pesquisa qualitativa, saúde e uso de drogas: desdobramentos e implicações teóricas, analíticas...

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r e v p o r t s a ú d e p ú b l i c a . 2 0 1 4; 3 2(1) :37–44 www.elsevier.pt/rpsp Artigo original Pesquisa qualitativa, saúde e uso de drogas: desdobramentos e implicac ¸ões teóricas, analíticas e epistemológicas da utilizac ¸ão da técnica da entrevista de fala aberta Alberto Groisman a,e Jacqueline Schneider b a Departamento Antropologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil b Universidade Católica de Santa Catarina, Jaraguá do Sul, Brasil informação sobre o artigo Historial do artigo: Recebido a 16 de agosto de 2012 Aceite a 12 de junho de 2013 On-line a 18 de dezembro de 2013 Palavras-chave: Pesquisa qualitativa Saúde Uso de drogas Ética r e s u m o Este artigo discute procedimentos de um projeto de investigac ¸ão qualitativa sobre saúde e uso de drogas em Santa Catarina, Brasil. A coleta de dados buscava estimular os sujeitos da pesquisa à formulac ¸ão de enunciados sobre a sua experiência. A técnica principal de coleta de dados chamada entrevista de fala aberta, que desloca a agenda de relevâncias, para priorizar percepc ¸ ão, perspectivas e preocupac ¸ões dos próprios sujeitos. A análise centrou- se nas categorias-baliza «saúde» e «drogas: noc ¸ões sobre», selecionadas, entre outras, para indicar a relevância e o conteúdo de sua incidência na análise da relac ¸ão entre «modelos» de percepc ¸ ão, particularmente pessoais e institucionais. © 2012 Escola Nacional de Saúde Pública. Publicado por Elsevier España, S.L. Todos os direitos reservados. Qualitative research, health and drugs use: Outcomes and theorotical, analytical and espistemological implications of using the open talking interview technique Keywords: Qualitative inquiry Health Methodology Drugs use Ethics a b s t r a c t This article discusses procedures of qualitative research project on health and drugs use in Santa Catarina, Brazil. The data collection sought to encourage the subjects to the formula- tion of statements about their experiences. The main technique of data collection was called open talking interview, it shifts the agenda of relevance to prioritize perceptions, perspecti- ves and concerns of the subjects. The analysis focused on the categories-wedges «health» and «drugs: notions about», selected among others to indicate the relevance and contents of their incidence on the analysis of the relationship between «models» of perception, par- ticularly personal and institutional. © 2012 Escola Nacional de Saúde Pública. Published by Elsevier España, S.L. All rights reserved. Autor para correspondência. Correio eletrónico: [email protected] (A. Groisman). 0870-9025/$ see front matter © 2012 Escola Nacional de Saúde Pública. Publicado por Elsevier España, S.L. Todos os direitos reservados. http://dx.doi.org/10.1016/j.rpsp.2013.06.005

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rtigo original

esquisa qualitativa, saúde e uso de drogas:esdobramentos e implicacões teóricas, analíticas

epistemológicas da utilizacão da técnicaa entrevista de fala aberta

lberto Groismana,∗ e Jacqueline Schneiderb

Departamento Antropologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, BrasilUniversidade Católica de Santa Catarina, Jaraguá do Sul, Brasil

nformação sobre o artigo

istorial do artigo:

ecebido a 16 de agosto de 2012

ceite a 12 de junho de 2013

n-line a 18 de dezembro de 2013

alavras-chave:

esquisa qualitativa

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r e s u m o

Este artigo discute procedimentos de um projeto de investigacão qualitativa sobre saúde e

uso de drogas em Santa Catarina, Brasil. A coleta de dados buscava estimular os sujeitos

da pesquisa à formulacão de enunciados sobre a sua experiência. A técnica principal de

coleta de dados chamada entrevista de fala aberta, que desloca a agenda de relevâncias, para

priorizar percepcão, perspectivas e preocupacões dos próprios sujeitos. A análise centrou-

se nas categorias-baliza «saúde» e «drogas: nocões sobre», selecionadas, entre outras, para

indicar a relevância e o conteúdo de sua incidência na análise da relacão entre «modelos»

de percepcão, particularmente pessoais e institucionais.

© 2012 Escola Nacional de Saúde Pública. Publicado por Elsevier España, S.L. Todos os

direitos reservados.

Qualitative research, health and drugs use: Outcomes and theorotical,analytical and espistemological implications of using the open talkinginterview technique

eywords:

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a b s t r a c t

This article discusses procedures of qualitative research project on health and drugs use in

Santa Catarina, Brazil. The data collection sought to encourage the subjects to the formula-

tion of statements about their experiences. The main technique of data collection was called

open talking interview, it shifts the agenda of relevance to prioritize perceptions, perspecti-

ves and concerns of the subjects. The analysis focused on the categories-wedges «health»

thics and «drugs: notions abou

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© 2012 Escola Nacio

∗ Autor para correspondência.Correio eletrónico: [email protected] (A. Groisman).

870-9025/$ – see front matter © 2012 Escola Nacional de Saúde Públicattp://dx.doi.org/10.1016/j.rpsp.2013.06.005

t», selected among others to indicate the relevance and contents

nalysis of the relationship between «models» of perception, par-

titutional.

nal de Saúde Pública. Published by Elsevier España, S.L. All rights

reserved.

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Introducão

Uma das principais repercussões das iniciativas de articular osestudos da área de saúde com os da área das ciências huma-nas e sociais foi a emergência de um interesse significativo porparte dos pesquisadores da área de saúde em relacão ao quese chama «pesquisa qualitativa», entre os anos 20-40 do séculoXX. Neste período, médicos passaram a circular em expedicõesentre culturas remotas em relacão à Europa e Estados Unidos.Um dos pioneiros – e um dos exemplos mais significativosdesta tendência – foi Erwin Ackerknecht, que reconheceua existência de uma «medicina primitiva». A descricão destamedicina foi considerada relevante para pensar a medicinapraticada em sociedades chamadas complexas.

Por sua vez, a procura por conhecer melhor a pesquisaqualitativa repercutiu em termos epistemológicos. Isto se deufundamentalmente porque o desenvolvimento de projetosde pesquisa quantitativa serviam bem para levantar tendên-cias nas populacões, mas dificilmente conseguiam retratarvariacões possíveis e relevantes. Criava-se a necessidadede reconhecimento de «excecões à regra» que dificultavamas generalizacões, portanto, frequentemente «escondidasdebaixo de tapetes metodológicos». Um exemplo recente estárepresentado pelo que se tem chamado de «necessidades bási-cas das populacões», cânone de muitas políticas públicas eagendas acadêmicas quando associadas à saúde. Em geralo conteúdo destas «necessidades» serve para a definicão depolíticas de saúde que atenderiam à «maioria da populacão».Formular políticas com este fundamento não seria indesejávelse não criasse situacões de omissão e descaso, particular-mente no cuidado das ocorrências que não se enquadramnestas «necessidades das maiorias», e assim, acabam tambémnão se enquadrando na programacão das políticas públi-cas. Ou, por outro lado, passou-se a considerar somenteprogramacões e prioridades que formulam, no sentido webe-riano, «tipos ideais de problemas». Para refletir acerca dapesquisa qualitativa na área da saúde, este trabalho dis-cute aspectos levantados durante o desenvolvimento deprojeto de pesquisa «Trajetórias e itinerários no contextodo uso de drogas em Santa Catarina», financiado pelo poolCNPq/FAPESC/MS/SES e aprovado pelo Comitê de Ética em Pes-quisa de protocolo 0004.0.242.000-07. Na fase de preparacãoe desenvolvimento da coleta de dados foram organizadosseminários buscando desconstruir ou fazer desaprender osdensos e deletérios condicionamentos aos quais todos esta-mos e mesmo somos sujeitos, ao sermos colocados diante dosdiscursos hegemônicos sobre uso e abuso de drogas. Nestapreparacão problematizamos junto a uma ideia corrente naantropologia contemporânea o estatuto da relacão assimétricaque se estabelece no trabalho de campo. Nesta perspec-tiva buscamos torná-lo menos um «evento administrativode recurso de pesquisa» e mais o que de Oliveira1 chamou de«encontro etnográfico» cuja atividade central e motivadora doencontro é a interlocucão. Para promover este encontro deve-ríamos ponderar, relativizar as ideias e preconceitos que todos

construímos sobre o que estamos pesquisando. Ou seja, olharpara os dados buscando conhecer o conteúdo e talvez a formada «agenda» com a qual nossos interlocutores de pesquisaorientam pensamento-acão, ou sua práxis.

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Após esta fase, entramos em contato com instituicões eorganizacões governamentais e não governamentais em todoo estado. Foram abarcadas secretarias municipais de saúde,conselhos antidrogas municipais, centros de atendimentopsicossocial (CAP), associacões de alcoólicos anônimos, nar-cóticos anônimos e afins, comunidades terapêuticas e outras.Depois de contato preliminar via telefone ou e-mail, membrosda equipe realizavam visitas preliminares às organizacõesdurante um período aproximado de permanência entre2-3 dias. Após encontro inicial com os dirigentes os pesquisa-dores, participavam de reuniões e solicitavam voluntários ouindicacões de potenciais entrevistados. Apesar de questionar-mos o fato de que este procedimento levaria a uma setorizacãodos resultados, já que abordaríamos apenas um segmento do«universo» de usuários de drogas, considerou-se relevante econsistente a nocão de «carreira» de uso de drogas, e seu des-dobramento em um saber específico, constituído na trajetóriadestes usuários, que provavelmente teriam passado por pro-cessos críticos em relacão aos eventos que enfrentaram aolongo de sua vida, incluindo aqui processo e desenrolar daprópria institucionalizacão.

A principal técnica utilizada na coleta de dados – associ-ada a anotacões gerais e diário de campo – foi denominadaentrevista de fala aberta. Como vimos, este procedimento tinhacomo objetivo central obter depoimentos que refletissem umdeslocamento do registro da pesquisa, para que o enfoque daproblemática tivesse como perspectiva a agenda de relevân-cias e interrogacões – priorizando e enfatizando percepcão,estruturacão de ideias e preocupacões emergentes – dosinterlocutores entrevistados. Em outras palavras, as técnicasde coleta de dados buscaram em grande parte do período decada encontro, a mínima interferência do entrevistador noestímulo à formulacão das falas sobre as experiências. Enfati-zando, procurava-se dar prioridade à elaboracão do conteúdodos próprios sujeitos da pesquisa, abrindo a possibilidade daemergência dos saberes locais. Procurávamos relativizar a rele-vância de obscurecimentos que poderiam eventualmente serprovocados pela agenda e pelos vieses e ideários dos própriospesquisadores. Em suma, em nome de explorar a técnica, cor-remos o risco, sempre enfatizado na preparacão da equipe,de abordar ingenuamente os dados como sendo a «verdade»

empiricamente obtida. Entretanto, aqui o princípio metodoló-gico e epistemológico envolvido é que o procedimento procurade fato suspender os efeitos do condicionamento clássico daexpectativa à qual os participantes de uma entrevista em geralestão submetidos: há uma lista de interrogacões previamenteformuladas que devem ser respondidas ou satisfeitas pelo«informante». Ter buscado explorar a tensão de modificar estaexpectativa já foi considerado pela equipe um passo e umaconquista importante do ponto de vista metodológico e epis-temológico.

Assim, procurando provocar mas «não conduzir» o encon-tro etnográfico, o entrevistador dizia para a pessoa a serentrevistada «fale o que quiser». Esta frase desencadeava afala dos entrevistados, já estimulada inicialmente pela leituraem voz alta do próprio Termo de Consentimento Livre e Escla-

recido (TCLE). Acabamos por considerá-lo e convertê-lo eminstrumento de pesquisa propriamente dito, na medidaem que sua leitura servia como dispositivo de estímulo àfala.
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O procedimento analítico, entretanto, não se absteve deormatos mais clássicos. Paralelamente à coleta do materialmpírico, os entrevistadores foram selecionando e propondobalizas» para análise. O termo baliza já demarcava seu carátere localizacão e enquadramento dos segmentos dos depoi-entos que articulavam os conteúdos relevantes abrigados

ob determinada «rubrica». A ideia de chamar «baliza» axpressão que reconhecia estes temas centrais, evoca tam-ém uma concepcão de que a estruturacão da fala reflete arganizacão e constituicão do discurso a partir de conceitosue articulam evento, espaco, tempo de experiência. As balizaselecionadas para análise foram: narrativas de mal-estar/doenca;tinerários terapêuticos; servicos de saúde; saúde; autocuidado; dro-as: nocões sobre. Ao todo, foram realizadas 46 entrevistas queoram integralmente transcritas e objeto de análise.

O objetivo deste trabalho, por sua vez, é levantar e pro-lematizar questões de método e suas implicacões éticas,olíticas e epistemológicas, através de discussão de balizasue emergiram na análise dos dados e com a aplicacão daécnica da fala aberta. Para refletir sobre a abordagem seleci-namos para a reflexão as balizas «saúde» e «drogas: nocõesobre». Realizamos esta escolha devido à centralidade e à rele-ância destes conteúdos tanto nas interrogacões que forammergindo na análise dos depoimentos, quanto na importân-ia atribuída pelos participantes da pesquisa nas questõeselacionadas a estes temas. Os relatórios de análise cons-aram densidade e pertinência dos hiatos e tensões entre

formulacão dos modelos e discursos «terapêuticos», e aorma com que os interlocutores elaboram suas experiências,a articulacão entre a formulacão das teorias sobre e dosodelos pessoais de avaliacão da própria experiência, e os

modelos-processos» de busca de resolucão.

spectos preliminares: sobre modelos, leis e métodos

elaboracão do projeto de pesquisa considerava preliminar-ente a escassez, a invisibilidade ou a indisponibilidade de

ados na literatura e na mídia que retratassem: (a) com den-idade, as experiências e os contextos socioculturais locaisssociados à temática da atencão ao «uso de drogas» no estadoe Santa Catarina; (b) as relacões sociais que são estabelecidasestes contextos no que se refere a aspectos ligados à saúde;

c) os padrões de motivacão e acão utilizados pelos usuáriose drogas na avaliacão de sua saúde; (d) o conhecimento sobrerocedimentos e estratégias associadas à busca do bem-estar

da manutencão da saúde das pessoas inseridas nestes con-extos.

Assim, questionou-se também a premissa controversa socialmente hegemônica que a pessoa que faz uso dedrogas ilícitas» é necessariamente «doente» ou «dependenteuímico». Procurou-se transcender estes estereótipos, con-iderando a variedade de situacões possíveis, tendo comoundamento que a imagem construída dos usuários juntoos servicos de saúde é aquela produzida por situacões derise. Esta imagem de certa maneira passou a orientar asolíticas de saúde ao considerar que usar drogas é sempre

roblemático. Esta tendência contribuiu para se pensar que háomente 2 abordagens possíveis: uma absenteísta, ou seja, que

intervencão deve ser no sentido de eliminar genericamente uso de drogas ilícitas, e outra que volta suas iniciativas à

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«prevencão», considerando o uso de drogas ainda algo epidê-mico, mas que distingue o uso do abuso de drogas. Para estaúltima, as políticas deveriam ser voltadas prioritariamente àmitigacão de riscos e prejuízos, e ficou conhecida pela nocãode «reducão de danos» ou reducionista.

Por outro lado, a partir de 2006, com a promulgacão da Lein.◦. 11.343, de 22 de agosto de 2006, os usuários que forem pro-cessados legalmente passam a receber penas socioeducativas,aplicadas por juizados especiais criminais, como prestacão deservicos à comunidade ou inscricão em programas de trata-mento. A situacão e os processos desencadeados pela novalegislacão passaram a exigir um conhecimento apurado sobrea complexidade e a variabilidade de situacões de uso de dro-gas, para que os programas e servicos designados para oschamados «usuários»/«dependentes» fossem realmente ade-quados e eficazes. Isso vale tanto para a área da saúde, quantopara a da justica e da seguranca pública, que ficam responsá-veis pelos encaminhamentos e procedimentos para viabilizara prestacão de servicos associados à aplicacão de penalidades.

O dilema moral no qual vivemos2 em relacão às drogasdenuncia que ao mesmo tempo em que proibimos e torna-mos algumas delas ilegais, somos paralelamente estimuladosa consumi-las através da profusão das drogas lícitas oriundasda indústria farmacêutica Por isso, parece que o «alarmanteproblema das drogas» é em última análise uma construcãosociocultural que condiciona a imagem pública dos usuáriosde drogas, impelindo-os à clandestinidade e à exclusão social.Isto colabora para constituir a «crise» e torna inacessível ouirrelevante o conhecimento produzido por esses sujeitos emsuas trajetórias. Para resgatar este conhecimento e inseri-lono campo de reflexões, a pesquisa qualitativa é de grandeimportância.

Sumariamente, o que enfocamos na coleta de depoimen-tos foram ideias práticas, estratégias e itinerários associadosa questões de saúde, de pessoas vinculadas direta ou indire-tamente com o contexto do uso de substâncias psicoativas,através da técnica principal da entrevista de fala aberta. Doponto de vista das abordagens metodológica e analítica, pode-mos chamar genericamente a elaboracão resultante de «fala»,que por não ser espontânea e sim estimulada, reflete um refe-rencial digamos factual. Este referencial factual é elaborado econstitui-se em «discurso», no sentido que seleciona conteú-dos a serem comunicados verbalmente. É também narrativo,na medida em que suscita sempre uma rememoracão da expe-riência vivida. O princípio que estamos adotando é que estediscurso rememora e «narra» densamente, tanto a experiênciaquanto a «percepcão» estabelecida pela vivência, e a reflexãosobre sua ocorrência.

Quanto à contribuicão desta reflexão, esperamos subsi-diar o debate sobre a fundamentacão empírica no campo deestudos sobre uso de drogas. Para isso, utilizamos uma meto-dologia de pesquisa qualitativa que até então foi ainda poucoaplicada no campo de pesquisa sobre saúde e uso de drogasno Brasil. Interessa-nos também disseminar a reflexão sobre oconhecimento produzido por pesquisa qualitativa entre pro-fissionais de saúde, particularmente entre pessoas que atuamno atendimento de usuários de drogas e na formulacão de

políticas públicas no campo de intervencão.

Neste sentido, consideramos que (1) a ampliacão do conhe-cimento sobre a temática em investigacão poderia contribuir

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significativamente para tornar mais consistente e eficaz aabordagem e a intervencão relacionadas aos problemas oca-sionados no campo da saúde que envolvem uso de drogase recurso aos servicos resolutivos disponíveis, e (2) que olevantamento de dados empíricos, a reflexão e a divulgacãoampla do conhecimento qualitativamente produzido refletena formacão dos recursos humanos, preparando melhor pro-fissionais, outras pessoas envolvidas e os servicos disponíveisem geral, diante às ocorrências e decorrências de eventuaisproblemas. Confere também melhor atencão aos desdobra-mentos que se referem à resolutividade, à gestão dos recursose às questões ligadas aos direitos humanos.

O que nos disse a análise

Sobre as balizas «saúde» e «drogas: nocões sobre»:implicacões teórico-metodológicas, éticas e políticas

Consideramos agora as repercussões e implicacões teórico-metodológicas, éticas e políticas da análise de dados obtidoscom a técnica da entrevista de fala aberta. Nas entrevis-tas, destaca-se a articulacão entre os depoimentos pessoaisque configuram narrativas acerca das próprias histórias devida dos entrevistados e os discursos institucionais de maisamplo espectro, particularmente aqueles que emergem dasvivências nos processos de «tratamento». Visto que a maio-ria dos depoimentos foram obtidos através de indicacão depessoas que estavam envolvidas com prestacão de servicos,as balizas trouxeram à tona, explícita ou implicitamente, oque se poderia considerar como um «discurso hegemônico»

que se constitui diante das perspectivas que condicionamas diversas dimensões da percepcão do processo. Neste sen-tido ainda, este discurso tem como registro gerador a nocãode «doenca da dependência química» e conteúdos semânti-cos centrais a ela associados, por exemplo, (1) a nocão quea «dependência química» é uma «doenca incurável», que sópoderia ser controlada através da interrupcão imediata e defi-nitiva do uso de drogas (2) ou que usuários contumazes seriamtodos considerados «dependentes químicos». A constatacãode que subjaz este registro nos diversos depoimentos foi cen-tral ao considerarmos as implicacões éticas e políticas, asquestões metodológicas e, particularmente, os procedimentosde análise.

A demarcacão dos relatórios separadamente evoca a estra-tégia de definir os eixos analíticos a partir também daconsideracão das categorias centrais estabelecidas a priori,mas que serviam para desencadear os depoimentos. Comoprimeira consequência, na medida em que o título do pro-jeto era descritivo de uma das dimensões da agenda depesquisa e era apresentado aos depoentes, familiarizava osentrevistados com o tema geral, que era «saúde e uso dedrogas». Entretanto, ao não apresentar perguntas direciona-das, a partir da técnica da fala aberta reservava ao entrevistadoa prerrogativa de definir qual seria sua abordagem sobreo assunto. Permitia também o acesso a conteúdos que eventu-

almente se colocariam mais sutilmente na malha discursivaemergente e destacaria a relevância e a possibilidade destaabertura da análise para proporcionar a indicacão de parâme-tros para a reorganizacão de um olhar sobre as experiências

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pessoais. Assim como proporcionava uma oportunidade deindicar como repercutiam no campo semântico as nocõesdisseminadas pela producão de sentido no contexto de suaformulacão. Particularmente, percebeu-se a influência desteolhar em relacão à ambiguidade e às tensões que exis-tem entre este discurso como um parâmetro identitário, comouma fonte de interpretacões gerais sobre drogas, de umlado, e as próprias nocões «nativas» que não reproduziamo discurso hegemônico, explicitando, assim, muitas vezes, oentrecruzamento tenso entre as nocões nativas e os discursoshegemônicos constituídos nas instituicões.

Passemos agora a abordar os conteúdos específicos queemergiram da análise de cada baliza:

Saúde

As nocões sobre «saúde» que emergem dos discursos podemser sistematizadas nas seguintes chaves analíticas desdobradasa partir dos conteúdos dos depoimentos: nocão de saúde deuma forma genérica, nocão de saúde envolvendo particular-mente «doencas do corpo», «sensacões» de doenca e nocão debem-estar.

Considerando que a temática da saúde é uma das entradasda pesquisa, o primeiro fato notável que desponta na análiseé um aspecto propriamente quantitativo: saúde é a baliza quepossui um número significativamente pequeno de trechos nosquais é mencionada. De um universo de 46 entrevistas, ape-nas 13 foram marcadas com esta baliza. Este fato sugere pelomenos 2 razões possíveis: a temática da «saúde» em geral, talcomo era compreendida pelos interlocutores na apresentacãoda pesquisa, não era questão relevante (1); ou o próprio modocomo foi compreendida pelos interlocutores, no que concernea sua conceituacão de saúde para a marcacão das entrevistas,era restrita a expressar-se sobre doencas, diagnóstico, trata-mento (2).

Contudo, nas análises realizadas como as balizas «drogas:nocões sobre» e «uso de drogas», a questão da saúde, talcomo a entendemos a partir da síntese teórica da revi-são bibliográfica, e os termos a ela correlacionados, comocorpo, institucionalizacão, cura e recuperacão, adquiriramcentralidade na análise constarem significativamente nosdepoimentos. Estes temas despontaram na vinculacão coma nocão de «doenca» e de seu campo semântico na perspectivanativa, no desenrolar da narrativa como um todo, e, assim, nãoeram decorrentes – maioritariamente – do estímulo específicoque despontava com a temática da saúde.

A nocão de «saúde», desta forma, poderia ser sistemati-zada como ambivalente e polifônica. Categoria, portanto, cujoscontornos não podem ser tracados por linhas firmes. Comas próximas descricões vamos acompanhar os conteúdosdos depoimentos que levaram a esta conceituacão ampla de«saúde»:

Sempre fui uma pessoa saudável (Ari)

De saúde minha acho que não tenho o que falar (André)

«Saúde tá ótima. Única preocupacão era a falta de uso de

preservativos» (Aline)

«Doenca de garganta, pneumonia, não tenho problemasmaiores assim»

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«Não tenho doencas, sempre faco exames»

Doenca que eu ouvi falar é com drogas injetáveis, as pes-soas pegam AIDS, pegam como é que é, hepatite, pegamdiversas doencas. Eu já não, porque eu nunca tive contatocom doencas injetáveis, essas coisas assim (Fernando)

Percebe-se um desencontro entre a visão biomédicaegemônica de saúde e a nocão de «doenca da dependên-ia química», que circula entre os informantes. Portanto, nãoncontra-se de forma representativa o reconhecimento de que o usoe drogas e as drogas por si só são causas de/ou problemas deaúde propriamente ditos. Se consideramos ainda a relevânciaa nocão de dependência química, que veremos na análise adi-nte, isto se torna muito significativo na medida em que indicaegistros diferentes onde operam as nocões.

Portanto, a institucionalizacão e as instituicões assu-iriam a característica de agentes da disseminacão de um

ntendimento amplo quanto à existência e a constituicão do chamadoproblema das drogas». Este aspecto da atuacão destes agentesem como uma de suas consequências a disseminacão circular

condicionadora da nocão de doenca da dependência química.sto ocorre tanto no campo semântico de producão de sua legi-imidade como instrumento de categorizacão e negociacão deentido, quanto em sua dimensão de motivacão das formase intervencão. Esta nocão parece ser apreendida e incorpo-ada no discurso pelos entrevistados, apenas parcialmente einda de forma ambígua.

Esboca-se um modelo para compreensão da significativaneficácia das instituicões voltadas ao «tratamento de depen-entes químicos». Ou seja, o conhecimento trazido pelossuários dos servicos a partir de, e sobre, suas próprias expe-iências parece não ser considerado. Em outras palavras, atuacão institucional em geral procura modificar simplista eecanicamente as nocões dos usuários, enfatizando implicita-ente uma forma de convencimento que parece se desdobrar

uma nocão de «dependência química» como «doenca moral»ue, conforme Schneider3 apurou, se desdobra em termos detratamento» para uma transformacão de «conduta pessoal».

Assim, como já mencionamos, a nocão de saúde entre osnterlocutores emerge de um modo significativamente ambi-alente. Por um lado, temos uma representacão de saúdeastante restrita e vinculada a classes de doencas que «afetam

corpo», repercutindo uma nocão «biologicista». Contudo, nãooi referenciada a nocão de «dependência de drogas» comodoenca mental», como muitas vezes é concebido o «abuso derogas» no campo da biomedicina. Em todos os relatos sobnálise, a nocão de dependência foi mencionada em apenasm fragmento e como um tema secundário, não incluído emma malha discursiva que o sujeito estivesse tecendo sobreaúde. Neste sentido, «saúde» é compreendida em uma outralasse de fenômenos que não se encontra diretamente com

nocão tão corrente e disseminada, institucionalmente daependência química como uma doenca.

A nocão de saúde entre os usuários de drogas instituciona-izados pode estar substancialmente desvinculada da práticae uso e assim às expensas do senso comum, que em geral

rata o uso de drogas – cuja institucionalizacão do usuário seria

rigor o caso limite de uma patologia – como um «problemae saúde». Portanto, embora em muitos sentidos influencia-os pelo paradigma biomédico, a abordagem que encontramos

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nos depoimentos, digamos espontaneamente, não mencionao uso de drogas como «doenca».

Drogas: nocões sobre

O outro quesito que consideramos central para compreendera lógica que podíamos encontrar nos depoimentos era asso-ciado às nocões sobre as drogas e que converteu-se na baliza:«Drogas: nocões sobre». Com esta categorizacão, descrevemoso que se chama em antropologia de «teorias nativas», emrelacão às drogas em geral e de um modo amplo, mas maisparticularmente relacionadas à experiência pessoal e a umavisão um pouco mais desprendida destas experiências; «sobrea sociedade» e «sobre as drogas na sociedade».

As nocões sobre drogas neste sentido se apresentam demodo polifônico e ambíguo. A nocão de droga enquanto«substância química» produz depoimentos condicionadospela institucionalizacão: efeitos, sensacões e prazeres são vin-culados à «fuga da realidade», ou a «engajamentos numa vidailusória». Concomitantemente, porém, referem-se à possibili-dade de ampliar a existência no mundo. De modo relevantee denso despontaram conteúdos acerca da droga comouma «aliada» importante na deflagracão e na manutencão da«doenca da dependência química». Revela-se novamente umatensão entre o uso de drogas como acesso ao prazer ou comomodo de estar e viver no mundo:

Ela dá um prazer muito forte, um prazer que euforia, umprazer de calmaria, um prazer as vezes como eu usava osexo ativa, a sexualidade ativa, é... (Philippe)

A droga te dá uns pontos de adrenalina muito forte, altos,mas quando desce é muito baixo. Temos que achar umequilíbrio. Então nós vamos ter que buscar novas formasde preencher nosso corpo [...] O que eu vou buscar, o quevai me dar prazer novamente? (Júnior)

Não sei o que dizer... todo mundo diz usa droga pra escaparda realidade, nunca usei droga por minha vida tá ruim, oupor eu tá triste, eu uso só pra quando eu tô bem, vou usarpra ter o a mais né, mais prá isso, não porque quero fugir daminha vida, não sei o que, isso não. Dá uma banda, queimarum beckzinho, aí cada coisa que tu vai usar tu sabe, eu seipelo menos qual o efeito que vai me dar. Por exemplo eu tôassim, ah, se eu fizer isso eu vou ter tal satisfacão de usartal coisa, eu vou ficar nesse estado, ou então não vou usarisso porque eu não vou ficar legal, vou ficar assim, dependedo dia, mais durante a noite nas festas, durante o dia omáximo fumar assim, mas a noite fuma, bebe também,bastante, mas é isso. (Joyce)

E a droga como fonte de dor, sofrimento e como modo dese associar de forma doentia com a vida e o mundo:

O fundo do poco é quando tu perde então a família, tu perdeteu trabalho, tu perde o domínio da tua vida e vive só pradroga [...]Ela não escolhe classe social, ela não escolhe cor,ela não escolhe nada, o final é igual pra todo mundo: vaimorar na rua, sem dinheiro, sem família, passando fome,

e por último a morte. O final da droga é isso. (Juliana)

A droga te tira a tua responsabilidade, tua dignidade, teucaráter, a tua fidelidade, ela te tira a tua moral, no geral, ela

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tira. Eu tive oficina, eu comecei trabalhar com onze anos deidade (Philippe)

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Apesar dos discursos terem expressado a articulacão entreas narrativas pessoais e os discursos institucionais, a perspec-tiva metodológica do projeto revelou ambiguidades e tensõesem torno desta articulacão. Ou seja, a localizacão instituci-onal dos sujeitos apresentou relevância densa nas reflexõese conclusões da investigacão. Percebemos a partir da análisedos conteúdos das falas que, se por um lado a entrevista defala aberta e sua posterior análise revelou discursos condici-onados pelas interpretacões hegemônicas, que reproduzeme difundem a dependência química no interior da nocão dedoenca moral, revelou também, por outro, que os conteúdosdos depoimentos traziam lógicas diferentes que resistiam aossignificantes institucionais.

Isto aponta para a necessidade de considerar sistemati-camente o conhecimento e a lógica dos próprios usuáriosdos servicos do ponto de vista da eficácia das terapêuticas edo ponto de vista do respeito e da valorizacão dos sujeitos.Estes, de fato, trazem e vivem as experiências, neste sentidoampliam e ao mesmo tempo enfocam o nosso olhar, bastantecondicionado acerca deste universo complexo que envolveo uso de drogas. Estas conclusões apontam também para anecessidade de explorar a forma e o conteúdo que os sujeitosse referem às próprias experiências, após «processamento»

pessoal e coletivo e, sobretudo, as possibilidades e mesmoos limites da investigacão qualitativa em contextos institu-cionais.

Em suma, o que parece ocorrer é que o discurso institucio-nal hegemônico tem como desdobramento uma ambiguidadena forma como os depoentes elaboram sua visão. Nestesentido sugere que a disseminacão sistemática das nocõespresentes no discurso institucional parece obrigar os depoen-tes a reelaborar artificialmente estas nocões, mas mantendono discurso subjacente uma perspectiva contrastante.

Implicacões analíticas e outrosdesdobramentos

Sobre aspectos empíricos preliminares

Do ponto de vista empírico, buscamos o discurso narrativosobre a experiência, que produz tanto a dialogia implícitana situacão de entrevista quanto o que chamamos de diá-logo a posteriori, quando na análise procuramos levantar oléxico recorrido e a articulacão semântica dos conteúdos rele-vantes sincrônica e diacronicamente. E mais, na busca decompreender o léxico a que recorre o entrevistado para cons-tituir suas referências e elaborar a fala, e na captura daconstituicão sincrônica da articulacão semântica que lhedá sentido e que associa sua experiência com as experiên-cias dos outros entrevistados, esperamos poder compreender

as vias de significacão e relevância recorrentes. Assim, pro-curamos ter acesso ao que se poderia chamar de fundamentosdos pontos de vista expressos na sua insercão no universo dasfalas.

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Como um princípio que podemos categorizar como político,procuramos implementar a conviccão de que a oportunidadeda dialogia proposta implica também no reconhecimento darelevância do saber organizado na fala. E espera-se: con-fere estatuto de conhecimento pertinente e relevante para aconstituicão da acão, seja ela o estabelecimento da abordagemanalítica, seja ela a adocão de medidas de intervencão, nestecaso, das políticas públicas, particularmente de saúde. Destaforma, partimos da hipótese de que, mesmo quando vivendoem condicões sociais adversas, estas pessoas elaboram e colo-cam em prática estratégias para fazer frente aos problemas desaúde, decorrentes de suas vivências de situacões sociais pro-blemáticas ou tensionadas, e presume-se que inclusive nãonecessariamente estejam em situacão precária de saúde oude «dependência».

Por outro lado, ainda na reflexão sobre a abordagemempírica, é importante observar que dividido entre chama-dos absenteístas e reducionistas, o campo dos estudos e daintervencão sobre o uso de drogas tem demonstrado estarcarente de reconhecer as dicotomias e complexidades queobstaculizam um tratamento epistemologicamente mais ade-quado. Neste sentido, parecem os esforcos classificatóriosainda por demais inspirados por esta dicotomia, que pareceservir emblematicamente para definir o «perfil da demanda».E que particularmente parece condicionar a concorrênciapelos bens materiais e simbólicos que condicionam o fluxodos recursos que viabilizam a busca de conhecimento.

Vargas propõe que é preciso passar da abordagem«epistemologicamente negativa» que considera compulsori-amente qualquer uso de drogas como problemático, para umaoutra, «positiva», no sentido de que é contraproducente par-tir de um ponto de vista que desqualifica a experiência douso de drogas. Repercutindo esta proposta, mas procurandodar um enfoque diverso do «epistemologicamente positivo»

ou «negativo», propomos um tratamento epistemologicamenteconsistente. A ideia desta abordagem implica em considerarambiguidades, tensões, dicotomias ou dualidades, adesões,rupturas, agenciamentos e outros aspectos associados – queem geral são tratados a partir de categorizacões padroniza-doras – mas ampliando o interesse pelas singularidades, pelaspluralidades, pelos processos, mas também pelas articulacõescircunstanciais, pela abordagem nativa da experiência, enfim,menos como geradora de «efeitos», mas sim desencadeadorade interlocucão legítima, relevante e produtiva.

Um dos aspectos que os dados empíricos indicaram foi aapropriacão nos relatos do que poderíamos chamar generi-camente de «caminho das drogas», para distinguir trajetóriasde vida nas quais as pessoas podiam fazer escolhas, daque-las em que a pessoa passa a engajar-se sem a possibilidadede escolha. No conteúdo das falas-narrativas encontramos deforma recorrente a ideia que usar drogas representa inserir-senuma trajetória crescentemente exclusiva e inescapável. Ouseja, que todas as vivências passam a ser condicionadas pelouso.

Implicacões teórico-metodológicas

Nas últimas décadas, é preciso reconhecer, vem se intensi-ficando o debate acerca do uso de técnicas qualitativas nocampo dos estudos sobre saúde no Brasil. Isto decorre da

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onstatacão por parte dos profissionais das áreas da saúde dansuficiência das técnicas quantitativas para desenvolver seusstudos. Esta constatacão se desdobra particularmente deituacões que envolvem buscar padrões constituídos de formaais complexa e que são efetivamente formadoras de atitude

m relacão à saúde. Por outro lado, também porque passa-am a encarar a interlocucão aberta com o(a)s pesquisado(a)s

ais produtiva em termos de considerar a singularidade dasxperiências investigadas, como também a pluralidade deituacões e condicionamentos que influenciam estas expe-iências. Decorre também da problemática da qualidade dasnterlocucões entre profissionais e pacientes que se estabele-em em situacões clínicas4.

Neste sentido, tem se ampliado o interesse de cursose enfermagem e medicina, particularmente em incluir ouxpandir a insercão de disciplinas como a antropologia eociologia em seus currículos. Ainda que se possa perceberestes cursos uma influência densa do critério – que pode seristo como fragmentador – de separar conteúdos chamadosbásicos», dos conteúdos chamados «clínicos» e de «exilar» antropologia e a sociologia para as primeiras fases dos cursos,

perspectiva é que não tão tardiamente teremos que alunos alunas destes cursos abordando questões profissionais, emases mais adiantadas, sintam que a utilizacão de perspectivasntropológicas e sociológicas pode ser de grande valia.

O que parece cada vez mais evidente é que os estudantes erofissionais dos cursos da área de saúde, ao se depararem emuas atuacões clínicas com problemas que o modelo biomé-ico não dá conta, particularmente relativas à implantacão doUSb, têm sentido a necessidade e demandado o auxílioe cientistas sociais na conducão e na reflexão sobre estasituacões.

Repercutindo a contribuicão que o modo de produzironhecimento em antropologia pode proporcionar para arática de profissionais de saúde, apresentamos a seguir as

mplicacões dos desdobramentos da aplicacão de técnicas deesquisa no sentido de superar omissão ou negligência, emelacão a aspectos e tensões oriundos de uma abordagem uni-ateral e fragmentada, que tem sido amplamente constatadaor pesquisadores e usuários do sistema de saúde. E que, aosso ver, despreza um importante elemento das interacões:

conhecimento produzido pelos próprios usuários dos siste-as de saúde em geral sobre suas próprias experiências:

1 A importância da construcão de modelos analíticos e meto-dológicos capazes de subsidiar as abordagens da articulacãocomplexa existente entre discursos institucionais (que con-dicionam as narrativas) e narrativas pessoais que refletemlógicas próprias ou referentes às situacões vividas emsituacões especificas, que não se alinham com os condi-cionantes e conteúdos dos discursos institucionais;

A importância de uma reflexão metodológica que levante o

aspecto das suas próprias implicacões para a constituicãode modelos teóricos construídos nas análises dos dados. Deforma correlata, a exposicão reflexiva da metodologia de

b O sistema único de saúde (SUS) foi criado pela Constituicãoederal de 1988, no Brasil, e regulamentado pela Lei n.◦ 8.080, de9 de setembro de 1990.

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uma forma que não se reduza a um modelo de um «meio»

para atingir um «fim», o que de fato proporciona e induz àaplicacão de modelos mecanicistas para proceder metodo-logicamente;

3 A importância de analisar do ponto de vista ético e polí-tico, e particularmente autorreflexivo, as implicacões dosprocedimentos metodológicos que definem os rumos e osvieses das próprias abordagens teóricas, para além dos pro-cedimentos tradicionais de apuracão de evidência e prova.Enfim, refletir sobre situacões e circunstâncias que condici-onam a realizacão de pesquisa sempre são relevantes paraestabelecer a autorreflexividade, condicão para um bomacompanhamento da dinâmica das situacões complexasque vivemos.

Consideracões finais: sobre ética, política, teoriae metodologia

Se implicacões e desdobramentos teóricos se articulam comimplicacões e desdobramentos metodológicos, implicacõese desdobramentos éticos se articulam com as implicacões edesdobramentos políticos. Rigorosa e epistemologicamentefalando, as 4 dimensões só podem ser separadas para orga-nizar heuristicamente a reflexão.

Em relacão ao aspecto ético, é preciso lembrar que as ques-tões e tensões em relacão às exigências formais dos comitêsde ética quanto ao desenvolvimento de projetos de pesquisa jáé há algum tempo objeto de reflexão na antropologia (ver porexemplo Maluf, Langdon e Torquinst5). Estes procedimentostêm sido geralmente inspirados pelos cuidados com «direitos edeveres» dos pesquisadores, particularmente em relacão àspessoas que participam como «informantes» de projetos depesquisa.

Temos discutido que é fundamental o pesquisador consi-derar elaborar um estatuto de sua pesquisa. Este estatuto sedesdobra tanto em quesitos epistemológicos quanto sociais.Estes implicam em pensar um projeto como sendo constituídopor, e ao mesmo tempo constituindo, relacões sociais particu-lares. Neste sentido, também temos levantado a importânciade pensar os instrumentos de pesquisa em antropologia como«artefatos e artifícios sociais e relacionais» (Groisman6).

Na pesquisa desenvolvida procuramos problematizar oprocedimento empírico quase «clássico» que toma o cha-mado «informante» quase como uma fonte inerte e passiva dedados. Este aspecto vem sendo relativizado por perspectivasque se desdobraram na nocão de simetrizacão, conforme refle-xão desenvolvida por Goldman7. Nesta perspectiva simetrizanteé preciso implementar uma atitude com a qual os chama-dos «informantes» passam a ser considerados efetivamentesujeitos da pesquisa. E, se considerarmos a repercussão destaconduta nas relacões estabelecidas em campo, a interacãoentre os chamados pesquisador e pesquisado tendem a ter ocaráter de interlocucão, quanto se pode de fato dissolver estespapéis, constituindo agentes e agenciamentos de pesquisa.Desta forma, a situacão empírica se constitui no campo.

Desta forma, incorporamos as contribuicões de corren-

tes contemporâneas da antropologia, como o argumentode Roberto Cardoso de Oliveira a favor da pesquisa decampo como «interlocucão», da antropologia simétrica de BrunoLatour8, que procura desfazer as reverberacões deletérias de
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uma ciência que separa natureza e cultura, e do perspecti-vismo, como proposto por Eduardo Viveiros de Castro9, quetem como procedimento fundamental levantar os conceitos,as interrogacões e os problemas que os chamados nativosexpressam e colocam, e ainda, inspirados pela nocão desimetrizacão de Márcio Goldman.

Outro aspecto central de nossas preocupacões éticas foiter de lidar com a problemática de trabalhar com «usuáriosde drogas», pessoas além de estigmatizadas também sujeitasa iniciativas de criminalizacão. Este foi um elemento de ten-são tanto na preparacão do protocolo de pesquisa quando nodesenvolvimento da coleta de dados. Tínhamos como prin-cípio e preocupacão evitar situacões que pudessem ameacara integridade dos sujeitos da pesquisa, além de comuni-car esta preocupacão através dos instrumentos éticos. Nestesentido, criamos a figura do anonimato qualificado, que foicomo chamamos ao procedimento que consiste em apresen-tar analiticamente os sujeitos de pesquisa sem mencionarreferências, mesmo que indiretas, que pudessem possibilitarsua identificacão. Assim, garantimos o anonimato e o qua-lificamos suprimindo dados que pudessem levar terceiros alocalizar por informacões indiretas quem eram as pessoasenvolvidas na coleta de dados.

Consideramos que a aplicacão da técnica da entrevista defala aberta como a concebemos pode ser um instrumento nabusca de constituir um conhecimento sobre a experiência douso de drogas. De certa forma «militante», através do pro-jeto que abordamos neste trabalho, procuramos explorar aideia de que as interrogacões e as reverberacões analíticasmais relevantes da coleta de dados emergiam das falas abertasde nossos entrevistados. Ou seja, os agentes constituintes dacoleta (o que chamamos por convencão entrevistadores) tinhamcomo tarefa apenas provocar (do latim pro-vocare – instigar àverbalizacão) a fala dos agentes reconstituintes (convencio-nalmente, entrevistados). Consideramos fundamental que parafavorecer a interlocucão precisaríamos «dar voz ativa» aosentrevistados para a constituicão do acervo a ser analisado.No lugar da clássica prescricão de que o pesquisador elaborauma agenda de interrogacões e a coloca em atividade no campo,procuramos priorizar a agenda de interrogacões do pesquisado.

Em suma, este artigo procurou sistematizar uma refle-xão sobre a aplicacão da técnica de pesquisa qualitativa quechamamos de entrevista de fala aberta, particularmente consi-

derando as implicacões e questões levantadas pela pesquisacom usuários de drogas, que em geral é condicionada porpreocupacões e interrogacões a priori. Assim, foi de fundamen-tal importância deslocar a agenda de investigacão do registro

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do pesquisador para o registro do pesquisado, abrindo assima possibilidade de constituir uma abordagem que se aproxi-masse muito mais do contexto semântico e da percepcão dasexperiências que os próprios sujeitos de pesquisa expressa-ram. Esta foi uma estratégia que possibilitou inscrever as falasdos sujeitos e as categorias utilizadas, nos próprios termos dapercepcão que estes sujeitos construíram sobre suas experi-ências. Somente ao se constituir uma compreensão consis-tente dos significados transmitidos foi possível estabeleceruma interlocucão ativa e produtiva, e assim, proporcionar umaaproximacão semântica mais consequente, que pudesse fazerda pesquisa um registro e uma abordagem efetivamente dia-lógica, tão importante contemporaneamente para a pesquisaem ciências humanas.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

e f e r ê n c i a s b i b l i o g r á f i c a s

. Oliveira RC. O trabalho do antropólogo. São Paulo: Unesp;1998.

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. Groisman A. Interlocucões e interlocutores no campo dasaúde: consideracões sobre nocões, prescricões e estatutos.Antrop Prim Mão. 2007;93:1–11.

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. Goldman M. Os tambores do antropólogo: antropologia

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. Latour B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologiasimétrica. Rio de Janeiro: Editora 34; 1994.

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