclusive alguns

nunca assistiram à peça inteira, mas sabiam que ela acontecia ali. Depois de um tempo,

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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não era mais surpresa encontrar um pirata bebendo e cantando pela rua, no meio do

caminho de casa.

Dentre os espectadores acidentais que se tornavam público voluntário, não

podemos deixar de mencionar as crianças. Assim que a peça estreou, logo teve um

grande número de crianças no público. Moradoras da região, por vezes acompanhavam

partes do ensaio, e com o início das apresentações, passaram a ser freqüentadoras

assíduas. Uma criança assistia uma cena em um dia, no outro, vinha assistir a peça

inteira, no terceiro trazia um amigo e no dia seguinte, os pais. Muitas das crianças

tornaram-se um público cativo – estavam presentes praticamente todos os dias,

esperavam pela peça,

ansiavam pelas piadas, já

sabiam onde posicionar-se

para ver melhor cada cena,

ficavam decepcionadas

quando a peça era cancelada

devido à chuva. As crianças

foram, sem dúvida, uma dos

pontos mais fortes de

ligação do Piratas de Galochas com os moradores da região, pois elas passaram a trazer

seus pais para acompanhar a peça. Todas as crianças da região da Rua Helvetia e da

Alameda Dino Bueno conheciam e acompanhavam a peça e seus pais comentavam com

o grupo o quanto não agüentavam mais ver seus filhos brincando de piratas, ou, em

outro caso, a menininha que quis comprar um par de galochas para assistir à peça.

Apesar de conhecer já a história e os personagens, os pequenos não se cansavam de

acompanhar os atores, dia após dia.

Piratas de Galochas nunca pretendeu ser um peça infantil, mas é inegável que

havia algo naquela montagem que cativava as crianças. Talvez os personagens, piratas

caricatos, talvez o humor, talvez o ócio das crianças ao brincar na rua, ou talvez uma

combinação disso tudo, uma espécie de “estar no lugar certo na hora certa”. Porém, ao

mesmo tempo que a peça era apreciada por crianças de todas as idades, havia algo de

indigesto nela. Por diversas vezes, espectadores intencionais começavam a assistir a

peça mas a abandonavam no meio. Às vezes vinham justificar, seja se manifestando

pela internet ou conversando com algum integrante do Galochas. Foi recorrente a

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menção à um incômodo, à uma sensação de desconforto extremo, que fizesse a pessoa

querer se retirar daquela situação. Ora, o que uma comédia sobre piratas, muitas vezes

assistida por crianças, pode der de tão intragável?

Refletindo, pudemos perceber que o incômodo tinha uma localização temporal e,

mais importante, geográfica na peça. O espetáculo começava em frente à Sala São

Paulo, passeava pela Praça Júlio Prestes e seguia a Alameda Cleveland, entrava na Rua

Helvétia, depois virava à esquerda na Alameda Dino Bueno e caminhava novamente até

a Praça Julio Prestes. O primeiro trecho da peça, na Praça Júlio Prestes, era bem

recebido, o público ia se aquecendo e tornando-se mais caloroso durante o decorrer da

cena. Porém, quando os atores dobravam a esquina da Alameda Cleveland e entravam

na Rua Helvétia, algo acontecia. Era a “esquina fatídica”. Alí, algo acontecia que causa

incômodo. Coincidentemente ou não (acredito muito que não), era nessa região que

havia uma maior concentração de usuários de crack e moradores de rua. A cena

acontecia em meio a eles. Muitas vezes, os cracômanos eram mais interessantes que

qualquer pirata. Estar na Cracolândia tornava-se mais forte que estar assistindo uma

peça, em uma instância coletiva. Para alguns, era incômodo demais, preferiam ir

embora.

Alguns desses espectadores comentaram que o desejo de partir vinha de uma

sensação de invasão, de desrespeito para com aqueles que já estavam ali, e não de medo

ou incômodo. Não posso deixar de pensar que tal constatação é uma desculpa, ainda

acredito que o que faz as pessoas abandonarem um navio é o mal-estar, um incômodo.

De qualquer maneira, apesar dos “desertores”, a peça costumava ter mais

espectadores ao final do que no início de cada apresentação – algo esperado para uma

peça na rua. Apesar de ter críticas e abandonos, havia também espectadores

absolutamente imersos na experiência proposta.

Independentemente de receber críticas e elogios, o que vale frisar com relação à

Piratas de Galochas na Luz é que algo acontecia com as pessoas que estavam ali, que

se propunham a vivenciar aquilo. Seja algo positivo ou negativo, mas algo se passava –

creio que seja seguro dizer que poucos espectadores passavam impunes. Podiam odiar a

peça, podiam amar, podiam analisar a estrutura cênica, admirar (ou condenar) a

coragem-quase-estúpida dos jovens atores, mas algo a dizer a respeito dos Piratas,

teriam, pois eram atravessados por ela, de alguma maneira. A esse atravessamento,

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chamamos de experiência – um espaço em que o homem efetivamente vivencia algo, é

atravessado e, portanto transformado de alguma maneira, ainda que sutilmente. Um

espaço onde podemos deixar de lado nosso calejamento cotidiano para, de fato, ver,

sentir, pensar e ser nossa cidade, pelo menos por um instante.

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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Hierofania na Helvétia: Princípios do mascaramento no espetáculo Piratas de

Galochas na Luz

Laís Trovarelli

A prática dos Piratas de Galochas sempre partiu da invasão e ocupação artística

do espaço. A partir da construção da primeira versão do espetáculo, quando ainda

ocupávamos o nono andar da Ocupação Prestes Maia, chegamos a uma estrutura

maleável da peça capaz de nos conferir o tamanho adequado a qualquer lugar que

pisássemos. Entretanto, a estrutura dramatúrgica segura e conhecida foi o elemento

propulsor para o que viria a ser, acredito, a base para que pudéssemos transpassar as

regras que nós mesmos havíamos traçado. O esmiuçar das especificidades físicas e

simbólicas de um espaço determinado nos deu ferramentas para o alcance da

universalidade, que aqui tratarei especialmente no que tange ao trabalho de ator. Assim

como as atrizes do coro, que concretamente valiam-se de máscaras de látex idênticas, os

atores da tripulação também passavam por um processo de mascaramento – ainda que

com outras especificidades. A máscara é aquilo que revela através do ocultamento. Ao

vesti-la, o ator se veste internamente de precisão, racionalidade e distância. É como se

fosse capaz de revestir-se de quilômetros.

A idéia era ocupar as ruas da chamada Cracolândia. Antes de ancorarmos,

entretanto, era preciso tatear. Foi perceptível, logo que chegamos, que a roupagem de

artistas e estudantes era demasiado estrangeira. Ainda em primeiros encontros, fizemo-

nos os duplos necessários. Saímos em trio para coletar pistas do novo território,

absorver o lugar. O gatilho era tocar todas as campainhas e ao sermos atendidos

inventar alguma desculpa que nos permitisse desenvolver as descobertas, e se possível

entrarmos nas casas, no íntimo daqueles que vivem expostos nos jornais

sensacionalistas. Como se vestidos de estudantes de arquitetura, de pesquisadores do

censo, de curiosos. Por dentro, distância.

Chegado o período do levantamento das cenas no novo espaço, era também hora

de reaquecer os corpos. O treinamento de quedas, que havia se feito rotina desde o

início do Piratas, sempre trouxe imensas contribuições ao preparo corporal e ao

detalhamento da composição das personagens. O treinamento nos norteava fisicamente,

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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nos puxava a um registro interpretativo grande, violento, grotesco. E não foi diferente

nas ruas da Luz. O mascaramento físico das personagens foi sendo recuperado, mas

mesmo em seu nível máximo parecia engolido pela cidade. Era preciso fazer-se maior

que o Gigante da Praça Julio Prestes, talvez maior que a Sala São Paulo, para não

sermos engolidos pelos discretos e os nem tanto transeuntes e moradores daquele bairro.

Ao contrário do que se possa acreditar através da mídia, não se trata de um bairro

despovoado: pulsa.

Durante os nossos encontros, as interferências eram uma constante. Haviam as

agressivas, as interessadas, as vazias, as carentes, as chorosas, as ininteligíveis.

Recebíamos, todas, tentando filtrar e

absorver aquilo que pudesse se converter em

material. Entretanto, chegado o momento

em que tínhamos desenhada a nova versão

da peça, não podíamos parar. Tampouco

ignorar as interferências. Era dado que

havíamos optado por um espaço público, e

ignorar a vida daquele espaço seria uma

enorme perda. Foi preciso, então, que

aprendêssemos a acessar um estado de jogo

com o imprevisto. Não era novidade que

precisássemos vez ou outra lidar em cena

com algo que saísse diferente do planejado,

mas desta vez as intempéries eram maiores e

mais capazes de desestabilizar o rumo da

peça. Era preciso mais - mais sintonia com os demais atores, mais relação física e

simbólica com o espaço, mas principalmente, mais apropriação do ator sobre o

mascaramento da sua personagem/figura.

Quando se trabalha com a máscara da maneira convencional, o distanciamento

(por parte do ator) é claro à medida em que o centro da persona representada (rosto) está

tão distante do próprio centro que chega a não mais fazer parte do próprio corpo – é

externo. O princípio do duplo do ator pode ser exemplificado em um paralelo com o

trabalho com títeres: enquanto boneco-vivo (fisicalizador da ação), o ator deve estar

ciente de cada movimento que realiza, controlando o tônus, o ritmo, a respiração, a

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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amplitude dos movimentos e todos os outros aspectos da ação física. Enquanto

manipulador, o ator deve ser capaz de distanciar-se para observar e captar a fisicalização

daquilo que deseja representar – ou narrar. É preciso ativar uma escuta corporal e dar

vazão às reações, ao mesmo tempo em que é preciso raciocinar e ser capaz de perceber

o que é e o que não é pertinente ao corpo que se deseja construir. Trata-se de um estado

extra-cotidiano, implacável, que não deixa dúvidas quanto à justeza ou não de cada

ação.

Para a construção dos corpos das personagens, no início da pesquisa do

espetáculo Piratas de Galochas, valemo-nos de muitos exercícios de composição

corporal – proposição de postura, das mãos, do

eixo, dos quadris, dos joelhos, etc. Entenda-se

aqui este processo de composição como análogo à

confecção de uma máscara. Diante, então, das

proposições físicas (no caso da máscara

convencional, o desenho - expressões, linhas

faciais, etc.), o ator opta e desenvolve os

componentes mais sutis daquela figura. Assim

fizemos e quando chegamos às ruas da Luz as

personagens já tinham corpo, voz e jeito. Naquele

espaço, cada personagem era um nariz de clown:

a máscara que podia nos dar voz frente à uma

intervenção externa. Um ser de outra realidade e

que exige outro nível de comunicação, não mais um(a) artista que representa

exatamente o que é.

Claro que o entendimento corpóreo desse estado de jogo foi gradual. Durante os

ensaios, os imprevistos eram contornados de diversas maneiras, inclusive através da

interrupção das cenas. Entretanto, quando começamos a apresentar a peça efetivamente,

essa possibilidade inexistia. Se antes os transeuntes e moradores vinham a nós pelos

mais diversos motivos, mas principalmente estabelecendo contato através da conversa,

quando estreamos a situação mudou. Sejam pelas figuras e figurinos extravagantes,

sejam pelos equipamentos de iluminação e sonoplastia, seja pela movimentação do

público (quase sempre numeroso), fato é que as interferências externas cresceram. De

início, talvez pela ânsia de fazer o espetáculo exatamente como o planejado, era comum

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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que ignorássemos uma réplica inesperada de um morador de rua ou mesmo a passagem

de um ônibus barulhento que não permitia que o público ouvisse alguma fala. E foi em

crescente que a escuta interna e externa do grupo aumentou: em um segundo momento,

alguns de nós interagiam com determinado fato, outros ignoravam; ou todos

interagíamos com uma situação e ignorávamos uma outra mais complicada. Em um

terceiro momento, entretanto, o domínio das personagens/figuras nos permitiu um

estado apurado de escuta e reação imediata – dois princípios fundamentais da máscara.

Saímos pelas ruas da Cracolândia tendo em nós pouco menos que um nariz de

clown. Mascarados de idéias, de tensões corporais calculadas. Máscara como escudo.

Uma defesa burlesca, mas capaz de reverter uma força no sentido de uma ação

determinada. Um equilíbrio dinâmico entre o inesperado e o pressuposto - e a aceitação

de um caminhar grotesco na contramão da altivez de quem sabe pra onde vai.

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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Piratas de Galochas: Processo de criação Corporal

Felipe Bitencourt

I . Ocupação Prestes Maia – primeira criação corporal

Quando penso em procedimentos de preparo corporal, não percebo estes

somente como uma espécie de preparo físico, mas, também, como elaboração de um

corpo específico para cada ator e a junção destes corpos visando uma assinatura do

coletivo.

Acredito que nosso processo de trabalho físico, assim como todo o nosso

trabalho, sempre foi colaborativo. Temos idéias individuais, claro, mas que juntas

acabaram por compor esta palheta que temos agora. Para a criação do trabalho de corpo

fomos inspirados por vários campos artísticos, não somente cênicos, mas também pelas

Artes Visuais, o Cinema, Seriados e, até mesmo, Animações. Como alguns (de tantos)

exemplos, poderia citar, no campo das Artes Plásticas, a artista Marina Abramovic, –

performer e artista visual que tinha o limite físico como base de suas pesquisas e

apresentações. No âmbito do teatro, o grupo Cena 11, que trabalha com quedas e

encenações performáticas, testando o limite entre “cena” e “performance”. Nos

Seriados, o grupo Monty Python, - criadores e intérpretes da série cômica Monty

Python's Flying Circus. E por, fim, no cinema, também tivemos como referência (quase

inevitável, por ser parte tão forte do imaginário coletivo contemporâneo de “pirata”) os

filmes Piratas do Caribe.

No início, não saberíamos ao certo o resultado que teríamos, porém, sabíamos

que, de alguma forma, viria das necessidade deste espetáculo, um espetáculo

diferenciado, fruto do que o assunto “pirata” pode surtir.

Como uma de nossas primeiras pesquisas, em 2011, trabalhamos com exercícios

de aquecimento, alongamento e, principalmente, com quedas. Para tal, tínhamos o

grupo Cena 11, citado acima, como guia para o entendimento desta prática. A proposta

é a de aprender a elaborar quedas livres no chão, sem nenhum resquício de defesa, sem

se machucar. Este já foi o início de um formato corporal que o grupo começou a

adquirir. Acabou sendo, também, um pequeno início de uma futura pesquisa em nossos

figurinos: as quedas nos exigiam certas proteções como cotoveleiras e joelheiras, que

acabaram incorporadas ao nosso figurino final.

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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Por meio do treinamento de quedas, há essa altura do processo já havia uma raiz

de união, uma pauta comum de movimentações e objetos, um vocabulário corporal para

todos os atores. Neste momento também já tinhamos um certo trabalho textual sobre a

dramaturgia. Havia, agora, a necessidade de começar a estabelecer, dentro deste

universo criado, qual o caráter individual que cada personagem teria. Como cada um

anda, como cada um fala, como cada um interage com os outros e com o público.

Começamos, então, a desenvolver workshops experimentais. O interessante

destes workshops é que eles permitiram uma exploração do corpo de cada um consigo

mesmo e com o espaço: muitos acabavam saindo da nossa sala de ensaio caminhando

para lugares externos como locais descampados, gramados e estacionamentos. Uma

destas propostas era a de

cada ator trazer, para o

próximo ensaio, alguma

imagem alegórica do

universo dos piratas. Então,

no caso, não consistia em

trabalhar uma cena ou um

monólogo em si, mas a de

criar uma figura mítica,

pessoal e iconográfica. Um ator virou de gente para um estranho bicho acorrentado,

uma atriz virou um ser isolado em um banheiro público com diversas moedas grudadas

em seu corpo enquanto estas caiam com sua respiração, outra colocou uma barba

postiça e virou mulher-homem, e por aí vai.

Observando agora todos estes passos que demos no início do processo, me

parece claro que este espetáculo é claramente uma junção de todos estes procedimentos.

Ainda assim, em meados de 2011 nossos corpos ainda estavam confinados no espaço de

uma sala, de modo que a expansão espacial que os corpos tomavam ainda possuía esta

limitação espacial.

Embora já estivéssemos ensaiando pelos andares da Ocupação Prestes Maia,

uma vez por semana ensaiávamos nas salas de aula do departamento de artes cênicas da

USP, o CAC, e era lá, nesse “espaço seguro”, que realizávamos a pesquisa corporal. No

espaço universitário, além de nós, muitos outros coletivos estavam ali também, cada

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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qual com suas pesquisas. Porém, com o desenvolvimento do processo, sentimos cada

vez mais necessidade de abraçar o espaço alternativo de uma vez por todas, e abandonar

o conforto das salas de ensaio. Quando passamos a realizar todo nosso trabalho corporal

no prédio de ocupação localizado na Prestes Maia, no bairro da Luz, conseguimos

desenhar com mais precisão vários fatores , o principal deles sendo, talvez, a nossa

relação social com os moradores, já então observadores, e, de certa forma, o público

prévio que teríamos.

Na Prestes Maia, estávamos fora daquele espaço confinado. Agora, todos nossos

exercícios e cenas já começavam a criar relação com outros corpos, definindo conceitos

para a peça e afunilando a criação de nossos personagens. Não trabalhamos com uma

trajetória rápida ou simples, mas sim um processo que criou um corpo único, um corpo

do Coletivo de Galochas.

II. Piratas na Luz

Ao chegar às ruas da Luz, em 2012, retomamos nossos exercícios de

alongamento, aquecimento e quedas citados no início desta fala. Continuamos, agora já

treinados e aprimorando técnicas, nosso trabalho físico na região da Luz. Percebemos

que sempre estávamos lidando com lugares de passagem: mesmo não sendo locais

especificamente cênicos, (sem um palco ou um aviso prévio de espetáculo aos

moradores e transeuntes do local, por exemplo) parece que a ação de nossos corpos

estabeleceram uma comunicação e um acordo: uma rua, que era somente um local de

travessias, se transformou em lugar de espetáculo. Em dado horário e dia, as crianças,

moradores e transeuntes viam assistir nossa apresentação. Repetitivamente.

Afirmo isto desde nossos ensaios e treinamentos, e não somente com nossa peça

finalizada. Então começamos a ensaiar, caíamos no chão no meio da rua. O chão já não

era mais seguro, o espaço não era seguro e, também, não conhecíamos – até então –

aquele público que ali se aglomerava.

Parece que nossos corpos cênicos ganham força quando há platéia. Eles se

esforçam, se jogam mais além, se transformam em máquinas quase indestrutíveis.

Tínhamos público sempre. Não sei bem ao certo se esse foi o caso de todos nós termos

nos adaptado a um chão tão duro, concreto e desconfortável. Mas sei que, sem dúvida,

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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foi um dos fatores que nos impulsionou. Platéia gera compromisso. E o corpo cênico

sempre responde.

III. Relações de Comportamento

Ao trabalhar com espaços alternativos, sair do edifício teatral e interagir com os

fluxos da cidade, acabamos por ocupar locais já ocupados. Logo, ali já existem suas

próprias hierarquias, colocações sócias, funções... enfim. Uma sociedade local com sua

organização. Então, como poderíamos nos dar ao direito de tamanha invasão? Isto se

apresentou com um novo olhar sobre a sociedade construída em um local. Quando

convidávamos e recebíamos público, tínhamos ali o que podemos chamar de uma certa

“elite” em um local não comum. Mas parece que a relação hierárquica entre corpos se

invertia. Esse público convidado recebia, da população local, falas e cenas antecipadas

às nossas ações, pois já haviam decorado nosso trajeto e manifestações. Uma forma de

deixar claro que eram bem familiares com o que era apresentado. Assim, quem tem o

maior poder de visualização e compreensão? Quem apreende o conteúdo do que é dito?

Seria o convidado que descobre terras novas, ou aquele que ali mora e se identifica com

o que lhe é apresentado?

Quedas no chão e ensaios abertos. Me impressiona como algo tão absurdo – à

primeira vista – possa virar algo tradicional, mesmo que sempre sendo quase o mesmo

procedimento, e que é continuamente acompanhado. Obtivemos “fãs”.

Percebemos que um mesmo discurso, inevitavelmente, modifica um espaço e

suas relações pessoais. Modifica seu tempo, sua percepção e valor visual. Me recordo

que, em um dado momento, uma moradora de uma das casas do ambiente nos disse algo

assim: “Não deixem de apresentar o trabalho de vocês, mesmo sem público, porque nós

assistimos da janela”. Coisas como esta nos propulsionam, incentivam e locomovem a

continuar nosso trabalho e pesquisa.

Deixamos na mão do outro possíveis críticas, ganhos ou perdas do que

apresentamos. Afinal, fazemos teatro. Sem relações sócias, não há comunicação

tampouco manifestações artísticas. Queremos trocas e comunicações. Creio que

conseguimos.

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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A criação da voz do ator no espaço público:

Origem no corpo, projeção no espaço

Gabriel Hernandes

I. Introdução

Esse relatório tem como objetivo fazer um registro do processo de treinamento

de voz com os atores do Coletivo de Galochas para a apresentação da peça Piratas de

Galochas na Luz, encenada nos espaços entre a Praça Júlio Mesquita e Rua Dino Bueno.

Relatarei alguns aspectos que chamaram a minha atenção nesse processo que fiz parte

como ator e treinador de voz.

Após pesquisas, em vão, atrás de alguma bibliografia ou registro que me

ajudasse a criar um treinamento de voz para teatro em espaço público da cidade de São

Paulo, resolvi experimentar uma metodologia própria que levaria em consideração a

minha experiência pessoal de voz como ator, exercícios aprendidos no curso de Artes

Cênicas e auxílio do Prof. Zebba Dal Farra (CAC/ECA/USP). Iniciei essa metodologia

com a idéia de que deveríamos estudar a criação da voz individual e dividi esse trabalho

em dois eixos: corpo e espaço. Estudaríamos em cada um desses eixos onde e como

essa voz pode ser criada e, com base nesse conhecimento, como projetá-la.

II. Prática

1. Corpo

Cada corpo é único e a sua forma de desenvolvimento reflete o desenvolvimento

de uma vida, suas conseqüências e traumas psicológicos, físicos e genéticos. Com esse

entendimento, escolhi trabalhar a origem da voz a partir da musculatura corporal em

busca de uma voz “neutra” e mais livre o possível de traumas que possam silenciá-la.

Primeiramente fizemos um reconhecimento das principais partes responsáveis pela

criação da voz, partindo de uma postura neutra, verificando como a postura óssea e a

musculatura auxiliam na descoberta dessa postura. Depois fizemos estudo aprofundado

de cada parte do rosto, relaxando a musculatura responsável pela emissão da fala nesse

local: toda a musculatura do rosto, interior e exterior das bochechas, língua, palato,

assoalho e céu da boca, lábios. Dessa forma acabamos por criar um aquecimento que se

construiu a cada encontro com as novas descobertas de voz encontradas nesse

treinamento.

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012

Começamos então o estudo de uma respiração toráxica para a criação da voz a

partir do corpo. Primeiro a percepção do movimento de costelas e diafragma nos

estágios separados da respiração, inspiração e expiração. Reconhecendo as costelas,

massageando-as e, com uma mão em cada conjunto de costelas experimentamos a

emissão do som das vogais na ordem da mais fechada para a mais aberta: I-E-É-A-Ó-O-

U. O foco deveria estar na relação entre o movimento de abertura e fechamento que a

musculatura intercostal propõe ao inspirar/expirar e o ar que entra, naturalmente pela

diferença de pressão no interior e exterior do corpo, e é empurrado para fora, para assim

começar a emissão de uma voz. Em seguida treinamos a ativação do abdômen para a

sustentação da nova postura descoberta. Após a experimentação individual propus que

se dividissem em duplas e realizassem o seguinte exercício:

Exercício nº1

Vibrando no outro

I. Duplas: colocar mão e/ou ouvido da dupla durante a emissão do

som.

II. Sentir qual parte do corpo vibra mais em cada vogal.

III. Sentir qual parte do corpo vibra mais, de modo geral.

VI. Tentar descobrir o movimento do som através da vibração no

corpo da dupla ao fazer a seqüência i-e-é-a-ó-o-u.

V. Explorar as intensidades de emissão dessa(s) voga(l)(is).

VI. Comentar exploração e inverter função das duplas.

Depois desse exercício com o foco nas musculaturas intercostais para a

realização da respiração toráxica, orientei a todos os atores que ficassem atentos a esse

movimento daquele instante em diante, até o final do processo de ensaios, sempre que

fossem emitir a voz.

Tendo experimentado um processo de criação da voz a partir da estrutura do

corpo individual começamos a estudar a projeção dessa voz: orientei que primeiro

estimulassem o bocejo algumas vezes, espreguiçassem, e percebessem como a estrutura

do corpo se comporta nesse movimento. Depois, instruí para que escolhessem uma fala

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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do seu personagem e a emitissem em forma de bocejo, organizando a estrutura corporal

da mesma forma percebida anteriormente. Então fizemos o seguinte exercício coletivo:

Exercício nº 2

Telefone sem fio

I. Um ator emite um som de vogal continuamente a partir do

bocejo. Outro ator se distancia até que consiga ouvir

minimamente aquele som projetado pelo primeiro. O próximo

ator realiza o mesmo procedimento do último até que todos os

atores ficassem espalhados pela Praça Júlio Prestes na distância

máxima que as suas vozes poderiam alcançar o próximo.

II. O primeiro ator fala uma frase, criada aleatoriamente, a partir

do bocejo, para o próximo, que deverá repeti-la para o ator

seguinte.

III. O último ator deve repetir o que ouviu para o primeiro.

IV. O grupo se reúne novamente e o primeiro diz o que ouviu do

último ator e qual era a frase original.

A partir de observações realizadas nesse exercício percebi que o trabalho da

projeção deveria ser aprofundado na idéia de projetar a voz para alguém, ter uma pessoa

em determinada distância para recebê-la e estimular a sua projeção. Elaborei, então o

próximo exercício, em duplas:

Exercício nº 3

Imitando o som do outro

I. Duplas.

II. Escolher um texto do seu personagem, falar com as intenções,

mas com a voz natural do ator.

III. Esse ator vai abraçar levemente (sem fazer peso, sem apertar

nada, apenas para estimular a movimentação muscular) o parceiro

de dupla pelas costas.

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012

IV. O parceiro, abraçado, vai utilizar do corpo do outro para

respirar e falar o texto, com projeção. Quem está abraçando deve

respirar junto e falar o texto ainda em voz natural. Repetir esse

procedimento quantas vezes for necessário.

V. O texto volta para a boca original e deve ser experimentado

com o que foi sentido do corpo do outro.

VI. Sem mudar o mecanismo de emissão desse texto o

companheiro que está assistindo deve ficar no lugar no espaço

onde o texto deve chegar (e aumentar essa distância: perto, médio

e longe; frente, lado e costas).

VII. Inverter as funções nas duplas.

Após a prática em duplas propus outro exercício com o mesmo objetivo de

trabalho de projeção da voz, individualmente, na tentativa de que houvesse um

aprofundamento maior:

Exercício nº 4

Projetando

I. Encontrar, a partir dos comentários do exercício anterior, o

lugar do seu corpo onde a vibração é mais intensa.

II. Imaginar uma bolinha no meio de um fio, você está segurando

essa bolinha pelas extremidades desse fio e a bolinha é esse foco,

esse lugar que mais vibra na emissão da voz.

III. Movimentar a bolinha, dentro do corpo, para baixo e para

cima, emitindo o som.

IV. Movimentar a bolinha, externa ao corpo, para baixo e para

cima, emitindo o som.

Durante a conversa pós-treinamento de voz alguns atores relataram dificuldade

na realização desse exercício, entre eles as atrizes, as mesmas que vinham comentando

algumas dificuldades de projetar a voz. Para o próximo treinamento então planejei

Page 33: Piratas de galochas   compilação teórica (1)

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012

trabalhar com perturbações que tirassem o corpo do ator de um lugar confortável na

hora de emitir a sua voz, pensando que deveríamos tentar escapar a voz de suas tensões,

todas aquelas conseqüências e traumas responsáveis pela formação do corpo individual.

Exercício nº 5

Jogo do Busnardo

Ações:

1. falar “Busnardo” → vendar e caminhar falando texto

previamente escolhido.

2. desmaiar → o grupo ergue o corpo do ator com este falando um

texto seu previamente escolhido.

3. separar-se do coro → o ator deveria voltar ao coro, que criará

resistência corporal para aceitá-lo novamente, empurrando-o e

falando texto previamente escolhido.

* todas as falas serão realizadas com a dinâmica da respiração

toráxica.

I. O grupo todo deve caminhar junto e vagarosamente pelo espaço

da Praça Júlio Prestes.

II. Cada um do coro deve estar falando uma seqüência de texto

previamente escolhida em intensidade mais baixa a possível.

III. Ator e, conseqüentemente, coro realizam uma das 3 ações

descritas acima.

Após a realização desse exercício conversamos sobre o desenvolvimento da voz

junto ao desenvolvimento do corpo e o lugar de cada um no grupo. Percebemos que

muitas pessoas não eram ouvidas ou percebidas quando realizavam uma das três ações e

algumas identificações sobre voz dentro do coletivo, iniciativa, traumas de

desenvolvimento corporal e o lugar de onde sai a voz de cada um.

2. Espaço

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012

O segundo eixo de criação de uma voz começou com o reconhecimento do

espaço. Nos reunimos na praça adjacente a Praça Júlio Prestes, de espaço menor, menor

circulação de pessoas porém maior circulação de carros. Pedi aos atores que

caminhassem por todo espaço da praça e sempre que ouvissem um som tentassem

segui-lo e imitá-lo com a voz. Todos os sons eram válidos: aviões, trens chegando e

partindo da estação logo ao lado, sirenes de polícia, música, voz e passos dos outros

atores. Deveriam seguir o som até não ouvi-lo mais, dentro dos limites daquela praça.

Para estudarmos a voz partindo do reconhecimento do espaço seria necessário tomá-lo

em presença coletiva, a partir do trabalho individual adquirido por cada um no eixo

anterior (do corpo), para que pudéssemos explorar a projeção da voz entre as

imprevistas estruturas físicas e sonoras do espaço público da cidade.

O próximo jogo tinha como objetivo a criação de um barco, necessário para a

encenação da peça. Esse barco seria criado através dos sons suscitados por uma

embarcação pirata. Então propus um exercício anterior como preparatório para em

seguida criarmos o barco da tripulação dos Piratas de Galochas.

Exercício nº 6

Super-carro-trem

I. Todo o grupo em coro colocando sua voz em fryin'.

II. Coletivamente ir acelerando o fryin' até o surgimento da voz.

III. À medida que a intensidade da voz vai aumentando o coro

começa a caminhar e conforme essa voz vai ganhando corpo a

caminhada aumenta até a corrida.

IV. A intensidade da voz vai, aos poucos, diminuindo junto com

a velocidade de movimentação do coro.

V. Caminhar na direção linear reta sempre, virar apenas em face a

obstáculos.

Exercício nº 7

Navio-coro

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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1. Funções no barco:

Remar

Orientar: expandir, juntar, virar, parar

Frear

I. Em coro cada um deve assumir uma função do barco.

II. Cada função deve ter um som criado intuitivamente e

executado sempre que for realizada a devida função

III. O navio-coro deverá navegar pelo espaço realizando as

funções descritas.

Começamos a realizar práticas vocais que envolvessem elementos individuais

(voz partindo do seu corpo a partir da respiração toráxica) e coletivos para superar os

obstáculos do espaço público (a escuta como principal ferramenta para essa superação).

Como auxiliar na projeção trabalhamos também com o conceito de palavra cantada, um

estudo do movimento da voz (prosódia) durante toda a extensão de uma fala, e que

auxiliaria também na emissão das falas com as vozes dos respectivos personagens em

vez da voz natural-cotidiana do ator. Pedi que os atores dessem suas falas cantando, em

forma de música de livre improvisação melódica.

Exercício nº 8

Palavra cantada

I. Duplas.

II. Cada ator escolhe uma fala de seu personagem e a canta para a

sua dupla.

III. A dupla se distancia na extensão da largura de uma rua (cada

um em um lado da rua).

IV. O primeiro deve cantar a sua fala ao próximo que só vai

prosseguir com o exercício se tiver escutado detalhadamente tudo

o que foi dito. Em caso negativo o primeiro deve repetir a fala

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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cantada.

V. O próximo canta a sua fala para o primeiro da próxima dupla.

VI. A dinâmica segue assim até todos terem participado.

Executamos esse exercício com a intenção do bocejo, proporcionando algumas

descobertas e comentários de evolução por parte dos atores. Em seguida revisamos os

nossos aprendizados nos dois eixos de treinamento vocal para que aprendêssemos a

cantar uma música (criada por mim, tema dos Piratas de Galochas na Luz, em anexo).

Para isso separei o grupo em naipes de graves e agudos e criei linhas melódicas para

cada naipe. Integramos a execução dessa música também ao nosso aquecimento de voz

pré-ensaios e pré-apresentações.

III. Conclusão

É possível, sim, a projeção da voz no espaço público. Após três meses de curto

processo de treinamento de voz acredito que deve ser dado o devido cuidado para não

se cair em uma tradicional rotina chata de aquecimento e treinamento de voz. Muitas

vezes a treinamos como cumprimento ritualístico de ensaio ou apresentação e, por conta

desse comodismo, não há aparente evolução nas chamadas técnicas de voz que

aprendemos, por parecerem sempre como “mais do mesmo”, uma repetição enfadonha.

Não há outra maneira de treinar a voz senão partindo do treinamento do corpo,

exercícios básicos de foco nos órgãos responsáveis pela emissão e pela exploração

consciente do lugar do corpo individual e do espaço através do corpo coletivo, lugares

esses onde a voz é criada.

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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OS PIRATAS DO KUTTEL DADDEL DU

Tom: C ' ' ' ' ' ' ' ' Intro: F C F G C C G F C Nós somos os piratas do Kuttel Daddel Du F C D7 G Nós vamos saqueando pelos mares da Luz C G F C Nós somos violentos, matamos sem razão F C F G C O serviço é completo, cabeça, pé e mão. C G F C Nós somos os piratas, piratas bem legais! F Nós vamos entrar C Sem nos importar D7 G O quanto dinheiro nós vamos levar F Não fique nervoso C Se não for gostoso F G C Furamos seu olho e roubamos um bar!

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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OS PIRATAS DO KUTTEL DADDEL DU

1ª VOZ

SOL DÓ SOL DÓ MI SOL SOL SOL LÁ SOL LÁ DÓ SOL

Nós so - mos os pi – ra - tas do Ku - ttel Da - ddel Du

SOL LÁ DÓ SI LÁ SOL MI MI FÁ RÉ MI FÁ SOL

Nós va - mos sa - que - an - do pe - los ma - res da Luz

SOL DÓ SOL DÓ MI SOL SOL SOL LÁ SOL LÁ DÓ SOL

Nós so - mos vi – o - len - tos, ma - ta - mos sem ra - zão

SOL LÁ DÓ SI LÁ SOL MI MI FÁ MI FÁ RÉ DÓ

O ser - vi - çoé com - ple - to, ca - be - ça, pé e mão.

SOL DÓ SOL DÓ MI SOL SOL SOL LÁ SOL LÁ DÓ SOL

Nós so - mos os pi - ra - tas, pi - ra - tas bem le - gais!

LÁ LÁ LÁ LÁ LÁ

Nós va - mos en - trar

LÁ SOL SOL SOL SOL

Sem nos im - por - tar

RÉ RÉ RÉ RÉ MI MI FÁ SOL SOL SOL SOL

O quan - to di - nhei - ro nós va - mos le - var

LÁ LÁ LÁ LÁ LÁ LÁ

Não fi - que ner - vo - so

LÁ SOL SOL SOL SOL SOL

Se não for gos - to - so

RÉ MI RÉ MI FÁ MI RÉ FÁ MI RÉ DÓ

Fu - ra - mos seu o - lhoe rou - ba - mos um bar!

Page 39: Piratas de galochas   compilação teórica (1)

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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2ª VOZ

SOL DÓ DÓ DÓ DÓ SI SI SI DÓ DÓ SI LÁ SOL

Nós so - mos os pi – ra - tas do Ku - ttel Da - ddel Du

SÓL MI MI MI MI RÉ SI DÓ RÉ DÓ SI DÓ RÉ

Nós va - mos sa - que - an - do pe - los ma - res da Luz

SOL DÓ DÓ DÓ DÓ SI SI SI DÓ DÓ SI LÁ SOL

Nós so - mos vi – o - len - tos, ma - ta - mos sem ra - zão

SÓL MI MI MI MI RÉ SI SOL LÁ FÁ SI SOL DÓ

O ser - vi - çoé com - ple - to, ca - be - ça, pé e mão.

SOL DÓ DÓ DÓ DÓ SI SI SI DÓ DÓ SI LÁ SOL

Nós so - mos os pi - ra - tas, pi - ra - tas bem le - gais!

MI MI MI MI MI

Nós va - mos en - trar

MI RÉ RÉ RÉ RÉ

Sem nos im - por - tar

SI SI SI SI DÓ DÓ DÓ RÉ RÉ RÉ RÉ

O quan - to di - nhei - ro nós va - mos le - var

MI MI MI MI MI MI

Não fi - que ner - vo - so

MI RÉ RÉ RÉ RÉ RÉ

Se não for gos - to - so

SOL LÁ SOL LÁ SI LÁ SI DÓ DÓ DÓ DÓ

Fu - ra - mos seu o - lhoe rou - ba - mos um bar!

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012

Operacionalização da prática: Iluminação e Sonoplastia

Cauê Martins

Para entender como foi o processo de iluminação e sonoplastia do Piratas de

Galochas pelas ruas da Luz, na sua idealização e prática, temos que levar em conta o

espaço com o qual estávamos lidando e a trajetória dos atores.

O primeiro passo foi pensar em como transportar ou prender as caixas de som,

microfones, o projetor e os refletores de iluminação e sonoplastia. Necessitávamos de

algo móvel, que facilitasse o transporte de todos os equipamentos. O segundo foi

elaborar como ligar esses equipamentos sem que necessitasse-mos puxar fios de energia

dos locais da região. Essa foi uma de nossas maiores preocupações.

I. Parte Técnica

1 Estrutural

O Carinho industrial foi a solução para o transporte de todos os equipamentos.

Incorporamos nele uma estrutura de madeira, onde nosso sistema elétrico era todo

ligado, além disso, ele

continha uma barra que

suportava dois refletores,

que era de onde uma parte

da iluminação era disparada.

O carrinho também

acomodava a caixa de som,

de onde toda trilha sonora

era disparada. Além de

acomodar os equipamentos,

também era de fundamental importância ter espaço no carrinho para guardar os diversos

acessórios de figurino e contra-regragem.

Uma bateria de caminhão 12V, ligada a um inversor de corrente para 110V com

capacidade de 2000watts de potencia foi a nossa fonte de energia para suportar os

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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equipamentos do espetáculo.A bateria, assim como o inversor, também ficavam

alojados no carrinho, na base da estrutura de madeira descrita acima.

A caixa de som foi colocada estrategicamente no carrinho, para possibilitar a

manipulação das musicas, e para que ficasse direcionada para o publico.

2 Iluminação

Os refletores foram pensados em questão de economia de energia, já que

estávamos lidando com uma fonte não fixa de energia, que era a bateria de caminhão.

Outra questão foi a de ter como modificar a iluminação de uma forma rápida, durante a

peça, pois não teríamos tempo de trocar gelatinas. Para isso tínhamos 4 refletores Par

Led, e uma mesa controladora

DMX de Luz. Os quatro

refletores tinham que ficar

plugados um no outro, pois o

sinal é lançado da mesa, e isso

nos exigia ter toda uma

movimentação certeira dos

refletores, de uma cena para a

outra. Também for utilizamos set-

ligths de lâmpada incandescente e de lâmpada Led.

Em alguns momentos nos utilizamos dos prédios e construções edificadas para

suporte de imagens, lançadas por um projetor de dentro do carrinho. O desafio descobrir

em quais suportes projetar sem que perdesse muita luz pelas interferências da rua.

O conceito aplicado para as escolhas de luz era criar um contraste entre a cena e o

espaço. Em diversos momentos os piratas eram iluminados pela luz natural do

ambiente, e os refletores eram utilizados para iluminar o próprio espaço, que era assim

valorizado com as cores.

3 Sonoplastia

A Sonoplastia tem um papel muito importante para a peça, em diversos momentos

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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de transição, planos de fundo para as cenas, trilha para brigas, alem de criar tensão em

momentos específicos da peça. As músicas utilizadas eram emitidas diretamente da

caixa de som ativa. Outra forma utilizada de musica e trilhas era o acordeão que uma

das atrizes tocava durante a peça. Além disso, tínhamos cenas em que todos os atores

cantarolavam, e para isso foram necessários diversos exercícios de canto. Alem desses

efeitos, também foram utilizados mega-fones para projetar a voz de cenas que não se

conseguiam ouvir.

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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Teatro de Invasão e Ocupação:

Espaço, suas determinações e sua potência criativa

Rafael Presto

“Não confundir a cidade com o discurso que a descreve,

ainda que haja uma relação entre eles”

Ítalo Calvino, As Cidade Invisíveis

Este artigo tem o intuito de debater o processo de ressignificação do espaço

público através da invasão e ocupação teatral do ambiente urbano, partindo da análise

do processo de construção do espetáculo Piratas de Galochas na Luz, ação empreendida

pelo Coletivo de Galochas no bairro da Luz.

O trabalho desde o início era apoiado no conceito de invasão teatral 4. Essa

invasão parte da compreensão do espaço como uma somatória de fluxos. Os fluxos

caracterizam um lugar, são aquilo que o tornam singular, diferente de tantos outros. São

as linhas que ditam as formas de uso social do espaço e também o que define nossa

percepção cultural. São determinações de naturezas diversas.

A primeira determinação que podemos pensar é a do espaço físico tomado em

suas dimensões estruturais – muros, calçadas, bancos, paredes, portas, pilares, colunas.

A arquitetura de um lugar define muito dele.

Mas o que permanentemente anima esse espaço físico, o que define seus fluxos,

são as rotinas de uso que as pessoas estabelecem nele. São elas que demarcam uma

espécie de lógica do espaço, responsável pela forma como apreendemos o território da

urbe em nosso dia-a-dia.

Existe um projeto por detrás do espaço, herdamos suas características nas rotinas

de uso que estabelecemos com ele. No entanto, não vivemos o projeto do mundo,

vivemos seu cotidiano concreto: ao mesmo tempo que o espaço nos determina, o

transformamos o tempo todo, em um permanente processo de rupturas e suturas

dialéticas de determinações e criações.

Esta é a abordagem que toma o espaço enquanto ambiente, uma organização que

parte de um projeto mas necessariamente o transforma dando-lhe características

4 CARREIRA, André. ‘Teatro de Invasão: redefinindo a ordem da cidade’ in LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Espaço e Teatro: do edifício teatral a cidade como palco. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

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singulares, fruto dos deslocamentos culturais e de comportamentos. O ambiente está em

constante transformação, sua dinâmica interna imprime mudanças o tempo inteiro.

A invasão teatral praticada pelo Coletivo de Galochas parte de um jogo com os

fluxos de um determinado ambiente. Através da ação teatral o grupo busca alterar as

rotinas de uso especificas de um determinado espaço, ressignificando-as. Assim, o

ambiente onde a ação teatral acontece não é tomado como suporte, mas antes como

dramaturgia, potência criativa. A ideia é produzir, por meio de uma intervenção cênica,

rupturas e reordenamentos temporários nas rotinas que constituem o espaço. Tomar o

ambiente enquanto objeto cultural, uma narrativa que define o que somos, para então

interferir nele.

A invasão teatral é, por princípio, uma ação política. Seu foco está em atritar os

fluxos do espaço gerando

possibilidades inusitadas de

uso, possibilidades essas para

além dos regimes de produção

daquele ambiente. Busca o

rompimento momentâneo das

categorias; é uma fala de

resistência que ocupa o espaço.

É uma interferência na lógica

da cidade, uma intromissão ao uso cotidiano do espaço. (André Carreira, 2008).

Para praticar este teatro, é preciso repensar o instrumental de trabalho do ator.

Este deve partir de um principio de porosidade e adaptabilidade absoluta. Enquanto joga

com determinado ambiente, o ator precisa estar aberto para perceber e incorporar em

sua ação teatral todos os elementos únicos que a fricção com o espaço oferece. Buscar

estes pontos de intersecção passa a ser o ponto principal do trabalho do ator, que parte

de uma interpretação permanentemente criativa, fundamentalmente improvisacional.

A rotina de invasões constantes faz com que a prática teatral, pouco a pouco, se

introduza nos fluxos do ambiente, alterando as possibilidades de uso do espaço de

maneira mais perene. A capacidade de intervenção teatral se amplia, passa a figurar

como um dos elementos que constitui aquele cotidiano. Momento de maturação nas

relações estruturais, simbólicas e de convivência entre prática estética e zona ocupada: o

que era invasão torna-se ocupação.

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012

As invasões teatrais realizadas servem de instrumento de investigação do espaço.

Neste segundo momento, de ocupação, temos a reflexão do material cênico produzido

pelas invasões teatrais. O intuito é constituir, partindo de um repertório de experiências

concretas, uma ação teatral mais complexa, mais profundamente entrelaçada entre os

muitos fluxos que definem o ambiente. No trabalho do Coletivo de Galochas, a fronteira

entre esses dois momentos, invasão e ocupação, é demarcada pela finalização da

dramaturgia do espetáculo, construída ao longo das muitas ações de tomada do espaço.

O espetáculo, portanto, torna-se indissociável do espaço que ocupa.

Antecedentes: Da Ocupação Prestes Maia as ruas da Luz

Esse conceito de invasão e ocupação teatral foi praticado pelo Coletivo de

Galochas, inicialmente, dentro de uma Ocupação de Moradia. Durante um ano, em

parceria com o MSTC – Movimento Sem Teto do Centro, o grupo trabalhou dentro da

Ocupação Prestes Maia, maior ocupação vertical da América Latina, casa retomada de

mais de 360 famílias. Lá o Coletivo participou de mutirões de limpeza, assembleias,

atos públicos, da ocupação de outro imóvel. Os ensaios do espetáculo transcorriam em

paralelo com toda essa movimentação, acontecendo cada dia em um andar diferente dos

dois prédios do imóvel.

Todo esse processo desembocou na consolidação do Núcleo Cultural Prestes

Maia, atrelado à finalização do espetáculo Piratas de Galochas. A peça, finalmente

ancorada no nono andar de um dos prédios, era uma comédia sobre piratas que

ocupavam uma ilha sem função social. A construção da dramaturgia do espetáculo

partiu do atrito do universo da pirataria clássica com o cotidiano da ocupação, cotidiano

experienciado pelo grupo através da convivência cotidiana e de muitas invasões teatrais.

Durante esse processo, por estar ao lado dos ocupantes, o grupo acompanhou

diversas intempéries políticas externas, como as constantes ordens de despejo e os

discursos midiáticos estigmatizantes. Mas o cotidiano de ensaios, a produção teatral

específica lá dentro, não era marcada por fortes atritos. A relação dos teatristas com o

espaço era pacífica e acordada, tinham a segurança de estar em um ambiente privado

onde tudo partia de uma construção em conjunto com o Movimento de Moradia. Um

jogo cordial com os fluxos de uma organização social. A dramaturgia do espetáculo

buscava um atrito com o imaginário e ideologia dos ocupantes, mas posicionada: o

Coletivo de Galochas, afinal, lutava politicamente ao lado dos moradores.

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012

Dentro das lutas políticas do movimento de moradia, um projeto figura como um

dos grandes vilões: o Projeto Nova Luz. Atualmente a Ocupação Mauá, também tocada

pelo MSTC, corre risco de despejo por conta deste projeto – as ocupações são

consideradas, pela especulação imobiliária, como elementos que desvalorizam um

bairro. Pretendendo uma ampliação nas ações e debates empreendidos em torno da

produção do espaço, o Coletivo de Galochas decidiu por zarpar com seu barco para

aportá-lo nas ruas da Luz. Foi esta a vontade inicial para realização da 2ª temporada do

espetáculo, agora chamado Piratas de Galochas na Luz – invadir a cidade.

Conjuntura da Nova Luz: Cidade do espetáculo e a especulação imobiliária.

A ida ao espaço público catapultou o debate em torno do espaço para uma

estrutura macro. Deixávamos o apoio a um polo de resistência da guerra imobiliária,

que era a Ocupação, para embarcar em seu aspecto mais amplo: a organização estrutural

da cidade. O que antes atuava na esfera das intempéries, aquilo que enfrentávamos

enquanto parceiros do Movimento de Ocupação, passou a figurar como um dos pilares

na pesquisa do Coletivo de Galochas – os agentes políticos que gerem a ampla

organização do espaço.

O projeto contemporâneo de produção da cidade vem, sistematicamente,

desinvestindo o espaço público de suas possiblidades de encontro e experiência – as

ruas e praças cada vez mais se projetam como imensos corredores de passagem, lugares

não relacionais5 de trânsito das pessoas entre um compromisso e outro.

Não por acaso o desinvestimento: naufragados os espaços coletivos, restam as

ilhas de consumo. Nunca a organização do ambiente urbano respondeu tanto a um

discurso ordenador do fluxo do capital. Este fluxo se traduz como prática no espaço,

esvaziando-o de suas possibilidades mais autônomas que emergem das dinâmicas

socioculturais – uma cidade cartão-postal, reflexo de uma miragem de fundamentos

financeiros.

Essa espetacularização do espaço 6 esvazia-o de suas possibilidades mais

autônomas, fazendo com que sua organização aponte um uso mercantil, em consonância

com as faces mais globais da economia atual. A espetacularização é um jogo simbólico

em que determinada imagem de cidade adere ao espaço, através da definição a priori, ou

da sugestão, de figuras estruturais ou conjunturais.

5 AUGÉ, Marc. Não Lugares. Campinas/SP: Papirus, 1994. 6 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012

A especulação imobiliária responde pela principal parcela deste projeto

contemporâneo de produção espetacular do espaço, uma verdadeira máquina de

crescimento urbano operando a todo vapor. Por um lado surgem modelos de disciplinas

urbanísticas como a cidade-histórica; cidade-museu; cidade universitária; capital da

cultura; cidade do futuro. Por outro, inauguram-se modelos fechados de cidade, imóveis

de uma arquitetura neutra e empresarial, capazes de abarcar multinacionais e grandes

negócios; sua principal característica é a liquidez – um dinamismo estrutural que

abarque a velocidade dos negócios atuais.

Este princípio espetacular que perpassa a cidade restringe a capacidade de

elaboração de experiências do cidadão que a habita cotidianamente. A cidade espetáculo

atua de maneira inversamente proporcional a experiência urbana efetiva. Tira do

ambiente sua capacidade de historização.

O principio que movimenta a especulação é simples. Primeiro são realizadas

ações de deterioração em um determinado espaço. Em seguida, tem-se inicio as práticas

de revitalização. Em cada um desses passos, o mercado atua em parceria com o poder

público – sem ele, nada seria possível. O investimento em determinadas zonas da

cidade, ou o desinvestimento, sempre responde a determinados interesses. Para a criação

de zonas de valor imobiliário é preciso que haja uma aliança entre setores privados e o

Estado.

Falando especificamente de São Paulo7, a reformulação e espetacularização do

espaço começa na década de 60 com a construção da Avenida Paulista, projeto com

pretensões de fundar um novo centro financeiro para a cidade. Na década seguinte

acompanhamos a ampliação dessa área empresarial para Avenida Berrini; mais tarde,

nas décadas de 80 e 90, surgem os grandes investimentos da região da Faria Lima.

Como último vetor de valorização imobiliária da região sudoeste da cidade, no fim dos

anos 90 e na primeira década do século XXI, temos a expansão para região da Marginal

Pinheiros – o vetor acabou, bateu no rio.

Com a impossibilidade de continuar se embrenhando na região sudoeste da

cidade, parte da estratégia atual da máquina imobiliária reside no retorno das ações

empresariais ao centro histórico, que, não por acaso, tem parte de seu território passando

por um longo processo de desinvestimento do poder público. O Projeto Nova Luz nasce

dessa conjuntura.

7 FIX, Mariana. São Paulo cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo: Boitempo, 2007.

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Piratas de Galochas na Luz Reflexões sobre o processo

Programa de Valorização de Iniciativas Culturais VAI 2º semestre / 2012

O Coletivo de Galochas, portanto, definiu como espaço de sua próxima ação o

local alvo desse megaprojeto urbanístico, uma zona da cidade que figura como símbolo

máximo do desinteresse e ineficiência do poder público, um espaço estigmatizado, e por

isso passível de sofrer uma ação imobiliária tão ostensiva como o Nova Luz. O grupo

pretendia realizar sua próxima ação de invasão e ocupação teatral na região conhecida

pelo taxativo nome de Cracolândia.

Cracolândia: O peso concreto de uma construção simbólica

Já faz quase um ano que, não por acaso, esta região central do bairro da Luz

explodiu nos holofotes da mídia. Em janeiro de 2012 a Polícia Militar deu início a

autodenominada Operação Sufoco. Os crackeiros, como são comumente chamados,

eram o foco e a justificativa da operação; seu

primeiro ato, bombas de gás lacrimogêneo,

cassetetes e balas de borracha para dispersá-

los.

Aos usuários de crack moradores de

rua era imposta uma rotina de circulação

permanente (sempre obrigados a caminhar de

onde estivessem parados), de enquadros

constantes e agressões gratuitas. As

autoridades alegavam ter empregado uma

estratégia de "dor e sofrimento" para conter o

avanço da dependência de crack: “Não

vamos dar sossego para eles. Quero deixar

bem claro: a Cracolândia em São Paulo

acabou!", declarou na época a secretária de

Justiça de São Paulo, Eloisa de Sousa

Arruda.8

A violência desmedida da Polícia despertou a atenção da mídia. O bairro ganhou

destaque, os órgãos da Defensoria Pública e da Assistência Social protestaram, teóricos

e acadêmicos organizaram fóruns de debates, a discussão em torno das substâncias

8 Entrevista publicada no Jornal Folha de São Paulo, Cotidiano, dia 27 de Janeiro de 2012. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/22438-a-cracolandia-ja-acabou-diz-secretaria-da-justica.shtml - acessado em 24/11/2012.

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psicoativas voltou à pauta do dia. O poder público, duramente cobrado. Muito

aconteceu, hoje o debate está mais encaminhado, medidas foram aprovadas na justiça e

a onda de violência com os usuários moradores de rua diminuiu.

No entanto, usando a lógica de desvalorização/revitalização, tendo como

justificativa o debate em torno do crack, o projeto urbanístico Nova Luz corre para ser

iniciado. Com intuito de ‘revitalizar’ esta parte da cidade, o projeto prevê a

desapropriação de determinados imóveis para negociá-los com potenciais investidores;

o mecanismo utilizado nessa operação chama-se concessão urbanística, mecanismo

aprovado em lei na gestão do Prefeito Gilberto Kassab.

Esta Lei de Concessão Urbanística 9 funciona através da fórmula mágica da

parceria. Concretamente cria a figura do concessionário, um ‘parceiro’ privado que

ganha o ‘direito’ de explorar essa região da cidade. O poder público, então, avança

sobre o espaço privado desapropriando imóveis dentro de zonas de desvalorização – a

gigantesca parte desses imóveis pertencem a populações de baixo poder aquisitivo. A

composição da região chamada de Cracolândia, a principal zona de desvalorização

imobiliária de São Paulo, é feita de pensões e hotéis simples, ocupações de moradia,

ciganos e moradores tradicionais. Não, nem só de crackeiros é composta a região da

Luz.

A ação do poder público em parceria com a especulação imobiliária para

‘revitalizar’ o bairro da Luz, tendo como justificativa os usuários de crack – eis o centro

em debate nas ações de invasão e ocupação teatral que o Coletivo de Galochas

desempenhou no bairro.

O interessante é perceber que o argumento de fundo, a justificativa para as ações

de revitalização, é a imagem constituída em torno do usuário de crack – verdadeiro bode

expiatório para crise de civilização que vivemos. Crackeiro é um termo em que

mercadoria e pessoa ficam nivelados. O espetáculo atua de forma concreta. É um ato

simbólico de efeitos devastadores nomear um bairro de Cracôlandia – o nome é usado

pelo poder público.

É uma categoria de acusação útil, permite comprar os imóveis do bairro a preço

de Cracolândia para vendê-los a preço de Nova Luz. É uma guerra simbólica, onde a

imagem de um bairro se sobrepõe às possibilidades de seu cotidiano concreto.

9 Lei nº 14.918 aprovada em 07/05/2009. http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano/legislacao/index.php?p=1382 – acessado em 24/11/2012.

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A tentativa do Coletivo de Galochas era construir pelo bairro uma possibilidade

de experiência e construção simbólica diferente daquela arregimentada pelos discursos

midiáticos, pela especulação imobiliária e pelo descaso/violência de parte do poder

público.

Cidade ocupada: o cotidiano de ensaios nas ruas da Luz

O Coletivo de Galochas tinha muitos pontos de apoio para o começo do

trabalho. O cotidiano de ensaios na ocupação armou o grupo quanto ao debate do

projeto Nova Luz, apoiado na maquina de crescimento imobiliário. O grupo também

estudou o conceito da cidade espetacularizada, esse processo de empobrecimento da

possibilidade de experiência no espaço da cidade.

Mas o mais importante de

tudo, o grupo partia da adaptação de

um espetáculo pronto, Piratas de

Galochas – sua dramaturgia, a

construção de suas personagens, uma

linguagem apontada, o ritmo das

cenas. A peça, embora tivesse de ser

profundamente reformulada, era o

principal ponto de apoio de todo

trabalho, o lugar de articulação de

todos esses assuntos, a ferramenta fundamental para maior parte das invasões teatrais

realizadas pelo grupo.

A idéia era remontar a peça em um formato de passeio – a encenação caminharia

junto com os espectadores pelo espaço público, calçadas, praças e ruas, percorrendo um

circuito de cenas. O espetáculo, agora chamado Piratas de Galochas na Luz, partia do

projeto de se construir como passeio teatral pelo entorno da Praça Julio Prestes, da Rua

Helvetia, Rua Dino Bueno, Alameda Cleveland.

No primeiro momento, o Coletivo de Galochas realizou ações de investigação e

vivência com o ambiente da Luz. Nos primeiros ensaios o grupo caminhou

coletivamente por todas as ruas do bairro, mapeando em experiência o espaço. Decorar

seus cruzamentos e nomes, observar e escutar tudo, descobrir seus segredos.

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Compreender os muitos fluxos que tecem a dinâmica daquele ambiente, uma mistura

intensa de agentes sociais. Muitas conversas pelo caminho.

A desigualdade é um elemento fundamental na produção da cidade

contemporânea. Essa foi a primeira evidência notada pelo Coletivo. Conviviam, num

espaço muito próximo, a suntuosa Sala São Paulo e os agrupamentos de usuários de

crack.

A segunda coisa que chamou a atenção do grupo foi o grande número de

instituições recentes na região. Como resposta aos acontecimentos do começo do ano,

depois da dura cobrança de alguns setores mobilizados da sociedade civil, o poder

público instalou uma constelação de aparelhos no bairro. Em um espaço bem próximo

estão um SASF – Serviço de Assistência Social a Família; um CAT – Centro de Apoio

ao Trabalhador; um EcoPonto; e a Tenda Mauá, um espaço de vivência para crianças e

adolescentes em situação de rua.

O clima pacificado fechava as percepções do passeio: muito policiamento na

rua, sempre com alguma autoridade vigiando a caminhada do grupo, ao mesmo tempo

que montavam-se as Cracolândias, escambos a céu aberto que tem como principal

instrumento de troca a compra e consumo de crack.

De tempos em tempos os usuários eram dispersados pela polícia. Os policiais

não precisavam nem descer da viatura – um som com a sirene servia de ordem para a

dispersão desses grandes grupos, que montavam outra zona de escambo em algum lugar

próximo. O Coletivo de Galochas não sofreu violência por nenhuma das partes, nem da

polícia, nem dos usuários de crack.

Terminado esses encontros de caminhada livre, continuando esse momento de

percepção do espaço, vieram as derivas 10 . A deriva é um jogo com a cidade que

funciona a partir de dispositivos. Esses dispositivos são criados para que o jogador

vivencie o entorno de maneira inusitada. O dispositivo pode ter qualquer natureza, a

única regra é segui-lo veementemente.

Assim, o Coletivo se dividiu em trios, cada um criava as regras de seu

dispositivo – qual mecanismo ditaria a relação deles com aquela parte da cidade no

tempo de sua deriva. Exemplos: tocar todas as campainhas com o intuito de conhecer a

casa das pessoas; oferecer ajuda para quem estiver saindo do supermercado cheio de

sacolas; seguir qualquer transeunte de camisa listrada que cruzar o caminho do grupo.

10 DEBORD, Guy. Teoria da Deriva. In JACQUES. Paola Berenstein (org.) Apologia da Deriva. Escritos Situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003

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Passado este momento de percepção do ambiente, começaram as ações de

invasão teatral propriamente. Primeiro através da composição de fotos improvisadas em

locais determinados. Um jogo simples: definia-se o ponto do observador, com isso um

recorte no espaço; os atores então propunham, entrando um de cada vez, uma imagem

congelada que dialogasse com esse recorte. Posteriormente as fotos, depois de criadas

de maneira livre, passavam a ter o objetivo de experimentar o universo da pirataria

clássica em atrito com as possibilidades de composição do entorno, dando início às

intersecções entre o espetáculo Piratas de Galochas e o bairro da Luz.

O passo seguinte, continuando os pontos de contato entre ambiente e peça, foi a

experimentação de cenas da dramaturgia desenvolvida na Ocupação Prestes Maia em

espaços variados do espaço público. Neste momento o Coletivo de Galochas percebeu o

tamanho das mudanças que seriam necessárias na reformulação de seu trabalho: levar o

espetáculo as ruas, a adaptação da peça aos espaços da cidade, demandava mais do que

mudanças formais – os assuntos da peça original eram insuficientes para debater as

contradições que compunham o novo ambiente onde ela iria se realizar.

Munidos das vivências recentes com a Luz, com os movimento sociais e com a

bagagem teórica do processo anterior, os teatristas passaram a experimentação livre de

workshops, propostos por todos do Coletivo, para levantar cenas que tecessem

intersecções plenas com o

ambiente. Workshop é uma cena

em potência, uma ideia teatral

apresentada de maneira crua para

um possível desenvolvimento. A

experimentação desses workshops,

misturados com o texto anterior,

frutificaram na nova dramaturgia

Piratas de Galochas na Luz.

Essa nova dramaturgia (mais de três quartos do texto original foi reescrito) era

resultado do amadurecimento da relação do grupo com aquela região. Neste momento

do processo, as ações do Coletivo não eram mais tomadas como invasão – a prática

teatral já participava dos modos de uso do ambiente, era um de seus fluxos. Os

moradores de rua reconheciam os piratas; os policiais, todos, sabiam do trabalho que

estava acontecendo; as crianças que moram no bairro, aos poucos se juntavam para

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assistir os ensaios com figurinos. Este momento marcou a transição da invasão para

ocupação teatral do espaço.

O resultado dessa ocupação podia ser acompanhado durante a temporada da

peça: a plateia era dividida, em todas as apresentações, entre espectadores vindos de

fora, o público comum de teatro, e moradores da região, em sua gigantesca maioria

crianças.

Essa inserção no cotidiano do bairro foi de suma importância para o trabalho do

grupo. O Coletivo de Galochas temia realizar um espetáculo que se transformasse em

um tour da miséria – um público tradicional de teatro contemplando a miséria como se

estivessem dentro de um safari. As crianças serviam de porta de entrada para a peça,

produzindo identidade e vínculo entre moradores da região e evento teatral.

Havia um momento de fronteira crucial no passeio realizado pelo espetáculo:

quando a peça dobrava a esquina composta pela Alameda Cleveland com a Rua

Helvetia. Era o momento em que peça e público deixavam a zona de segurança e

higiene da Sala São Paulo para adentrar na região denominada como Cracolândia.

Neste momento um clima de medo perpassava, invariavelmente, o público vindo de

fora, que se aninhava junto ao espetáculo, procurando segurança. Já as crianças seguiam

idênticas, brincando e zoneando com o evento do mesmo jeito.

Quem está dentro da jaula recebendo pipocas, nesse momento?

Teatro na Rua: Restos de uma Guerra Simbólica

O Coletivo de Galochas nunca negou sua condição de grupo teatral. Embora

atrelado a movimentos sociais e debates públicos, o teatro é a ferramenta e o motivo da

ação daquele grupo de pessoas. Seu objetivo, em última instância, é produzir um evento

teatral. O que não é pouca coisa.

Tratando-se dessa região da cidade, é possível apreender a materialidade de uma

produção simbólica. Cidade espetáculo, zonas de valorização, Cracolândia – categorias

ideológicas, construções subjetivas.

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Fazem parte das fábricas de carros atuais estatísticas para medir o nível de

felicidade de seus funcionários – a subjetividade, na contemporaneidade, participa do

cálculo das forças produtivas. A auto

regulação ditada pela ordem do

espetáculo agita as ilhas de consumo.

A satisfação plena, nos dias de hoje, se

define como um encontro íntimo com a

norma.

Resgatar a possibilidade de

construção de experiência no espaço,

para o Coletivo de Galochas, é uma

ação de resistência. Ressignificar a

região da Luz é a tentativa de uma

construção simbólica que não corrobore com as iniciativas imobiliárias. Enquanto o

humano não for a característica essencial de um projeto urbanístico, este será,

invariavelmente, um projeto de exclusão.

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