piket e a reforma tributária no brasil - ricardo lodi brasil.pdf

39
RFPTD, v. 3, n.3, 2015 PIKETTY E A REFORMA TRIBUTÁRIA IGUALITÁRIA NO BRASIL Ricardo Lodi Ribeiro * "Aqueles que possuem muito nunca se esquecem de defender seus interesses. Recusar-se a fazer contas raramente traz benefícios aos mais pobres." (Thomas Piketty, O Capital no Século XXI) Resumo: A publicação da obra “O Capital no Século XXI”, de Thomas Piketty, demonstra que o aumento da desigualdade social, nas últimas décadas, levou ao quadro atual em que os 0,1% mais ricos detenham 20% do patrimônio global; os 1% que estão na parte superior da pirâmide social, perto de 50% e os 10% superiores, entre 80 a 90%. Para combater essa tendência natural do capitalismo à concentração de riquezas, o autor francês propõe uma série de medidas tributárias como o aumento da tributação das rendas, heranças e patrimônio, a partir do incremento da progressividade, a introdução de um imposto sobre grandes capitais em escala mundial e a adoção da transparência internacional como forma de combater a concorrência fiscal entre países. O artigo procura analisar as possibilidades de adoção dessas medidas no Brasil, a partir da introdução de uma reforma tributária igualitária, que possa contribuir para a redução da desigualdade social em nosso país. Palavras-Chaves: Desigualdade. Tributação Justa. Progressividade. Imposto de Renda. Imposto sobre Grandes Fortunas. Transparência Internacional. Sumário I) Introdução. II) A escalada da desigualdade no final do século XX. III) A tributação como mecanismo de combate às desigualdades sociais. IV) A base tributária e a desigualdade. V) A progressividade dos impostos sobre a renda. VI) A tributação sobre o capital e o imposto sobre grandes fortunas. VII) Globalização, concorrência tributária internacional e transparência fiscal. VIII) Conclusões. * Professor Adjunto de Direito Financeiro da UERJ. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ. Ex-Procurador da Fazenda Nacional. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Tributário (SBDT). Advogado e Parecerista.

Upload: rafael-andrade

Post on 10-Sep-2015

6 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

...

TRANSCRIPT

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    PIKETTY E A REFORMA TRIBUTRIA IGUALITRIA NO BRASIL

    Ricardo Lodi Ribeiro*

    "Aqueles que possuem muito nunca se esquecem

    de defender seus interesses. Recusar-se a fazer contas

    raramente traz benefcios aos mais pobres."

    (Thomas Piketty, O Capital no Sculo XXI)

    Resumo:

    A publicao da obra O Capital no Sculo XXI, de Thomas Piketty, demonstra que o aumento da

    desigualdade social, nas ltimas dcadas, levou ao quadro atual em que os 0,1% mais ricos

    detenham 20% do patrimnio global; os 1% que esto na parte superior da pirmide social, perto de

    50% e os 10% superiores, entre 80 a 90%. Para combater essa tendncia natural do capitalismo

    concentrao de riquezas, o autor francs prope uma srie de medidas tributrias como o aumento

    da tributao das rendas, heranas e patrimnio, a partir do incremento da progressividade, a

    introduo de um imposto sobre grandes capitais em escala mundial e a adoo da transparncia

    internacional como forma de combater a concorrncia fiscal entre pases. O artigo procura analisar

    as possibilidades de adoo dessas medidas no Brasil, a partir da introduo de uma reforma

    tributria igualitria, que possa contribuir para a reduo da desigualdade social em nosso pas.

    Palavras-Chaves: Desigualdade. Tributao Justa. Progressividade. Imposto de Renda. Imposto

    sobre Grandes Fortunas. Transparncia Internacional.

    Sumrio

    I) Introduo. II) A escalada da desigualdade no final do sculo XX. III) A tributao como mecanismo de combate s desigualdades sociais. IV) A base tributria e a desigualdade. V) A

    progressividade dos impostos sobre a renda. VI) A tributao sobre o capital e o imposto sobre

    grandes fortunas. VII) Globalizao, concorrncia tributria internacional e transparncia fiscal.

    VIII) Concluses. * Professor Adjunto de Direito Financeiro da UERJ. Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Direito da UERJ. Ex-Procurador da Fazenda Nacional. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Tributrio (SBDT). Advogado e Parecerista.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    2

    I) Introduo

    A publicao, em 2014, da obra O Capital no Sculo XXI, do economista

    francs Thomas Piketty1, representou no s um enorme fenmeno editorial, como um

    grande acontecimento nos debates econmicos, filosficos e polticos, no que tange ao

    estudo do tema da desigualdade entre ricos e pobres ao longo dos ltimos sculos nos

    pases capitalistas.

    Ao contrrio do que o ttulo pode sugerir, no se trata de uma obra que procure

    adaptar as ideias de Karl Marx ao sculo XXI. Apesar de reconhecer o acerto, em parte, do

    diagnstico marxista quanto acumulao de capital inerente ao sistema de produo

    capitalista, Piketty demonstra que Marx foi refm, no sculo XIX, da inexistncia de bases

    de pesquisa de dados histricos sobre a evoluo do patrimnio e da renda, bem como da

    desconsiderao da varivel referente ao avano tecnolgico como mecanismo capaz de

    viabilizar o infinito crescimento do capital privado.

    E esse alicerce em fartos dados histricos o grande trunfo da obra de Piketty.

    Concorde-se ou no com as solues por ele propostas, indiscutvel a solidez das bases de

    informaes que ele utiliza em suas anlises, a partir de um esforo, sem precedentes

    comparveis at hoje, de compilar a evoluo de renda e do capital nos ltimos duzentos

    anos, em 20 pases2, em especial nos EUA, Reino Unido, Frana, Alemanha, Sucia, Itlia,

    Canad, Austrlia e Japo.

    Apesar da concluso de que a concentrao de renda e de capital inerente ao

    modo de produo capitalista, e de que a partir dos anos de 1980 a desigualdade social tem

    aumentado a nveis comparveis ao final do sculo XIX, Piketty no prope a superao do

    capitalismo. Ao contrrio, defende a adoo de medidas baseadas no liberalismo a partir do

    compromisso ideal entre justia social e liberdade individual3, necessrio para a salvao

    1 PIKETTY, Thomas. O Capital no Sculo XXI. Trad. Mnica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrseca, 2014.

    2 O Brasil no foi estudado na obra, segundo o autor, em razo da ausncia de acesso aos dados fiscais pela Secretaria da Receita Federal

    do Brasil, o que comea a ser revertido mais recentemente.

    3 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 492.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    3

    da liberdade em um mundo globalizado, j que, na sua concepo, a democracia estaria

    condenada pelo aumento vertiginoso da desigualdade.4

    Nesse combate s desigualdades comprometedoras do desenvolvimento do

    capitalismo e do livre mercado, prope Piketty como principais medidas o aumento da

    tributao dos mais ricos, com o incremento da progressividade do imposto de renda e do

    imposto sobre heranas, a introduo de um imposto mundial sobre o capital e o combate

    concorrncia tributria entre pases por meio da transparncia fiscal internacional.

    Como tais propostas causam grande impacto na base tributria dos Estados

    nacionais, importante identificar de que forma se coadunam com o sistema tributrio de

    cada pas. O presente estudo tem como objetivo a anlise dessas ideias luz do sistema

    tributrio brasileiro.

    II) A escalada da desigualdade no final do sculo XX

    A partir do exame da evoluo da renda e do patrimnio em duas dezenas de

    pases desenvolvidos e emergentes nos ltimos dois sculos, Piketty constata que a

    desigualdade entre ricos e pobres tende sempre a aumentar na medida em que a taxa de

    rendimento do capital (r) torna-se maior do que a taxa de crescimento da renda e da

    produo nacionais (g). Sempre que r > g a desigualdade aumenta pois os patrimnios

    originados no passado se recapitalizam mais rapidamente do que a progresso da produo

    e dos salrios. Segundo Piketty5:

    Essa desigualdade exprime uma contradio lgica fundamental. O

    empresrio tende inevitavelmente a se transformar em rentista e a

    dominar cada vez mais aqueles que s possuem sua fora de trabalho.

    4 Sobre a incompatibilidade da democracia com os altos graus de desigualdade e excluso social, vide: FORRESTER, Viviane: O Horror

    Econmico. Trad. lvaro Lorencini. So Paulo: UNESP, 1997 e BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo Ulrich Beck conversa com

    Johanes Willms. Trad. Luiz Antnio Oliveira de Arajo. So Paulo: UNESP, 2000.

    5 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 555.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    4

    Uma vez constitudo, o capital se reproduz sozinho, mais rpido do que

    cresce a produo. O passado devora o futuro.

    Essa dinmica tende a ser exacerbada no sculo XXI quando se espera,

    como demonstra o autor, que as taxas de crescimento econmico gravitem em torno de 1 a

    1,5% ao ano, enquanto a remunerao do capital em mdia dever ficar situada na faixa

    anual de 4 a 5%. De acordo com o estudo, o crescimento futuro dos pases j

    desenvolvidos no deve superar esse patamar, ao contrrio do que ocorreu na fase urea do

    sculo XX, dos anos de 1950 a 1970, em funo dos investimentos na reconstruo e na

    recuperao da economia aps as duas Guerras Mundiais. Presentemente, crescimento

    mais elevado s ser encontrado nos pases emergentes, que ainda guardam um dficit a ser

    superado em relao aos pases mais desenvolvidos. Superado esse dficit, o crescimento

    tende a diminuir.

    A esse fenmeno soma-se o fato de que as taxas de retorno do capital tendem a

    aumentar, e at a dobrar, de acordo com o seu tamanho inicial, uma vez que os grandes

    investidores costumam encontrar melhores rendimentos se comparados aos pequenos

    poupadores.6

    Esses dois fatores somados levam a um natural aumento da desigualdade, como

    sempre aconteceu no sistema capitalista, que tende inercialmente a acumulao de capital,

    como destaca Piketty7:

    "O problema que a desigualdade r > g, reforada pela desigualdade

    dos rendimentos em funo do tamanho do capital, conduz

    frequentemente a uma concentrao excessiva e perene da riqueza: por

    mais justificveis que elas sejam no incio, as fortunas se multiplicam e

    se perpetuam sem limites e alm de qualquer justificao racional

    possvel em termos de utilidade social.

    Essa tendncia natural concentrao de riquezas no sistema capitalista s foi

    atenuada ao longo do sculo XX, em virtude das duas Guerras Mundiais e da Crise

    6 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 420.

    7 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 432.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    5

    econmica de 1929, que fizeram tbula rasa do passado, reduzindo bruscamente o retorno

    do capital, gerando a iluso da capacidade do capitalismo em superar essa contradio

    fundamental . Mas, ao contrrio dos que apontam a reduo das desigualdades na segunda

    metade do sculo XX como prova de que o desenvolvimento do capitalismo e o avano

    tecnolgico levariam a reduo das divergncias entre o topo e a base da pirmide social,

    Piketty sustenta que a convergncia verificada no perodo fruto dos referidos acidentes

    histricos que, embora no possam ser previstos ou planejados, no so inerentes

    acumulao de riquezas no capitalismo.8

    Porm, as distines na desigualdade de renda e de patrimnio verificadas entre os

    variados perodos histricos e pases pesquisados, embora sutis, no so desprezveis, e se

    devem poltica tributria adotada pelos Estados nacionais, como o caso da introduo da

    tributao progressiva sobre a renda e heranas no perodo posterior primeira guerra

    mundial e, especialmente, segunda guerra mundial, como medidas destinadas

    reconstruo nacional adotada, especialmente, nos EUA e no Reino Unido.9

    De forma inversa, a vertiginosa queda da progressividade nos EUA e no Reino

    Unido, a partir dos governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, a partir dos anos de

    1980, justifica em parte o salto das remuneraes muito elevadas, com o incremento do

    aumento da proporo entre o rendimento do capital e o crescimento econmico nacional.10

    Ainda mais grave devem ser os efeitos nos EUA, do Economic Growth and Tax Relief Act,

    do segundo mandato de George W. Bush, em 2001, que reduziu as alquotas de todas as

    faixas tributrias, como destacam Liam Murphy e Thomas Nagel. 11

    Ao grave declnio da progressividade tributria soma-se como fator de aumento da

    desigualdade a possibilidade dos detentores das grandes riquezas, aproveitando-se de um

    ambiente de concorrncia fiscal entre os Estados nacionais em um contexto de livre

    circulao de capitais, escolherem o montante tributrio que iro suportar, o que vem

    promovendo a arrecadao regressiva no topo da pirmide tributria.12

    8 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 556.

    9 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 486.

    10 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 346 e 483.

    11 MURPHY, Liam e NAGEL, Thomas. O mito da propriedade os impostos e a justia. Trad. Marcelo Brando Cipolla. So Paulo:

    Martins Fontes, 2005, p. 176. Vale analisar na obra os projetos de lei apresentados por congressistas norte-americanos visando maiores

    restries progressividade.

    12 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 486.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    6

    Em consequncia desses fatores, a desigualdade na distribuio de riquezas

    mundiais no incio dos anos de 2010 comparvel pelo autor quela existente entre 1900-

    1910, o apogeu da sociedade dos rentistas, fenmeno que, desde o incio do sculo XIX, j

    sido retratado por Jane Austen, em obras como Razo e Sensibilidade e Orgulho e

    Preconceito. No cenrio mundial atual, a desigualdade escandalosa, com o milsimo

    superior da populao detendo 20% do patrimnio total; o centsimo superior perto de 50%

    e o dcimo superior entre 80 a 90%. A metade inferior menos de 5%!13

    Ao contrrio do que sustentam os defensores da tese de que o aumento da

    desigualdade do topo da pirmide social no chega a ser um problema srio, desde que

    atendidas as condies de vida digna para todos,14 os epidemiologistas britnicos Richard

    Wilkinson e Kate Pickett15 em interessante estudo estatstico sobre os efeitos da

    desigualdade para alm da economia, demonstram que o agravamento da desigualdade

    social no gera consequncias nefastas apenas para os pobres, acabando por contaminar

    toda a sociedade, com o sentimento de injustia social provocando o agravamento das

    divises de classes a partir da acendrada valorizao dos estatutos estamentais e o

    consequente abalo da confiana entre desiguais. A partir da anlise de abundantes dados

    estatsticos, concluem os autores que no a pobreza, mas o grau de desigualdade social de

    um pas, o fator que mais diretamente relaciona-se ao bem estar de toda a sociedade, como

    a vida comunitria, a sade fsica e mental, o consumo de drogas, a expectativa de vida, a

    obesidade, o desempenho educacional, a violncia urbana, o grau de encarceramento e a

    maternidade na adolescncia.

    Como se v, a dinmica da distribuio de riqueza se apresenta por movimentos

    de convergncia e divergncia entre os extratos da pirmide social. Embora registrem-se

    em alguns momentos histricos foras de convergncia, como se verificou ao longo dos

    anos 50 a 70 do sculo XX, no existe um elemento natural ao processo de acumulao

    capitalista capaz de evitar o crescimento da desigualdade. Por isso, so indispensveis

    medidas estatais para coibir a exploso das foras naturais de divergncia.

    13 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 427.

    14 Por todos: Rawls, John. O Direito dos Povos. Trad. Lus Carlos Borges. So Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 149-150; e MURPHY,

    Liam e NAGEL, Thomas. O mito da propriedade, p. 249 e 256.

    15 WILKINSON, Richard e PICKETT, Kate. O Esprito da Igualdade Porque Razo as Sociedade Mais Igualitrias Funcionam

    Quase Sempre Melhor. Trad. Alberto Gomes. Lisboa: Editorial Presena, 2010, p. 283-285.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    7

    III) A tributao como mecanismo de combate s desigualdades sociais

    Como advertiu Ronald Dworkin16, a distribuio de riquezas em uma sociedade

    produto da sua ordem jurdica, no s em relao s leis que regem a propriedade e as

    relaes para a sua aquisio e transferncia, mas tambm em relao as normas fiscais,

    previdencirias e polticas. Deste modo, o combate desigualdade pode ser compatvel

    com a liberdade individual e a livre iniciativa desde que estas sejam harmonizadas com a

    justia social por meio de uma tributao capaz de promover a redistribuio de riquezas.

    Em obra anterior, A Economia da Igualdade, de 1997, Thomas Piketty17 j

    identificava a tributao como mecanismo mais eficaz de redistribuio de riquezas

    destinada ao combate das desigualdades sociais:

    "O instrumento privilegiado da redistribuio pura a redistribuio

    fiscal, que, por meio das tributaes e transferncias, permite corrigir a

    desigualdade das rendas produzida pelas desigualdades das dotaes

    iniciais e pelas foras do mercado, ao mesmo tempo que preserva o

    mximo a funo alocativa do sistema de preos."

    No mesmo sentido, Liam Murphy e Thomas Nagel:18

    Em princpio, os nveis relativos de riqueza podem ser ajustados por

    meio de outros aspectos do sistema jurdico, mas o meio mais eficiente

    sem dvida o cdigo tributrio.

    O combate s desigualdades sociais pela via da tributao se d no s pela

    redistribuio de renda, atravs da introduo de prestaes positivas aos mais pobres, a

    partir de recursos oramentrios obtidos por meio da tributao dos mais ricos, mas ainda

    pela distribuio de rendas, que no tem propriamente o contedo distributivo, mas baseia-

    16 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana A teoria e a prtica da igualdade. Trad. Jussara Simes. So Paulo: Martins Fontes,

    2005, Introduo: A Igualdade importante?, p. X.

    17 PIKETTY, Thomas, A Economia da Desigualdade. Trad. Andr Telles da edio francesa de 1997. Rio de Janeiro: Intrnseca, 2015,

    p. 85.

    18 MURPHY, Liam e NAGEL, Thomas. O mito da propriedade, p. 155-156.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    8

    se apenas nas receitas e na ideia de diviso justa do nus fiscal pela capacidade

    contributiva, por meio da progressividade e da tributao sobre as grandes riquezas, a fim

    de evitar a concentrao de renda. 19 Deste modo, independentemente das prestaes

    estatais positivas a serem financiadas pelas receitas pblicas, a tributao das altas rendas e

    patrimnios constitui uma forma de fazer dos ricos um pouco menos ricos, o que acaba por

    assegurar uma maior igualdade social j que esses recursos so destinados a outros

    segmentos sociais.

    Se a progressividade da tributao da renda e das heranas, como elemento

    essencial redistribuio de rendas, fundamental ao financiamento das prestaes

    positivas exigidas pelo Estado Social20, a distribuio de rendas por meio da tributao dos

    grandes capitais condio central para a regulao do capitalismo. que, ainda que as

    receitas advindas da tributao dos grandes capitais no fossem to relevantes em relao

    ao oramento pblico, a instituio do imposto seria importante instrumento, no dizer de

    Piketty para evitar a espiral desigualadora sem fim e uma divergncia ilimitada das

    desigualdades patrimoniais, alm de possibilitar um controle eficaz das crises financeiras

    e bancrias .21

    Estabelecida a adoo um sistema tributrio progressivo como mais eficaz medida

    de combate desigualdade social, podem ser extradas da obra de Piketty, O Capitalismo

    do Sculo XXI, algumas medidas para o que vamos chamar de reforma tributria

    igualitria. So elas:

    a) a adoo de uma base tributria que confira mais peso tributao da

    renda, das heranas e do patrimnio, em relao aos salrios e o consumo;

    b) a tributao progressiva da renda e das heranas;

    c) a adoo da tributao mundial sobre os capitais (grandes fortunas);

    19 Sobre a distino entre distribuio e redistribuio de rendas, vide: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional

    Financeiro e Tributrio, vol. II. Valores e Princpios Constitucionais Tributrios. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 348.

    20 TIPKE, Klaus. Princpio da Igualdade e a Ideia de Sistema no Direito Tributrio. In: BRANDO MACHADO (coord.). Estudos

    em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. So Paulo: Saraiva, 1984, p. 527.

    21 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 504.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    9

    d) o combate concorrncia tributria internacional pela adoo da

    transparncia fiscal.

    A adequao dessas propostas apresentadas por Piketty ao sistema tributrio

    brasileiro o objeto dos prximos itens deste estudo.

    IV) A base tributria e a desigualdade

    Como ningum gosta de pagar tributo, muito comum, aqui e alhures, a

    reclamao quanto ao tamanho da carga tributria. Em nosso pas, recorrente o discurso

    de que temos uma das maiores cargas tributrias do mundo. Seria isso verdade? E quem

    suporta essa carga tributria? Seria o nosso modelo tributrio capaz de garantir o

    desenvolvimento econmico e combater as desigualdades sociais? Essas so as indagaes

    que sero discutidas neste item.

    A carga e a base tributrias de um pas revelam as escolhas legislativas sobre

    quanto tributar, a quem tributar e em que medida. Deste modo, a partir da mensurao de

    cada tributo do sistema possvel identificar que segmentos econmicos esto sendo mais

    ou menos onerados.

    Sustenta Piketty que o processo de construo do Estado fiscal e social foi, em

    todos os pases desenvolvidos de hoje, um elemento essencial do processo de modernizao

    e desenvolvimento nacional. Se nos pases desenvolvidos a carga tributria se consolidou,

    a partir dos anos de 1980-1990, entre 35 a 40% do PIB, nos pases pobres e intermedirios

    vem ocorrendo, muito em funo da ingerncia dos pases ricos e dos organismos

    internacionais, uma reduo significativa para taxas de 10% a 15%, patamares em que se

    torna impossvel ir alm das funes soberanas e em direo construo do Estado Social.

    E como esses Estados acabam sendo obrigados a conferir algumas prestaes sociais

    positivas, no atendem adequadamente sequer as despesas tpicas do estado absentesta.22

    Ou seja, o interesse do capital globalizado ao escolher pases de baixa tributao para os

    22 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 478-479.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    10

    seus investimentos acaba tendo como efeito o entrave ao desenvolvimento social e

    econmico dessas sociedades.

    No Brasil, a carga tributria conheceu grande incremento desde que foi

    promulgada a Constituio Federal de 1988, que agigantou o fenmeno das contribuies

    parafiscais. No ano em que foi inaugurada a nova ordem constitucional, a carga tributria

    brasileira representava 22,4% do PIB.23 Sofreu por diversos caminhos majoraes

    permanentes at chegar ao patamar de 35,9% em 2012.

    Como se pode verificar na tabela abaixo, a carga tributria brasileira, embora

    tenha aumentado bastante nas ltimas dcadas, no se caracteriza por ser especialmente

    alta, sendo comparvel mdia da OCDE e dos pases desenvolvidos, embora seja maior

    do que a dos BRICS.24 Deve-se considerar porm, as imensas diferenas entre esses outros

    pases emergentes e o Brasil, j que a Rssia e a China vm de experincias comunistas de

    economias fechadas em que a tributao no era elemento relevante, enquanto ndia25 e

    frica do Sul ainda mantm um grande contingente populacional na pobreza extrema, o

    que a mdio prazo poder exigir um aumento da tributao caso haja um esforo poltico de

    enfrentamento da desigualdade. Fato que, dos cinco pases dos BRICS, o Brasil o nico

    em que a desigualdade social tem diminudo nos ltimos anos, embora de forma abaixo do

    desejado por quase todos. Porm, foroso reconhecer que essa desvantagem fiscal em

    relao ao demais BRICS no deixa de ser um desestmulo ao investimento externo

    destinado aos pases emergentes, sem que se possa com isso justificar uma significativa

    reduo da carga tributria aos patamares dessas naes, em face das distines j expostas

    e das repercusses sociais e federativas que a medida envolveria.

    Mas, de modo geral, o que se pode ver na tabela abaixo que o nosso grande

    problema em relao aos pases mais desenvolvidos no o tamanho da nossa carga

    tributria, mas a sua composio que cristaliza as desigualdades sociais.

    23 Fonte: site do BNDES, o estudo Carga Tributria Brasileira Evoluo Histrica: Uma Tendncia Crescente, de rika Arajo,

    acessado em 06/02/15:

    www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/informesf/inf_29.pdf.

    24 Segundo estudo do IBPT, a carga tributria da China de 20%, da ndia de 13%, da Rssia de 23% e da frica do Sul de 18%

    (www.ibpt.org.br/noticia/1443/Carga-tributaria-brasileira-e-quase-o-dobro-da-media-dos-BRICS ).

    25 Sobre a desigualdade social e da pobreza absoluta na ndia, vide: DRZE, Jean e SEM, Amartya. Glria Incerta: A ndia e suas

    contradies. Trad. Ricardo Doninelli Mendes e Laila Coutinho. So Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 236-265.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    11

    Comparao da Carga Tributria Brasileira com outros pases em percentual do PIB

    (dividida entre renda, patrimnio e consumo)

    Pas Carga

    Tributria

    Renda Patrimnio Consumo Folha de

    Salrios

    Brasil 35,9 6,4 1,4 18,8 9,2

    OCDE

    (Mdia)

    35,5 12,2 1,9 11,6 9,8

    Sucia 44,3 15,5 1,0 12,9 14,8

    Reino

    Unido

    35,2 12,6 4,2 11,6 6,8

    Canad 30,7 14,5 3,3 7,5 5,5

    EUA 24,3 11,6 3,0 4,4 5,4

    Alemanha 37.6 11.4 0,9 10,7 14,4

    Frana 45,3 10,7 3,9 10,7 18,5

    Chile 20,8 8,3 0,9 10,6 1,1

    Espanha 32,9 9,9 2,0 9,0 11,8

    Itlia 44,4 14,6 2,7 13,4 13,5

    Dinamarca 48,0 29,6 1,8 15,2 1,2

    Portugal 32,5 8,7 1,3 13,3 9,0

    Grcia 33,8 8,4 2,0 12,6 10,7

    Coria do

    Sul

    26,8 8,0 2,8 9,3 6,7

    Turquia 27,7 6,0 1,2 13,0 7,5

    Noruega 42,2 20,3 1,2 11,1 9,6

    Israel 31,6 9,7 2,9 12,4 6,6

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    12

    Fonte: SRFB. Ano de 201226

    De fato, se o tamanho da carga tributria em nosso pas comparvel s

    economias de mesmo porte, a sua distribuio entre as materialidades econmicas, deixa

    claro que, no Brasil, tributamos muito mais do que nos outros sistemas o consumo e muito

    menos a renda. H uma clara tendncia dos pases desenvolvidos de tributar mais a renda

    do que o consumo. Nos EUA, por exemplo, essa diferena atipicamente radical. Renda

    11,6% x 4,4% consumo. bem verdade que essa no a regra nos pases europeus, onde,

    excetuando os pases nrdicos, cuja enraizada cultura da igualdade permite uma tributao

    mais intensa da renda, h uma ligeira vantagem percentual da tributao da renda sobre o

    consumo, como o caso da Alemanha, 11,4% a 10,7% e do Reino Unido, 12,6% a 11,6%,

    e da mdia da OCDE, 12,2% a 11,6% ou de equivalncia entre ambos, como na Frana,

    onde renda e consumo so tributados em 10,7% (mas h uma intensa tributao sobre a

    folha de salrios em 18,5% que supera muito a mdia da OCDE). O Brasil, ao contrrio,

    dos pases pesquisados na tabela acima, o que mais tributa o consumo, e o segundo que

    tributa menos a renda, s ficando nesse particular atrs da Turquia.

    A justia de um sistema tributrio est na adequada distribuio da carga tributria

    entre os detentores de patrimnio e renda de um lado, e aqueles que nada tem, seno

    despesas, de outro. Os objetivos de cada sociedade vo presidir tais escolhas que

    desaguaro na formulao do seu sistema tributrio.

    H quem sustente que tributao sobre o consumo mais adequada do que a

    tributao sobre os rendimentos, sob o argumento de que os benefcios sociais derivados da

    poupana so largamente superiores aos do consumo privado, sendo prefervel tributar as

    pessoas pela quantia que elas tiram do fundo comum, e no pela quantia que a ele

    acrescentam.27 Segundo Nicholas Kaldor, gerando a poupana uma externalidade positiva

    para a sociedade, no se deve tribut-la mais gravosamente do que os rendimentos que

    foram consumidos.

    Porm, no difcil perceber que a tributao sobre o consumo, embora dirigida

    populao por inteiro, atinge mais pesadamente os mais pobres que gastam todos os seus 26 Vide: http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-

    brasil/carga-tributaria-2013.pdf (acesso em 05/02/2015).

    27 Por todos: KALDOR, Nicholas. An Expenditure Tax. Aldershot: Gregg Revivals, 1993, p. 53

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    13

    rendimentos na aquisio de bens e servios essenciais sua prpria sobrevivncia. A

    estes, no possvel amealhar patrimnio. J a tributao da renda, em geral dirigida aos

    extratos que superem o mnimo existencial, atinge em maior grau, em um plano ideal, os

    rendimentos mais elevados. Por essas razes, a tributao sobre o consumo favorece a

    acumulao de capital, sendo um meio inferior de promoo da justia distributiva 28 tendo

    quase sempre um efeito regressivo, na medida em que os consumidores suportam a carga

    tributria sobre os bens e servios cuja aquisio para os mais pobres, por meio de itens

    essenciais prpria sobrevivncia, esgota inteiramente todos os seus recursos. Essas

    camadas excludas tambm no conseguem poupar o suficiente para formar patrimnio a

    ser tributado. Deste modo, a tributao sobre o consumo atende muito mais aos interesses

    de arrecadao do Estado, a partir da perspectiva liberal de neutralidade e de eficincia

    econmica, do que ideia de justia fiscal, de combate desigualdade ou de fortalecimento

    do Estado Social.

    Por outro lado, como destaca Dworkin29, o imposto de renda o mecanismo

    tributrio mais adequado de redistribuio por neutralizar os efeitos dos talentos diferentes,

    mas, ao mesmo tempo, preservar as consequncias das escolhas individuais:

    O imposto de renda um dispositivo plausvel a essa finalidade, porque

    deixa intacta a possibilidade de escolher uma vida na qual se fazem

    sacrifcios constantes e se impe uma disciplina contnua em nome do

    xito financeiro e dos recursos adicionais que traz, embora, claro, no

    endosse nem condene tal escolha. Mas tambm reconhece a sorte

    gentica. A conciliao que esse imposto cria um compromisso, mas

    um compromisso entre duas exigncias da igualdade, diante da incerteza

    prtica e conceitual sobre como atender a essas exigncias, e no um

    compromisso da igualdade em benefcio de algum valor independente,

    como a eficincia.

    Deste modo, no deve haver dvidas de que a tributao sobre a renda, sobre as

    heranas e sobre o patrimnio so medidas que mais atendem ideia de justia fiscal, por

    melhor viabilizar a redistribuio de renda, do que a tributao sobre o consumo.30

    28 MURPHY, Liam e NAGEL, Thomas. O mito da propriedade, p. 156.

    29 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana A teoria e a prtica da igualdade, p. 116.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    14

    Porm, parece que os mais ricos lograram xito na estratgia de tornar

    hegemnico o discurso da carga tributria asfixiante a fim de ocultar o carter inquo e

    excludente do sistema fiscal. Vale registrar que o fenmeno no s brasileiro. Liam

    Murphy e Thomas Nagel noticiam que a defesa poltica das reformas fiscais de George W.

    Bush, nos EUA, a favor dos mais ricos, utilizou como mote a ideia de que as medidas eram

    justas pois se traduziam em tributao menor para todos.31

    Se a receita de Piketty para combater a desigualdade social pela via da tributao

    nos pases ricos passa pelo aumento da tributao do patrimnio e da renda a partir da

    pesquisa que teve por base regimes em que esta se apresenta muito mais robusta do que no

    Brasil, em nosso pas, sob a tica distributiva por ele defendida, necessria seria uma

    verdadeira revoluo que desonerasse os salrios e o consumo em detrimento de

    patrimnio e renda, por meio de uma reforma tributria igualitria.

    Outro dado preocupante do ponto de vista da justia fiscal em nosso sistema a

    baixa tributao do patrimnio herdado. No Brasil, a alquota mxima para a tributao do

    ITD (imposto sobre a transmisso de bens por mortes e por doaes) de 8% de acordo

    com a Resoluo do Senado n 09/92, mas os Estados geralmente no praticam alquotas

    maiores de 4%, ficando a mdia nacional em torno de 3,8%.

    Vale conferir a comparao da tributao sobre as heranas no Brasil com a

    de alguns outros pases:

    Pas Alquota mdia

    (%)

    Inglaterra 40

    Frana 32,5

    Japo 30,0

    EUA 29,0

    30 MURPHY, Liam e NAGEL, Thomas. O mito da propriedade, p. 255.

    31 MURPHY, Liam e NAGEL, Thomas. O mito da propriedade, p. 244: A defesa poltica dos cortes fiscais que beneficiam

    desproporcionalmente os ricos, apresentada ao povo norte-americano no comeo da segunda administrao Bush, seria muito menos

    convincente se no tivesse sido apresentada como uma questo de justia. Uma coisa dizer: Isto ser bom para a maioria das pessoas,

    especialmente para os ricos, e por isso que sou a favor; mas outra, muito diferente, dizer: justo que todos paguem menos

    impostos. Mesmo que essa alegao seja insincera, ela se vincula a antigas concepes de justia fiscal que ainda tm uma fora

    significativa.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    15

    Alemanha 28,5

    Sua 25,0

    Luxemburg

    o

    24,0

    Chile 13,0

    Itlia 6,0

    Brasil 3,8

    Fonte: Ernest Young

    Como Piketty salienta, a consolidao das fortunas pelas heranas atinge no

    final do sculo XX e incio do sculo XXI, um patamar s encontrado no final do sculo

    XIX, agravando o quadro de aumento de concentrao de renda. Por outro lado, o

    economista francs desfaz o mito da herana como fruto da meritocracia, demonstrando

    que os herdeiros em geral pouco contribuem para a manuteno e desenvolvimento do

    capital que, depois de certo patamar, reproduz-se sozinho.32 Por este motivo, essencial a

    tributao progressiva sobre as heranas a fim de combater o aumento da concentrao de

    renda.33 Registre-se ainda a posio de Liam Murphy e Thomas Nigel para quem o ideal

    sob o prisma distributivo seria levar a riqueza herdada base de clculo do imposto de

    renda dos herdeiros, embora, os prprios autores reconheam a dificuldade poltica de

    implementao da medida, o que os fazem apoiar a tributao das heranas por meio de

    imposto especfico.34

    Enquanto isso, no Brasil, a herana tributada no patamar de menos de 4% e o

    trabalho assalariado taxado por meio de tabela progressiva que chega at 27,5%, em

    32 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 474. Segundo Piketty, a meritocracia foi a inveno que as classes altas, a partir do seu

    instinto de sobrevivncia, tiveram que, abandonando o cio a que se dedicavam, adotar a fim de evitar a ameaa de perderem tudo o que

    possuam diante do advento do sufrgio universal. Ilustrando o seu pensamento, traz as instrues de mile Boutmy, em 1871, aos seus

    alunos aristocrticos: Compelidas a se submeter aos direitos dos mais numerosos, as classes que se autodenominam como classes altas

    s podem conservar a sua hegemonia poltica ao evocar o direito do mais capaz. Enquanto as prerrogativas tradicionais da classe alta

    desmoronam, a onda democrtica se choca contra uma segunda muralha, construda por mritos brilhantes e teis, pela superioridade que

    impe prestgio, capacidades das quais uma sociedade no pode se privar sem loucura. (BOUTMY, mile, Quesques ides sur la

    cration dune Facult libre denseignement suprieur, Paris, 1871).

    33PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 365.

    34 MURPHY, Liam e NAGEL, Thomas. O mito da propriedade, p. 256-257.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    16

    percentual que j incide sobre patamares pouco elevados, sem considerar ainda a tributao

    previdenciria.

    Do ponto de vista da prpria tributao da renda no Brasil, h crises sistmicas

    graves, em relao justia fiscal, como, por exemplo, a timidez da progressividade, que

    no atinge as grandes rendas, uma vez que a alquota mais alta j onera a classe mdia, que

    paga a mesma alquota do que as altas rendas35. Sendo os lucros e dividendos somente

    tributados na pessoa jurdica, e no na fsica, os proprietrios do capital das empresas no

    so tributados pelo IRPF, ficando livres da tabela progressiva. E mesmo assim, a

    arrecadao do imposto de renda na pessoa fsica no difere tanto assim daquela da pessoa

    jurdica. No ano de 2009 a arrecadao do IRPF totalizou 2,43% do PIB, enquanto o IRPJ

    alcanou 3,05%.36 Esses dados revelam a inquietante realidade de que a renda dos

    trabalhadores assalariados proporcionalmente mais onerada do que os lucros e dividendos

    dos proprietrios de empresas. Outra disparidade a distino, no mbito da prpria

    tributao da pessoa fsica, da tributao do trabalho assalariado (at 27,5%) e dos ganhos

    de capital (15%).

    De fato, em um pas cuja ordem constitucional econmica fundada no primado

    do trabalho, temos um leo que ruge mais alto para os trabalhadores e consumidores do que

    para os investidores, proprietrios, empresrios e herdeiros. E essa questo nenhum dos

    governos brasileiros ousou enfrentar, muito embora as polticas de congelamento da tabela

    do IRPF no Governo Fernando Henrique Cardoso tenham contribudo para o agravamento

    do quadro. Deste modo, temos um sistema tributrio que, longe de contribuir para a

    reduo das desigualdades sociais, as cristaliza quando no as aprofunda.

    E o paradoxal que os setores mais prejudicados pela injustia fiscal, por serem

    mais onerados, acabam fazendo coro ideia de que no Brasil a carga tributria muito alta,

    j que o nus suportado em maior grau pelos que menos riqueza tm. De fato, para eles

    mesmo uma das mais alta do mundo. Nesse ambiente, at os setores mdios e populares

    acabam por tomar averso aos tributos, tornando difcil a difuso de ideias ligadas

    35 O limite da progressividade at o exerccio de 2015 a renda mensal de R$ 4.463,81, acima do qual a tributao proporcional.

    36 Carga Tributria Brasileira 2009, no sitio da SRFB

    (http://www.receita.fazenda.gov.br/Publico/estudotributarios/estatisticas/CTB2009.pdf), acesso em 06/02/2015. Nos anos posteriores a

    SRFB passou a alocar em separado das receitas advindas da reteno do IR na fonte, sem discriminao sobre a origem no IRPF ou IRPJ,

    o que impede a utilizao de dados mais recentes.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    17

    cidadania fiscal, que acaba se traduzindo apenas em discusses sobre o aperfeioamento da

    mquina arrecadatria, passando ao largo do verdadeiro problema da desigualdade fiscal.

    Uma reforma tributria igualitria que aloque o nus fiscal sobre os mais ricos

    uma urgncia no Brasil, afinal, como diz Piketty37:

    "O imposto no nem bom nem ruim em si: tudo depende da maneira

    como ele arrecadado e do que se faz com ele."

    Em nome da igualdade fiscal, algumas das ideias do economista francs podem ser

    utilizadas em nosso pas, em busca de um sistema que proporcione mais justia social.

    V) A progressividade dos impostos sobre a renda

    Como vimos no item anterior, o imposto de renda o tributo que historicamente

    melhor se adequa justia fiscal de modo a capturar a capacidade contributiva efetiva do

    cidado, a partir da sua manifestao de riqueza em movimento. Vale ainda ressaltar que,

    diante do binmio renda/patrimnio como signos presuntivos de riqueza, os impostos

    pessoais devem ter como fato gerador algum fenmeno que revele a renda disponvel para

    a pessoa fsica e o lucro para as empresas.38 Porm, no ofende o princpio da igualdade a

    tributao dos rendimentos do capital de forma mais onerosa que os rendimentos do

    trabalho. Ao contrrio, em face do primado constitucional do trabalho, trata-se de uma

    medida de grande teor de justia.39

    Para os economistas liberais clssicos, a busca da justia fiscal pela tributao da

    maior capacidade contributiva seria efetivada pelo princpio da proporcionalidade, que

    consiste na variao da tributao em razo da diferena da base de clculo, a partir da

    aplicao de uma mesma alquota. o padro clssico para efetivao da tributao justa

    concebido por Adam Smith com base na teoria do benefcio, como manifestao das

    37 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 469.

    38 TIPKE, Klaus. Sobre a Unidade da Ordem Jurdica Tributria. In: SCHOUERI, Luiz Eduardo/ZILVETI, Fernando Aurlio

    (Coordenadores). Direito Tributrio. Estudos em Homenagem a Brando Machado. So Paulo: Dialtica, p. 60-70, 1998, p. 64: Todo

    o cidado deve pagar impostos em conformidade com o montante de sua renda disponvel para o pagamento de impostos; toda empresa

    deve pagar impostos de acordo com o montante de seu lucro.

    39 TIPKE, Klaus. Sobre a Unidade da Ordem Jurdica Tributria, p. 65.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    18

    vantagens que os contribuintes auferiam das atividades estatais.40 Extraiu-se da

    contribuio de Smith o princpio da proporcionalidade baseado na premissa, vlida para o

    Estado Liberal, de que os benefcios estatais, quase sempre limitados segurana ao

    indivduo e propriedade, so destinados aos cidados na proporo de sua riqueza. Deste

    modo, a aplicao da mesma alquota a todos os contribuintes, quando dotados de bases de

    clculo diversas, atenderia capacidade contributiva na exata medida em que cada um

    deles seria tributado proporcionalmente sua riqueza.

    A feio da capacidade contributiva com base na proporcionalidade, contestada

    por John Stuart Mill e seu utilitarismo economicista, a partir da teoria do igual sacrifcio,

    baseada na teoria econmica da utilidade marginal do capital. Segundo ela, a riqueza

    passa a ser menos til ao seu titular na medida em que aumenta. A partir dessa ideia, o

    sacrifcio social representado por uma tributao com base numa mesma alquota,

    conforme recomendado pela proporcionalidade de Smith, seria mais intenso nos segmentos

    dotados de menor riqueza. Para igualar o sacrifcio social da tributao, Stuart Mill

    preconizou a progressividade, com o aumento das alquotas em razo do aumento da

    riqueza.41

    No entanto, no foi a teoria do igual sacrifcio que fundamentou o crescimento da

    progressividade no sculo XX. Afastada de suas origens utilitaristas, a tributao

    progressiva acabou por constituir-se em um dos principais instrumentos de financiamento

    das prestaes positivas que passaram a ser garantidas populao em nome da

    solidariedade social do Welfare State. Juntamente com este, no entanto, a progressividade

    comeou a perder flego, a partir das dcadas de 1970 e 1980, na esteira da onda neoliberal

    de Reagan e Thatcher, quando a teoria do benefcio foi retomada James Buchanan.42 Mais

    recentemente, a proporcionalidade ainda vem sendo saudada como o melhor ndice de

    capacidade contributiva por John Rawls43, Klaus Tipke44 e, entre ns, por Ricardo Lobo

    Torres.45

    40 SMITH, Adam. Riqueza das Naes. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulberkian, 1999, Vol. II, p. 485: Os sditos de todos os Estados

    devem contribuir para a manuteno do governo, tanto quanto possvel, em proporo das respectivas capacidades, isto , em proporo

    do rdito que respectivamente usufruem sob a proteo do Estado.

    41 MILL, John Stuart. Princpios de Economia Poltica. So Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 290.

    42 BUCHANAN, James. The Limits of Liberty Between Anarchy and Leviathan. Chicago: The University of Chicago Press, 1975, p.

    98.

    43 RAWLS, John. Uma Teoria da Justia. So Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 307.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    19

    Aps a retomada da teoria do benefcio pelos economistas neoliberais do final do

    sculo XX, a progressividade, hoje, no mais deve ser extrada de uma viso utilitarista de

    igual sacrifcio, mas como importante instrumento de redistribuio de rendas no Estado

    Social, o que reconhecido at mesmo por pensadores liberais menos ortodoxos, como o

    prprio John Rawls, que, embora defendesse a proporcionalidade como um dos princpios

    da justia como equidade, considerando ser essa modalidade de tributao a mais adequada

    ao estmulo da produo, reconheceu tambm que, nos sistemas tributrios de pases em

    que haja maior desigualdade social, a progressividade dos impostos sobre a renda medida

    exigida pelos princpios da liberdade, da igualdade equitativa de oportunidades e da

    diferena.46 Nesse mesmo sentido, Klaus Tipke entende, na esteira do Tribunal

    Constitucional Alemo, que a progressividade rompe com a igualdade, mas este

    rompimento justificado pelo princpio do Estado Social, que tem por objetivo a

    distribuio de riquezas.47

    A despeito da superao do modelo liberal de capacidade contributiva, que se

    contenta com a igualdade formal, inevitvel reconhecer que em uma sociedade marcada

    por profundas desigualdades sociais como a nossa, maior importncia ainda conferida

    progressividade que, em vrios impostos, notadamente no imposto de renda, traduz-se no

    instrumento mais adequado aplicao do princpio da capacidade contributiva, baseando-

    se na solidariedade e na justia social. que a proporcionalidade, embora revele

    manifestao da capacidade contributiva, uma vez que no adota um valor fixo na

    tributao, se traduz num instrumento bastante tmido na distribuio de rendas, limitando-

    se a garantir a igualdade dos cidados perante a lei48, o que no Estado Social revela-se

    insuficiente.

    44 TIPKE, Klaus. Princpio da Igualdade e a Ideia de Sistema no Direito Tributrio, p. 527.

    45 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributrio, vol. II Valores e Princpios Constitucionais

    Tributrios. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 314-315.

    46 RAWLS, John. Uma Teoria da Justia, p. 308.

    47 TIPKE, Klaus. Princpio da Igualdade e a Ideia de Sistema no Direito Tributrio. In: BRANDO MACHADO (coord.). Estudos

    em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. So Paulo: Saraiva, p. 517-527 1984, p. 527.

    48 A igualdade formal brilhantemente sintetizada na expresso do escritor Anatole France: Em sua igualdade majesttica a lei probe

    tanto ao rico quanto ao pobre dormir embaixo da ponte, esmolar nas ruas e furtar po. (apud: RADBRUCH, Gustav. Introduo

    Cincia do Direito. So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 107-108).

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    20

    A essencialidade da utilizao da progressividade tributria para o atendimento

    das demandas do Estado Social, tambm destacada por Piketty49:

    "O imposto progressivo uma instituio indispensvel para fazer com

    que cada pessoa se beneficie da globalizao, e sua ausncia cada vez

    mais evidente pode levar a globalizao a perder apoio. (...) Por essas

    diferentes razes, o imposto progressivo um elemento essencial para o

    Estado Social: ele desempenha um papel fundamental em seu

    desenvolvimento e na transformao da estrutura da desigualdade no

    sculo XX, constituindo uma instituio central para garantir a sua

    viabilidade no sculo XXI.

    Porm, reconhece o economista francs que a progressividade tem sido

    ameaada do ponto de vista intelectual pelas crticas liberais, a partir de uma discusso

    insuficiente sobre as suas funes, bem como, do ponto de vista poltico, pela concorrncia

    fiscal, como ser analisado no item VII deste estudo.

    Contudo, foroso reconhecer, como j demonstrado, que a queda da

    progressividade nos EUA e no Reino Unido50 nos anos de 1980, justificou em parte o salto

    das remuneraes muito elevadas, o que, aliado concorrncia fiscal num contexto de livre

    circulao de capital, tornou a arrecadao tributria regressiva no topo de pirmide da

    renda.51

    Para Piketty, as crticas dos liberais no prosperam, pois o imposto progressivo

    constitui o mtodo liberal para combater as desigualdades, respeitando a livre iniciativa e a

    propriedade privada de modo previsvel e contnuo, de acordo com regras fixadas com

    antecedncia e debatidas em ambiente democrtico, a partir do compromisso ideal entre

    justia social e liberdade individual. No por outro motivo que foram inicialmente mais

    49 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 484.

    50 Merece registro, como demonstrao da averso do thatcherismo no s progressividade por ele ferozmente reduzida, mas prpria

    ideia de capacidade contributiva, a introduo, em 1988, do poll tax, que acabou contribuindo para a queda da primeira-ministra Margaret

    Thatcher, com a tributao fixa por habitante (captao), em substituio ao imposto municipal sobre propriedades. (Vide: Piketty, Ob.

    Cit, p. 482 e nota 3).

    51 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 483.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    21

    usados nos EUA e no Reino Unido do que na Frana e na Alemanha, e quase nunca

    praticados na URSS e na China comunistas.52

    A proposta de Piketty para o combate s desigualdades sociais a partir da

    distribuio de rendas passa por um substancial aumento de alquota do IR para 82% para

    os rendimentos maiores que 500 mil dlares ou 1 milho de dlares, correspondentes a

    faixa de 0,1 a 0,5% das maiores riquezas, como medidas confiscatrias destinadas a evitar a

    manuteno dessas muito altas. Prope ainda alquotas de 50 a 60% para as rendas acima

    de 200 mil dlares (5 a 10% mais ricos). Para ele, as duas medidas teriam funes

    diferentes. A primeira, de natureza verdadeiramente confiscatria, teria como objetivo pr

    fim s remuneraes indecentes e inteis; j a ltima, de fins redistributivos, objetivaria

    angariar recursos para o atendimento das demandas sociais. Mas o prprio autor sustenta a

    dificuldade poltica de implementao das propostas, uma vez tais medidas adotadas em

    um s pas levariam fuga dos milionrios, especialmente em pequenos pases europeus.

    Mesmo nos EUA, tal proposio encontraria muita dificuldade, uma vez que, segundo o

    economista francs, o processo poltico americano encontra-se escravo do 1% mais rico do

    pas. 53

    Alm das dificuldades polticas, no demais lembrar que tais medidas geram

    polmicas que vo bem alm do ambiente do pensamento libertrio ou de defesa do grande

    capital. Nesse sentido, vale trazer para a reflexo o contraponto de Liam Murphy e

    Thomas Nigel para quem, embora a progressividade parea estar indicada como parte de

    um sistema justo, a adoo de alquotas pesadas demais s faixas superiores parece

    desestimular os empresrios a realizar investimentos.54 Para Piketty, o argumento no

    procede, pois as desigualdades desmedidas no guardam grande relao com o esprito

    empreendedor e no apresentam qualquer utilidade para o crescimento: A ideia de que os

    executivos americanos fugiriam de imediato para o Canad ou para o Mxico e no

    haveria mais pessoas competente e motivadas a dirigir as empresas nos Estados Unidos

    no s contraditria com a experincia histrica e com todos os dados das empresas de

    que dispomos: ela vai contra o bom senso.55

    52 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 492.

    53 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 499 e 500.

    54 MURPHY, Liam e NAGEL, Thomas. O mito da propriedade, p. 254-255.

    55 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 499 e 556.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    22

    Polmicas parte, no Brasil, alm das dificuldades representadas pela

    concorrncia fiscal internacional e pela ausncia de consenso parlamentar para a aprovao

    de tais medidas em um parlamento tambm dominado pelos setores mais conservadores da

    sociedade, eleito a partir de campanhas financiadas pelo grande capital,56 a proposta de

    tributar de forma confiscatria as grandes rendas ainda encontraria a dificuldade

    constitucional de, aparentemente, confrontar o princpio do no-confisco, estabelecido pelo

    artigo 150, IV ,da Constituio Federal, que probe o legislador de usar o tributo com efeito

    de confisco.

    Porm, entre a tributao confiscatria, vedada constitucionalmente, e, no extremo

    oposto, a adoo de uma progressividade limitada classe mdia como temos hoje, h um

    grande espao de ao do legislador para a implementao de um modelo efetivamente

    progressivo, que possa tributar de maneira mais intensa as grandes rendas, inclusive as

    obtidas por meio de lucros e dividendos, desonerando os assalariados e, abrindo espao

    para o alvio fiscal na tributao sobre o consumo.

    Trata-se de medida que no exige alteraes constitucionais, estando a cargo do

    prprio legislador federal, desde que fossem encontrados caminhos polticos para superar a

    resistncia dos mais ricos, sem a necessidade de comprometer as j combalidas receitas

    estaduais e municipais. At porque, se dependesse de alteraes constitucionais

    prejudiciais s competncias tributrias dos entes perifricos, a aprovao de tais medidas

    seriam ainda mais inviveis politicamente.

    No mbito do imposto de renda, o ideal do ponto de vista da justia fiscal seria a

    concentrao da tributao na pessoa fsica dos seus scios, ficando a tributao da pessoa

    jurdica apenas como imposto do acionista retido na fonte, a ttulo de registro regulatrio,

    uma vez que a tributao na pessoa fsica admite a progressividade enquanto o imposto

    sobre as empresas submetido a proporcionalidade incapaz de promover a mensurao da

    renda do acionista. O problema que esse imposto cobrado nas pessoas jurdicas acaba

    sendo muitas vezes a nica tributao efetiva, uma vez que grande parte da base fiscal

    declarada pelas empresas nunca ser transferida ao patrimnio individual a partir de

    56 O mesmo fenmeno ocorre nos EUA, como noticiam MURPHY, Liam e NAGEL, Thomas: As pessoas, sempre que possvel, gastam

    dinheiro para ganhar ou conservar ainda mais dinheiro. Se no se impuser um limite s contribuies oferecidas aos polticos, podemos

    ter certeza de que a busca da justia socioeconmica ser prejudicada pela influncia desproporcional dos que tm mais a perder com ela

    do ponto de vista financeiro. (O mito da propriedade, p. 257).

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    23

    mecanismos permitidos pela prpria legislao fiscal. Da a necessidade de arrecadar-se

    uma parcela significativa como imposto das prprias empresas, bem como de fortalecer os

    mecanismos contbeis de preveno de fraudes.57

    Essa dificuldade de mensurar adequadamente os rendimentos dos scios pelo

    lucro das empresas uma das razes que leva Piketty a propor a tributao sobre o capital

    acumulado, que em nosso sistema teria guarida constitucional na tributao das grandes

    fortunas.

    De todo modo, a despeito da possibilidade de instituio do imposto sobre grandes

    fortunas no Brasil, que ser analisada no item seguinte, foroso reconhecer a necessidade

    de profundas reformas na tributao da renda no Brasil.

    Se por um lado, correto o entendimento de que a tributao da renda das pessoas

    fsicas deve ser unificada, abarcado toda a sorte de rendimentos, inclusive os lucros e

    dividendos, sem o que tais rendimentos deixam de subordinar-se progressividade, por

    outro preciso manter-se certo grau de tributao do lucro das empresas, no s para fins

    de registro de suas atividades, mas principalmente como forma de antecipao dos lucros

    dos seus scios.

    claro que quando se sustenta a coexistncia da tributao dos lucros na pessoa

    jurdica e na pessoa fsica no se est defendendo a dplice tributao desta riqueza, que,

    economicamente, una, embora possa ser desdobrada pela lei em dois fatos geradores

    diferentes. Assim, no seria lcito, luz do princpio do no-confisco, levar tributao de

    27,5 % na pessoa fsica os lucros e dividendos j tributados em 34% na empresa. Porm, a

    legislao poderia prever mecanismos de deduo na tributao dos lucros e dividendos do

    montante pago na pessoa jurdica, ou ainda a harmonizao das alquotas incidentes nos

    dois casos para que o seu somatrio no resultasse em efeito confiscatrio.

    Outra reforma urgente na legislao do IRPF a previso de uma verdadeira

    progressividade com a introduo de um maior nmero de alquotas, que cheguem a

    patamares mais elevados para os altos rendimentos, a fim no s de levar a tributao da

    renda no Brasil aos padres internacionais (vide tabela da tributao da renda no Brasil e

    em outros pases), mas utilizar tal mecanismo como instrumento da poltica de

    redistribuio de rendas em nosso pas, a exemplo do que ocorreu nos EUA e na Europa at

    57 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 506 e 545.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    24

    os anos de 1970. Estudo da KPMG divulgado em 201058 nos d conta de que entre 81

    pases pesquisados, o Brasil o 56 dentre as maiores alquotas incidentes sobre as rendas

    das pessoas fsicas, com 27,5% muito atrs dos pases mais desenvolvidos. E o mais

    preocupante que dentre os 70 pases pesquisados que possuem teto para a alquota mais

    alta, o Brasil ocupa a 11 posio entre os limites mais baixos. de fato uma

    progressividade para os trabalhadores e no para os ricos. Confirma abaixo as alquotas

    mximas de alguns pases pesquisados:

    Pas Alquota Mxima do

    IR (%)

    Aruba 59

    Sucia 56,6

    Dinama

    rca

    55,4

    Holand

    a

    52

    ustria 50

    Blgica 50

    China 45

    Chile 40

    EUA 35

    Argenti

    na

    35

    Malta 35

    Mxico 30

    ndia 30

    Brasil 27,5

    Egito 20

    Costa 15

    58 Vide no site da BBC: www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/10/101006_impostos_estudos_kpmg_rw.shtml?print=1, acesso em

    06/02/2015.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    25

    Rica

    Rssia 13

    Porm, a adoo de uma progressividade mais acentuada em nosso pas no

    deve ser mais uma medida de mais onerao da classe mdia. Nas alquotas majoradas

    devem incidir a taxa marginal de renda a partir de patamares bem mais elevados do que os

    atuais, atingindo o topo da pirmide que concentra a maior parte da riqueza nacional. Em

    contrapartida devem ser desonerados os contribuintes nas faixas mais baixas da atual

    tabela, a fim de aliviar os assalariados, a partir da elevao dos limites nominais de cada

    uma das suas faixas.

    Outra medida compensatria elevao da carga fiscal dos mais ricos, em

    benefcio dos mais pobres, e que a prpria Unio tambm pode adotar por legislao

    prpria, a desonerao dos seus tributos incidentes sobre o consumo, como o IPI, o PIS e

    a COFINS, sem comprometer a arrecadao dos Estados e dos Municpios, com o ICMS e

    o ISS, uma vez que estes, embora detenham autonomia federativa de promover a sua

    prpria reforma tributria, no dispem de mecanismos para a tributao da renda, embora

    sejam destinatrios da sua arrecadao por meio dos fundos de participao.

    Assim, as medidas propostas por Piketty em nome da justia fiscal relativas

    tributao da renda podem ser aplicadas ao Brasil sem que se traduzam em aumento da

    carga tributria brasileira, mas na sua mais justa distribuio.

    VI) A tributao sobre o capital e o imposto sobre grandes fortunas

    Uma das principais propostas de Piketty para combater a desigualdade social pela

    via da tributao a introduo de um imposto sobre os grandes capitais em escala mundial

    como medida destinada a reduzir das grandes fortunas, promovendo o maior equilbrio

    entre os segmentos sociais. Sua funo, no seria redistributiva de prestaes pblicas para

    os mais pobres, como se viu, mas distributiva, de modo a regular o capitalismo limitando a

    extrema concentrao de renda, a partir da estratgia de diminuir o retorno do capital

    privado para os nveis abaixo da taxa de crescimento, subvertendo a equao r > g, para

    fazer com que o crescimento da riqueza nacional supere a remunerao dos grandes

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    26

    capitais (r < g). Prope Piketty uma incidncia anual de 0% para patrimnios inferiores a 1

    milho de euros; 1% para aqueles entre 1 a 5 milhes de euros; 2% para os valores alm de

    5 milhes de euros; podendo subir at 5 a 10% para os patrimnios acima de 1 bilho de

    euros.59

    Segundo o autor, as vantagens de tal tributao sobre a atual taxao patrimnio

    so: i) atingir no s o capital imobilirio mas tambm o financeiro; ii) permitir a deduo

    das dvidas incidentes sobre o patrimnio, o que hoje no se admite; iii) adotar a

    progressividade, j que hoje quase toda a tributao sobre patrimnio proporcional.60

    Por outro lado, segundo Piketty, sendo um imposto sobre o patrimnio acumulado,

    e no sobre a percepo dos rendimentos por ele gerado em determinado perodo de tempo,

    no ocorre o desestmulo aos novos investimentos.61 Ademais, a tributao da renda

    frequentemente subdimensionada pelos seus detentores a partir de patamares muito

    elevados. Da a necessidade de uma tributao direta sobre o capital, permitindo captar a

    capacidade contributiva dos titulares de grandes fortunas, o que no mbito da tributao da

    renda nem sempre possvel em funo de possibilidades mais amplas de planejamento

    fiscal.62

    Alm de tal lgica contributiva, segundo Piketty, o imposto sobre o capital possui

    uma lgica de incentivos aos investimentos que tenham um retorno mais elevado, ou ainda

    a alienao do capital que no encontra boa rentabilidade.63

    Pelo lado da justia fiscal, o imposto sobre capital, ao estabelecer incidncias

    progressivas sobre a riqueza individual, seria, segundo Piketty, uma instituio que

    permitiria ao interesse comum a retomar o controle do capitalismo ao se apoiar nas foras

    da propriedade privada e da livre concorrncia, pois cada categoria de riqueza seria taxada

    da mesma maneira, sem discriminao a priori quanto sua origem, partindo do princpio

    de que, em geral, os detentores dos ativos esto em melhor posio do que o poder pblico

    para decidir sobre os investimentos a serem feitos.64

    59 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 503.

    60 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 503-504.

    61 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 556.

    62 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 511.

    63 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 512-513.

    64 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 518.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    27

    Segundo a sua proposta, o imposto sobre grandes capitais poderia absorver, com

    vantagens, o imposto sobre a propriedade imobiliria, sendo lanado de ofcio para coibir

    as fraudes, e teria como referncia ao valor de mercado do capital, sendo ainda passvel de

    deduo dos emprstimos, permitindo-se que o patrimnio seja tributado pelo seu resultado

    final e no apenas pelo seu ativo como hoje 65

    A tributao sobre grandes fortunas na Frana foi levada a efeito pelo Imprt sur

    ls Grandes Fortunes (IGF), introduzido na Frana no Governo socialista de Franois

    Mitterrand, em 1981. O imposto francs foi revogado em 1986 para reaparecer em 1988

    como imposto de solidariedade sobre a fortuna (Imprt de Solidarit sur La Fortune ISF).

    Piketty noticia que o IGF e o ISF no modificaram muito o quadro da distribuio de renda

    na Frana, em face da opacidade quanto ao nvel e a repartio do patrimnio submetido ao

    imposto e de uma legislao que estabelece uma srie de regimes derrogatrios em favor

    das rendas do capital.66

    Por influncia da experincia francesa, a Constituio brasileira de 1988 previu a

    criao do imposto sobre grandes fortunas (IGF). De acordo com o art. 153, VII, CF, o IGF

    deve ser institudo por lei complementar. Porm, nunca foi institudo no Brasil, a despeito

    do projeto de lei complementar apresentado pelo Senador Fernando Henrique Cardoso em

    1989, que nunca foi aprovado.67

    A Constituio determina que a lei complementar ir instituir o tributo, definindo

    no s definir o seu fato gerador, a sua base de clculo e seus contribuintes, como

    determina o art. 146, III, a, CF, em relao aos demais impostos, mas tambm, a sua

    alquota e demais elementos para a exigncia do tributo. Porm, pode-se extrair da

    Constituio que a grande fortuna pressupe a riqueza imobilizada no patrimnio do

    contribuinte, e no o seu auferimento durante certo perodo de tempo, como a renda. Dessa

    ideia a lei complementar no poder afastar-se, com o que se atende aos objetivos

    apresentados por Piketty.

    O grande problema para a instituio da tributao sobre grandes fortunas em

    65 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 515.

    66 PIKETTY, Thomas. "A febre e o termmetro, in: Bava, Silvio Caccia (org.). Piketty e o Segredo dos Ricos. So Paulo: Veneta; Le

    Monde Diplomatique Brasil, 2014, p. 29-30.

    67 Registre-se que, nem mesmo quando o autor do projeto foi Presidente da Repblica (1995-2002), houve efetivo apoio governamental para a sua aprovao.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    28

    nosso pas no de ordem normativa. Como se viu, basta uma lei complementar para

    institui-lo. Mas de ordem poltica e econmica. Sob o primeiro aspecto, preciso superar

    a resistncia dos muito ricos sua instituio, e a influncia que estes exercem sobre o

    Congresso Nacional. Quanto ao segundo aspecto, j identificado por Piketty, o risco de

    que as grandes fortunas se mudem para outros pases que no adotem a tributao sobre os

    grandes capitais, o que acabaria por comprometer o desenvolvimento econmico. Por isso,

    o economista francs prope a sua adoo em escala global, o que, ele mesmo reconhece

    ser uma utopia til em um mundo globalizado financeiramente, mas ainda normatizado

    pelo Estado nacional.

    Essas dificuldades que a concorrncia tributria internacional impe tributao

    no plano nacional dos grandes capitais o tema a ser enfrentado no item seguinte.

    VII) Globalizao, concorrncia tributria internacional e transparncia fiscal

    inevitvel constatar que com a Globalizao mostra-se rompida uma das

    principais premissas da Era Moderna: a de que vivemos em espaos delimitados pelos

    Estados nacionais. Porm, o que pode ser considerado como a decadncia da modernidade,

    pode tambm marcar o incio de uma segunda modernidade, desde que sejam superadas as

    ortodoxias que levaram ao esgotamento da primeira.68

    Nesse panorama, as medidas tomadas pelo Estado acabam por originar outros

    problemas sociais e econmicos. Para se proteger da livre atuao das empresas

    transnacionais, garantindo os direitos de seus cidados, os Estados nacionais adotam

    medidas que acabam por afugentar o fluxo de capitais, gerando mais desemprego e misria.

    Por outro lado, o desenvolvimento econmico gerado pelos investimentos dos agentes

    transnacionais no se apresenta como soluo ao crescimento da excluso social e da

    concentrao de renda, como destaca Ulrich Beck69:

    Empresas transnacionais superam a si prprias com taxas recordes de

    lucratividade B e de corte expressivo de postos de trabalho. Em seus

    68 BECK, Ulrich. O que Globalizao? Equvocos do Globalismo, Reposta Globalizao. Trad. Andr Carone. So Paulo: Paz e

    Terra, 1999, p. 26 e 46.

    69 BECK, Ulrich. O que Globalizao?,p. 46.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    29

    balanos anuais os conselhos das empresas apresentam uma sucesso de

    lucros astronmicos enquanto os polticos, que devem justificar o

    escndalo do desemprego, voltam carga com novos aumentos de

    impostos na esperana quase sempre v de que, da riqueza dos mais

    ricos, caiam dos cus alguns postos de trabalho. Cresce, por

    consequncia, a intensidade do conflito inclusive dentro do campo

    econmico entre contribuintes virtuais e contribuintes reais. Ao passo

    que as empresas transnacionais escapam dos impostos do Estado

    nacional, as pequenas e mdias empresas, responsveis pela maior parte

    da oferta de postos de trabalho, sangram nas mos dos novos entraves da

    burocracia fiscal. O humor negro da histria entra em cena: so

    justamente os perdedores da Globalizao que devero pagar tudo, o

    Estado Liberal e o funcionamento democrtico, enquanto os vencedores

    seguem em busca de lucros astronmicos e se esquivam de suas

    responsabilidades para com a democracia do futuro.

    Parece assistir razo, a Dani Rodrik quando este afirma que Estado-nao,

    democracia e globalizao constituem um trio instvel no sculo XXI, devendo um dos

    trs ceder aos outros dois, pelo menos em parte. 70

    Da a dificuldade de estabelecer a tributao dos mais ricos por decises

    unilaterais do Estado nacional, em um ambiente de grande concorrncia fiscal entre os

    Estados, o que acaba por fazer prevalecer propostas de abandono a tributao sobre a renda

    e a sua substituio pela taxao sobre o consumo, como no sculo XIX.71

    Por outro lado, o conservadorismo jurdico em um ambiente europeu marcado pela

    consagrao do direito absoluto de livre circulao de pessoas, bens e capitais acaba por

    fragilizar os direitos dos Estados de promover o interesse geral, inclusive no que se refere

    cobrana de impostos. 72

    70 RODRIK, Dani. The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the Worrld Economy. New York: Norton, 2011, apud:

    PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 633, nota 35.

    71 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 546.

    72 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 551.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    30

    Se o desenvolvimento econmico escapa do controle do Estado nacional, as suas

    consequncias, como o desemprego, a pobreza, a imigrao, a violncia urbana, tm o seu

    equacionamento exigido do Estado Social,73 cada vez mais frgil para atender a essa

    crescente demanda, o que gera crises polticas que colocam em risco o futuro da

    democracia.74

    Esses tempos em que vivemos, no h o fim da poltica, mas seu recomeo. O

    desmoronamento do socialismo real no pe fim crtica sociedade industrial capitalista,

    mas ao contrrio, abre novas perspectivas a partir da autocrtica social.75 Em consequncia,

    preciso reinventar a poltica a partir de dados extrados desses novos tempos. Se por um

    lado a Globalizao econmica leva o comrcio escala internacional, gerando

    crescimento do poder das empresas transnacionais em detrimento dos Estados nacionais76 e

    dos trabalhadores, de outro o avano tecnolgico e a revoluo nos meios de informao e

    comunicao universalizam os direitos humanos e a democracia, despertando a ateno

    global sobre as questes ambientais, os direitos das minorias, a pobreza mundial e exigindo

    que os assuntos pblicos e privados sejam tratados luz da transparncia. A reinveno da

    poltica no se caracteriza pelo triunfo do neoliberalismo, mas, ao contrrio, pela crtica ao

    domnio do plano econmico sobre todos os demais, e ao autoritarismo poltico a servio

    da lgica do mercado.77

    Nesse cenrio, surgem no plano internacional e interno regras relativas

    transparncia fiscal tendente a tornar claras a movimentao de riquezas em um mercado

    globalizado, viabilizando a sua tributao pelos Estados nacionais. Em nosso pas,

    73 BECK, Ulrich. O que Globalizao?, p. 36.

    74 BERCOVICI, Gilberto. Constituio e Estado de Exceo Permanente A Atualidade de Weimar. So Paulo: Azougue Editorial,

    2004, p. 179.

    75 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo Global. Trad. Jess Albors Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de Espaa Editores, 2002, p. 125.

    76 Ao mesmo tempo em que a Globalizao fragiliza o Estado Nacional, cria as condies para o aparecimento de novos deles, a partir

    do desmembramento das regies mais ricas, ou ainda da concesso de maior autonomia aos entes perifricos. Nesse sentido: OFFE,

    Claus. A Atual Transio da Histria e Algumas Opes Bsicas para as Instituies da Sociedade In: PEREIRA, L.C. Bresser;

    WILHEIM, Jorge; e SOLA, Lourdes. Sociedade e Estado em Transformao. So Paulo: UNESP, 2001, p. 125: a Globalizao

    envolve incentivos para comportamento de bote salva-vidas e separao subnacional dos grupos e regies (relativamente) mais ricos

    que, de forma bastante racional do seu ponto de vista, lutam para defender, explorar e isolar suas vantagens competitivas locais e

    regionais, em vez de dividir os avanos com outras (e supostamente mais vulnerveis) unidades do Estado ao qual elas pertencem. Isso

    tem se dado preferencialmente por meio de secesso e construo de estados separados, ou ento por meio de amplas formas de

    autonomia fiscal do conjunto da federao.

    77 BECK, Ulrich. O que Globalizao?,p. 225.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    31

    princpio constitucional implcito que determina que atividade financeira, seja ela realizada

    pelo Estado, seja desenvolvida pela Sociedade, deve ser pautada pela clareza, abertura e

    simplicidade.78 Para Tlio Rosembuj, a transparncia fiscal internacional se dirige

    tributao dos scios ou controladores de entidades no residentes mediante a incluso em

    suas respectivas bases imponveis de determinadas rendas obtidas fora do territrio e que

    suportaram uma tributao inferior quela praticada pelo Estado de residncia.79

    No mbito da tributao, a transparncia fiscal se dirige contra o planejamento

    fiscal praticado com abuso de direito, e o combate por meio de clusulas antielisivas que

    procuram afastar estratagemas destinados a evitar ou minorar a tributao por meio da

    criao de estruturas societrias opacas, sem atividade operacional, destinadas viabilizar a

    transferncia, por meio de operaes artificiais, de todo o lucro auferido em determinado

    pas para outro de tributao favorecida.

    Na dcada de 1930, nos Estados Unidos, surgem os primeiros mecanismos para a

    adoo da transparncia fiscal internacional. Em 1962 so aperfeioadas no Governo

    Kennedy com a criao da Controlled Foreign Corporation (CFC),80 a partir da

    desconsiderao da personalidade jurdica de empresas cuja constituio tenha sido

    inspirada predominantemente em razes de ordem fiscal, como se esta sociedade fosse

    transparente, permitindo a tributao dos seus respectivos scios, independentemente da

    distribuio dos lucros.81 Pelo modelo de transparncia fiscal internacional adotado nos

    Estados Unidos, que foi seguido por pases como Alemanha, Canad, Japo, Frana,

    Noruega, Gr-Bretanha, Portugal Itlia e Espanha,82 algumas classes de rendimentos

    passivos auferidos pela controlada, desvinculadas das atividades econmicas produtivas,83

    so tributadas pelo Estado de residncia da controladora, como o caso de dividendos,

    arrendamentos, juros, financiamentos, independentemente do pas de domiclio da

    controlada. Em outros modelos, denominados de jurisdio designada, a desconsiderao

    78 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributrio Vol. II Valores e Princpios Constitucionais

    Tributrios. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 243.

    79 ROSEMBUJ, Tlio. Derecho Fiscal Internacional. Barcelona: El Fisco, 2001, p. 174.

    80 TORRES, Ricardo Lobo. Planejamento Tributrio: eliso abusiva e evaso fiscal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 67.

    81XAVIER, Alberto. Direito Tributrio Internacional no Brasil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 360.

    82 GARBARINO, Carlos. La Imposicin de La Renda de La Empresa Multinacional In: UCKMAR, Victor. Curso de Derecho

    Tributario Internacional, tomo I. Bogot: Temis, 147-173, 2003, p. 157.

    83 ROSEMBUJ, Tlio. Derecho Fiscal Internacional, p. 175.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    32

    da personalidade jurdica da controlada s ocorre se esta for domiciliada em parasos

    fiscais.

    Como se v, a transparncia fiscal internacional, fundamento para a adoo das

    normas de CFC, traduzem-se em clusulas antielisivas aplicadas a situaes em que h o

    abuso de direito na utilizao da pessoa jurdica, cuja criao e funcionamento tm como

    objetivo exclusivo a reduo do imposto a ser pago no pas dos controladores, no

    relevando maior propsito econmico. O seu aprimoramento essencial para atenuar os

    efeitos danosos da concorrncia fiscal internacional.

    nesse contexto de medidas de incremento da transparncia internacional que a

    instituio do imposto sobre grandes capitais pode fazer a diferena, independentemente da

    frustrao inicial que os efeitos danosos que a concorrncia fiscal internacional poder

    promover em sua arrecadao. Pode ser um remdio que, em um primeiro momento, no

    se mostre forte o suficiente para atender necessidade de arrecadao de recursos em razo

    dos efeitos danosos da concorrncia fiscal, mas a sua introduo, ainda que com uma

    alquota mdica em um primeiro momento, poder inocular o vrus que ser mortal ao

    crescimento da guerra fiscal internacional, especialmente se a sua introduo se tornar

    regra na maioria dos pases em decorrncia de tratados internacionais.

    Assim, independentemente da significncia da arrecadao do imposto sobre

    grandes capitais, a sua instituio, ainda que sob alquotas modestas, tem a funo de

    conferir transparncia s operaes transnacionais das empresas, gerando conhecimento e

    informao sobre as fortunas em um considervel esforo de regulao financeira84.

    Afinal, o imposto sempre mais do que um imposto, uma maneira de solidificar as

    definies e as categorias prprias ao direito e ao contexto jurdico. Assim, o imposto sobre

    o capital seria uma forma de cadastro financeiro mundial.85

    Ainda dentro desse desafio de ampliar os espaos dominados pela transparncia

    internacional, preciso combater os parasos fiscais por meio de ampliao dos acordos

    internacionais que obriguem a informao automtica sobre as transferncias

    84 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 504-505.

    85 Vide em Piketty a importncia da funo do imposto como cadastro de transaes, a partir do feliz exemplo da desestruturao da

    propriedade no imprio romano a partir do abandono do imposto fundirio imperial e, por consequncia, tambm dos ttulos de

    propriedade e dos elementos cadastrais que o acompanhavam, contribuindo para aumentar o caos econmico na Alta Idade Mdia.

    (PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 506 e 623- nota 4).

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    33

    internacionais, de forma a que cada autoridade nacional possa receber todas as informaes

    necessrias para lhes permitir calcular o patrimnio lquido de cada cidado, a partir de

    declaraes pr-preenchidas pelo governo. De acordo com a proposta de Piketty, cada

    contribuinte receberia todo ano os seus ativos e passivos conhecidos pela administrao

    fiscal, reavaliados anualmente pelo valor de mercado. A justificativa da necessidade de os

    lanamentos serem realizados com base em declaraes pr-preenchidas pelo governo

    reside na tendncia dos contribuintes a reduzir a sua base de clculo de 10 a 20% por

    ocasio de suas prprias declaraes.

    Para tanto, o grande passo da transparncia fiscal internacional seria dado com a

    promoo das transmisses automticas de informaes bancrias para o mbito mundial,

    de maneira a incluir os bancos localizados no exterior, com o fim dos sigilos bancrios em

    parasos fiscais, pois como esclarece Piketty86:

    "O direito de estabelecer sua prpria taxa de tributao no existe. No

    se pode enriquecer por meio do livre-comrcio e da integrao

    econmica com os vizinhos e depois desviar impunemente sua base fiscal.

    Isso parece roubo, pura e simplesmente."

    Porm, ainda que sejam coibidas todas as fraudes com o combate evaso e

    eluso fiscal, ainda resta um espao amplo para o planejamento tributrio internacional que

    dificulta a tributao dos grandes capitais, a partir da no distribuio de lucros para os

    acionistas em patamares mais elevados de capital, que conseguem muito bem viver sem a

    integralidade dos seus rendimentos, podendo deixar a maior parte dos seus recursos em

    holdings familiares no exterior. Piketty identifica trs solues possveis para o problema:

    i) a integrao para fins fiscais da tributao na renda individual dos rendimentos auferidos

    nas holdings ou nas empresas que esses indivduos tenham participao, em detrimento da

    personalidade jurdica dessas empresas, havendo ou no abuso de direito no planejamento

    fiscal, o que pode acabar por prejudicar as empresas verdadeiramente operacionais; ii) a

    presuno da renda pelo valor do patrimnio a partir de uma estimativa fixa de rendimento,

    a fim de integrar este tributao progressiva da renda, com o risco de promover a

    tributao fictcia, e, muitas vezes, contrria capacidade contributiva; iii) aplicao de 86 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 504-505.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    34

    tabela progressiva sobre o patrimnio do indivduo, o que, segundo ele, apresenta-se mais

    vantajoso considerando a graduao da taxao em razo do nvel da fortuna, em funo

    das taxas de retorno observadas para determinado patamar de riqueza.

    Sendo o capital o melhor indicador da capacidade contributiva das pessoas mais

    ricas em relao renda anual, muitas vezes difcil de mensurar, o imposto sobre capital

    permite complementar o imposto de renda em todos os casos em que as pessoas possuam

    uma renda fiscal claramente insuficiente em relao ao seu patrimnio.87

    Embora a tributao em escala global sobre os grandes capitais seja uma proposta

    que nos parea um tanto utpica em razo do atual grau de integrao entre os Estados

    nacionais, a taxao das grandes fortunas por cada um deles, medida pode trazer

    resultados muito positivos, no s em termos arrecadatrios, mas tambm distributivos,

    desde que, em um ambiente de ampla concorrncia fiscal internacional, seja acompanhada

    de esforos internacionais de combate evaso e eliso tributrias, bem como da adoo e

    ampliao das regras de transparncia fiscal internacional, baseadas na tcnica da

    Controlled Foreign Corporation (CFC), do combate ao sigilo bancrio e aos parasos

    fiscais.

    VIII) Concluses

    Como se pode extrair do livro O Capital no Sculo XXI, vivemos em um

    momento histrico em que as foras de divergncia na curva da desigualdade social se

    acentuam embaladas por suas tendncias naturais que, quando no atenuadas por medidas

    governamentais e comunitrias, tendem ao permanente aumento da diferena entre pobres e

    ricos, com a concentrao de parcelas cada vez maiores do patrimnio e da renda em

    percentuais cada vez menores da sociedade. Na quadra atual, 1% da populao mundial

    detm 50% de toda a riqueza do planeta, enquanto a metade inferior da pirmide possui

    menos de 5% da riqueza.

    A humanidade nunca conheceu tanta riqueza, mas a repartio dessa exclui a

    maioria da populao dos direitos bsicos vida digna. Como destaca Piketty:

    87 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 512.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    35

    "Do ponto de vista da verdadeira regra de ouro, que se refere

    acumulao total do capital nacional, o fato que os pases europeus

    jamais estiveram to prsperos. Por outro lado, o que certo, muito

    vergonhoso, que o capital nacional extremamente mal repartido: a

    riqueza privada se apoia sobre a pobreza pblica e, sobretudo, por

    consequncia, h uma despesa muito maior em juros da dvida do que

    investimos, por exemplo, no nosso ensino superior. "88

    Se nada for feito pelos governos e pela histria, a concentrao de riqueza tende a

    aumentar, o que coloca em risco a democracia e o atendimento s necessidades mais

    basilares da populao mais pobre. E o instrumento que os Estados possuem que maior

    efeito produz na redistribuio de rendas a tributao igualitria, que, ao mesmo tempo

    em que financia a justia social, preserva a livre iniciativa e a livre concorrncia.

    As propostas de Piketty sobre a tributao justa, em grande medida se aplicam ao

    Brasil, cujo sistema tributrio marcado por uma iniquidade regressiva escondida por trs

    do discurso hegemnico quanto ao carter asfixiante de uma carga tributria afugentadora

    dos investimentos. preciso desmontar essas armadilhas montadas pelos beneficirios da

    concentrao de renda, promovendo a maior tributao do patrimnio, heranas e rendas

    dos mais ricos a fim de aliviar a carga fiscal dos consumidores e dos assalariados.

    Nesse cenrio, preciso discutir no Brasil as seguintes medidas, ensejadoras de

    uma verdadeira reforma tributria igualitria:

    a) tributao progressiva de todos os rendimentos da pessoa fsica,

    ficando a tributao dos lucros das empresas como mera antecipao da primeira;

    b) ampliao do nmero de alquotas da tabela do imposto de renda das

    pessoas fsicas, de modo a tributar efetivamente os mais ricos, e elevao dos

    limites das faixas mais baixas, a fim de preservar a renda dos assalariados;

    c) aumento das alquotas e estabelecimento da progressividade da

    tributao sobre heranas e doaes;

    d) instituio do imposto sobre grandes fortunas, considerando o

    patrimnio todo do contribuinte, inclusive as dvidas, e desonerando a tributao 88 PIKETTY. O Capital no Sculo XXI, p. 551.

  • RFPTD, v. 3, n.3, 2015

    36

    sobre o patrimnio imobilirio urbano e rural, que passaria a ter funo

    meramente extrafiscal, sendo as perdas municipais compensadas pelo incremento

    do fundo de participao dos municpios em relao ao imposto de renda dos

    mais ricos;

    e) alvio na carga fiscal sobre o consumo, especialmente na tributao

    federal pelo IPI, PIS e COFINS, at o limite do aumento das receitas advindas da

    tributao da renda e do patrimnio dos mais ricos;

    f) incremento das polticas de transparncia fiscal, de combate evaso

    e eluso, da flexibilizao do sigilo bancrio e da imunizao dos efeitos dos

    parasos fiscais.

    No entanto, aqui e alhures, no so subestimadas as dificuldades prticas de

    implementao dessas medidas em um sistema poltico dominado pelos mais ricos a partir

    do financiamento de campanhas eleitorais pelos extratos mais poderosos da pirmide

    social.89 Todavia, o agravamento da situao social no confere outra alternativa

    democrtica seno o enfrentamento das injustias sociais,90 cuja viabilidade financeira

    depende de uma profunda reforma tributria igualitria.

    preciso que os setores empresariais adotem uma postura menos reativa a

    essas ideias, pois no ser mais pos