pesquisa e ps-graduao em filosofia no brasil anpof 2015

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  • Pesquisa e Ps-Graduaoem Filosofia no Brasil

    Debates ANPOF de Polticas Acadmicas

    OrganizadoresIvan DominguesMarcelo Carvalho

    ANPOFSo Paulo

  • Diretoria 2015-2016Marcelo Carvalho (Unifesp)Adriano N. Brito (UNISINOS)Alberto Ribeiro Gonalves de Barros (USP)Antnio Carlos dos Santos (UFS)Andr da Silva Porto (UFG)Ernani Pinheiro Chaves (UFPA)Maria Isabel de Magalhes Papa-Terra Limongi (UPFR)Marcelo Pimenta Marques (UFMG)Edgar da Rocha Marques (UERJ)Lia Levy (UFRGS)

    Apoio EditoralMaria Zlia Firmino de SFernando Lopes de AquinoDaniela Gonalves

    P438 Pesquisaeps-graduaoemfilosofianoBrasil:debatesANPOFde

    polticas acadmicas / Organizao de Ivan Domingues, MarceloCarvalho.SoPaulo:ANPOF,2015.173p.

    BibliografiaISBN978-85-88072-17-6

    1.Filosofia-Brasil2.Filosofia-Ps-graduao-Brasil3.Filosofia-Pesquisa-BrasilI.Domingues,IvanII.Carvalho, Marcelo

    CDD100

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Anpof - Associao nacional de ps-graduao em filosofia

  • Apresentao

    Marcelo Carvalho

    Durante o XVI Encontro Nacional da ANPOF, realizado em ou-tubrode2014nacidadedeCamposdoJordo,SoPaulo,realizou-seuma srie de conferncias e debates sob o ttulo Seminrios de Polti-ca Acadmica. A proposta, efetivada atravs do esforo do Professor Ivan Domingues, parte da constatao da enorme importncia naquele momento de se consolidar uma pauta de debates sobre a ps-gradua-oeapesquisaemfilosofia,particularmentepelocontextodeexpan-so e mudana pela qual ela tem passado. Esse Seminrio, no qual tem origem a presente publicao, se estruturava a partir dos quatro temas bsicosquedefiniamcadaumadasmesasdedebate:

    DesafiosdaExpanso,ConsolidaoeInternacionalizaodaPs-Graduao/PesquisaBrasileiraemFilosofia;

    SituaoeTendnciasdasPublicaesnareadeFilosofia;PerfiseModelosdePesquisa/EnsinoemFilosofia; Gesto e Avaliao da Ps-Graduao Brasileira.O quadro desenhado por a partir das vrias conferncias e de-

    batesnosconfrontoucomadimensododesafioquesecolocaatual-menteconstruodaps-graduaoemfilosofianoBrasil.Apubli-cao das contribuies que ali se apresentaram, em verso revisada pelos autores, tem por objetivo ampliar a circulao e os efeitos das propostas e avaliaes que foram debatidas durante o Encontro e exercerdemaneiramaisamplaseupapeldefomentoaoamadureci-mentodeposiessobreaps-graduaoeapesquisaemfilosofiae,sobretudo,sobreasdificuldadesepossibilidadesaseremconsidera-das em sua avaliao.

    Trata-se tambm de uma oportunidade de registrarmos a plura-lidade de perspectivas e de abordagens que permeia o debate sobre a

  • 6Marcelo Carvalho

    pesquisa e a formao de pesquisadores na rea. Estimular e dar visi-bilidade a este debate e s vrias posies que se apresentem sobre os temas propostos um papel central da ANPOF, que passa a ser efeti-vado tambm por meio de publicaes como esta.

  • Sumrio

    Ns, os Guaranis, e a Avaliao da CapesAdriano Brito 9

    Algumas reflexes sobre a interdisciplinaridade na Filosofia brasileira

    Alfredo Storck 31 Expandir, consolidar, internacionalizar: desafios Filosofia no Brasil

    Antnio Carlos dos Santos 47 Filosofia e Antropofagia

    Maria Isabel Limongi 63 O Taylorismo Acadmico e a Filosofia no Brasil: Situao e Tendncias das Publicaes

    Ivan Domingues 69

    Notas a Lpis sobre a Pesquisa em Filosofia no BrasilMarcelo Carvalho 103

    Uma Defesa do Livro como Meio Privilegiado do Ensaio Filosfico

    Marco Zingano 121 Reciprocidade, Simetria, Reconhecimento: Estratgias e Problemas da Internacionalizao da Ps-Graduao em Filosofia

    Nythamar de Oliveira 133

    O crescimento da Ps-Graduao em Filosofia no BrasilDados e anlises sobre o perodo 1971 - 2015

    Marcelo Carvalho Daniela Gonalves 147

  • Ns, os Guaranis, e a Avaliao da Capes

    Adriano Naves de Brito*Unisinos

    Quando, na diretoria da Anpof, comeamos a discutir a estru-tura do XVI Encontro, assumimos de imediato a ideia acalentada pelo presidente, Marcelo de Carvalho, de colocar em destaque na progra-mao uma srie de mesas sobre temas candentes de poltica acad-mica. No conjunto das quatro mesas propostas, e que foram organiza-das por Ivan Domingues, esta para a qual agradeo muito que ele me tenha convidado, trata da Gesto e da Avaliao da Ps-Graduao. Considerando que nunca fui parte de qualquer comisso de avaliao da Capes, posso contribuir com a experincia de quase dez anos que acumulei como coordenador de dois programas, o da Universidade Federal de Gois e o da Unisinos, e como membro da alta administra-o acadmica tambm nas duas instituies. Falo ento da perspec-tiva de quem, na condio de gestor, atendeu s demandas da avalia-o, serviu-se dela para orientar suas aes na administrao daqueles programas e instituies, participou, durante as gestes de Oswaldo Giacia, Marcelo Perine e Danilo Marcondes, das discusses sobre po-ltica, instrumentos e dificuldades da avaliao no colegiado dos coor-denadores da Filosofia, e, finalmente, graas ao convite para participar desta mesa, debruou-se sobre documentos oficiais da Capes e textos

    * Professor titular de Filosofia e Decano da Escola de Humanidades da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Foi professor adjunto da Universidade Federal de Gois (UFG) Entre 1994 e 2003. Doutorado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, estudou, no mbito do doutorado, na Universidade de Bielefeld, Alemanha, pas em que tambm cum-priu estgio ps-doutoral na Universidade de Tbingen. Coordenou o PPG em Filosofia da UFG entre 2001-2003 e o da Unisinos entre 2007 e 2012. Presidiu, da sua fundao em 2008 e at 2012, a Sociedade Brasileira de Filosofia Analtica-SBFA. Secretrio geral da Anpof na gesto 2013-14 e na atual 2014-2015. Entre 2013 e 2014 foi professor visitante no Instituto de Filosofia da Escola de Estudo Avanado da Universidade de Londres.

    Domingues, I.; Carvalho, M. Pesquisa e Ps-Graduao em Filosofia no Brasil - Debates ANPOF de Polticas Acadmicas. ANPOF, p. 9-30, 2015.

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    Adriano Naves de Brito

    de colegas. Face experincia que acabo de declarar, falarei desde a perspectiva da Filosofia, embora nossa rea compreenda tambm a Teo logia. Reconheo, pois, desde j, que as descries que fao tm o vis da Filosofia, mas espero que, no obstante isso, as reflexes que fao sirvam tambm ao debate dos colegas da Teologia e sejam, pois, teis a toda a rea.

    Uma certa rebeldia

    A Filosofia tem um histrico de certa rebeldia com o tema da ava-liao feita pela Capes. H entre ns uma insatisfao com a submisso de nossos escritos a qualquer medida indiferente subjetividade de cada autor, com a padronizao de nossas atividades para se chegar ao ranqueamento, ou com a aritmtica crua dos pontos distribudos base de ndices que conhecemos mal. Essa rebeldia no nasceu sem justificativa, est claro, mas tampouco tem sido cultivada friamente. Em 2013, quando participava de um painel por ocasio do XVII Con-gresso da Sociedade Interamericana de Filosofia (SIF), realizado em Salvador, Bahia, entre 7 e 11 de outubro de 2013 e intitulado Filosofia no Brasil Perspectivas no Ensino, na Pesquisa e na Vida Pblica, Marilena Chau, cuja importncia na histria da filosofia brasileira e eloquncia no podem ser subestimadas, deu mais um testemunho veemente des-sa insatisfao que todos, em alguma medida, reconhecemos. Ao final de seu texto, verso escrita do discurso ento proferido e publicado na revista Kriterion, ela nos conclamou seguinte atitude face avaliao:

    Proponho que faamos como os Guaranis: as agncias falam, os reitores falam e a gente no escuta. E continua fazendo aquilo que tem que fazer e gosta de fazer. Ou ns podemos tomar uma atitude como La Botie contra a servido voluntria: eles que-rem que a gente faa isso, no faremos. O que faro eles? Cairo. (Marilena Chau, Kriterion, Belo Horizonte, n 129, Jun./2014, p. 431-438. p. 438)

    Ela se referia estratgia guarani para, segundo ela, evitar a transcendncia do poder, e consistia em ouvir ao entardecer o dis-curso de autoridade do chefe e no dar ouvidos a ele, seguindo com a realizao das tarefas como se ele no estivesse ali a contar de suas

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    Ns, os Guaranis, e a Avaliao da Capes

    virtudes de governante, negando-lhe admirao e, por conseguinte, poder. Tratar-se-ia, ento, de uma atitude para manter o poder entre-meado ao grupo e no acima dele. Na esteira dessa crtica ao poder transcendente, Marilena traz, ento, La Botie e nos incita rebeldia contra um poder, descolado da comunidade filosfica, que avalia, clas-sifica e determina valores. No difcil nossa comunidade filosfica se identificar com o discurso de Marilena e, em virtude disso, este o primeiro ponto do qual gostaria de partir neste texto: o reconhecimen-to do nosso mal-estar com sistemas de avaliao em geral e com o da Capes em particular.

    O segundo ponto a expectativa da prpria agncia com o proces-so de avaliao que, por atribuio legal, deu incio na dcada de oitenta. Levar em considerao o que espera a agncia fundamental no ape-nas por uma razo negativa, a de que a avaliao nos inevitvel, mas tambm por razes positivas. Uma delas que, a despeito de suas in-meras deficincias, a avaliao tem sido muito bem sucedida em fortale-cer a ps-graduao no pas. Para um sistema que somava, em 1965, 27 cursos de mestrado e 11 de doutorado, num total de 38, e que hoje, pas-sados cinquenta anos, conta, segundo dados do portal GeoCapes (http://geocapes.capes.gov.br), com 1750 programas com esses dois nveis de formao, 1213 com mestrado apenas e 54 s com doutorado, alm de 469 mestrados profissionais, a capacidade de, mediante um sistema da avaliao, medir e calibrar a qualidade do todo foi e fundamental. Uma outra razo positiva para levar em conta o que a Capes prope que as suas diretrizes para a ps-graduao no so formuladas sem a parti-cipao intestina da academia. H, ento, na formulao das expectati-vas da agncia, a expresso das expectativas de nossos pares em outras reas e as da Filosofia tambm. Claro que o que prope a Capes pode ser questionado, mas preciso compreender o que ela prope, entender como estamos includos no processo e aceitar participar do debate sobre os seus mecanismos com a boa vontade daqueles que, ao fazerem isso, usaram o sistema de avaliao como um instrumento de melhoria da qualidade da ps-graduao brasileira.

    O foco da discusso que estamos fazendo est no futuro e, por-tanto, o Plano Nacional de Ps-Graduao (PNPG 2001-2020) me pa-rece um documento-chave para conhecer as expectativas da Capes e

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    Adriano Naves de Brito

    nos ajudar a entender a direo que vai tomar a avaliao nos prxi-mo decnio. O Plano est organizado em cinco eixos, conforme lemos em sua introduo:

    1. a expanso do Sistema Nacional de Ps-Graduao (SNPG), a primazia da qualidade, a quebra da endogenia e a ateno reduo das assimetrias; 2 a criao de uma nova agenda nacional de pesquisa e sua associao com a ps-graduao; 3 o aperfeioamento da avaliao e sua expanso para ou-tros segmentos do sistema de C,T&I; 4 a multi- e a inter-disciplinaridade entre as principais caractersticas da ps--graduao e importantes temas da pesquisa; 5 o apoio educao bsica e a outros nveis e modalidades de ensino, especialmente o ensino mdio. (Plano Nacional de Ps-Gra-duao 2001-2020. Capes, p. 15)

    Em resumo, o Plano Nacional de Ps-Graduao (PNPG 2011-2020) visa, na prxima dcada, aprofundar a internacionalizao, re-duzir as assimetrias regionais, ampliar a formao de recursos huma-nos, incentivar a interdisciplinaridade e contribuir com a qualidade da educao bsica. So objetivos com os quais nos identificamos com facilidade, pois tm sido os eixos de nossas preocupaes e das aes da Anpof. Em maior ou menor medida, foram esses os objetivos que a rea perseguiu quando tratou de incentivar a expanso da ps-gra-duao em todas as regies do pas, quando a Anpof abriu-se para a discusso do ensino da Filosofia no nvel mdio, ou quando nos preo-cupamos com as repercusses internacionais de nosso trabalho.

    Temos, ento, dois pontos de partida. Nosso mal-estar e as expec-tativas da Capes, ambos partilhados, em linhas gerais, por todos ns. Agora, eu gostaria de ir adiante e somar a isso uma pitada da histria da consolidao da Filosofia no Brasil. Creio que sem essa dimenso histrica no teremos todos os ingredientes necessrios para pensar o tema da gesto e da avaliao da ps-graduao em Filosofia, com o qual estamos nos havendo aqui. Sem a dimenso histrica que ainda quero agregar, poderamos lidar com o tema de um modo artificial e deslocado de nossa identidade; um erro que, se replicado na avaliao, s levaria a um estranhamento ainda maior da rea face a ela.

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    Ns, os Guaranis, e a Avaliao da Capes

    Diversidade filosfica e o nibus de Diamantina

    Contam, os que l estiveram, que no primeiro encontro da An-pof, no qual a entidade nasceu na prtica, e que foi realizado na cidade de Diamantina, em 1984, a Filosofia brasileira cabia em um nibus. A bem da verdade, corrigiram-me outros, cabia em dois. Seja como for, aquele grupo de filsofos no seria suficiente para encher a maioria das salas nas quais as quase duas mil apresentaes de trabalhos esto sendo feitas neste XVI Encontro da Anpof. E isso, meros trinta anos de-pois! No entanto, a diversidade daquele pequeno grupo era j suficien-te para abrigar cises. Divergncias que buscaram, no sem sabedoria, generosidade e diversidade ainda maior, conciliaes. Sobre a histria desse processo recente de acomodao da diversidade filosfica bra-sileira, Guido de Almeida, tambm num texto lido naquele mesmo evento e painel no qual Marilena nos incitava rebeldia, expressa-se com a preciso e a equidade de quem acompanhou, e no apenas como expectador, o processo do comeo ao fim. Diz ele:

    O tempo mostrou, pois, que o conflito entre os scholars, voltados para os problemas clssicos da Filosofia, e os filsofos engaja-dos na discusso de problemas da sociedade e da cultura con-tempornea, podia ser resolvido de maneira satisfatria para os dois lados. (Guido de Almeida, Kriterion, Belo Horizonte, n 129, Jun./2014, p. 411-415. p. 412)

    A diversidade que ocupava os nibus de Diamantina no parou de crescer desde aquele inverno nas montanhas das Minas Gerais. A comear pelos Programas de Ps-Graduao em Filosofia, que soma-vam pouco mais do que os dedos de uma mo, e que hoje contam 43 e crescendo, at a multiplicao de abordagens filosficas que de modo algum seriam classificveis em algum dos dois grupos mencionados por Guido. Esses dados pem em relevo que a diversidade crescente constitui o desafio mais srio e instigante ao processo de avaliao da Filosofia. Somos muitos e somos muito diferentes. E isso est bem as-sim como est! Quer dizer, cabemos todos, no fim das contas, no ni-bus da filosofia brasileira que partiu at muito antes de Diamantina, e no qual, contudo, temos nos mantido alheios ao que nos contam nos-sos vizinhos de viagem. Esse ponto, nossa peculiar dificuldade para o debate, como frisa Vinicius de Figueiredo nesse volume da Kriterion

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    Adriano Naves de Brito

    que ainda vou citar outras vezes, tem histria mais longa e dela nos fala Paulo Margutti, tambm na mesma revista. Diz ele:

    O debate proposto poderia tambm contribuir para o trmino da ciso culturalmente esquizofrnica que tem marcado a comu-nidade filosfica brasileira por mais de meio sculo e a partir da qual os pesquisadores da rea de Filosofia se dividem em pelo menos trs grupos que funcionam como vasos no comu-nicantes: os que fazem exegese de autores estrangeiros, os que fazem exegese de autores luso-brasileiros e os que tentam elabo-rar propostas independentes. De certo modo, todos se ignoram solenemente, contribuindo para fazer do pas uma autntica co-munidade de desconversao. (Paulo Margutti, Kriterion, Belo Horizonte, n 129, Jun./2014, p. 397-410. p. 409-410)

    Com isso temos os quatro elementos que, segundo vejo, devem pautar a discusso do tema proposto para esta mesa. So eles: uma cer-ta rebeldia de nossa parte face s avaliaes, as expectativas da Capes, a diversidade que nos caracteriza e nossa dificuldade de debater Filo-sofia a partir de e entre ns mesmos. A gesto da ps-graduao em Filosofia, mas tambm qualquer processo que a venha avaliar, deveria se haver com esses elementos e dar conta deles, pois eles esto na con-fluncia do que somos e do que almejamos ser, um hiato que aqueles processos nos devem ajudar a conectar.

    Os outros e ns

    Os pontos aos quais aludi acima podem se conectar de modo virtuoso ou vicioso para a Filosofia brasileira. Se nossa desconfiana face aos processos de avaliao em geral e ao da Capes em particular nos levar a discutir mais os meandros desses processos de sorte que possamos influenci-los, na medida do que nos est ao alcance, e faz--los mais alinhados nossa histria e capazes de acomodar nossa di-versidade, ento teremos um conexo virtuosa e que favorecer a rea. Se, contudo, a conexo resultar num n, no qual no discutimos os processos de avaliao, desprezamos o compreenso de seus mecanis-mos, isolamo-nos das demais reas no conforto frgil de nossa histria

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    Ns, os Guaranis, e a Avaliao da Capes

    e nos deixamos fragmentar nas especificidades que compem a nossa rica diversidade filosfica, ento estaremos infligindo a ns mesmos os malefcios dos vcios cultivados.

    O retrato da rea hoje no reflete plenamente nem um nem outro cenrio, mas pende para o vicioso. O diagnstico coincide com a anli-se, j mencionada acima, que Vinicius de Figueiredo fez em seu artigo publicado no volume da Kriterion e com cujos textos tenho dialogado aqui. Diz ele, a meu ver, fazendo justia aos fatos:

    Lemo-nos pouco, debatemos pouco uns com os outros O que, ento, faz falta Filosofia o Brasil no avaliao, formulao de polticas indutoras, apoio a novos programas etc. Isso j temos, e, por mais que seja sempre matria de crtica, correo e inovao, no pouca coisa. Mas, afora excees de praxe, a ampliao do sistema de ps-graduao ainda no produziu o correspondente debate de ideias. (Vinicius de Figueiredo, Kriterion, Belo Hori-zonte, n 129, Jun./2014, p. 417-423. p. 421 e 422)

    Esse n precisa ser desatado em favor da Filosofia. Vinicius se refere em sua contribuio quela discusso sobretudo ao debate de textos filosficos, mas a concluso se aplica, como ele prprio aponta em outros momentos, para a falta de debate sobre polticas acadmi-cas em geral. O resultado que, no tocante avaliao, ns a tomamos como algo quase externo rea, enquanto ela est longe de nos obrigar a tom-la desse modo. Um olhar sobre como outras reas avaliam e ten-tam qualificar a gesto das suas respectivas ps-graduaes pode nos ajudar a por em perspectiva o modo como temos feito a nossa avaliao e a entender melhor o funcionamento do processo, de sorte que tenha-mos mais e melhores subsdios para aprofundarmos o nosso debate.

    Trago trs exemplos no aleatrios e muito diversos entre si. In-sisto, a ideia iluminar a nossa prpria maneira de fazer as coisas e no apresentar modelos que devamos copiar. A diferena entre as re-as que escolhi e a nossa se presta justamente a dificultar uma apropria-o fcil do que fazem e, com isso, a crtica apressada de que a Filosofia singular. Sim, temos as nossas peculiaridades, nossa histria e nossa identidade e, para pens-las luz de um processo de avaliao e luz da demanda por uma melhor gesto de nossa ps-graduao, til ver como outras reas operam a partir de suas prprias especificidades.

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    Adriano Naves de Brito

    O primeiro exemplo que trago vem da rea da Astrofsica & Fsi-ca, daqui para frente A&F, e que conta entre uma das mais tradicionais na pesquisa brasileira. A despeito das dificuldades que possamos ter para nos identificar com o tipo de trabalho que feito pelos fsicos e astrofsicos, sobretudo o trabalho experimental, o exemplo mostra como uma rea que contm tambm muita diversidade, mas mui-to parametrizada, institucionalizada e internacionalizada, se apropria dos mecanismos que tem mo com a avaliao da Capes para orien-tar a gesto da ps-graduao e da produo cientfica na busca por excelncia e relevncia social e cientfica. O documento de rea da A&F diz o seguinte em suas recomendaes:

    Diversos indicadores mostram que a rea tem um bom perfil de qualidade acadmica. No entanto, alguns aspectos devem ainda ser considerados para maior excelncia. Um o relativamente baixo nmero de pesquisadores experimentais. Outro o perfil excessivamente acadmico dos ps-graduandos, em contraponto a uma formao com perfil inovador e que possa atuar junto a empresas ou at mesmo abrir suas prprias empresas (startups). Espera-se que [se] desenvolva uma cultura que valorize a proprie-dade intelectual e que leve a um conhecimento maior da literatura tecnolgica (patentes) que so um aspectos de grande deficincia nas teses e dissertaes da rea. (Documento da rea de Astrofsi-ca & Fsica, 2013. p. 10)

    As recomendaes partem do reconhecimento da qualidade da tradio terica da fsica brasileira e indicam rumos com olhos no que se passa no conjunto da rea no mundo, mas tambm com olhos volta-dos ao desenvolvimento do pas. Como afirma o documento em outra parte, nos ltimos 20 anos, 70% dos agraciados com o Prmio Nobel de Fsica receberam a premiao em virtude de trabalhos experimentais e decorre destes trabalhos a produo de patentes e a inovao tec-nolgica. No se trata, pois, de atender a uma demanda externa, mas de assumir-se como sujeito de transformao da cincia e do mundo daqueles que financiam o trabalho em cincia.

    O documento fala em diversos indicadores para justificar a qualidade acadmica e notrio que esta uma das reas mais orien-tadas por parmetros quantitativos, tendo servido, no raro, como

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    Ns, os Guaranis, e a Avaliao da Capes

    modelo para o prprio sistema de avaliao da Capes. No obstante isso, interessante notar que no tocante atribuio das nota 6 e 7, o documento no aponta nenhum indicador quantitativo.

    Para a atribuio de notas 6 e 7 sero usados os seguintes indi-cadores:

    Nvel de qualificao, de produo e de desempenho equiva-lente aos dos centros internacionais de excelncia na formao de re-cursos humanos.

    Consolidao e liderana nacional do Programa como forma-dor de recursos humanos para pesquisa e ps-graduao.

    Insero e impacto regional e nacional do Programa; inte-grao e solidariedade com outros Programas com vistas ao desenvolvimento da pesquisa e ps-graduao e visibilida-de ou transparncia dada a sua atuao.

    Insero Internacional; integrao com centros internacionais.(Documento da rea da Astrofsica & Fsica, 2013, p. 75)

    Como no h nmeros ou ndices a alcanar, os indicadores esto, na prtica, lastreados em uma avaliao qualitativa que tem de ser feita pela comisso responsvel. A rea, ainda que muito parame-trizada, encontrou, portanto, um espao para a avaliao qualitativa e justamente l onde a deciso mais o exigia, a saber, a eleio de seus mais qualificados programas. Como sabido, esta eleio feita sobre o conjunto dos programas que receberam a nota 5 na primeira rodada de avaliao e que so considerados de excelncia1. Para essa primeira 1 H uma formulao, que imagino seja padro para a Capes, pois aparece em vrios do-

    cumentos de rea, para a qualificao dos programas 6 e 7. A esta formulao a rea pode acrescentar seus prprios indicadores, assim como fez a A&F. Essa formulao a seguinte: As notas 6 e 7 so reservadas exclusivamente para os programas com dou-torado que obtiveram nota 5 e conceito Muito Bom em todos [sic] os quesitos (Pro-posta do Programa; Corpo Docente, Teses e Dissertaes; Produo Intelectual e In-sero Social) da ficha de avaliao e que atendam, necessariamente, a trs condies: Nota 6: predomnio do conceito Muito Bom nos itens de todos os quesitos da ficha de avaliao, mesmo com eventual conceito Bom em alguns itens [sic]; nvel de desempenho (formao de doutores e produo intelectual) diferenciado em relao aos demais progra-mas da rea; e desempenho equivalente ao dos centros internacionais de excelncia na rea (internacionalizao e liderana).

    Nota 7: conceito Muito Bom em todos os itens de todos os quesitos da ficha de avaliao; nvel de desempenho (formao de doutores e produo intelectual) altamente diferenciado em relao aos demais programas da rea; e desempenho equivalente ao dos centros inter-nacionais de excelncia na rea (internacionalizao e liderana). (Os colchetes so meus e apontam uma inconsistncia nessa formulao.)

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    Adriano Naves de Brito

    etapa, dados quantitativos so primordiais para a rea. A segunda ro-dada, no caso da A&F, uma tarefa que leva em conta indicadores de qualidade para os quais indispensvel a interveno dos avaliadores. A disjuno exclusiva entre avaliao quantitativa e qualitativa no , pois, um destino na avaliao da Capes. H espao para acomodaes que respeitem as especificidades das reas.

    O meu segundo exemplo vem das Cincias Polticas e Relaes Internacionais, daqui para frente CP&RI. Com 50 programas e perten-cendo ao campo das humanidades, esta rea oferece um contrapon-to interessante Filosofia, mas tambm Fsica, no tocante ao uso de parmetros quantitativos. O documento da rea um testemunho da importncia que a rea d quantificao de resultados e aos ndices disponveis, fazendo vasto uso de tabelas e ranqueamentos. A ttulo de exemplo, um dos indicadores de progresso da rea a sua posio no ranking de citaes do SCImago, como se pode ver na citao abaixo:

    A posio da rea de Cincia Poltica e Relaes Internacionais no Ranking de citaes do SCImago passou do 38 lugar, em 2004, para a 12 posio no mundo, em 2010. At 2004, estava atrs de Argentina, Chile e Mxico em publicaes indexadas na AL. Desde 2008, o Brasil consolidou uma posio de liderana na CP & RI da Amrica Latina. (Documento de rea das Cincias Polticas, 2013. p. 3)

    O SCImago um portal que classifica peridicos quanto sua visibilidade com base num algoritmo desenvolvido pela Google para classificar pginas de internet. Seu domnio de classificao a base de dados da Scopus2. A Scopus, por sua vez, uma base de dados de resumos e citaes de literatura avaliada por pares (peer-reviewed lite-rature) mantida pela editora cientfica Elsevier. Essa base de dados e a ISI, da Web Of Science (http://wokinfo.com/citationconnection/), com a qual concorre, so a fonte mais segura sobre visibilidade da produo cientfica no mundo, incluindo livros, anais de eventos, relatrios de

    2 O portal SCImago, da base de dados Scopus, pode ser encontrado no seguinte endereo: http://www.scimagojr.com/index.php. Em sua pgina inicial, e leitor encontrar esta breve descrio que usei para a descrio que fiz e que o remeter a outros detalhes se lhe inte-ressar. The SCImago Journal & Country Rank is a portal that includes the journals and country scientific indicators developed from the information contained in the Scopus database (Elsevier B.V.). These indicators can be used to assess and analyze scientific do-mains. This platform takes its name from the SCImago Journal Rank (SJR) indicator, devel-oped by SCImago from the widely known algorithm Google PageRank. This indicator shows the visibility of the journals contained in the Scopus database from 1996.

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    Ns, os Guaranis, e a Avaliao da Capes

    pesquisa, peridicos e patentes. So as bases de dados que as agncias brasileiras de pesquisa, inclusive a Capes e o CNPq, levam em consi-derao para a tomada de decises estratgicas. Mediante os dados fornecidos por essas bases que as agncias, mas tambm os experts, avaliam o desenvolvimento de todas as reas da cincia no mundo, nas suas diversas regies e nos pases individualmente. A Capes, con-forme se pode constatar no seu Plano Nacional de Ps-Graduao, em especial no captulo destinado internacionalizao, p. 223 ss, usa es-ses dados para medir o crescimento da produo cientfica brasileira e projetar o seu desenvolvimento na prxima dcada. As bases cobrem literatura cientfica em todas as lnguas e reas, contanto que a pro-duo seja avaliada por pares e atenda a critrios tcnicos bsicos de publicao e arbitragem que possam ser checados por avaliaes inde-pendentes e aleatrias3. Ao contrrio de um portal de peridicos, como a Scielo4, que tem sede no Brasil, essas bases de dados fazem o cruza-mentos de informaes sobre citaes entre produes cientficas e por

    3 Dentre os critrios para a incluso de uma produo cientfica nessas bases de dados no conta qualquer pagamento. As empresas se sustentam com a venda de servios baseados na infor-mao que produzem a partir do cruzamento dos dados que abrigam em suas bases, e esses dados s so relevantes porque no so includos mediante remunerao. Em seu texto, j cita-do acima, Marilena Chau menciona a sua experincia com indexadores e os critica duramente por usarem o pagamento de alguma taxa como critrio bsico para a incluso e produo de dados. Ela se referia ao ranqueamento de instituies, mas sua observao se dirigia aos ndices de impacto baseados em nmero de citaes. Diz ela: Vendo esse critrio [para o ran-queamento de instituies] entendi um tipo de e-mail, muito engraado, que eu recebo sempre e nunca havia entendido... So e-mails que vm de empresas que se oferecem para fazer levan-tamento das minhas citaes. Na primeira vez que eu recebi um negcio desses, eu achei que fosse uma piada de mau gosto, que algum quisesse fazer uma brincadeira sem graa comigo. Depois descobri que h, de fato, empresas para fazer contagem de citao! uma capitalizao da pesquisa! Voc paga uma empresa para poder entrar no ranking (Marilena Chau, Kriterion, Belo Horizonte, n 129, Jun./2014, p. 431-438. p. 434. Colchetes meus). No conheo os ranking pagos, mas devem existir. Os ranking relevantes, contudo, em particular o SCIma-go, no funcionam assim e, com respeito a eles, a crtica de Chau no se aplica.

    4 O portal Scielo pode ser encontrado no seguinte endereo: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_home&lng=pt&nrm=iso . Nele o leitor encontrar esta breve, mas clara, in-formao sobre o que o portal. A Scientific Electronic Library Online - SciELO uma biblioteca eletrnica que abrange uma coleo selecionada de peridicos cientficos brasilei-ros. A SciELO o resultado de um projeto de pesquisa da FAPESP - Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo, em parceria com a BIREME - Centro Latino-Americano e do Caribe de Informao em Cincias da Sade. A partir de 2002, o Projeto conta com o apoio do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico. O Projeto tem por objetivo o desenvolvimento de uma metodologia comum para a preparao, arma-zenamento, disseminao e avaliao da produo cientfica em formato eletrnico. Com o avano das atividades do projeto, novos ttulos de peridicos esto sendo incorporados coleo da biblioteca.

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    isso podem ajudar pesquisadores, editores e gestores acadmicos a ter uma viso mais ampla da repercusso do trabalho cientfico que fazem e divulgam. A Scielo no presta esse servio, mas vincula os peridicos que hospeda a essas bases de dados.

    A rea da CP&RI baseia muito de seus indicadores para avalia-o e classificao da produo da rea na SCImago. A classificao de peridicos, por exemplo, est amplamente lastreada no portal e na performance do peridico nele. Os critrios para a incluso de um pe-ridico da rea no nvel A1, por exemplo, so os seguintes:

    Peridicos indexados na base SCImago 100% artigos originais Publicar pelo menos 30% de artigos/ano com participao

    de autores estrangeiros Conselho Editorial formado por autores internacionais re-

    nomados Indicadores (JCR, SJR) que permitam mensurar fator de im-

    pacto SJR > 0.30 reviso por pares duplamente cegos Publicar pelo menos 85% de artigos de autores no vincula-

    dos instituio que edita o peridico. (Documento de rea das Cincias Polticas, 2013, p. 25)

    E para a classificao de livros, problema caro nossa rea, graas importncia que esse tipo de produo tem para ns, a soluo que deram a seguinte:

    A classificao nos estratos resultado de duas etapas de avalia-o: em um primeiro momento, as obras so inseridas em plata-forma on-line chamada Instrumento para classificao dos livros [www1.ufrgs.br/capes], que gera pontuao a partir da identifi-cao de um conjunto de aspectos formais da obra (ver abai-xo). Aps auditagem das obras que tenham ultrapassado ponto de corte, estas so submetidas a parecer de consultores que con-firmam ou corrigem a pontuao previamente obtida. 1. O livro resultado de pesquisa original, financiada por agn-cia de fomento nacional, internacional ou estadual?2. Em alguma de suas etapas de elaborao, o livro foi submetido avaliao por pares?

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    3. Existem indicadores de impacto ou visibilidade do livro na co-munidade cientfica da rea de Cincia Poltica e Relaes Inter-nacionais? (Documento de rea das Cincias Polticas, 2013. p 28)

    Cada uma dessas perguntas est detalhada por um conjunto de perguntas adicionais que ajudam os avaliadores a classificar o livro. O documento de rea discute ainda a relao entre artigos publicados e livros, sempre levando em considerao o fator de impacto, mas no apenas ele, seno um trip que estaria constitudo pela sustentao do livro em pesquisa original, o seu julgamento por pares e o impacto que a obra finalmente produziu na rea. Diz o texto na sequncia dos critrios acima descritos:

    Infere-se que livro resultante de pesquisa original e financiada, que tenha sido julgado por pares e apresente indicadores de im-pacto, possua qualidade elevada, de modo equivalente premis-sa de que artigo publicado em peridico com peer review rigoroso e fator de impacto significativo apresente qualidade elevada. Des-ta forma, o resultado final da classificao no consiste em consi-deraes subjetivas sobre o carter bom ou ruim, excelente ou medocre da obra, mas se o livro possui caractersticas for-mais que correspondam ao trip pesquisa/julgamento/impacto. (Documento de rea das Cincias Polticas, 2013. p 28- 29)

    Finalmente, trago o exemplo da Educao. Essa uma rea com 205 programas e que, a despeito de seu tamanho, descreve procedimen-tos para classificar seus programas e sua produo cientfica semelhan-tes aos que usamos na Filosofia. Em especial, no h recurso indexao que gere ndice de impacto, muito embora indexadores sejam, eventual-mente, citados no documento de rea. Assim, consta no rol de critrios para classificao de peridicos no estrato A1 o seguinte:

    Publicao amplamente reconhecida pela rea, seriada, arbitrada e dirigida prioritariamente comunidade acadmico-cientfica, atendendo a normas editoriais da ABNT ou equivalente (no ex-terior). Ter ampla circulao por meio de assinaturas/permutas para a verso impressa, quando for o caso, e online. Periodicida-de mnima de 3 nmeros anuais e regularidade, com publicao de todos os nmeros previstos no prazo. Possuir conselho edito-rial e corpo de pareceristas formado por pesquisadores nacionais

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    e internacionais de diferentes instituies e altamente qualifica-dos. Publicar, no mnimo, 18 artigos por ano, garantindo ampla diversidade institucional dos autores: pelo menos 75% de artigos devem estar vinculados a no mnimo 5 instituies diferentes da-quela que edita o peridico. Garantir presena significativa de artigos de pesquisadores filiados a instituies estrangeiras re-conhecidas (acima de dois artigos por ano). Estar indexado em, pelo menos, 6 bases de dados, sendo, pelo menos 3 internacio-nais. Constar de bases de indexao, dentre elas o Scielo/Scielo Educa (se brasileiras). (Documento de rea da Educao, 2013. p. 18-19)

    A meno a indexadores genrica, podendo se tratar de bases de dados que apenas divulgam resumos e palavras-chave de artigos, ou at mesmo textos completos, mas no cruzam informaes para de-terminar a visibilidade e o impacto da produo para a comunidade cientfica. A exigncia, para fins de classificao de peridicos no ex-trato mais elevado, de que eles estejam no portal Scielo problemtica por pelo menos duas razes. A primeira que o acesso a ela no depen-de apenas do atendimento aos requisitos indicados pelo portal5, mas tambm da capacidade tcnica do portal para abrigar peridicos e que no ilimitada, o que no o caso das bases de dados que informam fatores de impacto e que incluem em seu domnio de dados qualquer peridico que atenda s condies formais mnimas a que j aludi aci-ma (cf. pp. 8-9 e nota 2) . Segundo, por ser um portal, como expliquei na nota 3, a Scielo no oferece mtrica de citaes, como a ISI-Web of Science e a Scopus, esta ltima, mediante a SCImago para as cincias

    5 Pouco antes do evento da Anpof, a Scielo divulgou novos critrios para a admisso de novos peridicos a seu portal e manuteno em sua coleo daqueles que j abriga. Estes critrios visam a incrementar a expresso internacional dos peridicos e, por isso, aumentam, com n-dices especficos para cada rea, as exigncias no tocante artigos em ingls (mnimo de 25% na rea de humanas), participao de autores e pareceristas estrangeiros (mnimo de 20% para a rea de humanas), alm de editores associados vinculados a instituies no exterior (mnimo de 15% para as humanas). O nmero mnimo de artigos por ano tambm foi elevado a 25. O documento completo com os novos critrios pode ser encontrado em : http://www.scielo.br/avaliacao/20141003NovosCriterios_SciELO_Brasil.pdf. A discusso pormenorizada desses crit-rios escapa ao mbito deste artigo, mas no ao interesse de nossa rea. Para citar um exemplo, a exigncia de publicao de 25 artigos por ano no tem qualquer conexo com o aumento da qualidade da produo filosfica publicada no pas.

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    humanas, mas seleciona os peridicos por critrios prprios e que, ao serem generalizados, mesmo que por rea de conhecimento, terminam por funcionar como um vis a determinar que tipo de peridico se deve publicar. claro que o portal pode definir os critrios que achar mais convenientes para compor a sua coleo, mas isso mostra clara-mente a diferena entre bases de dados que medem impacto a partir de um conjunto aberto de peridicos, que so includos com base apenas segundo os critrios de arbitragem, regularidade e padronizao inter-nacional, e um portal que monta uma coleo de peridicos a partir de critrios seletivos prprios.

    De qualquer modo, fator de impacto no tem relevncia para a rea da Educao. Isso se pode verificar tambm na escolha de seus programas de referncia. Os critrios para a eleio dos programas 6 e 7 no est, pelo menos no documento de rea, pautado por ndices quantitativos e abre, portanto, espao para a avaliao qualitativa, como se pode ver na formulao inicial dos critrios, que antecede o texto padro da Capes tal como o citei na nota 1, mas tambm obser-vvel nos prprios critrios.

    Os cursos candidatos a 6 ou 7 devem apresentar uma produo bibliogrfica que supere os limites definidos na Ficha de Avaliao e evidenciem a insero internacional indicada por: um nvel de qualifi-cao da produo equivalente aos centros internacionais de exceln-cia na formao de recursos humanos; uma consolidao de sua lide-rana nacional como formador de recursos humanos para pesquisa e ps graduao.

    Evidentemente no esperado que todos os Programas atuem em todos os eixos de internacionalizao. A avaliao realizar a an-lise da qualificao dos Programas quanto nvel [sic] e tipo de interna-cionalizao. (Documento de rea da Educao, 2013. p. 35)

    Na prtica, a rea determinou as notas 6 e 7 com base numa rigo-rosa comparao entre os pontos auferidos pelos candidatos com nota 5 nos itens da ficha de avaliao, sobretudo os relativos produo bibliogrfica, incluindo livros, itens para os quais a Educao usa, para a sua avaliao, a mesma ficha que usamos na Filosofia e os critrios comuns s cincias humanas, sem uma interveno mais profunda nesses critrios como o faz as CP&RI.

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    Os exemplos que eu trouxe do uma clara medida da diversidade de critrios que so usados na avaliao da Capes e do grau de liberda-de que as reas dispem para se avaliarem, imprimindo no processo a marca de sua histria e identidade acadmica. Face a isso, no h razes objetivas para que no usemos nossa crtica s avaliaes de modo a, como eu dizia no incio, conectar virtuosamente a nossa histria nos-sa diversidade em favor da Filosofia, o que no pode seno estar em sintonia com as expectativas das agncias em geral e da Capes em par-ticular. Para isso, porm, preciso haver mais discusso sobre o tema e discusso informada por dados que sejam adequados e teis para a es-colha de rumos e a tomada de decises. At o momento tm nos faltado os dois elementos: a discusso e dados confiveis. Nesta ltima seo, quero discutir aspectos pontuais de nosso documento de rea e trazer alguns dados que alimentem uma discusso melhor informada e mais propositiva para a melhoria da avaliao que fazemos. Discutirei a clas-sificao de peridicos, livros e os critrios para a escolha dos programas de referncia, 6 e 7.

    Os critrios para a classificao de peridicos nos estratos A1, A2 e B1 esto assim definidos em nosso documento de rea:

    Estrato A1 Peridicos de destacada qualidade, devidamente demonstrada em relatrio pelos avaliadores e necessariamente superiores a to-das as exigncias estabelecidas para o Estrato A2. Estrato A2 Ser publicado por instituio com Ps-Graduao stricto sen-su, ou Sociedade Cientfica de mbito nacional ou internacional com reconhecimento na rea, ou Instituio de Pesquisa, ou ser publicada com apoio da CAPES, CNPq ou de fundao de direi-to pblico ou privado mediante avaliao por pares. Disponibilidade em pelo menos dois dos indexadores ou bases de dados acima indicados. Publicar pelo menos 18 artigos por volume, dos quais pelo me-nos 75% de autores vinculados a pelo menos cinco instituies diferentes da que edita o peridico.

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    Publicar regularmente resenhas de livros de interesse para a rea. Regularidade na publicao dos nmeros. Periodicidade mnima semestral.

    Estrato B1 Ser publicado por instituio com Ps-Graduao stricto sen-su, ou Sociedade Cientfica de mbito nacional ou internacional com reconhecimento na rea, ou Instituio de Pesquisa, ou ser publicada com apoio da CAPES, CNPq ou de fundao de direi-to pblico ou privado mediante avaliao por pares. Presena no Conselho editorial de membros de instituies es-trangeiras de reconhecimento na rea. Disponibilidade em pelo menos um dos seguintes indexadores e bases de dados: SciELO, The Philosophers Index (Ohio, USA); International Philosophical Bibliography/Rpertoire Bibliogra-phique de la Philosophie (Louvain, Blgica); Francis-Bulletin Signaltique (CNRS, INIST, Frana); Ulrich s International Pe-riodicals Directory (New York, USA), Institute for Scientific In-formation-ISI (Philadelphia, USA), LATINDEX, American Theo-logical Library Association-ATLA Religion Data Base. Publicar pelo menos 18 artigos por volume, dos quais 60% de autores vinculados a pelo menos cinco instituies diferentes da que edita o peridico. Regularidade na publicao dos nmeros. (Documento de rea da Filosofia & Teologia, 2013. p. 15-16)

    O estrato A1 se define mediante uma avaliao de excelncia de peridicos que atendem ao estrato A2, mas este no faz referncia aos estratos inferiores, a no ser pela indicao das bases de dados aceitas. Pode ser o caso, portanto, que um peridico seja A2, sem que tenha membros de instituies estrangeiras em seu conselho editorial. Pode acontecer tambm que um peridico que esteja numa base de dados que produza ndice de impacto, como a SCImago e ISI-Web of Science, e no seja sequer considerado para o estrato B1, j que na lista de bases de dados deste estrato no consta nenhuma com esta capacidade tcni-ca. Ficamos ento entre o formalismo de alguns critrios, muitos deles emulados das antigas regras do Scielo, como o nmero de artigos por volume, e a discricionariedade da comisso que, sem qualquer indica-dor de relevncia e impacto, tem de julgar conforme a tradio e com tendncia a mant-la e no a melhor-la.

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    O uso de ndices de impacto, como vimos nos exemplos acima, varia, mas so, como tentei esclarecer, um dado que vem de uma fonte no elitizada como o a Scielo. O desconhecimento da rea sobre essas bases de dados, a nossa desconfiana face a classificaes e a falta de uma poltica da rea para que seus peridicos busquem a sua paulati-na incluso nessas bases me parecem ser as principais razes para que a nossa situao quanto ao impacto dos seus peridicos seja crtica. Uma consulta SCImago6 mostra o seguinte quadro referente a peri-dicos publicados no pas no ltimo perodo avaliado pelo indexador, o trinio 2010-2013. No ano de 2013, apenas seis peridicos brasileiros constam em sua base de dados. Entre 2010 e 2011, esse nmero era de cinco e entre 2009 e 2010, apenas de trs. Em ordem alfabtica, os peri-dicos listados em 2013 so os seguintes: Filosofia Unisinos, Kriterion, Principia, Revista de Filosofia: Aurora, Revista de Letras e Transfor-mao. Todos tm ndice de impacto H igual a 1, pois o nmero de citaes recebidas pelos artigos publicados no perodo em anlise muito baixo. De fato, o peridico com o maior nmero de citaes em 2013 de artigos publicados entre 2010 e 2012 a Revista Principia, com 4 citaes, todas em 2013, seguida pela Transformao e Kriterion, com 2 citaes cada uma em 2013 e duas para a Transformao em 2012. A Revista de Filosofia: Aurora tem uma citao em 2013 e a Filosofia Unisinos tem uma em 2012. No tocante ao ndice que a rea da CP&RI usa, nossos peridicos tm todos ndice 0,1, com a Principia estando melhor posicionada em 2013, com 0,124. Se olharmos o dado desde a perspectiva regional, veremos que, na Amrica Latina, 15 peridicos constam da base de dados da SCImago, o que significa que, alm dos seis brasileiros, outros 9 esto includos. Insisto num ponto ao qual j aludi em nota acima (nota 3): a incluso de um peridico nessa base de dados no se deve ao pagamento de nenhuma remunerao a quem quer que seja, mas ao interesse do peridico que pode preencher um formulrio no site do indexador e ter suas informaes checadas por ele. Uma outra via de incluso a admisso, no caso da Amrica Lati-na, ao portal Scielo, com os limitaes e vises j apontados por mim. Em ordem alfabtica, os peridicos latino-americanos elencados nessa

    6 http://www.scimagojr.com/journalrank.php?area=0&category=0&country=all&year=2013&order=h&min=0&min_type=cd

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    Ns, os Guaranis, e a Avaliao da Capes

    base de dados so os seguintes: Aisthesis, Co-herencia, Critica-Revista Hispanoamericana de Filosofia, Eidos, Ideas y Valores, Signo Filosfi-cos, Topicos, Utopia y Praxis Latinoamericana. Tomando-se o quadro geral da Amrica Latina, a revista Critica, publicado no Mxico, tem, em 2013, o melhor ndice H, que igual a 4, seguida pela revista Uto-pia y Praxis Latinoamericana, com ndice H igual a 2, seguida, ento, por todas as demais com ndice igual a 1, exceto as revistas Aisthesis, Eidos e Signos Filosficos, que tm ndice H igual a zero. Para se ter um critrio de comparao, a revista com o maior ndice de impacto no mundo a Nature, com ndice H igual a 829. Na rea da Filosofia, o peridico com maior ndice H a Physiology and Behavior, com ndice H igual a 103. A revista Ethics, que nos mais familiar e nos pareceria mais intuitivo que constasse em uma lista de revistas de Filosofia do que a primeira colocada, aparece em 12 lugar com ndice H igual a 35. The Philosophical Review vem em 15 lugar com ndice H igual a 31 e a Mind vem em 27 lugar com ndice H igual a 23, para citar mais alguns exemplos.

    Salta aos olhos que esses ndices no levam em considerao pe-ridicos brasileiros importantes de nossa rea. Contudo, preciso dizer que esses peridicos no aparecem na lista ou porque atendem os crit-rios bsicos exigidos pelos indexadores, mas no solicitaram a sua inclu-so neles, ou a solicitaram, mas no atendem os critrios formais bsi-cos, incluindo a regularidade e a avaliao por pares, auditvel de modo independente. Considerando o escasso rol de peridicos brasileiros de Filosofia que temos elencados no SCImago , de fato, impossvel basear a classificao das revistas da rea nesse indicador, mas que ele sequer seja levado em considerao, pelo menos de modo a induzir uma profis-sionalizao de nossos peridicos, no parece justificvel. Sobretudo por se tratar de uma informao disponvel pblica e gratuitamente, e que vem de uma base de dados aberta a qualquer tema, lngua ou naciona-lidade. Sem dados como esses, s podemos dizer que nos lemos pouco porque intumos o fato a partir de seus reflexos em nosso parco debate, mas chocante, mesmo com a pequena amostra de que dispomos, cons-tatar o quo pouco damos importncia para o que escrevemos. Afinal, parece que j estamos na situao do cacique Guarani que fala e fala, e todo mundo continua fazendo o que gosta de fazer, sem se importar se

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    o que est fazendo tem alguma repercusso ou atentar para aquilo que os outros fazem ou dizem.

    Se levarmos em conta que os indexadores podem incluir tambm livros e anais de eventos, poderamos pensar em incluir essa varivel como uma das que seriam levadas em conta na avaliao desse tipo de produo. Usamos, como mencionei, a mesma ficha que a Educao e outras reas da humanas, mas nada impede que o sistema seja incre-mentado por um dado que esteja disponvel, desde que as editoras fa-am o seu trabalho de inserir seus livros nessas bases. Elas, porm, no o faro se no levarmos em conta ndices de impacto como mais uma fonte relevante de informaes para a nossa tomada de decises. E bom que se sublinhe o levarmos em conta, que no quer dizer usar como critrio nico ou mesmo como o mais importante. Dado o tama-nho do mercado brasileiro, se pelo menos um tero dos cerca de cin-quenta peridicos nos quais, segundo dados da comisso dirigida por Danilo Marcondes, concentra-se a produo da ps-graduao em Filo-sofia no pas estivesse indexado, teramos um quadro muito mais claro da visibilidade de nosso trabalho e poderamos agir em favor de ampliar essa visibilidade e causar mais repercusso com o que publicamos. Uma outra consequncia funesta da falta de dados confiveis sobre a circula-o de informao na Filosofia que somos induzidos ao produtivismo. Na falta de meios de verificao do impacto do que produzimos, somos levados a nos medir pela quantidade da produo, o que j nos tem rou-bado foras vitais para a produo de obras de mais flego.

    Uma ltima palavra sobre os critrios para a eleio de progra-mas 6 e 7. Nosso documento de rea usa o texto base da Capes (cf. nota 1) e, alm disso, lastreia a deciso no aspecto internacionalizao, para o qual sete critrios so listados, a saber:

    1. Convites regulares ao corpo docente para ministrar cursos, conferncias, participar em bancas examinadoras, participar de comisses organizadoras de eventos.

    2. Participao em eventos cientficos e publicaes em veculos internacionais de excelncia reconhecida, prmios recebidos, publicaes em anais de eventos e de livros e captulos no exterior, inclusive em coautoria com professores e pesquisa-dores de instituies no exterior.

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    3. Frequncia de realizao de estgios snior e de ps-douto-rado, sobretudo com bolsa, em instituies de reconhecida importncia na rea no exterior.

    4. Existncia de convnios internacionais e projetos de coopera-o com financiamento.

    5. Presena no programa de alunos estrangeiros. 6. Participao efetiva e regular de professores e pesquisadores

    de centros de excelncia no exterior nas atividades do pro-grama, resultando em projetos em comum e em publicaes conjuntas.

    7. Participao do corpo discente em programas de intercm-bio, destacando-se bolsas sanduche.

    Espera-se que todos os programas tenham algum grau de interna-cionalizao, refletindo-se em pelo menos 3 dos itens indicados acima.

    Os programas 6 e 7 so aqueles em que a internacionalizao se encontra concretizada de forma regular, bem distribuda pelo corpo docente e atendendo ao maior nmero possvel de itens caractersticos da internacionalizao, listados acima de 1 a 7. (Documento de rea da Filosofia & Teologia, 2013. p. 34)

    No h, entre os itens qualquer meno repercusso da pro-duo filosfica nacional em termos de uso desta produo em outra produo, o que significa o impacto de nosso trabalho sobre o trabalho de outros. Os dados at o momento disponveis nas bases de dados que informam aos gestores acadmicos sobre a produo de conheci-mento mostram que o que se produz em Filosofia no Brasil tem pouco ou nenhuma repercusso no exterior. Pior, tem pouco ou nenhuma repercusso no prprio pas. Repercusso nos meios acadmicos, cla-ro, e que se caracteriza pela insero de nossas ideias na construo de outras ideias que sero, ento, publicadas em veculos de divulgao acadmica com potencial de alimentar o ciclo. E, no entanto, os crit-rios que usamos para eleger os programas de referncia mostram que essa informao sobre a repercusso de nosso trabalho nos irrelevan-te. Os critrios que usamos so inequivocamente importantes e, sem dvida, refletem o estgio de desenvolvimento da Filosofia na Brasil. Contudo, talvez tenha chegado o momento de pararmos o que estamos fazendo para ouvir o que tem a dizer o Guarani que est trabalhando

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    ao nosso lado, ou preocuparmo-nos se o que estamos fazendo interes-sa a algum alm de ns mesmos. Quem sabe a nossa rebeldia esteja mal direcionada e deveria voltar-se contra a solido de nossas prticas, mesmo que ela, a rebeldia, nos levasse a usar a avaliao que fazemos de ns prprios como meio para nos tirar do solilquio a que parece-mos condenados.

  • Algumas reflexes sobre a interdisciplinaridade na Filosofia brasileira*

    Alfredo Storck**UFRGS, CNPq

    * O presente artigo a verso levemente ampliada do texto apresentado durante a ANPOF. Como o leitor rapidamente perceber, decidi preservar o tom mais caracterstico de uma apresentao oral.

    ** PossuigraduaoemFilosofiaeDireito,mestradoemFilosofiapelaUniversidadeFederaldoRioGrandedoSul,doutoradoemFilosofia-UniversitdeTours(UniversitFrancoisRabelais)eps-doutoradonaUniversitdeParisI,Sorbonne.professorassociadodaUni-versidade Federal do Rio Grande do Sul e Bolista 1C do CNPq e tem realizado pesquisas nas reasemHistriadaFilosofiaMedievaleFilosofiadoDireito.

    Inicialmente,agradeoaocolegaIvanDomingueseaopresiden-tedaANPOF,MarceloCarvalho,pelaorganizaodesseconjuntodedebatesepeloconviteparaparticipardessamesajuntamentecomascolegasTelmaBirchaleMariaIsabelLimongi.

    Otemaquenosfoiindicadointitula-sePerfis e Modelos de Pesqui-sa e Ensino em Filosofiae foi-nossugeridoqueoabordssemosdesdea perspectiva de trs eixos centrais: a) modelos ditos analticos; b) modelos e variantes continentais; c) experincias e demandas interdis-ciplinares.MariaIsabelLimongiabordouosdoisprimeirosaspectoseTelmaBirchalenfatizoudiversospontosligadosaosmodelosdeensinodaFilosofiaeseuimpactonosistemaatual.Noquesegue,ireisupormuitodoqueelasdisseramelimitar-me-eiatrazeralgunselementosque,espero,contribuiropararefletirmosacercadoterceiroponto,ainterdisciplinaridade. Esse tema, por sua natureza, impe que se adote umaperspectivaexternaFilosofiaparaquepossamosrecolherforadareaelementosquenosajudemarefletirsobrearea.Paratanto,di-vidirei a apresentao em quatro partes. Na primeira, abordarei algu-masdasrazesquelevaramaCAPESaintroduzirnosDocumentosderea um item sobre a interdisciplinaridade. Na segunda, apresentarei

    Domingues,I.;Carvalho,M. Pesquisa e Ps-Graduao em Filosofia no Brasil - Debates ANPOF de Polticas Acadmicas. ANPOF,p.31-45,2015.

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    Alfredo Storck

    algunsdesafiosaessaprticaligadosaomododeimplantaodaFilo-sofianoBrasil.Naterceira,abordareirapidamentealgumaslimitaesdo sistema educacional brasileiro as quais apontam para a necessidade deexpansodagraduaoedaps-graduaonopas.Porfim,retira-reialgumasconclusesapartirdoquefoiapresentado.

    1. Interdisciplinaridade e a avaliao da CAPES

    Nodehojequeacompartimentalizaodasdisciplinascien-tficastemsidopercebidacomoimpondorestriesmetodolgicasde-masiadamentefortesparaaanlisedecertosfenmenos(empricosousociais)justamenteporapresent-losdeformaparcial.Afragmentaodaproduoedifusodoconhecimentoemdisciplinascomobjetos,objetivosemtodosindependentesquecaracterizaadisciplinaridadeprevalece e provavelmente continuar prevalecendo em nossas univer-sidadeseinstitutosdepesquisa.Todavia,aoladodadisciplinaridade,existem, em nmero cada vez mais crescente, demandas de coopera-oentreequipesdecientistasoriundosdediferentesdisciplinas.Essacooperaoadotaaformamultidisciplinarquandoasdiversasdiscipli-nas associadas no estudo de um tema preservam sua independncia e metodologia. Passa a ser interdisciplinar, no entanto, quando as trocas tericas e metodolgicas levam produo de novos conceitos e me-todologias.1Exemplosfamosossoacooperaodecientistassociaise cientistas naturais para estudar mudanas climticas ou a associa-odefilsofos,psiclogos,neurocientistas,linguistaseantroplogospara estudar a mente e a inteligncia na cincia cognitiva.2

    A CAPES tem demonstrado uma crescente preocupao com a interdisciplinaridade,preocupaoquetemsemanifestadodediver-sas maneiras. Em um primeiro momento, a CAPES privilegiou a in-

    1 Para uma apresentaomais acuradadessas noes, veja-se:Klein, J. T. A taxonomyofinterdisciplinary,inFrodeman,R.,Klein,J.T.,andMitcham,C.Oxford Handbook of Interdis-ciplinarity,Oxford,OxfordUniversityPress,2010,p.15-30.ACAPESretirasuadefiniodeinterdisciplinaridadedoDocumentodoCAIntereosapresentanoPlano Nacional de Ps--Graduao(PNPG2011-2020),p.135.OPNPGestdisponvelem:http://www.capes.gov.br/images/stories/download/Livros-PNPG-Volume-I-Mont.pdf.

    2 Paraumacaracterizaodacinciacognitiva,veja-se:Thagard,Paul,CognitiveScience,The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall2014Edition),EdwardN.Zalta(ed.),publicaodisponvel em http://plato.stanford.edu/archives/fall2014/entries/cognitive-science/.

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    Algumas reflexes sobre a interdisciplinaridade na Filosofia brasileira

    terdisciplinaridadeaolheconferirestatutodereaautnomaemseusistemade avaliao e financiamentoda pesquisa. Emum segundomomento, a CAPES passou a incluir em sua estratgia de apoio inter-disciplinaridade uma abordagem mais geral e decidiu delegar a todas asreasatarefadesepronunciarem,emseusDocumentosderea,sobre como entendem e praticam a interdisciplinaridade. Certamente no nos interessar discutir aqui os problemas internos rea interdis-ciplinardaCAPES.Lembroapenasqueessareafoicriadaem1999comadesignaodeMutidisciplinarepassou,em2008,aserchamadadereaInterdisciplinar.3 Na atual estrutura da CAPES, o termo mul-tidisciplinar designa uma grande rea, pertencente ao colgio de Ci-nciasExatas,TecnolgicaeMultidisciplinar.Deacordocomosdocu-mentos da ltima avaliao trienal, a rea interdisciplinar contava, em 2012,com297cursosdeps-graduaoeumadasquemaisrecebe(etambmrecusa)propostasdecursosnovos.Somentenotrinio2010-2012foramaprovados151novoscursosparaintegrararea.4

    Esse gigantesco crescimento da rea interdisciplinar explica, ao menosemparte,aestratgiadaCAPESdedifundirainterdisciplina-ridadeentreasdiversasreasdoconhecimentoeincentivarqueelasabriguem programas interdisciplinares. Essa no ser a nica estra-tgia que a agncia pretende adotar, pois outras parecem estar ainda emfasedegestao.Evidenciaissoaorganizao,pelaagncia,doIII Encontro Acadmico Internacional 2014 justamentecomotema:In-terdisciplinaridade nas Universidades Brasileiras: Resultados & Desafios, realizadoemmaiode2014.5

    Parececlaro,noentanto,que,almdereconheceraimportnciadosproblemasligadosaosprocessosdegeraoedifusodoconheci-mentoqueprecisamserenfrentadospormeiodecursosinterdiscipli-

    3 Odocumentodeavaliaodessareadefineinterdisciplinaridadedoseguintemodo:En-tende-seporInterdisciplinaridadeaconvergnciadeduasoumaisreasdoconhecimento,nopertencentesmesmaclasse,quecontribuaparaoavanodasfronteirasdacinciaetecnologia, transfiramtodos de uma rea para outra, gerando novos conhecimentos oudisciplinase faasurgirumnovoprofissionalcomumperfildistintodosexistentes,comformaobsicaslidae integradora.Aconsultaaodocumentopodeser feitapoemeiodo site da CAPES: http://www.capes.gov.br/component/content/article/44-avaliacao/4674--interdisciplinar.

    4 Conformedadosretiradosdodocumentodareaedisponvelnolinkacima.5 O relatrio do evento pode se acessado em: http://seminarios.capes.gov.br/encontro/apre-

    sentacao.

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    Alfredo Storck

    nares,aCAPESprecisaaindaenfrentardificuldadesinerentesaogeren-ciamento do tipo e volume de demandas que recebe. Como a estratgia inicial de concentrao de cursos em uma grande rea interdisciplinar passa a dar sinais de esgotamento, a poltica institucional precisa ser redefinida.Omodocomoosdois aspectosdoproblema seroequa-cionadosaindanoesttotalmentedesenhadopelaagncia,masares-ponsabilidadenabuscadessasoluofoicompartilhadaentreasreasno momento em que a CAPES passou a exigir delas que apresentassem em seus documentos uma caracterizao do que entendem por e como praticam a interdisciplinaridade. Se saliento esse ponto porque o con-siderorelevanteparaentendermososignificadodealgumasdemandasda CAPES. Quando a agncia exige a introduo no documento de rea deumnovoparmetrodeavaliao,nocasoainterdisciplinaridade,elano est necessariamente sinalizando que devamos incrementar esse tipo de atividade. Busca antes equacionar um problema de gerencia-mentodo sistemade avaliao e evitar aproliferaode cursos quepoderiam ser acomodados nas reas tradicionais.

    Ao consultarmos o Documento de rea da Filosofiareferentelti-ma avaliao trienal6,veremoscomoanossareapronunciou-sesobreos dois aspectos do problema. No que tange o vis terico da questo, odocumentoconferedestaqueaoquechamadevocaointerdisci-plinardafilosofiaaqualseriaexercidanoslimitesprpriosdareaenoemprogramasinterdisciplinares.Defato,podemosseguirasu-gestofeitanodocumentoeolharparaahistriadafilosofiaparaper-ceberque,porsuanatureza,ainvestigaofilosficafeitaemdilogocom as demais disciplinas a tal ponto que, em certo momento da sua histria,otermofilosofiaeraempregadosimplesmentecomoonomegenrico para designar todas as disciplinas tericas e prticas. Ainda hoje,asdiversasdisciplinascientficastrazemproblemasqueinteres-samaofilsofo.Talvezissoexplique,aomenosemparte,queinvesti-gaesmultidisciplinaressejamnormalmentebemrecebidaspelarea.FilosofiadaArte,FilosofiadaCincia,FilosofiadaBiologia,FilosofiadaMatemtica,FilosofiadaHistria,FilosofiadaMente,etc,sotodasdesignaes para investigaes que podem envolver pesquisadores de diversasformaesequepodemserrealizadasnointeriordaFilosofia.Claroquenemsemprea investigao feitasobessesrtulos multi

    6 Disponvelemhttp://www.avaliacaotrienal2013.capes.gov.br/documento-de-area-e-comissao.

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    Algumas reflexes sobre a interdisciplinaridade na Filosofia brasileira

    ou interdisciplinar, uma vez que a pesquisa realizada no interior de umadisciplinaeaanlisefilosficaacercadessadisciplinamovem-seemnveistericosdistintos.Mesmoassim,nonoscausaestranhezaencontrarmosemprogramasdeps-graduaoemFilosofiadocentescomformaoemoutrasreas,comoMatemtica,Fsica,CinciaPo-ltica,Sociologia,DireitoeHistria.Tambmnosurpreendeacons-tataofeitapelonossodocumentodereasegundoaqualaFilosofianotemtradicionalmenteencaminhadoCapespropostasdecriaode cursos de carter interdisciplinar, nem tem participado diretamente de programas interdisciplinares e que tampouco, se detectam na reamultidisciplinarprogramasque tenhamumapresena fortedaFilosofia.7 Essa constatao sugere que a interdisciplinaridade tende aequacionar-sebastantebeminternamenteFilosofia.

    2. Alguns entraves tradicionais

    Ao ler o nosso documento de rea, e isso vale igualmente para documentos de outras reas que pude consultar,8tem-seaimpressodequeainterdisciplinaridadepraticadadeformafcil,queasreasso abertas a esse tipo de cooperao e que bastaria um maior interesse dospesquisadorespara incrementarmosomaiornmerodeprojetosinterdisciplinares. Acredito que, em boa medida, esse o caso. Gostaria, entretanto,dechamaraatenoparaalgumasdificuldadesrecorrentesquetmcontribudoparaafastarasreasedeforneceralgunsexem-plosdecomoessasdificuldadestmsidoenfrentadas.Nobrevelimitedetempodequedisponho,tentareisugerir,sempretendercomissoes-tar dizendo algo de muito novo, que uma das principais barreiras para ainterdisciplinaridadedizrespeitoaoprocessohistricodeinstitucio-nalizao das disciplinas.9TomareicomoexemploasrelaesentreFi-losofiaeDireito,eissoporvriasrazes.Emprimeirolugar,porqueh

    7 DocumentodereadaFilosofia,p.5.8 Exemplos so os documentos das reas de Histria, de Qumica e de Astronomia e Fsica.9 S.LleR.Norgaarddescrevemquatrotiposdebarreiras:a)osvalorespresentesemtodas

    asetapasdapesquisaequeinfluenciamestilosdepesquisaejuzoscoletivos;b)pressuposi-es advindas de suas teorias ou modelos explanatrios; c) noes epistemolgicas ligadas aoquecontacomoprova;d)influenciasinstitucionaissobrecomoapesquisainterdiscipli-narpercebida.Veja-se:Ll,S.eNorgaard,R.Practicing Interdisciplinarity, in BioScience, November2005,Vol.55,No.11,p.967-975.

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    umcrescenteganhodeinteresseemnossareaporFilosofiaJurdica,como se observa pelo grande nmero de apresentaes que, nesta edi-o do Congresso da ANPOF, tratam direta ou indiretamente de temas ligadosaoDireito.10Emsegundolugar,porquehtensesdenaturezaconceitual,metodolgicaeinstitucionalentreaFilosofiadoDireitopra-ticadaporjuristaseaquelapraticadaporfilsofos.Tradicionalmente,aproduodosjusfilsofos,comoalgunsseautodenominam,tendeaserveiculadaeconsumidanomercadoeditorialjurdicoepraticamentedesconheceoprodutoeosveculosdeproduodenossarea.Maso inverso tambm o caso e as explicaes normalmente dadas por filsofosparaissoafaltaderigorfilosficodosjuristasfilsofos,aoqueelesrespondemcriticandoafaltadepropostasprticasdapartedefilsofos.Paraosinteressesdessanossamesa,creioserrelevantenotarqueaausnciadedilogoentreessesdoispraticantesdaFilosofiadoDireitopode,emgrandeparte,serexplicadaanalisando-seahistriadaimplantao de suas disciplinas no Brasil.

    Obviamente,nodisponhodetempoaquiparadesenvolveroas-suntoemtodaasuacomplexidadeedevolimitar-meaalgumasbrevesconsideraesgerais.Para facilitarminha tarefa,valer-me-eidedoisartigosrecentesqueabordaramoprocessohistricodeconstituiodaFilosofiaentrejuristasefilsofos.SobreahistriadaFilosofiadoDirei-tonoBrasiledafilosofiapraticadapelosjuristas,seguireioinstiganteartigodeRonaldoPortoMacedoJnioreCarlaHenrieteBevilacquaPiccolo, Remarks on the Philosophy of Law in Brazil in the Twentieth Cen-tury11.SobreaimplantaodafilosofiapraticadanasFaculdadesdeFi-losofia,seguireioprovocativoartigodeMarcosNobre,Da formao s redes contrahegemnicas filosofia no Brasil12. Os dois estudos cita-dos adotam perspectivas bastante distintas, mas convergem em alguns pontoscentrais.Interessa-mesobretudoaideiadeque,paracompre-

    10 No XVI Encontro Nacional da ANPOF,realizadoem2014,doisGruposdeTrabalhoversavamdiretamentesobreoponto:tica,JustiaeDireito,com65trabalhosselecionados,eFilosofia e Direito,com22trabalhosselecionados.EmoutrosGTs,comooTeorias da Justia, encontramos tambmtrabalhossobreoDireitoeaFilosofia.

    11 MacedoJnior,R.P.ePiccolo,C.H.B.RemarksonthePhilosophyofLawinBrazilintheTwentiethCentury,inAnuario de Filosofia y Teoria del Derecho,n.8,enero-diciembrede2014,pp.179-224.Doravante,citadocomo:Remarks on the Philosophy of Law in Brazil

    12 Nobre,M.DaFormaosredes.Filosofiaeculturadepoisdamodernizao,in:Cadernos de Filosofia Alemno.19,janeiro-junho2012,pp.13-36.

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    Algumas reflexes sobre a interdisciplinaridade na Filosofia brasileira

    endermosopanoramaatualdareaprecisamosolhartambmparaahistria,aindaquebreve,decomoaFilosofiafoiimplementadaetemsidopraticada.AMaria Isabel j tratoudissodeumoutropontodevistaeacreditoserminhapropostacomplementarquelaapresentada.

    UmdosmritosdoartigodeRonaldoMacedoJnioredaCarlaPiccoloestemvincularointeressedos juristaspelaFilosofiaaosdi-versosmodelosde formao intelectual adotadosnasFaculdadesdeDireito,retraandosuasorigens,identificando,emcadaperodo,seuspersonagensdemaiordestaque,salientandosuasinflunciasfilosficaseorientaesmetodolgicasadotadas.Oprimeiromomento identifi-cadocorrespondefundao,em1827,dasFaculdadesdeDireitodeOlinda(transferidadepoisparaRecife)edeSoPauloe insere-senocontexto de um Brasil recentemente independente que passava a ado-tarnovodesenhopolticoinstitucional.13 Anteriormente criao das FaculdadesdeDireito, as referncias Filosofiapela elite intelectualerammarcadaspeloiluminismofrancseinflunciasdispersasdafi-losofiaeuropeiaemnomescomoGrotius,Pufendorf,Filangieri,Becca-ria,BenthameAdamSmith.AinflunciadeKantjsefaziasentirnoBrasildesde1805,noscursosdeMartinFrancisco,masrefora-sepelainfluncia,nametadedosculoXIX,doscursospreparatriosparaaFaculdadedeDireito e pode ser percebida, por exemplo, emTobiasBarreto.14ComacriaodasFaculdadesdeDireito,passaaserofere-cidoummodelodeeducaogeneralistaecomumfortecomponentehumanista15marcadopordebatesnoapenasjurdicos,mastambmsobrearte,poltica,crticaliterriaecincia.AFilosofiadoDireitoqueemergianestecontextoochamadobacharelismo,frequentementeca-racterizadopelafaltaderigoracadmicoemetodolgiconotratocomautores e temaseque transmitia,de formaacrtica e semdigerir, os13 ParaumaaprensentaodaFilosofianoperodoanterioraocitado,veja:Margutti,P., Hist-

    ria da filosofia do Brasil 1 Parte: O perodo colonial,SoPaulo,Loyola,2013.14 NosuldoBrasil,okantismoeradifundidoporJanurioLucasGaffrquepublica,em1909,o

    seu A Teoria do Conhecimento de Kant (um ensaio), 2a edio, PortoAlegre,Edipucrs,2000.Paraumabrevehistriadokantismopraticadopelosjuristas,veja-se:Reale,M.ADoutrinadeKantnoBrasil.(NotasmargemdeumestudodeClovisBevilaqua),inRevista da Faculdade de Direito,v.42(1947),p.51-96eReale,M.ADoutrinadeKantnoBrasil.(Concluso),inRevista da Faculdade de Direito,v.43(1948),p.113-145.

    15 Remarks on the Philosophy of Law in Brazil, p.184.Paraumaapresentaodosignificadodohumanismoaolongodahistriajurdicabrasileira,consultem-seosartigoseditadosemWolk-mer,A.C.(org).Humanismo e cultura jurdica no Brasil,Florianpolis,FundaoBoiteux,2003.

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    debatesintelectuaisqueocorriamnaEuropa.Essefato,aliadoaoperfilprticodafilosofiaportuguesaesuaaversometafsicaumdosfa-toresqueexplicamporqueosprincipaisjuristasforamantescivilistasdoquepropriamentefilsofosdodireitonosentidoprpriodapalavra.O segundo momento assinalado pelos autores corresponde ao incio dosculoXXemarcadopelosconflitosideolgicosentresocialismo,liberalismo,fascismoecorporativismoequerepercutiroemmbitosdo direito, como o civil e o administrativo.16A fortepresenadeumpositivismoecltico,moduladoporideiasevolucionistas,porumaforteinflunciadopensamentocatlicoeporideiasnoliberaisdominaramadcadade30eosurgimentodonacionaldesenvolvimentismo.17

    Neste ponto, os dois artigos que citei comeam a se intercruzar. MarcosNobreenfatizaopapeldauniversidadenoqueelechamadeprojetonacional-desenvolvimentista,vigenteentreosanos30e80dosculopassado,umprojetodemodernizaodopasnaesferaecon-mica, mas tambm social, poltica e cultural.Nesseprojeto,opapelquecabiaUniversidadeerabemdefinido:aidentificaodosarcasmosaseremsuplantadoseaformaodeprofissionaishabilitadosparaen-frentarasexignciasdamodernizao.Oprojetodesenvolvimentistapossua, todavia, duas verses, uma autoritria e outra democrtica. AautoritriafoiaquepormaistempoocupouopoderdoEstadodu-ranteoperodo.Aversodemocrticaapresentava-senaformadeumprojetodemodernidadeejustiasocialquevinculavaamodernidade democracia e que encontrava expresso intelectual nas obras ditas deformao:Formao do Brasil Contemporneo,deCaioPradoJnior(1942),Formao da literatura brasileira (1957),deAntonioCndidodeMelloeSouza,eFormao econmica do Brasil(1959),deCelsoFurtado.Afilosofiauniversitriabrasileiradesenvolveu-semaisnaesteiradessemovimentodoquecomoresponsvelporsuaconcepo.Mesmoas-sim,coube-lheaidentificaodosarcasmosaseremsuplantados.Essesforamagrupados sobo rtulodefilosofismos,designaopejorativa

    16 Veja-seainda:Mota,C.G.et alii, Os juristas na formao do estado-nao brasileiro, sculo XVI a 1850,SoPaulo,QuartierLatin,2006.

    17 Remarks on the Philosophy of Law in Brazil, p.190-193.Paraumaexcelenteapresentaodosdebatesjurdicosnofinaldosculo19,consulte-seateseapresentadanoconcursoparaPro-fessorTitulardeFilosofiadoDireitodaUSP,porJosReinaldodeLimaLopes,Naturalismo jurdico no pensamento brasileiro,2012.Agradeoaoautorporcomunicar-mecpiadomaterialainda indito.

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    para indicar (cito) as prticas tericasdominantes at adcadade1930pelomenos,emqueafilosofiaoubemsetornavaservadeoutradisciplina(sendoaquiocasoexemplarosdosseminriosdeteologia),ou bem era praticada sem qualquer preocupao de rigor conceitual (sendoaquiocasoexemplarafilosofiatalcomopraticadanasfaculda-des de direito).18AdescriopropostaporRonaldoMacedoeCarlaPiccolo do perodo adota outros pressupostos analticos, mas concorda substancialmentecomodiagnsticocentraldeaumentodedistncia,buscadoporambasaspartes,entreasFaculdadesdeDireitoeFilosofianoperodo.Doladodos juristas,ograndenomededestaquefoiMi-guel Reale19,porsuaatuaocomojurista,jornalistaeeducador,masquepropunhaummodelodefilosofiasantpodasdoquesepraticavanasFaculdadesdeFilosofia.AatuaopolticadeReale,comoumdosidelogos fundadores, juntamente comPlnioSalgado,daAo Inte-gralista Brasileira, mas sobretudo como apoiador da ditadura militar, juntamentecomoutrosprofessoresdasfaculdadedeDireitodaUSP,daPUCdeSoPauloedaMackenzie,contribuiuemmuitoparacristalizarasdistnciasentredoismodelosdefilosofiatotalmenteirreconciliveisequesenegavammutuamenteoreconhecimento.20

    Se somarmos, aoque acabode lembrar, o fatodeque, para opensamentodeesquerda fortementepresentenasFaculdadesdeFi-losofia,oprprioDireitoeravistoapenascomoinstrumento ideol-gicodecontrolesocial,perceberemosqueaFilosofiadoDireitotinhapoucoterrenoparaprosperarnointeriordasFaculdadesdeFilosofia.MesmoautorescomoHansKelsen,profundodefensordademocraciaeinfluenciadoporKant,ouHerbertHart,fortementemarcadopelafi-losofiadalinguagemordinriadeOxfordeporWittgenstein,continu-aram,atrecentemente,areceberpoucaounenhumaatenonasFa-culdadesdeFilosofia.AsdistnciasqueseparamasduasFilosofiasdoDireitoaindasograndes,mas, felizmente,encontramosatualmente

    18 Nobre,M.,Opus cit.,p.21.19 Remarks on the Philosophy of Law in Brazil, p.200ess.OperfildeRealecomojuristaefilsofo,

    bemcomoalistadesuaspublicaespodeserconsultadonowebsiteemhomenagemaoautor: http://www.miguelreale.com.br/.

    20 Ambososartigosquesigoapresentamafilosofiapraticaporfilsofos sem insistirmuitosobreosdiversosgruposeprojetosfilosficosconcorrentesnasFaculdadesdeFilosofia.UmquadrogeraldasposiespodeserencontradoemDomingues,I.,Filosofiano/doBrasil:osltimoscinquentaanosdesafioselegados,Analytica,17,n.2(2013),p.75-104.

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    dos dois lados algumas tentativas de alterar esse quadro. O grande n-merodetrabalhosversandosobrefilosofiajurdicaapresentadosnestaedio de Encontro Nacional da ANPOF atesta o interesse da parte dos filsofos.Dapartedosjuristas,himportantesestudossobresobreateoria jurdicadaargumentao21,sobreraciocnioelgica jurdica22, sobreosaspectosfilosficosepsicolgicosdatomadadedeciso ju-rdica23,ousobreautoresespecficos,comoH.Hart24eR.Dworkin25.

    3. A ps-graduao brasileira deve continuar a crescer?

    Gostaria agora de voltar ao tema da nossa mesa trazendo, muito rapidamente, alguns dados que apontam para a necessidade de cresci-mento de sistema de ensino universitrio brasileiro, em particular do sistemadeps-graduao.

    Adcadade90marcouofimdoprojetonacional-desenvolvi-mentista que sucumbiu frente a novas estruturas econmicasmun-diais.Asdiversasmudanaspolticas,sociaiseeconmicasqueopassofreudesdeentotiveramimpactonosistemadeps-graduaoseminterromperocrescimentoquesemanifestadesdeasuacriao.Emboaparte,manteve-se a ideiadeque aUniversidade temumpapelimportante no desenvolvimento do pas, mas, nos ltimos anos, os de-safiosquelhesooferecidospassaramaseapresentarnasformasdaexpanso e internacionalizao.

    21 Roesler, C. R., Theodor Viehweg e a Cincia do Direito: tpica, discurso, racionalidade,2a ed., Belo Horizonte,ArraesEditores,2013.

    22 Shecaira,F.P.SourcesofLawArenotLegalNorms,inRatio Juris,2014eShecaira,F.P.,AnalogicalArgumentsinEthicsandLaw:ADefenceofaDeductivistAnalysis,inInformal Logic,v.33,p.406,2013.

    23 Struchiner,N.eShecaira,F.Adistinoentredireitoemoraleadistinomoraldodireito,in RDE. Revista de Direito do Estado,v.22,p.131-145,2012eFrias,L.eStruchiner,N.,TheCognitivePsychologyofthePotentialityArgument,inAmerican Journal of Bioethics, v. 13, p. 36-38,2013.

    24 Lisboa,W.B.,Formalismoouceticismojurdico:aperspectivadeHerbertHart,inRevista Dissertatio de Filosofia,v.35,p.131-140,2012.

    25 MacedoJnior,R.P.,Do xadrez cortesia Dworkin e a Teoria do Direito Contempornea, So Paulo,Saraiva,2013.

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    Umadas constataesdoGovernoFederal,queapontaparaanecessidade de uma expanso, ainda em maior escala, do sistema uni-versitrio,dizrespeitoaosignificadosocialdesepossuirumaforma-oacadmica.Segundoospreocupantesdadosfrequentementereal-adospeloDiretordeAvaliaodaCAPES,professorLvioAmaral,aDistribuio da populao com 10 ou mais anos de idade por nvel mais alto de instruo era a seguinte, em 2010, aponta revela os seguintes dados: 26

    Podemos comparar a tabela acima com os dados etrios do Cen-so2010divulgadospeloIBGE27 e desconsiderar o nmero de pessoas que,noperodo,notinhamalcanadoaindaidadeparaconcluiroensino fundamental (14 anos) emdio (17 anos).Os dados so osseguintes:

    26 ODiretordeAvaliaodaCAPEStemdivulgadoconstantementeessesdados.RetiramosatabelaabaixodapalestraproferidapeloProf.LvioAmaral,em2013,noIV Encontro de Co-ordenadores de Ps-Graduao da Unesp e disponvel em https://www.youtube.com/watch?v=--QaCaOXIgV0.

    27 http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/tabelas_pdf/Brasil_tab_1_12.pdf.

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    Dentreasmaisde144milhesdepessoasquepoderiamter,em2010,oensinomdioconcludo,maisde83milhesnochegaramaofinaldopercurso,aopassoqueonmerodedetentoresdeumttulosuperiornopaseradepoucomaisde12milheseonmerodeps--graduadospraticamenteinsignificante(menosde729milpessoas).

    Parasermelhorentendido,essedadoprecisaaindasercompa-radocomochamadobnuseducacional,ouseja,oquantoamaisreverte em ganho salarial o nvel de instruo atingido. O grficoabaixomostraqueodetentordeumttulosuperiorganha,emmdia,170,06%amaisde quempossui apenas o ensinomdio completo eevidenciaaindaqueconcluiroensinomdiosignifica,emmdia,umganhomaiorde42,09%porrelaoaquempossuioensinofundamen-tal completo.

    Adicional de remunerao das pessoas ocupadas, com 10 oumais anos de idade, com determinado nvel de instruo em relao ao nvelimediatamenteinferior,Brasil2010.

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    Algumas reflexes sobre a interdisciplinaridade na Filosofia brasileira

    Frente a esses dados, a expanso do sistema universitrio vista pela CAPES como uma medida importante para diminuir desigualda-dessociais,oquesignificaqueosistema,comoumtodo,devecontinu-aracrescer.Paraosefeitosdopresentedebatesobreaps-graduao, relevante lembrar que o aumento de matrculas na graduao brasi-leira tem ocorrido principalmente em instituies privadas, ao passo queocrescimentodaps-graduaotemsedadoprincipalmenteeminstituies pblicas.28

    O segundo aspecto relevante diz respeito matriz produtiva bra-sileira,aqualtemconhecidoumincrementonoscommoditiesagrcolas,masque,porisso,tendeatornar-semaisdependentedasoscilaesdosmercadosmundiais.Diantedoquadro, aCAPES tem insistidoque aproduocientficabrasileiradeveredundaremaumentodetecnologiase repercutir em termos de valores agregados aos produtos brasileiros. AscarnciasqualitativasdaproduocientficabrasileiraconstatadasnosrankingsinternacionaissovistaspelaCAPEScomorefletindodi-retamente na matriz produtiva e mesmo na balana comercial de um pas que ainda exporta preponderantemente commodities agrcolas e importatecnologia.Parafazerfrenteaisso,aCAPESteminsistidonain-ternacionalizao como mecanismo de avaliao, mas tambm de indu-oparaaqualidade.Aapostanessaestratgiaficaclaranadeclarao28 ConformeafirmaBarufi:Noperodorecente,verificou-seumcrescimentoaceleradodoen-

    sinosuperiornoBrasil,muitoemfunodasinstituiesprivadas,fazendocomqueototaldematrculaspassassede2,69milhesem2000para5,45milhesem2010,eototaldevagasatingisse3,12milhesem2010ante1,22milhoem2000.Barufi,A.M.B.Impactosdoacessoaoensinosuperiorsobreamigraodeestudantesuniversitrios,inResende,G.M.Avaliao de polticas pblicas: uma anlise de seus impactos regionais,RiodeJaneiro,Ipea,2014,p.307-337.

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    deque2015deverservistocomooanodainternacionalizao,anoemqueesseprocessorealmenteseintensificou.

    Haveriaaindadiversosaspectoseconmicosesociaisquepoder-amos citar e que apontam para a necessidade do crescimento da gradu-aoedaps-graduaonoBrasil.Umdelesseriaadiminuiodapo-pulaojovemeorpidoenvelhecimentodapopulaobrasileirafatorquefardiminuirapressoporvagasescolares29, mas provavelmente aumentar a presso sobre vagas universitrias. Outro, seria a necessi-dadedeaumentodeprodutividadedotrabalho.Abaixaprodutividadedotrabalhadorbrasileirotemsidoapontadaporalgunscomoumentra-ve para que o pas possa crescer a longo prazo.30 A educao superior temumpapeladesempenharnessesetor,aindaqueelanosejaonicofatorafazerdiferena.

    4. Algumas concluses

    Sistematizando rapidamente os pontos que eu pretendi ilustrar, creioquedevemossemprebuscaridentificarnaavaliaodaCAPESquais so as direes que esto sendo induzidas para o sistema univer-sitrio como um todo, mas tambm quais so os problemas que essas estratgiaspretendemresolver.Umsegundoaspectoimportanteestem considerarmos o modo como os problemas so apresentados para Filosofiaeissoexigeigualmenteumareflexosobreaidentidadedenossa rea.

    Tentandoserumpoucomaisespecficoeparaconcluir,tentareiresumir o que disse em trs pontos:

    1. Sobre interdisciplinaridade: na perspectiva da CAPES, trata--sesimultaneamentedeumproblemalegtimodeproduoe difuso do conhecimento,mas que est associado a umadificuldadegerencialdo sistema.ParaaFilosofia,noentan-to,oproblemaadquirecontornosespecficosdecorrentesdo

    29 Camarano, A. A. Perspectiva de crescimento da populao brasileira e algumas implica-es, inCamarano,A.A. (org)Novo regime demogrfico: uma nova relao entre populao e desenvolvimento?,RiodeJaneiro,Ipea,2014,p.177-213.

    30 Trata-sedeumtemacomplexoepolmico.Paraumaanlisegeral,veja-se:Cavalcante,L.R.eDeNegri,F.,ProdutividadenoBrasil:umaanlisedoperodorecente,inTexto para Discusso,RiodeJaneiro,Ipea,2014.

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    Algumas reflexes sobre a interdisciplinaridade na Filosofia brasileira

    modelodeimplementaodafilosofiaacadmicanoBrasil.Oexemplodadosugerequehrazeshistricasqueprecisamser consideradas e que geram entraves interdisciplinaridade.

    2. Sobreaexpansodoscursosdegraduaoeps-graduao.Trata-se,paraaCAPES,deconferirUniversidadeumpapelnareduodedesigualdadessociais.Paraafilosofia,trata-sedeperguntarsenossocrescimentonecessitaacompanharoritmo a ser ditado em outras reas. Se no precisar, bom termos uma ideia de qual deve ser esse ritmo e de que modo ele pode ser compatvel com nossos critrios de qualidade acadmica.

    3. Sobre a internacionalizao.Para aCAPES, trata-sedeumparmetrodeavaliaoquevisaainduzirsimultaneamenteoaumentodequalidadenaproduocientficaatreladoaocrescimento econmico do pas. Para a Filosofia, o proble-matalvezapresente-sedeoutromodoecomoutraurgncia.Trata-sedeperguntarcomooconfrontocompadresinter-nacionais pode servir para aprimorar a qualidade, mas, em boamedida,emcontinuidadecomintercmbiosinternacio-naisquefizeramevidentementepartedodesenvolvimentodenossoscursosdeps-graduao.Oscolegasquefalaramnosdiasanterioresreforarammuitoessepontoeeuapenasindicominhaconcordnciacomeles.

  • Expandir, consolidar, internacionalizar: desafios Filosofia no Brasil

    Antnio Carlos dos Santos (UFS)*

    Em 1734, Montesquieu publicou um livro que marcou a hist-ria poltica moderna. Trata-se de Consideraes sobre as causas da grandeza e da decadncia dos romanos. Nessa obra inaugural de sua produo historiogrfica, Montesquieu analisa a razo pela qual Roma tornou-se grandiosa e, ao mesmo tempo, o que a levou de-cadncia. Focando sua anlise do ponto de vista de um historiador, defende a ideia segundo a qual foi graas arte da guerra de conquis-ta, sustentada pela fora de suas prprias instituies, que Roma se tornou eterna (MONTESQUIEU. Consideraes, IV, 443). No entanto, prossegue Montesquieu, Roma caiu, depois de ter crescido, porque se expandiu de tal forma que generais e soldados perderam o sentimento que lhes era mais intrnseco: o de pertencimento da cidade, o de ser cidado romano. Ao crescer de forma desmesurada, Roma tornou-se presa fcil de faces, de grupos que no se identificavam com os valo-res romanos, e, finalmente, dos brbaros que sempre estavam prontos para atacar. Numa metfora, Montesquieu resume a decadncia dos romanos: os soldados passaram a ver a cidade de longe (MONTES-QUIEU. Consideraes, IX,453). Sem o contedo essencial que nutria o esprito romano, a cidadania, a repblica desaba no imprio e, depois, num processo lento e sofrido de corrupo crnica. Sua morte no foi sbita, mas, ao contrrio, foi chegando aos poucos, arrastada em vrias

    * Ps-doutor em Filosofia pela Universit de Sherbrooke, Canad (2008-2009) e pela Univer-sidade de So Paulo (2011). Doutor em Filosofia pela Universite de Paris X, Nanterre (2003), em cotutela com a Universidade de So Paulo. Mestre, tambm em Filosofia, pela Universi-dade de So Paulo (1997). Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe desde 1992 e do Programa de Ps-graduao em Desenvolvimento e meio am-biente da UFS (Rede PRODEMA).

    Domingues, I.; Carvalho, M. Pesquisa e Ps-Graduao em Filosofia no Brasil - Debates ANPOF de Polticas Acadmicas. ANPOF, p. 47-62, 2015.

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    Antnio Carlos dos Santos

    partes do mundo conquistado e, por isso mesmo, provocando guerras sucessivas, inclusive internas, entre diversas faces, e externas, quan-do Roma passa a ser atacada, ao mesmo tempo, por todos os lados, e por diferentes povos.

    Assim como Montesquieu atribua a perda do esprito pblico do povo romano ao seu engrandecimento, muitos creditam perda da suposta qualidade da ps-graduao brasileira sua expanso nos ltimos anos. H quem defenda, inclusive, que a ps-graduao no Brasil se probletarizou de tal forma que seus danos so irrevogveis, comprometendo sensivelmente sua consolidao e inviabilizando sua internacionalizao. Os defensores desta posio partem do pressu-posto de que tendo nichos de excelncia no pas seria suficiente para dar conta da formao de todo o territrio nacional. Os Programas de Filosofia mais antigos no pas seriam os escolhidos para ditar normas e modelos filosficos para quem desejasse continuar a sua ps-gradua-o, no havendo espao para novas propostas ou centros de pesquisa fora do grande eixo Sul-Sudeste.

    No entanto, podemos nos perguntar se, de fato, a expanso da Ps-graduao no Brasil nos ltimos anos foi to desmesurada quanto se atribui. Ora, por que omitir o fato de que a expanso foi acompanhada de grande investimento, ao menos em todas as Uni-versidades do pas, sejam elas pblicas ou privadas? Por que negar que houve um investimento altssimo em novos projetos voltados exclusivamente Ps-graduao? Esta viso estreita de relacionar expanso precarizao do ensino da ps-graduao no esconderia certo preconceito de que o seu acesso estaria reservado aos eleitos de uma classe, de uma regio ou de algumas instituies ou a suposto nico modo de se fazer filosofia?

    Ora, nosso objetivo problematizar o tema da expanso da Ps--graduao da Filosofia Brasileira tentando relacion-la com a sua con-solidao e a sua consequente internacionalizao sem perder de vista que esse crescimento tem estreita vinculao com o avano do prprio desenvolvimento do pas neste perodo, considerando ainda que ele nos impe grandes desafios.

    Para levar a cabo nosso propsito, este texto est divido em trs partes: na primeira, analisaremos o contexto da expanso, seus pro-

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    Expandir, consolidar, internacionalizar: desafios Filosofia no Brasil

    blemas e suas consequncias; na segunda, discutiremos as estratgias de superao das dificuldades da expanso visando a sua consoli-dao em mdio e longo prazo; na terceira e ltima, abordaremos o que entendemos por internacionalizao em filosofia. Talvez seja desnecessrio, mas sempre bom deixar claro, desde j, que nossa tarefa aqui promover o debate, sem pretender com isso apresentar solues definitivas ou dogmticas para os problemas ou temas que compem esta mesa.

    IA expanso

    Para que possamos delimitar o universo de nossa anlise sobre a expanso da Ps-graduao no Brasil, daremos nfase a trs argu-mentos essenciais que marcaram seus ltimos dez anos: a descentra-lizao de Programas de Ps-graduao do eixo Sul-Sudeste para ou-tras regies; a mobilid