photografia: discrepÂncia nas mensagens e … leite... · por henri cartier-bresson e roland...
TRANSCRIPT
PHOTOGRAFIA: DISCREPÂNCIA NAS MENSAGENS E FICÇÃO NA
CONSTRUÇÃO Sionelly Leite1
Universidade Tuiuti do Paraná (UTP)
Resumo: O objetivo deste artigo é discutir uma fotografia feita por Sebastião Salgado, em 1996, durante invasão de uma fazenda no interior do Paraná, sob a interpretação que o sociólogo José de Souza Martins defende: a de que essa fotografia não é um flagrante documental, mas sim o registro de uma cena encenada. Discutem-se os efeitos sentidos com a quebra do clímax e do aspecto “casual”, características típicas do registro documental, além dos valores da imagem a partir das representações ficcional e documental, no debate de conceitos como o “momento decisivo” e o “isto foi”, trazidos por Henri Cartier-Bresson e Roland Barthes, respectivamente; além da contribuição de François Soulages nos estudos da estética da encenação. Palavras-chaves: teorias da imagem; experiência estética; Sebastião Salgado.
Introdução
Em artigo analítico, o sociólogo José de Souza Martins2 (2008) discute as bases
para a construção da imagem documental, e traz como objeto empírico de análise uma
das fotografias feitas por Sebastião Salgado em 1996. Tomada durante invasão da
Fazenda Giacometti, no Paraná, ela contém a seguinte legenda: “A luta pela terra: a
marcha de uma coluna humana.”3 Ao fazer uma avaliação técnica, sociológica e
interpretativa da imagem, o sociólogo reconstrói a cena, afirma que a mensagem do
conjunto lhe causa impacto e confronta (MARTINS, 2008, p.133): “(...) o sociólogo que
sou me diz logo que essa foto é também um conjunto de discrepâncias entre o que se vê
e o que não se vê à primeira vista.” O que o autor afirma é que, conforme são
interpretados os elementos contidos na fotografia, apontam-se aspectos que indiciam
uma construção ficcional, em que a disposição dos signos pode ter sido pré-planejada
para causar um determinado efeito e conter uma devida mensagem.
Alerta-se, assim, para a possibilidade de uma teatralização da cena, e sob esse
aspecto, para Martins, o acaso e o flagrante são eliminados da fotografia, como também
o caráter de “repórter” da pessoa que fotografa. Com a perda do aspecto “casual”, os
personagens não mais lutam, e sim fazem pose para Salgado, o qual age à espera do 1Graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal); pós-graduada em Fotografia: Práxis e Discursos Fotográficos pela Universidade Estadual de Londrina (Uel) e mestranda em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). 2 MARTINS, José de Souza. Sebastião Salgado: A epifania dos pobres da terra. In: Mammi, Lorenzo e Schwarcz, Lilia. (Org.). 8 vezes fotografia, 2008. 3 SALGADO, Sebastião. Terra, 1997.
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
2676
acontecimento em cena, assim como os fotógrafos contratados para registrar um
casamento. Para validar a discussão, vale ressaltar que se considera, aqui, o caráter
documental segundo descrição de Pepe Baeza4 (2001), para o qual:
La fotografia documental se pasa em su compromiso com la realidad y los stilos que adopte o los canales de difusión que utilice son factores secundários de clasificación respecto a este parâmetro principal. Se usa corrientemente el término documentalismo para designar aquellos trabajos que, exhibidos em galerias o em forma de libro, tratan temas estructurales y se realizan con amplios márgenes de tiempo y reflexión. (BAEZA, 2001, p.41)
Salgado trata de temas de ordem social e exibe seus trabalhos em galerias de arte
e livros luxuosos, mas é outro o aspecto que incomoda Martins: a lacuna aberta ao se
perceber, na imagem em análise, o oposto de um flagrante documental: a ficção. Para a
discussão, Martins debate alguns pontos importantes, dentre os quais destaco o
momento decisivo, designado por Henri Cartier-Bresson5 (1952), e o isto foi, de que fala
Roland Barthes6 (1980), ambos referentes à ligação do objeto com sua imagem.
1, 2, 3 e... Sebastião Salgado entra em cena
Figura 1
A luta pela terra: a marcha de uma coluna humana Autor: SALGADO, Sebastião
Fonte: Terra Ano: 1996
4 BAEZA, Pepe. Por uma función crítica de la fotografia de prensa, 2001. 5 CARTIER-BRESSON, Henri. El instante decisivo, 2003. 6 BARTHES, Roland. A câmara clara, 2009.
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
2677
Conhecido como um dos mais importantes fotodocumentaristas
contemporâneos, o brasileiro Sebastião Salgado traz em grande parte de seus registros
fotográficos temas referentes à denúncia social e à igualdade dos direitos. Retratar as
“minorias” lhe rende críticas diversas, entre aqueles que advertem que seu trabalho
estaria ligado à exploração dos desfavorecidos e os que acreditam na coragem de seu
apoio a causas “nobres”. Repercussões de “causa” à parte, suas imagens chamam
atenção por seu refinamento estético, pelos cuidados com o enquadramento, tonalidades
de cinza, nitidez e outros aspectos visuais. O fotógrafo alcançou a marca de mais de 10
livros publicados, trazendo fotografias de paisagens e fenômenos de diversos lugares do
mundo, desde países latino-americanos a africanos e asiáticos. Com seu trabalho
reconhecido em grande parte do mundo, é também vencedor de centenas de prêmios
internacionais, dentre os quais recebeu na Holanda, em 1995, o Prêmio World Press
Photo, um dos mais apreciados nos sistemas de arte.
Uma das imagens (Figura 1), publicada no livro Terra, feita em 1996 na Fazenda
Giacometti no interior do Paraná (Brasil), é analisada pelo fotógrafo e sociólogo José de
Souza Martins (2008) sob o prisma da imagem documental, categoria referente às
imagens de Salgado. A escolha da imagem é logo justificada no início de seu texto:
Essa fotografia de Salgado, em especial, contém várias e desencontradas mensagens. Contém o que o autor quis mostrar e o que não sabia estar mostrando, mas pode ser visto mediante análise do conteúdo da foto. Ela é extensamente reveladora à luz do que tenho definido como sociologia do conhecimento visual. Essa é a razão da minha escolha. (MARTINS, 2008, p.137)
Numa profunda avaliação estética, técnica e sociológica, a detalhada
interpretação de Martins sobre a imagem de Salgado revela além do que o fotógrafo
provavelmente pretenderia mostrar, pois o fingimento teria sido necessário para se
fabricar um sentido na imagem. Para Martins (1999, p. 140) “(...) nessa fotografia de
Salgado, o momento decisivo é fingido. É mais teatral que pictórico.” Desta forma teria
sido necessária a intervenção direta do fotógrafo na construção e disposição dos
elementos no quadro, já que, continua o sociólogo, (MARTINS, 1999, p.140) “o
fotógrafo não é aí apenas o fotógrafo, mas é o cúmplice que conhece o enredo e sabe
qual será o desfecho.”, considera.
Para se chegar a essa síntese, o autor inicia o texto descrevendo os elementos da
imagem. A linha formada pela multidão conduz o olhar a um passeio por boa parte da
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
2678
fotografia: uma romaria estaria representando simbolicamente a busca da “Terra
Prometida”, a narrativa bíblica referente a Moisés e seus seguidores. As bandeiras
trazem símbolos do movimento social sem-terra e mostram quem são os participantes
do ato; já a travessia da porteira é identificada como uma ruptura com o sistema, e a
invasão como uma reivindicação pelo direito estendido a todos.Vê-se um homem que
levanta uma foice de roçar à frente de todos os outros: eis o líder apontado o rumo da
caminhada, indicando, nas palavras de Martins (1999, p. 133) “que ali a roçada é outra.”
Além desse indicativo, a foice se encontra virada com a ponta para baixo, no que se
entende a ferramenta como um simples utensílio de uso no campo; cruzando com um
martelo, símbolo referente ao proletariado, a foice voltada com a ponta para cima
representa o simbolismo visual dos partidos políticos comunistas.
Em seguida, numa análise técnica, o autor descreve o ângulo da tomada: o
fotógrafo fez a imagem de dentro da fazenda para ter uma dimensão de profundidade, a
fim de assegurar ao fundo a vista da multidão insurgente e a invasão a partir da porteira
“rompida”. E é a partir dessa observação que Martins atenta para a entrada do fotógrafo
na cena: ao estar do lado de dentro da fazenda, Salgado teria sido o primeiro
personagem a entrar no lugar, e sua antecipação teria rompido o clímax e a proposta
aparente da imagem pela ocupação “forçada” dos sem-terra na fazenda.
Nessa dedução, Martins se apoia na abordagem da interferência do fotógrafo na
cena e na construção simbólica. Há outros fatores que denunciam a defesa de tal
dedução, como a vista de homens mais ao fundo de braços cruzados, sem expressão de
reivindicação ou luta; ou ainda a presença da multidão em um lugar afastado do centro
urbano, que é normalmente o palco para os protestos, já que acontecem para serem
vistos e midiatizados. E mais: a presença de apenas um fotógrafo, um [sortudo]
fotógrafo [transeunte] que flagrou a cena. Com base nessas e outras observações, a
fazenda no interior do Paraná se torna palco para o teatro esboçado por Salgado, e o
calor do espetáculo é congelado quando Salgado o registra.
Com isso, Martins passa a discutir a questão documental da imagem e surge a
questão: afinal, quais os efeitos de sentido causados pela construção simbólica
antecipada do ato fotográfico de Salgado? A partir da análise de conceitos como o
momento decisivo descrito por Cartier-Bresson, e o isto foi de fala Roland Barthes, na
avaliação iniciada por José de Souza Martins, trago à discussão o caráter representativo
da fotografia e sua crença quanto à dimensão mágica de simulacro e cópia dos
fenômenos do mundo que por tanto tempo imperou [e ainda impera] sobre si. E em
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
2679
seguida discuto sobre as representações dos elementos visuais na fotografia e na pintura,
no que se refere ao hibridismo dessas duas representações a partir de seus suportes, a
fim de discutir a ligação do objeto à representação da sua imagem.
O momento decisivo
Nosotros, los fotógrafos, tenemos que enfrentarnos a cosas que están em continuo trance de esfumarse, y cuando ya se han esfumado no hay nada en este mundo que la haga volver. (...) Nuestra tarea es percibir la realidad, casi simuntáneamente registrarla en el cuaderno de apuntes que es nustra cámara. (CARTIER-BRESSON, 1952, p. 225)7
Nada faz o tempo voltar, nos fala Bresson em O instante decisivo (1952). O
autor lembra também que não há nada no mundo que faça restituir o passado. Assim
como o fogo, o tempo consome a madeira e nada faz voltar ao que era antes. É como a
imagem captada na fotografia. Uma vez registrada no filme, os sais de prata são
sensibilizados pela luz e a imagem se fixa, para então tornar-se o registro de uma
lembrança que será dali pra frente rememorada.
Para Bresson, há um instante no tempo em que os elementos se encontram em
perfeita harmonia, um ponto exato inscrito na banalidade do cotidiano, um
enquadramento de elementos banais transformados em uma cena “nova”. Aquilo que o
fotógrafo chama de “momento decisivo” é o momento único do tempo num
determinado espaço, em que é possível registrar com equilíbrio a composição dos
elementos, das formas geométricas que compõem uma linguagem visual. Observado
como uma estratégia de composição do quadro, o decisivo momento de apertar o botão
se enquadra em um momento “mágico” em que os elementos ganham sentido e
equilíbrio quando enquadrados no devido tempo.
Trabajamos en unicidad com el movimiento como algo premonitório de cómo la vida misma se desarrolla y mueve. Pero dentro del movimiento hay um momento en el cual los elementos que se mueven logran un equilíbrio. La fotografia debe capturar este momento y conservar estático su equilíbrio. (CARTIER-BRESSON, 1952, p.229)8
7 CARTIER-BRESSON, Henri. El instante decisivo. In: Estética fotográfica, 1952. 8 Idem nota 6.
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
2680
Trazendo a discussão bressoniana para a fotografia de Salgado, Martins (2008,
p.140) afirma que na imagem em questão, o momento decisivo não é “de escolha livre
do fotógrafo.” A fotografia em análise não seria possível sem o fingimento, sem a pré-
visualização do fotógrafo. O momento decisivo é anulado porque não há o calor do
momento, não há um flagrante, não há uma “livre” escolha do fotógrafo para a tomada.
A imagem foi tomada sabendo no que resultaria, foi antes visualizada na imaginação de
Salgado, a fim de que ao ser submetida trouxesse como efeito uma mensagem “pronta”.
Continua Martins (2008, p.140) “É antes a emoção do ato fotografado, uma emoção que
o estético é recoberto pelo político. Não é quem vê que imagina a partir de um código
estético. É quem age que quer propor a quem vê, através da fotografia, o que deve
imaginar.” Salgado não estaria aberto ao acaso, sabendo exatamente o que deveria
fotografar, esperando e fazendo com que o “objeto” a ser registrado se constituísse bem
a sua frente, a sua espera.
A tese do momento decisivo pressupõe não só o fotógrafo aberto para o acaso da imagem, porque aberto a certeza da criação artística e seus cânones. Ela pressupõe também que o expectador da fotografia veja com a mesma liberdade a fotografia resultante. Talvez por isso Salgado seja tão enfático na recusa do reconhecimento da dimensão estética de sua obra fotográfica, em particular de fotografias como essa. (MARTINS, 2008, p.p. 140-141)
E o fotógrafo se torna então o diretor da cena, a fim de construir imageticamente
uma mensagem pré-programada. O momento decisivo não partiria, aqui, de um
momento mágico deslumbrado pelo fotógrafo, mas de um momento antecipado, por isso
Martins (2008, p.134) afirma que o conjunto da imagem lhe causa impacto. Não somos
surpreendidos pelo momento de ruptura. “É mais teatral que pictórico. São o cálculo, a
certeza, e não o casual, que propõem as bases de criação dessa fotografia, acompanhado
ainda de uma certeza imaginativa e uma certeza documental.”, descreve Martins. (2008,
p.140)
Assim, na perspectiva da avaliação de Martins, ao retratar o teatro montado, a
fotografia de Salgado se perde nos discrepantes efeitos e nas díspares mensagens, o que
elimina o flagrante e seu caráter documental. Discutido o “momento decisivo”, é a vez
de refletir o derradeiro tópico, a respeito do “isto foi” de que fala Roland Barthes. A
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
2681
partir dessa reflexão, permitir-se-á divagar a respeito da relação do objeto com a sua
imagem na constituição que liga o “referente fotográfico” à imagem gerada pela
sensibilidade dos sais de prata à luz.
O instante decisivo da fotografia, o instante em que a cena é registrada, é
decisivo pois servirá de registro único, o médium entre o instante vivido e o tempo
rememorado. E, para trazer à mente do leitor o impacto desejado, a fotografia deve
alcançar a percepção do leitor com efeitos de sentido que afete, comova ou mostre os
fenômenos, inclusive os que são anulados pelo repetitivo.
Aquilo que foi
A Fotografia não diz (forçosamente) aquilo que já não é, mas apenas e de certeza aquilo que foi. Esta subtileza é decisiva. Diante de uma foto, a consciência não segue necessariamente a via nostálgica da recordação (...), mas, para toda a fotografia existente no mundo, a via da certeza: a essência da fotografia é ratificar aquilo que representa. (BARTHES, 1980, p.95-96)9
Roland Barthes em A Câmara Clara (1980) afirma que a fotografia é o atestado
de que aquilo que se vê na imagem de fato aconteceu: é a esse referente “real”,
existente, que ele chama de “isto foi”. Sendo a essência da fotografia a ratificação da
cena que apresenta, haveria a certeza daquilo que foi presenciado e registrado pelo
fotógrafo. Afirma Barthes (1980, p. 87) que “ao contrário dessas imitações [referentes à
pintura], na Fotografia nunca posso negar que a coisa esteve lá.” A base do “isto foi” se
refere ao noema da fotografia, ou seja, a essa certeza de que aquilo que se atesta na
imagem foi algo registrado por alguém que presenciou o fenômeno e o captou em
registro. “O grande noema da Fotografia será então o ‘Isto foi’ ou, ainda, o
Inacessível.”, estende Barthes. (1980, p.97)
O que Barthes chama de o “referente fotográfico” consiste no objeto real
colocado diante da objetiva, e sem o qual não existiria fotografia. No caso da pintura, o
referente pode ter origem na imaginação do pintor, o que não acontece com a fotografia.
Essa autenticação seria o grande diferencial da fotografia entre os outros meios de
reprodução visual, sendo essa convicção de existência do objeto o seu grande noema.
9 BARTHES, Roland. A Câmara clara: nota sobre a fotografia, 2009.
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
2682
Na análise da fotografia de Salgado, considerando a avaliação de Martins,
segundo o qual a cena registrada se deu de forma encenada, o “referente fotográfico” da
imagem não está no apelo do grupo que reivindica e invade a fazenda; mas, sim, no
grupo que posa e espera as ordens do fotógrafo-cúmplice. Ou seja, os personagens da
imagem até estiveram naquele lugar, naquele devido dia segurando bandeiras,
atravessando uma porteira de madeira, adentrando uma propriedade. Mas, não para
reivindicar, exclusivamente, mas também para atender às expectativas do fotógrafo.
Para Martins (2008, p. 150), embora a fotografia de Salgado tenha seu papel
histórico “O impacto visual não corresponde ao impacto político do que foi
fotografado.” No que ela revela além do que provavelmente pretenderia provocar, a
cena evoca a marcha dos participantes, desde o homem no centro que segura a foice de
roça ao último que acompanha a romaria: cada personagem que posa pretende dar
dimensão ao ato, e eis a demonstração que essa imagem evoca à primeira vista.
Com o momento decisivo “fingido” (MARTINS, 2008, p.140) e o isto foi
considerado uma cena encenada na fotografia de Salgado, passo a discutir os efeitos
sentidos com a transmutação dessa imagem. A partir da avaliação das representações
pictórica e documental, com a pintura e a fotografia, inicio o debate a fim de classificar
o hibridismo dessas duas representações.
Pela tinta e pela luz, a imagem
A exemplo da tela Fuzilamentos de Treze de Maio de Francisco de Goya,
algumas representações pictóricas que envolvem eloqüentes expressões da tragédia
humana não deixam de ser elevadas ao estatuto de obra arte. Comportando a densidade
da “visão” particular do acontecimento imaginado pelo pintor, exclui-se quase que
completamente um caráter jornalístico ou referencialmente informacional da imagem.
No caso das enigmáticas imagens elaboradas por Pablo Picasso em 1937 – durante a
Guerra Civil Espanhola (1936-39) – a tela Guernica alcança efeitos de sentido além de
sua representação “artística”. Lançando caracteres peculiares, a tela está permeada de
simbologias políticas, numa soma de subjetivos desenhos esboçados a partir das
imagens construídas na mente do pintor, Mesmo não sendo considerada uma imagem
jornalística, a tela desempenhou durante longo tempo uma missão civilizadora por unir
arte e política.
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
2683
Enquanto a pintura imitava, a fotografia apenas registrava e mostrava: abolira a imitação na reprodução literal. (...) Mesmo a exatidão e a verdade são apreciadas em referência a um modelo exterior preexistente, do qual as imagens reproduziriam a aparência. É no cenário dessa metafísica da representação que se situa o debate endêmico sobre a natureza – cópia ou simulacro – das imagens fotográficas (...). (ROUILLE, 2009, p. 73-74)
Na abordagem de Rouillé (2009) ficam expressas as típicas divergências entre
duas formas de representações imagéticas: enquanto a pintura recriaria as cenas do
mundo de acordo com a apreciação dos traços de seu autor, sendo de ordem subjetiva a
expressão do conteúdo, a fotografia teria em seu processo de construção a cópia direta
como referência, uma objetiva cópia dos fenômenos. Essa crença tem abastecido a
fotografia de uma crédula relação com o objeto fotografado, dispersando assim a sua
subjetividade e uma conexão com o artístico, alimentados normalmente na pintura.
Martins lembra uma foto de Robert Capa que surpreende um combatente no
exato momento em que é atingido por uma bala. A grandeza dessa imagem para Martins
se mantém pela conexão que faz da tragédia com a preocupação do fotógrafo no
enquadramento e outros recursos que estendem a imagem além da tragédia
documentada. Para o sociólogo, a imagem em questão não seria um retrato qualquer
feito em qualquer episódio, nem seria somente uma fotografia jornalística, como
também não foi por “sorte” que o fotógrafo conseguiu capturar a cena.
A significação dessa foto não se limita à tragédia que documenta. Não é retrato de alguém num dia qualquer ou de um episódio dentre tantos de um dia de guerra. Não é apenas uma fotografia de reportagem. Nem é apenas “sorte” do fotógrafo. O enquadramento, o ângulo, a composição nos dizem que o fotógrafo que fotografava jornalisticamente também estava fotografando artisticamente, que não se poderia separar arte e documento simplesmente porque estivesse num campo de batalha e em face do trágico. A própria circunstância do ato fotográfico não permitia que essa separação fosse feita. (...) É a arte dessa fotografia que põe nossa consciência diante de nós mesmos. (MARTINS, 1999, p.136)
O que sobressairia nessa imagem para o autor é a preocupação estética ao se
perceber a manifestação da escolha da composição, do enquadramento – o que
mostraria a abertura para algo intrínseco que opera na escolha na hora de apertar o
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
2684
botão: a fotografia jornalística também pode estar carregada de arte. O ato fotográfico é
tomado pelas escolhas para a tomada, na ênfase ou exclusão dos elementos conforme a
disposição do fotógrafo. Algumas imagens feitas por Capa nesse episódio reúnem o
refinamento estético e a informação factual, resultando em poderosas imagens que
surpreendem tanto por sua beleza como pelo impacto de sua revelação testemunhal.
A hibridação entre essas duas mesclas de representações imagéticas, fotografia e
pintura, torna as interpretações das imagens menos estreitas. Ambas as produções –
tanto de Picasso quanto as imagens de Capa – partem do mesmo referencial: a tragédia.
Para Martins (2008, p.136), a fotografia de Robert Capa sobre a Guerra Civil
Espanhola não fala menos do que a imaginação de Picasso. Porém, há uma lacuna
aberta nesse hibridismo: a pintura assumindo um caráter documental foge da conexão
do conceito estreito de arte, assim como o fotojornalismo de Capa, aberto à
possibilidade de trazer um gesto pictórico no seu ato, adquire uma forma mais plástica e
menos tênue com a “representação” fotográfica, na extração do reflexo de seu objeto.
Tanto a pintura quanto a fotografia, enquadradas no visual, estão encobertas pela
subjetividade do olhar de quem a faz, mas o suporte é quem comumente dirige parte da
interpretação. “As pessoas acreditam na realidade das fotografias, mas não na realidade
das pinturas. Isso dá uma vantagem para os fotógrafos. O problema é que os fotógrafos
também acreditam na realidade das fotografias.”, afirma Duane Michals. (1982, apud
SOULAGES, 2010, p.80) Por isso, por derradeiro, trago a questão sobre a “realidade”
na fotografia e a forma como atua tal imperialismo sob o prisma de que tal manifestação
visual é embutida de ficções.
A ficção do verdadeiro
A fotografia teria nascido como a possibilidade de registro daquilo que a pintura
ainda não havia conseguido realizar. Essa característica teria iniciado uma confusão
entre a descoberta de possibilidades e a essência da fotografia, segundo Soulages.
(2010, p.109) Assim a membrana que envolve a fotografia foi sendo enxertada de
realismo, o que gerou por conseqüência a rejeição de sua entrada nas formas de
manifestações de arte ou como ficção de algo. Com a confusão entre o que seria
possível e o que seria essência, a novidade da cópia exata e fiel dos fenômenos foi
mantida como estatuto da fotografia, descartando a conexão com a arte ou a ficção.
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
2685
Percebeu-se muito rapidamente a possibilidade de um desvio do meio fotográfico: do realismo ao irrealismo, da fotografia como produção à fotografia como criação, ou melhor, da duplicação à ficção. No momento de tirar a foto, de revelá-la, de fazer a cópia, o fotógrafo podia intervir e, portanto, manipular a foto. (SOULAGES, 2010, p.109)
Para Soulages (2010), a questão da realidade na fotografia se situa no mesmo
plano que a pintura, mas ao partirem das diferentes formas em que se apresentam e no
emblema que representa a crença de real ou imaginário, parte do processo de
interpretação é estimulada pelos suportes técnicos. O autor defende que, assim como a
pintura é construída conforme a imaginação de seu autor, na fotografia essa abertura
também está ao alcance através da manipulação de suas unidades sígnicas, das escolhas
técnicas em laboratório ou nos ajustes de segundos antes de apertar o botão.
Assim como o pintor escolhe seus pincéis e melhores materiais a fim de
transformar a imagem mental em algo material, vivo e aceso, a fotografia também
estaria aberta à construção, carregada de subjetividade. Afirma Soulages (2010, p.115,
116): “E isso é verdadeiro por duas razões: primeiro, porque toda foto pode produzir
ficção, e, em seguida, toda recepção de uma foto tende à ficção.” Não sendo mais uma
reprodução, a fotografia estaria ao lado da ficção.
O realismo, que no início foi uma prática e uma doutrina necessárias, tornou-se imperialista, pois se confundiu e se quis confundir condição de possibilidade de um nascimento com condição de possibilidade de um funcionamento – em outras palavras, começo e essência. (SOULAGES, 2010, p.109)
A magia da “verdade” documental da fotografia incide sobre a crença coletiva
de um grupo numa espécie de confiança depositada, ao se interpretar na imagem os
elementos trazidos como uma cópia ou simulacro dos fenômenos. A credibilidade das
fotos vistas em jornais, a exemplo, criou uma espécie de verdade embutida,
confundindo fotografia com a realidade subjetiva dos fenômenos, atenuando-lhe a
crença de reprodução do real.
A fotografia em condições particulares participa como um artefato que equivale
a um substituto de algo, como um signo reconhecido por uma cultura. Nisso a fotografia
ganha duas vertentes: enquanto traz uma sensação mágica de verdadeiro é também um
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
2686
espaço para a ficção. É nesse hibridismo que se faz ver seu suporte, o qual assinala a
questão sobre o crédito de crença de real, cópia ou a representação da fotografia. Para
Soulages (2010, p.115) “Não se trata de tentar atingir a realidade pela fotografia, mas de
visá-la na realidade da fotografia.” Ao partir desse pressuposto, considera-se a
fotografia não como uma forma de apresentar o visível, mas sim de tornar visível algum
fenômeno, para que, por sua vez, se possa tentar compreender a condição humana
fenomenal.
Considerações finais
Entre a objetividade e a subjetividade; a decodificação sígnica e a apreciação
estética; as lentes grande angular e teleobjetiva; as cores primárias e os tons variantes do
preto e do branco; a profundidade de campo e os planos nítidos; o enquadramento e a
escolha do momento de apertar o botão: a fotografia começa a ser construída nas
escolhas do fotógrafo, e é a partir delas que nascem um universo de mensagens em que
os leitores poderão se inundar ao absorver por simbiose cada traço desenhado pela luz
ou pela tinta - nestes casos, registros em tela.
Na performance executada na visão do fotógrafo ou na forma como a imagem é
concebida por um pintor, a técnica empregada reflete na mensagem, mas
independentemente de onde seja exposta, não se pode esperar da imagem uma
interpretação única: é o leitor quem identifica os signos de acordo com suas
peculiaridades culturais e quem lhe confere o sentido “final” (entre aspas porque um
signo sempre gera outro signo; não havendo um ponto final mas sim um espaçamento
de encontro entre dois signos).
Ao acrescentar que toda imagem é construção de realidades, amplio a discussão
não somente para o indivíduo que fotografa, diante da escolha que o fez enquadrar,
escolher a objetiva, as melhores cores, luzes e uma construção de signos que querem
dizer algo - mesmo que às vezes não se pretenda dizer coisa alguma, seja no jogo das
imagens abstratas, como as telas de Pollock, ou nas confusões de signos e elementos
jogados num contexto fora de seu habitat natural, como alguns apelos publicitários ou
mesmo Guernica de Picasso já citado aqui.
Cada leitor de imagem a lê de uma forma de acordo com os caracteres que
decodifica e de acordo com a "bagagem cultural" que lota seu universo, seus
pensamentos a respeito de coisas abstratas ou materiais existentes em seu
mundo. Ressalto a importância de como o leitor absorve e interpreta a imagem, de como
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
2687
é importante o contexto em que ela está inserida, seja num jornal, numa exposição de
galeria, num outdoor publicitário, em uma campanha política ou mesmo um mapa em
um livro de geografia, que explica onde está situado cada país. Existem outros pontos
relevantes no processo de leitura, como o contexto em que está inserida, além do
suporte, como a mensagem verbal que acompanha a imagem que pode se apresentar na
forma de legenda, subtítulo ou um nome que a batiza. São elementos externos à imagem
que complementam e conduzem o leitor a assentar os pensamentos em algo já pré-
determinado.
É na imaginação do espectador onde se formula e se extrai a mensagem, e é
através do que ele aprendeu sobre o mundo que as qualidades do signo se revelam e
ganham sentido na mostra visual. Por isso, a imagem – e em especial caso, aqui, a
fotografia - é tomada de ilusão. Há razões para se acreditar no que se vê na fotografia,
assim como há contrapontos que convencem o contrário; não se pode esperar da
imagem uma verdade ou uma ligação direta com o real, tanto como já se sabe da pintura
como a manifestação com a câmera fotográfica: não se pode obter da fotografia ou de
uma tela um único texto.
É por isso que acredito que a imagem é como um conto: traz uma historia, mas
os personagens e elementos revelados se destacam e ganham suas devidas cores à
medida que o espectador os absorve, ao conferir através de seus sentidos a porta da
interpretação do que lhe é contado. E é através da interpretação sígnica do leitor que se
geram mensagens a partir que [nós] fotógrafos tentamos – intencionalmente ou não –
lhes dizer. Assim, como na ilusão de um conto, a imagem se revela como a discrepância
de seu argumento e que cada um vê e lê numa imagem uma distinta mensagem, mesmo
vinda do mesmo referente. O que acrescenta à fotografia a perda de sua imperiosa
identidade: a ficção tanto na recepção como na produção da imagem.
Referências Bibliográficas
BAEZA, Pepe. Por uma función crítica de la fotografia de prensa. Barcelona: Editora Gustavo Gili, 2001. BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Tradução: Isabel Pascoal. Portugal: Editora Edições 70, 2009. _______________. A câmara clara: Nota sobre a fotografia. Tradução: Manuela Torres. Portugal: Editora Edições 70, 2009.
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
2688
CARTIER-BRESSON, Henri. El instante decisivo. In: Fontcuberta, Joan (Ed.). Estética fotográfica: uma seleción de textos. Barcelona: Editora Gustavo Gili, 2003. MARTINS, José de Souza. Sebastião Salgado: A epifania dos pobres da terra. In: Mammi, Lorenzo e Schwarcz, Lilia. (Org.). 8 vezes fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.p. 133-171. ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. Tradução: Constancia Egrejas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009. SALGADO, Sebastião. Terra. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1997. SOULAGES, François. Estética da fotografia: perda e permanência. Tradução: Iraci D. Poleti e Regina Salgado Campos. São Paulo: Editora São Paulo, 2010.
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
2689