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Pintura de Rubens, gravura flamenga e pinturas coloniais brasileiras: a trajetória de uma imagem em versões historicamente motivadas Camila Fernanda Guimarães Santiago Doutoranda - Universidade Federal de Minas Gerais O presente trabalho investiga os desdobramentos coloniais de algumas pintu- ras do mestre do barroco flamengo Pedro Paulo Rubens (1577-1640). Várias de suas obras foram traduzidas para gravuras que se alastraram pelo Novo Mundo e inspiraram artistas nessas paragens. Verticalizarei a análise numa pintura inte- grante da decoração interna da Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo – MG, nitidamente baseada numa estampa flamenga que, por sua vez, acredito ter no quadro de Rubens A Adoração dos Pastores sua ma- triz. O mesmo impresso motivou outras peças que serão apresentadas. O aparecimento da gravura transformou as histórias da arte e do catolicismo no ocidente. Desde fins da Idade Média, distribuíam-se, com fins didáticos, estam- pas religiosas aos peregrinos e fiéis. Tratavam-se de xilogravuras: imagens obtidas a partir de blocos de madeira talhados que, cobertos de tinta, eram prensados sobre papel. No século XV, metais, preferencialmente o cobre, passaram a ser usados como suportes. Ao contrário da xilogravura, em que o pigmento ressalta os relevos da pla- ca, a nova técnica, conhecida como calcogravura, caracteriza-se pela formação de poças de tinta nos sulcos feitos por instrumento perfurante, como o buril, ou pela água-forte. A impressão é realizada pela passagem da prancha por tórculo formado por dois rolos horizontalmente dispostos. Já em meados do século XV, o norte europeu, atuais Alemanha, Holanda e Bélgi- ca, produziu e espalhou gravuras de alta qualidade. Na Itália, a arte floresceu de ma- neira espetacular, acompanhando os desenvolvimentos estéticos da região. Aliou-se mais imediata e intimamente às outras artes, servindo para multiplicar os modelos usa- dos nos ensinamentos de aprendizes de pintura, escultura e ourivesaria. Os pintores italianos logo se cercaram de exímios gravadores que reproduziam e difundiam suas obras. “As a craft, engraving in Italy tended more quickly than in the north to yield do

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Pintura de Rubens, gravura flamenga e pinturas coloniais brasileiras: a

trajetória de uma imagem em versões historicamente motivadas

Camila Fernanda Guimarães SantiagoDoutoranda - Universidade Federal de Minas Gerais

O presente trabalho investiga os desdobramentos coloniais de algumas pintu-ras do mestre do barroco flamengo Pedro Paulo Rubens (1577-1640). Várias de suas obras foram traduzidas para gravuras que se alastraram pelo Novo Mundo e inspiraram artistas nessas paragens. Verticalizarei a análise numa pintura inte-grante da decoração interna da Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo – MG, nitidamente baseada numa estampa flamenga que, por sua vez, acredito ter no quadro de Rubens A Adoração dos Pastores sua ma-triz. O mesmo impresso motivou outras peças que serão apresentadas.

O aparecimento da gravura transformou as histórias da arte e do catolicismo no ocidente. Desde fins da Idade Média, distribuíam-se, com fins didáticos, estam-pas religiosas aos peregrinos e fiéis. Tratavam-se de xilogravuras: imagens obtidas a partir de blocos de madeira talhados que, cobertos de tinta, eram prensados sobre papel. No século XV, metais, preferencialmente o cobre, passaram a ser usados como suportes. Ao contrário da xilogravura, em que o pigmento ressalta os relevos da pla-ca, a nova técnica, conhecida como calcogravura, caracteriza-se pela formação de poças de tinta nos sulcos feitos por instrumento perfurante, como o buril, ou pela água-forte. A impressão é realizada pela passagem da prancha por tórculo formado por dois rolos horizontalmente dispostos.

Já em meados do século XV, o norte europeu, atuais Alemanha, Holanda e Bélgi-ca, produziu e espalhou gravuras de alta qualidade. Na Itália, a arte floresceu de ma-neira espetacular, acompanhando os desenvolvimentos estéticos da região. Aliou-se mais imediata e intimamente às outras artes, servindo para multiplicar os modelos usa-dos nos ensinamentos de aprendizes de pintura, escultura e ourivesaria. Os pintores italianos logo se cercaram de exímios gravadores que reproduziam e difundiam suas obras. “As a craft, engraving in Italy tended more quickly than in the north to yield do

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the service of some great painter or school of painting, and so developed earlier a style wich the more independent german goldsmith engraver was longer in seeking.”1

Muitos artistas renascentistas tiveram trabalhos estampados e disseminados pelo mundo. Marcantonio Raimondi, nascido em Bolonha em 1480, foi grande gravador de pinturas renascentistas, sobretudo dos trabalhos de Rafael. Outros se dedicaram a imprimir desenhos e pinturas do renomado mestre, que se tornavam modelos para artistas em diversos espaços, acompanhando os fluxos da progressiva expansão européia. Segundo Sebastián Santiago, Simon Pereyns, artista flamengo que foi para o México em 1566, criou sua Virgen del Perdón tendo em vista a es-tampa aberta por Marcantonio sobre estudo preparatório de Rafael para a Madona di foligno (1511-1512) e outra imagem desconhecida mas que, possivelmente, re-tratava a Virgem de Baldaquino da Pitti.2 Rafael influenciou, também, a arte de Minas Gerais setecentista, como pode-se notar nas imitações de azulejos do pintor marianense Manoel da Costa Ataíde (1762 – 1830) presentes na igreja Matriz de Santo Antônio, em Santa Bárbara, e na capela da ordem terceira de São Francisco de Ouro Preto, baseadas nas gravuras da Bíblia ilustrada por Demarne cujas passa-gens A promessa de Abraão e Os anjos na casa de Abraão são cópias da Bíblia de Rafael, na segunda loja do Vaticano.3

Essas constatações me motivam a indagar sobre o papel das gravuras no processo de mundialização ibérica, iniciado no século XV. Portugal e Espanha lançaram-se ao mar vislumbrando novas terras, encontrando novos povos, travando contatos comer-ciais e transformando-se, e às populações descobertas, no transcurso das interações culturais. Conquistando e colonizando porções da África, Ásia e da América, os ibéri-cos “exportavam” sua língua, suas crenças, instituições políticas e a arte do Velho Mundo. As estampas seguiam a reboque e inundavam as terras apropriadas com suas formas, concepções estéticas e valores, geralmente religiosos. Atuavam não apenas como subsídios da fé cristã, mas como insinuadoras das formas artísticas ocidentais, contribuindo para delinear o universo visual e artístico no Novo Mundo.

Rubens mundializado: criações artísticas americanas inspiradas em pinturas do mestre flamengo

A partir de meados do século XVI, intensificaram-se a produção e a circulação de imagens gráficas. Gravuras em metal passaram a ser mais requisitadas para ilustrar livros, esfera em que predominavam, até então, xilogravuras, tecnicamente mais fá-

1 HIND, Artthur M. A history of engraving & etching – from the 15th century to the year 1914. Nova York: Dover Publication, 1963.p. 37. 2 SEBASTIÁN, Santiago. Nuevo grabado en la obra de Pereyns. In: Anales del instituto de investigaciones esteticas, Vol IX, nº 35, 1966. p. 45. 3 LEVY, Hannah. Modelos europeus na pintura colonial. IN: RPHAN, Rio de Janeiro, nº 8, 1944. p. 8.

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ceis de serem impressas junto com os caracteres tipográficos. Definia-se e impunha-se no mercado a figura do impressor-comerciante, “print-seller”, que comprava, fre-qüentemente, as pranchas gravadas e as imprimia na medida em que as estampas eram demandadas. Mantinha sob sua supervisão gravadores responsáveis por retocar as perfurações no cobre toda vez que a matriz gastava-se, cansava-se, de tanto passar pelo tórculo. A maioria desses profissionais era dos Paises Baixos, como os membros das famílias Cock, Galle e Passe, e mantinham filiais das suas empresas em vários locais da Europa. A família Sadeler, por exemplo, tinha ramificações de seus negó-cios em Praga e Veneza. A firma de Crispin van de Passe possuía representantes em Paris, Londres e Dinamarca.

Alguns impressores-comerciantes também gravavam como Hieronymus Cock, provável escultor de pranchas não assinadas de sua casa. Outros célebres abridores de estampas da região foram Cornelis Cort, pupilo de Cock, Hendrik Goltzius, exí-mio na representação de tons e qualidades de superfície, e os componentes das famílias Wierixes e Van de Passes.4

Rubens beneficiou-se da fertilidade gráfica de sua terra e cingiu-se de gravado-res especializados em suas pinturas. Cornelis Galle, o velho, Willem Swanenburg e vários integrantes da escola de Goltzius decalcaram pinturas de Rubens, mas os primeiros treinados pessoalmente pelo mestre foram Lucas Vorsterman e Paulo Pontius. Trabalhavam, por vezes, no estúdio do pintor sob sua supervisão direta. Houve várias outras gerações de gravadores de Rubens, como a representada pelos irmãos Bolswerts.5

Traduzir as movimentadas, monumentais, intensas e coloridas pinturas do mestre flamengo em nuances de branco e preto não era tarefa das mais fáceis. Ele desenvolveu estilo marcado por rara intensidade cromática, capaz de oferecer sen-sações de superfícies e texturas através do emprego pouco servil das massas de tinta ao desenho. Coloria e iluminava suas telas com grande beleza, aptidões cer-tamente aprimoradas quando estudou na Itália, entre 1600 e 1608. Incorporou, deglutiu e transformou em linguagem própria as influências de Michelangelo, Ca-ravaggio e Ticiano.

Reproduzir uma pintura em gravura não significa copiá-la, mas traduzi-la me-diante técnicas e materiais muito distintos dos pictóricos. O resultado é uma cria-ção iconograficamente semelhante à matriz, mas, geralmente, em dimensões me-nores e sem cor. Os valores plásticos da pintura são transpostos para a estampa por meio do traçado do buril ou das linhas mordidas pela água-forte. A composi-ção gráfica “desmonumentaliza” a temática da pintura original não só por ser bem menor do que ela, mas por desconectá-la do local em que ficava exposta, possivelmente, no período moderno, um grande palácio ou igreja. Para contraba-lançar esse efeito, o gravador deveria zelar pela exatidão das proporções e das

4 HIND, Arthur M. A history of engraving and etching. p. 119-120. 5 HIND, Arthur M. A history of engraving and etching. p. 126-128. CABANNE, Pierre. Ru-bens. São Paulo: Editorial Verbo, 1972. p. 188.

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escalas dimensionais endógenas. Seu trabalho é ainda mais delicado no que se refere à tradução das cores para branco, preto e diversos matizes de cinza.6 O re-curso disponível é variar as tessituras dos traços – mais ou menos próximos, para-lelos, cruzados, na diagonal, intercalados com pontos etc. - induzindo-as a repre-sentar qualidades específicas de cor, manipulando o resultado mais escuro, por reter mais tinta, de linhas mais próximas e profundas. O procedimento nunca asse-gura código preciso, do tipo determinado tracejado correspondendo a certa cor, mas um arranjo em que é possível perceber as gradações e as diferenciações cro-máticas e tonais.7

Os pintores e escultores americanos conheciam e se inspiravam nas obras de Rubens por intermédio dessas traduções que se alastravam pelo Novo Mundo. É preciso lembrar que Flandres permaneceu sob domínio da Espanha entre 1551 e 1621 e apenas em 1648 sua independência foi reconhecida. A genealogia artística começava com a criação pictórica de Rubens, geralmente em grandes proporções, passava pela gravura de reprodução, que atravessava o mar e fecundava pinturas e esculturas no Novo Mundo. É possível refletir em termos de uma história do olhar, indagando como certo artista na América, que trabalhava com condições historica-mente forjadas e compartilhava de tramas sócio-culturais ali tecidas, observou a estampa baseada em pintura do mestre e a tomou como norte para sua criação exilada, de Flandres, pelo oceano.

O olhar do artista nas colônias, que se vislumbra ao serem cotejados estampa e peça que fomentou, não se desvela textualmente, mas por meio da linguagem das cores e das formas. O grande desafio é decodificá-la, compreendê-la. As semelhan-ças entre três imagens – pintura de Rubens, gravura, obra colonial – e, sobretudo, as diferenças devem ser inventariadas e pensadas como elos que explicam as peças tendo em vista seus respectivos ambientes–técnicas, organização do trabalho, mate-riais, concepções estéticas, religiosas, redes sociais, sistemas de encomendas. Mas os universos de produção artística não devem ser tomados a priori como explicações das formas, como contextos edificados dentro dos quais se encaixa a pintura ou escultura como mais um de seus sintomas ou expressões, emudecendo-os enquan-to fontes para apontar novas possibilidades de entendimento.

Os liames que vinculam a arte às condições históricas de sua confecção de-vem ser cuidadosamente traçados, respeitando dimensões intraduzíveis textual-mente e, muitas vezes, inexplicáveis. É preciso adentrar a linguagem formal, discu-tindo-a a partir de seu interior, e articular cadeias explicativas que a transborde rumo ao entorno sócio-cultural. Assim, avaliar o quanto as composições coloniais

6 No século XVII, já tinham sido desenvolvidas técnicas de gravação em cores. Mas eram caras e demoradas, demandando, geralmente, mais de uma prancha, cada qual gravada e entintada com uma cor, ou o retoque da matriz após cada impressão. HIND, Arthur. A his-tory of engraving & etchig. p. 305. 7 ARGAN, Giulio Carlo. O valor crítico da “gravura de tradução” In: ______. Imagem e persuasão. São Paulo: Cia das letras, 2004.

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mantiveram-se atadas as suas matrizes européias ou renovaram essa tradição em-pregando critérios estéticos, representativos, materiais e técnicos da terra.

Prossigo elencando pequeno escopo de pinturas e esculturas americanas inspira-das em Rubens. Apesar de não se tratar do objeto específico de investigação, cito al-guns exemplos de peças produzidas na América Espanhola que devem incitar debates acerca do desrespeito, por parte da dinâmica de difusão dos impressos nos anos da expansão ibérica, às fronteiras nacionais forjadas, muitas vezes, posteriormente.

Entre 1611 e 1614, enquanto dedicava-se a outros trabalhos, Pedro Paulo Rubens pintava a famosa Deposição da cruz, encomendada pela corporação dos arcabuzeiros de Antuérpia para a sua capela na catedral. Lucas Vorstermann, abridor de estampas que trabalhou dois anos sob a supervisão de Rubens, transpôs a obra para o papel, que rumou para o Novo Mundo e germinou, pelas mãos dos artistas, em diversos locais. Na igreja das Mercês, na Guatemala, encontra-se escultura inspirada na gravura e o monastério das Capuchinas de Santiago do Chile guarda pintura que também descende da Deposição.

A arte do flamengo lançava-se na travessia atlântica seja em impressos avulsos seja veiculada por livros religiosos, poderosos agentes difusores de potenciais estampas modelos. Os bispados americanos zelavam por garantir que qualquer capela, igreja ou irmandade colonial tivessem missais atualizados, o que cobravam nas visitações.

A tipografia flamenga do francês Cristóvão Plantin deu à luz boa parcela dos mis-sais que rumaram para as Américas portuguesa e espanhola. Muitas estampas que os decoravam eram feitas a partir de desenhos ou pinturas de Rubens. Daí serem esses livros disseminadores privilegiados das formas do mestre. Quando Plantin morreu, su-cedera-lhe o genro, João Moretus, para quem Rubens trabalhou. O pintor tornou-se desenhista oficial da casa impressora, colaboração que foi regular até 1637 e, depois, episódica, devido à precariedade de sua saúde. Elaborou frontispícios e ornou livros profanos e missais, aspecto de sua atuação que mais interessa nesse estudo.8

A impressão de uma prancha de cobre pode ser feita anos depois de sua abertura. Caso os sulcos se desgastem, é possível retocá-los, reforçando as perfurações, ou copiá-los, transferindo o desenho para outra matriz. As estampas tiradas da nova placa saem invertidas em relação à original. Tais técnicas explicam o fato de missais da tipografia plantiniana trazidos ao lume bem depois da morte de Rubens, já no século XVIII, os-tentarem gravuras baseadas em obras do mestre. Por onde circulavam os livros, a arte do flamengo podia ecoar através das mãos de pintores e escultores.

Em Minas Gerais, o barroco tardou em relação ao litoral brasileiro e países da América Espanhola. O povoamento da região ocorreu apenas a partir do final do século XVII, com a descoberta das primeiras jazidas promissoras de ouro, e proces-sou-se com grande rapidez. O rei, D. João V (1707-1750), zeloso da riqueza mine-ral, proibiu a instalação de monastérios e conventos na capitania. Foram as ordens terceiras e irmandades os maiores “mecenas” do barroco mineiro. A produção ar-tística marcou-se pela presença de negros e mulatos como mestres ou como escra-

8 CABANNE, Pierre. Rubens. p.190.

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vos de pintores, escultores e entalhadores. Esse ambiente também se apropriou, por meio de estampas em missais, de algumas obras de Rubens. Atenho-me a dois exemplos, iluminando mais detidamente o segundo.

Vários missais da oficina plantiniana traziam a gravura de São Francisco rece-bendo as chagas de Cristo.9 Era a capa de uma subdivisão do livro dedicada às celebrações relativas ao santo italiano. Trata-se, com boa margem de certeza, da gravação de uma pintura de Rubens feita entre 1616-1618 para o altar da igreja dos capuchinhos de Colônia.10 É possível que, trabalhando na edificação e decoração da capela da ordem terceira de São Francisco da Penitência de Vila Rica, construí-da entre 1766 e 1794, o filho de escrava Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, tenha se balizado no impresso que tanto circulou na região para elaborar o meda-lhão do frontispício do templo. O artista alterou um pouco o arranjo temático, o que sempre fazia quando trabalhava com modelos. É fascinante constatar elos en-tre imagens criadas e admiradas em regiões tão distantes. Aleijadinho usou pedra-sabão, rocha pouco trabalhada em outros espaços barrocos. De pintura flamenga, vista e significada por europeus, a imagem de São Francisco recebendo as chagas foi traduzida para a linguagem do buril, ganhou novos sentidos ao se submeter ao texto do missal, servindo-lhe como ilustração e orientador da leitura, e renasceu, completamente renovada, pela mão de um mestiço que manuseava como ninguém matérias-primas que seu ambiente lhe oferecia. Entre a obra de Rubens e a de Alei-jadinho passaram-se mais de 150 anos. No frontispício da capela franciscana, o medalhão prestava-se à edificação e fruição de uma sociedade distinta da flamen-ga, marcada pela escravidão e mestiçagem.

A Adoração dos pastores de Rubens e suas possíveis descendentes pictóricas na América Portuguesa.

Passo à contemplação da pintura de João Nepomuceno Correia e Castro presente no interior da Basílica do Senhor Bom Jesus do Matosinhos – MG, que julgo ser um dos desdobramentos de uma cadeia que conta com uma das pinturas A Adoração dos Pas-tores, de Rubens, como seu elo mais recuado. Mediou as duas composições, apartadas geograficamente pelo Atlântico e, temporalmente, por mais de um século, uma estam-pa inserida em algumas edições do Missal Romano impresso pela oficina de Plantin.

9 Exemplo de missal com a gravura de S. Francisco: Missale Romanum ex decreto sacrosanc-ti concilii tridentini restitutm. PII V Pont. Jussu Editum et Clementis VIII. Primum, Nunc denuo Urbano papae octavi autoritate recognitum. In quo missae propriae de sanctis omne as mongum positae sunt majorem celebrantium commoditatem. Antuerpiae, Typographia Plantiniana Apud Viduam Balthasaris Moreti. MDCCIII. Casa dos Contos, Arquivo da paró-quia de Nossa Senhora do Pilar, rolo 075, vol 081.10 Alguns afirmam que a composição geral fora feita por um discípulo de Rubens, cabendo ao mestre os retoques finais. P.P. Rubens. P.P. Rubens. L’ Oeuvre du maitre en 551 repro-ductions. Paris: Libraire Hachette, 1983. p. 473.

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Ao iluminar apenas um dos exemplares pictóricos do templo mineiro, a análi-se padece de sua desconexão do coerente programa iconográfico do qual fazia parte. Para Edgard de Cerqueira Falcão, as pinturas do interior da igreja tinham uma seqüência certa, começando com a criação do homem, sua queda e promessa divina e terminando com a morte e glorificação de Cristo.11 A natividade em ques-tão integra-se aos ciclos da vida da Virgem Maria e de Cristo, mantendo, com as demais pinturas, estreitos diálogos semânticos.

Várias pinturas da Basílica foram inspiradas em gravuras européias. Hanna Levy, no já clássico artigo Modelos europeus na pintura colonial, revelou os mol-des alemães das cenas Caim e Abel e Abraão oferece hospitalidade aos anjos12. Outros modelos já foram por mim identificados, como, por exemplo, o da Última Ceia pintado na capela-mor e das Anunciações da Virgem e de Santana. As ma-trizes são de procedências diversas. Transliteradas para os meios pictóricos, as cenas foram transformadas e ganharam, entre si, certa unidade formal ao serem traduzidas para linguagem visual, de inclinação rococó, que estava sendo codifi-cada pelos artistas e devotos mineiros. Alinhavadas pela estrutura formal rococó e pelo enredo na narrativa bíblica, as pinturas, frutos de apropriações e resignifica-ções de estampas, interagem com coesão.13

A gravura usada como molde para a Natividade de Nepomuceno circulou por vários rincões do Novo Mundo no interior de alguns missais impressos pela casa tipo-gráfica de Antuérpia. Foram encontrados exemplares do volume no acervo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Vila Rica, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e, por Luiz Jardim, em Diamantina.14 Na estampa, não assinada, predomina escuridão obtida pela inflação de perfurações do buril. Luz emana do menino Jesus e, iluminando as fi-guras que o contemplam, auxilia na definição dos desenhos dos corpos, semblantes e reentrâncias dos tecidos. O efeito criado por esse jogo de claro/escuro ambienta a Santa Noite e separa as pessoas representadas do cenário do estábulo, definido por tracejados mais retilíneos. As fisionomias dos personagens são semelhantes:

11 FALCÃO, Edgard de Cerqueira. A Basílica do Senhor Bom Jesus de Congonhas do Campo. São Paulo: Gráfica da revista dos tribunais, 1962. (Col. Brasiliensia Documenta) p. 136.12 LEVY, Hanna. Modelos europeus na pintura colonial. RPHAN. p. 24. 13 Atualmente, preparo estudo específico sobre a totalidade do programa iconográfico da Basílica. 14 Missale Romanum ex decreto sacrosancti concilii tridentini restitutm. PII V Pont. Jus-suEditum et Clementis VIII. Primum, Nunc denuo Urbano papae octavi autoritate recog-nitum. In quo missae propriae de sanctis omne as mongum positae sunt majorem cele-brantium commoditatem. Antuerpiae, Typographia Plantiniana Apud Viduam Balthasaris Moreti. MDCCIII. Casa dos Contos, Arquivo da paróquia de Nossa Senhora do Pilar, rolo 075, vol 081. Missale Romanum ex decreto sacrosancti concilii tridentini restitutum, S. PII pont. Max jussu editum et autoritate recognitum, et novis missis ex indulto apostólico hucusque, concessis auctum. Antuerpiae ex Architypographia plantiniana. MDCCLI. Casa dos Contos, arquivo da paróquia de Nossa Senhora do Pilar, rolo 212 e 213 volumes 2789 e 2769. O mesmo missal foi encontrado na Biblioteca Nacional, no setor de obras raras 3 A,3,11,n1. JARDIM, Luiz. A pintura decorativa em algumas igrejas antigas de Minas. Revista do SPHAN. Rio de Janeiro, nº 3, 1939.

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bocas pequenas, olhos amendoados com pálpebras parcialmente cerradas, narizes pontiagudos cujas linhas definidoras acompanham o arqueamento das sobrance-lhas. O único animal presente é um cachorrinho que fita o Santo Bebê através de um escorço diagonal da cabeça.

Acredito que essa gravura seja desdobramento de alguma das versões da Ado-ração dos Pastores pintadas por Rubens. Cotejando as imagens, encontram-se ele-mentos que se irmanam e justificam a suposição: o pastor com joelho em destaque posicionado diagonalmente em oposição à Virgem Maria; um pastor que carrega uma caça atrás deste primeiro; São José situado atrás de sua casta esposa. Mas o aspecto que, sem dúvida, mais me incita a lastrear as imagens é a figura do centro das composições, que usa um chapéu e carrega um cesto. Em cada uma das pintu-ras de Rubens essa personagem é de um sexo: numa feminino e na outra masculi-no.

O pintor marianense que trabalhava na ornamentação do Santuário teve aces-so, provavelmente, à gravura do missal. Sua criação manteve-se fiel ao modelo no arranjo dos personagens no espaço pictórico, embora tenha suprimido alguns de-talhes do ambiente: a mulher que carrega um balde na cabeça e o cachorro. As fi-sionomias dos pastores são menos doces do que as gravadas, marcando-se por narizes e linhas, que os unem às sobrancelhas, mais contundentes. Ao optar por não imiscuir o usuário do chapéu em penumbra, como no impresso, Correia e Castro conferiu-lhe aspecto mais afeminado, aproximando-o de uma das versões da pintura flamenga. Seria possível pensar na circulação, na capitania mineira, de uma gravura de reprodução dessa obra de Rubens?

Sem dúvida as maiores transformações, em relação ao modelo, empreendidas pelo pintor mineiro referem-se menos à disposição temática do que à renovação for-mal. As ilusões de claro/escuro que cadenciam o olhar e a fruição da estampa não estão igualmente presentes na pintura colonial: Nepomuceno clareou a cena em relação à sua matriz. O fundo é um céu azulado e as vestes e feições definem-se antes pelas disposições cromáticas do que por efeitos de iluminação. Não se tratam de diferenças relativas às técnicas e suportes, pois uma gravura pode revelar condições de clareza ao ser confeccionada com comedimento de traços de buril, mas de verdadeira apropria-ção da estampa pelo pintor e tradução do que via para linguagem visual em pleno processo de definição nas Minas da época. Agindo assim, o pintor transformava seu modelo em aparência mais afeita aos olhares dos que mirariam sua criação.

Inserida a pintura de Nepomuceno numa cadeia diacronicamente interligada, passo à abordagem de potenciais condicionantes sincrônicos a sua produção. Cor-reia e Castro é reconhecido com o autor da decoração de todo o corpo da Basílica do Bom Jesus. No Livro 1º de despesas do Santuário de N. S. Bom Jesus de Matosi-nhos de Congonhas do Campo o nome do pintor aparece, ao lado de colegas céle-bres como João de Carvalhais e Bernardo Pires, em diversos lançamentos referentes à “... pintura do corpo da capela” ou “das pinturas das paredes de toda a capela”.15

15 FALCÃO, Edgard de Cerqueira. A Basílica do Senhor Bom Jesus de Congonhas do Campo.

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A primeira quantia pelo serviço foi-lhe paga em 1778 e, ainda em 1787, recebia pela empreitada.

Considerando a dimensão total da obra decorativa, é provável que o pintor marianense tenha contado com auxiliares ou aprendizes, ajuda que, tendo em vis-ta seu testamento, era corriqueira na sua trajetória profissional. O pintor mencio-nou no documento, escrito em 1794, três discípulos. Dois herdaram suas “estam-pas, riscos e debuxos” e o terceiro, Joaquim da Natividade, foi citado como credor do mestre em “trinta e tantas oitavas”16. Nada indica que algum deles tenha sido escravo do pintor, o que seria comum na época. É difícil assegurar que qualquer desses pupilos acompanhara o mestre na labuta em Congonhas do Campo. Se fos-sem jovens na época do testamento, é mesmo improvável que já tivessem se inicia-do nas artes da pintura quando Nepomuceno recebeu o primeiro montante pela obra. Mas se a reunião de aprendizes no momento da confecção do testamento indicia prática cara ao pintor, é possível conjeturar não ter ele trabalhado sozinho em Congonhas o que, inclusive, explicaria algumas divergências formais no con-junto da obra.

Não ter arrolado escravos aprendizes não significa que o artista não os usasse em algumas tarefas de seu fazer criativo. Possuía, quando morreu, dois escravos An-golas, uma escrava de mesma nação e outra crioula.17 Dentre os bens próprios a sua atividade artística, elencou: “... baús, arcas, livros caixas...”.18

Nascida do gênio de um pintor europeu, a Adoração dos Pastores reverberou em gravura decorativa de um livro religioso e, em espaços coloniais, recoloriu-se por meio do engenho de artistas locais. A mesma gravura serviu de inspiração para, pelo menos, outras duas pinturas coloniais: um dos quatro painéis da sacristia da igreja de N. Srª dos Prazeres dos Montes Guararapes, Jaboatão, e um quadro cons-tituinte do acervo do museu de arte sacra de São Paulo.

p. 90 e p. 93. 16 Testamento de João Nepomuceno Correia e Castro, Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, testamento 619. Fls. 4v.17 Testamento de João Nepomuceno Correia e Castro, AEAM, testamento 619. fls. 4 18 Testamento de João Nepomuceno Correia e Castro, AEAM, testamento 619. fls 4.

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A Adoração dos Pastores. In. P.P. Rubens. L´ouvre du maitre en 551 reproductions. Paris: Libraire Hachette, 1983.

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A Adoração dos Pastores. In: Peter Paul Rubens (1577-1640) – mestres da pintura. São Paulo: Abril, 1977.

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Missale Romanum ex decreto sacrosancti concilii tridentini restitutum, S. PII pont. Max jussu editum et autoritate recog-nitum, et novis missis ex indulto apostólico hucusque, con-cessis auctum. Antuerpiae ex Architypographia plantiniana. MDCCLI. Fundação Biblioteca Nacional. 3 A,3,11,n1.