piracicaba a pirapora a pÉ

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Piracicaba a Pirapora a pé Lembranças de 42 anos ininterruptos de caminhada Esio Antonio Pezzato Poeta e Romeiro Piracicaba, 1968 a 2009

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Piracicaba a Pirapora a pé

Lembranças de 42 anos ininterruptos decaminhada

Esio Antonio PezzatoPoeta e Romeiro

Piracicaba, 1968 a 2009

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Um pequeno comentário

Este é um livro que conta parte das minhascaminhadas de Piracicaba a Pirapora a pé.Nada mais. Quis deixar gravadas minhasmemórias, pois a Romaria faz parte da minhavida há 40 anos, portanto é um fato importantedela. Sei que muitos acham loucura, outros umdespropósito mesmo, carregar uma mochilanas costas ou ainda uma cruz e percorrer oscento e vinte quilômetros que separamPiracicaba de Pirapora. A mim é um deliciosopasseio. Nas páginas seguintes irei narrar um poucode minhas viagens. Poderia ser repetitivo dizer,ano após ano, todas elas, tanto que selecioneialguns fatos que julguei interessantes,engraçados, trágicos e outros mesmosmemoráveis sob diversos aspectos. Espero que, aquele que se tornar leitordessas páginas, curta, um pouco, o que é ir aPirapora a pé. Que se vista também do espíritoaventureiro, e caminhe comigo, com o Pedrão

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e tantos outros amigos, espiritualmente, poressas estradas...

Definição

Peregrinação: (Do latim peregrinatione) ato deperegrinar. Viagem a lugares santos ou dedevoção, romaria.

Peregrinar: (Do latim peregrinare) viajar ouandar por terras distantes, correr pordiferentes partes. Ir, em romaria, percorrer,viajando.

Romaria: (do top. Roma Itália) centro deperegrinações cristãs. Peregrinação a algumlocal religioso. Reunião de devotos, queparticipam de uma festa religiosa. Festa quese realiza em arraial. Aglomeração de pessoasem jornada. Ajuntamento de pessoas,multidão. Romagem.

Essas são as definições de Aurélio para definiro que é peregrinar, peregrinação e romaria.

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Pirapora

Pirapora do Bom Jesus entrou em minha vidaainda criança. Tinha os meus sete ou oito anose, durante a quaresma eu via diversos moçoscom as barbas e cabelos crescidos. Isso eraestranho naqueles tempos, início dos anossessenta. Era estranho porque naquela épocaos jovens costumavam barbear-se quase quediariamente e cortavam os cabelos tambémquase que de quinze em quinze dias. Portantocabelos e barba com mais de mês eramestranhos. Mas depois que passava a SemanaSanta lá eu os via novamente de barba ecabelos feitos. E tudo voltava à normalidade.Em casa e mesmo nas ruas, brincando comamigos, e a gente ouvia dizer que, ou o primoou o irmão mais velho ou mesmo o pai haviaido pagar promessa, portanto eis o motivo doscabelos e das barbas crescidos. E sempre aforma de pagamento das promessas era amesma: haviam ido a pé a Pirapora do BomJesus.

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Isso causava em mim um espírito de aventuraimenso. Imagine só ir de Piracicaba a Piraporaandando. Eu nem sabia onde ficava Pirapora doBom Jesus. Apenas sabia que iam a pé.Quando eu estava com meus doze ou trezeanos, era vizinho nosso o Sebastião Sanchesde Oliveira. Quando chegou Semana Santa seuirmão mais novo, o Zé Antonio veio me dizerque seu irmão iria a Pirapora a pé, que já haviaido vários anos. Então passei a ver o Sebastiãocomo a um ídolo. Era a primeira pessoa queconhecia que ia a pé a Pirapora. Uma noitedurante o início da Semana Santa, me lembrobem o ano, era 1967, estava eu com algunsamigos à noitinha, no Dom Bosco quandochega um bando de jovens com mochila nascostas. Eram conhecidos meus alguns, e fiqueisabendo que iriam fazer a romaria atéPirapora. Tomaram a benção do Padre epartiram.No mesmo instante veio em mim o desejomuito forte de ir também fazer tal aventura. Epassei a sonhar durante o ano todo. Sempreem casa dizia para meu pai e minha mãe queiria a pé até Pirapora no próximo ano. Meus

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pais não diziam nada, ou por vezes diziam queeu poderia ir. E a vontade foi crescendo,crescendo, crescendo...

1968Minha primeira caminhada

Chegou o ano de 1968. Chegou o Carnaval, aQuaresma e eu no firme propósito de tambémme fazer romeiro e ir a pé até Pirapora do BomJesus.Eu tinha então 15 anos, estudava no DomBosco. Falei com vários amigos de meu intuito,mas em nenhum deles encontrei eco aos meusdesejos. Sei que no Colégio trabalhava ummoço, Pedro Brancalion, conhecido por Pedrão.E eu falei para ele que ia a Pirapora a pé. Eleme perguntou com quem eu iria e disse quenão sabia com quem, mas que iria, isso estavacerto. E para minha surpresa me disse que seeu quisesse, poderia ir com ele, pois iria sairnaquela noite para a tal romaria. Fiquei ainda

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mais eufórico. Agora eu sabia com quem iriafazer minha caminhada. Com o Pedrão!Cheguei em casa depois das aulas e falei paraminha mãe que iria a Pirapora. Ela me dissepara esperar que meu pai chegasse para eledecidir. Tardinha chega meu pai. Vou falar comele. E a surpresa veio com uma respostaclássica: Vai, sim de “carcanhá pra frente!”Isso queria dizer que eu não iria. Chorei, gritei,esperneei. Então veio a hora do jogo doempurra-empurra: fale com sua mãe. Lá ia eufalar com minha mãe que dizia: fale com seupai...Estávamos jantando, eram mais ou menos seteda noite e eu ainda chorando, pois queria irpara Pirapora. O Pedrão falou que iam sair oitoda noite... Eu ainda sequer havia conseguidoconvencer meus pais, e muito menos arrumadominha mochila. Mas o propósito estava firme:eu iria a pé até Pirapora! Fosse como fosse, euiria. Até que minha mãe perguntou com quemeu iria e eu disse que iria com o Pedrão. Elafalou: quero falar com ele! Foi falar e eu saícorrendo... correndo... correndo... fui à casa doPedrão! Ele morava quatro quadras de minha

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casa, mas creio que em um minuto estava emsua casa. Lá chegando encontrei-o jápreparado para a caminhada. Juntos estavamoutros rapazes com mochilas nas costas,prontos para partirem. Sei que falei para oPedrão se ele poderia ir até minha casa, poissó assim teria permissão também de ir. Ele foi.Chegamos em casa. Meus pais o conheciam. Efoi uma saraivada de perguntas... perigos,canseira, que eu era muito novinho para ir, seele olharia e cuidaria de mim... e mais, mais,mais perguntas. Eu ansioso pelo sim que veiologo mais... que eu poderia ir fazer acaminhada...Em menos de cinco minutos arrumei minhamochila, que por ser arrumada às pressas, foifaltando inúmeras necessidades e sobrandooutras coisas supérfluas... Mas pus a mochilanos ombros, meu pai perguntou para o Pedrãoquanto precisaria levar em dinheiro e melembro que me deu Cr$ 30,00 (trinta Cruzeiros)para minhas despesas. Foi uma choradeira emcasa... meus pais e minhas irmãs dizendocentenas de conselhos, cuidados que deveriatomar, e eu querendo mesmo partir... Me

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lembro que minha mãe descascou algumaslaranjas e colocou na minha mochila, que ficouainda mais pesada...Eram quase oito da noite e fomos nosencontrar com os outros que estavam nosesperando... Era uma turma boa... além de mime do Pedrão, o Zé Pretinho, o Zezo Coimbra, oCarlinhos, Rato, Gelson, Danilo, Milton e outrosmais que agora nem me lembro...Exultante, saímos da casa do Pedrão, queficava à rua Manoel Ferraz de Arruda Camposquase esquina da Ipiranga. Partimos sobolhares de curiosos que desejavam uma boaviagem para todos. Chegamos até a ruaMoraes Barros e a subimos. Passamos emfrente ao Cemitério da Saudade, e mais cemmetros, a avenida Piracicamirim, que era todade terra... Era mesmo um arrabalde da cidade...Descemos a avenida e era muito bonito egostoso ouvir os desejos de boa viagem querecebíamos de todos que cruzávamos....Estávamos em quatorze jovens entre os quaiseu era, com certeza, o mais novo, e, alémdisso, marinheiro de primeira viagem... E queviagem... mas tudo ainda era surpresa,

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novidade, cansaço, muito cansaço, sono, masuma perseverante vontade de resistir evencer...Oito e meia da noite estávamos cruzando aponte sobre o ribeirão do Piracicamirim etomando caminho através da avenida Rio dasPedras, para os primeiros doze quilômetrosque nos levariam até a cidade do mesmo nomeda avenida... Era terça-feira... O projeto erachegar em Pirapora quinta-feira à tardinha.Perto das dez e meia da noite chegamos emnossa primeira parada: Rio das Pedras. Aempolgação era grande. Os sapatos nos pésnão incomodavam ainda... Ali pouco nósparamos... Talvez quinze minutos, o suficientepara tomar um refrigerante. E seguimos paraMombuca. A estrada ainda era de terra, estavasendo asfaltada. Passando a linha do trem,havia, bem me lembro, cavaletes impedindo apassagem, mas ignoramos os mesmos e então,no asfalto novinho e ainda não permitido paraveículos, seguimos até Mombuca. Nacidadezinha pequena chegamos perto de umahora da manhã. Estava lotada de romeiros...

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Uns dentro dos bares, outros sentados nascalçadas, outros deitados.Enquanto uns partiam, outros chegavam... ofluxo era imenso... Pouco nós permanecemosna cidade. O mesmo tempo de Rio das Pedras.Mochila nas costas e partimos até Capivari.Estrada de terra. O sono e o cansaço já sefaziam sentir. Minha vontade era mesmo sentare dormir, mas com o comentário de descansoem Capivari, pernas cansadas e doídas, passosmais lentos, e chegamos em Capivari perto dasduas da madrugada. Atravessamos a cidadetoda e já na saída da mesma, paramos numbar. Minhas pernas pegavam fogo. Meus pésqueimavam. O sono era forte. Havíamosandado perto de 40 quilômetros.Perto das quatro horas da manhã decidirampartir... por mim eu ficaria ali dormindo maisuns dois dias... O cansaço era imenso. Mas nãoteve mesmo jeito. Coloquei a mochila nosombros, e fui no embalo... Fazia frio. Faziamuito, mas muito frio mesmo. Enrolado nocobertor, tremendo de frio, andava com todos.Poucas falas. A lua cintilava embaçada no céu. Perto das seis horas a neblina era imensa.

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Cobria tudo. Pouco nós conseguíamosenxergar. Eu havia levado uma lanterninhapequena, daquele tipo de caçar rãs à noite.Servia mais para gozação do que para iluminar.Mas, focando para o chão seu pequeno facho,que encontramos enrolado num pacotinho trêsnotas de dez Cruzeiros. Era um bom dinheiro.Era a mesma quantia que meu pai havia dadopara toda a minha caminhada. Estávamos emum grupo de quatorze pessoas. Foi então que oZé Pretinho falou: se a gente ficar procurandoquem perdeu o dinheiro, vai aparecer todomundo dizendo que perdeu. Vamos ficarquietos. Se alguém reclamar a gente devolve.Certo? Todos concordaram. E ficou combinadoo seguinte: a gente iria almoçar emSamambaia e gastar desse dinheiro.Continuamos nossa caminhada. O dia clareou.Perto das seis e meia da manhã chegamos emSamambaia, no bar do senhor Ricieri.Perguntamos para um de seus filhos, o Tico,quanto ficaria o almoço para nós todos e, elenos disse que ficaria em trinta Cruzeiros. Era odinheiro que havíamos achado. Ficou acertadoassim, o almoço.

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Enquanto lavávamos os pés com salmoura, eoutros descansavam, veio o aviso que oalmoço estava pronto. Eu estava com umafome de leão. Olhei para meu relógio e penseique ele estivesse quebrado ou que euhouvesse me esquecido de lhe dar corda, poisos ponteiros marcavam sete e meia. Mas não,eram mesmo sete e meia da manhã e nossaturma sentada à mesa para almoçar! Sei quealmoçamos mesmo. O mais interessante foiquando pedimos a conta e ao contrário do quehavia sido combinado, queriam cobrar pelonosso almoço, a quantia de quarentaCruzeiros! Os mais velhos como o Zé Pretinhoe outros começaram a discutir, eu, garoto deprimeira viagem e o mais novo da turma, fiqueiquietinho só ouvindo a discussão. Mas não seilá a quantas, o Zé Pretinho arrancou os trintaCruzeiros e jogou sobre a mesa, dizendo que iaapenas pagar o combinado. Como a discussãocontinuasse, ele sacou do bolso da calça umagarrucha 22 e deu uns dois tiros para o alto!Foi uma correria. Imaginem que os tiros foramdados dentro do casarão onde todosestávamos. Foram para o alto certo, mas foram

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dados. Depois disso saímos da casa, largamoso dinheiro sobre a mesa e pusemos os pésnovamente na estrada. Eu estava além deassustado com muito medo também.Sei que os familiares do senhor Ricieri sepuseram nas janelas da casa e ficaramxingando nossa turma, especialmente o ZéPretinho. Mas nessa de sairmos meio que àspressas, fui alertado pelo Pedrão, pois nempercebia que estava tomando o rumo paraElias Fausto, e não para Salto. Andamos unsquatro quilômetros e numa enorme sombrafomos descansar. Não eram mais que dezhoras da manhã. Dormi pesadamente. Era maisou menos uma da tarde quando fui acordadopelo Pedrão, pois precisávamos ir para Salto.Cambaleante, pus novamente os pés naestrada. O cansaço era imenso... mas nãopensava, não, em desistir. Fomos andando,andando, andando. Três da tarde chegamos aolocal chamado Pinheirinho. Era uma fazendamuito bonita, com várias árvores da espécie depaina, que nessa época estão todas floridas.Também existe uma igrejinha na beira daestrada. Descansamos aí por mais de uma

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hora. Novamente pusemos os pés em marcha eà tardinha chegamos em Salto. Devo dizer queesse trecho de quase quarenta quilômetros étodo de terra e areia, ainda hoje. Além dapoeira, o sol escaldante chega a queimar osmiolos. E nada, nada de sombra...Chegando em Salto à noitinha, fomos jantarnum barzinho à beira do rio, e depois procurarum cantinho para dormir e disputamos comoutros tantos romeiros, um local na estação detrem. O chão todo de paralelepípedos. Mas agente estendia o cobertor nele pela metade ecom a outra metade cobria o corpo. Erampouco mais de nove horas da noite. O cansaçoera forte. Não havia lugar para tomar banhotambém. Estávamos além de cansados, sujos esuados. Dormimos pesadamente.Perto das três horas da manhã acordamos.Fomos para uma lanchonete, comemos eseguimos até o Atalho. Se o cansaço eraimenso, como que por encanto ele haviapassado totalmente. Um forte cheiro deeucalipto exalava o ar. Estava pisando firme.Forte. Tudo havia se renovado. A conversa dodia anterior que havia rareado, vicejava forte

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em toda a turma. Eu estava empolgado. Queriafalar com todos. Me lembro que o Carlinhos,primo do Zezo ficou junto andando comigo efomos papeando... Quase sem perceber,andamos perto de dez quilômetros, echegamos no pé do Atalho. Ainda estavaescuro. Devia ser perto de cinco da manhã.Havia uma casa com luzes acesas, portasabertas. Chegamos. Dentro da casa havia maisde 40 romeiros. Os donos da casa serviam cafée bolo de fubá. Não cobravam nada, mas quemcomia ou tomava café deixava algum trocado.Era uma paga justa pelo que faziam. Depoisfomos nos aconchegar na grama fronteiriça àcasa esperando o dia raiar. E quando o céutingiu suas primeiras cores da alvorada,partimos nós. Alegres e confiantes. Me lembroque o Tiquinho, Haldumont Nobre FerrazJunior, estava com a bunda toda assada, porisso procurava maisena. O Atalho todoatravessou quase que carregado pelo Pedrão.O Atalho, (trecho mais lindo de toda a viagem)fica no entroncamento da rodovia MarechalRondon, que vai de Itu a Jundiaí, junto com apista que segue de Salto. Localiza-se na Serra

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do Japi. É um conjunto de várias fazendas. Epor elas passamos cruzando cercas, passandomato fechado, nessa época havia cafezais,cana, capim, muitos eucaliptos, pinhos, epedras, pedras, muitas pedras, imensaspedras, que fazem um cenário maravilhoso aonascer do dia. O Sol vai procurando se infiltrarpor entre fendas, grotões, aqui uma pedraisolada, à frente um conjunto de várias pedrasimensas, com mais de dez metros de altura. Ea gente vai subindo a serra, vendo aquelapaisagem linda, um cheiro de mato forte entrapelas narinas, o suor do corpo é forte também,a neblina encobre a floresta, depois no alto daserra a gente divisa bem abaixo, um fio deágua... que nada mais é do que o velho elendário rio Tietê. As nuvens estão baixas,parece até que estamos no alto do céu... E agente subindo a serra... o dia clareando, abeleza de um cenário de indescritíveispalavras... Mas de repente, uma porteira... e agente começa a descer... de início leve, depoismais forte, mais forte, e de repente, outra vez,uma descida forte, mata da floresta Atlânticaainda intocada, e descida mais forte, mais

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forte... as pernas já não conseguem andar... ocorpo é impulsionado para baixo, e começa-sea correr... correr.. não se consegue parar... e écorrendo fortemente, que de repente abre umtúnel de ar à nossa frente, e nos vemos cair naestrada... mais uns passos apressados eiríamos direto para as águas do rio Tietê, bemà nossa frente... Agora fim de mato, de estradade terra, o asfalto brilha, carros passam,passam bicicletas, charretes, cavalos, motos,muitos romeiros... todos felizes, andando,falando alto, gritando, berrando mesmo...A canseira desaparece por completo. Andamosalgumas centenas de metros e bem à direitado rio Tietê, aparece a Gruta. Imenso conjuntode pedras com mais de trinta metros de altura.Bica de água fresca e cristalina e, muitasbancas vendendo café, pão com manteiga,leite, biscoito, lanches, churrasco e mais,mais, mais coisas...Paramos um pouco. Ainda oito horas damanhã. Fico curtindo a manhã maravilhosa. Osol fica escondido atrás da serra, mas mostraseus raios do outro lado do rio Tietê. Um poucode descanso e partimos para Cabreúva. Seis

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quilômetros apenas. Pouco mais de uma horade viagem. Vou com o Carlinhos à frente.Falando de bailes, namoradas, desejos evontades. Cabreúva logo aparece como porencanto... Pouco mais de nove da manhã.Chegando à cidade sinto um pé queimar. Odedinho do pé direito está ardendo. Tiro osapato e, ela está lá, brilhante, estufada... umabolha de água quase que deixa o dedinho dotamanho do dedão do pé... Furo com umaagulha e deixo a linha para que a água escorrae ela seque. Assim doi menos, dizem. Vamospara uma pensão. Um banho faz muito bem.Revigora. Traz novo ânimo. Duro que não leveialém de um par de sapatos. Tivesse um par dechinelos e não teria tanto incômodo. Mas nãofaz mal. Almoçamos antes das onze. A fomeestava um caso sério. Depois vamos para apraça central da cidadezinha e lá ficamos emanimados grupos. São muitos romeiros... unsdescansam, outros partem enquanto outroschegam. Não dá para saber quantos somos.Perto do meio-dia a turma decide partir. Faltamainda vinte e quatro quilômetros até chegarPirapora. Já andamos quase cem quilômetros.

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Faltam apenas vinte e quatro. A gente sai embandos... Vários bandos. Estamos animadostodos. Andamos sob sol forte e inclemente.Logo chegamos no Japonês, que nessa épocaera apenas um bar cujo proprietário era umjaponês chamado Mário.(ainda hoje, 2009, vivoe bem falante. Recorda com saudade dessaépoca) Isso em 1968. Hoje o bairro cresceu etem outro nome: Bananal. São várias casas.Igreja, supermercado, escola. Paramos sob asombra de imensos eucaliptos. Ficamos alimeia hora mais ou menos. Andamos apenasoito quilômetros. A vontade de chegar égrande, mas a tristeza pelo final da viagemcomeça a aparecer. Continuamos a andar.Chegamos na bica. Agora faltam apenas onzequilômetros para Pirapora. Descansamos àsombra de imensos bambuais. Passam muitosromeiros. Alguns estão também descansando eao lado diversas cruzes. São os romeirospagadores de promessas. Perto das seis datarde a noite começa a pintar suas cores. O soljá desapareceu. Fica melhor para andar.Decidem partir e eu vou junto com a turma...quero chegar logo...

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Logo, o Tira-saia aparece. É temido. Apenasuma subida de dois quilômetros. Mas a subidaé forte. Muito forte para o corpo cansado ecastigado, mas não intransponível. Questão demeia hora e estamos no alto daSerra...Algumas luzes aparecem... no corpo ospelos ficam arrepiados. Uma vontade dechorar. Correr. Voar. Os pés estão leves, ocorpo flutua. Eu quero flutuar... faltam aindapoucos quilômetros para final de viagem. Ospassos são firmes e fortes, certeiros. Pisamduros no chão. Uma curva e as luzesdesaparecem. Onde foi a cidade? Sumiu. Outracurva. Mais luzes. Outra curva. Agora as luzesnão somem, vão ficando mais perto, maisperto. Ouço de um alto-falante a voz de alguémque parece ser de um padre convidando todospara a missa das oito. Tento correr. A vontadeé maior do que as forças do corpo. Escorrego.Caio no chão. Grito um Bom Jesus de Piraporae antes de gritar estou em pé novamente. O ZéPretinho pergunta se me machuquei. O Pedrãopergunta se estou bem. Digo que sim. Aindaouço a voz do padre. De repente a Igrejaaparece à minha esquerda. Imponente, cheia

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de luzes. Vamos andando. Falta pouco. Poucascentenas de metros. A Igreja fica à minhafrente. Depois andamos mais um pouco e elafica atrás de mim. Uma curva e, a Igreja ficamais perto. Mais perto. As vozes agora sãonítidas. A noite brilha. A lua fulgura no céu.Uma curva e, a Igreja está pertinho, bastaatravessar o lendário rio Tietê. Outros passose, ela desaparece. Uma ponte de madeira.Atravessamos e entramos na cidade. Curiososnos olham. Estamos todos emocionados. Maisquinhentos metros e eis a Igreja do SenhorBom Jesus de Pirapora. Estamos no átrio dela.Muita gente. Muitas cruzes encostadas nosbalaústres. Subimos alguns degraus e estamosna porta da Igreja. A emoção é forte. Entramosjuntos. No Altar a imagem majestosa de BomJesus de Pirapora.A emoção é forte; o brilho dos lustres iluminanossas cabeças. Mais uns passos e estamos aseus pés.A emoção brinca com as lágrimas queescorrem pelas faces. Todos nós ajoelhadosrezamos aos pés da imagem milagrosa do BomJesus de Pirapora. Em silêncio, olhares fixos,

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agradecemos. Cada um no silêncio faz suaprece e seu agradecimento.No altar o Padre que convocava pelosalto-falantes os fiéis para a missa, dava asboas-vindas a todos os peregrinos e iniciava amissa. Era quinta-feira, oito da noite.Saímos em silêncio para o átrio da Igreja.Agora o cansaço que estava escondido,começa a aparecer. As pernas estavamficando duras, doídas, os passos lépidos deminutos atrás, começavam a ficar trôpegos.Doía tudo. Pés, pernas, barriga, braços. Aemoção ainda pairava no semblante de cadaromeiro.Fomos procurar um lugar para jantar. Banhonem pensávamos. A barriga chegava a doer defome. Achamos um restaurante. Passado hojemais de 40 anos, muitas imagens ainda estãofixas na minha mente. Enquanto estouescrevendo essas páginas, me vejo menino de15 anos fazendo minha primeira romaria em1968. Hoje é dia 29 de março de 2005. Portantonão me lembro o que fomos comer, mas melembro do restaurante, não seu nome. Mascomemos e festejamos nosso final de viagem.

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Depois tentamos sair do restaurante. Se ospassos para se chegar até ele foram difíceis,agora parecia que tínhamos uma tonelada deem cada pé. Eles tentavam, tentavam masquase não saíam do lugar. Era difícil alocomoção para onde quer que se fosse. Masfomos arrumar um local e aí nos acoitamos.Era a entrada de um clube social da cidadeque, se bem me lembro, estava em construção.Não foi difícil para nossa turma aí acharabrigo. Estava calor, portanto o cobertorapenas servia de colchão, não também decoberta, como nas noites anteriores. Dormimospesadamente. Ainda hoje quando passo emfrente a esse clube, me lembro que dormi nelena minha primeira peregrinação, em abril de1968.Acordamos na manhã de sexta-feira. Cedinho.O burburinho do povo era imenso. Se na noiteanterior a cidade trazia uma população umtanto acima da média, nesta manhã apopulação praticamente havia se multiplicadoem mais de 20 vezes. Para ir agradecer a BomJesus de Pirapora, beijar os pés da imagem,havia uma fila que dava a volta na igreja várias

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vezes. Em frente à igreja os fotógrafoslambe-lambe ofereciam a todos umalembrança, através de fotos. Nossa turma nãodeixou por menos, fez pose e depois de maisou menos uma hora tínhamos em mãos, cadaum, uma foto para guardar de lembrança dacidade e também da viagem feita a pé. Pertodas nove horas começamos a procurar algummeio para voltarmos para nossa Piracicaba.Condução era o que não faltava: peruasofereciam vagas, mas como tudo era mesmouma grande aventura, subimos na carroceriade um caminhão, e acomodados cada um à suamaneira, mais de 40 ao todo, iniciamos aviagem de volta. Uns cochichavam, outrosainda cansados tentavam dormir sentados...mas o mais importante era a vitória que cadaum trazia dentro de seu coração: ter feito suaperegrinação a pé a Pirapora do Bom Jesus.Essa foi, em síntese, minha primeiraperegrinação, em 1968, que hoje já completouininterruptas trinta e oito voltas.Agora irei contar das outras viagens. Se estaprimeira ainda está viva na minha memória, asoutras não ficam a dever. Cada uma tem um

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momento de alegria, descontração, fatosengraçados, dramas, quase tragédias etragédias mesmo... Espero que viagem comigoatravés dos anos...

1969 e anos seguintes

Depois do primeiro ano, espereiansiosamente que chegasse logo 1969 paranovamente fazer a peregrinação. Quando setem de quinze para dezesseis anos tudo parecedemorar uma eternidade. Mas os anosseguintes foram viagens onde a juventudefazia com que as pernas caminhassem rápidas.Isso muito embora o jeito de se caminhar aindafosse totalmente errado. Andava-se sempre namesma marcha, no mesmo passo, na mesmabatida, e isso fazia com que depois de algumasdezenas de quilômetros, após uma parada aspernas ficassem doídas e o recomeço fossesempre difícil. Hoje, ao contrário, mudoconstantemente o modo de andar. Uso todosos tipos de musculação durante a caminhada,e embora tenha mais de cinquenta anos, hoje,

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jamais chego a ficar cansando. Raramenteuma bolha aparece nos pés. Mas depois de várias caminhadas, 1972 foium ano muito legal, pois pela primeira vezlevamos mulheres na nossa turma, a Célia, aCleusa e a Adélia, que não conseguiu chegar... Em 1974 eu havia começado a trabalharnuma nova Empresa um pouco antes docarnaval, portanto eu nem tinha ainda doismeses quando fui pedir para meu chefe se eleme daria permissão para ir a Pirapora. Eupensava que ele não fosse deixar, mas paraminha surpresa, a permissão veio imediata. Já em 1975 estava de chefe novo e ele nãome deixou sair na terça-feira à noite, comosaíamos então. Foi um suplício para mim.Todos em frente de casa, que era o local departida e eu ali. E saiu a turma toda: Pedrão,João, Carlos, Armando, Gato, Célia, Cleusa,enfim a turma era grande. Eu fiquei. Somentena quinta-feira à noite é que eu poderia ir. Masir sozinho? De jeito algum. Eu era cobrador.Viajava todos os dias. Ao saber dias antes quenão poderia faltar, uma semana antes fuiadiantando o serviço a ser feito. Na verdade fiz

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todas as cobranças exigidas até quarta-feirana hora do almoço. Mas mesmo que euaparecesse no local de serviço dizendo isso,meu superior era um tanto chato e por prazernão me deixaria ir. Fiz o seguinte: na quarta-feira de manhãapareci no serviço e mostrei que estava tudobem. Saí para fazer minhas cobranças eretornei hora do almoço. Depois saí dizendoque iria fazer as cobranças (que eu já haviafeito) em Araras, Leme e Pirassununga. Mas fuidireto para casa, almocei, tomei banho, pegueiminha mochila e caí na estrada. Sabia que a essa hora minha turma jáestava em Samambaia, mas saí. Andava ecorria pela estrada. Seis da tarde estava emCapivari. Tomei um fôlego e fui paraSamambaia. Lá cheguei perto de nove da noite.Jantei, descansei meia hora e parti para Salto.Cheguei simplesmente arrebentado em Saltoduas horas da manhã. Se ficasse ali iriadesmaiar ao dormir. Vi meus amigos dormindojá há horas. Acordei um deles e disse que osesperaria na Boca do Atalho e que meacordasse quando lá chegasse.

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Mais morto do que vivo cheguei no localquatro da madrugada e dormi até seis horas,quando meus amigos chegaram. Eu acordei esegui junto.Atravessamos o Atalho e chegamos emCabreúva perto das dez da manhã.Descansamos umas quatro horas ali. Depoispartimos para Pirapora. Aí o cansaço apareceu com toda a suaforça. Eu fui chegar em Pirapora mais de oitoda noite. Estava em frangalhos. Arrumamos umhotel para tomar banho e dormir. Foiprovidencial. Depois fomos jantar. Voltamos para o hotelzinho e capotamos.Acordamos na sexta-feira cedo. Ainda o corpotodo dolorido. Pela primeira vez fiz o percursoem tão pouco tempo. Em 30 horas fui dePiracicaba a Pirapora. No serviço jamais descobriram, pois, nasegunda-feira fui trabalhar e levei todas ascobranças feitas inclusive as que eu mudei asdatas para quinta-feira. Assim não deixei quefosse interrompida em seu oitavo ano, a minhacaminhada.

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Depois em 1976, ano da chuva foi tudo bem, eem 1977, em nova Empresa, não tiveproblemas, somente em 1978, quando usei domesmo artifício, porém, saindo na terça-feira ànoite mesmo.Já em 1979 descontei de minhas férias, assimcomo 1980 e 1981.Teria ainda muitas coisas para contar de cadaano, mas farei uma síntese de algumaspassagens apenas, para não me tornarrepetitivo, cansativo e igual em tantas coisas...

As Saídas

Depois da minha primeira caminhada, comodiversos amigos sob minha influênciadecidiram também fazer tal loucura, as saídaspassaram a acontecer em frente à minha casa.Bem me lembro que chegava do Colégio e anosdepois do serviço, e ao abrir o portão de casaque dá para o quintal, e minha mãe apareciasorrindo, mostrando ali muitas mochilas deamigos meus.Era então tomar banho, jantar e a turmacomeçava a surgir... e ao bando de mais de 30

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amigos, vinham os pais, os irmãos,namoradas... e então em frente à minha casaficava uma multidão. Os vizinhos saíam paraver aquele bando de malucos que iriam fazer aRomaria.E mais de cem pessoas ali aglomeradasesperando dar oito da noite, que era o nossorígido horário de saída. E vinha minha TiaMariquinha, que dava beijos molhados emtodos e chorava, vinha a Tia Margarida etantos, tantos mais...Mas o relógio marcando oito horas, faziaestourar uma salva de tiros de rojão einiciávamos a caminhada. Eram as despedidas,abraços, beijos dos pais, das namoradas, dosirmãos, dos vizinhos, os votos de cuidados eboa viagem a todos, crianças menores debicicletas nos acompanhando até o Cemitério,as namoradas também nos seguindo nosprimeiros passos... e logo mais a descida daAvenida Piracicamirim toda de terra... as casasse tornando raras, nossa turma imensa fazendoenorme vozerio, todos falando, conversandoalto, dando risadas, e mais gritos de boaviagem recebíamos...

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Quanta saudade... daqueles tantos de outrora,hoje somente o Pedrão e eu nos fazemospresentes. Perseverantes. Ainda confiantes.Muitos já partiram para outra caminhada,outros se casaram, se mudaram de cidade, epoucos mesmo os vejo...

MILTON

O Milton era um moço calado, quase não falavadurante a caminhada. Não me lembro dosobrenome dele, mas sei que trabalhava numacompanhia de entregar gás. Quantos anos eleteria? Sinceramente não sei. Para quem temquinze anos qualquer pessoa que tenha pertode trinta é considerada velha. Bem o Miltondevia ter isso, perto dos trinta anos. O que mefaz lembrar dele, se fomos apenas duas vezesjuntos na peregrinação? Apenas um fatocurioso e outro engraçado. Primeiro, vou dizero fato engraçado: durante a viagem, depois deCapivari, estávamos com fome. Eramadrugada. Sei que ele tirou da mochila umsaco de papel todo engordurado e disse que

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trazia ali “bolinhos de chuva” da mamãe. Comoa fome era um tanto forte, caímos com asmãos naquele saquinho cada um pegandoalguns bolinhos de chuva. Vixe! Era um bolinhodanado de ruim. Ninguém conseguiu, apesar dafome, comer além de um. Mas o Milton, essecomia saborosamente aqueles bolinhos frios,engordurados, sem sabor algum. A fome nãonos matou, mas a piada com os bolinhos dechuva de mamãe perduraram durante anos,mesmo quando ele já não viajava mais...pudera... gostava, e como gostava de encherum copo de pinga em qualquer barzinho que agente encontrasse ao longo da estrada.Agora vou dizer do fato curioso. Lá pelos idosdos anos sessenta, para ir à igreja aosdomingos, os homens colocavam suasmelhores roupas, assim como as mulheres.Tanto que existe o termo “roupa dominical”.Eram aquelas roupas mais bonitas, asmelhores que possuímos. Portanto nada maisnatural para o Milton: se ele iria a Pirapora eiria à Igreja, ele não teve dúvidas, colocou suaroupa dominical. Mas o que era essa roupadominical do Milton? Oras, um terno. Isso

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mesmo, o Milton foi daqui até Pirapora usandoterno preto e gravatinha, daquelas tipo marrilse sapatos, que eram as gravatas que estavamna moda. E de sapatos pretos é claro. Não sepermitia o uso de terno sem calçar sapatospretos. Se houve gozação, só quem viveu omomento. Foram dois dias e duas noitesimperdíveis na estrada. Era a gente chegarnum local para comer que, primeiramente oMilton estendia a mão fazendo o gestocaracterístico de quem pede um trago decachaça. Depois quem nos servia, quandovinha trazer a conta, olhava quem estavamelhor vestido e lascava a conta. E o Milton foidurante dois dias assim distinguido em todosos lugares. Podem imaginar naqueles tempos,estradão de terra, areia, sol, calor e o Miltonandando de terno e sapatos pretos?Depois de uns tempos que deixou deperegrinar com a gente, soube que faleceu...Mas seu nome sempre é lembrado por mim epelo Pedrão em todas as peregrinações quefazemos. Os mais novos não acreditam, mas éa mais pura verdade.

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Piracicaba a Pirapora

Piracicaba até Rio das Pedras :12 quilômetrosRio das Pedras até Mombuca :12 quilômetrosMombuca até Capivari :11 quilômetrosCapivari até Samambaia :17 quilômetrosSamambaia até Salto:19 quilômetrosSalto até o Atalho:10 quilômetrosTrecho do Atalho:06 quilômetrosDo atalho até Cabreúva:07 quilômetrosCabreúva até Pirapora:24 quilômetros

Essas distâncias são aproximadas. São maisou menos medidas de saída da cidade àentrada na seguinte. Talvez juntando tudochegue ou mesmo passe dos 120 quilômetros.Não mais do que isso.

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Poesia

Nessa mesma época, 1967/1968, começava abrotar em mim, uma vontade de me fazerentender através da Poesia. Portanto creioque, 1968 é um marco importante na minhavida, pois comecei a fazer minhasperegrinações a Pirapora, e a rabiscar osprimeiros versos.Depois de muito tempo como poeta, em 1989,fiz os primeiros versos falando sobre Romarias.É um poema todo em redondilha maior e comestrofes de seis versos regulares, no esquemarimário aabccb. Esse poema que ireitranscrevê-lo abaixo, também é o poema-títulode meu quarto livro de versos, publicado em1997, quando completei meus trinta anos deperegrinação. Eis o poema e com uma pequenaconsideração: em 1997 quando o publiquei emlivro, esqueci de inserir uma estrofe, que vem aser a 5a. do poema. Apenas notei oesquecimento quando o livro já estava pronto,portanto aqui segue o poema na íntegra:

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Romaria

Início de romariaQue todo o ano principiaCom um materno sermão:

– “Meu filho, tome cuidado,Não fique muito cansado,

Vá sempre junto ao Pedrão!...”

No início é sempre alegria;Um rosto alegre assobia,Um outro, canta feliz...

Se alguém fica reclamandoOuve logo alguém falando:–“Você veio porque quis!...”

Tudo vira brincadeiraPara driblar a canseira

E as bolhas d’água nos pés.As pernas ficam cansadas...

O frio das madrugadasÉ denso e não tem revés.

Para o novato mentimosE às escondidas sorrimos

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Para ele não descobrirA caminhada que falta.

– Se o desespero lhe assaltaComeçamos a sorrir.

A estrada de terra é longa,Se se cansa mais alonga

E parece não ter fim...Sobe morro, desce morro,

Que adiante pedir socorro?Minha mãe olhe por mim.

Rio das Pedras, Mombuca,– O sol queimando na nuca,

Afinal, Capivari!...– “Vamos descansar um pouco?”– “Ai, meu Deus, como fui louco,

Eu vou ficar por aqui...”

– “Fui doido ao sair de casa...Os meus pés estão em brasa...

Esio, Pedrão, só vocêsPodem me ajudar agora...

Samambaia ainda demora?Quantos quilômetros? Três?

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– “Ai, socorro, eu não agüento,Me dói cada movimento,

Não consigo mais andar...Olhem, a Célia não pára...O que foi que ela fez paraAndar e não se cansar?”

– “Estou com fome e com sede,Ai, quem me dera uma rede

E dormir até amanhã.Ai, nada enxergo, estou cego!...Ai, meu Deus, estou no prego,

Loucura, loucura vã!...”

Continua a caminhada...Ressurge outra madrugada

Então vamos é dormir...Ao pé da serra, no Atalho,

É bom ter um agasalhoE todo o corpo cobrir...

Mas quando o dia clareiaNovamente os pés na areia,

Novamente caminhar...

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Cabreúva nos espera,O cansaço se supera,

– Nós não podemos parar! –

E enquanto o sol no horizonteJorra luz de sua fronte,

Mato adentro vamos nós...Pedras fazem o cenárioDeste lindo santuário

Que até perdemos a voz.

Agora não tem mais “truta”,Logo chegamos à Gruta

Que de longe a gente vê...É manhãzinha, faz frio,

– “Olha a neblina no Rio,É o velho Rio Tietê!...”

Agora está tudo perto,E o romeiro segue certo,Pouco falta a caminhar” –

– Trinta quilometrozinhos! –– “Escutem os burburinhos;Todos vêm incentivar!...”

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– “Olhem aquele romeiro,Ás costas leva um madeiro,

Para promessas pagar...Como vai devagarzinho,

Caminha sempre sozinho,Mas caminha sem parar...”

– “Ai, meu Deus, eu fui cobaia,Ainda tem o Tira-Saia?

Eu acho que vou morrer...”No alto da serra o amplo espaço...

– “Ai, acabou meu cansaço,Eu acho que vou correr...”

E o Romeiro apruma a vista,Pois a distância ele avista

Pirapora e Bom Jesus...– Esio, Pedrão, conseguimos!...”

Nós todos então sorrimos,E Pirapora reluz!...

Piracicaba, fevereiro de 1989.

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Bem me recordo que o Milton Mastrodi, que feza Romaria com nossa turma nesse ano edepois no ano de 1994, quando estávamoschegando à Gruta, ele me chamou e teceuesse comentário: “Olhe, Esio, é a sua poesiaque estou vendo aqui”. Isso depois deinúmeras mentiras que eu havia lhe contadopara que sua canseira passasse.Depois em 1999 a inspiração veio novamenteem estrofes regulares de seis versos e emredondinha maior, me fiz poetar, porém invertio esquema rimário (abaccb) e assim ficou opoema:Depois da leitura do mesmo irei tecer algunscomentários a respeito do mesmo que pensoser importantes.

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Os Romeiros

Pomos felizes os passosEm mais uma caminhada.Amigos – damos os braços

E repletos de alegriaSeguimos em romariaÀ Pirapora sonhada.

No início a conversa afia:Todos alegres, contentes...

A subida desafia –Nos impulsiona a descida...

À paisagem coloridaNós seguimos displicentes.

Pedrão, meu bom camarada,D’onde vem força tamanhaQue te faz o rei da estrada?– Segue sempre sorridente,

Sempre pondo os pés à frenteNossas forças mais assanha.

Primeiro, terra batida,

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Logo após asfalto ardente.A estrada se faz comprida:– Subida, descida, morro,

Um pedido de socorro– Descansar de faz urgente!

Rio das Pedras, Mombuca,E o cansaço já aparece...

– “Como fui nesta cumbucaPôr os meus pés atrevidos?”

Eu já os sinto moídos,E o delírio me entorpece!...”

Porém, seguimos em frente:Capivari nos espera...A turma vai sorridente

E eu não desisto por hora...Se a caminhada demora

A canseira se supera.

– “Não posso fugir da raia..."Mas mal amanhece o diaSeguimos a Samambaia

Sob um forte sol que queima.– “A minha vontade teima

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E vence a minha agonia".

– “Minha vontade é mais forteNão vou perder este assalto!"

– “Quase após me ver com a morteMais uma etapa é cumprida".

– “A estrada ficou vencidaE já chegamos a Salto!"

O sol esplêndido douraNuma aleluia de festa.

– Lava-se os pés com salmouraE para cima os estica.Bebemos água da bica

Numa alegria de orquestra.

Às vezes a chuva forteTodo o caminho enlameia,Mas bendizemos a sorte

Da chuva que cai do espaço,E tira o nosso cansaçoE nosso passo meneia.

As árvores fazem sombraE a turma toda descansa.

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As folhas fazem alfombraE a vista embaralha em sono.

– No letárgico abandonoRenovamos a esperança.

A noite toda dormimosNum bom “Hotel das Estrelas!...”

Em devaneios sorrimosE se acaso as vistas pomos

No céu, em grandes assomos,Mil estrelas vamos vê-las!

Se o frio da noite é densoBuscamos achar abrigos,E nessas horas eu penso:

– Se o frio a muitos padece,A nossa amizade aqueceE nos torna mais amigos.

Festivo o dia amanheceE nós na alegria imensaFazemos a nossa precePara nova caminhada.No reinício da jornada

Firmamos a nossa crença!

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Lindo atalho é nossa metaE na beleza da serra

Eu me sinto mais poeta.E Japi bela e altaneira

Parece imensa bandeiraTremulando sobre a Terra.

É o Atalho! com passadasPrecisas nós caminhamos –Com as vistas extasiadas

Este Altar da NaturezaExibe sua beleza

Em todos os seus recamos!

Vestígios da virgem mataÉ esta Flora brasileira.

Veios d’água cor de prataEscorrem por entre as fendas,

E a beleza das fazendasFaz passar nossa canseira.

Pedras fazem o cenárioQue se torna majestoso.Parece imenso Templário

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Onde Deus OnipotenteFaz a vida ficar crenteDo mundo maravilhoso!

Aves multicoloridasFazem um balé aéreo,

No chão as ramas floridasExalam suave essência

– Que inaprendida ciênciaExorta tanto mistério?

Numa estreitíssima trilhaPisamos os nossos passos.

O sol causticante brilhaPor entre as nuvens suspensas,

As nossas almas em crençasSe abraçam a esses espaços!

Eis-nos ao alto da serra!E a visão se contagia.Neste pedaço de terra

A inspiração logo acusaO nascimento da Musa

Que declama uma Poesia.

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A vista corre o Infinito:Com meus olhos tudo rondo.

Até que um mágico ritoEm meus ouvidos clangora

E o Tietê revigoraCom as águas num forte estrondo.

Estrada aquática! estradaOnde sonhos fulgurantesDe uma época já passadaFez os sonhos pioneirosDos ousados Brasileiros,

Dos ousados Bandeirantes!

Parece que o rio exalaEm suas águas barrentasDos Bandeirantes a fala

Em busca de áureas conquistas.– Todos buscando com as vistas

Pedras e minas sangrentas!

Velho tronco a mim pareceUma piroga esquecida.

Cada murmúrio é uma preceDe um ousado bandeirante

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Buscando febricitanteA glória desconhecida!

Esses ousados guerreirosSeguindo o rio por dentro

Sonhavam sempre altaneirosAlcançar – num sonho ousado

Algum distante EldoradoE do Brasil – o seu Centro!

À sua margem estamosMas a paisagem deplora...Se de longe seus recamosParecem hinos de glória,

Ai, de perto toda a históriaPoluída e triste – chora.

O velho e altaneiro rioCom destino largo e incerto,

Procura em seu desafioMostrar que inda é rude e forte,Mas mostra em panes de morteQue é um esgoto a céu aberto.

Numa ambição mais profana

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Da lei divina e sagrada,Na cobiça soberana

O Homem – no sonho profundo,Pôs morte à glória do mundo

D’uma forma deplorada.

– “Pedrão, meu sincero amigo,Nós, há décadas passadasPor este caminho antigoVíamos outra paisagem,

Que hoje parece miragemÀs nossas vistas cansadas.

– “O velho Tietê outroraDos rumos – era o primeiro,Mas hoje, magoado choraNa mais profana agonia,Por isso agora a PoesiaDe restilo traz o cheiro."

Porém, a estrada margeadaPela formosa floresta

Põe nossa vista encantadaEm matizes de mil cores...

Exalam frescos amores

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Toda a paisagem de festa.

Na matinal alegriaSeguimos a caminhada.

A algazarra contagiaNossa turma de romeiros,

Que caminham sobranceirosNessa constante jornada.

Cabreúva é logo à frente,Seis quilómetros distante!A gente segue contentePorém, à canseira bruta

Nós vamos parar na grutaQue é outra visão deslumbrante!

Um conjunto bem montadoPela sábia natureza:

Com o coração encantadoTal construção eu contemplo;

Parece sagrado TemploNo resplendor de beleza.

São várias pedras unidasPelo Divino Arquiteto

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Em épocas já vividas;Quando um dia, em Dom profundo,

Estava a criar o mundoFez inspirado projeto!

A Cabreúva nós vamos,O cansaço se supera!

Já não se ouvem mais reclamosNem atos de desistência.Vale a nossa persistência,

Vale o apoio da galera!

A pequenina cidadeLembra um recanto encantado.

A nossa felicidadeTrazemos no rosto expostaE temos pronta a resposta:

– “Eu sequer estou cansado!"

Se nos pés há bolhas d'águaA gente pouco se importa.

Nossa força não tem mágoaE ninguém se mostra triste.

Nossa vontade persisteE jamais se mostra morta!

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Dormimos em plena praçaNum pequenino coreto.Uma galera faz graça

A todo e qualquer motivo.– Poeta me sei ativo,

Compondo mais um soneto.

A noite passa. Amanhece.D. Maria, querida,

À nossa turma ofereceUm cafezinho bem quente.E a gente toma-o contenteQue é um elixir na partida!

Agora é o último trechoAté chegar Pirapora.

O tênis é um apetrechoQue pode ser dispensado.

Com o chinelo calçadoPartimos sem mais demora.

O ânimo volta com tudoE a brincadeira começa.

Ninguém mais caminha mudo

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E a alegria a tudo infesta.No meio de tanta festa

Nós caminhamos sem pressa!...

À beira da velha estradaQue de curvas serpenteia,Uma cascata encantada

Convida a toda a um banho.E a turma – como um rebanho

Molhada se devaneia.

O Miguel de carro passaE cruza a nossa passagem.Pára, brinca e num abraço,

Deseja felicidadePorém, já sente saudade,

De sua finda viagem.

Chega o Laércio Moretti(Artista que fiz romeiro.)Todo orgulhoso prometeQue vai me dar uma tela,

Bem sei, porém que é balela,Pois diz isso o ano inteiro...

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Nós chegamos ao distritoQue Bananal é chamado.Singelo, simples, bonito,Já foi "Japonês" um dia,– Um recanto de alegria

Mas ninguém se vê cansado.

Agora se abre o cenárioEm dezenas de montanhas.

Belo é nosso itinerário;E são tantas, tantas curvas,

Que as vistas se tornam turvas,Embaralhadas, estranhas.

Mas firmes são nossos passosNosso lema é Pirapora!

O verde colore os espaçosEm todos os seus matizes.– Nós caminhamos felizes

Em busca de nossa Aurora!

Subida, longa descida,E a gente num transe segue.

Descida, longa subida,Nada nosso ânimo trava.

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A gente tem a alma escravaQuando um ideal persegue!

Com Pedrão os passos sigoFazendo um passo marcado.

O carinho é tão antigoQue a um olhar nos entendemos.

Somos barco e somos remosJá de distante passado.

Todos na mesma cadênciaVamos seguindo – uns à frente

Vão numa cega obediênciaE vigiamos os passos

De quem quer voar espaços,De quem quer ser diferente.

Os filhos vão aninhadosPois se sentem protegidos.

Ouvem os "causos" contadosNo arrolar de nossa históriaQue é toda feita de glória

E de carinhos vividos.

Passa alguém e nos saúda:

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–“A todos boa viagem!Ninguém precisa de ajuda,

Quem quer seguir de carona?..."– Nossa alma, da estrada dona

Brinca e faz camaradagem.

Novamente um'outra bicaE todos, num alvoroço,

Bebem a água pura e ricaQue desce pela montanha,Um ou outro, ali se banha

Pois quer esperar pelo almoço.

E o mesmo pouco demora,O Cícero logo chega

E a gente tanto o adoraQue faz uma festa imensa,

E ele como recompensaNos serve um arroz à grega!

A Célia e o Sérgio a distânciaEspoucam o céu de tiros.Nós esperamos em ânsia

Esta sincera amizadeQue é feita toda bondade

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Dos mais longínquos retiros.

Porém, a turma os espera,Numa inaudita alegria.– Sorrisos de primavera

Invadem os nossos sonhos,E nós em poses, risonhos,

Tiramos fotografia.

É que o Cícero desejaEternizar tal instante.Sua máquina maneja

Com rapidez e destreza.Sua vista firme, tesa,

Põe flachs em cada flagrante.

Descansamos mais um poucoE a viagem reinicia.

O nosso desejo loucoÉ chegar ao Tira-saia,

E nossa vista se espraiaNuma sincera alegria.

E o Tira-saia apareceApós cruzarmos a ponte.

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– O corpo já não padeceE o passo é firme e preciso.

– Com certeza o paraísoTem este belo horizonte!

Passo a passo na subidaE o Tira-Saia vencemos!Apogeu de nossa vida

E estamos no alto da serra:Por pedestal – eis a Terra!Pisamos os seus extremos!

É montanha após montanhaE o Tietê mais parece

A longa serpente estranhaA cordear lerdo, vago,

Sendo invisível o estragoQue silencioso padece...

Mas numa lareira imensa– Como um presépio incrustado –

Motivo de nossa crença,E Pirapora aparece –A distância se parece

Um paraíso encantado.

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Ladeira abaixo nós vamosA serpentear a estrada.

Fazemos nossos recamosNuma festa de alegria...

Folia, imensa folia,A jornada está acabada!

Atravessamos a ponteOnde o Rio vaga morto.O sol brilha no horizonte

E um cheiro acre, podre, azedo,Que chega a causar-nos medo,O nosso olhar deixa absorto.

É profanada a paisagemE a cidade é prostituída.

As indústrias assim agem:Do Tietê a água tiram

Porque depois nele atiramA podridão sem medida.

Por uma ruazinha estreitaE então chegamos ao TemploBelo, imponente, que é feito

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Em cada um de seus tijolosParte de nossos consolos

Que presos à Fé contemplo!

Pedrão, amigo querido,Contigo foi no passado

Que o louco sonho atrevidoDe uma sincera criança,

De olhos cheios de esperançaPôde ser realizado.

Agora nós dois já velhos,Após tantas caminhadas,Temos nossos Evangelhos

Dentro da fé Nazarena;É ela que nos acena

Em nossas firmes passadas.

Eis nos em frente da IgrejaE nós dois emocionados,Que mais a gente deseja?

Que o Bom Jesus nos consagreÀ nossa fé - um milagre:

Nossos sonhos realizados.

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Que assim, no próximo ano,Presos à luz da Poesia,

Tenhamos o mesmo planoQue o nosso peito clangora:

Vir de novo a PiraporaEm mais uma Romaria!

28.09.99

Um período de quatro décadas foi o suficientepara que eu notasse as mudanças de clima ede paisagem. Se no início quase todos os anoso tempo tendia mais para o frio intenso nasnoites e nas madrugadas, depois de 1980 amudança foi brusca. Levamos hoje cobertas eblusas mas quase sempre ficam no fundo dasnossas mochilas.O rio Tietê sim, mostra as marcas profundas doprogresso. A poluição está em toda a suaextensão e suas margens. Flocos de espumadensos bóiam sobre suas águas, milhares emilhares de garrafas plásticas em algunslocais cobrem sua superfície.

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Na serra do Japi a devastação também se faznotar em muitos trechos. As pedras que faziamum cenário colossal foram quebradas poroperários. Ano após ano vamos vendo que elasse fazem raras em muitos locais. Às vezeschega a nos dar vontade de chorar, mas oprogresso e a devastação do meio ambientesão notórios. Este poema enfim além de narrar a sagados peregrinos, também serve como um gritode alerta. Se nada for feito num futuro breve,as paisagens serão desoladoras. Tanto o Tietê,como a serra do Japi e outras localidades,estarão irremediavelmente comprometidas.

Carregar Cruz

Carregar uma cruz de Piracicaba até Pirapora,nos ombros, não é fácil. É difícil, muito difícil,mas não impossível. Sei que é preciso ter umpouco de paciência (aliás, muita paciência)coragem, fôlego, algum treinamento físico, edisponibilidade, para ficar alguns dias andandopelas estradas. Se o percurso a pé pode serfeito em dois dias e duas noites, já com cruz

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nas costas o mesmo percurso demora umpouco mais. Isso também depende do tamanhoda cruz e seu peso. Tem pessoas que ficam até30 dias pelos caminhos, o que acho umexagero. No máximo 10 dias e o romeiropagador de promessa consegue, quase quesem transtornos, atingir seu objetivo.No ano de 1980, decidi que levaria uma cruz àscostas de Piracicaba até Pirapora. Tinha váriosamigos que já haviam percorrido o trecholevando cruz. Fui primeiro falar com o RodolfoSalvaia e o Kiko. Eles me incentivaram,dizendo que eu conseguiria, sim, também levarminha cruz até Pirapora. Peregrino, esperto, jáhavia feito doze vezes a caminhada, escolhi amadeira: 5 metros de vigota por três para atrave. Muitas pessoas que viram a cruz diziamque eu não chegaria até Rio das Pedras. Eutinha certeza que conseguiria atingir meuobjetivo. Conversei com o Tone dos Santos, eletambém iria levar uma cruz até Pirapora.Decidimos que faríamos juntos a caminhada.Marcamos a saída para o dia 29 de março de1980, um sábado logo após o almoço. Sei que àhora marcada ele apareceu em casa e eu

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também já estava esperando-o Houve umaaglomeração imediata, mas, pouco nósficamos ali. Decidimos partir logo, logo. Aíentão foi o desespero. A cruz devia pesar pertode 70 quilos e ao colocá-la nos ombros e dar osprimeiros passos, quase fiquei sem fôlego.Senti que as pernas dobravam, e puxar a cruzera muito, muito difícil mesmo. Andamos trêsquadras, e na esquina da rua Moraes Barrosmeu corpo estava todo empapado de suor.Quando chegamos em frente ao Cemitériopensei seriamente na loucura que estavafazendo e por pouco não larguei a cruz alimesmo, mas como poderia desistir assim tãofácil e tão sem ao menos tentar mais umpouco? Oras, a caminhada era de 120km. e euestava querendo parar antes mesmo doprimeiro quilômetro?Descemos a avenida Piracicamirim, que estavasendo toda reformulada, portanto cheia deterra e poeira. O calor estava imenso.Suávamos em bica. Eu olhava para o Tone evia-o arfar, estava pálido. Creio que ele meolhava e via um fantasma. Atingimos a avenidaRio das Pedras e iniciamos de fato nossa

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caminhada. Era andar cinquenta metros e daruma parada para pegar fôlego. Cada parada umlitro de água garganta abaixo. Paramos numbarzinho e compramos algumas garrafas deágua, pois as que tínhamos levado já estavamvazias. Amarramos as mesmas nas nossascruzes e partimos. Era um tal de parar, beberágua, descansar, parar novamente. Comentárioalgum nós fazíamos. Passamos pelo bairroRolador, depois chegamos a uma subida ondeficava a Cidade dos Esportes, do XV deNovembro, que não vingou. Creio que já erammais de quatro horas da tarde. Chegamos nobairro do Taquaral e enchemos na bica todasas nossas garrafas que já estavam vazias.Continuamos. Perto das seis horas jáestávamos a cinco quilômetros de Rio dasPedras.Havíamos andado bem. O duro era o arrastarsilencioso de nossas cruzes sobre o chão todoacidentado. Anoiteceu e ainda estávamos naestrada. Fome, sede, solidão, vontade dechorar. A noite estava iluminada por estrelas epela lua que dias mais estaria toda cheia nocéu. Andamos mais um pouco. Agora ventava

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forte. O corpo todo suado e o vento frio. Pertodas nove da noite chegamos em Rio dasPedras. Era um poste e uma parada parafôlego; outro poste e, outra parada. Estava eua menos de duzentos metros de um barzinho enão conseguia chegar antes de quinzeminutos. Nisso vejo o Moisés, o Tecão, o Lilo eo Paulo que vêm se encontrar comigo, dizendopara eu ter força. Afinal cheguei em frente aobar. Desabei no chão. Estava com fome, muita,muita fome e mais sede ainda. Bebi creio quedois litros de água. Fui comer. Estavaarrebentado.Aí o Moisés perguntou como eu tava e eu disseque tava uma loucura. Que a cada cinqüentametros eu parava para respirar. Então ele medisse que eu tava muito bem, pois ele andavavinte metros e parava para respirar. Aí meuânimo voltou um pouco. Olhei para a cruz delee era maior do que a minha, devia ter setemetros de comprimento.Animado, muito animado mesmo eu disse:vamos dormir aqui e amanhã saímos juntos. Seele para a cada vinte metros, vou descansarmais ainda.

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Mas ele me pôs um balde de água fria. Nadadisso. Vamos sair à meia-noite, assim amanhãcedo estaremos em Mombuca.Ai, minha vontade era esticar o cobertor edormir uns três dias. Mas não houve mesmojeito. Meia-noite e pusemos nossas tralhasamarradas na cruz, ela em nossos ombros epartimos. Foi bom, pois a cruz dele maispesada exigia maior esforço de sua parte e euia levando a minha numa boa. Andamos unsdois quilômetros e paramos na bica para beberágua, encher nossas garrafas e descansar umpouco. Perto de uma da manhã partimosnovamente. Andamos mais uns cincoquilômetros e paramos novamente paradescansar.Aí o cansaço bateu fundo em todos. Eram maisou menos umas quatro horas da manhã. Fomosnos amoitando, esticando as cobertas e empouco mais todos dormiam profundamente...Acordei assustado com a velocidade de umcaminhão que passou fazendo enorme barulho.Mais assustado ainda fiquei quando percebique dormia no acostamento e o travesseiro erao degrauzinho que havia entre a terra do

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acostamento e o asfalto. Nossas cabeçastodas estavam no asfalto e corpo noacostamento. O susto foi geral. Levantamos.Não eram sete horas ainda. Mais cansados doque quando nos deitamos, pusemos as cruznas costas e partimos. O sol já estava forte.Muito forte. Estávamos todos em jejum.Apenas a água tirava nossa sede.Andamos um pouco e paramos para descansar.Quem vai levando uma cruz nos ombros sabeque o descanso é fundamental. Anda-se umpouco e descansa-se muito, mas por mais quese descanse nunca é suficiente o tempo derepouso. Basta colocar a cruz nos ombros e opeso dela incomoda muito e as pernas dãopassos dobrando os joelhos.Aí o Moisés, que me disse que andava vintemetros e parava, desembestou pela estrada...andava, andava, andava e não parava... eu ochamei e disse sobre ele parar a cada vintemetros e ele me disse que quando se sentiabem não parava de andar.O fiadaputa me enganou. Eu agora queria eraparar a cada dez metros, mas para não deixá-lodistanciar muito, tentei ir no ritmo dele. Quase

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morria de sono, de cansaço, e o suorempapando o corpo. A fome era já um casomais sério ainda.Perto do meio-dia chegamos em Mombuca. Ocalor arrebentava os miolos. Paramos numbarzinho, descansamos mais de uma hora,depois fomos almoçar.Depois do almoço um morador da cidade nosofereceu um galpão para a gente dormir. Foisopa no mel. No silêncio, dentro do barracão,estendemos nossas cobertas e dormimospesadamente até uma cinco da tarde.Decidimos partir para Capivari. Arrumamos ascoisas, cruz nas costas e partimos... A noiteestava estrelada e enluarada. Estava gostosocaminhar. A cruz já não incomodava tanto. Otrecho foi feito sem resmungos de ninguém.Andávamos, parávamos um pouco,cantávamos, ríamos. Não demorou muito, pertodas dez da noite chegamos em Capivari. Apraça estava apinhada de gente ainda. Foi agente encostar nossas cruzes nos postes eformou logo uma roda de gente que veio falarcom gente. Era estranho, até, mas demosatenção a todos. Logo o movimento diminuiu,

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depois fomos no restaurante do Galo.Comemos um lanche reforçado e esticamosnossas cobertas no jardim central da cidade.Dormimos todos como uns anjos.Acordamos na manhã de segunda-feira. Erammais ou menos sete da manhã. Compramospão com mortadela e um pacote de margarinae água. Não muita, pois uns três quilômetros àfrente havia um restaurante onde poderíamoscomprar mais água.Chegamos nesse restaurante que fica naestrada que vai de Tietê a Campinas.Cruzamos a estrada e chegamos aorestaurante. O Moisés queria porque queriatomar caracu com ovo. Tomou. Ficou comsono. Deitamos no acostamento da estrada eele dormiu mais de duas horas. Comoestávamos juntos, ninguém arredou pé. Depoisele acordou disposto. Azar o nosso.Ele colocou a cruz nas costas e andou, andou,andou, andou... era subida, descida, e nós oacompanhávamos... estávamos todos bem,firmes e decididos. Quando foi mais ou menosumas duas da tarde paramos na sombra deuma árvore. Comemos pão com mortadela e

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água. O pão estava seco e a gente olambuzava de manteiga para umedecê-lo umpouco e assim com a saliva a gente engoliamais fácil. O sol estava muito, muito fortemesmo.Descansamos até umas quatro horas da tardee partimos novamente. Estávamos a uns oitoquilômetros de Samambaia. A água estava nofim, por isso necessário se fazia chegar logono local para descanso. Depois que passamosum local onde existe uma enorme cruzenterrada no chão, tem uma descida longa,muito longa e cheia de pedras. Dos dois ladosda estrada, desde Capivari, somente canavial,portanto sombra alguma. Quando chegamosperto de Samambaia a água já não existiamais. Vimos umas luzes e umas jovensconversando.Elas estavam mesmo era vendo a gentecaminhar, já que a noite estava clara pela lua.Paramos e pedimos água. Uma delas entrou, ecerca de uns trinta metros começou a tirarágua do poço. Logo voltou com um caldeirãocheio de água fresquinha. A caneca que elanos ofereceu era grande, portanto eu bebia a

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água e parte dela me escorria pelo peito. Achoque foi a água mais deliciosa que bebi atéhoje. Esvaziamos o caldeirão que ela nostrouxe. Mais um quilômetro e chegamos aSamambaia. Eta subida de lascar. Forte,tortuosa, cansativa. Parece que Samambaiafica se escondendo da gente, mas de repente,o barzinho do senhor Ricieri aparece e ele,mesma cara de sempre, nos dá boa noite,pergunta como estamos e se vamos jantar.Claro, a fome que sentimos era de leão!Suas filhas nos preparam arroz, feijão, bife,salada de tomate, batatas e ovos fritos.Devoramos com furor. Depois ficamosconversando. Banho mesmo nada de nada.Perto das onze da noite vamos dormir.Acoitamos no chão mesmo do casarão e antesde dormir o Moisés diz que vamos partir duasda manhã. Eu quero morrer! Andar o dia inteiro,descansar somente três horas? Mas estoujunto e novamente xingo-o amistosamente.Perto das duas horas da manhã, acordo. Minhagarganta está seca, seca, seca. Seu Ricieriainda está acordado, servindo mais romeirosque chegam. Eu olho nossa turma toda

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dormindo. Compro uma garrafa de dois litrosde água, bebo-a quase inteira e volto para meucantinho dormir. Se alguém disse que íamossair as duas da manhã, esse alguém era oMoisés. Portanto que ele acordasse e a nóstodos. Eu não iria fazer isso. Estava cansado ecom sono. O Tecão teve até febre durante odia. Dei-lhe magnopyrol. Ele abriu a boca, eudei três esguichadas do remédio e ele tomouum copo de água. Transpirava muito, mas nãotinha mais febre.Quietinho, quietinho e fui para meu lugar e medeitei, esperando o Moisés acordar a todos.Eram duas e meia da manhã. Mas ele tambémestava cansado. Sei que acordamos sete damanhã. Ele estava bravo por ter dormido anoite toda e ninguém acordou para quefôssemos dali. Eu disse que havia acordado,mas ele dormia tão gostoso que fiquei com dóde acordá-lo.Ele me xingou. Eu ri.Pusemos nossas coisas amarradas na cruz, elaàs costas, e saímos. Era terça-feira. Nossodestino agora era Salto. O sol para variarcausticava. O saco de pão com mortadela e

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manteiga o Paulo levava. Além das garrafas deágua, que não podiam faltar mesmo.Fomos andando, andando, e há uns setequilômetros existia um ribeirão de águaslímpidas. Corria entre a mata. Sem dúvidastiramos as roupas e caímos nele. Todospelados claro. A estrada de terra tinha pouco,bem pouco movimento. Mesmo que passassealguém a gente pouco se importaria. Sei queparecíamos crianças brincando na água. Alinos divertimos bons momentos. Depoispusemos as roupas, e mais adiante tem afazenda Pinheirinho, onde ainda hoje tem beloseucaliptos e enormes paineiras, sempre cheiasde flores nessa época do ano. Ali chegamosmais de meio-dia. Comemos pão commortadela azeitada com manteiga.Depois dormimos na gostosa sombra. Pertodas quatro horas da tarde saímos novamentepara andar. Enchemos antes nossas garrafasde água no poço. Faltavam apenas setequilômetros para Salto. Uns setecentos metrosadiante e cruzamos a rodovia do Açúcar. Aliparamos novamente. Queríamos coca-cola.Como? Somente um milagre. E foi o que

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aconteceu. Nesse momento passa um carro napista e pára em seguida. Desce um moço. Ei,Esio, o que você está fazendo aqui? Era umcolega de profissão. Nessa época eu eraviajante, vendedor e uns dias antes estavanum supermercado em Limeira e eu dizia queiria levar uma cruz até Pirapora. Esse rapaz,que hoje não me lembro o nome, estava junto eduvidou que de fato fosse fazer aquilo. Masagora ele via não só a mim, mas algunsamigos, fazendo a peregrinação. Sei que dissea ele que queríamos tomar coca-cola. Eleentrou no carro, foi até Salto e vinte minutosdepois voltava com duas garrafas de coca-colalitro. Foi uma delicia. Ele ficou mais um tempoconversando com a gente e como começava aescurecer, foi embora. Nós, agora quetínhamos tomado coca-cola, estávamos nopique total. Nos pusemos novamente emmarcha. Salto nos esperava. Andávamosrápido. Quando chegamos na subida queantecipa a cidade de Salto, o luar impregnavao céu. Também os pernilongos. Em bandosteimavam em nos picar. E mesmo com calçascompridas e meias cobrindo as canelas, os

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mesmos atingiam nossas peles. E passerepelente...Mas de repente Salto se vislumbrava à nossafrente. Ufa! Mais uns dois quilômetros porlonga descida. Oito e meia da noite paramosno primeiro bar da cidade, que tem umatabuleta com as seguintes inscrições: paraquem entra na cidade, Bar do Primeiro Gole.Para quem sai da cidade, Bar do Último Gole.Ali paramos um pouco, comemos paçoquinha,tomamos mais coca-cola e fomos para o centroda cidade, quase saída para o Atalho no diaseguinte. Bem, dormimos todos na praça daconcha acústica, em frente à ponte do rioTietê. Comemos um lanche reforçado numalanchonete e empacotamos todos atrás daconcha. Amanheceu quarta-feira. Logo demanhã tomamos café num barzinho e partimospara o Atalho. Apenas dez quilômetros. Foi aíque a coisa pegou. Não sei como, mas minhascostas começaram a doer. Ardia forte. Andavaum pouco e precisava parar para descansar.Quanto mais tentava andar, mais doía. Eu nãoconseguia colocar a cruz no ombro direito.Queimava tudo. Fui andando. Lentamente. A

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turma diminuía o passo para que euacompanhasse. Em vão. Sei que ao meio-diachegamos ao pé do Atalho. Estávamos comfome. O seu José, que morava na casa ao pédo Atalho, veio nos encontrar. Éramos jáamigos de longa data. Ele disse se queríamoscomida. Nossa, era tudo naquele momento.Depois de meia hora ele nos traz numa panelauns pedaços de pato frito e arroz. Foi umbanquete. Descansamos um pouco, mas emmim a dor era intensa. Eu pensava desistir.Não conseguia mais andar. Muito menoscolocar a cruz nas costas. Mas tentei mais umpouco. Subimos a primeira parte do Atalho,cerca de dois quilômetros. Eu ia ficando paratrás. Quando chegamos na igrejinha existente,todos me esperavam. Eu cheguei bufando.Paramos um pouco e eu disse que ia ficar porali, passar mesmo a noite na igrejinha. Outrosromeiros se achegavam a nós. Sei queninguém queria que eu ficasse ali sozinho.Também não podiam ficar ali comigo. Eu bati opé e disse que não ia mais andar. Iriaabandonar minha cruz ali. O Moisés disse queera chato isso, que estávamos juntos. O Paulo

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disse para me animar que ali era um lugarbonito para deixar a cruz. Comecei a chorar.De dor. De raiva. De ódio.Havia enfim caminhado quase cem quilômetrose a menos de trinta iria desistir. Mas não haviajeito mesmo.Nisso chegou a Margarida Lopes, que emPiracicaba trabalhava com enxovais e vestidosde noiva. Irmã de um amigo meu. Ao me vernaquele estado perguntou o que estavaacontecendo e eu lhe disse. Ela pediu para verminhas costas. Ergui a camiseta e ela disse:nossa, está tudo fora de lugar. Tem umcalombo aqui. Posso ajudar você?Oras, eu tava era é morto. O máximo que elapoderia fazer era me enterrar.Claro que pode, falei, faça o que quiser, depoiscubra bem com terra para não feder! Foi sórisada.Ela mandou eu me deitar no chão da igrejinha.Sei que os amigos limparam o chão para eu medeitar. Nem precisava. Eu tava morto. Ela faloupara eu ficar de bruços. Obedeci gemendo.

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Ela começou a fazer umas massagens e euouvia uns barulhos. De repente senti algumacoisa se encaixando dentro de mim. Não seiaté hoje, mas eu dei um pulo, saí da igrejinha,coloquei minha cruz às costas e saí quase quecorrendo pelo mato. Não doía nada. Eu estavanovo em folha. Ninguém acreditou que elahouvesse me curado. Mas sei que fui andandoaté chegar na fazenda Pedra Azul. Ali achei umpé de carambolas e chupei mais de dez. estavasozinho e feliz. Os outros meus amigos vieramme encontrar e não acreditavam no que aMargarida havia feito comigo. Mas eu era aprova que ela tinha feito alguma coisa em mim.E das boas.Andamos o Atalho todo e chegamos aodescidão, na Garganta de Lobo, onde a descidaé íngreme, e a mata totalmente fechada. Nessemomento me encontrei com o Mirinho, quetambém estava levando cruz. Estava ele e oDinhão. Cruzes pesadas. O Mirinho naquelemeio de mato me oferece café. Era tudo o queeu queria naquele momento. Mas ele tira dobolso alguns grãos de café e me oferece dandogostosa risada. Xinguei e ri ao mesmo tempo.

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Descemos com nossas cruzes não sei até hojecomo, mas quando demos pelo sentido dascoisas, estávamos no asfalto todos.

Anoitecia.

Paramos na Gruta e comemos nasbarraquinhas ali existentes. Eram mais de dezhoras da noite quando o Moisés queria dormir.Aí eu é que não queria dormir. Queria, sim,chegar em Cabreúva naquela mesma noite.Eu com o Paulo decidimos ir. Eles queriamficar. Sorte que começou a chover e ficar nachuva e no relento ia ser difícil. Fomos pararem Cabreúva.Chovia forte. Muito forte.Andamos firmes. Perto da meia-noitechegamos na entrada da cidade. Agora poderiadormir até ao meio-dia da quinta-feira. E foi oque fizemos. Eu com o Paulo arrumamos umlugar para dormir bem na entrada da CaixaEconômica. Os outros ficaram no coretomesmo.Acordamos depois das oito da manhã. Estavanublado o dia. Durante a noite creio que

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choveu muito, mas dormimos pesadamente.Fomos para a Praça Central que é bempequena. Em frente fica a Matriz. Logo osoutros amigos chegaram também. Ficamostodos conversando.Meus amigos que vinham a pé somente,começaram a chegar em Cabreúva: Pedrão oIvan, Ninhão e outros mais. Todos queriamsabem como era carregar uma cruz dePiracicaba até Pirapora. Eu me mostrava estarbem. Não tinha bolhas nos pés, nem maisdoíam minhas costas. Conversamos um poucoe eles logo partiram para chegar em Piraporanaquela mesma tarde. Nosso destino era outro.Iríamos sair de Cabreúva somente meio-dia echegar em Pirapora na sexta-feira de manhãsomente.Almoçamos antes da onze da manhã,descansamos mais um pouco e na horaprevista, meio-dia pusemos nossas cruzes nascostas e partimos para os últimos vinte equatro quilômetros. O tráfego na estrada eraimenso. Muitos carros e muitos peregrinos.Antes de chegarmos no Japonês, a chuva caiuforte. Muito forte. Nisso ouço barulho de rojão.

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Era a caravana do Cícero que todos os anos vailevar almoço para os romeiros na Bica. Esteano eu não iria aproveitar o delicioso almoço.Estava longe do local. Mas quem conheceubem o Cícero, bem sabia do que ele era capaz:sob forte aguaceiro desceu do carro e tirouuma foto, onde apareço eu, o Moises, o Tecao,o Paulo e o Gafanhoto. Depois ainda a Céliadesce do carro e me oferece uma coxa defrango. Estava deliciosa. Ficamos ali sob achuva e quando tentei andar pisei numa poçade óleo e capotei. A cruz caiu sobre meucorpo. Mas por pura sorte nada me aconteceu.Levantei de pronto, mais assustado do quequalquer coisa.Andamos mais um pouco e paramos todos,numa cancha de bocha para esperar a chuvaparar. Eram mais ou menos umas três horas datarde.Aproveitamos para ir ao supermercadoexistente em frente e comemos muitochocolate, doce, e coca-cola. Anoitecia e achuva não parava.Perto da meia-noite sob chuva ainda maisintensa, resolvemos partir. Não havia mais o

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que e porque esperar. Mais um poucoamanheceria sexta-feira e o melhor a se fazerera andar. E falavam ainda dezoitoquilômetros! Foi o que fizemos. A chuvaalagava a pista de um lado a outro. A cruzescorregando no asfalto molhado deslizava ejá parecia não ter peso. O cansaço inexistia.Quando chegamos à Bica, faltavam onzequilômetros para o nosso destino final, eramperto de três horas da manhã. Chovia muitoforte. Junto de nós ia um grupo com mais detrinta peregrinos, todos de Itu, cidade distantemenos de 40 quilômetros. Portanto havia ogrupo andado talvez uns 30 quilômetros, nãomais. Nisso pára um caminhão e todos sobemna carroceria do mesmo. Eu indaguei:De onde vocês são?Disseram que de Itu.E eu falei:Puxa vida, faz uma semana que estou naestrada carregando essa cruz e pretendochegar lá ainda hoje de manhã. Vocês a péandando apenas, mais duas horas e estarão lá.Não acham que é uma vergonha pegaremcarona estando já tão perto?

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Sei que um a um foram descendo todos dacarroceria do caminhão. Disseram que eu tinhamesmo razão e que iriam seguir a pé comigo.Sei que fiquei emocionado. Era um grupoimenso que não conhecia, mas andamos juntosmais de dois quilômetros. Depois elespercebendo que podiam andar mais rápido doque eu, disseram que iriam me esperar emPirapora...Eram quase cinco horas da manhã quandocheguei no pé do Tira-Saia. A íngreme subidacom mais de dois quilômetros. Foi aí queencontrei o Carlinhos, conhecido meu dePiracicaba, que também estava levando cruz.Fazia frio, mas ele estava descalço. Eu detênis e meia, certo que todo molhado e eledescalço...Subimos conversando todo o morrodo Tira-Saia. Eram quase sete horas eavistamos Pirapora. A emoção era forte. Nessemomento eu estava adiante dos meuscompanheiros. Falei para o Carlinhos que iriaesperá-los, pois somente com eles eu iriaentrar na cidade. Ele achou certo e tambémdisse que ia entrar com a gente.

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Eram mais ou menos oito e meia quandochegaram o Moisés, o Lilo, o Tone, o Tecão e oPaulo. Ficamos juntos contemplando a cidade.Chovia finamente, quase uma garoa.Decidimos que íamos descer os doisquilômetros e entrar na cidade. Fizemos umcomboio de cruzes e nessa fila fomosseguindo. Outros romeiros foram engrossandonossa fila, os romeiros que desceram docaminhão vieram se encontrar comigo.Entramos na cidade e éramos mais de cempessoas. Todos emocionados. Como porencanto a garoa parou, o céu abriu uma frinchae o sol brilhou forte, talvez para saudaraqueles peregrinos que terminavam suascaminhadas. Em frente à Igreja a emoçãotomou conta de todos. Eram abraços, beijos echoro convulsivo.Tínhamos terminado nossa caminhada enossas cruzes encarrilhadas duas a duas,tomavam toda a frente da Igreja. Nosso grupoentrou de mãos dadas na Igreja e aos pés daImagem do Bom Jesus de Pirapora, todosagradecemos pela viagem e pelos pedidosfeitos.

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Depois ainda em frente à Igreja recebíamos osparabéns das pessoas, mas isso pouco nosimportava, importava sim, que havíamoscaminhado sozinhos por 120 quilômetros emestradas de asfalto, terra, trilhas e florestascom nossas cruzes nas costas, e ali estávamoscúmplices de nossos sonhos e de nossospedidos.Logo chegou uma caminhonete, que era doirmão do Tecão, todos subimos nela e viemosem viagem de volta para Piracicaba.Foi assim que levei minha primeira cruz emPirapora.Em 1981 eu deveria levar minha segunda cruze, a ânsia vivida dois dias antes, valeu por todaa viagem.Eis como ela aconteceu.

1981

Era início de março e eu já havia combinadocom o Lilo, o Reinaldo e o Sapo, que iríamosjuntos para Pirapora, levando cruz. O Edson,mais conhecido como Sapo, iria com a gentedando apoio, no que ele foi de fundamental

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importância e se demonstrou o grande amigoque era e ainda é.Fizemos eu e o Lilo as nossas cruzes juntos. OEdson foi à minha casa ver como seria a cruzque eu iria levar e ficou ansioso para que o diadez de abril chegasse logo.Eu também sonhava com o dia dez de abril...Mas ainda estávamos em meados de março.Foi nesses dias que recebi um convite de umamigo meu vendedor, para ir fazer umaentrevista na Empresa Moinho Santista SAIndústrias Reunidas. Sei que peguei o ônibus efui a São Paulo. Lá conversei com o SenhorEdgar Perez. Mas ele me disse que por estarem reunião, eu lhe deixasse o telefone que eleme ligaria assim que a vaga fosse aberta.Chegou final de março e ele não me telefonou.Pensei que não tivesse sido aprovado nocurriculum que deixei e também na entrevistaque realizei. E na época eu ganhava em médiatrinta mil cruzeiros por mês e caso fosseadmitido, iria ganhar noventa mil cruzeiros pormês. Um aumento considerável. Passou aprimeira semana de abril e nada de notícias. Jánão acreditava mesmo nela quando chego em

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casa tardinha do dia oito de abril e recebo anotícia que o senhor Edgar Perez havia metelefonado. Esperei o dia seguinte e liguei paraele. Estava ansioso pelo serviço, porém, umtanto apreensivo. Se por acaso desse certo,adeus sonho de ir a Pirapora levar minhasegunda cruz.E foi assim o telefonema:Oi, Seo Perez, é o Esio, o Senhor me telefonouontem e eu estava pensando que como hoje équinta-feira, amanhã sexta e a semanapróxima a Semana Santa, se o Senhor nãopretende que eu vá aí depois dela, ou melhor,no dia vinte e dois de abril, já que depois daPáscoa, dia dezenove, vinte e um é feriado deTiradentes.Ele foi curto e grosso comigo:Eu preciso de um vendedor desde o mêspassado e você quer vir depois da SemanaSanta? Você está ou não interessado noserviço?Retruquei:Estou indo agora mesmo para São Paulo.Peguei o ônibus e onze horas eu descia na

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Estação da Luz e ia para Barra Funda, noescritório da Empresa.Cheguei lá conversamos muito. Fui admitido.Ele apenas falou que eu poderia dormir em SãoPaulo, pois o gerente nacional, o senhorVicente Genícola Júnior estava em Santos e eudeveria falar também com ele.Eu falei que não havia levado roupa, quevoltaria para Piracicaba e estaria em SãoPaulo na sexta logo de manhã.Ele perguntou o porque de eu querer voltarpara Piracicaba. Comigo eu pensava queprecisava avisar meus amigos que não iriafazer a peregrinação desse ano, pois um novoemprego estava me esperando. Não queriadizer nada para ele.Então ele me perguntou porque eu falei de irsomente após a Semana Santa, e eu desviei oassunto, não queria falar de algo particular.Mas ele insistia muito em querer saber. Eu iafugindo até que eu falei assim, bem me lembro:Olha, Senhor Perez, o que eu ia fazer era umparticular, mas bem pode esperar. Estou muitomais interessado neste novo emprego do quequalquer outra coisa. Tenho família, dois filhos

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e isso é bem mais importante. Não me achelouco, não, mas é que fiz uma promessa ehavia combinado com amigos e amanhã, diadez, iria sair para pagar a tal promessa. Eu iriasair de Piracicaba levando uma cruz nosombros até Pirapora. Por favor, não me achelouco e não pense que isso vai me atrapalhar,não. Deixa para lá... quando eu tirar fériasdaqui um ano ou mais eu cumpro essapromessa.Sei que ele deu um pulo na cadeira que meassustou e disse assim:Meu filho, essa coisa de promessa é coisaséria mesmo.Eu sei muito bem o que é isso. Todos os anoseu saio de Taboão da Serra e vou também a péa Pirapora, mas no mês agosto, quando secomemora a data de fundação da cidade. Aíquem ficou assustado mais ainda fui eu.Ele continuou:Meu filho vá embora agora, o emprego é todoseu. Pague sua promessa, e só volte aqui diavinte e dois de abril. Mas uma condição: levemeu cartão, e de onde quer que você esteja, aqualquer hora do dia ou da noite, se precisar

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de alguma coisa me ligue em casa, que vou atévocê. Cuidado, filho, vá embora agora e meligue durante todo o trajeto para eu saber sevocê está bem. O emprego é seu.Eu não sabia se chorava ou se sorria. Não erapossível que aquele senhor de mais de 60 anosestivesse falando sério comigo. Mas antes queele se arrependesse, pisei firme o caminho devolta e voltei para Piracicaba leve, leve e feliz.Iria a Pirapora, pagaria minha promessa, equando voltasse teria um emprego novo queme daria um salário três vezes mais do que oatual.Cheguei em casa eram mais de onze da noite.Havia mais de vinte telefonemas dos amigosquerendo saber de mim, o que haviaacontecido, se eu iria ou não a Pirapora. Ligueipara todos confirmando a peregrinação para odia seguinte oito da manhã. Era o horário quedeveríamos sair.Fui dormir. Estava cansado, mas ansioso. Foidifícil conciliar o sono. Mas o relógio nãomarcava ainda seis horas e ouço tiros de rojão.Acordei assustado. Campainha tocando. Olho eera o Sapo, que já estava de mochila nas

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costas. Puxa, se eu estava ansioso ele estavaainda mais... Levantei, abri a porta, ele entrou,fiz café, e depois tiramos a minha cruz queestava no quintal e a pusemos na rua,encostada num poste. Os filhos Thaís e Thallespularam da cama também e ficaram agarradosem mim e ao Sapo fazendo mil perguntas.Bastava portanto esperar o Lilo e o Reinaldo,depois iríamos até o ponto onde estava oMirinho mais sua turma, para iniciarmos nossaviagem...Ainda assim fui com o Sapo até o cemitériopara rezar no tumulo do Nicolinha, que haviafalecido alguns meses antes, e companheirovelho de estrada, seria uma ausência sentida...No caminho encontramos o Lilo e o Reinandoque já desciam a avenida Piracicamirim, parachegarem em casa. Foi o tempo de rezar, evoltar. Logo os dois chegariam. Em frente decasa havia uma aglomeração de gente.Vizinhos amigos estavam ali para nos desejarboa viagem.Lembro do rosto de quase todos. Alguns nosolhando incrédulos, duvidando mesmo quefôssemos levar aquelas cruzes nos ombros até

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Pirapora, outros nos perguntavam quantotempo iríamos demorar. Mas tudo bem. O Lilo eo Reinando chegaram. O Edson soltou outrasalva de tiros, pusemos as cruzes nos ombros,e em meio aos gritos de boa viagem, cuidado,tenham fé, partimos. Os filhos e as criançasvizinhas nos acompanharam algumas quadras.Ao chegarmos na avenida Dois Córregos jáestavam nos esperando o Mirinho, o Tarzan, oDinho e outros mais que eu não conhecia.Continuamos a viagem. Estava um dia de muitosol. Logo no Rolador paramos para um fôlego.Minha cruz estava um tanto maior que a do anoanterior, media 7x3 metros de vigota deperoba. Não me incomodava tanto seu peso,mas o duro era arrastá-la vagarosamente.Ao meio-dia estávamos no Taquaral e alimesmo a esposa do Mirinho foi levar almoçopara a gente. Já havíamos andado uns bonsquilômetros. Mas o cansaço do primeiro dia ésempre mais denso, e nos derruba facilmente.Nos falta o costume de caminhar arrastando acruz.Era já de tarde e estávamos a uns cincoquilômetros de Rio das Pedras. Pela hora que

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havíamos saído, tínhamos caminhado muitopoucos. Necessário era apertar um pouco opasso. As turmas dos bóias-frias passavam emcaminhões e nos desejavam boa viagem.Anoiteceu e ainda estávamos a trêsquilômetros de Rio das Pedras. Havia umaescola na beira da estrada e ali paramos umpouco. Novamente trouxeram nosso jantar.Estava delicioso. Eu queria, junto com o Lilo, oReinaldo e o Edson, ir dormir em Rios dasPedras, a outra parte queria mesmo erapernoitar ali. Conversamos e decidimos: quemquisesse ficar ficaria, os outros poderiam ir atéRio das Pedras. Fiz parte dessa turma.O Lilo, o Reinaldo e o Edson saíram na frente,eu ainda fiquei conversando um pouco. Derepente fiquei sozinho na estrada. Estava umanoite muito linda. Caminhei sozinho. Senti dorde barriga e não teve mesmo jeito, encosteiminha cruz num poste e na beirada de umbarranco, fiz ali mesmo...Depois segui até Rio das Pedras sem grandesdificuldades. Mas antes de chegar à cidade,havia andado menos de um quilômetro e medeu tremenda dor de barriga. Não tive dúvidas,

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encostei minha cruz a um poste e... bem, emmenos de dois minutos estava aliviado.Cheguei à cidade onde o Lilo, o Sapo e oReinaldo já haviam chegado. Lá nos juntamose fomos tomar banho no posto de combustível.Comemos novamente alguma coisa e bebemosmuita água. Procuramos um lugar para dormire foi ótimo, um caminhoneiro deixou a gentedormir na carroceria do caminhão, portantonão iríamos dormir no chão, embora o relentofosse o mesmo.Acordamos sábado, dia onze perto das sete damanhã. Tomamos café e a turma que haviaficado na escolinha, ainda não havia chegado,já que ficaram de sair do local ás cinco damanhã. Estavam atrasados.Resolvemos ir esperá-los em Mombuca. Saímose fomos nós...Estava calor. Paramos para beber água na bicae encher nossas garrafas de água. Onze horaso calor estava insuportável. Sombra apenas decanavial, o que não adiantava muito. Sei queparamos numa moita de cana. Eu estiquei acoberta e deitei. O Lilo queria ir embora, maseu disse que somente iria me levantar onze e

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meia. Ele aquiesceu. Depois ele disse queeram já onze e meia e me levantei, arrumeiminhas coisas e quando olhei no relógio, eramapenas onze e vinte e oito. Não tive dúvidas:tornei a me deitar por mais dois minutos, noque gerou protestos, xingos e muita risadaentre nós. São coisinhas miúdas, que agoraaqui relembro e bem sei que não querem dizernada, não trarão risos nem nada, mas quemvive ou já viveu tal experiência, sabe o quantoisso diverte no momento.Aqui contando esses pequenos detalhes, nãotêm muita graça, mas no momento, todoscansados, com sono e com fome, o melhorjeito era rir, rir, rir...Novamente caminhamos. Perto de uma hora datarde paramos novamente para descansar. Oasfalto sob o calor do sol, chegava a derreter.Nossos pés, com o peso do corpo e também dacruz, afundavam nele. As pernas queimavam, osuor escorria denso, empapava o corpo todo eformava uma crosta de barro das canelas parabaixo, pois a poeira grudava e aderia à pele,formando quase que como uma bota de barro...

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chegamos mortos de fome e sede e cansaçoem Mombuca três horas da tarde. Fomos antesde tudo tomar banho num posto decombustível. Depois ficamos esperando oalmoço no restaurante, que quase serviria dejantar também.Aí o Lilo começou a dizer que estava cheirandocarniça... eu disse que havia tomado banho eestava limpo, idem o Reinaldo e o Sapo, masquando cheirei a pele de meu corpo, senti ocheiro. Era um azedo incrível, um cheiro fortede suor. O banho não havia adiantado. Sei quevoltei para o chuveiro e gastei quase que umsabonete no banho. Esfregava forte, cheguei apassar areia no corpo no lugar de bucha efinalmente senti que estava no normal. Voltei etodos riram muito disso.Depois perto das cinco da tarde comemosdeliciosamente. O dono do restaurante era oLourenço, meu velho conhecido, que, quandomorou em Piracicaba foi meu vizinho. Ficamospor lá descansando e minha mãe, irmã ecunhado, sobrinha e meus dois filhos foram seencontrar comigo. Eu estava legal e bem nacaminhada, embora ela ainda estive

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praticamente em seu inicio. Era sábado jánoitinha. Mas no meu pensar continuávamosmesmo atrasados, já que no ano anterior haviasaído no sábado à tarde e no domingo, hora doalmoço estava em Mombuca. Agora aocontrário, havia saído sexta de manhã esábado à noite ainda estava em Mombuca. Issonão era bom para nossa turma.Quando eram nove horas da noite decidimos irpara Capivari. Seria bom se lá estivemos nodomingo ainda de manhã. Saímos. Minha mãehavia levado algumas laranjas para a gentechupar. Sei que andamos uns quatroquilômetros e paramos para descansar numabrigo de ônibus. Chupamos as laranjas e osono veio caindo em mim. É bem notório quenão gosto da noite para caminhar. Prefiro odia. Sei onde estou, vejo onde estou, asfacilidades são maiores e os perigos podemser vistos... embora haja o sol...Sei que fui me amoitando e tentando incutir emtodos que deveríamos passar a noite ali. Nãohouve mesmo jeito. Todos puseram nosombros suas cruzes e decidiram partir.Sonolento, cansado e bravo acompanhei a

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todos. Chorava de raiva, de sono, de cansado.Mas recebi o apoio dos amigos. É sempreassim: quando um está pior, o outro ajuda...depois a situação se inverte, com certeza.Meia-noite, uma, duas, três horas da manhã echegamos em Capivari. Após e descidaíngreme, uma subida de amargar. Eu e o Lilochorávamos pela nossa vitória. Ele meperguntou se eu preferia estar ali ou aindadormindo no abrigo de ônibus. Pergunta deresposta óbvia.Fomos comer numa lanchonete e depoisdormimos num estacionamento que estavaaberto. Foi boa a noite, mas acordei e bebiágua duas vezes.Agora estávamos quase no nosso horárioprevisto. Sei que muitos conhecidos foram seencontrar com a gente em Capivari edecidimos sair uma da tarde com destino aSamambaia. Quando estava já no início daestrada eis que chega o Kiko, o Rodolfo, oLambari que foram levar almoço para a gente.Como havíamos comido, eles foram atéSamambaia e na volta ficaram de parar ondeestivéssemos para que a gente comesse.

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Embora o sol fosse muito forte e as sombrasraras, seguimos firmes. Perto de três da tardeos amigos vieram ao nosso encontro ecomemos uma belíssima macarronada! Depoisainda eles voltaram para Samambaia e noretorno trouxeram água para a gente.Não voltamos a comer. Eram mais ou menoscinco e meia da tarde e me avisam que paraSamambaia faltam apenas onze quilômetros.Andando na base de dois quilômetros por hora,meia-noite chegaríamos. E foi o que houve.Meia-noite em ponto e chegamos aSamambaia. Jantamos. Que fome! Comosempre o seo Ricieri nos atendeu com carinho.Fomos dormir, já que banho mesmo eraimpossível.Na manhã de segunda-feira vimos que haviachegado um outro grupo de peregrinos quelevava cruzes também. Logo acordaram. Eupensava em almoçar em Samambaia, mas oCidinho que levava cruz com outros seis ousete amigos e tinha seu pai que oacompanhava, disse que se quiséssemosdaríamos uma quantia para o pai dele e o

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mesmo faria também almoço para a gente. Foisopa no mel. Com o pai dele fazendo comida elevando água, nossa caminhada iria ficar maisfácil, com certeza.Tanto foi que decidimos sair logo cedo deSamambaia e quando chegou hora do almoçoestávamos perto do riozinho onde havíamostomado banho no ano anterior. E repetimos obanho. A sombra era convidativa e a comidamuito gostosa. Eu nunca havia comidopimentão, mas foi o único e o mais gostosoque comi até hoje, coisa que não voltei afazer... Descansávamos ainda quando o caféficou pronto. Uma delícia! Comida gostosa,água sempre à mão e um cafezinho... o restoera ter forças para andar, andar, andar...Descansamos bem, tanto que quase perdemoshora para andar... mas quando foi seis da tardeestávamos já na fazenda Pinheirinho. E tomeágua, tome café... Quando chegamos nocruzamento da rodovia do Açúcar, o pai doCidinho faz uma panelada de salsinha commolho que foi um saboroso cachorro-quente.Depois seguimos para Salto. Lá chegamosperto das dez da noite. O cansaço era forte,

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mas todos estávamos animados. A caminhadaseguia muito bem.Jantamos novamente e fomos dormir. Banhomesmo só nos rios que havíamos cruzado nasestradas... deliciosos, por sinal.Acordamos na terça-feira feira cedinho.Animados. Partimos para o Atalho. Láchegamos perto do meio-dia. Almoçamos edescansamos mais um pouco. Havia sido boa acaminhada. Subimos a serra do Japi e quandochegamos na garganta do lobo, mata fechadamesmo, a noite caiu como que por encanto.Ficar ali no meio do mato a noite toda ninguémqueria ficar. Atravessar a mata era tambémperigoso. Mas entre ficar a noite toda ali e poruma hora atravessar a mata fechada,decidimos partir. Fui na frente, já que minhacruz era a maior. Se ficasse encalhada entregalhos e cipós, os outros deveriam me ajudar,ou ficariam também presos. Mas nem liguei...ia levando tudo com força... o Edson seguravaa cruz depois a gente a empurrava e ela iaarrebentando os cipós. A descida foi até maisrápida do que havíamos imaginado.

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Ainda no Atalho tirei fotografia de um conjuntode pedras muito bonito. Mas comum. Apenasquando revelei o filme e mostrei as fotos paraminha mãe ela queria saber o que era aquelerosto de pedras desenhado na foto, Incrível!Virando a foto na vertical um rosto perfeito éformado pelas pedras. Foi de arrepiar. Mostreidepois para os outros amigos e todos ficaramimpressionados. Até hoje quando passo nolocal tento localizar o rosto, mas jamaisconsegui outra foto com tanta nitidez.Chegamos à Gruta. Eram ainda menos de oitohoras de terça-feira. Então decidimos dormir,pois caminhar para chegar em Cabreúva não iaadiantar muito... Preferimos o Lilo, o Edson e oReinaldo e eu pernoitarmos ali. A turma doCidinho queria chegar em Pirapora na manhãde quinta-feira, portanto decidiu partir. Nosdespedimos e agradecemos ao seu pai os doisdias que nos serviu e nos ajudou em muito.Ficamos na Gruta, tomamos um banho na bicae depois jantamos numa das barraquinhas aliexistentes.Dormi em frente à Gruta, num chão deparalelepípedos, mas dormi a noite toda.

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Acordamos na quarta-feira feira logo demanhã. Vi minha cruz encostada no barrancoda serra e quase não acreditei que estava atrinta quilômetros de Pirapora e dois dias aindapara caminhar... quiséssemos e na mesmanoite chegaríamos em Pirapora. Mas decidimosir vagarosamente. Tinha um caminhãovendendo laranjas polcãs e comprei um sacodas mesmas, perto de duas dúzias. Fiqueidescascando uma por uma e depois chupamos.Passou um rapaz esquisito, vestia-se todo deroxo, na fronte trazia uma réstia de alhocomprida. Parou um minuto. Colocou minhacruz nas costas, sentiu o peso e compreendeuque era muito maior do que a cruz que elelevava. Disse apenas: essa eu respeito! E semmais nada foi embora. Fiquei sem saber o quefalar...Onze da manhã chegamos em Cabreúva. Acidadezinha estava apinhada de peregrinos.Fomos tomar banho em uma pensão, depoisfomos almoçar. Ficamos na praça a tarde todaconversando com muitos amigos. Quando foianoitecendo percebi que ia chover. Fui até a

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Delegacia de Polícia e perguntei ao Delegadose ele não deixava a nossa turma dormirdentro de uma cela, já que a mesma estavavazia. Ele riu e permitiu. Levamos nossasmochilas para dentro da cela e voltamos paraa praça. O Delegado falou que podíamos entraraté dez horas da noite, que depois ele iriaembora.Quando chegou o horário fomos dormir nacadeia. Ele foi solícito, mas quando foi saindoatendeu ainda a um meu pedido: queria que elefechasse a cela. Ele perguntou o por quê e eudisse que jamais teria outra chance comoaquela de passar uma noite na cadeia, e queriaque fosse uma noite justa e perfeita.Ele riu muito, mas nos trancafiou a todosdentro da cela. Lá fora a chuva caía forte...fazia frio. Estávamos em quatorze dentro dacela. Eram amigos que conhecíamos e forampassar também a noite com a gente na...cadeia.Depois de um tempinho com todos dentro dacela de mais ou menos três por quatro, nãomais do que isso, o calor era insuportável. Mas

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estava muito melhor do que o frio e a chuva láde fora.Dormimos a noite toda. Acordamos cedo. Masquando acordamos o Delegado já estava emseu gabinete de trabalho. Ficamos todosapinhados na porta de grade e ele nos olhava atodos.Ei, Doutor, precisamos sair daqui. Ele apenasolhava e sorria.Enquanto mexia em alguns papéis dizia que oadvogado de defesa logo chegaria para nostirar dali.Depois de um tempinho veio abrir a cela esaímos todos. Simpático ele nos serviu café.Agradecemos a noite passada na cadeia, mascom certeza todos tínhamos que seria somentedessa forma que nela passaríamos. Rimosmuito, muito, muito.Depois já na praça, arrumamos nossas coisas,amarramos as mochilas nas cruzes e sob umagaroinha fina, fina, partimos de Cabreúva. Fuieu andar menos de vinte metros e ouvi alguémme chamando. Era a Margarida. Estava todaestropiada, mancando, de porretinho nasmãos. Na gíria de quem anda estava com os

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joelhos estourados. Nos pés várias bolhas. Seique ela se apóia em mim, e com passos firmesvamos seguindo. Lembro-lhe que no anoanterior ela me colocou os nervos das costasno lugar, e agora ela ali, comigo, e eudando-lhe a mão para seguir comigo...andamos juntos por um bom tempo. Rimosmuito. Eu trocava a cruz de ombros e elamudava de lado para conversarmos. Andandocomigo foi firmando os passos e antes dechegarmos ao Bananal, ela seguiu em frente,agradecendo o apoio que eu lhe dera. Disseque iria me esperar em Pirapora na manhã desexta-feira.Chegamos no Bananal e descansamos umpouco. O sol brincava entre as nuvens, depoisparecia que o tempo havia se firmado. Ele, osol, brilhou forte. Era meio-dia.Paramos em uma barraquinha de ocasião,bebia café quando chega uma turma de carro.A turma desce. Diversos rapazes. Um deles,bem alto e forte perguntou quanto pesavaminha cruz. Eu não disse a ele que pesavaperto de 100 quilos, mas disse que já havia meacostumado com o peso dela. Ele riu e disse

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que se a colocasse sobre os ombros, levaria amesma correndo até Pirapora.Eu também ri e sapequei: pois me faça estefavor. Ela é toda sua. Faça isso. Ele foi atéminha cruz encostada a um poste. Quandotentou erguê-la, não conseguiu... tentounovamente e os seus amigos passaram adebochar dele. Então fui até a mesma, com umgolpe de prática trouxe-a junto a mim e disse:coloque-a no ombro e pode arrastar.Não, não é força, é jeito mesmo. E aquelerapaz muito mais forte do que eu ficouvermelho e não deu mais que dois passos edesistiu. Falou algumas palavras e deu osparabéns a nós que levávamos nossa cruz demaneira até fácil... rimos e ele então um tantoenvergonhado, pagou a café para todos nós.Andamos mais um pouco quando ouço obarulho de uma buzina. Olho para ver quemera. Era o Delegado da Delegacia de Cabreúva.Veio ver como estávamos indo de viagem.Desceu do carro, quis carregar nossa cruz,depois tirou uma caixa cheia de caquis e nosofereceu. Eu chupei alguns e um que sobrou

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enfiei num prego que estava na cruz parachupar mais tarde.Ainda dando risadas do ocorrido, um carro deaproxima. Para e desce um meu amigo. OBastião Sanches de Oliveira. Aquele mesmoque foi meu ídolo há quase vinte passadosanos...Sei que nos abraçamos e ele pega no carro umsaquinho com alguns salgadinhos. Quando vaime dar um quibe o mesmo cai no chão e ooutro amigo que estava junto dele joga omesmo no meio do mato, pois havia ficadosujo, segundo ele. Mas desperdiçar comidanunca. Vou correndo onde ele jogou o quibe etrago-o de volta, dizendo que à noite ele aindairia me matar a fome. Foi só risada. Mas aindaassim ficamos com vários salgadinhos que nosentregaram... Depois se foram e nós pusemosnovamente nossas cruzes nos ombros eseguimos... faltava pouco... pouco...Andamos mais um pouco. Queria estar na bicaassim que o Cícero chegasse, junto com seusfamiliares. Mas ele chegou antes. Sorte quefaltavam apenas dois ou três quilômetros parachegarmos à bica. Foi um grande espocar de

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rojões. O Cícero desce do carro e se põe a tirarfotografias da gente carregando a cruz.Depois disse que nos esperaria na bica.Andamos rápido e lá chegamos. Foi um almoçomaravilhoso. Estávamos com fome. Ficamos aliaté quatro horas. A caravana do Cícero partiupara Pirapora e nós buscamos andar mais umpouco para chegar logo ao pé do morro doTira-Saia. Era nosso desejo.O tempo que tinha ficado firme mudourapidamente. Começou a chover. Veio a noite eestávamos todos molhados. Subir a serra eficar ao relento esperando o dia amanhecerseria bobagem.Decidimos dormir num galpão existente. Láhavia muita gente descansando. Devia serumas oito ou nove horas da noite. Estava frio.Não havia lugar para esticar o corpo. Sei quepassei até quatro horas da manhã de cócoraspara não ficar com o corpo molhado. Vi váriasaranhas enormes andando no chão e fiqueimesmo é com medo de me deitar.Quatro horas da manhã eu, o Lilo, o Reinaldo eo Edson, pusemos a cruz nas costas e subimoso morro do Tira-saia. Demoramos exatas duas

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horas para tal jornada. Quando atingi o alto domorro vejo o Kiko que vem ao meu encontro.Pergunta se eu gostaria de tomar café.Naquela hora era tudo o que eu mais queria.Ele foi até o carro, e trouxe uma garrafatérmica com café bem quentinho, feito na horamesmo.Depois disse que quando trouxe cruz fizeramisso para ele vários anos e ele sabia o quantotinha sido bom, portanto quis retribuir acamaradagem.Olhei uma placa e a mesma indicava quefaltavam apenas cinco quilômetros paraPirapora. Eram seis e meia da manhã. Comeceia chorar de emoção.Foram chegando amigos, outros romeirosforam engrossando nossa turma e decidimosdescer a serra para chegar a Pirapora. O tempoque ficou chovendo e nublado, como porencanto começou a ficar limpo. O sol passou abrilhar. Faltando menos de dois quilômetrosmeus filhos, levados pelo Elias Niquito e suaesposa Marta chegaram para se encontrarcomigo. Assim que me viram pularam no meucolo. Estavam com saudade do pai. O Thalles

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com menos de três anos, coloquei-o sentadona cruz e carreguei-a com ele sentado. Nãopesava tanto.Eu olhei para o Lilo que chorava, idem o Edsone o Reinaldo. Todos nós estávamosemocionados.Havia oito dias que estávamos na estrada eagora faltavam algumas centenas de metrospara o final de nossa jornada.Assim que chegamos à ponte o Ivan, meuprimo, foi se encontrar com a gente, assimcomo o Pedrão e outros amigos. Tirou váriasfotos da nossa chegada.Assim que chegamos colocamos nossas cruzesencarrilhadas em frente à igreja e fomosagradecer aos pés da imagem do Bom Jesusde Pirapora, nossa viagem, nossos pedidos.Estava cumprida a nossa jornada. Andamoscento e vinte quilômetros carregando nascostas um peso incômodo de 100 quilos!Parece fácil mas nem tanto... ou parece difícil,mas nem tanto...Foi essa uma viagem maravilhosa, que semprerecordo com carinho imenso. A amizade quetivemos durante os oito dias, nos fez

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cúmplices de uma irmandade que não seencontra em qualquer lugar. Bebemos água nomesmo cantil, na mesma garrafa, dormimoslado a lado. Falamos tantos assuntos que atéhoje, e lá se vão vinte e tantos anos, a amizadeentre nós continua imutável.Viajar com o Lilo, o Edson e o Reinaldo, foimaravilhoso.

1986quase (fui) preso

Esse ano teria sido um ano de viagem normal,não fossem dois fatos que merecessemregistro.O primeiro aconteceu entre Capivari e Salto. Éque nesse ano, junto foi um garoto que emnada condizia à nossa turma. Era agressivo,rebelde, malcriado, estúpido e idiota. Queriaser o dono da verdade sempre. Nós com maisde trinta anos, e aquele fedelho a torrar apaciência. Era irritante. Não digo o seu nome,nem irei dizer mais tarde, pois o mesmo é

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capaz de achar que estou fazendo-lhe cartaz.Mas não é isso. Muito pelo contrário.Ele tanto torrou a paciência, irritou tanto queperto da Gruta eu ainda lhe disse pela últimavez que se ele continuasse a nos irritar eu iriapegá-lo à força e fazer-lhe coisas para que seenvergonhasse. Ele ainda falou que sairiacorrendo. O Pedrão lhe disse que eu oalcançaria. Ele me chamou de velho. Eu ri.Ele não parou. Continuou. Eu perdi a paciência.Saí em sua busca. Ele deu meia volta e saiucorrendo. Fiz o mesmo e uns quinhentosmetros correndo alcancei-o. Sendo mais forteagarrei-o e o trouxe para onde todosesperavam rindo. Eu o deitei no chão, coloqueimeus joelhos sobre seus braços e fiz o quefalei que ia lhe fazer. Ele se irritou muito, maseu lhe disse para que não me perturbassemais. Disse que iria contar para seu pai, umvelho conhecido meu, não amigo, que viviapelos bares enchendo a cara.Depois ele ficou um tanto amuado,envergonhado, mas ainda falou que eu iriapagar a vergonha que o fiz passar.

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Durante muitos anos ele tentou, sem sucesso,me agredir. Engraçado que, covarde, viviamandando outros fazerem o que não tinhacoragem de fazer sozinho. Vivia me arrumandoconfusões pela estrada e tentava estragar umlocal onde eu trazia amizade.Não conseguiu, claro, apenas no ano de 2000,como direi adiante, tentou a última vez, depoisa estrada ficou livre desse traste que talvezesteja preso hoje.O outro caso é mais engraçado.Uns vinte dias antes o governo José Sarneybaixava o Plano Cruzado, de maléfica memória.Coloca preço em tudo, tablita e mais, mais,mais coisas.Pois bem. Em Cabreúva o Adãozinho e oMarcos, vêm me dizer que na padaria o caraestá vendendo cerveja a sete cruzados,quando o preço baixado pelo governo era decinco cruzados apenas. Não tive dúvidas, fuiaté a padaria discutir com o proprietário. Elenão me leva em conta. Vou à Delegaciadenunciá-lo; continua a mesma coisa. Sei queé parente do prefeito e que o mesmo o apóiaem seus desmandos contra a população.

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Poderia aqui dizer o nome de todos osenvolvidos, mas não o farei.Mas na hora fiz outra coisa pior: subi no coretoe fiz um discurso inflamado contra o prefeito,dizendo um blá-blá-blá daqueles. Que éramosfiscais do Sarney, que o povo estava sendoroubado, que deveríamos fechar a padaria.Falei uns dez minutos. Fui aplaudido.O Adãozinho com o Marcos me apoiaram. Aturma toda me aplaudiu Me senti forte epoderoso. Coitado de mim!Sei que pusemos os pés na estrada para osúltimos vinte e quatro quilômetros. Estávamosnós na bica e chega uma viatura policial. Umguarda nanico vem falar comigo. Diz estarprocurando um elemento calvo, um outromulato e um outro ainda que estava ao volantede um Opala marrom. Eu ri. Tirei meu velhochapéu e disse que não era calvo, mas eracareca. E ri. Daí mostrei-lhe o Marcos e oAdãozinho. Pois sabem o que ele fez? Nos deuvoz de prisão por baderna e por incitar apopulação contra o prefeito.Eu disse que não tinha feito nada, apenasfalado a verdade. Mas o guarda nanico além de

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ser parente do dono da padaria, também o erado prefeito. Entrei numa fria, pensei.E entrei mesmo. O Adãozinho e o Marcossumiram. Eu fiquei com o Pedrão (coitado)tentando explicar. Não havia jeito do guardinhaser convencido. Então chegou o Mestre Dick,velho amigo e conhecido. Tentou intercederem meu favor. Nada. Depois chegaram o SérgioSignorelli, a Célia e o Cícero. Nada. Oguardinha tentava se impor naquela farda.Então chega minha salvação. O Hélio Furlanera Deputado Estadual por nosso Estado. Haviaido se encontrar comigo por pura amizade. Eleintercede. O guarda ainda teima em mantersua vontade. O Hélio, advogado também, lhediz ser Deputado, que é meu amigo, que euapenas estou fazendo a peregrinação e nadamais.O guardinha meio aturdido afrouxou por ummomento. Eu caí fora junto com o Pedrão.Andamos uns quinhentos metros e ríamos dasituação quando a viatura policial nos alcançae dá a mim, e ao inocente do Pedrão, voz deprisão. Entramos na viatura e voltamos para abica. Lá o Hélio Furlan começa a falar ainda

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com o pequeno guarda e enche minha bola. Dizque sou o maior Poeta do Brasil, que soujornalista, advogado, professor, amigo de nãosei quem. Que eu iria ainda mandá-lo, comminhas amizades políticas, para Mato Grosso,diz que sou muito influente, e diz muitas outrasmentiras para me livrar a cara.Então eu também cresci. Falei que iria mesmotomar minhas providências contra ele assimque voltasse para Piracicaba. Ele, eu acho queficou com medo, mas em me vendo pôr as asasde fora, o Helio me chamou de lado, me xingoue disse para eu ir embora, que a situação tavaresolvida e se eu ficasse ali ainda iria passar anoite preso. Eu com o Pedrão rimos e fomosembora de vez. Antes ainda ouvi o guardinhadizer que iria passar um rádio em Pirapora eque se eu me metesse em confusão iria serdetido.Ri e fui embora com o Pedrão.Já em Pirapora agradeci ao Hélio por eleinterceder por mim. Ele conversavaanimadamente com um Senhor, ao qual fuiapresentado como romeiro e Poeta. O talSenhor era apenas o Delegado da cidade.

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Ficamos amigos e conversamos até mais deduas da manhã.Teria sido muito engraçado ser preso e ir paraa mesma cela onde cinco anos antes passeiuma noite...Esse ano de 1986 foi o último ano que pernoiteide quinta para sexta-feira em Pirapora. E melembro que dormi num corredorzinho estreito,bem estreito, e que ao meio existia umaescada. Eu dormi de um lado e o Pedrão dooutro. Tentássemos virar o corpo e cairíamosescada abaixo...

Outros fatos engraçados

Cantando o Hino Nacional

Corria o ano de 1970. Era a minha terceiracaminhada. Ir a Pirapora nessa época erafebre. Centenas e centenas de jovens faziam acaminhada. Lembro que quando saímos deSalto na madrugada de quinta-feira, formamosum enorme grupo com mais de oitenta

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pessoas. Todos eram amigos ou conhecidosuns dos outros. Foi uma farra. Como fazia frio ena estrada não havia quase movimento,formamos um imenso batalhão marchandodireitinho e todos cantávamos o Hino Nacional.Era uma forma da gente caminhar... Se eraproibido, pelo menos naquela época todossabiam cantar o nosso Hino, coisa que hojedificilmente acontece...

A Carona

Foi no mesmo local, ano antes, que o Gelson,um negro falante e bem-humorado, numaíngreme subida, ao passar um caminhão, nãoteve dúvidas: agarrou na rabeira do mesmo ese livrou de andar mais um menos umquilômetro...Se livrou? Mas o caminhoneiro ao chegar aotérmino da subida parou o caminhão, desceu efalou com o Gelson (ele nos contando depois)Rapaz, se você está fazendo promessa nãopode pegar carona. O Santo vai ficar sabendo.Pois você deve voltar o pedaço que andou decarona e refazer o mesmo... Então enquanto

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subíamos o morro vimos o Gelson descerresmungando, até o início de onde houveraminutos antes se agarrado ao caminhão paracarona, depois voltar a pé o mesmo trecho...Todos cansados e rimos muito, enquanto oGelson vinha ao nosso encontro... Querendolevar vantagem, foi obrigado a fazer o percursode ida e volta...

A pedrada na andorinha

Esse fato é recente, mas foi engraçado... Noano 1997, estávamos chegando emSamambaia. No céu bandos de andorinhassobrevoavam... Algumas delas pousavam nosfios... Então o Esio, meu filho, ficava jogandopedras para o alto. Foi quando o Kleber, ummeu ex-aluno que seguia junto falou queacertaria com pedrada uma das andorinhas. OThalles (assim como todos) achando serimpossível ou improvável tal façanha, falouque se ele acertasse uma delas, ele a comeriana hora. Pois o Kleber pegando de uma pedraatirou com tanta violência, que ela bateu nos

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fios, correu por eles alguns metros, e quandouma das andorinhas viu ou sentiu o pelotaçovindo, tentou voar, mas a pedra ricocheteou nofio, e acertou a andorinha em pleno voo. Elacaiu mortinha no chão. O Thalles ficou todochateado. Nós gozamos e mandávamos elecumprir o que havia falado. Mas ele não fez. Aomesmo tempo que ficamos atônitos com ofato, ficamos tristes pela morte da avezita...

Casa de marimbondos

Outro fato engraçado aconteceu no ano de1996. Num riacho que cruza a estrada o Esiocomo sempre, foi tomar banho. Mas ao entrarno rio havia uma casa de marimbondos... elenão se apercebeu e no minuto seguinte estavacoberto pelos insetos. Tomou várias ferroadas,tanto que, para escapar das picadas, afundou ocorpo todo na água. Depois saiu reclamando edisse que por causa disso bebeu água e comcerteza engoliu juntos alguns girinos... Foimuito engraçado...

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Uma bicicleta entre dois ônibus.

Esse fato ocorreu no ano de 1969. Nessaépoca a estrada vicinal que ainda hoje nos levade Capivari a Salto era a única que existiaentre as duas cidades, portanto todo o tráfegode carros, ônibus, caminhões, dividia a estradacom os romeiros, que iam a pé, de bicicleta, decharrete. Numa curva existente, a pista era, e aindaé estreita, eu percebi que dois ônibus iam secruzar justamente onde estava a nossa turma.Fomos para o meio do mato para que nadaacontecesse. Acontece que ultrapassando umdos ônibus, um romeiro de bicicleta... Incrível,mas ele ficou entre os ônibus no instantecrucial que ambos se cruzavam. Pensei numacidente fatal, mas em seguida vi o rapaz todoassustado parando na estrada. Tremia comovara verde pelo perigo que havia terminado depassar. Não aconteceu nada... Apenas o sustoque foi imenso.

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Apelido engraçado

Este fato aconteceu no ano de 1983. Era aprimeira vez que o Fábio, (Vermelho) meninoesperto e gozador, ia fazer sua primeiracaminhada. Junto com a nossa turma ia oNinhão, companheiro de todos os anos. Rapazsimples gostava, na época, de uma bebida.Não tinha malícia para entender logo ascoisas. Foi então que falei para o Vermelho que oapelido do Ninhão era jacintopaunorego. E seele começasse a chamar o Ninhão por esseapelido ele iria ficar bravo. Pois foi eu falar,avisar o Pedrão do fato, e ele começou a falarpara o Ninhão:

Ninhão,jacintopaunorego! jacintopaunorego!

Ele falava alto, o Ninhão não entendia eficava bravo. Quanto mais bravo ele ficavamais o Vermelho gritava:

Ninhão,jacintopaunorego! jacintopaunorego!

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O Vermelho não entendia também o quefalava e enquanto o Ninhão ficava maisnervoso, a turma toda entendendo a gozação,ria muito. Ria do Vermelho, pela auto-gozação,e ria do Ninhão, que pensava que o Vermelhoestava xingando ou zombando dele. A coisachegou a um ponto que o Ninhão queria mesmobater no Vermelho. Para a coisa não chegar atal fato, eu com o Pedrão explicamos para oNinhão toda a brincadeira. Aí ele entendeu eriu. Então mudou a cena. Agora era ele quefalava para o Vermelho:Como é meu apelido, Vermelho?E o Vermelho gritava: Ninhão, jacintopaunorego, jacintopaunorego! E ria, ria, ria... Só emSamambaia expliquei para o Vermelho o realsignificado da frase. Ele ficou chateado, maslevou numa boa. A coisa parou por uminstante. Quando estávamos chegando emSalto, havia um bando com mais de 40moleques brincando. Eu cheguei para um delese disse que o apelido do Vermelho erajacintopaunorego, e se eles o chamassemassim ele iria ficar muito bravo. Falei econtinuei a caminhada. Foi o bastante. Assim

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que a molecada avistou o Vermelho, começoua gritar:

Vermelho, jacintopaunorego, jacintopaunorego!

O Vermelho já sabedor da gozação investiasobre todos, mostrando estar bravo. Quantomais ele se mostrava bravo, mais a molecadagritava:

Vermelho, jacintopaunorego, jacintopaunorego!

Nossa turma ria muito. Todos riam. Eseguimos a caminhada deixando para trás amolecada gritando... Assim rindo, chegamos aSalto logo depois do almoço...Hoje ambos, Vermelho e Ninhão, são umasaudade...

O Tiziu

Quem conhece passarinho conhece o tiziu. Éum passarinho de porte pequeno, tamanho dopapa capim, do pintassilgo, de penugemazulada escura.

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Esse fato aconteceu agorinha mesmo, em2006. Estávamos na quinta-feira de manhã,indo para Cabreúva. Eu, o Thalles, o Néri e oamigo do Thalles, que indo pela primeira vez,estava com os pés cheios de bolhas.Era manhãzinha, não mais que oito horas.Caminhávamos rindo. A estrada estava todameio que nublada de neblina. Dezenas de tiziuscantavam nos galhos, nas moitas de capins enos arames das cercas. Engraçado que o tiziu,quando canta, seu nome é uma onomatopéiaao seu canto – tiziu! – Ele canta e dá umpulinho de mais ou menos vinte centímetros evolta ao lugar de pouso...E nós íamos vendo eles cantarem e pularemquando todos miramos por acaso, o mesmotiziu. Acho que secamos seu pulo, pois omesmo pousado numa cerca de arame, pulouao cantar, mas ao voltar... caiu. Caiu no chão.Ele, o tiziu, errou o pulo. Todos nós caímos narisada. Viram, vocês viram... era a pergunta detodos soltando risadas... Eu que conheçopassarinhos desde a infância, e tanto já tivetizius em casa, nunca havia visto antes um

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tiziu errar o pulo. Foi muito engraçado nahora...

Meus filhos1992

Desde que nasceu minha primeira filha, Thaís,em 1977, depois o Thalles, 1979 e mais tarde oEsio, 1986, meu maior sonho passou a ser queum dia eles fossem comigo.O tempo foi passando e a cada ano que euarrumava minha mochila, lá estavam elesquerendo saber quando eu ia, quando iriavoltar, se era longe, onde dormia. Eu ia falandoe colocando na alma de cada um deles, odesejo de também um dia, com o pai, fazerema peregrinação. Pensava em levar a Thaísprimeiro, por ser a mais velha, mas era menina.O Thalles ainda era muito novo e o Esionovinho de tudo. Pensava comigo: quando aThaís fizer 15 anos eu a levo comigo, depoisvai o Thalles, e por fim o Esio. Bem, chegou1992, a Thaís estava com 15 anos. Erachegada a hora dela se aventurar comigo. Mas

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eu fiquei um pouco com medo. Então fiz umaloucura maior: levei o Thalles comigo, entãocom quase 13 anos. Saímos com um tempomaior, para que, se ele se cansasse, houvessetempo para recuperação. Saímos na segundafeira à noite. Para mim seria importante queele chegasse, pois eu estava nesse anocompletando 25 anos de romaria, ou seja, meujubileu de prata. Saímos eu e o Thalles, oPedrão, o Netinho e o Marcelo. Choveu o diatodo na segunda-feira, o que fez meu temorcrescer um pouco mais...Mas na segunda-feira, à noite, iniciamos nossaperegrinação. Era também a primeira vez doMarcelo, um moço que havia me procuradopara ir junto. Sabia que ele era músico de umaorquestra de Ribeirão Preto e nada mais. E foiapenas isso e mais algumas coisinhas quesoubemos dele, porque depois disso eledesapareceu... nunca mais deu notícias... ficoua saudade...Bem, saímos à noite e chegamos em Capivariquatro da madrugada. Para mim e o Pedrãoestávamos adiantados, pois sempre saíamosna terça-feira feira de manhã... mas o andar à

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noite sempre me fez mal... mesmo assimfomos... Antes pedi para o Rogério Pousa seele levaria nossas mochilas até Capivari e elefez esse favor. Certo que foi se encontrar coma gente chegando em Mombuca e eu até pedipara ele deixar ali mesmo nossas mochilas,mas ele não deixou... foi até Capivari... issonos adiantou um tanto, mas nos fez caminhardurante a madrugada. O Thalles foi bem. Comseus doze, quase treze anos, tinha vitalidade eenergia. O Pedrão no seu passo marcado desempre, o Netinho, na sua segunda viagemtambém ia bem e o Marcelo também andoubem durante essa primeira parte da viagem.Chegamos em Capivari quatro horas damadrugada e fomos dormir dentro dorestaurante do Galo. Lá encontramos oChupeta, com a Magda e o Adãozinho.Dormimos até nove horas da manhã.Acordamos, tomamos café e seguimos paraSamambaia. O dia nublado durou pouco tempoe logo abriu o sol majestoso. O calor se fezimperativo. Levei pela primeira vez, a tira colo,uma filmadora para ir gravando as passagensde nossa caminhada.

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Paramos um pouco para descansar o Marcelomexia e remexia em sua mochila. Estava comfome.Nossa! Quando vimos sua mochila quasecaímos de costas. O que a mãe dele haviacolocado de comida nela daria para abastecerum batalhão... eram pacotes de biscoitos,doces, pão com presunto... e outras coisasmais... avançamos nos chocolates... com opuro propósito de aliviar o peso da suamochila... (risos)Em Samambaia filmei o seu Ricieri e suafamília e demos muitas risadas juntos. Entãoele me confirmou que era proprietário do barhavia 45 anos...Depois almoçamos ali e descansamos umpouco antes de seguirmos para Salto. Comoestava muito abafada a tarde, demoramos parachegar em Salto, que só foi alcançada noanoitecer. Lá chegamos e paramos um poucono Bar do Primeiro Gole. Entrevistei o Genésio,proprietário do mesmo e depois fomos para oHotel Central, onde por vários anos íamostomar banho e almoçar. Nesse ano lá apenastomamos banho. Eu estava com a bunda toda

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assada e emprestei Hipogloss do Chupeta. Foium alívio quase que imediato. Depois eu, oNetinho, o Marcelo e o Thalles fomos jantar enos perdemos do Pedrão. Jantamos e fomosdormir na praça da Concha Acústica. A noiteesfriou bastante. Ainda bem que o paredão daconcha nos protegia. Foi emotivo para mim omomento que acordei durante a noite e sentique o Thalles me cobria as costas.Conversamos um pouco e voltamos a dormir.Acordamos eram sete e meia da manhã. O diaestava brilhante de uma forma que até hojenão me esqueço. Parecia que a gente podiapegar flocos de neblina com as mãos. Eramminúsculas partículas que brilhavam ao sol.O Marcelo estava um trapo de cansado. Fomospara o restaurante do Laércio, tomamos café eseguimos para o Atalho. Quase que chegandoeu torci o pe direito de uma forma esquisita, dolado de fora... eu estava pisando no asfalto,nada me atrapalhava. Na hora eu senti a dor.Começamos a atravessar o Atalho e o pédireito me incomodava muito. Passei a andarmancando. Não reclamava, pois não adiantava.Era o mais experiente e sabia que não podia

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demonstrar fraqueza. Chegamos ao final dele eeu sofria dores horríveis. Queria chegar logoem Cabreúva para tomar um banho e dormir anoite toda, quem sabe assim no dia seguinteestaria melhor. Doce ilusão... chegamos emCabreúva à noitinha. Tomamos banho,jantamos, e depois ficamos na praçaconversando. O Thalles estava exultante.Estava já em Cabreúva e se divertia muito. Seique perto da meia-noite fomos dormir. Meu pédoía muito forte. Devo também contar que sóem Cabreúva fomos novamente nos encontrarcom o Pedrão.Dormi incomodado com o pé. Tomei umrelaxante muscular, Tandrilax, mas poucoadiantou. Na quinta-feira de manhã acordamos.Dona Maria, que nos cedia a área de sua casapara dormirmos, nos trouxe café quentinho.Depois seguimos para terminar nossa viagem...o Marcelo sofria muito. Capengava mesmo. Eutambém sofria, mas não reclamava. O Thallese o Netinho flutuavam com seus passos leves.O Pedrão e eu conversávamos... Na bicaparamos para descansar. Não demorou muito eo Cícero, com sua família chegava estourando

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rojões e nos servindo um delicioso almoço.Pelos meus vinte e cinco anos ininterruptos deviagem mandei vir um barril de chopp que foiaberto na estrada para todos os quepassassem por ali no momento. A Célia, paravariar, levou um bolo delicioso para meoferecer.Ficamos ali um pouco e a família do Marcelotambém chegou. Ele querendo mostrar queestava forte, não reclamou nada para a mãe,mas depois que ela chegou suas forçasparecendo que, adormecidas, revigoraram seucorpo e ele passou a andar confiante. Eumesmo com minha Mãe presente, sendo rotinajá a sua ida para me encontrar, continuei como pé direito doendo muito. Mas não reclamava,apenas mancava sensivelmente. Seguimospara nosso final de viagem e subimos oTira-Saia. Mais um pouco e chegamos aPirapora. Pela primeira vez em todos os meusanos de viagem, fui obrigado a entrar nacidade pela ponte nova, que na verdade, temmais de vinte anos, pois a velha ponte demadeira estava sendo substituída. Nos meusvinte e cinco anos queria tanto entrar pela

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tradicional, mas não me foi possível. Mesmoassim já em Pirapora a primeira coisa quefizemos foi entrar na Igreja e agradecer pormais uma viagem. Em frente a velho bar obarril de chopp foi colocado e bebido até quese esvaziasse todo. Cantamos os parabénspelo meu jubileu de prata e ficamosconversando animadamente. Depois como atarde caía lentamente, decidimos vir embora...entramos no carro e o Thalles veio durante aprimeira parte da viagem contando asmaravilhas de sua primeira peregrinação, maslogo depois de Cabreúva foi vencido pelo sonosó vindo acordar em Piracicaba... Dirigindo opé não doía tanto, mas foi chegar e colocá-lono chão para sentir a dor ainda mais aguda...mas a viagem já havia terminado...

1993

Em 1993 não teve mesmo jeito, além doThalles a Thaís também pôs a mochila nascostas e se fez peregrina... Saímos à noitinhamesmo da segunda-feira. Havia mais gente

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nova no pedaço... O Leandro, o Paulo Henrique,o Paulo Ricardo, o Ricardo, todos amigos deescola da Thaís, que os convenceu a ir juntos...além deles, eu, o Thalles, o Netinho, oPedrão... como sempre ao meu lado.O Thalles ia contando para Thaís e os outrosnovatos as delícias da viagem, mas nãocontava o cansaço... A viagem correu normalaté Samambaia. Depois ali almoçamos eseguimos para Salto.Quase chegando em Salto, num morro daestrada estávamos eu e a Thaís, uns passosatrás o Thalles e o Netinho... nisso no alto domorro uma galinha com cerca de uns dez adoze pintinhos passeavam e ciscavam... Entãoa Thaís me pergunta por que os pintinhossempre acompanham a galinha...Eu sorridente expliquei-lhe que eles a seguiampor ela ser a mãe deles, oras. Nesse momentoa galinha decidiu descer o morro, de uns trêsmetros de altura. Desceu calmamente, sem sepreocupar com os pintinhos de uns diasapenas... mas esses, vendo sua mãe morroabaixo, tentavam descer e escorregavammorro abaixo parecendo bolinhas de penas...

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eles um a um desciam o barranco rolandocomo bolinhas e em seguida passavam aacompanhar a mãe. Eu e a Thaís caímos narisada. O Netinho e o Thalles vendo o final dacena, riam também.A Thaís estava tão cansada, mas tão cansadaque soltou essa frase linda:Pai, nunca mais vou ficar triste na vida. Cadavez que eu ficar triste vou lembrar dospintinhos para sorrir. Isso acontece até hoje. Eela, embora não tenha mais podido caminharcom a gente, cada vez que passo no local,procuro ver se encontro uma galinha compintinhos, e rio, rio, rio e rio muito, e melembro da minha filhota...Depois desta cena continuamos a andar, e otrecho é bem difícil. Uma longa subida antesde ser chegar em Salto. No alto do morro aThaís se pendura em mim e diz que não estáagüentando mais... eu lhe pergunto se entãoela não vai mais querer andar e ela mais quede imediato:Claro que vou, né, pai, e o ano que vem vouestar aqui novamente... Rimos e chegamos emSalto...

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Já em Salto fomos tomar banho no HotelCentral e depois nos dirigimos até o bar doLaércio para jantar e depois dormir... dormir...dormir...Quarta-feira amanheceu brilhante e com muitocalor. Saímos cedo de Salto e seguimos para oAtalho. Os novatos estavam radiantes pelashistórias contadas pelo Thalles e pelo Netinho.Chegamos ao Atalho ainda cedo, antes das dezhoras da manhã. Começamos a atravessá-lo.Em frente ao casarão paramos um pouco paradescansar e o Thalles falou que ia ao pomarpegar laranjas. Nisso ouvimos uma voz dizendoque era proibido entrar no pomar. Era oGetúlio, zelador da fazenda há muitos anos emeu velho amigo. Quando o ouvi dizendoaquilo, virei e falei para ele: nem meu filho,Getúlio, pode ir pegar laranjas? Ele me vendodisse:Claro que pode, filho do Esio é meu amigo...podem entrar no pomar e peguem quantaslaranjas quiserem...Caímos na risada e nas escadas do casarãoficamos conversando um pouco enquanto as

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crianças chupavam laranjas... depois nosdespedimos e entramos Atalho adentro...A alegria de estar ali naquele trecho da viagemcom meus dois filhotes, era impagável.Chegamos em Cabreúva logo após, tempo detomarmos um banho e depois almoçarmos ummarmitex. Foi muito engraçado: a Thaís foicomprar marmitex com o Juliano e ela disse aele que não estava com muita fome, e eledisse a mesma coisa. Então decidiram comprarum marmitex e dividir em dois. Mas assim quesentiram o cheiro da comida, a fome abateunos dois e então a Thaís falou: aí, estoumesmo com fome, acho que vou pedir ummarmitex só para mim. Ao que o Juliano falou:isso mesmo, também deu fome em mim.Vamos pedir dois marmitex e dividimos metadepara cada um... (risos) Depois do almoço ficamos a tarde toda napraça descansando. A noite chegou e com elamuitos amigos romeiros e charreteiros quevinham conversar com a gente. D. Maria naárea de sua casa ficava conversando com agente, também sua filha Dalva, a neta Tânia e

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demais parentes. Amigos, formávamos ali umaamizade intensa.Depois a noite chegou ainda mais e fomosdormir... como sempre dormimos no abrigo dacasa da d. Maria...Acordamos quinta-feira feira cedo, antes dasoito, mas não tínhamos tanta pressa em seguirviagem. Estávamos adiantados. Porém, antesdas nove, estávamos já na estrada. Aochegarmos no Bananal havia uma turma decavaleiros de Porangaba, todos velhosconhecidos de estrada. A Thaís e o Thallesquiseram dar uma cavalgada, no que foiatendida pelos nossos amigos. O Adãozinhoquerendo mostrar que também sabia montar,todo fazendo pose, à direita do cavalo, colocouno estribo o pé direito e pimba! Subiu nocavalo, porém, ficou montado de costas... oacesso de riso na turma toda foi geral... eleainda querendo mostrar que sabia montar,ficou a querer dar explicações para oinexplicável...Depois continuamos viagem e chegamos aPirapora antes das três horas da tarde.

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Foi ficarmos lá uma hora mais ou menos emontamos no carro para nossa viagem deretorno, todos ansiosos para que 1994chegasse logo, logo...

1994

Em casa com os filhotes não poderia havermaior castigo do que falar que se nãopassassem de ano, não iriam a Pirapora anoseguinte.Foi o que aconteceu com o Thalles. Em 1993ele simplesmente deixou de ir à Escola. Mefalou que ia tomar bomba. Eu disse que elemesmo tomando bomba deveria continuar a irà Escola, pois impossível alguém em agostoainda dizer que havia tomado bomba. Eleteimou, teimou e quando eu soube ele nãoestava mesmo indo para a Escola. O castigo foiesse: não vai à Escola, não vai a Pirapora.Ele duvidou que fosse cumprir minhapromessa. Como meus filhos moravam com amãe ele duvidou. Mas 1994 chegou e fiquei nofirme propósito de dar-lhe esse castigo. Hojeme arrependo. Fiz tantas burradas na minha

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vida de jovem, e tantas foram as vezes quepassei por esse tipo de coisa, com meus paisdizendo que eu não iria ano que vem paraPirapora, que hoje, ao completar minha 40aromaria, se meus pais tivessem mesmocumprido, com certeza eu ainda estaria unscinco anos atrasado...Mas em 1994 o Thalles não foi. Ficouchorando, triste, eu mais triste ainda. Todossaindo, mochila nas costas e ele ficou paratrás... mas acho que isso até que fez bem paraele, pois se tornou desde então um meninoresponsável e se hoje o serviço por vezes oimpede de ir, ele jamais falta ao serviço, quelhe é mais importante.Embora 1994 tenha sido uma viagem muitoboa, não irei contar detalhes, pois para mimela se tornou triste... Esperava mesmo que aviagem acabasse logo e que 1995 chegasserápido, para novamente ter comigo os meusfilhotes presentes...Mas mesmo assim quero recordar um fato: nocarnaval deste ano eu passei a ter cólicasrenais. A dor é imensa e intensa. Quem já

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passou por cólicas renais sabe o que estoufalando.Mas as cólicas renais iam e vinham... iam evinham...Todos os anos durante a Quaresma eu treinavaum pouco algumas caminhadas, mas com ascólicas isso foi impossível para mim.Os dias foram se passando e no domingo deRamos eu estava ainda no hospital tomandosoro para as dores terríveis. Pensei comigo:não vou a Pirapora esse ano. Vai serimpossível. Mas hora do almoço eu estava emcasa e como por encanto as dores deixaram deme incomodar. E disse para mim mesmo:parece que estou melhorando. Se continuarassim amanhã coloco a mochila nos ombros...E como por encanto as dores sumiram e pude,na segunda-feira, fazer essa caminhada...

1995

Bem, o Thalles começou a ir comigo emPirapora com quase treze anos. A Thaís foi aprimeira vez em 1993, com dezesseis anos. Em1995 o Esio tinha apenas nove anos... Uma

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loucura levar uma criança a percorrer os 120quilômetros de peregrinação. Mas o Esio quis ire eu também queria que ele fosse.Por sua causa decidimos sair mais cedo.Saímos na segunda-feira logo após o almoço,assim não iríamos andar tanto à noite, parachegar em Capivari.Conversei muito com ele antes. Disse que eralonge, que ele iria ficar cansado, maspersonalidade forte, falou que não dariatrabalho.Duas horas e pusemos os pés na estrada.Aquele menininho andando era até bonito dese ver... um pinguinho de gente caminhandocomo gente grande.Também falei a ele que quando se sentisse umpouco, mas um pouco cansado só, era só elefalar e descansaríamos. Ele falou que era legalestar ali.Chegamos em Rio das Pedras e ele estavabem. Eu mais do que feliz! Pela primeira vezestava indo para Pirapora com meus trêsfilhos. Coisa que somente esse ano pôdeocorrer. O Esio com seus nove anos era aatração da estrada. De chinelos havaianas nos

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pés, shorts e camiseta e boné na cabeça... Poronde passávamos chamava a atenção.Chegamos em Rio das Pedras ainda era dia eele estava bem. Para chegar até Mombucasofreu um pouco. A tarde trazia a noite e ocalor que fez foi muito intenso. Diminuímos ospassos para acompanhar o Esio, maschegamos em Mombuca sem maiorestranstornos. Ali pouco ficamos. O Esio queriacomprar estilingue, bolinhas de gude e peão,mas não sei para quê... Claro que não comprei.Ele então comeu vários doces...Em Capivari chegamos antes das nove danoite, portanto conseguimos um local paratomarmos banho, no chuveiro do restauranteGalo, onde também comemos alguma coisa edormimos até seis da manhã.Na terça-feira feira logo de manhã o sol eraescaldante... seguíamos para Samambaia. Pordescuido dos mais velhos, a água terminou e oEsio começou a reclamar que estava comsede. Eu descasquei cana, ele chupou, masqueria mesmo água. Continuou reclamando desede. Perto de Samambaia, na mesma casaonde em 1980 uma garota me serviu água

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tirada do poço fresquinha, ele conseguiu matarsua sede. Logo depois chegamos emSamambaia. Como havíamos encomendadomarmitex em Capivari, seguimos em frente equatro quilômetros depois tem uma belasombra de eucaliptos. Ali almoçamosgostosamente e descansamos... Pela primeiravez além do Esio, havia algumas amigas daThaís e outros colegas do Thalles. Estávamosem trinta pessoas. O papo não acabava nunca.Assim as brincadeiras e as mentiras quepregávamos nos mais novos e inexperientesperegrinos...O pior trecho estava ainda por vir, até Salto,mais quatorze quilômetros. Saímos meio dia.Sol estourava os miolos.Como havia falado para o Esio que se eleestivesse ficando cansado que me avisasse,ele logo começou: Pai, estou ficando cansado.Eu olhava a primeira sombra logo à frente edizia que iríamos parar nela. Então ele saíacorrendo para chegar à sombra antes. Quandolá chegávamos ia procurá-lo ele estava trepadona árvore!Filho, você não tá cansado?

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Agora já passou.Então vamos andar...Ah, pai, aqui tá gostoso...Ríamos todos.Era ver um riacho que o Esio queria tomarbanho. Sei que ele entrou em todos oscórregos e riachos, rios e cascatas queencontramos durante a caminhada. Ficavapara trás nadando depois vinha correndo aomeu encontro: puxa pai, como você anda!Eu ria, todos ríamos... ele era muito engraçado!Num tal momento eu o vi sem camisa. Filho,onde está sua camisa?Ele me disse que havia colocado dentro docarro que estava ali nos acompanhando.Eu falei para ele que ia fazer muito calor e queera para se proteger, mas não teve mesmojeito.Mas avisado ele estava e quando o sol ardeumesmo, veio reclamar que estava com ascostas queimando. Eu olhei para o Thalles queestava com a camiseta pendurada na bermuda.Thalles, você vai usar a camiseta?Não, Pai.

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Então empreste para seu irmão que ele estáreclamando do sol. O Thalles pegou a camisetae deu para o irmão. Mas esse me saiu comessa:Eu não vou colocar camiseta do Palmeiras. Deporco. Prefiro tomar sol a colocar camiseta deporco. Não me sobrou outra alternativa.Coloquei a camiseta do Thalles, que ficoucurtíssima em mim e dei a minha para o Esiovestir, que por ser ele tão pequeno, quase lhechegava aos pés...Chegamos em Salto perto das quatro horas datarde. Fomos tomar banho no hotel...O Esio vestido daquele jeito parecia umapalhacinho. Todos riam... ele não estava nemaí... corria na estrada e entrava nos riachospara tomar banho... subia em árvores e ficavaatirando pedras.Aliás, falando em pedras, o Esio tem umtalento especial para atirar pedras. Enquanto ade todos nós quando atirada atingia umamedida razoável de distância, a dele, quandoatirada ultrapassava em mais que o dobro dasdistâncias das nossas. No rio Tietê ele ficavabrincado de fazer as pedras atravessarem o rio

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enquanto as nossas caíam no meio dele... erapura diversão...Em Salto a canseira bateu fundo nele. Era atéengraçado aquela coisinha miúda de gentetentando subir as calçadas e não conseguirpelo cansaço... a gente ficava olhando e ria,ria, ria...Mas logo depois do banho, criança se recuperarapidamente, lá estava ele novamentebrincando e fazendo gozação com todos...Fomos até o restaurante do Laércio, comosempre, descansamos, jantamos e dormimos...Na quarta-feira seguimos para o Atalho, onde aThaís, o Thalles, o Esio e as outras crianças,quando chegaram no descidão de mais dequinhentos metros de serra, ladeira abaixo,brincaram de escorregador. Mas num momentoa Thaís que seguia na frente enroscou o pénum cipó e foi uma montoeira de criançasenroladas no meio do mato... a gente riamuito...O Miguel de Carvalho e sua turma, tradicionalcomo a nossa, seguiu um bom momento juntocom nossa turma. Ele carregava o Esio no coloe dizia que esse era campeão... também aquele

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pingo de gente dava um show de risos naturma...Dormimos em Cabreúva e na quinta-feira demanhã seguimos para Pirapora. Foi umaviagem deliciosa. Me senti plenamenterealizado por estar ali com meus três filhos...Já em Pirapora a gente ficou conversando coma turma que chegava e logo, logo, fizemos decarro nossa viagem de volta, ansiando quelogo chegasse 1996...Depois dessa viagem, onde a Thaís, o Thalles eo Esio se fizeram presentes, fui explicandopara eles que estávamos passando numpedaço sagrado de terra. E contei-lhes ahistória de nosso Brasil, mais precisamentedos Bandeirantes, que há mais de três séculospassavam pelos mesmos lugares ondehavíamos passado. Lhes contei sobre o Tietê,que era o caminho para que os desbravadoresda época desvendassem o sertão do Brasil,enfim contei mesmo um pouco da História doBrasil que muito me apaixona. No Poema OsRomeiros eu iria escrever alguns anos maistarde essa história mas para gravar estemomento, compus este soneto que se segue:

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Em Romaria

Estes caminhos rudes, sertanejos,Guardam histórias do Brasil-criança,

Época de homens cheios de esperançaE com os olhos cheios de desejos.

Os olhos Bandeirantes de lampejosBuscavam do Brasil nativo, a herança;O ouro era o faro e a bem-aventurança

Aos homens que seguiam em cortejos...

E hoje, Filhos, nós, juntos, nesta estrada,Parecemos sentir ainda o cheiro

Das sagas das Entradas e Bandeiras!

E no velho Tietê, rude e cansada,Velha piroga envolta em nevoeiro,

É um vestígio das matas brasileiras!

23.04.1995

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1997

Nesse ano nossa turma era bastante grande.Pela primeira vez, juntos com nossa turma, iamdois irmãos moradores do Paredão Vermelho,além de vários ex-alunos meus do Barão do RioBranco, que já haviam ido ano anteriortambém.O mais importante mesmo desse ano, foi meufilho Thalles e meu ex-aluno Gustavo, quetambém era amigo de meu filho. Elesdecidiram que além de ir, também iriam voltara pé de Pirapora.Eu me enchi de cuidados, ambos tinhamapenas 17 anos, mas como segurá-los nessesonho se um dia também foi um meu sonhoirrealizado? Puramente dei todo o apoio. Queapenas tomassem cuidados redobrados.Sei que eles encheram a mochila de macarrãoinstantâneo, levaram também uma panelinha, emesmo quando parávamos, já na ida, elesmesmos faziam a comida deles. Se adequavamantecipadamente à viagem de volta, quandoestariam sozinhos durante todo o percurso.

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O mais engraçado quando paramos paraalmoçar nos eucaliptais distante quatroquilômetros de Samambaia, e eles começavama fazer o miojo deles... Me lembro que um dosirmãos Paredão Vermelho guardou umaembalagem do macarrão para levarem para osítio, pois era um produto desconhecido poreles...Foi mesmo legal quando chegamos emCabreúva logo à hora do almoço. O Thalles e oGustavo almoçaram com a gente, e partirampara Pirapora. Depois fiquei sabendo que eleschegaram em Pirapora perto das seis horas datarde, descansaram apenas uma hora einiciaram o retorno. Eram parados por todosque ficavam sabendo que já haviam ido eestavam também de retorno a pé. Eramincentivados a ter uma boa viagem de retorno.Eu já estava dormindo em Cabreúva, perto deuma hora da manhã, quando o Thalles meacorda todo cansado:Pai, já cheguei. Estou morto de cansado!Acordei e ficamos conversando uns minutos.Logo ele caiu no sono.

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Na quinta-feira de manhã acordamos todos.Enquanto nos preparávamos para nosso fim deviagem, o Thalles e o Gustavo se despediam denós tomando rumo oposto. Nós indo paraPirapora, ele de volta para Piracicaba. Foimuito emocionante mesmo.Chegaram em Piracicaba no sábado logo apóso almoço, alegres, cansados e sonhando emoutra oportunidade, fazerem a mesma coisa,que até hoje não se repetiu...

Paredão Vermelho

Em 1997 um ex-aluno meu que também ia coma gente em peregrinação, veio me dizer queperto do sítio de sua família havia uns rapazesque gostariam de ir também em Pirapora masnão tinham companhia e se eles poderiam ircom a nossa turma.Claro, eles podem vir, sim.No dia apareceram os dois. Eram dois moçosque trabalhavam na roça. Vieram de calça debrim, camisa de mangas compridas, chapéu nacabeça e botinas..

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Achei engraçado mas quando indagado elesme disseram que trabalhavam na lida assim eestavam bem à vontade.Que seja! Cada um sabe como deve andar...O interessante é que eles falavam enrolado,quase que incompreensível mesmo. Era umalinguagem diferente, completamente diferenteà nossa. Na mesma hora foram apelidados deParedão!Todos os anos ele vêm, uma semana antes, deParedão Vermelho até a saída da cidade, rumoa Rio das Pedras, depois na outra semanaseguem com gente. São ótimos companheiros,aceitam nossas brincadeiras. O duro mesmo étentar entender o que dizem, pois falam rápidoe com um sotaque que não estamosacostumados.

Célia

Em 1971 o Armando Correa dos Santostambém foi com a gente em Pirapora. Moçobonito, pinta de galã, atleta. Gostava de jogarfutebol. Sendo que além do XV de Piracicaba

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jogou em várias outras equipes e também naGrécia. Era um bom centroavante.Esse tempo era moda ir a pé em Pirapora.Todos iam. Chegávamos a sair em mais dequarenta pessoas. Depois iam um, dois, nomáximo três anos e sumiam... começavam anamorar, na Semana Santa iam para a praiacom a namorada e depois se casavam e nunca,nunca mais se aventuravam a ir novamente...assim a turma não se renovou e foi diminuindosensivelmente.Mas voltando ao Armando, filho do CíceroCorrea dos Santos, que até morrer todos osanos ia se encontrar com nossa turma, levaralmoço para todos os romeiros e fotografar apaisagens e também aos romeiros, para depoispublicar no Jornal de Piracicaba.Nessa época a gente apostava a corrida naestrada. Era um tal de ver quem andava mais,quem chegava primeiro em Pirapora, mesmoque fosse por dois minutos... era engraçadomesmo... e a gente fazia aposta para ver quemchegava primeiro.Mas em 1972 suas irmãs Célia e Cleusa metelefonaram dizendo que queriam ir a pé até

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Pirapora com a gente. Foi uma loucura. Nuncahavíamos levado antes mulheres com a gente.Ainda mais mulheres da Sociedadepiracicabana, sendo que a Célia havia sidorainha de Festa de Peixe, a Cleusa uma dasmaiores passistas de samba de carnaval detodos os tempos.Eu não acreditei muito que elas fossem, maschegado o dia elas estavam lá, todasarrumadas para nossa aventura.O Armando quando soube que as irmãs deleiriam comigo e com o Pedrão a Pirapora, ficoulouco de raiva. Brigou com as duas, não queriaque elas fossem. A Célia era já casada, tinhadois filhos, o Fábio (Vermelho) e o Neto. Seumarido, Sérgio Signorelli, havia tentado anosantes, fazer a peregrinação, mas sem sucesso.Mas a Célia queria porque queria, assim comoa Cleusa.Chegado o dia, elas chegaram em casa pertodas sete da noite. A gente iria sair oito emponto. Depois foram chegando os outrosamigos e perto de nossa hora de saída, havia,com certeza, perto de cem pessoas em frentede casa. Uns trinta que iriam peregrinar, e

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pais, mães, irmãos, amigos e namoradas paranos desejarem boa viagem.Oito da noite em ponto saímos. A noite estavamuito linda. O Armando havia saído com outrosnossos amigos umas três horas antes, assimestava uma boa dianteira nossa.Passamos por Rio das Pedras, Mombuca eCapivari. A Cleusa andava muito bem. A Céliahavia ficado um pouco para trás, com o Adão eoutros.Quando saímos de Capivari com destino aSamambaia, estávamos todos juntos, já.Assim que chegamos em Samambaia, pertodas sete horas da manhã, o Armando assimque nos viu, saiu em disparada estrada afora...A gente ria da infantilidade dele...

Um parêntesis:

A Célia e a Cleusa durante toda a viagem,bastava a gente parar para qualquer coisa, nomeio do mato, canavial, sombra, e elas abriama mochila, tiravam de dentro o kit beleza... eera uma passando batom, outra passando pó

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no rosto... Aquele calor, corpos suados, e elasimpecáveis andando na estrada...Assim foi durante toda a viagem. A gentechegava num lugar e ele partia. Em Salto, ondenossa parada era maior, ele desapareceu e foidormir noutro lugar. Foi muito engraçado. Nacidade havia sido inaugurada uma churrascariamuito bonita. Ao passarmos em frente a Célia ea Cleusa quiseram ir jantar nela. Estávamosnuns trinta romeiros. Assim que entramos nachurrascaria os presentes nos olharam comdesconfiança... parecíamos um bando demolambos. O garçom ficou em dúvida se nosatendia ou não, mas lhe dissemos que éramosromeiros, estávamos indo para Pirapora equeríamos jantar apenas. Se ele estavaachando que não tínhamos dinheiro,pagaríamos antes... Ele aquiesceu. Formamosuma enorme mesa, e a um canto, umamontanha de mochilas. Pedimos do bom e domelhor. Todos nos olhavam incrédulos e tantoassustados. E a gente ria, comia e se divertia...Perto das dez da noite pagamos nossa conta,que ficou muito alta, e fomos dormir no chãode paralelepípedos da estação ferroviária.

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Jantamos como reis e dormimos comomendigos...Antes das quatro da manhã acordamos paraseguir para o Atalho. E a alegria era constanteem todos. Quem passava por nossa turma evinha falando alto ou dizendo coisas mais oumenos fortes, ao verem duas moças baixavamo tom faziam a maior reverência. Ouvíamosmesmo dizer: olha o respeito, aqui têmsenhoras! Outros mais conheciam a Célia e aCleusa dos carnavais da Zoom-Zoom e vinhamconversar...Chegamos no Atalho ainda era madrugada, porisso ficamos na casa do seu José ondetomamos café e comemos bolo de fubá. Assimque o céu começou a pintar as cores daalvorada, fomos nós mato adentro pelo meio doAtalho, sempre lindo.Mas chegamos em Cabreúva. O Armando assimque nos viu chegar, pôs os pés na estrada. Agente ria da infantilidade dele...Assim que chegamos no Bananal, vimos oArmando descansando sob os eucaliptais. Eudisse para a Célia: olha o Armando... vamospassar direto e ele não vai nos ver. Sei que

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seguimos sem parada. Soubemos que oArmando perguntou depois para unsconhecidos onde o Esio, o Pedrão e suas irmãsestavam e ao saber que havíamos passado porali sem parar, ele saiu como louco... vimos elese aproximar da gente pisando firme no chão.Parecia não nos conhecer... passou direto. Nãoteceu um só comentário...Depois paramos na bica e o Cícero, o Sérgio,marido da Célia e outras pessoas chegarampara nos servir almoço. Estava delicioso.Nascia aí uma tradição que até hoje éesperada por todos os romeiros: o almoço hojeconhecido pela turma da Zoon-Zoon, que servea todos os romeiros. Mas em 1972 eleaconteceu a primeira vez. Somente um ano elefalhou, foi em 1994, pois três meses antes, oCícero faleceu...Depois de lauto almoço seguimos paraPirapora. Assim que subimos o Tira-Saia, oArmando fazendo uso de uma piçarra, escreveuem letras que tomavam todo o asfalto: ESIO,VOCÊ PERDEU! Somente para mostrar quehavia chegado em Pirapora meia hora antes dagente... mas eu não perdi, nem ele ganhou.

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Apenas que todos nós chegamos ilesos nessaque foi uma deliciosa caminhada.Dias depois o Armando, arrependido do quefez, foi pedir desculpas para as irmãs etambém para mim. Bem sabíamos nós que agiupor puro ciúme das irmãs belíssimas então.Em 1973 a Célia e a Cleusa voltaram a ir edesta vez o Armando fez questão de ir junto.

Outras mulheres

Se no ano de 1972 levamos juntos com nossaturma as primeiras mulheres, Célia, Cleusa eAdeli, que por não estar acostumada a trancotão forte, desistiu ainda em Capivari, em 1973a Tânia foi junto. Foi apenas um ano. Depoiscomeçou a namorar, casou-se e nunca mais...Mesmo a Cleusa foi somente dois anos. Já aCélia mais vezes se fez presente, inclusivegrávida.Dezenas de mulheres foram com a gente. Orasmoças, ora mulheres casadas. A Marili foi umadelas. Ela é mãe de um ex-aluno meu, o AlanBuck. O Alan foi comigo em 1996, junto comoutros alunos. A Marili, cujo marido tinha feito

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uma promessa há muitos anos passados, e nãopôde cumpri-la, em 1997 junto do filho, fez suaprimeira viagem... Até hoje, é uma dasprimeiras a me telefonar dizendo que diairemos sair.Foi ela praticamente que me salvou a vidanaquele fatídico ano de 2000, me levando dapracinha em Cabreúva, quando o molequetentou me agredir.Mas agora passa um filme na minha mente,enquanto vou escrevendo essas histórias, e melembro da Fátima, namorada-noiva-esposa doCarlos Roberto. Foi vários anos junto domarido. Também me lembro das amigas daminha filha Thaís, a Alexandra e sua irmã, daDaniela, minha ex-aluna, ruivinha... todavermelhinha... da Patrícia Coimbra, quecaminhou três dias sob imenso aguaceiro noano de 1991, e mesmo agora me lembro detantas mulheres indo junto com nossa turma,ou com a turma do Miguel de Carvalho, doNenê, do Ângelo, e tantas outras turmas...É uma saudade gostosa ir me lembrando detanta coisa, tantos fatos...

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Um, porém, que não me esqueço, embora eufosse moleque ainda, eram aquelas moças daZona do Meretrício... todas maquiadas, bemvestidas, muitas de salto alto, andando nasestradas. Ai de quem mexesse com umadelas... Andávamos juntos respeitosamente.Falando diversos assuntos. Ali elas estavampagando promessas... nada mais...

Vermelho

O Fábio, filho mais novo da Célia, até entãonão havia nascido o Giuliano, era, por tercabelos ruivos, conhecido por Vermelho. Todoso chamavam assim, mesmo os familiares. Eraum menino esperto. Quando sua mãe foi aprimeira vez em peregrinação, seu aniversáriofoi comemorado em Pirapora, já que havianascido em 12 de abril de 1970, e sempre eraquaresma ou mesmo Semana Santa.Pois bem, desde que começou a ir junto do paie do avô para se encontrar com a mãe, faziaquestão se seguir a pé com a gente os últimosquilômetros restantes... íamos de mãos dadaspela estrada e aquele pingo de gente ia

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brincando muito e dizendo que também queriafazer a romaria a pé.A Célia foi protelando, mas quando elecompletou treze anos, e 1983, ele teimou e foijunto de nossa turma. Foi muito legal. Era ummenino esperto, gozador, bem humorado.Cansou muito. Era uma época que a gente saíaterça-feira e chegava em Pirapora naquinta-feira. Pouco descanso e muito de andar.Anos seguintes ele era o primeiro a metelefonar dizendo quando e a que horas iríamospartir. Assim foi até 1987, quando num 12 deoutubro, sofreu um acidente fatal de moto,vindo a falecer.Ele havia feito uma promessa de ir sete anos.Bem sei eu que se estivesse vivo, até hojefaria com a gente a romaria. Mas como foiapenas cinco anos, a Célia quis completar suapromessa e durante os anos de 1988 e 1989,foi com a gente novamente...Hoje, Vermelho, é uma saudade doída esentida. Em sua homenagem escrevi essepoema:

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Vermelho

Dormes...dormes talvez... mas que sonoprofundoÉ este o teu, meu Amigo? ah, por que dormestanto?Sai desta letargia e vai vencer no mundo,Vê se rebenta o riso onde há convulso pranto!

Sai do sono tranqüilo e agarra-te na vida...Não deves dormir tanto, esse sono incomoda...Não vês que a primavera está toda florida?O sono, meu Amigo, está fora de moda...

Por que dormes assim neste sono de pedra?Que anestesia foi que te deu tanto sono?Vê, meu Amigo, a Vida em flores vibra e medra,Se agora é Primavera, acorda desse outono.

Acorda, acorda e vem... vamos de novo, Amigo,A estrada palmilhar juntos nos mesmospassos.Se te cansares, te farei um bom abrigo,E se preciso te carregarei nos braços.Vamos na alegre romaria à Pirapora,

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Eu e o Pedrão te ajudaremos na subida.Vermelho! Antes que o sol tinja de rubro aaurora,A estrada irá ficar, atrás de nós, vencida!

Porém, dormes agora e este teu sono é eterno.Não podes mais soltar os teus gritos no Atalho.E teu sorriso largo, amplo, sonoro, terno,Não mais irá espantar os pássaros no galho.

E te vejo a dormir este sono profundo,Que força pode haver para acordá-lo Fábio?Será que pode haver força ultriz neste mundoPara o riso brotar alegre de teu lábio?

Mas nada te desperta e o teu sono é de morte,Não pode mais sorrir o teu lábio gelado.Nada há que se fazer para mudar a sorte,Nada há que se fazer para mudar o Fado.

Ah, meu querido amigo, a tristeza me invade,Só consigo nessa hora atroz e derradeira,Sentir de ti a mais tristonha da Saudade,Que irá me acompanhar calada, a vida inteira.

14 de Outubro de 1987

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1991

Tantas vezes indo para Pirapora, que tudoparece se repetir num marasmo. Nada disso.Cada ano é totalmente diferente. Nada é igual.Quem um ano vai bem, ano seguinte sofre.Mas 1991, foi um ano diferente por causa dachuva. Chuva que continuamente desde a noitede segunda-feira, até sábado da SemanaSanta. Esse ano, em especial, muito mais doque em 1976, outro ano de fortes chuvas, foium ano angustiante para se andar. A chuvacomeçou perto das dez da noite. Eu já estavaem Rio das Pedras. Junto a nós estava meuantigo professor de Física, Abelardo Cicarelli,com 72 anos e safenado... Eu havia lhe faladoantes de nossas primeiras passadas, que eleiria me pagar um zero que me deu em Físicaem 1971. Rimos muito disso.Andamos, pois, até Rio das Pedras e começoua chover. Estávamos então sentados numbanco do posto de combustível. Como a chuvademorasse mais de meia hora, e a gentequerendo ir até Mombuca pelo menos, disse ao

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professor que estava na hora de ir. Ele entãome falou:Esio, invernou.O quê? Perguntei.Ele respondeu: invernou. Vai chover a semanainteira. Eu disse que isso seria impossível. Eele tornou a falar: sou agrônomo, cuido comterra faz mais de 50 anos. Invernou mesmo.Vou telefonar para meu filho vir me buscar quenão quero tomar tanta chuva. Ano que vempode me esperar que voltarei sem chuva.E não é que ele, meu velho e estimadoprofessor de Física estava certo?De Rio das Pedras a Mombuca choveu muito.Decidimos dormir aí, pois a chuva era intensa.Quando falei para o Netinho que íamos dormirno portão do cemitério, ele, criança ainda, emsua primeira caminhada saiu correndo de medoe só foi parar já na cidade, posto que emMombuca o cemitério fica uns oitocentosmetros das primeiras casas.Sob chuva acordamos na terça-feira e ela nosseguiu até Capivari. Ali almoçamos e fomospara Samambaia. E tome chuva. Eu achei umsaco de lixo daqueles grandes: furei cada lado

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e o meio e meti no corpo como capaimprovisada, que me serviu até Pirapora.O barro na estrada era tanto, que grudava nostênis. Para mim que sempre vou de chinelashavaianas, as mesmas grudavam no chãoformando vácuo e era um passo a frente eoutro atrás para tirar as chinelas quegrudavam no chão. Decidi ir somente de meiasnos pés, no que foi uma idéia acertada e feliz.Até Salto não tive mais problemas, só trocar asmesmas que ficavam todas rasgadas.Com muita chuva saímos de Samambaia paraSalto. Eram seis horas da tarde. Tudoatrapalhava: barro, chuva, frio, roupasmolhadas...Por causa de uma ponte quebrada, havia umabifurcação. Todos nós mais experientesachamos que devíamos seguir pela direita.Erramos o caminho e andamos cerca de 10 km.a mais. Dava vontade de desistir, chorar,chamar a mãe... mas tivemos força e corageme não desistimos mesmo… fomos chegar aSalto mais de duas horas da manhã. Fatigados,molhados, com fome. Nos dirigimos até o Hotel

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Brasil, nossa parada de muitos anos, tomamosbanho, jantamos e caímos na cama.Dormimos até hora do almoço da quarta-feira,quando almoçamos e decidimos ir para oAtalho e daí para Cabreúva.Já não chovia apenas. Parecia que o céu iriadesabar sobre nossas cabeças em mundos deágua. Era um dilúvio mesmo. Mas seguimosfirmes. No Atalho a neblina era imensa. Não seenxergava quase que palmo adiante do nariz.Muito frio. Eram quatro horas da tarde apenas.Mas seguimos confiantes. Os pés atolavam nobarro até os joelhos. A caminhada se tornavadifícil, a descida da serra foi feita um dando amão para o outro para não cair e se machucar.Mas conseguimos e logo após a Gruta ondetomamos banho na bica, tomamos café econtinuamos a caminhada sob imensa chuva.Chegamos em Cabreúva perto de sete na noite.Ao entrarmos na cidade o Netinho viu umabrigo muito bom para dormir. Foi indo para láe me chamou. Eu ri e disse que ali era ovelório, bem ao lado do cemitério. Como emMombuca ele saiu correndo, correndo,totalmente assustado. Rimos muito.

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Chegamos ao centro. A praça estava apinhadade gente. O coreto estava abarrotado. Olheiuma casa em frente à praça e pensei: voudormir naquela área.Bati à porta saiu uma Senhora perto dosoitenta anos. Pedi para dormir. Ela foicategórica: NÃO! Mostrei-lhe, ou tentei mostrarque éramos gente simples e honesta, queapenas queríamos um local para dormir ondenão chovesse. Que estávamos andando faziatrês dias sob chuva. Ela dizia não.Apelei mesmo, disse que estava com ummenino, o Netinho e uma moça junto que eraadvogada. Era verdade, a Patrícia Coimbraestava junto com a gente. Também estava oBoy e outros amigos.Aí ela falou que a gente iria estragar as plantasdela. Eu afiancei-lhe que nada faríamos paraque elas se danificassem. Ela aquiesceu.Deixou a gente entrar na área da casa. Depoisvendo o menino e a Patrícia, ficou com dó eaté ofereceu o banheiro. Depois ainda chamouo Netinho e lhe ofereceu um copo de leite comchocolate e um pedaço de bolo. Seu coraçãoamoleceu. Chegou sua filha Dalva, sua neta

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Tânia e ficamos conversando. Ficamos amigos.Sempre lhe telefono ou a visito. Hoje enquantoestou escrevendo essas linhas, ela faz 93anos. Ainda não lhe telefonei.Ficamos amigos mesmo. Amizade sincera.Conheço-lhe filhos e demais parentes. Comuma sua irmã e com a neta, quando chegavaàs quartas-feiras para pernoitar e no outro diapartir para Pirapora, na cozinha ficava jogandoescopa quinze. E lhes ensinava o truque decontar os pontos antes de jogar a últimacartada, conforme aprendi ainda criança commeu pai.Continuando. Fui tomar banho numa calha quesaía do telhado. Não havia outro lugar. Choveua noite toda também. Na quinta-feira maischuva. Hora ela era meio fraca, depois caíaaos cântaros. Para se chegar a Pirapora foiuma tempestade. Mas chegamos todos bem,sem maiores problemas. Até hoje 1991 élembrado como o ano da chuva. Para os maisantigos, como eu e o Pedrão, são duas datas:1976 e 1991, anos de muita chuva.

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2000

O ano dois mil para nós estava uma viagemmuito gostosa. Pelo primeiro ano havíamosdormido no Camping Casarão, onde semprepasso as festas de final de ano. Portanto naquarta-feira já de manhã estávamos indo paraCabreúva.Lá chegando dona Maria ao invés de oferecer aárea de sua casa para dormirmos, nosofereceu uma casa de sua filha Dirce,desocupada, para pernoitarmos. Nossa turmaagradeceu muito. Tinha até chuveiro. Quando aturma do Miguel de Carvalho chegou,oferecemos o chuveiro para eles também. Sãonossos velhos amigos tanto de estrada comoaqui da cidade.À noitinha estávamos na praça conversando.Me lembro bem. Num banco estávamos osParedão Vermelho, o Luis, meus filhos Thallese Esio e a Marili. Sentia o clima diferente.Alguma coisa estava por acontecer. Via algunsdrogados, sentia cheiro de tragédia no ar. Fuiaté a Delegacia e pedi para um policial ir fazeruma ronda na praça, pois o clima não estava

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bom. Voltei para o mesmo banco econtinuamos a conversar. Decidimos ir àIgreja, para rezar. Foi quando um garoto de uns17 anos, veio por trás de mim e tentou me daruma rasteira. Olhei e pensei que ele tivessetropeçado. Estava visivelmente drogado.Eu ainda tentei ajudá-lo, pois pensei que defato houvesse apenas tropeçado. Quandotentei segurá-lo se desvencilhou de mim epassou a me xingar, tentou me empurrar, veiopara cima e tentava me agredir. Os queestavam perto percebendo meu apuro melevaram para dentro da casa onde íamosdormir e ele ainda me xingando muito, dizendoque ia me matar.Preocupado com o fato chamei o Pedrão,sempre o Pedrão, meu velho amigo, enarrei-lhe o fato. Ele calmo quis saber quemera o menino. Mostrei-o já que ele estava amenos de cinqüenta metros de mim. Então oPedrão junto com outros meus amigos ochamaram e ele veio conversar. Parecia calmo.Cheguei perto e indaguei-o do porque tentarme agredir. Ele disse que não havia feito nada,que não me conhecia, e que apenas

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mandaram-no ir matar um tal de Esio, e que eunada tinha a ver com o caso. Então lhe disse,amistosamente, que eu era o Esio. Nessa horaele abriu a mão, me mostrou um pelote de colaque cheirava e voltou a me xingar. Tentou virpara cima de mim, mas meus companheiros oimpediram.Voltei para nossa casa e fiquei por lá. Nãogosto de confusão e muito menos de briga. Eubem sabia quem estava por trás disso tudo, umvelho desafeto de mais de quinze anos... umdelinqüente que podendo, faria tudo paraincitar outras pessoas contra mim. ele mesmoapenas incitava, depois fugia, como a mostrarque nada tinha a ver com a coisa.Fiquei dentro da casa sozinho praticamente.Os outros nada tinham a ver com o caso,portanto permaneciam na pracinha da cidade.De repente ouvi um barulho e fui olhar pelajanela o que estava acontecendo. Vejo meusfilhos e, mais companheiros vindo a passoslargos para onde estava. Meus filhos me dizemque aquele rapaz que tentara me agredir,queria porque queria confusão e mexendo comum rapaz da cidade que passava pela praça

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com a namorada, tentou puxar briga, mas orapaz lhe deu uma rasteira e ele, mesmo caído,pediu para um outro que o acompanhava seurevólver e a queima roupa atirou no rapaz, quedeu alguns passos e caiu morto.Foi uma revolução na praça da pequenacidade. Os moradores saíram no encalço dojovem assassino, capturaram-no e teriammesmo matado-o se não fosse a ação policial.A praça minutos antes apinhada de genteesvaziou-se rapidamente. Quem ali descansavatomou rumo da estrada assustados emedrosos, a policia então veio fazer seu papel,mas já era tarde... um inocente havia sidomorto e por pouco, muito pouco, não havia sidoeu.Esse fato mudou radicalmente o ânimo dosromeiros tradicionais. Eu mesmo nunca maisdormi em Cabreúva, fazendo dessaaconchegante cidade, apenas um ponto depassagem.Hoje nossa turma passa duas noites noCamping Casarão, onde é muito bem tratada.Quando chegamos em Cabreúva vemos gruposde policiais já na entrada da cidade sendo que

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muitos passam por revistas. Já não é maispermitido descansar na praça e o tempo que lápermaneço me serve apenas para fazer umavisita de amizade para d. Maria, que sempredemonstra enorme afeto e dedicação por mime pelos meus amigos.Depois ainda em Pirapora, nesse mesmo ano,ouço aquele velho desafeto me dizer que dapróxima vez eu não escaparia... mas não creionão, na sua maldade idiota e nos seusmaléficos prognósticos.Esse homem sem juízo é aquele mesmo garotoque me torrou a paciência em 1986...Se tanto acredito no meu Bom Jesus dePirapora, as maldições idiotas de um estúpidonão me causarão mal algum...

Alguns perigos

Indo para Pirapora, sempre existe algum riscoou perigo. Eu particularmente não gosto deandar à noite, só quando preciso. Durante o diavejo tudo ao meu redor. Já à noite, quaseimpossível avistar uma aranha, uma cobra, queàs dezenas cruzam as estradas. Nossa turma

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mesmo já matou dezenas de aranhas e cobrasde variadas espécies pelos caminhos. Massempre durante o dia. Já à noite...Foi assim no ano de 1977 com meu amigoCaprânico. Ele parou com o Deco Peregrinottipara descansar num barranco e foi picado poruma aranha armadeira. Venenosíssima. Nãomorreu pela ação rápida do amigo, quearrumou condução, levou-o até o InstitutoButantã, e como havia conseguido capturar aaranha também, foi mais fácil ele receber osoro adequado e ser salvo.Meu filho Esio, na sua segunda viagem, tentouentrar num riacho para se banhar... nãopercebeu que havia uma casa demarimbondos. Quando notou elas voaram paracima dele. Rápido ele pulou para dentro doriacho e assim escapou quase que ileso.Tomou apenas algumas picadas. Depois aindaficou dizendo que engoliu alguns girinos...No final o susto foi até pequeno e valeu muitasrisadas...Em 1981, quando levava minha segunda cruz,no alto do Atalho um enxame de abelhas nosatacou.

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Levamos várias picadas também mas nada quepreocupasse...

1989

Este ano foi muito engraçado. Um dia antes desairmos fui à casa da Célia, que após a mortede seu filho Vermelho iria novamente, assimcomo já havia ido em 1988. Era uma turma boa.Em sua casa ela me disse que por andar umpouco mais lento do que eu e o Pedrão, iriasair de manhã, assim ficaria esperando por nósem Capivari.Então disse que não iria sair na terça-feira àtarde, mais sairia também de manhã. Pois nooutro dia cedo estávamos uma turma de 28para a peregrinação. O Cícero logo cedo nosfotografou na saída para colocar no Jornalnosso início de caminhada. O sol estava forte,muito forte, como sempre, aliás. Quem seguiajunto pela primeira vez era o Milton Mastrodi,advogado.Andamos forte até Mombuca. Quandotentamos sair para chegar em Capivari não foipossível. Estava mesmo muito, muito calor

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mesmo. Paramos para esperar o sol baixar umpouco no mesmo ponto de ônibus onde em1981 eu levando cruz queria dormir. O Zancaficava imitando o Cícero em sua formaengraçada de dizer as coisas, a turma toda ria.Bem depois que o sol baixou um poucopudemos continuar. Chegamos sem problemasem Capivari. Tomamos banho e descansamosumas duas horas. Depois sete da noitepartimos para Samambaia. Andamos firmes.Foi a gente chegar lá e D. Cida, mãe do RogérioPousa, acompanhada do Rodolpho chegoulevando enorme caldeirão de sopa de frangopara todos. Estava uma delícia. Depois aindachega o Gabi com mais comida. Ficamosfartos. Dormimos legal no abrigo da casa doTico, filho do seo Ricieri.Quatro da manhã partimos para Samambaia.Quando chegamos num riacho que sempretomávamos banho, a ponte havia caído e haviaenorme grupo de charretes tentandoatravessar. Estava difícil e nós ajudamos. Comágua pela cintura atravessamos para o outrolado do riacho, mais de vinte charretes. Aindabem que os animais passaram sozinhos e sem

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problemas. Legal era que todas as charretestraziam aparelho de som. Seis horas da manhãe a estrada estava com um som ensurdecedorde música sertaneja.Depois seguimos. Me lembro que começou aclarear e eu parei na igrejinha do Pinheirinho ecobri o rosto. Dormi creio que quinze minutos eacordei restabelecido. Chegamos em Saltoperto das nove da manhã. O Milton Mastrodiestava um caco. Tinha um pé dentro da bolhade água! De tão grande que era a bolha... elapegava quase que toda a sola de seu pé. Davadó dele em ver. Sei que tomamos banho,almoçamos e tentamos ir para a Boca doAtalho. Aconteceu a mesma coisa do ocorridono dia anterior. O sol estava ainda mais forte.Precisamos parar sob a sombra dos eucaliptos.Passou um sorveteiro chato, que ficavatocando gaita. Tomamos todos os seussorvetes, e ele tocava a gaita e gritava quevendia sorvetes. O Milton quis furar a bolha e passarMerthiolatte. Perguntou se ia arder e eu lhedisse que ia, sim. E ele novamente perguntouse eu assopraria e eu disse que sim.

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Pois ele furou aquela bolha imensa... eraágua e sangue. Depois ele pegou o vidro deMerthiolatte e derramou sobre a ferida. Eucomecei a assoprar, mas ele dizia que ardiamuito. Cansado como estava ele puxou o péperto da boca e começou a assoprar. Deu dó,mas ríamos todos dele... Depois á tardezinha chegamos no Atalho.Íamos passar a noite na varanda do casarãoexistente. O que tinha de aranhas em suasteias dava para encher um balde... mascansados como estávamos, nem ligamos... Perto de três horas da manhã ouço rojões emuitos gritos. Ouvi alguém chamando meunome. Acordei direito e ouvi atento. Era o Netofilho da Célia e o Gabi que resolveram fazeruma surpresa: levaram enorme caldeirão desopa para a gente comer. Acordamos esaboreamos aquela delícia. Ficamosconversando até perto de cinco da manhã eresolvemos atravessar o Atalho. Estava linda amanhã que nascia. Os novatos, que eram maisde dez, adoravam a paisagem. Chegamos emCabreúva, descansamos umas duas horas epartimos...

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O Milton capengava na estrada. Ele veio meperguntar se estava longe e eu lhe disse queera só virar a curva, depois do semáforo echegava. Ele tão cansado nem percebeu o quelhe disse... semáforo na estrada... mas euprecisava mentir assim ele iria andando... Depois que ele percebeu minha mentiranem ficou bravo, de tão cansado que ele tava.Mas chegou em Pirapora. A turma toda chegoumuito legal. O Milton somente voltou novamente em1994, quando levou sua filha Cláudia, e semprevive me dizendo que ano que vem vai... masnão vai... Também daquela enorme turma de 28pessoas, claro, somente eu e o Pedrãocontinuamos firmes em nossas caminhadas...

Amigos

Depois de quarenta anos indo paraPirapora, impossível seria lembrar de todas asamizades que fiz por esses caminhos equantos amigos que fiz cometerem a deliciosaloucura. Mas como me esquecer do Miguel deCarvalho, do Nenê, do Ângelo, do Edson, do

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Ninhão, do Carlos Roberto, do Ivan, doBuzunga, dos meus ex-alunos, cujos paispermitiam que fossem comigo, do Nizar, doGibe Coimbra, do Laércio Moretti, seus irmãose seu filho, do Nicolinha, do Kiko Della Valle,do Rodolfo Salvaia, do Lambari... tantos,tantos, tantos me vem á lembrança nestemomento. Em algum momento da estradacaminhamos juntos, falamos diversosassuntos, sonhamos, sentimos dores,lamentamos ausências, vimos o auge dascaminhadas e agora quase que sozinho, juntocom o Pedrão, e outros poucos, continuamosnessa faina de caminhar, caminhar, caminhar. Parodiando antigo ditado português,caminhar é preciso, viver não é preciso...

Pedrão

Pedro Brancalion. Pedrão. Conheço o Pedrãodesde minha infância. Ele tem treze anos maisdo que eu. Quando com meus 15 anos emminha primeira romaria, ele possuía 28 anos.

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Rosto calmo, sereno, voz pausada. Olharlímpido e azul. Hoje cabelos brancos. Amigo.Muito amigo. Palmeirense como eu. Meu muitoe estimado amigo. Amigo de todos. Tanto jáme ajudou nas caminhadas. Quando de minhaprimeira caminhada, levou nos ombros, paraque eu não me cansasse muito, minha mochila.Aliás, já levou nos ombros mochilas de quasetodos. Se alguém está meio mal das pernas,ele fica ajudando. Se alguém precisa dealguma coisa, ele tem sempre o que seprecisa. É Pedrão um amigo do peito.Eu o conheço desde quando ele jogava nalateral direita do juvenil do Oratório DomBosco. Tem mais de 45 anos essa amizade.Meu respeito por ele é mais simples e aomesmo tempo é atemporal. Juntos em nossascaminhadas, estamos faz 40 anos. Sentimoshoje que já não somos mais crianças. Estamoschegando ao final de nossas caminhadas. Vaificar uma saudade infinita quando nãotivermos mais pernas para tal. Mas enquantoesse momento não chega vamos sonhar cadavez mais com o próximo ano. Eu tenho 40

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caminhadas nas costas. Pedrão está com 48.Daqui dois anos elefaz seu jubileu de ouro. Eu estou completandoo de rubi. Não conheço ninguém com tantosanos dedicados a tal romaria. É algo queduvido que alguém supere.Quando em 1984, na sua vigésima quintacaminhada, bem me lembro da festa quefizemos para você. Foi pouco, muito pouco.Você por certo, mereceria mais. Mas sei que2009, quando você completar seu Jubileu deOuro, faremos uma festa bem à altura de suaamizade.Obrigado, Pedrão, por um dia, no distante anode 1968, ter ido à minha casa dizer aos meuspais que olharia por mim na estrada, obrigadopor tanto carinho e por tanta dedicação nessesanos todos. Sorte que tive em lhe dizer naqueledia que iria a Pirapora e não sabia com quem.Obrigado por me levar e depois aos meusFilhos, nessa caminhada alucinante que é ir aPirapora a pé todos os anos.Um dia um de nós será saudade. Quando issoacontecer um olhará pelo que ficar noscaminhos da jornada. E quando um dia

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novamente reunidos, faremos romarias no céu,para lembrar das romarias da terra...Para terminar: muito obrigado, Pedrão, por suaamizade e por tanto permitir que eucaminhasse, e também aos meus filhos, essesanos todos ao seu lado.Que Deus te proteja sempre!

2009 chegou.

Após quatro anos volto a escrever para estelivro. E o motivo deste retorno são os 50 anosde romaria de Pedrão.

Seu jubileu de ouro.

Saímos de Piracicaba dia cinco de abril,domingo, logo de manhã. Nosso propósito eramesmo chegar a Pirapora somente nove, naquinta-feira. Há vários anos já temos saídocom essa folga de tempo. Não que estejamosfracos e fiquemos cansados demais. Nadadisso. É pura diversão mesmo que temos vividoa cada ano em nossas viagens.

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Pedrão e eu, mais Buzunga, Marili, os doisirmãos do Paredão Vermelho, Gilberto e maisgente.

Fim

Comecei a escrever este livro no dia vinte enove de março e terminei no dia quatro de abril

de 2005

Esio Antonio Pezzato