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DAVID LEFRANC/KIPA/CORBIS 4 • Ípsilon • Sexta-feira 2 Maio 2008 Pina Bausch É para agarrar com as duas mãos. Há conversas, filmes e três peças: “Nefés” e “Masurca Fogo”, mas, sobretudo, há “Café Müller”. É a única em que ela dança. A peça que ninguém esqueceu. Há quem a lembre como “o cristal” do ar dos tempos que se viviam na Berlim de finais da década de 1970. E talvez tenha mantido a sua frescura até hoje. Afinal, a contemporaneidade pode até estar no nosso olhar. Queremos ver. Vanessa Rato De olhos bem fe c

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4 • Ípsilon • Sexta-feira 2 Maio 2008

Pina Bausch

É para agarrar com as duas mãos. Há conversas, fi lmes e três peças: “Nefés” e

“Masurca Fogo”, mas, sobretudo, há “Café Müller”. É a única em que ela dança. A peça que ninguém esqueceu. Há quem a lembre como “o cristal” do ar dos tempos que se viviam na Berlim de fi nais da década de

1970. E talvez tenha mantido a sua frescura até hoje. Afi nal, a contemporaneidade pode

até estar no nosso olhar. Queremos ver. Vanessa Rato

De olhos bem fec

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6 • Ípsilon • Sexta-feira 2 Maio 2008

Toda a gente a conhece assim: como figura recatada, avessa a falar em público e ainda mais a dar entrevistas. Mas, quando atende o telefone, Pina Bausch, hoje com 67 anos (faz 68 a 27 de Julho), parece à vontade. Dá uma gargalhada longa e sonora quando começamos por lhe dizer que dançou “Café Müller” uma única vez em Por-tugal – há 14 anos, quando Lisboa foi Capital Europeia da Cultura e a Funda-ção Calouste Gulbenkian organizou um ciclo retrospectivo à volta da sua obra.

Desta vez, talvez seja demais cha-mar-lhe festival, mas a partir de hoje, entre o Centro Cultural de Belém e o Teatro Municipal São Luiz, ambos em Lisboa, voltamos a olhar para o per-curso da coreógrafa. Há conversas e filmes de entrada livre e três peças: a estreia nacional de “Nefés”, sobre Istambul (hoje e amanhã, no Centro Cultural de Belém), oportunidade para rever “Masurca Fogo”, feita sobre Lis-boa em 1998 e apresentada na altura, durante o festival Mergulho no Futuro, da Expo98 (dias 7, 8 e 9, também no CCB) e “Café Müller”, a única peça do Tanztheater Wuppertal em que é pos-sível ver Bausch dançar (dias 4, 5, 8 e 9 no São Luiz).

Nós estamos aqui, em Lisboa, e ela, que desde 1994 tem sido uma pre-sença assídua nos palcos nacionais e recebida de braços abertos por públi-cos cada vez mais vastos, está do outro lado da linha telefónica, na Alemanha, em Wuppertal, a cidade onde a sua companhia tem sede. Temos instru-ções precisas: um limite máximo de conversa de 15 minutos e um duplo pedido expresso (uma vez por escrito, outra por telefone) para que esses 15 minutos não sejam ultrapassados.

É mais um contra-relógio do que uma entrevista. Pina, a Papisa da dança contemporânea europeia, realmente parece à vontade, mas falar (pelo menos sobre o seu trabalho) não é coisa dela. Tempo para sete perguntas e as respectivas respostas.“Café Müller”: para o público é reviver uma fatia da história da dança contemporânea na Europa; e para si, como é para si, passados 30 anos, continuar a interpretar esta peça, um trabalho tão icónico?É muito especial, muito, muito espe-cial. Para mim esta peça tem muito significado. Quando a fizemos [em 1978], [o meu companheiro de então] Rolf Borzik, que fez a cenografia de todas as minhas peças até 1980, esteve muito envolvido – entrava também em palco, na parte das cadeiras. Morreu em 1980 e, para todos nós, e sobre-tudo para mim, esta peça tem muito a ver com esta relação, com todos os amigos juntos, e ele. Foi também a única peça que fiz em que entro. Nunca tenho tempo para estar em cena, por-que tenho que tomar conta da compa-nhia. Neste caso, eles [os intérpretes] forçaram-me a entrar, diziam que se eu não entrasse eles não faziam. Ainda bem que me obrigaram. É sempre muito especial para mim. A verdade é que nem eu própria quero acreditar. Penso: meu Deus! Como é que é pos-sível que isto tenha acontecido?! E que sorte poder fazer esta peça! É maravi-lhoso poder ainda fazê-la. Ter a saúde para isso.É uma peça de 1978. Passaram-se trinta anos. Ao longo deste tempo a sua percepção da peça tem vindo a mudar?É estranho porque, se calhar, a sensa-ção mais presente, e a mais surpreen-

dente, é perceber o quanto tudo, de certa forma, ainda é

igual, pelo menos

no sentido daquilo que quero atingir. Houve um período de infelicidade em que senti que já não me conseguia rela-cionar com a peça da mesma maneira, em que já não sentia as mesmas coisas, em que não conseguia encontrar os mesmos sentimentos. Pensei: por-quê?! Pus-me a olhar para o movi-mento de maneira diferente e para a música, a tentar perceber o que tinha mudado. Encontrei uma coisa muito pequena, por trás dos meus olhos fechados, que era se os tinha a olhar em frente ou virados para baixo. Esta pequena diferença era, afinal, significativa – fazia todo o sentimento. Mesmo estando fecha-dos, quando os meus olhos estavam

virados para cima, mudava tudo. Todos os pormenores são tão impor-tantes! Tudo é pormenor. Quando que-remos recuperar alguma coisa que já foi importante para nós, tentamos ir àquele sítio. Nesta peça, o que é tam-bém importante é conseguir sentir que estamos sós, esquecer que há um público. Nesta peça, é impor-tante chegar aqui, mas não o sei explicar por palavras. No fundo,

basicamente, tudo isto é uma espécie de paraíso para mim. É belo. Eu sou uma bailarina – ali [em cena], estou protegida, sem telefones, sem ninguém me poder falar. É como dar uma prenda a mim própria, uma flor.Este é frequentemente visto como um dos seus trabalhos mais autobiográficos...

“Houve um período de infelicidade em que senti que já não me conseguia relacionar com a peça da mesma maneira. Pensei: porquê?! Pus-me a olhar para o movimento de maneira diferente e para a música.Encontrei uma coisa muito pequena, por trás dos meus olhos fechados, que era se os tinha a olhar em frente ou virados para baixo”

NefésHoje e amanhã às, 21h, Grande Auditório do Centro Cultural de Belém

Masurca FogoDias 7, 8 e 9 às 21h,

Grande Auditório do Centro Cultural de Belém

Um Festival Pina Bausch

O Lamento da ImperatrizUm filme de Pina Bausch. Comentado por José SasportesDia 4 às 22h, Jardim de Inverno do Teatro Municipal São Luiz

Conversa Com Dominique Mercy, Nazareth Panadero e Luísa TaveiraDia 5 às 22h, Jardim de Inverno do Teatro Municipal São Luiz

Lissabon – Wuppertal – LisboaUm filme de Fernando Lopes. Comentado por Fernando Lopes, Maria João Seixas e António Mega Ferreira.Dia 6 às 22h, Jardim de Inverno do Teatro Municipal São Luiz

Em cima, “Nefés”, a peça sobre Istambul, e à direita, “Masurca Fogo”, sobre Lisboa, encomendas sobre cidades que têm constituído grande da produção bauschiana dos últimos tempos

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Não... Não tem nada a ver com a minha biografia. Chama-se “Café Müller” mas não tem nada a ver com o facto de os meus pais terem tido um restau-rante. Sempre se falou dessa relação, está em todos os livros sobre si e a sua obra. Pois... [risos]. A mim nunca ninguém me perguntou nada [risos]. Esta peça nasceu de um convite para fazer um trabalho à volta do [dramaturgo britâ-nico William] Shakespeare, um traba-lho baseado numa passagem do “Mac-beth”. Éramos uns quantos bailarinos, alguns actores e um cantor. Tínhamos 14 dias até à estreia e achei que não era suficiente. Decidi chamar mais algumas pessoas – o Gerhard Bohner, Hans Pop, Gigi Caciuleano – para uma coreografia que se passasse apenas numa sala, o Café Müller, em que cada um poderia fazer pequenas danças e contar as suas próprias histórias, ou até usar a sua própria música. Decidimos 12 pontos que tinham que entrar na peça: a senhora de cabelo vermelho, por exemplo. A dada altura achei que podia fazer um solo ou qualquer coisa para Malou Airaudo. E vieram também o Jan Minarik, o Dominique Mercy e a Meryl Tankard, que era nova na companhia. Foi uma surpresa termos acabado a peça de forma muito rápida e apresen-támo-la. No fundo, são quatro diferen-tes “Café Müller” que fazemos juntos. Como vê, nada tem de privado ou pes-soal.Em Lisboa vamos ter agora mais duas obras, “Masurca Fogo” e

“Nefés”, trabalhos que já correspondem a um período de criação diferente na sua

obra. Como viveu essa mudança?Lembro-me de que, a dada altura [em meados dos anos 1980], me convida-ram para fazer uma peça sobre Roma. Pensei: não, impossível! Como seria possível fazer uma peça sobre uma cidade com aquela história toda? Mas depois de muito conversar sobre o assunto [eu e os meus bailarinos] achá-

mos que poderíamos tentar deixar-nos influenciar pela cidade. A ideia foi pas-sar lá três semanas, sem espectáculos. Trabalhar, mas também conhecer pes-soas, passear. Foi a primeira peça: “Viktor” [1986]. Abriu tantas portas, tantas possibilidades em que nunca poderia ter pensado. Estava tão curiosa e aprendemos tanto! Sentimo-nos tão próximos da cidade! Foi uma experiência incrível, e, logo depois, convidaram-me para fazer o mesmo em Palermo [ “ P a l e r m o , Palermo”, 1989], o que já seria mais fácil, porque já tinha usado música do Sul da Itá-lia. Outros sítios aca-baram por se seguir, cidades onde já tínha-mos estado, onde tínha-mos amigos, pessoas que poderiam mostrar-nos as coisas que amam, em vez de um lado turístico. Foi

fantástico ter esta experiência em Lis-boa. Foram tempos inesquecíveis. Foi por isso que achei fantástico poder mostrar outra vez aí a peça [“Mazurca Fogo”, 1998]. Tal como a peça de Istambul [“Nefés”, 2003], que é uma cidade interessante e onde nos envol-vemos muito com a cultura local.

Estas peças, como “Mazurca Fogo”, ficam connosco. Já a apresentámos em imensos países, mas é sempre uma alegria repeti-la. Estamos tão próximos de tantas coisas que estão ali dentro. Não é como uma peça de reportório, é mais como uma parte do nosso corpo. São peças que correspondem já a uma espécie de “fase de felicidade” da sua obra, uma “fase rosa”, algo que começa, precisamente, após “Viktor” e “Palermo, Palermo”, de que estava a falar...Não sei se felicidade é a palavra certa – é mais como uma energia positiva. É impossível simplesmente desistir. Para mim foi uma necessidade [esta mudança de olhar]. Mas as coisas evo-luem como grandes ondas, uma peça surge de uma maneira e, depois, sem eu saber bem como, a seguinte já vem numa onda diferente. Mas é-me difícil falar do que será neste momento. Tal-vez um pouco de ambos. É difícil falar de certas coisas. Como é que se pode falar deste desamparo que temos no

mundo? O que é que fazemos com isso? Carregamos isso, esses senti-mentos tão presentes. E há uma grande necessidade de gastar emo-

ções. Não é só felicidade. É tam-bém o oposto disso. Mas em

todo o meu trabalho há coisas tão diferentes. Vai-se muito fundo, mas depois volta-se. E há o

humor – nunca gostei de peças que se desenrolam num só nível; o

ambiente das minhas está sempre a mudar, com o fim sempre em aberto. Eu também não sei. Há mais pergun-tas que respostas. Há muitas pergun-tas.Vê espectáculos de dança contemporânea?Tenho pouco tempo. Em Wuppertal nunca vejo nada, tenho de confessar. Mas quando viajo tento, tanto quanto possível. E também já organizei três festivais, para os quais convido as pes-soas de quem gosto. Aliás, estou a orga-nizar mais um e a ver imensos vídeos. Durante muitos anos o seu trabalho foi uma matriz de que derivava a produção mais interessante na Europa. A partir de meados da década de 1990, esse cenário mudou, há uma matriz de dança mais conceptual. Fala-se também, desde há alguns, anos numa crise. Sente essa crise?Há muitíssimos jovens coreógrafos a tentar coisas muito interessantes. Enfim... Talvez não muitos... Bastantes. Há bastantes jovens coreógrafos a ten-tar linguagens muito pessoais. Mas é sempre preciso ver como as coisas se desenvolvem. Talvez o que seja triste, talvez porque não há muito dinheiro, é que está toda a gente a trabalhar para pequenos espaços e cada vez menos para grandes salas. Talvez coisas mais viradas para a “performance”, pessoas que não vêm da dança, mas que usam movimento à sua maneira, o que pode criar relações muito interessantes, mesmo com o público. É infinito o que é possível tentar. É essa também a beleza do mundo.

“É difícil falar de certas coisas. Como é que se pode falar deste desamparo que temos no mundo? O que é que fazemos com isso? Carregamos isso, esses sentimentos tão presentes. E há uma grande necessidade de gastar emoções”

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Podemos perguntar quantas oportunidades mais haverá para ver Pina Bausch dançar “Café Müller”. É o mesmo que perguntar quantas oportunidades mais haverá para ver Pina Bausch dançar.

O ano foi 1978. Depois de um período particularmente intenso, com três peças criadas em apenas 11 meses – “Komm tanz mit mir/Vem, dança comigo”, em Maio de 1977, “Renata wandert aus/Renata emigra”, em Dezembro do mesmo ano, e “Er nimmt sie an der Hand und führt sie in das Schloß, die anderen folgen/Ele leva-a pela mão para o castelo, os outros seguem-nos”, em Abril já de 1978 – Pina Bausch é convidada a fazer uma nova obra em apenas duas semanas. Foi a primeira e única vez até hoje, desde a criação da sua companhia, em 1974, que Pina Bausch decidiu estar em palco. A única criação, entre o que é hoje um reportório de 41 obras, em que a podemos ver em cena a ela, a Papisa, essa presença nodosa e esguia, como uma árvore de Inverno, permanentemente vestida de negro e com tanto de vital (afi nal, quantas fi guras da dança preenchem assim o nosso imaginário?) quanto de fantasmático (pensando bem, a forma como nos escapa e obceca, a forma como sentimos que a perdemos sem que realmente se desvaneça não estará ao nível da assombração?).

Fantasmático, dizíamos: é como uma presença espectral – uma mulher magríssima, descalça e tacteante, vestida apenas com um “negligé” branco, longuíssimos braços estendidos, cabelos soltos e olhos fechados – que Pina Bausch entra em cena em “Café Müller” para se pôr a dançar sozinha, sonâmbula e desamparada, entre um amontoado de mesas e cadeiras.

À época da criação desta peça, a coreógrafa tinha 38 anos e tinha assinado 11 trabalhos com a sua companhia, o Tanztheater Wuppertal: “Komm tanz...”, “Renata...” e “Er nimmt sie...”, mas também momentos fundamentais como “A Sagração da Primavera” (1975), e “Barba Azul”, (1977). Quando a viu, o realizador italiano Federico Fellini reconheceu-se: “Com ‘Café Mülller’, Pina Bausch criou o seu ‘8 ½’”, disse ele.

Quinze anos antes, em “8 ½”, Fellini, que vinha da sua oitava obra com o sucesso estrondoso de “La Dolce Vita” (1960), fi zera um auto-retrato agridoce ao contar a história de um realizador esgotado, incapaz de uma boa ideia para uma obra de continuidade, a nona da sua carreira.

Um meio fi lme, gesto de recurso, obra de crise tornada marco da fi lmografi a internacional: “Café Müller”, uma peça excepcionalmente curta – 40 minutos, em vez das habituais duas horas de Bausch – e com um elenco excepcionalmente reduzido – seis bailarinos, em vez dos habituais 20 –, fi cou também assim no percurso de Bausch, a última das suas peças em que não se usava a palavra, lamento de impotência e impossibilidade tornado ícone instantâneo.

Guardam-se imagens precisas: uma divisão cinzenta com painéis de vidro transparente e uma grande porta giratória; as deambulações de Pina, lá atrás, ou cambaleante dentro da porta giratória; a violência de um casal que se abraça e beija uma e outra vez, manipulados como marionetas por um terceiro elemento; as entradas e saídas esporádicas de uma mulher de escarpins e peruca vermelhos

“Café Müller”: o “8 ½” dela

Há obras de crise que se tornam marcos. “Café Müller” pode ser vista assim. O “8 ½” dela, disse Fellini. Jorge

Silva Melo, José Pedro Croft, Gil Mendo, José Sasportes e Olga Roriz também se reconheceram. Vanessa Rato

Um Festival Pina Bausch

Lissabon A Sagração da PrimaveraUm filme de Pina Bausch. Comentado por Olga Roriz e Rui Horta.Dia 7 às 22h, Jardim de Inverno do Teatro Municipal São Luiz

Conversa Com Peter Pabst – 28 Anos de Cenários Para PinaDia 8 às 22h, Jardim de Inverno do Teatro Municipal São Luiz

Café MüllerDias 4 e 5 às 21h e dias 8 e 9 às 18h. Sala Principal Teatro Municipal São Luiz

Nazareth Panadero, Rolf Borzik, Dominique Mercy no elenco excep- cionalmente reduzido de “Café Müller”: em vez dos habituais 20, apenas seis bailarinos

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no meio do gris; a tensão das perseguições, fugas e abatimentos súbitos de um homem loiro; o frenesim de outro homem que não pára de arrumar e rearrumar o caos do mobiliário; os choques brutais contra as paredes; as repetições, sempre as repetições e os ecos de vertigem quase circular.

Lirismo do quotidiano“Era o lirismo absoluto do quotidiano, que era o que estava no ar do tempo naquele momento em Berlim, o cristal do que de mais fresco se vivia na altura”, diz o encenador e director do colectivo Artistas Unidos, Jorge Silva Melo, que, à época estava a trabalhar na Schaubühne, o mais importante dos teatros daquela que é agora de novo a capital alemã.

Em Portugal, Silva Melo (lembram-se da sua “Na Selva das Cidades” de há dez anos, toda mesas e cadeiras?) tinha visto pouca dança – “acho que o Ballet Gulbenkian e o Merce Cunningham, no Tivoli”. Na Alemanha, “Café Müller” tinha tudo para a sua geração. Foi um amigo, o conhecido encenador e dramaturgo Heiner Müller, quem lhe falou na peça e o encenador

recorda tê-la visto apenas um ou dois meses depois da morte do líder estudantil Rudi Dutschke e ainda com as imagens do seu enterro, em Dezembro de 1979, bem presentes: “‘Café Müller’ tinha também isso: a nostalgia das revoluções, o refl uxo de todos os movimentos de esquerda e a hipótese de um sentido de comunidade, com um isolamento das personagens indissociável de todas as vivências da Alemanha pós-‘soissante-huitarde’”.

“Café Müller” era “uma coisa completamente nova, fresca, enérgica e poética” na Berlim do fi nal da década de 1970 e, de certa forma, continuava “uma coisa completamente nova, fresca, enérgica e poética” para a Lisboa de meados

da década de 1990, quando foi pela primeira e única vez apresentada em Portugal, por ocasião do fórum Lisboa94, Capital Europeia da Cultura.

Cinco anos antes, Bausch fora uma revelação em Portugal durante os Encontros ACARTE 89, da Fundação Calouste Gulbenkian, com “Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehört/ E da montanha ouviu-se um grito”. José Sasportes, que em 1985 estivera no Teatro de La Fenice de Veneza para assistir ao primeiro ciclo retrospectivo dedicado à coreógrafa, empenhou-se na criação de algo semelhante para a Lisboa94, simultaneamente uma homenagem a Madalena de Azeredo Perdigão, entretanto falecida, mas que fora responsável pela criação do Serviço ACARTE, e a primeira apresentação da coreógrafa em Portugal. Estava-se na era “pré-especialização”, em que os públicos eram realmente transdisciplinares e “Café Müller” foi um acontecimento que extravasou em muito as fronteiras da dança.

“Lembro-me de ter fi cado muito impressionando. Interessou-me particularmente a relação do corpo com o mobiliário, que era precisamente aquilo em que eu estava a trabalhar na altura”, recorda o escultor José Pedro Croft. Havia “o lado errático de circulação no espaço, perturbador e mágico”, “a deambulação dos corpos que, de maneira absolutamente inesperada, acabavam por encontrar o seu caminho” e “a fragilidade” das presenças dos intérpretes, “sempre à beira da ruptura, mas com a força da sobrevivência”.

“Em 1993 eu tinha feito uma escultura que esteve muito tempo no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian que era uma mesa virada ao contrário e com uma grande esfera em cima. Estava a trabalhar a ideia de limites, de um estar antes do precipício e foi tudo isso que senti perfeitamente neste espectáculo. Foi fortíssimo.” O trabalho de Pina Bausch tem isso, diz José Pedro Croft: “A força de quem vai ao Inferno, mas sabe que volta a subir.”

Perto do fi mTal como grande parte dos agentes da dança em Portugal, Gil Mendo, hoje professor do Conservatório Nacional e programador da

Culturgest, já tinha visto “Café Müller” em vídeo. Mas apenas em vídeo. “Em 1994 já se tinham passado 16 anos desde a criação, não se pode dizer que ainda fosse uma peça muito inovadora, mas era uma peça primorosamente interpretada e com tudo o que Pina Bausch posteriormente viria a trabalhar. Muito expressionista, mas com fórmulas de composição que se podem considerar abstractas.”

“Hoje”, sublinha Gil Mendo, “Pina Bausch é bem mais popular do que era em 1989 e 1994. Hoje os espectáculos dela enchem e ela é bem mais conhecida, mas acho que as pessoas, tendo em conta as peças mais recentes, a confundem com entretenimento.”

Pina Bausch, diz Gil Mendo (ou, pelo menos a Pina Bausch de que aqui falamos, dizemos nós), não é entretenimento: “Em ‘Café Müller’ é vê-la numa das peças com que ela causou surpresa, uma das suas peças que inovaram, que introduziram novas formas de trabalhar, de misturar teatro e dança. É uma peça de excepção, muito embora pertença a um período em que todas as suas peças são de excepção.”

Foi a altura de “Frühlingsopfer/A Sagração da Primavera” (1975), “Die sieben Todsünden/ Os Sete Pecados Mortais” (1976), “Blaubart/Barba Azul” (1977), “Kontakthof/Lugar de Contactos” (1978) e “Arien/Árias” (1979). Desde então, houve dezenas de outras obras, muitas do longo ciclo de encomendas sobre cidades que têm constituído grande da produção bauschiana dos últimos tempos, uma espécie de “fase rosa” (é a ela que pertencem “Masurca Fogo”, de 1998, e “Nefés”, de 2003, ambas apresentadas neste festival) em que, regra geral, os fãs do negrume e acidez da Pina Bausch dos primeiros tempos não se revêem.

A esta distância, obras como “Café Müller” ou “Nelken/Cravos” (1982) parecem pertencer ao outro mundo, outro enquadramento mental. “A última vez que vi o ‘Nelken’ chorei do princípio ao fi m”, diz Olga Roriz. A coreógrafa lembra-se de ver Dominique Mercy (dança com Pina Bausch desde 1974 e vem dançar “Café Müller” a Lisboa), actuar com o Ballet-Théâtre Contemporain, numa peça de que não se lembra do nome, no Teatro Nacional de São Carlos, teria ele “talvez 19 anos”. “Lembro-me perfeitamente daqueles cabelos loiros muito esticados. Até tenho um autógrafo dele dessa altura. Hoje, ver estes homens e mulheres já velhos, dá a sensação de que aquilo já não vai durar muito. É muito forte.”

Hoje Pina Bausch tem 67 anos, quase 68. Podemos perguntar quantas oportunidades mais haverá para a ver dançar “Café Müller”. É o mesmo que perguntar quantas oportunidades mais haverá para a ver dançar. “A contemporaneidade”, diz José Sasportes, “está no nosso olhar”.

“O trabalho de Pina Bausch tem isso, diz José Pedro Croft: “A força de quem vai ao Inferno, mas sabe que volta a subir”

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Jorge Silva Melo, José Pedro Croft e Olga Roriz