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PHOTOGRAFIA: DISCREPÂNCIA NAS MENSAGENS E FICÇÃO NA CONSTRUÇÃO Sionelly Leite 1 Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) Resumo: O objetivo deste artigo é discutir uma fotografia feita por Sebastião Salgado, em 1996, durante invasão de uma fazenda no interior do Paraná, sob a interpretação que o sociólogo José de Souza Martins defende: a de que essa fotografia não é um flagrante documental, mas sim o registro de uma cena encenada. Discutem-se os efeitos sentidos com a quebra do clímax e do aspecto “casual”, características típicas do registro documental, além dos valores da imagem a partir das representações ficcional e documental, no debate de conceitos como o “momento decisivo” e o “isto foi”, trazidos por Henri Cartier-Bresson e Roland Barthes, respectivamente; além da contribuição de François Soulages nos estudos da estética da encenação. Palavras-chaves: teorias da imagem; experiência estética; Sebastião Salgado. Introdução Em artigo analítico, o sociólogo José de Souza Martins 2 (2008) discute as bases para a construção da imagem documental, e traz como objeto empírico de análise uma das fotografias feitas por Sebastião Salgado em 1996. Tomada durante invasão da Fazenda Giacometti, no Paraná, ela contém a seguinte legenda: “A luta pela terra: a marcha de uma coluna humana.” 3 Ao fazer uma avaliação técnica, sociológica e interpretativa da imagem, o sociólogo reconstrói a cena, afirma que a mensagem do conjunto lhe causa impacto e confronta (MARTINS, 2008, p.133): “(...) o sociólogo que sou me diz logo que essa foto é também um conjunto de discrepâncias entre o que se vê e o que não se vê à primeira vista.” O que o autor afirma é que, conforme são interpretados os elementos contidos na fotografia, apontam-se aspectos que indiciam uma construção ficcional, em que a disposição dos signos pode ter sido pré-planejada para causar um determinado efeito e conter uma devida mensagem. Alerta-se, assim, para a possibilidade de uma teatralização da cena, e sob esse aspecto, para Martins, o acaso e o flagrante são eliminados da fotografia, como também o caráter de “repórter” da pessoa que fotografa. Com a perda do aspecto “casual”, os personagens não mais lutam, e sim fazem pose para Salgado, o qual age à espera do 1 Graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal); pós-graduada em Fotografia: Práxis e Discursos Fotográficos pela Universidade Estadual de Londrina (Uel) e mestranda em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). 2 MARTINS, José de Souza. Sebastião Salgado: A epifania dos pobres da terra. In: Mammi, Lorenzo e Schwarcz, Lilia. (Org.). 8 vezes fotografia, 2008. 3 SALGADO, Sebastião. Terra, 1997. III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 2676

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PHOTOGRAFIA: DISCREPÂNCIA NAS MENSAGENS E FICÇÃO NA

CONSTRUÇÃO Sionelly Leite1

Universidade Tuiuti do Paraná (UTP)

Resumo: O objetivo deste artigo é discutir uma fotografia feita por Sebastião Salgado, em 1996, durante invasão de uma fazenda no interior do Paraná, sob a interpretação que o sociólogo José de Souza Martins defende: a de que essa fotografia não é um flagrante documental, mas sim o registro de uma cena encenada. Discutem-se os efeitos sentidos com a quebra do clímax e do aspecto “casual”, características típicas do registro documental, além dos valores da imagem a partir das representações ficcional e documental, no debate de conceitos como o “momento decisivo” e o “isto foi”, trazidos por Henri Cartier-Bresson e Roland Barthes, respectivamente; além da contribuição de François Soulages nos estudos da estética da encenação. Palavras-chaves: teorias da imagem; experiência estética; Sebastião Salgado.

Introdução

Em artigo analítico, o sociólogo José de Souza Martins2 (2008) discute as bases

para a construção da imagem documental, e traz como objeto empírico de análise uma

das fotografias feitas por Sebastião Salgado em 1996. Tomada durante invasão da

Fazenda Giacometti, no Paraná, ela contém a seguinte legenda: “A luta pela terra: a

marcha de uma coluna humana.”3 Ao fazer uma avaliação técnica, sociológica e

interpretativa da imagem, o sociólogo reconstrói a cena, afirma que a mensagem do

conjunto lhe causa impacto e confronta (MARTINS, 2008, p.133): “(...) o sociólogo que

sou me diz logo que essa foto é também um conjunto de discrepâncias entre o que se vê

e o que não se vê à primeira vista.” O que o autor afirma é que, conforme são

interpretados os elementos contidos na fotografia, apontam-se aspectos que indiciam

uma construção ficcional, em que a disposição dos signos pode ter sido pré-planejada

para causar um determinado efeito e conter uma devida mensagem.

Alerta-se, assim, para a possibilidade de uma teatralização da cena, e sob esse

aspecto, para Martins, o acaso e o flagrante são eliminados da fotografia, como também

o caráter de “repórter” da pessoa que fotografa. Com a perda do aspecto “casual”, os

personagens não mais lutam, e sim fazem pose para Salgado, o qual age à espera do 1Graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal); pós-graduada em Fotografia: Práxis e Discursos Fotográficos pela Universidade Estadual de Londrina (Uel) e mestranda em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). 2 MARTINS, José de Souza. Sebastião Salgado: A epifania dos pobres da terra. In: Mammi, Lorenzo e Schwarcz, Lilia. (Org.). 8 vezes fotografia, 2008. 3 SALGADO, Sebastião. Terra, 1997.

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acontecimento em cena, assim como os fotógrafos contratados para registrar um

casamento. Para validar a discussão, vale ressaltar que se considera, aqui, o caráter

documental segundo descrição de Pepe Baeza4 (2001), para o qual:

La fotografia documental se pasa em su compromiso com la realidad y los stilos que adopte o los canales de difusión que utilice son factores secundários de clasificación respecto a este parâmetro principal. Se usa corrientemente el término documentalismo para designar aquellos trabajos que, exhibidos em galerias o em forma de libro, tratan temas estructurales y se realizan con amplios márgenes de tiempo y reflexión. (BAEZA, 2001, p.41)

Salgado trata de temas de ordem social e exibe seus trabalhos em galerias de arte

e livros luxuosos, mas é outro o aspecto que incomoda Martins: a lacuna aberta ao se

perceber, na imagem em análise, o oposto de um flagrante documental: a ficção. Para a

discussão, Martins debate alguns pontos importantes, dentre os quais destaco o

momento decisivo, designado por Henri Cartier-Bresson5 (1952), e o isto foi, de que fala

Roland Barthes6 (1980), ambos referentes à ligação do objeto com sua imagem.

1, 2, 3 e... Sebastião Salgado entra em cena

Figura 1

A luta pela terra: a marcha de uma coluna humana Autor: SALGADO, Sebastião

Fonte: Terra Ano: 1996

4 BAEZA, Pepe. Por uma función crítica de la fotografia de prensa, 2001. 5 CARTIER-BRESSON, Henri. El instante decisivo, 2003. 6 BARTHES, Roland. A câmara clara, 2009.

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Conhecido como um dos mais importantes fotodocumentaristas

contemporâneos, o brasileiro Sebastião Salgado traz em grande parte de seus registros

fotográficos temas referentes à denúncia social e à igualdade dos direitos. Retratar as

“minorias” lhe rende críticas diversas, entre aqueles que advertem que seu trabalho

estaria ligado à exploração dos desfavorecidos e os que acreditam na coragem de seu

apoio a causas “nobres”. Repercussões de “causa” à parte, suas imagens chamam

atenção por seu refinamento estético, pelos cuidados com o enquadramento, tonalidades

de cinza, nitidez e outros aspectos visuais. O fotógrafo alcançou a marca de mais de 10

livros publicados, trazendo fotografias de paisagens e fenômenos de diversos lugares do

mundo, desde países latino-americanos a africanos e asiáticos. Com seu trabalho

reconhecido em grande parte do mundo, é também vencedor de centenas de prêmios

internacionais, dentre os quais recebeu na Holanda, em 1995, o Prêmio World Press

Photo, um dos mais apreciados nos sistemas de arte.

Uma das imagens (Figura 1), publicada no livro Terra, feita em 1996 na Fazenda

Giacometti no interior do Paraná (Brasil), é analisada pelo fotógrafo e sociólogo José de

Souza Martins (2008) sob o prisma da imagem documental, categoria referente às

imagens de Salgado. A escolha da imagem é logo justificada no início de seu texto:

Essa fotografia de Salgado, em especial, contém várias e desencontradas mensagens. Contém o que o autor quis mostrar e o que não sabia estar mostrando, mas pode ser visto mediante análise do conteúdo da foto. Ela é extensamente reveladora à luz do que tenho definido como sociologia do conhecimento visual. Essa é a razão da minha escolha. (MARTINS, 2008, p.137)

Numa profunda avaliação estética, técnica e sociológica, a detalhada

interpretação de Martins sobre a imagem de Salgado revela além do que o fotógrafo

provavelmente pretenderia mostrar, pois o fingimento teria sido necessário para se

fabricar um sentido na imagem. Para Martins (1999, p. 140) “(...) nessa fotografia de

Salgado, o momento decisivo é fingido. É mais teatral que pictórico.” Desta forma teria

sido necessária a intervenção direta do fotógrafo na construção e disposição dos

elementos no quadro, já que, continua o sociólogo, (MARTINS, 1999, p.140) “o

fotógrafo não é aí apenas o fotógrafo, mas é o cúmplice que conhece o enredo e sabe

qual será o desfecho.”, considera.

Para se chegar a essa síntese, o autor inicia o texto descrevendo os elementos da

imagem. A linha formada pela multidão conduz o olhar a um passeio por boa parte da

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fotografia: uma romaria estaria representando simbolicamente a busca da “Terra

Prometida”, a narrativa bíblica referente a Moisés e seus seguidores. As bandeiras

trazem símbolos do movimento social sem-terra e mostram quem são os participantes

do ato; já a travessia da porteira é identificada como uma ruptura com o sistema, e a

invasão como uma reivindicação pelo direito estendido a todos.Vê-se um homem que

levanta uma foice de roçar à frente de todos os outros: eis o líder apontado o rumo da

caminhada, indicando, nas palavras de Martins (1999, p. 133) “que ali a roçada é outra.”

Além desse indicativo, a foice se encontra virada com a ponta para baixo, no que se

entende a ferramenta como um simples utensílio de uso no campo; cruzando com um

martelo, símbolo referente ao proletariado, a foice voltada com a ponta para cima

representa o simbolismo visual dos partidos políticos comunistas.

Em seguida, numa análise técnica, o autor descreve o ângulo da tomada: o

fotógrafo fez a imagem de dentro da fazenda para ter uma dimensão de profundidade, a

fim de assegurar ao fundo a vista da multidão insurgente e a invasão a partir da porteira

“rompida”. E é a partir dessa observação que Martins atenta para a entrada do fotógrafo

na cena: ao estar do lado de dentro da fazenda, Salgado teria sido o primeiro

personagem a entrar no lugar, e sua antecipação teria rompido o clímax e a proposta

aparente da imagem pela ocupação “forçada” dos sem-terra na fazenda.

Nessa dedução, Martins se apoia na abordagem da interferência do fotógrafo na

cena e na construção simbólica. Há outros fatores que denunciam a defesa de tal

dedução, como a vista de homens mais ao fundo de braços cruzados, sem expressão de

reivindicação ou luta; ou ainda a presença da multidão em um lugar afastado do centro

urbano, que é normalmente o palco para os protestos, já que acontecem para serem

vistos e midiatizados. E mais: a presença de apenas um fotógrafo, um [sortudo]

fotógrafo [transeunte] que flagrou a cena. Com base nessas e outras observações, a

fazenda no interior do Paraná se torna palco para o teatro esboçado por Salgado, e o

calor do espetáculo é congelado quando Salgado o registra.

Com isso, Martins passa a discutir a questão documental da imagem e surge a

questão: afinal, quais os efeitos de sentido causados pela construção simbólica

antecipada do ato fotográfico de Salgado? A partir da análise de conceitos como o

momento decisivo descrito por Cartier-Bresson, e o isto foi de fala Roland Barthes, na

avaliação iniciada por José de Souza Martins, trago à discussão o caráter representativo

da fotografia e sua crença quanto à dimensão mágica de simulacro e cópia dos

fenômenos do mundo que por tanto tempo imperou [e ainda impera] sobre si. E em

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seguida discuto sobre as representações dos elementos visuais na fotografia e na pintura,

no que se refere ao hibridismo dessas duas representações a partir de seus suportes, a

fim de discutir a ligação do objeto à representação da sua imagem.

O momento decisivo

Nosotros, los fotógrafos, tenemos que enfrentarnos a cosas que están em continuo trance de esfumarse, y cuando ya se han esfumado no hay nada en este mundo que la haga volver. (...) Nuestra tarea es percibir la realidad, casi simuntáneamente registrarla en el cuaderno de apuntes que es nustra cámara. (CARTIER-BRESSON, 1952, p. 225)7

Nada faz o tempo voltar, nos fala Bresson em O instante decisivo (1952). O

autor lembra também que não há nada no mundo que faça restituir o passado. Assim

como o fogo, o tempo consome a madeira e nada faz voltar ao que era antes. É como a

imagem captada na fotografia. Uma vez registrada no filme, os sais de prata são

sensibilizados pela luz e a imagem se fixa, para então tornar-se o registro de uma

lembrança que será dali pra frente rememorada.

Para Bresson, há um instante no tempo em que os elementos se encontram em

perfeita harmonia, um ponto exato inscrito na banalidade do cotidiano, um

enquadramento de elementos banais transformados em uma cena “nova”. Aquilo que o

fotógrafo chama de “momento decisivo” é o momento único do tempo num

determinado espaço, em que é possível registrar com equilíbrio a composição dos

elementos, das formas geométricas que compõem uma linguagem visual. Observado

como uma estratégia de composição do quadro, o decisivo momento de apertar o botão

se enquadra em um momento “mágico” em que os elementos ganham sentido e

equilíbrio quando enquadrados no devido tempo.

Trabajamos en unicidad com el movimiento como algo premonitório de cómo la vida misma se desarrolla y mueve. Pero dentro del movimiento hay um momento en el cual los elementos que se mueven logran un equilíbrio. La fotografia debe capturar este momento y conservar estático su equilíbrio. (CARTIER-BRESSON, 1952, p.229)8

7 CARTIER-BRESSON, Henri. El instante decisivo. In: Estética fotográfica, 1952. 8 Idem nota 6.

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Trazendo a discussão bressoniana para a fotografia de Salgado, Martins (2008,

p.140) afirma que na imagem em questão, o momento decisivo não é “de escolha livre

do fotógrafo.” A fotografia em análise não seria possível sem o fingimento, sem a pré-

visualização do fotógrafo. O momento decisivo é anulado porque não há o calor do

momento, não há um flagrante, não há uma “livre” escolha do fotógrafo para a tomada.

A imagem foi tomada sabendo no que resultaria, foi antes visualizada na imaginação de

Salgado, a fim de que ao ser submetida trouxesse como efeito uma mensagem “pronta”.

Continua Martins (2008, p.140) “É antes a emoção do ato fotografado, uma emoção que

o estético é recoberto pelo político. Não é quem vê que imagina a partir de um código

estético. É quem age que quer propor a quem vê, através da fotografia, o que deve

imaginar.” Salgado não estaria aberto ao acaso, sabendo exatamente o que deveria

fotografar, esperando e fazendo com que o “objeto” a ser registrado se constituísse bem

a sua frente, a sua espera.

A tese do momento decisivo pressupõe não só o fotógrafo aberto para o acaso da imagem, porque aberto a certeza da criação artística e seus cânones. Ela pressupõe também que o expectador da fotografia veja com a mesma liberdade a fotografia resultante. Talvez por isso Salgado seja tão enfático na recusa do reconhecimento da dimensão estética de sua obra fotográfica, em particular de fotografias como essa. (MARTINS, 2008, p.p. 140-141)

E o fotógrafo se torna então o diretor da cena, a fim de construir imageticamente

uma mensagem pré-programada. O momento decisivo não partiria, aqui, de um

momento mágico deslumbrado pelo fotógrafo, mas de um momento antecipado, por isso

Martins (2008, p.134) afirma que o conjunto da imagem lhe causa impacto. Não somos

surpreendidos pelo momento de ruptura. “É mais teatral que pictórico. São o cálculo, a

certeza, e não o casual, que propõem as bases de criação dessa fotografia, acompanhado

ainda de uma certeza imaginativa e uma certeza documental.”, descreve Martins. (2008,

p.140)

Assim, na perspectiva da avaliação de Martins, ao retratar o teatro montado, a

fotografia de Salgado se perde nos discrepantes efeitos e nas díspares mensagens, o que

elimina o flagrante e seu caráter documental. Discutido o “momento decisivo”, é a vez

de refletir o derradeiro tópico, a respeito do “isto foi” de que fala Roland Barthes. A

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partir dessa reflexão, permitir-se-á divagar a respeito da relação do objeto com a sua

imagem na constituição que liga o “referente fotográfico” à imagem gerada pela

sensibilidade dos sais de prata à luz.

O instante decisivo da fotografia, o instante em que a cena é registrada, é

decisivo pois servirá de registro único, o médium entre o instante vivido e o tempo

rememorado. E, para trazer à mente do leitor o impacto desejado, a fotografia deve

alcançar a percepção do leitor com efeitos de sentido que afete, comova ou mostre os

fenômenos, inclusive os que são anulados pelo repetitivo.

Aquilo que foi

A Fotografia não diz (forçosamente) aquilo que já não é, mas apenas e de certeza aquilo que foi. Esta subtileza é decisiva. Diante de uma foto, a consciência não segue necessariamente a via nostálgica da recordação (...), mas, para toda a fotografia existente no mundo, a via da certeza: a essência da fotografia é ratificar aquilo que representa. (BARTHES, 1980, p.95-96)9

Roland Barthes em A Câmara Clara (1980) afirma que a fotografia é o atestado

de que aquilo que se vê na imagem de fato aconteceu: é a esse referente “real”,

existente, que ele chama de “isto foi”. Sendo a essência da fotografia a ratificação da

cena que apresenta, haveria a certeza daquilo que foi presenciado e registrado pelo

fotógrafo. Afirma Barthes (1980, p. 87) que “ao contrário dessas imitações [referentes à

pintura], na Fotografia nunca posso negar que a coisa esteve lá.” A base do “isto foi” se

refere ao noema da fotografia, ou seja, a essa certeza de que aquilo que se atesta na

imagem foi algo registrado por alguém que presenciou o fenômeno e o captou em

registro. “O grande noema da Fotografia será então o ‘Isto foi’ ou, ainda, o

Inacessível.”, estende Barthes. (1980, p.97)

O que Barthes chama de o “referente fotográfico” consiste no objeto real

colocado diante da objetiva, e sem o qual não existiria fotografia. No caso da pintura, o

referente pode ter origem na imaginação do pintor, o que não acontece com a fotografia.

Essa autenticação seria o grande diferencial da fotografia entre os outros meios de

reprodução visual, sendo essa convicção de existência do objeto o seu grande noema.

9 BARTHES, Roland. A Câmara clara: nota sobre a fotografia, 2009.

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Na análise da fotografia de Salgado, considerando a avaliação de Martins,

segundo o qual a cena registrada se deu de forma encenada, o “referente fotográfico” da

imagem não está no apelo do grupo que reivindica e invade a fazenda; mas, sim, no

grupo que posa e espera as ordens do fotógrafo-cúmplice. Ou seja, os personagens da

imagem até estiveram naquele lugar, naquele devido dia segurando bandeiras,

atravessando uma porteira de madeira, adentrando uma propriedade. Mas, não para

reivindicar, exclusivamente, mas também para atender às expectativas do fotógrafo.

Para Martins (2008, p. 150), embora a fotografia de Salgado tenha seu papel

histórico “O impacto visual não corresponde ao impacto político do que foi

fotografado.” No que ela revela além do que provavelmente pretenderia provocar, a

cena evoca a marcha dos participantes, desde o homem no centro que segura a foice de

roça ao último que acompanha a romaria: cada personagem que posa pretende dar

dimensão ao ato, e eis a demonstração que essa imagem evoca à primeira vista.

Com o momento decisivo “fingido” (MARTINS, 2008, p.140) e o isto foi

considerado uma cena encenada na fotografia de Salgado, passo a discutir os efeitos

sentidos com a transmutação dessa imagem. A partir da avaliação das representações

pictórica e documental, com a pintura e a fotografia, inicio o debate a fim de classificar

o hibridismo dessas duas representações.

Pela tinta e pela luz, a imagem

A exemplo da tela Fuzilamentos de Treze de Maio de Francisco de Goya,

algumas representações pictóricas que envolvem eloqüentes expressões da tragédia

humana não deixam de ser elevadas ao estatuto de obra arte. Comportando a densidade

da “visão” particular do acontecimento imaginado pelo pintor, exclui-se quase que

completamente um caráter jornalístico ou referencialmente informacional da imagem.

No caso das enigmáticas imagens elaboradas por Pablo Picasso em 1937 – durante a

Guerra Civil Espanhola (1936-39) – a tela Guernica alcança efeitos de sentido além de

sua representação “artística”. Lançando caracteres peculiares, a tela está permeada de

simbologias políticas, numa soma de subjetivos desenhos esboçados a partir das

imagens construídas na mente do pintor, Mesmo não sendo considerada uma imagem

jornalística, a tela desempenhou durante longo tempo uma missão civilizadora por unir

arte e política.

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Enquanto a pintura imitava, a fotografia apenas registrava e mostrava: abolira a imitação na reprodução literal. (...) Mesmo a exatidão e a verdade são apreciadas em referência a um modelo exterior preexistente, do qual as imagens reproduziriam a aparência. É no cenário dessa metafísica da representação que se situa o debate endêmico sobre a natureza – cópia ou simulacro – das imagens fotográficas (...). (ROUILLE, 2009, p. 73-74)

Na abordagem de Rouillé (2009) ficam expressas as típicas divergências entre

duas formas de representações imagéticas: enquanto a pintura recriaria as cenas do

mundo de acordo com a apreciação dos traços de seu autor, sendo de ordem subjetiva a

expressão do conteúdo, a fotografia teria em seu processo de construção a cópia direta

como referência, uma objetiva cópia dos fenômenos. Essa crença tem abastecido a

fotografia de uma crédula relação com o objeto fotografado, dispersando assim a sua

subjetividade e uma conexão com o artístico, alimentados normalmente na pintura.

Martins lembra uma foto de Robert Capa que surpreende um combatente no

exato momento em que é atingido por uma bala. A grandeza dessa imagem para Martins

se mantém pela conexão que faz da tragédia com a preocupação do fotógrafo no

enquadramento e outros recursos que estendem a imagem além da tragédia

documentada. Para o sociólogo, a imagem em questão não seria um retrato qualquer

feito em qualquer episódio, nem seria somente uma fotografia jornalística, como

também não foi por “sorte” que o fotógrafo conseguiu capturar a cena.

A significação dessa foto não se limita à tragédia que documenta. Não é retrato de alguém num dia qualquer ou de um episódio dentre tantos de um dia de guerra. Não é apenas uma fotografia de reportagem. Nem é apenas “sorte” do fotógrafo. O enquadramento, o ângulo, a composição nos dizem que o fotógrafo que fotografava jornalisticamente também estava fotografando artisticamente, que não se poderia separar arte e documento simplesmente porque estivesse num campo de batalha e em face do trágico. A própria circunstância do ato fotográfico não permitia que essa separação fosse feita. (...) É a arte dessa fotografia que põe nossa consciência diante de nós mesmos. (MARTINS, 1999, p.136)

O que sobressairia nessa imagem para o autor é a preocupação estética ao se

perceber a manifestação da escolha da composição, do enquadramento – o que

mostraria a abertura para algo intrínseco que opera na escolha na hora de apertar o

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botão: a fotografia jornalística também pode estar carregada de arte. O ato fotográfico é

tomado pelas escolhas para a tomada, na ênfase ou exclusão dos elementos conforme a

disposição do fotógrafo. Algumas imagens feitas por Capa nesse episódio reúnem o

refinamento estético e a informação factual, resultando em poderosas imagens que

surpreendem tanto por sua beleza como pelo impacto de sua revelação testemunhal.

A hibridação entre essas duas mesclas de representações imagéticas, fotografia e

pintura, torna as interpretações das imagens menos estreitas. Ambas as produções –

tanto de Picasso quanto as imagens de Capa – partem do mesmo referencial: a tragédia.

Para Martins (2008, p.136), a fotografia de Robert Capa sobre a Guerra Civil

Espanhola não fala menos do que a imaginação de Picasso. Porém, há uma lacuna

aberta nesse hibridismo: a pintura assumindo um caráter documental foge da conexão

do conceito estreito de arte, assim como o fotojornalismo de Capa, aberto à

possibilidade de trazer um gesto pictórico no seu ato, adquire uma forma mais plástica e

menos tênue com a “representação” fotográfica, na extração do reflexo de seu objeto.

Tanto a pintura quanto a fotografia, enquadradas no visual, estão encobertas pela

subjetividade do olhar de quem a faz, mas o suporte é quem comumente dirige parte da

interpretação. “As pessoas acreditam na realidade das fotografias, mas não na realidade

das pinturas. Isso dá uma vantagem para os fotógrafos. O problema é que os fotógrafos

também acreditam na realidade das fotografias.”, afirma Duane Michals. (1982, apud

SOULAGES, 2010, p.80) Por isso, por derradeiro, trago a questão sobre a “realidade”

na fotografia e a forma como atua tal imperialismo sob o prisma de que tal manifestação

visual é embutida de ficções.

A ficção do verdadeiro

A fotografia teria nascido como a possibilidade de registro daquilo que a pintura

ainda não havia conseguido realizar. Essa característica teria iniciado uma confusão

entre a descoberta de possibilidades e a essência da fotografia, segundo Soulages.

(2010, p.109) Assim a membrana que envolve a fotografia foi sendo enxertada de

realismo, o que gerou por conseqüência a rejeição de sua entrada nas formas de

manifestações de arte ou como ficção de algo. Com a confusão entre o que seria

possível e o que seria essência, a novidade da cópia exata e fiel dos fenômenos foi

mantida como estatuto da fotografia, descartando a conexão com a arte ou a ficção.

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Percebeu-se muito rapidamente a possibilidade de um desvio do meio fotográfico: do realismo ao irrealismo, da fotografia como produção à fotografia como criação, ou melhor, da duplicação à ficção. No momento de tirar a foto, de revelá-la, de fazer a cópia, o fotógrafo podia intervir e, portanto, manipular a foto. (SOULAGES, 2010, p.109)

Para Soulages (2010), a questão da realidade na fotografia se situa no mesmo

plano que a pintura, mas ao partirem das diferentes formas em que se apresentam e no

emblema que representa a crença de real ou imaginário, parte do processo de

interpretação é estimulada pelos suportes técnicos. O autor defende que, assim como a

pintura é construída conforme a imaginação de seu autor, na fotografia essa abertura

também está ao alcance através da manipulação de suas unidades sígnicas, das escolhas

técnicas em laboratório ou nos ajustes de segundos antes de apertar o botão.

Assim como o pintor escolhe seus pincéis e melhores materiais a fim de

transformar a imagem mental em algo material, vivo e aceso, a fotografia também

estaria aberta à construção, carregada de subjetividade. Afirma Soulages (2010, p.115,

116): “E isso é verdadeiro por duas razões: primeiro, porque toda foto pode produzir

ficção, e, em seguida, toda recepção de uma foto tende à ficção.” Não sendo mais uma

reprodução, a fotografia estaria ao lado da ficção.

O realismo, que no início foi uma prática e uma doutrina necessárias, tornou-se imperialista, pois se confundiu e se quis confundir condição de possibilidade de um nascimento com condição de possibilidade de um funcionamento – em outras palavras, começo e essência. (SOULAGES, 2010, p.109)

A magia da “verdade” documental da fotografia incide sobre a crença coletiva

de um grupo numa espécie de confiança depositada, ao se interpretar na imagem os

elementos trazidos como uma cópia ou simulacro dos fenômenos. A credibilidade das

fotos vistas em jornais, a exemplo, criou uma espécie de verdade embutida,

confundindo fotografia com a realidade subjetiva dos fenômenos, atenuando-lhe a

crença de reprodução do real.

A fotografia em condições particulares participa como um artefato que equivale

a um substituto de algo, como um signo reconhecido por uma cultura. Nisso a fotografia

ganha duas vertentes: enquanto traz uma sensação mágica de verdadeiro é também um

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espaço para a ficção. É nesse hibridismo que se faz ver seu suporte, o qual assinala a

questão sobre o crédito de crença de real, cópia ou a representação da fotografia. Para

Soulages (2010, p.115) “Não se trata de tentar atingir a realidade pela fotografia, mas de

visá-la na realidade da fotografia.” Ao partir desse pressuposto, considera-se a

fotografia não como uma forma de apresentar o visível, mas sim de tornar visível algum

fenômeno, para que, por sua vez, se possa tentar compreender a condição humana

fenomenal.

Considerações finais

Entre a objetividade e a subjetividade; a decodificação sígnica e a apreciação

estética; as lentes grande angular e teleobjetiva; as cores primárias e os tons variantes do

preto e do branco; a profundidade de campo e os planos nítidos; o enquadramento e a

escolha do momento de apertar o botão: a fotografia começa a ser construída nas

escolhas do fotógrafo, e é a partir delas que nascem um universo de mensagens em que

os leitores poderão se inundar ao absorver por simbiose cada traço desenhado pela luz

ou pela tinta - nestes casos, registros em tela.

Na performance executada na visão do fotógrafo ou na forma como a imagem é

concebida por um pintor, a técnica empregada reflete na mensagem, mas

independentemente de onde seja exposta, não se pode esperar da imagem uma

interpretação única: é o leitor quem identifica os signos de acordo com suas

peculiaridades culturais e quem lhe confere o sentido “final” (entre aspas porque um

signo sempre gera outro signo; não havendo um ponto final mas sim um espaçamento

de encontro entre dois signos).

Ao acrescentar que toda imagem é construção de realidades, amplio a discussão

não somente para o indivíduo que fotografa, diante da escolha que o fez enquadrar,

escolher a objetiva, as melhores cores, luzes e uma construção de signos que querem

dizer algo - mesmo que às vezes não se pretenda dizer coisa alguma, seja no jogo das

imagens abstratas, como as telas de Pollock, ou nas confusões de signos e elementos

jogados num contexto fora de seu habitat natural, como alguns apelos publicitários ou

mesmo Guernica de Picasso já citado aqui.

Cada leitor de imagem a lê de uma forma de acordo com os caracteres que

decodifica e de acordo com a "bagagem cultural" que lota seu universo, seus

pensamentos a respeito de coisas abstratas ou materiais existentes em seu

mundo. Ressalto a importância de como o leitor absorve e interpreta a imagem, de como

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é importante o contexto em que ela está inserida, seja num jornal, numa exposição de

galeria, num outdoor publicitário, em uma campanha política ou mesmo um mapa em

um livro de geografia, que explica onde está situado cada país. Existem outros pontos

relevantes no processo de leitura, como o contexto em que está inserida, além do

suporte, como a mensagem verbal que acompanha a imagem que pode se apresentar na

forma de legenda, subtítulo ou um nome que a batiza. São elementos externos à imagem

que complementam e conduzem o leitor a assentar os pensamentos em algo já pré-

determinado.

É na imaginação do espectador onde se formula e se extrai a mensagem, e é

através do que ele aprendeu sobre o mundo que as qualidades do signo se revelam e

ganham sentido na mostra visual. Por isso, a imagem – e em especial caso, aqui, a

fotografia - é tomada de ilusão. Há razões para se acreditar no que se vê na fotografia,

assim como há contrapontos que convencem o contrário; não se pode esperar da

imagem uma verdade ou uma ligação direta com o real, tanto como já se sabe da pintura

como a manifestação com a câmera fotográfica: não se pode obter da fotografia ou de

uma tela um único texto.

É por isso que acredito que a imagem é como um conto: traz uma historia, mas

os personagens e elementos revelados se destacam e ganham suas devidas cores à

medida que o espectador os absorve, ao conferir através de seus sentidos a porta da

interpretação do que lhe é contado. E é através da interpretação sígnica do leitor que se

geram mensagens a partir que [nós] fotógrafos tentamos – intencionalmente ou não –

lhes dizer. Assim, como na ilusão de um conto, a imagem se revela como a discrepância

de seu argumento e que cada um vê e lê numa imagem uma distinta mensagem, mesmo

vinda do mesmo referente. O que acrescenta à fotografia a perda de sua imperiosa

identidade: a ficção tanto na recepção como na produção da imagem.

Referências Bibliográficas

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CARTIER-BRESSON, Henri. El instante decisivo. In: Fontcuberta, Joan (Ed.). Estética fotográfica: uma seleción de textos. Barcelona: Editora Gustavo Gili, 2003. MARTINS, José de Souza. Sebastião Salgado: A epifania dos pobres da terra. In: Mammi, Lorenzo e Schwarcz, Lilia. (Org.). 8 vezes fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.p. 133-171. ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. Tradução: Constancia Egrejas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009. SALGADO, Sebastião. Terra. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1997. SOULAGES, François. Estética da fotografia: perda e permanência. Tradução: Iraci D. Poleti e Regina Salgado Campos. São Paulo: Editora São Paulo, 2010.

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