piauí edicao 56 - do outro lado da lua

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  • Edio 56 > _questes intratveis > Maio de 2011

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  • Do outro lado da Lua

    por Roberto Pompeu de Toledo

    As clnicas para crianas e adolescentes que usam crack

    Janana, uma menina de 14 anos, negra, baixinha, boca grande e lbios grossos, falastrona e, vista decerto ngulo, divertida, no tem a ponta do dedo indicador da mo esquerda. o menor de seusproblemas. Janana comeou a se prostituir aos 10 anos. O primeiro a abusar dela foi um policial.Ganhou em troca uma pedrinha de crack. Passou a viver na rea do Centro de So Paulo conhecidacomo Cracolndia. Entrou na roda-viva de prostituir-se, ou fazer programas muitos, a cada dia ,em troca das pedrinhas miraculosas muitas, a cada dia.

    No comeo, eu nem sabia o que era programa, diz Janana. Pensava que era programa de televiso.D um sorriso maroto. o seu lado divertido. Um dia, a pedra do crack estourou dentro do cachimbo equeimou-lhe a mo. O dedo ficou cheio de pus. Levaram-na para a Santa Casa de Misericrdia, e tevede ter a ponta do dedo amputada. Foi um acidente grave, mas um nada, um detalhe, uma coisica dotamanho da ponta de seus dedinhos de criana, no contexto geral da vida que lhe foi reservada.

    Janana um dos adolescentes, entre meninos e meninas, internados no Servio de Ateno Integralao Dependente, o Said, uma unidade de tratamento da prefeitura paulistana, administrada peloHospital Samaritano de So Paulo. O centenrio Samaritano assumiu, em anos recentes, dois projetosde atendimento gratuito a dependentes do uso de drogas. Um o Said, iniciado em agosto do anopassado no bairro de Helipolis, perto de uma das maiores favelas da cidade. O outro o ProjetoJovem Samaritano, iniciado um ano e meio antes no municpio de Cotia, na Grande So Paulo.

    Os dois obedecem ao mesmo regime, ou seja, o Samaritano, instituio privada, que administraprojetos para o setor pblico: o Said em convnio com a prefeitura; o Jovem Samaritano com ogoverno do estado. O Said acolhe de adultos a crianas; o Jovem Samaritano, s adolescentes. Os doistm em comum o fato de serem regidos por um mtodo importado do Chestnut Health Systems,entidade americana com sede em Bloomington, Illinois.

    Visitar as instituies chamemos de clnicas, embora os mdicos no estejam de acordo em que apalavra expresse com justeza o que representam , para quem no do ramo, experimentar duas

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  • sensaes diferentes. Primeira, a de conhecer uma iniciativa inovadora, tocada por profissionaisdedicados e bem qualificados, e alicerada em fundamentos to slidos quanto a cincia podeproporcionar no momento, numa matria to complexa quanto a dependncia de drogas. Segunda, ade observar de perto, ao entrar em contato com os pacientes, conversar com eles e ouvir suas histrias,um mundo do qual s se tinha conhecimento pela lente distante das estatsticas e das notcias dejornal.

    Esta reportagem s falar dos menores. Dizer que eles chegam ao Said, ou ao Projeto Samaritano,vindos, na grande maioria, do submundo, pouco. Vm do sub do sub do submundo. Protagonizamhistrias proibidas de contar para crianas, quanto mais de viv-las. Era uma vez um menino que eraabusado pelo tio. Era uma vez um menino que fumava crack com o namorado da me. Era uma vezuma menina que contraiu HIV aos 10 anos. Todos eles j estavam ou acabam na rua, consumindo umapedra de crack aps outra.

    O autor deste texto teve sua ateno voltada para as clnicas administradas pelo Samaritano ao receberum e-mail de uma amiga, a jovem psiquiatra Camille Chianca. Ela j me contara que estavatrabalhando no Said. No e-mail, disse que naquele dia lhe tinha dado a louca de mostrar algo diferentea dois dos meninos internados, um de 17 anos, outro de 13. Matutou, matutou e resolveu: ia lev-los aoMuseu do Futebol.

    Dois outros profissionais do Said, o professor de educao fsica Daniel e a tcnica de enfermagemJacinta, foram junto. No museu, eles corriam, pulavam, olhavam ansiosos para uma coisa e outra,escreveu Camille. Acho que a adolescncia assim. Pareciam eis a grande revelao adolescentesnormais. O melhor ainda estaria por vir. Do Museu do Futebol, o grupo se dirigiu ao The Fifties, umalanchonete da praa Vilaboim, ali perto do Estdio do Pacaembu. Camille disse no e-mail que nuncaesquecer o rosto do menino mais velho, que nunca tinha ido a um restaurante, ao saborear amaravilha disponvel no local chamada milk-shake. O que minha amiga queria mostrar aos doispequenos pacientes que h coisas to gostosas, ou mais, na vida, do que o crack. Naquela tarde,achou que tinha conseguido.

    O e-mail de Camille me ofereceu um vislumbre do outro lado da lua. Do lado de c, o que me familiar, e, se no cometo grosseiro engano, grande maioria dos leitores da piau; as crianasaprendem desde cedo o que milk-shake, e adolescentes... ora, adolescentes se comportam comoadolescentes. Fui tomado pelo desejo de conhecer o trabalho realizado no Said e no Jovem Samaritanocom os garotos e garotas do crack. Ou melhor, dos garotos e garotas portadores de dependnciaqumica. (Primeira lio: jamais cham-los de drogados, muito menos de crackeiros, menos ainda denias.) Eles ficam internados por at trs meses. Nesse perodo, se envolvem em atividades que voda prtica de esportes a aulas de msica e discusses de grupo.

    H diferenas entre o Said e o Jovem Samaritano. O Jovem Samaritano, que comeou antes, ministraum programa de aulas de portugus, matemtica e cincias. No Said, isso ainda no foi implantado. Asvagas so poucas, para que o tratamento, individualizado e intenso, possa ser bem ministrado. O Saidpode abrigar at dezesseis adolescentes meninos, dezesseis adolescentes meninas (de 12 a 18 anos) eoito crianas (at 12 anos) at isso existe nesse mundo obscuro. O Jovem Samaritano tem capacidadepara acolher vinte internos, todos adolescentes do sexo masculino.

    Os jovens, no raro com um passado (e um passivo) de infratores e passagens pela Febem (ouFundao Casa, como foi rebatizada a instituio que acolhe menores transgressores em So Paulo), aochegar se aproximaro dos profissionais de mos para atrs e olhar baixo. Sero convidados a soltar os

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  • braos e levantar a cabea, olho no olho. Tero a a senha de que se encontram em outro ambiente.

    Em minha primeira visita ao Said, fui recebido por Camille e pelo enfermeiro Reinaldo Antnio deCarvalho, coordenador tcnico das duas clnicas administradas pelo Samaritano. A primeira surpresareservada ao visitante tomar conhecimento de que as instalaes so de um antigo motel,desapropriado pela prefeitura porque se encontrava em situao irregular. bizarro, mas, bempesadas as coisas, eis uma ideia luminosa. Motis demais e clnicas para dependentes qumicos demenos, os males do Brasil so. O precedente merecia multiplicar-se. Ainda mais que a conformaoarquitetnica dos motis, basicamente a de longas fileiras de quartos, a mesma requerida paraclnicas. Os ajustes necessrios para instalar o Said foram facilitados por essa circunstncia. Asgaragens do motel, situadas ao rs do cho, transformaram-se em quartos. E os antigos quartos, noandar superior, viraram salas de reunio, oficinas de arte e de msica, consultrios.

    O conjunto todo se divide em quatro alas incomunicveis homens de um lado, mulheres de outro,adolescentes e crianas do sexo masculino em uma terceira ala, adolescentes e crianas do sexofeminino em uma quarta ala. Quando entrei na ala dos meninos, os trs ou quatro que ali seencontravam, sentados em cadeiras, me estenderam a mo. O mais efusivo foi um baixotinho que noparecia ter os 13 anos que depois soube que tem. Ao passarmos por um corredor, Camille me chamou aateno para a tampa de ferro vermelha do extintor de incndio, toda amassada. o saco de boxedeles, explicou. Os meninos so impacientes, continuou, e reagem com violncia s contrariedades.Ela atribui a impacincia ao crack, que tem um efeito fulminante. Os adolescentes passam a querer omesmo efeito em tudo.

    O enfermeiro Reinaldo de Carvalho, que antes trabalhou no setor de psiquiatria da Santa Casa, medesfia uma pequena amostra dos casos assombrosos que teve nas mos. Um deles o do tal meninoque era abusado pelo tio, com quem vivia. O menino era portador de leve deficincia mental e foi difcilarrancar dele o que acontecia em sua relao com o tio. No achava relevante contar. Achava normal,numa relao entre crianas e adultos. No faz muito, surgiu um paciente, adulto, mulher, mas que sedizia homem e afirmava chamar-se Fernando. Num raro momento em que um dos meninos pdevislumbrar a ala dos adultos, o menino gritou: Fernando! Ele o(a) conhecia. Fernando/Fernanda eraum(a) aliciador(a) de crianas para pedfilos. O menino que o(a) reconheceu pertenceu ao quadro dosaliciados. E quem era esse menino? Aquele mesmo que me cumprimentara mais efusivamente, entrada o que tinha 13 anos, mas parecia menos.

    Um sistema de pontos avalia se os adolescentes tiveram maior ou menor envolvimento com asatividades propostas durante a semana, melhor ou pior desempenho. A tabela com os pontos ficaexposta numa parede, vista de todos. Um certo nmero de pontos rende uma recompensa, que podeser, escolha do contemplado, um telefonema para a famlia, a dispensa de uma atividade que lhedesagrade, ou mesmo um passeio. Naquela ocasio do Museu do Futebol e do milk-shake, Camilleestava contemplando dois ganhadores da semana.

    Em outra oportunidade, ela e a psicloga Juliana levaram um menino de13 anos ao cinema. Voc sabeo que um cinema?, lhe perguntaram antes. Sei. uma televiso grande, tem cadeiras e tem pipoca.Foram ao Shopping Santa Cruz, ver o filme Enrolados, em terceira dimenso. Entraram no saguo, e omenino, ansioso, perguntava: Cad a televiso grande? Cad as cadeiras? Calma, garoto. Quandochegaram sala de projeo, o menino continuou falando alto. Ensinaram-lhe que tinha de falar baixo.Durante a sesso, comeu dois sacos de pipoca e tentou agarrar com as mos as imagens que saltavamda tela. Ao sair, foi submetido a discreta inquirio para avaliar se tinha entendido a histria. Tinha.

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  • O enfermeiro Reinaldo de Carvalho, de 31 anos, casado, pai de uma filhinha de 1 ano, teve desde cedodespertada a vocao para o que faz. Nasceu numa pequena cidade na regio de So Jos do Rio Preto,onde o pai, quando ele era criana, foi presidente da Cmara dos Vereadores. Nessa qualidade, o pai deReinaldo recebeu do juiz, em certa ocasio, a incumbncia de encontrar tutores para trs doentesmentais. Sem ter a quem recorrer, o pai assumiu ele mesmo a tarefa, e levou os trs doentes para casa.Na convivncia com eles, Reinaldo de Carvalho teve sua curiosidade aguada pelos mistrios dofuncionamento da mente.

    Fez ento faculdade de sade pblica em Rio Preto j sabendo que queria trabalhar com sade mental.Mudou-se para So Paulo e, ao ser admitido na Santa Casa, escolheu o setor dos dependentes de lcoole drogas. Da Santa Casa foi recrutado, por meio de uma empresa de headhunters, para os projetos queo Samaritano estava por instalar.

    Entre nossos desafios est a concorrncia com o traficante, afirma Reinaldo de Carvalho sobre seutrabalho atual. Os meninos aqui ganham um tnis All Star quando chegam, mas que um tnis diantedos mil reais por semana que o traficante pode lhes proporcionar? comum o consumidor se pr aservio do traficante. J encontrei casos em que, com a renda do trfico, os meninos viram arrimos defamlia. Quando so internados, as famlias pressionam para sarem logo. Precisam recuperar a fontede renda.

    Uma vez, caiu-lhe nas mos um impresso, ou talvez se possa dizer um boleto, emitido pelo pcc (oPrimeiro Comando da Capital, a central dos traficantes paulistas) e dirigido a uma famlia de SoVicente, no litoral paulista. O documento estipulava certa quantia que devia ser paga para que o filhocontinuasse autorizado a traficar.

    O dependente qumico s raramente adicto a uma nica droga. Um coquetel, no qual os especialistasnunca esquecem de incluir o cigarro e o lcool, faz parte de sua trajetria rumo ao depauperamento dasade, dissipao da ateno, ao aniquilamento da vontade e impossibilidade de exercer atividadeprodutiva em que se constitui o estado avanado de dependncia. De uns anos para c, entre ascamadas mais baixas da sociedade, principalmente, mas no s entre elas, o crack passou a reinar.

    Essa droga comeou a ser produzida na dcada de 70, nos Estados Unidos, e explodiu nas ruas dasmaiores cidades americanas, Nova York frente, em meados dos anos 80. No Brasil, So Paulo frente, chegou cerca de uma dcada mais tarde. O crack nada mais do que a cocana em p,adicionada de gua e de bicarbonato de sdio, escreve um dos maiores especialistas em dependnciaqumica do Brasil, o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, num pequeno manual Drogas: Maconha,Cocana e Crack. O livro foi feito em parceria com Flvia Jungerman e John Dunn, todos daUniversidade Federal de So Paulo, possivelmente o mais ativo e respeitado centro brasileiro detratamento e pesquisa da dependncia qumica. Essa mistura aquecida at a gua evaporar, e oproduto final consiste em pedras de cocana, prossegue o texto.

    O crack fumado em cachimbos, que podem ser comuns ou improvisaes com base em tubos decaneta Bic, copinho de Yakult ou latas de cerveja furada. Quando o cachimbo aceso e a pedra,parecida com uma pedra de acar, de uma cor que vai do branco ao marrom, pega fogo, produz umestalo. Da o nome crack, estalo em ingls. Ele tido como capaz de produzir efeito mais imediato eintenso do que a cocana. Nem todos os especialistas concordam com isso. O grande diferencial seria opreo. H pedras de 10 reais, de 5 e lasquinhas de 1 real. Da o seu apelo junto a populaes nosltimos subsolos sociais.

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  • A revista Veja noticiou (na edio de 9 de fevereiropassado) que, da convivncia do traficante cariocaFernandinho Beira-Mar com o paulista Marcola, na Penitenciria de Presidente Bernardes, no interiorpaulista, resultou que Marcola convenceu o outro a incluir o crack em sua cesta de ofertas. At ento, ocarioca relutava, no pressuposto de que a incluso do crack abalaria o mercado de cocana. No,argumentou o paulista, o crack s atingiria os mais miserveis. A conferncia de cpula entre as duassumidades do trfico mostra como eles so bonzinhos, em primeiro lugar, e, em segundo, explica aentrada do crack no mercado do Rio, depois de um perodo em que So Paulo reinou sozinho. Hojeest disseminado Brasil afora.

    A Prefeitura de So Paulo mantm h dois anos um programa de assistncia aos moradores de rua.Ao Integrada Centro Legal o nome do programa, bem de acordo com a tendncia (federal, estaduale municipal) de embalar os programas com nomes de fantasia, de apelo marqueteiro Fome Zero,PAC, Minha Casa Minha Vida. Mas que o Centro Legal no se perca, nem seja julgado, pelo nome.Funciona bem, at onde podem funcionar bem os programas sociais brasileiros, e criou a figura dosagentes urbanos para, semelhana dos agentes de sade, que visitam as pessoas em seusdomiclios, ir ao encontro das pessoas que no tm domiclios.

    O trabalho dos agentes urbanos consiste em abordar o povo da rua outro nome de fantasia, estecunhado pelas ONGs e organizaes religiosas e oferecer-lhes a ajuda possvel. No caso dos adultos,se no estiver em condies de responder abordagem, de to drogado ou alcoolizado, ou se estiverferido, ser encaminhado a algum hospital. Se estiver em condies de responder abordagem, serencaminhado a um abrigo ou, se for o caso, a uma clnica, apenas se concordar com isso.

    Tratando-se de menor de idade, flagrado consumindo ou sob o efeito de droga, ser obrigatoriamentetirado da rua, e pode vir a ser internado numa das treze clnicas de que dispe a prefeitura, entre asquais o Said. o que determina o Ministrio Pblico, com base no Estatuto da Criana e doAdolescente. Essa uma das maneiras de o menor chegar ao Said. Outra a prpria famliaencaminh-lo a um hospital, ou pronto-socorro, de onde ser transferido para uma clnicaespecializada. E outra ainda o prprio menor procurar ajuda teraputica.

    Em minha segunda visita ao Said, logo ao chegar cruzei com duas profissionais, a enfermeira Graziela,coordenadora da unidade de adolescentes femininas, e a assistente social Sheila. Elas saam para umaaudincia na Justia em que tratariam do caso de Janana. Para onde encaminhar a menina, terminadoo prazo de internao? esta era a questo. A me tinha sido notificada para discutir o assunto com ojuiz da Vara da Infncia e da Juventude do Frum de Santo Amaro.

    Nesse dia, Reinaldo de Carvalho, que conhece Janana desde os tempos em que trabalhava na SantaCasa, me levou at a menina. Meu prncipe!, foi a saudao com que ela o recebeu. Janana o trataassim desde o dia em que, internada na Santa Casa, naquela ocasio quando queimou o dedo, faziatanta baguna que o enfermeiro ameaou: Se voc no parar, vai para o pronto-socorro. A agitao,segundo ele, devia-se crise de abstinncia. Janana vestia uma fantasia de princesa, tinha nas mosum chapu de prncipe, e disse que pararia se ele concordasse em colocar o chapu na cabea. Oenfermeiro ps, e virou para sempre o prncipe.

    No dia de minha visita, cumprido o ritual de saudar seu prncipe, Janana perguntou-lhe se ele j sabiado resultado da audincia. A poltica do Said manter os pacientes informados de tudo que lhes dizrespeito. No, respondeu Reinaldo. Graziela e Sheila tinham acabado de sair. Janana estava muitocuriosa em saber se sua me compareceria audincia, mas se mostrava pessimista. Minha me meabandonou, disse.

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  • Janana (o nome verdadeiro outro) filha de me alcolatra. Tem oito irmos, um deles deficientemental. Logo depois de nascer, foi retirada da me, que batia nos filhos. Abrigaram-na num orfanato.Aos 5 anos, voltou para a me, que havia virado evanglica e parara de beber. Aos 9 anos, acompanhoua me numa sortida at a Cracolndia. O objetivo era resgatar um irmo de Janana, cinco anos maisvelho, que se viciara em crack. Em vez de trazer o filho de volta, a me acabou perdendo tambm afilha. Janana gostou do que viu e, principalmente, do que experimentou.

    A menina passou a viver na rua e a se prostituir para comprar o crack. Conquistou alguns protetores. Odono de uma padaria deixava que ela dormisse na soleira da porta de seu estabelecimento, e at lhedava po, de manh. Entre um programa e outro, uma pedrinha e outra, no foi apenas daquela vezque queimou o dedo que foi parar na Santa Casa. Vrias outras vezes machucou-se, ou exagerou nadose, e acabou no hospital.

    Ela diz, com orgulho, que nunca roubou. Os programas que lhe proporcionavam o dinheiro paracomprar a droga. Cobrava dos clientes 10 ou 20 reais. No gostava do sexo. E do que gosta? Jananadiz que, mais que tudo, gostaria de ter duas coisas: uma bota de caubi e uma bicicleta. Uma bota decaubi j teve, mas ficou pequena. Hoje calo quarenta, diz, olhando os ps. So mesmo grandes. sbicicletas, ela se afeioou quando roubava as dos vizinhos para dar umas pedaladas. U, mas no disseque nunca roubou? Ah, mas eu devolvia.

    Gosta tambm de natao, que praticava enquanto esteve no orfanato. Gostaria muito de voltar anadar. E para onde gostaria de ir, quando deixar o Said? Ela sabe para onde no quer ir: para umabrigo. Nos abrigos permitido sair, e ao sair ela ter vontade de usar. Usar, sem precisar o qu, caracterstico da linguagem dos dependentes de crack. Preferem evitar a palavra.

    Ao nos despedirmos, Janana mostra que ainda est com a audincia na cabea. Quando elas voltaremvoc me conta?, pede a Reinaldo de Carvalho. Volta a comentar que a me a abandonou. Ele me dirdepois que a me no quer receber a filha de volta.

    Nesse mesmo dia, conheci outro personagem de quem j ouvira falar o menino que Camille e Julianahaviam levado ao cinema para ver Enrolados. Tem 14 anos, mas aparenta menos, branco, trazia oscabelos negros raspados dos lados e distribudos num bem desenhado crculo no cocoruto. A me,faxineira do metr, mora no Jardim Damasceno, na Zona Norte de So Paulo. Tem trs irmos, umdeles mais velho, e comeou a usar crack aos 7 anos, segundo vai me dizendo numa conversa queprogride aos arrancos, ele sempre respondendo com monosslabos. O irmo mais velho tambm usa, eos dois j passaram pela Fundao Casa, por furtos e assaltos. O pai vive no Recife.

    Diz que, entre as atividades no Said, suas preferidas so bater tambor e jogar bola. Pergunto paraonde vai ao terminar a internao e ele responde que voltar a morar com a me. Minutos depois, dizque vai viver com o pai, no Recife. Despeo-me, quando parecem esgotadas as possibilidades dearrancar-lhe alguma coisa a mais, e ele ento se aproxima e me d um abrao apertado. Que isso?Nesse momento, at parece uma criana das nossas! Doce, carinhosa e amorvel como aquelas donosso lado da lua. Minha sensao deve ser a mesma que experimentou Camille, no Museu do Futebol,ao se dar conta de que seus dois pequenos pacientes agiam como o comum dos adolescentes.

    Quando ele vai saindo, ocorre-me perguntar algo que me escapara. H quanto tempo est aqui?Setenta e dois dias, responde, com inesperada presteza. Reinaldo de Carvalho comenta que comumeles contarem os dias de internao. Acrescenta que a possibilidade de vir a morar com o pai, aventadapelo menino, inexistente, e que a me sofre a presso dos vizinhos (com quem convive em casas

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  • amontoadas, como ocorre nas comunidades pobres) para no receber de volta um menino que japrontou tanto. A amorvel criatura outro candidato a eternizar-se na condio de criana largada.

    A primeira surpresa que o doutor Pedro Daniel Katz reserva ao interlocutor, ao falar de sua histriapessoal, contar que, perto de terminar o curso colegial, hesitou entre a medicina e o rabinato. Asegunda surpresa que quem o ajudou na deciso foi o padre canadense Paul-Eugne Charbonneau,vice-diretor do Colgio Santa Cruz, onde estudava. Elementar, diria o esprito de porco: a um padreno interessaria a concorrncia de mais um rabino na praa. Isso para quem no conheceu, ou nuncaouviu falar, do falecido Charbonneau, famoso por uma mente aberta que chegava a chocar, nopanorama conservador da Igreja Catlica dos tempos em que aportou no Brasil. Pedro Katz foi para amedicina sem deixar o cultivo dos ritos e tradies judaicas.

    Uma terceira surpresa, para quem o conhece do ambiente dos hospitais, clnicas e consultrios, quetoca piano e canta num conjunto de msica hebraica. Na medicina, especializou-se em psiquiatria e,dentro dela, devota particular interesse pelo tema do preconceito que cerca os pacientes de transtornospsiquitricos. Num dos locais em que trabalhou, o Hospital Pinel, em Pirituba, quando a telefonistaatendia e dizia Pinel, bom-dia, ocorria de a pessoa do outro lado cair na gargalhada. A v e incultaplebe tomava o santo nome do doutor Philippe Pinel, fundador da psiquiatria moderna, pela grosseiraacepo que entre ns se atribui a seu sobrenome. A mesma confuso transparecia na correspondnciaque, em vez de ao Hospital Pinel, vinha destinada ao Hospital do Pinel.

    Desde 2001, Katz trabalha na psiquiatria do Hospital Samaritano. Hoje, aos 54 anos, diretor tcnicodos projetos Said e Jovem Samaritano. Ele me recebe nesse hospital sediado no mesmo recanto dobairro de Higienpolis, j quase confinando com o do Pacaembu, em que se implantou, em 1894, poriniciativa de grupos de imigrantes protestantes. Nove meses atrs, Katz talvez fosse descrito como umhomem gordo. De l para c, como informa com orgulho, perdeu 16 quilos. A descrio merece sercorrigida para um homem slido.

    Diz que o que o atraiu para os projetos sob sua direo foi seu carter inclusivo, baseado no reforopositivo, em que no se fala nas perdas, mas nos ganhos do paciente. So prescries que afastamqualquer investida moralista contra os usurios de drogas, e esto na base dos protocolosdesenvolvidos pelo casal de psiclogos Susan e Mark Godley, desde a dcada de 70, na Chestnut HealthSystems, a instituio americana cujo mtodo foi importado pelo Samaritano.

    O enfoque no comportamento e na capacidade cognitiva do paciente, e a chave que permitir o inciodo tratamento conseguir um canal de comunicao com ele, especialmente quando se trata de menorde idade. Adolescentes no se abrem por si ss, diz Katz. Eles conversam pelo olhar. Decifrar o quedizem o primeiro desafio. Uma regra de ouro jamais confront-los. Alm dos psiquiatras, dospsiclogos e dos enfermeiros, os dois projetos ainda contam com os servios de clnicos gerais,ginecologistas, dentistas, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, nutricionistas,professores de educao fsica, de primeiras letras e primeiros nmeros, conselheiros (encarregados daponte com as famlias) e monitores.

    J se percebe, se no se percebeu at agora, que empreendimentos como o Said e o Jovem Samaritanoso caros. A prefeitura repassa 1 milho de reais por ms ao Samaritano para a manuteno do Said.No outro projeto, o prprio Samaritano investe 3,5 milhes de reais por ano, gozando em troca daiseno fiscal que a legislao garante a hospitais que mantm projetos de responsabilidade social, deensino e de pesquisa. crtica pelo alto custo sempre se pode responder invertendo a questo: Equanto custa sociedade no contar com semelhantes iniciativas?

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  • A abordagem multidisciplinar caracterstica do mtodo. A multidisciplinaridade fundamental, dizKatz. muito complicado trabalhar sozinho. Ele acredita mais ainda nas virtudes de obedecer a ummtodo. Muitos profissionais chegam com ideias prprias, mas com o tempo percebem que maiseficaz abraar o modelo do que se deixar levar por iniciativas ou experincias pessoais.

    Num recente congresso em Buenos Aires, Katz deparou-se com painis pendurados nas paredes querelatavam casos. No falavam em mtodos, nem descreviam protocolos. A seu ver, os servios desade mental no Brasil so frouxos em metodologia; as decises individuais superam os protocolos.No que todos devam seguir o mesmo mtodo. O National Institute on Drug Abuse, Nida, rgo dogoverno americano que apoia a pesquisa e fomenta a disseminao dos avanos cientficos napreveno e tratamento da dependncia qumica, reconhece a validade de diversos mtodos detratamento. O que no se pode trabalhar sem mtodo, diz Katz.

    Ao dar entrada, e apurados seu histrico de vida e situao familiar, o paciente ser submetido aexames mdicos que investigaro possveis comorbidades, como se diz na linguagem tcnica doenas como Aids e tuberculose so frequentes. Mais difcil identificar se o dependente qumicosofre de alguma doena mental. Os sintomas continuaro mascarados pela droga, mesmo por um bomtempo depois que deixou de ser usada. Internado, ele no pode fumar nem ingerir bebida alcolica.

    Cada um ter um manejador mdico, psiclogo, assistente social, enfermeiro ou outro do elenco deprofissionais, encarregado de olh-lo de perto e atender suas necessidades. uma forma deaprofundar o tratamento individualizado que se pretende ministrar. Terminado o perodo deinternamento, aos pacientes disponibilizado um tratamento ambulatorial por at dois anos. Hvrios instrumentos a serem utilizados no atendimento, mas o mesmo no funciona para todos, dizKatz. E insiste numa mxima que recita com a nfase necessria para lhe dar fora de lei: Nada bvio no dependente qumico.

    Entre uma visita e outra ao Said, fui conhecer o Projeto Jovem Samaritano. Est instalado margemda rodovia Raposo Tavares, ocupando as mesmas instalaes de uma clnica com fins semelhantes,outrora administrada pelos padres camilianos, ainda donos da propriedade. Escapou de ocupar umantigo motel, mas por pouco: quem conhece a Raposo Tavares sabe que motis no faltam, s suasmargens. Motis de mais e clnicas de menos, como o leitor j sabe, os males do Brasil so.

    O ambiente no Jovem Samaritano de chcara de lazer. Quadras e espaos com ar campestrecircundam as construes trreas em que se sucedem os quartos e salas de atividades. Os muros sobaixos. Quem quiser pode fugir, diz Reinaldo de Carvalho, que divide sua semana de trabalho entreum e outro dos projetos mantidos pelo Samaritano. O muro baixo enfatiza o carter voluntrio dainternao. No comeo, explica Reinaldo, houve fugas. Ultimamente, no. Enquanto ainda nosencontramos nos espaos ao ar livre, um jovem se aproxima do pequeno poste em que est penduradoum sino e o aciona. Est chamando o grupo para uma nova atividade. A cada semana um internoassume alguma das funes necessrias ao bom funcionamento da clnica. A este, atualmente, cabe ade sineiro.

    A atividade para a qual ele chama a discusso do tema da semana. Comunicao, autopercepo,memria: eis alguns exemplos de temas da semana, informa Reinaldo. Quando passamos para ointerior da edificao, os meninos j comearam a reunio, a portas fechadas. Um deles sai da sala, nomomento mesmo em que percorremos o corredor que lhe d acesso. Estou tonto, justifica, e dirige-sea seu quarto. Se fosse aula de educao fsica, ele no ficaria tonto, comenta Reinaldo.

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  • O Jovem Samaritano, no final de fevereiro, tinha s treze de suas vinte vagas preenchidas. Vivia umaentressafra. Alguns pacientes receberam alta em dias recentes; outros, candidatos internao, estosendo avaliados. Nesse instante, em outra sala, se est fazendo uma avaliao. uma atividade queocorre em mo dupla: tanto o candidato avaliado quanto ele avalia se quer ficar ou no. Ficareisabendo, at o fim de minha visita, que desta vez o avaliado no quis ficar.

    No Jovem Samaritano, diferena do Said, os meninos so divididos em grupos chamados de alfa,beta e gama, para a prtica de algumas das atividades. O recurso s letras gregas para no lhesficar claro que h uma hierarquia entre os grupos, como ficaria, se fossem a, b e c, ou 1, 2 e 3. O alfarene aqueles que um leigo chamaria de mais inteligentes, ou mais bem preparados, ou mais aptos aabsorver o tratamento, mas que os profissionais definem como de maior capacidade cognitiva.

    O primeiro menino que vou entrevistar pertence ao grupo alfa. Tem 16 anos, fartos cabelos negros, branco, sorri com facilidade, olha nos olhos, vivo, atento e bem articulado. Hummm! Desculpe oleitor, ningum aqui quer se fazer de preconceituoso, mas, de novo, vem aquela impresso de que ele um dos nossos no dos deles. No entanto, este menino vem de um ambiente barra-pesada. donotrio Jardim ngela, bairro paulistano que a ONU j considerou a regio urbana mais violenta domundo. O pai mexe com remdios e a me dona de casa. Tem um irmo e quatro meios-irmos.Nos ltimos anos, o Jardim ngela recebeu melhoramentos, teve o policiamento reforado e seusndices de criminalidade caram. Mesmo assim, o jovem, quando lhe pergunto se era fcil obter adroga, vai contando de cabea e chega a sete pontos de venda apenas nos quarteires mais prximos desua casa.

    Ele diz que seu envolvimento com drogas teve origem no vazio que sentia, combinado com o desejode ser popular e atrair meninas. Iniciou-se no tabaco aos 11 anos, na cocana aos 13, chegou ao crackaos 15. Entrou e saiu repetidas vezes de instituies de recuperao. Comeou a se afundar. Em vez deconquistar as meninas, viu-as se afastar. Perdeu cinco namoradas. Chegou a um ponto em que pediusocorro ao pai, o qual o trouxe presente internao. Est aqui h um ms e dezesseis dias (tambmtem o nmero na ponta da lngua), e considera-se bem encaminhado.

    Meu problema era achar minhas dificuldades, disse. Acredita que achou, ou que est achando. Gostade matemtica. Anuncia que quer ser engenheiro civil. Exibe um ar seguro e confiante. Aoterminarmos a entrevista, peo a Reinaldo que me apresente um interno de outro grupo que no o alfa.Ele chama ento um beta um jovem tambm de 16 anos, pele morena, cabelo cortado rente, gestosnervosos, cara de mau. No sorri. pa! Este dos deles. Comea a conversa dizendo que tem muitaraiva e pouca pacincia. Qualquer olhar que lhe lancem, interpreta como desafio. da periferia nortede So Paulo, mora ali, na rua Y, junto avenida X, perto do supermercado Z, conhece? Fao que sim,mas claro que no. um recanto do lado deles da lua, no do nosso. Vive com o pai, eletricista, que otrouxe aqui. Est cansado do mundo das drogas e do crime. Quer mudar de vida.

    Ele conta que comeou com as drogas aos 13 anos. Cocana, maconha, lana-perfume. No menciona ocrack. (No experimentou ou tem vergonha de dizer?) Envolveu-se com o trfico e com assaltos.Gerenciava uma biqueira por delegao do tio, que, preso por trfico e por sequestro, ordenou famlia, num telefonema: Diz para o Fulaninho traficar. O Fulaninho, quer dizer, o menino que tenho minha frente, assumiu altas responsabilidades no negcio. Cuidava do barraco de refino da droga, dobarraco da estocagem e do barraco do comrcio. O tio da famlia da me. Toda a famlia da me bandida, informa ele.

    A esta altura, vira-se, levanta a camisa e mostra uma tatuagem nas costas. um sol?, pergunto. O sol

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  • s para desbaratinar, explica, e me pede para olhar com mais ateno. O sol esconde outra bola, nocentro, dividida em duas metades por uma linha curva. Uma das metades clara e tem no meio umabolinha escura; a outra escura e tem uma bolinha clara. A primeira representa o bem, a segunda omal, explica. o smbolo do Comando Vermelho, diz. Mas Comando Vermelho no tem s no Rio?,pergunto. No, tem no Brasil tambm, responde, no sei se por um lapso ou porque sua geografiaassim dispe.

    Trs vezes esteve internado na Febem/Fundao Casa. Apanhou muito l, e da polcia j levou tiro.Uma vez assaltou um bingo. Conseguiu no gastar todo o dinheiro e prodgio de previdncia athoje tem parte dele na poupana. escola ia armado, ameaou professores. Na Febem, agrediucompanheiros. Cansou do sofrimento que causava a si mesmo e ao pai e veio para c, superando omedo de que clnicas como esta cultivassem o mau hbito de misturar veneno na comida, como lhediziam. Pediu ao tio para dispens-lo das hostes do trfico. O tio, que se diz convertido a Jesus e quervirar pastor evanglico, dispensou-o. No fosse assim, estaria marcado para morrer. Quando sairdaqui, quer retomar os cursos que outrora andou frequentando, no Senac.

    Quando o jovem j deixava a sala, Reinaldo chama-lhe a ateno: No est esquecendo de algumacoisa? Ele estava de chinelos. Ah, sim. Precisaria calar os tnis, porque era hora de educao fsica.Me entendo muito bem com esse menino, comenta Reinaldo, quando ele se afasta. Em seguida meaconselha a no levar ao p da letra tudo o que disse: Eles costumam criar histrias para intimidaruns aos outros. No caso, talvez tambm para me impressionar, acrescento. O eletricista pai do menino um doce, segundo Reinaldo. Costuma visitar o filho e acompanha com ateno seu tratamento.

    A clnica aberta para a visita dos pais s quartas-feiras, das 17h30 s 19h30, quando eles soconvidados a jantar com os filhos. Nem todos aceitam o convite. Se seu filho tivesse operado deapendicite, voc no iria visit-lo?, costuma argumentar Reinaldo com os recalcitrantes. Eles estoem tratamento, da mesma forma. Muitos pais, como vimos, na verdade gostariam de nunca mais veros filhos.

    A assistente social Deise Fernandes do Nascimento teve um sonho que a intrigou, em abril do anopassado. Ela se via num ambiente estranho, um edifcio em que prevalecia o concreto, com muitosvazios, e crianas a cercavam. As crianas faziam uma roda sua volta, como se lhe pedissem algo.Que crianas seriam essas?, perguntou-se, ao acordar. O sonho perturbou-a por vrios dias. Nopodiam ser meus trs filhos, duas meninas e um menino, no, era outro tipo de crianas, enumerosas. Em agosto, soube por uma amiga que uma nova instituio, chamada Said, procurava umprofissional que enfatizou a amiga se encaixava muito bem em seu perfil. No se entusiasmou numprimeiro momento. A amiga insistiu. Ela continuou relutante. Enfim se apresentou, gostou do projeto,o projeto gostou dela, e foi contratada. Hoje, aos 35 anos, coordenadora da ala dos meninos do Said,e desconfia de que o sonho tem algo a ver com as tarefas que lhe cabem.Deise fa-la com desembarao edefende com entusiasmo seu trabalho. Eu amo o que fao, diz. s atividades prticas acrescenta asacadmicas. Empenha-se num mestrado na Unifesp, em torno do tema Educao e Sade na Infncia ena Adolescncia.

    Ela conta que no momento (estamos na primeira semana de maro), o grupo sob sua responsabilidadeinclui uma criana, quer dizer, um menor abaixo dos 12 anos. Esse menino tem 11, e da regio deSapopemba, na Zona Leste de So Paulo. Quando chegou, mostrava-se agressivo, gritava, jogava-se nocho. Seu curto passado j era rico de passagens por abrigos, por Caps (Centros de AtenoPsicossocial, entidades pblicas para atendimento de portadores de transtornos mentais), por Creas(Centros de Referncia Especializados de Assistncia Social, entidades pblicas criadas para fornecer

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  • proteo a pessoas sob risco social), pelo Projeto Quixote (entidade ligada Unifesp). Tem cincoirmos, os dois mais velhos na rua e os dois mais novos num abrigo.

    Quando a me, de 35 anos, ela prpria com uma histria pessoal de abusos na bagagem, foi visit-lo,ele chorou e questionou-a pelo fato de os irmos pequenos estarem no abrigo. Deise providenciou umavisita do menino aos irmos menores. Foi bom para ele, h afeto entre os irmos. O menino temmelhorado. Hoje uma criana de 11 anos. Seria uma histria de sucesso? Ela hesita, diante deminha indagao. Sucesso? Que sucesso?, devolve. Minha pergunta, mea culpa, mea culpa, foi tola.Esse menino tem muita estrada pela frente. Se hoje apresenta tal progresso que pode ser promovido extraordinria categoria de uma criana de 11 anos, as condies gerais continuam pssimas, parapercorr-la.

    Pergunto por outro caso que Deise considere significativo, e ocorre-lhe o de um menino de 13 anos,oriundo de estrato social mais alto do que o normal dos pacientes do Said. Os pais so separados, ame vive com o namorado. Os dois irmos e o namorado da me so dependentes de droga. A mecostumava deixar dinheiro para o menino, assim ele no roubava em casa para comprar a droga. Omenino reagiu bem ao tratamento, teve alta e voltou para casa. O namorado da me, adicto cocana,mas ainda no ao crack, aproveitou sua presena para pedir-lhe: Voc me ensina a fumarcrack? O menino o atendeu. Teve uma recada, saiu de casa, voltou rua.

    Dias depois, entrou em contato com o Said e pediu para voltar. O tema do sucesso volta cabea deDeise. Isso sucesso, comenta. Perceber o que pode prejudic-lo. Ver que possvel mudar. Elaacredita no seu trabalho, acredita na possibilidade de oferecer uma alternativa aos jovens pacientes,mas realista o suficiente para no estender o metro do sucesso para alm do que observvel nahora presente, nas condies presentes.

    Eis uma questo que torna a misso de quem lida com dependentes qumicos semelhante ao de umviajante a quem vedado enxergar onde vai dar a viagem o que lhe acentua o risco da frustao, mastambm a nobreza. O mdico que tira o apndice do paciente sabe que, pronto!, ele est curado.Mesmo o que trata de um cncer sabe, em boa parte das vezes, para o bem ou para o mal, no que vaidar o tratamento. Quem trata de dependentes de drogas trabalha com um horizonte mais conturbado.Mesmo porque a melhor cincia recomenda considerar que, para tais pacientes, incluindo entre eles osalcolatras, no h cura. O que h a resistncia recada, mesmo que ela dure a vida inteira.

    Dados tais descontos, um critrio mnimo utilizado para apurar os ndices de recuperao emanuteno o doutor Pedro Katz no recomenda o uso da expresso taxa de sucesso acompanhar se, num perodo de dois anos, no houve reincidncia, e se o paciente conseguiu areinsero na escola, no trabalho e no ambiente social. Quando o Projeto Jovem Samaritano fez doisanos, uma enquete entre os atendidos at ento chegou a uma taxa de 45% de resultados positivos. Oprojeto Said ainda no tem os dois anos para ser submetido a semelhante balano.

    At o final de maro, o Jovem Samaritano somava 235 atendimentos em sua existncia. O Said, queoferece mais vagas, somava 430, a includos os adultos. A Chestnut Health Systems, instituio emque se inspiram e se espelham os projetos do Samaritano, j contabiliza 60 mil atendimentos em suahistria de mais de trs dcadas, e apregoa uma taxa de recuperao dos pacientes de 65%. No Brasil, arecuperao se complica quando a populao atendida pertence aos mais baixos estratos da sociedade.Os americanos da Chestnut estiveram em So Paulo em fevereiro, para visitar as instituiesadministradas pelo Samaritano. Segundo o psiquiatra Elie Leal de Barros Calfat, coordenador dosmdicos do Said, eles ficaram impressionados com as condies sociais dos atendidos, muito mais

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  • ingratas do que as que observam em sua terra. O mesmo psiquiatra Elie Calfat define com uma fraselapidar a sorte dos pacientes que lhe chegam s mos: A droga, na vida dessas pessoas, apenas umadereo.

    PS: A me de Janana no compareceu audincia. Discutiram-se ali duas possibilidades: encaminhara menina a um abrigo ou ao Programa Equilbrio, mantido pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdadede Medicina da USP para atendimento das crianas de rua.

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