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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO GLEICE FERRAZ VALADARES PIRAJÁ NOVOA PERSPECTIVAS DE PROFESSORES DE FÍSICA SOBRE AS POLÍTICAS CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO RIO DE JANEIRO 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

GLEICE FERRAZ VALADARES PIRAJÁ NOVOA

PERSPECTIVAS DE PROFESSORES DE FÍSICA SOBRE AS POLÍTICAS

CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO

RIO DE JANEIRO

2012

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Gleice Ferraz Valadares Pirajá Novoa

PERSPECTIVAS DE PROFESSORES DE FÍSICA SOBRE AS POLÍTICAS

CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Ciências e Saúde, Núcleo de

Tecnologia Educacional para a Saúde,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

requisito parcial à obtenção do título de Mestre em

Educação em Ensino de Ciências e Saúde

Orientadora: Profa. Dra. Flavia Rezende Valles dos Santos

Rio de Janeiro

2012

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Novoa, Gleice Ferraz Valadares Pirajá.

Perspectivas de professores de física sobre as políticas curriculares nacionais para o ensino médio / Gleice Ferraz Valadares Pirajá Novoa.– 2012.

129 f. : il. ; 30 cm.

Orientador: Flavia Rezende Valles dos Santos. Dissertação (mestrado) -- Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, 2012.

Bibliografia: f. 123-126.

1. Professores de física. 2. Professores - Participação no planejamento curricular. 3. Física (Ensino médio). I. Santos, Flavia Rezende Valles dos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Nutes, Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências

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Gleice Ferraz Valadares Pirajá Novoa

PERSPECTIVAS DE PROFESSORES DE FÍSICA SOBRE AS POLÍTICAS

CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Ciências e Saúde, Núcleo de

Tecnologia Educacional para a Saúde,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

requisito parcial à obtenção do título de Mestre em

Educação em Ensino de Ciências e Saúde.

Aprovada em ________________________________________

___________________________________________________________

Profa. Dra. Flavia Rezende Valle dos Santos – UFRJ

___________________________________________________________

Profa. Dra. Guaracira Gouvêa - UFRJ

___________________________________________________________

Profa. Dra.Alcina Maria Testa Braz da Silva - IFRJ

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Aos meus pais, Ricardo e Lucimar, por abrirem mão de tantos sonhos

para a realização dos meus

Ao meu irmão, Ricardinho, pelo carinho e amor

Ao meu marido, Carlos Eduardo, por ter vibrado comigo nos momentos de

alegria e me consolado nos momentos de tristeza.

Aos meus antepassados, que onde

quer que estejam se fizeram presentes em todos os momentos.

À minha vó, Lúcia, a quem jamais esqueço.

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Agradeço... A Deus, o princípio de tudo. À professora Flavia Rezende, por quem tenho enorme carinho e admiração. Obrigada pelas intermináveis horas de reunião no Skype, pelos puxões de orelha, pelas orientações sempre preciosas, pela amizade e compreensão. Nesses cinco anos de convivência – é, isso tudo! – só tenho a agradecer todo o aprendizado que me proporcionou. Ao meu queridíssimo parceiro e amigo de mestrado, Aroaldo Veneu, a quem dedico muitas páginas desta dissertação. Obrigada pela `orelha`, pelas gargalhadas, pelo aprendizado, pelas co-autorias, por tudo! Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Saúde da UFRJ, por expandir meus horizontes com seus conhecimentos e experiências. À professora Fernanda Ostermann, pelas ótimas sugestões apresentadas no exame de qualificação. À professora Guaracira Gouvêa, que além de ter contribuído com suas sugestões no exame de qualificação aceitou participar desta etapa final. Às professoras Alcina Maria, Deise Vianna e Rita Villanova que aceitaram tão gentilmente o convite para compor a banca de defesa desta dissertação. Aos colegas do Grupo de Pesquisa do Observatório, o qual eu tive prazer de integrar, cujas discussões e resultados enriquecerem meu aprofundamento sobre o campo da educação. Aos colegas de trabalho Sandra Machado, Roberta Comissanha, Richard Martin, Gabriela Borges, Leilane Oliveira, Tais Leira, Luziane Schwartz, Márcia Duarte (in memorian), Mara Costa, Ana Beja, pela maravilhosa convivência que tivemos ao longo desses anos. Aos colegas de mestrado, pela troca, pelo carinho, pela amizade, pelos risos e, claro, pelos encontros etílicos. Aos funcionários da secretaria, por terem dado mais emoção à minha vida acadêmica a cada email enviado ‘para ontem’. A todos os grandes mestres e professores que fizeram parte de toda a minha trajetória. Ao meu Caduzinho, por me fazer seguir em frente, por acreditar em mim, por respeitar o meu trabalho e, acima de tudo, por me amar.

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À minha mãe Lucimar, por ser meu maior exemplo de coragem e dedicação. A próxima será você! Ao meu pai Ricardo, a quem a mim e ao meu irmão tudo dedicou. Espero ter feito valer a pena! Ao meu irmão Ricardinho, por amor, carinho e amizade Às minhas irmãs Vitória e Pâmela, que tornaram minha família ainda mais linda. A toda a minha família, pelos momentos sempre especiais. Aos meus grandes amigos Guilherme Soares e Thiago Valle, valeu a pena! À Livuda, pela amizade incondicional. A todos os meus amigos, que mesmo com um sorriso e um gesto carinhoso me motivaram a chegar até aqui. Aos professores que participaram do curso, por me possibilitar aprender com vocês. A todos que de alguma forma me incentivaram e que ficam felizes com mais essa conquista pessoal e profissional.

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RESUMO

O presente estudo investigou o discurso de 5 professores de Física de nível

médio que participaram de um curso online de formação continuada à distância sobre os

PCNEM de Física. Tomando por base a filosofia da linguagem de M. Bakhtin, buscou-

se investigar a apropriação discursiva dos PCNEM por professores que atuam em

diferentes realidades regionais, procurando identificar em que medida suas perspectivas

dialogavam com outras perspectivas sobre currículo, currículo nacional, relações de

poder implicadas no currículo, objetivos do currículo e a submissão ao mundo

produtivo. Os professores autores-criadores dos enunciados analisados têm em comum

o fato de terem participado do mesmo curso, considerado como contexto extraverbal.

Por outro lado, têm idade, formação e tempo de magistério diferentes, além de atuarem

em escolas públicas que pertencem a diferentes regiões da federação. O referencial

discursivo bakhtiniano em conjunto com um dispositivo analítico desenvolvido no

âmbito deste estudo permitiram o escrutínio detalhado da perspectiva de cada professor.

Apesar das diferenças individuais, a partir das análises realizadas, é inegável que os

enunciados de todos os professores investigados apresentaram uma perspectiva

favorável em relação aos PCNEM de Física, se apropriando também da condenação ao

ensino propedêutico. Como solução, os professores concordam com o principal

caminho apontado pela legislação: o ensino contextualizado. Na medida em que

desconsideram as perspectivas críticas de currículo, o discurso desses professores acaba

por legitimar o conteúdo dos PCNEM; a concepção do currículo como prescrição; o

conteúdo mínimo nacional; e as relações de poder existentes no currículo. A

apropriação acrítica do ensino contextualizado pelos professores está em sintonia com

as pesquisas realizadas no ensino de Ciências, já que muitos dos trabalhos fazem

menção e enaltecem o ensino contextualizado, silenciando um viés mais crítico que

problematizaria outros fatores envolvidos no currículo e se voltando à mera

consideração do mundo vivencial do aluno na prática pedagógica. O silêncio dos

professores investigados em relação a aspectos não metodológicos do ensino de Física

molda igualmente suas perspectivas e acentua a preocupação com a transposição

didática dos conteúdos exigidos pelo currículo, deixando de fora questionamentos sobre

por que se tem este e não outro currículo.

Palavras-chave: Apropriação discursiva; Perspectivas docentes; Políticas curriculares

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ABSTRACT

The present study investigated the discourses of five high schools Physics

teachers who participated in a continuing education online course on Physics High

School National Curricular Parameters (PCNEM). Based on the M. Bakhtin´s

philosophy of language, we sought to investigate the discursive appropriation of

PCNEM by teachers who worked in different regional realities, trying to identify to

what extent their perspectives dialogued with other perspectives on curriculum, national

curriculum, power relations involved in the curriculum objectives curriculum and

submission to the productive world. Teachers whose statements were analyzed,

considered as bakhtinianauthors-creators, have in common the fact that they attended

the same course, which was considered as an extraverbal context. On the other hand,

they are from different age groups, attended different undergraduate courses, took up

teaching at different points of their lives as and work in public schools that belong to

different regions of the federation. The bakhtinian concepts, together with an analytical

framework developed in this study allowed the detailed scrutiny of each teacher's

perspective. Despite the individual differences, our analysis showed that the statements

of all surveyed teachers had an undeniably positive perspective of Physics PCNEM.

They have also appropriated the Parameters critique to traditional teaching. . As a

solution, teachers agree with the main path indicated by the legislation: the

ontextualized teaching. These teachers´ discourses disregard the critical perspectives of

curriculum, what would eventually legitimize the PCNEM´s contents, the idea of a

curriculum as a prescription; the national minimum content; and the power relations

existing in the curriculum. This uncritical appropriation of contextualized teaching is

aligned to current research in science education, since many of the papers mention and

praise contextualized teaching, silencing a more critical bias that would take into

account other factors involved in the curriculum and proposing a pedagogical practice

which is reduced to the mere consideration of the experiential world of the student. The

silence of investigated teachers regarding the non-methodological aspects of Physics

teaching shapes also their perspectives and accentuates the concern with the didactic

transposition of curriculum required content, leaving out questions about why this and

not another curriculum was chosen.

Keywords: Discursive appropriation; Teachers’ perspectives; Curriculum policies

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SUMÁRIO

1 PROBLEMÁTICA 10

2 REVISÃO DE LITERATURA 19

2.1 Uma trajetória do conceito de currículo 19

2.2 O currículo nacional em pauta 24

2.3 Perspectivas acadêmicas sobre as políticas curriculares oficias 26

2.3.1 Análise dos discursos das políticas curriculares 30

2.3.2 Políticas curriculares e formação docente 32

2.3.3 Política curriculares na prática docente 33

2.3.4 Políticas curriculares e as finalidades da educação 35

2.3.5 Abordagens metodológicas para a pesquisa em políticas curriculares 36

2.3.6 Relações entre o Estado e as políticas curriculares 36

2.3.7 Uma síntese 37

2.4 Parâmetros curriculares nacionais para a área de ensino de Ciências da Natureza

Matemática e suas Tecnologias 38

2.4.1 Habilidades, competências e interdisciplinaridade 39

2.4.2 O conceito de contextualização 45

2.5 O ensino de Física segundo os PCNEM 47

3 QUADRO TEÓRICO METODOLÓGICO 53

3.1 Filosofia da linguagem de Bakhtin: fundamentos 53

3.2 Bases teóricas para um dispositivo analítico 56

3.2.1 Enunciado: características 57

3.2.2 Enunciado e oração: identificação positiva, negativa e gêneros do

discurso 61

3.2.3 O contexto extraverbal 63

3.2.4 Enunciado e vozes 66

3.2.5 Apropriação discursiva 68

3.3 Objetivo e questões de pesquisa 73

3.4 Delimitação do estudo 73

4 CONTEXTO DO ESTUDO 74

4.1 Contexto do estudo 74

4.1.1 O ambiente virtual 74

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4.1.2 Cursistas 75

4.1.3 Atividades pedagógicas do curso 78

4.1.4 Descrição do curso 79

4.1.5 Mediação dos tutores 83

4.2 Corpus do estudo 83

5 APROPRIAÇÃO DISCURSIVA DOS PCNEM DE FÍSICA POR

PROFESSORES 86

5.1 Enunciado do Professor Norte 88

5.1.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor

Norte 89

5.2 Enunciado do Professor Sul 93

5.1.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor

Sul 94

5.3 Enunciado do Professor Sudeste 99

5.3.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor

Sudeste 100

5.4 Enunciado do Professor Nordeste 104

5.4.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor

Nordeste 106

5.5 Enunciado do Professor Centro-Oeste 110

5.5.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor

Centro-Oeste 110

6 SÍNTESE DA ANÁLISE, DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS 114

6.1 Síntese da análise 114

6.2 Discussão e considerações finais 120

REFERÊNCIAS 123

ANEXOS 127

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1. PROBLEMÁTICA

Entre os anos de 1995 e 1998, o governo de Fernando Henrique Cardoso

empreendeu uma reforma educacional preconizada pela Lei n. 9.394, de 20 de

dezembro de 1996, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (LDB),

que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional em resposta ao novo contexto

socioeconômico mundial e o consequente posicionamento do Brasil neste contexto.

Embora contemplasse outros aspectos, como mudanças nas legislações, na gestão das

escolas, nas formas de financiamento, etc., foram as mudanças nas políticas curriculares

que ganharam maior destaque na reforma empreendida, a ponto de serem analisadas

como se fossem a reforma educacional em si (LOPES, 2004b).

Para a autora, a centralidade do currículo não vem a ser uma característica

apenas desse ou daquele governo; desse ou daquele país. JALLADE (apud LOPES,

2004b) destaca o fato de que para o Banco Interamericano de Desenvolvimento1 (BID),

o currículo é o coração de um empreendimento educacional e nenhuma política ou

reforma educacional pode ter sucesso se não colocar o currículo no seu centro. Diante

desta constatação, podemos supor ser bastante difícil que a concepção de currículo do

BID não repercuta junto aos seus países membros, incluindo o Brasil

Lopes (2004b) ainda acrescenta que as diretrizes do BID – e seus reflexos em

diferentes países – se coadunam com a ideia de que pelas mudanças curriculares, o

poder central de um país constrói uma atmosfera extremamente favorável de uma

reforma muito mais ampla que a dos currículos, onde:

“as práticas curriculares anteriores à reforma são negadas e/ou criticadas como desatualizadas, de forma a instituir o discurso favorável ao que será implantado: mudanças nas políticas educacionais visando à constituição de distintas identidades pedagógicas consideradas necessárias ao projeto político–social escolhido” (LOPES, 2004b, p. 110)

Assim, à luz do contexto socioeconômico mundial, podemos considerar os

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN 2 ) como o principal fruto da reforma

educacional ocorrida na década de 1990 e o principal empreendimento de implantação

de um currículo nacional ocorrido no país. Este documento foi criado no sentido de

nortear o que deve ser aprendido pelos estudantes no nível médio em cada disciplina

1 O Banco Interamericano de Desenvolvimento ou BID é uma organização financeira internacional com sede na cidade de Washington, E.U.A, e criada no ano de 1959 com o propósito de financiar projetos viáveis de desenvolvimento econômico, social e institucional e promover a integração comercial regional na área da América Latina e o Caribe. Atualmente o BID é o maior banco regional de desenvolvimento a nível mundial e serviu como modelo para outras instituições similares a nível regional e sub-regional. (Fonte: www.iadb.org) 2 Utilizarei a sigla PCN para me referir aos parâmetros curriculares tanto do Ensino Fundamental quanto o Ensino Médio e utilizarei PCNEM para me referir, exclusivamente, aos parâmetros curriculares para o Ensino Médio

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servindo ao mesmo tempo como orientação para a formação do novo cidadão do século

XXI e como referencial de qualidade para a educação no país. Como afirma Moreira

(1994), o processo que originou a versão preliminar dos PCN iniciou–se no final de

1994 e contou com uma equipe composta por representantes do MEC e cerca de 60

estudiosos da educação brasileira e mais representantes da Argentina, Colômbia, Chile e

Espanha (todos ligados ao BID) países nos quais haviam sido recentemente promovidas

mudanças curriculares em sintonia com a visão neoliberal da educação. Nesta visão, a

educação deixa de ser parte do campo social e político para ingressar no mercado e

funcionar a sua semelhança (SILVA, 1995). Registre–se que a experiência de fato

inspiradora dos nossos Parâmetros foi espanhola, sendo o professor César Coll,

catedrático de Psicologia Educacional da Universidade de Barcelona e um dos teóricos

mais diretamente engajados na reforma educativa espanhola, um dos consultores do

trabalho desenvolvido no nosso país (MOREIRA, 1996).

Em relação ao currículo do nível fundamental, a Constituição Brasileira, já em

1988, previa em seu Art. 210 que seriam fixados “conteúdos mínimos para o ensino

fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores

culturais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL, 1988).

Embora o artigo refira–se apenas ao ensino fundamental, o entendimento fixado

pela jurisprudência é o de que a necessidade de definição de conteúdos mínimos se

estende por toda educação básica, incluindo o ensino médio. A grande crítica que se faz

ao poder constituinte se refere a não especificidade do significado da expressão

“conteúdo mínimo” e a ausência de outorga a quem cabe essa definição (MOREIRA,

1996).

A partir dessa breve exposição, percebermos que a instituição dos PCN não foi,

de fato, um movimento apartado de toda a dinâmica política, social e econômica que

vinha se dando no Brasil e no mundo. Assim como toda política curricular, os PCN

devem ser colocados numa moldura mais ampla que engloba suas determinações

sociais, sua historia, sua produção contextual (SILVA, 1996).

Com o objetivo de incorporar nas escolas mudanças referentes às práticas

educacionais, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) procurou então promover as

novas orientações curriculares tanto para o nível médio quanto para o ensino

fundamental a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e dos PCN, ambos

redigidos à luz da LDB de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996).

As DCN são obrigatórias por serem estabelecidas a partir da exigência

constitucional em que, de acordo com os art. 22 e art. 210 da Constituição Federal de

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1988, compete privativamente à União legislar sobre as diretrizes e base da educação

nacional e afixar conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar

formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e

regionais. Já os PCN são um documento sem caráter de obrigatoriedade que se

apresenta enquanto um “subsídio teórico metodológico para a implementação das

propostas [presentes nos DCN] na sala de aula” (RICARDO e ZYLBERSTAJN, 2008,

p.258).

Apoiados em habilidades e competências básicas, os PCNEM têm como objetivo

preparar o jovem estudante para a chegada à vida adulta e para o exercício pleno da

cidadania. Surgem com a proposta de direcionar e organizar o aprendizado no Ensino

Médio, a fim de gerar um conhecimento real, com significado próprio, não apenas

voltado para o acúmulo de informações (BRASIL, 1997).

Acerca destes conceitos – competências e habilidades – pude verificar, a partir

de uma pesquisa nos trabalhos das área de educação e de educação em ciências, que há

uma escassez de produção teórica a respeito. A literatura parece tornar–se mais pródiga

quando se adentra nas áreas de ensino profissionalizante e administração de empresas.

Além da escassez de fontes de consulta, o que contribui para deixar ainda menos

inteligível a compreensão desses conceitos é a falta de clareza e de completeza com que

são abordados, seja na literatura consultada, seja nos próprios documentos oficiais,

como nas DCN e nos PCNEM. Os próprios elaboradores dos PCNEM de Física, por

exemplo, não chegam a um consenso sobre a distinção e conceituação dos termos

(RICARDO e ZYLBERSTAJN, 2008).

Diante da falta de aprofundamento desses conceitos tanto na pesquisa em

educação e educação em ciências como no próprio PCNEM, retomarei esta discussão na

“Revisão de Literatura” onde procurarei recuperar o histórico e algumas concepções da

noção de competências e habilidades. Por ora, sendo estes conceitos de extrema

importância no documento – chegando a ser considerados ‘eixos de apoio’ – sigo, neste

capítulo, expondo a conceituação dos referidos termos a partir do próprio texto dos

PCNEM.

De acordo com os PCNEM, as habilidades representam os valores e atitudes que

se pretendem desenvolver e as competências, os objetivos a alcançar. Na medida em

que se desenvolvem com referência ao mundo vivencial, as habilidades permitem

articular diversos conhecimentos e as competências vêm, então, para promover o

reconhecimento do significado deste ou daquele conceito em outros contextos, não

restringindo, portanto, a atenção em um único objeto de estudo. Ambas devem ser

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desenvolvidas por meio de ações concretas, objetos, assuntos, experiências que

envolvem determinado olhar acerca da realidade. Nesse sentido, as habilidades e

competências podem ser abordadas em tópicos diferentes, com formas distintas em cada

caso, sendo mais ou menos adaptadas dependendo do contexto em que estão sendo

trabalhadas (BRASIL, 1997).

Tendo como uma de suas preocupações centrais a promoção da autonomia na

aprendizagem e a inserção dos jovens na vida adulta, visto que a escolha de uma

profissão ainda pode estar sendo gerada, algumas competências seriam indispensáveis

para possibilitar “a independência de ação e aprendizagem futura”. (BRASIL, 1997,

p.24). A esse respeito o documento afirma:

“o mundo do trabalho e a prática social estão mais exigentes quanto à educação necessária para o homem do nosso tempo, esperando dele flexibilidade, capacidade de adaptação, raciocínio lógico, habilidades de análise, síntese, prospecção, leitura de sinais e agilidade na tomada de decisões” (BRASIL, 1997, p. 6).

Além das competências e habilidades, a contextualização também integra os

eixos principais em que os PCNEM se apoiam, sendo muitas as críticas dirigidas ao

ensino ‘descontextualizado, compartimentalizado e baseado no acúmulo de

informações’ ao longo de todo o documento. Segundo os PCNEM, ao contrário deste

ensino, é necessário:

“dar significado ao conhecimento escolar, mediante a contextualização; evitar a compartimentalização, mediante a interdisciplinaridade; e incentivar o raciocínio e a capacidade de aprender” (BRASIL, 1997, p.4)

As críticas aos parâmetros curriculares, desde a sua versão preliminar até a sua

ampla divulgação oficial, pelas comunidades educacionais, foram muitas. A primeira e

principal delas diz respeito ao documento se constituir em uma tentativa de currículo

nacional (MOREIRA, 1996; LOPES, 2002a, 2006). Ainda que não haja um consenso

sobre o que deve ser entendido por currículo nacional (MOREIRA, 1996),

indubitavelmente, a proposta de um currículo nacional parte do pressuposto de que a

homogeneidade de padrões e saberes básicos a serem ensinados a todos seria mais que

desejável, seria necessário. Para Lopes (2006), manifestamente opositora ao currículo

nacional, essa regulação de sentidos cerceia as diferenças e silencia as múltiplas

possibilidades de saberes e valores nas diversas práticas curriculares, nos diversos

locais.

Muito embora em determinada época tenha se admitido a ideia de que a

globalização seria capaz de saturar contextos locais, gerando o que Gentili (apud

LOPES, 2002a) denominou de ‘mcdonaldização’ da educação em um ‘mcmundo’, hoje

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são frequentes os trabalhos que reconhecem a heterogeneidade como parte do processo

de apropriação das políticas curriculares pelas realidades nacionais e locais (CANDAU,

1999 apud LOPES, 2006; LOPES, 2006). Para esses autores:

“Não é negada a instituição de alguns marcos estabelecidos por um projeto global, mas é defendido que a materialização das propostas globais em contextos nacionais encontram–se hibridizadas aos projetos políticos locais. Em outras palavras, para constituírem–se um projeto global, as políticas de currículo nacional tiveram de articular–se às concepções locais, dar conta de responder aos projetos em disputa nos Estados–nação, gerando uma heterogeneidade de orientações curriculares nos diferentes países.” (LOPES,2006, p.130)

Lopes (2004b) não só reconhece este processo de hibridização como defende

que é essencial retirar dos PCN a marca de documento padrão, concebendo–o apenas

como uma das propostas possíveis e permitindo que outras possíveis propostas

curriculares tenham espaço para produzir novos sentidos nos estados, nos municípios e

nas próprias escolas, “valorizando o currículo como espaço de pluralidade de saberes,

de valores e de racionalidades” (p.116).

Uma segunda crítica feita aos PCN se refere à preconização do ensino baseado

em competências e habilidades (MOREIRA, 1996; VALENTE, 2000; LOPES, 2001,

2004b, 2006). Para Lopes (2001) é possível perceber como concepção dominante nos

PCNEM que o currículo voltado às habilidades e competências é entendido como capaz

de proporcionar a inserção dos estudantes numa dinâmica social que se modifica de

forma contínua, permanecendo presente um discurso que atrela a educação ao processo

formativo responsável por inserir os sujeitos na estrutura social vigente e em seus

processos produtivos.

A esse respeito, Lopes (2006) aponta que as relações da educação com o

mercado permanecem como um dos marcos de colonização das práticas curriculares em

que a cultura comum é valorizada enquanto moeda de troca no mercado, permanecendo

a ideia de que a educação deve servir de ferramenta de inserção social, vinculando–se

ao mundo produtivo, sem se preocupar com os questionamentos de como se constituiu

e/ou se constitui este mundo.

A terceira e última principal crítica feita pela comunidade educacional que

abordo nesta problemática se refere aos objetivos do currículo e às suas relações de

poder (LOPES, 2002b; SILVA, 1996;). Para Silva (1996), o currículo não pode ser

considerado um elemento inocente e neutro com pretensões desinteressadas. Pelo

contrário, o currículo está implicado em relações de poder e “transmite visões sociais

particulares e interessadas, [...] produz identidades individuais e sociais particulares” (p.

83). Por exemplo, a partir do estudo da Lopes (2002b) sobre o conceito de

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contextualização, o qual pode–se considerar como um pilar tão importante quanto as

noções de competência e habilidade, a visão particular interessada e a produção de

identidades individuais e sociais dos PCNEM têm por objetivo a inserção social no

mundo produtivo. A autora pretende demonstrar que o conceito de contextualização

“associa–se a princípios eficientistas: a vida assume uma dimensão especialmente

produtiva do ponto de vista econômico, em detrimento de sua dimensão cultural mais

ampla” (p.390).

Já em 1994, Apple (1994b), a partir do contexto norteamericano da época,

chamava atenção para a constituição deste vínculo entre o currículo e mundo produtivo

enquanto uma espécie de exportação da crise econômica e de relações de autoridade

para as escolas que poderia resolver vários problemas da sociedade:

“Se as escolas, seus professores e seus currículos fossem mais rigidamente controlados, mais estreitamente vinculados às necessidades das empresas e das indústrias, mais tecnicamente orientadores e mais fundamentados nos valores tradicionais e nas normas e regulamentos dos locais de trabalho, então os problemas de aproveitamento escolar, de desemprego, de competitividade econômica internacional, de deterioração das áreas das grandes cidades, etc., desapareceriam quase que por completo, assim querem nos convencer” (p.40)

Embora a questão curricular tenha status central no campo político, a revisão da

literatura3 sobre PCNEM e políticas curriculares em artigos publicados em periódicos4

das áreas de Educação e Educação em Ciências entre os anos 2000 e 2010 mostrou que,

desde a sua ampla divulgação até os dias atuais, ainda há pouca reflexão sobre o tema.

Na área de Educação em Ciências foram encontrados 12 trabalhos que tinham

como foco as políticas curriculares num total de 1.558 e na área de Educação, apenas 09

trabalhos, num total de 1.266.

No entanto, embora sejam poucos os trabalhos que discutam as políticas

curriculares (apenas 0,78% do total de trabalhos publicados nas revistas pesquisadas),

pode–se notar que são variadas as reações da comunidade acadêmica, gerando múltiplas

temáticas5, como por exemplo, políticas curriculares e formação docente; o Estado e as

políticas curriculares; as políticas curriculares e os objetivos da educação; etc.

Dentro deste número reduzido de artigos, muito poucos vão além da

preocupação com a implementação das políticas curriculares. Nessa perspectiva,

3 O trabalho, do qual fui co-autora (FERRAZ et al., 2011) foi apresentado no VIII ENPEC, em dezembro

de 2011, cujos anais se encontram no prelo. 4Ciência & Educação, Investigações em Ensino de Ciências, Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Ensaio - Pesquisa em Educação em Ciências, A Física na Escola, Revista Brasileira de Educação, Revista Brasileira de Ensino de Física, Cadernos de Pesquisa, Educação e Sociedade. 5 A categorização e as análises estão descritas em Ferraz et al (2011).

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criticam a formação inicial por não proporcionar aos futuros professores o contato com

os documentos oficiais de maneira a dificultar a sua implementação correta, porém não

há nenhuma crítica em relação ao entendimento desses professores do currículo como

algo dado e indiscutível, que não o encare enquanto um produto sociocultural a ser

problematizado e discutido. Essa atitude demonstra que, em um grande número de

trabalhos nas áreas de ensino de Ciências e de Educação, a concepção predominante é a

do currículo como prescrição (GOODSON, 2007).

Essa concepção de currículo presente tanto na esfera governamental (LOPES,

2004b) quanto no meio acadêmico limita as escolas à sua capacidade de implementação,

ou não, dos PCN. Assim, os dirigentes questionam a escola e os professores por não

seguirem devidamente as políticas oficiais e os professores questionam o governo por

produzir políticas que as escolas não conseguem implementar e, em ambos os casos, se

faz presente a perspectiva da prática como espaço para implementação das propostas

oficiais.

Ricardo (2003), por exemplo, indica que os entraves à implementação dos

PCNEM – sejam elas quais forem – em sala de aula, se devem principalmente, à falta de

formação do professor, não problematizando outros fatores provenientes do próprio

documento, tal qual seu caráter prescritivo e distante das múltiplas realidades escolares

(LOPES, 2002a).

Nos trabalhos que abrangem os discursos sobre currículo e o processo de

hibridismo, onde há um viés mais crítico, percebemos um consenso de que as políticas

curriculares nas escolas e nas comunidades disciplinares são frutos da

recontextualização, processo que confere aos textos curriculares novos sentidos,

assumindo modificações como parte do processo.

Houve também, neste levantamento, artigos que apenas citavam as políticas

curriculares sem tê–lo como foco de estudo. Nestes trabalhos, observamos a intenção de

legitimação da prática pedagógica por meio da reprodução do discurso oficial.

Um dos nove trabalhos localizados na área de Educação aponta o baixo impacto

das reformas curriculares na realidade escolar. Neste trabalho, Santos (2002) afirma que

seria cabível pensarmos que, definindo um currículo nacional, selecionando os livros

didáticos a serem adotados pelas escolas, capacitando os professores para desenvolver

as competências consideradas fundamentais para o exercício de sua função, haveria uma

notável melhoria no sistema educacional brasileiro. Entretanto, a autora salienta que

não sendo as escolas e os professores como tábulas rasas, prontas a assimilar tudo que

lhes é apresentado, parâmetros e normatizações elaboradas como propostas fechadas

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esbarram com inovações singulares, gerando muitas vezes conflitos com os discursos e

as práticas em desenvolvimento nas escolas.

Dessa forma, embora seja na esfera governamental que se dê a produção das

políticas educacionais e formulação de propostas curriculares, as pesquisas na área têm

demonstrado que mesmo quando os professores aderem às novas propostas curriculares,

elas são sempre reinterpretadas e adaptadas às suas próprias necessidades, dando seu

próprio acento aos conteúdos e às práticas de ensino (LOPES, 2002b, 2004).

O processo de reinterpretação e adaptação no nível do discurso das políticas

curriculares será considerado, neste estudo, como sendo a apropriação discursiva dessas

políticas, pois, segundo Bakhtin (2006b), a apropriação consiste, justamente, em povoar

a palavra do outro com suas próprias palavras, sua própria intenção, seu próprio acento,

adaptando–a à sua própria intenção semântica e expressiva.

A apropriação de propostas curriculares por professores pode ser ilustrada por

meio de um estudo de caso sobre a apropriação dos PCNEM por um professor de Física

(FERRAZ et al, 2010a). Os autores deste estudo verificaram que no discurso deste

professor, o caráter apenas orientador das práticas educativas dos PCNEM foi

superestimado. Ao se apropriar do documento, seu próprio acento empregou força de lei

ao documento e às orientações contidas nele. Embora a teoria de Bakhtin não nos

permita atingir uma identidade entre discurso e prática – como será visto mais

detalhadamente no Quadro Teórico Metodológico – o discurso professor dá indícios de

que a sua prática pedagógica e a dos demais professores deveria seguir estritamente os

PCNEM, parecendo admitir a política do conhecimento oficial enquanto descrição

neutra do mundo (APPLE, 1994).

O estudo foi um indício de que as propostas curriculares oficiais, e mesmo o

currículo em ação nas escolas, são sempre constituídos por processos de apropriação,

que impõe, simultaneamente um reposicionamento e uma refocalização dessas políticas

por parte dos professores tanto no nível do discurso – a apropriação discursiva – e,

assim como afirma Lopes (2001, 2004b), um reposicinamento também no nível da

prática

Diante das possíveis perspectivas sobre o currículo e sobre as políticas

curriculares preliminarmente levantadas nesta introdução, o presente trabalho pretende

investigar o discurso dos professores de Física de nível médio no contexto de uma

atividade desenvolvida num curso online de formação continuada à distância. O

objetivo principal é identificar como se dá a apropriação discursiva dos PCNEM de

Física, por diferentes professores que atuam em diferentes realidades regionais,

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procurando sinalizar em que medida as perspectivas dos professores em relação ao

documento dialogam com perspectivas apresentadas aqui e no próximo capítulo dentre

outras perspectivas não levantadas na presente dissertação, mas que venham a integrar o

discurso do professor e, ainda, as aproximações e afastamentos entre as perspectivas

apresentadas por cada um desses professores.

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2. REVISÃO DE LITERATURA

Sendo o interesse dessa pesquisa investigar a apropriação discursiva dos

PCNEM por professores de Física e entendendo que sua apropriação será permeada pelo

diálogo com outras perspectivas, vejo a necessidade de pontuar, nesta revisão, algumas

perspectivas que suponho fazerem parte do universo discursivo com o qual os

professores de Física de nível médio poderão dialogar. Tendo certeza de que este

universo não poderá ser esgotado, já que seria impossível prever sua totalidade, elegi

algumas perspectivas às quais tive acesso no meio acadêmico. Entre elas: uma breve

revisão teórica sobre o conceito de currículo incluindo uma discussão sobre a

implantação do currículo nacional; perspectivas acadêmicas sobre os PCNEM enquanto

núcleo de uma política curricular com base em um levantamento bibliográfico

apresentado em evento recente da área de ensino de Ciências; outras perspectivas

acadêmicas especificamente relacionadas aos PCNEM da área de Ciências da Natureza,

Matemática e suas Tecnologias; e perspectivas acerca do documento da área de Física,

com base em um trabalho também apresentado recentemente em um evento científico.

Dessa forma, o breve mapeamento teórico aqui empreendido tem por finalidade

mapear as possibilidades discursivas que poderão servir como referência para a

compreensão das perspectivas dos professores.

2.1 Uma trajetória do conceito de currículo

Mesmo antes de constituir-se como objeto de estudo, o currículo sempre foi o

centro das atenções de todos que buscavam melhor entendimento e maior organização

do processo educativo escolar (MOREIRA E SILVA, 2008). Porém, apenas no final do

século XIX, um número significativo de educadores começou a tratar o currículo de

maneira mais sistemática, iniciando, dessa forma, uma série de estudos e iniciativas

envolvendo problemas e questões curriculares, que, em pouco tempo, configuraram o

surgimento de um novo campo (MOREIRA E SILVA, 2008).

Esse processo originou-se nos Estados Unidos, nos anos 20, onde, pela primeira

vez, elegeu-se o currículo como foco central da Sociologia da Educação numa

abordagem sociológica e crítica do currículo (MOREIRA E SILVA, 2008). Os autores

afirmam que o contexto sócio-histórico americano da época consistia na economia pós-

guerra dominada pelo capital industrial onde o sistema de competição livre, então

prevalente, estava rapidamente sendo substituído pelos monopólios. Para que houvesse

a produção em larga escala, era necessário o aumento das instalações e do número de

mão-de-obra. Os procedimentos administrativos sofisticaram-se e assumiram um caráter

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“científico” e o processo de produção tornou-se mais complexo e socializado. Moreira e

Silva (2008) apontam que nesse contexto:

“Uma nova concepção de sociedade, baseada em novas práticas e valores derivados do mundo industrial, começou a ser aceita e difundida. Cooperação e especialização, ao invés de competição, configuravam os núcleos de uma nova ideologia. O sucesso na vida profissional passou a requerer evidências de mérito na trajetória escolar. Ou seja, novas credenciais, além de esforço e ambição, tornaram-se necessárias para se “chegar ao topo” ” (p.10)

Nessa época, segundo Silva (2000), houve um intenso processo de massificação

da escolarização e o currículo passou a ser utilizado como instrumento para racionalizar

os resultados educacionais – especificando-os e medindo-os cuidadosamente – e os

estudantes considerados como produtos a serem processados. Cabia às escolas, a partir

do controle social que se pretendia estabelecer com o currículo, “inculcar os valores, as

condutas e os hábitos ‘adequados’ ”(MOREIRA E SILVA, 2008, p.10), promovendo

assim a adaptação das novas gerações às transformações que ocorriam nas esferas

econômica, social e cultural. Dessa forma, o conceito de currículo apresentava como

propósito mais amplo o planejamento “científico” das atividades pedagógicas e seu

controle, afim de evitar comportamentos e pensamentos dos alunos que os desviassem

de metas e padrões pré-definidos (SILVA, 2000) e, por consequência, sua organização

foi pensada de modo a conferir-lhe características de ordem, racionalidade e eficiência

(MOREIRA E SILVA, 2008).

No final da década de 50, a partir da derrota na corrida espacial, instaurou-se nos

Estados Unidos um processo de culpabilização dos educadores por parte dos cidadãos

americanos que insistiam na necessidade e urgência de se restaurar a qualidade

supostamente perdida pela escola (MOREIRA E SILVA, 2008). A esfera federal

norteamericana entrou então em ação e recursos foram disponibilizados para as

reformas nos currículos de Ciências, Matemática, Estudos Sociais, entre outros, bem

como foram elaborados e implementados novos programas, materiais, estratégias e

propostas de treinamento de professores com o intuito de redirecionar e fortalecer o

campo do currículo (SILVA, 2000).

Porém, estas ações pareceram não ter contribuído, de fato, para a revolução

pedagógica e curricular que pretendeu se desenvolver no país. Moreira e Silva (2008)

apontam que essa tentativa:

“Foi, ao menos em parte, neutralizada pelos problemas que desafiaram a sociedade americana nos anos sessenta. Racismo, desemprego, violência urbana, (...) representaram motivo de vergonha para os que desejaram ver a riqueza mais bem distribuída e sonhavam com a concretização de uma sociedade mais democrática, justa e humana. A revolta contra todos esses problemas levou a uma série de

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protestos e ao questionamento das instituições e dos valores tradicionais” (p. 12)

A escola e os educadores foram novamente culpabilizados e:

“Denunciou-se que a escola não promovia ascensão social e que, mesmo para as crianças dos grupos dominantes, era tradicional, opressiva, castradora, violenta e irrelevante. Seria necessário transformá-la e democratizá-la ou então aboli-la e substituí-la por outro tipo de instituição (MOREIRA, 1989 apud MOREIRA e SILVA, 2008).

Assim, diante da crise, muitos foram os grupos norteamericanos que se

levantaram: os que defendiam uma escola eficaz, porém aliada à ideais tradicionais; os

que pregavam a liberdade na escola e seus fins humanistas e os que defendiam o fim das

escolas. Porém, nenhum grupo questionava a sociedade capitalista que se consolidou no

país, nem o papel da escola enquanto perpetuadora dessa sociedade (SILVA, 1995).

Dessa forma, autores interessados em denunciar o papel da escola e do currículo

na reprodução da estrutura social e preocupados com a construção de uma escola e

currículo que se alinhassem com os interesses dos grupos oprimidos nos EUA passaram

a “buscar apoio em teorias sociais desenvolvidas principalmente na Europa para

elaborar e justificar suas reflexões e propostas” (MOREIRA e SILVA, 2008, p. 14).

Assim, ainda segundo os autores, o neomarxismo, a teoria crítica da Escola de

Frankfurt, as teorias de reprodução, a etnometodologia, etc., embora divergentes,

influenciaram, em grande parte, os estudos acerca do currículo das décadas

subsequentes. O currículo possui, certamente, uma história vinculada a formas

específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação (MOREIRA E

SILVA, 2008).

Os autores ressaltam que este processo de reelaboração da concepção de

currículo não se restringiu à sociedade americana, ao contrário, a partir daí, adentrou a

agenda de discussões sobre o currículo e suas implicações em diversos países. Essas e

outras novas tendências ajudaram a reconceituar o campo na década de 70, favorecendo

a análise e compreensão de outras questões – não mais eram supervalorizados o

planejamento, a implementação e o controle de currículos; não mais eram enfatizados os

objetivos comportamentais; não mais se incentivava, como forma de produzir

conhecimento, a pesquisa tradicional quantitativa; não mais se estimulava a utilização

de procedimentos “científicos” de avaliação (MOREIRA e SILVA, 2008). Em síntese,

os focos e as preocupações relacionadas ao currículo começaram a ser deslocados e

renovados.

No Brasil, não por coincidência, as primeiras preocupações com o currículo

também surgiram nos anos 20 e caracterizavam-se pela transferência instrumental de

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teorias americanas. Porém, a partir da década de 80, a hegemonia das referências norte-

americanas foi abalada pelo início da redemocratização brasileira e enfraquecimento da

Guerra Fria (LOPES e MACEDO, 2002). O currículo deixou de ser uma área

meramente técnica, voltada a questões relacionadas aos procedimentos e métodos, para

assumir uma tradição crítica, orientada por questões de cunho epistemológico, político e

sociológico. Nesta perspectiva, ainda que o “como” do currículo permaneça importante,

só terá sentido quando se relacionam com questões que perguntem “por quê” das formas

de organização do conhecimento escolar.

Para Silva (2000), ainda que haja variações em diversos aspectos, saber qual

conhecimento deverá ser ensinado é o ponto comum entre as várias teorias, tanto as

tradicionais quanto as críticas. Em consonância com as teorias educacionais mais

amplas, as teorias do currículo estão repletas de informações de como as coisas

deveriam ser e, ainda que essas escolhas estejam baseadas nos “tipos” de sujeitos

considerados ideais para uma dada sociedade, a cada tipo de sociedade há “um modelo”

de ser humano desejável, e portanto, a cada um desses “modelos” corresponderá,

consequentemente, um tipo de currículo. Cabe às teorias do currículo, justificar por que

“esses” e não “aqueles” conhecimentos devem ser escolhidos. Assim, as teorias do

currículo deduzem o tipo de conhecimento assumido como relevante exatamente a partir

de definições sobre o tipo de sujeito que consideram ideal (SILVA, 2000).

Analisado dessa forma, o currículo, mais que uma questão de conhecimento, é

também uma questão de identidade, na qual, segundo Silva (1996), as teorias do

currículo encontrarão apoio. Estão implicadas aqui, as relações de poder, transmitidas

por visões particulares e interessadas, produzindo identidades individuais e sociais

particulares: ao escolher estes e aqueles saberes, privilegiar uns em detrimento de

outros, destacando uma identidade desejável, estamos diante de operações de poder

(SILVA, 1996). A expressão máxima do poder do currículo reside no fato de que os

conteúdos são reproduzidos pelos indivíduos de forma que estes sejam preparados para

desempenhar seus papéis na sociedade, sem questioná-lo (SILVA,2000).

Assumindo que existe uma dicotomia entre as teorias tradicionais e teorias

críticas/pós-críticas de currículo, Silva (2000) afirma que as teorias tradicionais

pretendem ser teorias imparciais e desinteressadas, ao passo que as teorias críticas e

pós-críticas julgam esse posicionamento – imparcial e desinteressado – impossível.

Além disso, enquanto as teorias tradicionais envolvem-se com questões meramente

técnicas e de organização curricular, as outras estão preocupadas com a relação

existente entre saber, identidade e poder, invertendo os fundamentos das teorias

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tradicionais e nos possibilitando olhar a questão curricular e educacional sob uma nova

perspectiva.

Silva (2000) associa as teorias tradicionais à aceitação, ajuste e adaptação e as

teorias críticas/pós-críticas à desconfiança, questionamento e transformação radical. O

status quo, entendido como referencial desejável pelas teorias tradicionais, é apontado

pelas teorias críticas/pós-críticas como responsável pelas desigualdades e injustiças

sociais. O importante nas teorias críticas/pós-críticas não é desenvolver técnicas de

“como” fazer o currículo, mas desenvolver conceitos que nos permitam entender o que,

de fato, o currículo faz.

Goodson (2007) alerta para o fato de que o currículo foi inventado, basicamente,

como um conceito para dirigir e controlar o credenciamento dos professores e sua

potencial liberdade nas salas de aula:

“Ao longo dos anos, a aliança entre prescrição e poder foi cuidadosamente fomentada, de forma que o currículo se tornou um mecanismo de reprodução das relações de poder existentes na sociedade. As crianças cujos pais são poderosos e ricos se beneficiam da inclusão pelo currículo, e os menos favorecidos sofrem a exclusão pelo currículo. Como argumentou Bourdieu, dessa maneira o ‘capital cultural’ dos pais efetivamente compra o sucesso para seus filhos estudantes” (p.243)

Para o autor, a visão de currículo como prescrição se desenvolve “a partir da

crença de que podemos imparcialmente definir os principais ingredientes do

desenvolvimento do estudo, e então ensinar os vários segmentos e sequências de forma

sistemática” (p.242). Ainda que não seja a única visão existente, o autor acredita que

este tipo de currículo é, sem dúvida, a principal perspectiva presente nos dias de hoje.

O currículo como prescrição sustenta algumas ideias importantes sobre estado,

escolarização e sociedade: a especialização e o controle são inerentes ao Estado, às

burocracias educacionais e à comunidade universitária e, desde que ninguém revele essa

mística, a “prescrição retórica” e a “escolarização como prática” podem coexistir

(GOODSON, 2007). Segundo o autor, as agências do currículo são “vistas como

‘distribuidoras’ (e podem conquistar um bom grau de autonomia, se aceitarem as

regras)” (GOODSON, 2007, p. 242).

O autor ainda alerta sobre a existência dos “custos de cumplicidade”, ou seja, o

preço que se paga pela aceitação de um currículo como prescrição, pois envolve,

sobretudo e sob vários aspectos, a aceitação de modelos estabelecidos de relações de

poder. O mais relevante para ele talvez seja que os mais intimamente ligados à

construção social cotidiana do currículo, os professores, sejam efetivamente alijados do

“discurso de escolarização”, mantendo seu poder cotidiano em silêncio e sem registro

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para que continuem a existir. No entanto, ele aponta que as prescrições curriculares

determinam alguns parâmetros, mas algumas transgressões ocasionais são permitidas,

desde que a retórica e o gerenciamento das prescrições não sejam desafiados.

Lopes (2004b) critica os estudos sobre currículo de ciências, destacando que, de

uma maneira geral, têm sido enfatizados aspectos metodológicos e epistemológicos,

desconsiderando-se a educação como “campo de produção cultural e, portanto,

intrinsecamente político e social” (p.117). Na área de Ensino de Ciências a preocupação

no “como” fazer do currículo tem sido assim, maximizado, tornando-se praticamente a

única perspectiva.

Sendo os PCN uma proposta de currículo a ser seguida nacionalmente, que

mesmo sem possuir força de lei adentrou fortemente as salas de aula e os discursos dos

professores (SANTOS, 2002), julgo importante compreender o que esses professores

pensam, falam (e fazem) deste documento e como avaliam a existência de um

determinado conjunto de conhecimentos prescrito e tomado como o mais relevante para

todo o país. Para contribuir neste sentido, apresento na próxima seção, uma discussão

sobre a implantação de um currículo nacional e suas implicações.

2.2 O currículo nacional em pauta

A implantação de um currículo nacional vem sendo processada desde a década

de 80 em diversos países tais como Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e Argentina.

No Brasil, esta implantação iniciou-se com a divulgação para as escolas e professores

das DCN e dos PCN (MOREIRA, 1996). Para Moreira (1996), esse movimento de

instituição de um currículo nacional ocorrido nestes diferentes países vem sendo

associado à visão neoliberal da educação na medida em que a educação vem adquirindo

papel estratégico no neoliberalismo. A esse respeito, Silva (1995) aponta que este

movimento internacional aliado a um projeto neoliberal tem duas dimensões principais:

“De um lado, é central, na reestruturação buscada pelos ideólogos neoliberais, atrelar a educação institucionalizada aos objetivos estreitos de preparação para o local de trabalho. (...) De outro, é importante também utilizar a educação como veículo de transmissão das ideias que proclamam as excelências do livre mercado e da livre iniciativa” (p.12)

Neste viés, continua o autor, em diversos países, incluindo o Brasil, há um

grande esforço de utilizar o currículo nacional – e mínimo – não apenas voltado para a

preparação para o local de trabalho, mas também com o objetivo de inculcar nos alunos

os postulados do credo liberal.

Notadamente afinado com a perspectiva neoliberal, o currículo nacional facilita

e viabiliza o sistema de avaliação unificado e o ranqueeamento das escolas. Este

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processo é realizado sem levar em conta as diferenças sociais e econômicas entre a

escolas e, dessa forma, alimenta a retórica do neoliberalismo, apontando que se há

problemas na educação – e nas escolas – esse problema reside, fundamentalmente, na

má administração institucional (SILVA, 1995). Para Moreira (1996), esta solução de

ranquear as escolas tornou-se muito útil para ‘superar’ a escassez de recursos a serem

gastos na educação: se são poucos os recursos, há que se contemplar as boas escolas e

os bons professores, definidos a partir das avaliações, restando para os outros

meramente o que sobrar6.

O currículo nacional, visando à construção e preservação de uma cultura comum

tida constitucionalmente como básica para o desenvolvimento de um sentimento

nacional, privilegia, segundo Moreira (1996), discursos dominantes e tende a excluir

das salas de aula os discursos e vozes de professores e alunos pertencentes aos grupos

sociais oprimidos, vistos como ‘não merecedores de serem ouvidos’ (p.13). Neste

processo, fica claro que regulação e controle da conduta humana estão implicados no

currículo.

Embora reconheçam que a regulação do currículo pelo poder oficial perpasse a

ideia de homogeneidade, alguns autores consideram que ainda assim o currículo só

ganha vida nas salas de aula, quando experimentado pelos estudantes e que, neste

aspecto, o processo não garante a tal homogeneidade pretendida (ZUMWALT 1995

apud MOREIRA, 1996; LOPES, 2004b). Nesse sentido, Zumwalt (apud MOREIRA,

1994) afirma que a concepção de currículo nacional chega a ser uma contradição, visto

não ser possível um currículo ser experimentado e vivido nacionalmente e Lopes

(2004b) aponta que embora o currículo nacional permaneça, ainda há espaços de

‘reinterpretação’ das políticas curriculares capazes de permitir um projeto político social

‘diferente dos marcos estabelecidos pelo neoliberalismo’ (p.112)

Os efeitos das políticas curriculares oficiais no contexto da prática pedagógica

seriam condicionados por questões institucionais e disciplinares (BALL e BOWE, 1992

apud LOPES, 2004b), na medida em que:

“as instituições e seus grupos disciplinares têm diferentes histórias, concepções pedagógicas e formas de organização, que produzem diferentes experiências e habilidades em responder, favoravelmente ou não às mudanças curriculares, reinterpretando-as”

Em suma, as políticas curriculares – incluindo-se, obviamente, a implantação de

um currículo nacional – seriam sempre passíveis de ‘múltiplas leituras’ realizadas por

6

Ainda hoje, quase 18 anos após o estudo de Moreira, este tipo de avaliação e ‘ranqueamento’ permanece. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ) desde 2008 premia escolas e professores classificados nas primeiras posições.

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‘múltiplos leitores’ (BALL 2001 apud LOPES, 2004b). Porém, se por um lado essas

possibilidades de reinterpretação e adaptação das políticas curriculares existem, por

outro os professores continuam se sentindo reféns das prescrições detalhadas a que se

veem submetidos e mantêm-se ocupados em tentar qualificar-se para obter êxito na

implementação das propostas curriculares oficiais em sala de aula (MOREIRA, 1996).

Para Giroux (1997), essa obediência técnica e mecânica aos ditames curriculares que

vem sendo empreendida pelos professores esvazia seu potencial crítico e transformador

reduzindo-os ao status de técnicos de alto nível que apenas cumprem objetivos e

parâmetros traçados por especialistas – em sua maioria distantes do cotidiano escolar. A

consequência, diz Apple (apud MOREIRA, 1996), é que os professores passam a

depender mais de especialistas, que lhes dizem o que e como fazer, do que de seus

conhecimentos adquiridos ao longo dos anos.

Moreira (1996) traz alguns estudos que retratam bem esta submissão do

professor aos ditames curriculares oficiais: em um deles, os professores, julgados pelos

resultados que seus alunos obtêm em testes oficiais, acabam por se preocupar mais com

o adestramento dos seus alunos a partir das habilidades e competências exigidas nestes

testes do que com os aspectos sociais, políticos, culturais, etc., do processo educacional.

Em outras palavras, o currículo deixa de atender aos interesses das crianças e pode

transformar-se em uma atividade corrompida (CUBAN 1995 apud MOREIRA, 1994).

2.3 Perspectivas acadêmicas sobre as politicas curriculares nacionais

Nesta seção apresentamos uma revisão da literatura sobre as políticas

curriculares nacionais a partir de um levantamento realizado em periódicos da área de

Educação e Ensino de Ciências, já mencionado no capítulo 1.

As DCN e os PCNEM7, considerados os principais documentos balizadores da

reforma curricular brasileira, acabam por expressar os princípios dessa reforma e

indicam intenções públicas para a escolarização. As ações propostas nesses documentos

visam fazer as escolas rediscutirem suas formas de organizar os saberes, seja pela busca

de maior inter-relação entre os mesmos, via interdisciplinaridade, seja por maior

sintonia desses saberes com a vida contemporânea, via contextualização e tecnologias

(LOPES, 2002a, 2002b). Os documentos curriculares oficiais são vistos como um

instrumento para a qualidade do ensino, já que se espera que venham orientar o trabalho

pedagógico do professor em exercício. Tais textos oferecem critérios e referências para

7 No trabalho a que estou fazendo referência (FERRAZ et al 2011) por tratarmos as políticas curriculares

para o nível médio, nos referimos aos Parâmetros Curriculares Nacionais utilizando a sigla PCNEM. Ao analisarmos os trabalhos de outros autores, mesmo se tratando de políticas curriculares para o nível médio, utilizamos a sigla escolhida pelos próprios (PCN ou PCNEM).

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decisões de planejamento, intervenção direta no processo de ensino/aprendizagem e

avaliação. Nas escolas, diversos fatores têm influência sobre o uso ou não destes

documentos, tais como a interpretação que os professores fazem dos documentos, os

recursos materiais e humanos disponíveis nas escolas, os interesses pessoais e

profissionais dos docentes e o conjunto da política educacional vigente.

Assim, segundo Lopes (2004b), por mais que a elaboração das políticas

educacionais seja orientada, de forma geral, pelas agências internacionais de fomento,

em cada contexto particular há especificidades locais, finalidades sociais que

direcionam a demanda dessas políticas. Para a autora, toda política curricular seria,

deste modo, uma política cultural, pois é fruto de uma seleção da cultura, de embate

entre sujeitos, concepções de conhecimento, formas de entender e construir o mundo.

O que a pesquisa tem apontado é o baixo impacto das reformas curriculares na

melhoria da realidade escolar. De acordo com Santos (2002), seria cabível pensarmos

que, definindo um currículo nacional, selecionando os livros didáticos a serem adotados

pelas escolas, capacitando os professores para desenvolver as competências

consideradas fundamentais para o exercício de sua função, haveria uma notável

melhoria no sistema educacional brasileiro, porém este processo não é tão simples como

parece.

Na área de pesquisa em ensino de Ciências, Rezende e Ostermann (2005)

apontam que, de uma maneira geral, há uma aceitação acrítica dos PCN por parte de

professores e pesquisadores. As autoras observaram, a partir de um levantamento de

trabalhos publicados na pesquisa nesta área, a grande preocupação em atender à

proposta dos PCN e, assim, respaldar o que está sendo pesquisado. As autoras também

afirmam que, em alguns casos, as orientações contidas nos documentos desempenham o

papel de referencial teórico dos estudos.

Em um levantamento mais amplo, Rezende et al. (2009) afirmam que a ênfase

das pesquisas da área de Ensino de Ciências é colocada nos aspectos cognitivos do

processo de ensino-aprendizagem, deixando-se de fora outros aspectos envolvidos nele,

como por exemplo, a discussão sobre o currículo.

Diante do silêncio encontrado nos estudos mencionados e da necessidade de se

fomentar a discussão sobre as políticas curriculares, o levantamento enfocou a

apropriação acadêmica das políticas curriculares do nível médio por pesquisadores das

áreas de Educação e de Educação em Ciências. A análise da apropriação das

políticas curriculares pelos pesquisadores em Educação e em Ensino de Ciências

consistiu nas seguintes etapas: a) levantamento do universo de trabalhos que tinham os

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PCNEM e as DCNEM como principal foco de estudo ou que apenas citavam as

políticas; b) classificação e caracterização dos trabalhos segundo temáticas a partir da

análise do conteúdo8; c) síntese dos trabalhos e d) análise das intenções dos autores,

mostrando indícios da apropriação das políticas curriculares.

O universo de trabalhos foi composto pelo total de trabalhos publicados no

período de 2000 a 2010 nos volumes dos principais periódicos nacionais nas áreas de

Educação e de Ensino de Ciências como apresenta a coluna total de artigos acessados,

nas Tabelas 1 e 2. Decidiu-se por incluir no levantamento não apenas os periódicos da

área de Ensino de Ciências, mas também da área de Educação por considerarmos a

apropriação acadêmica das políticas curriculares comum a essas duas áreas. O período

analisado foi escolhido devido ao fato dos principais documentos curriculares oficiais

terem sido divulgados no final da década de 1990. Dessa forma, foi analisado como a

pesquisa tem refletido sobre estes documentos desde a sua divulgação até a presente

data.

Para identificar os trabalhos sobre políticas curriculares, cada um dos trabalhos

publicados foi acessado individualmente e buscou-se em seu corpo de texto referência

às palavras: PCN, PCNEM, Parâmetros Curriculares Nacionais, política curricular,

DCN, DCNEM, diretrizes curriculares. Caso fosse encontrada alguma das palavras, o

conteúdo do trabalho era então analisado para identificar se o trabalho tratava de um

estudo cujo foco principal era a discussão das políticas (Tabelas 1 e 2, coluna artigos

com foco nas políticas curriculares) ou se apenas citava as políticas curriculares de

maneira superficial (Tabela 3).

Além dos trabalhos publicados em língua estrangeira, foram excluídos os artigos

que tratavam do Ensino Fundamental e aqueles relacionados às política educacionais de

maneira muito geral, e não especificamente às políticas curriculares.

Tabela 1: Trabalhos com foco nas políticas curriculares na área de Ensino de Ciências

Periódicos da Área de Ensino de

Ciências Volume

Total de artigos

acessados

Artigos com foco nas

políticas curriculares

Caderno Bras. de Ens. Física 17 - 27 268 02 A Física na Escola 1 - 11 180 01 Investigações em Ens. Ciências 5 - 15 159 03 Revista Bras. de Ens. de Física 22 - 32 607 02 Revista Bras. De Pesq. Educ. Ciências 1 – 10 110 01 Ensaio Pesq. em Educ. em Ciências 2 - 12 149 00 Ciência & Educação 7 - 16 274 03

Total 1.588 12

Tabela 2: Trabalhos com foco nas políticas curriculares na área de Educação

8 A análise do conteúdo aqui não refere-se à metodologia para descrever e interpretar o conteúdo de

documentos e textos (Bardin, 1995). Na presente situação, fizemos apenas uma leitura geral e algumas marcações textuais que auxiliaram na classificação dos trabalhos em temáticas

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Periódico da Área de Educação Volume Total de artigos

acessados

Artigos com foco nas

políticas curriculares

Revista Brasileira de Educação 13 - 42 286 04 Educação e Sociedade 21 - 31 609 04 Cadernos de Pesquisa 34 - 40 331 01

Total 1.266 09

Tabela 3: Trabalhos que apenas citam as políticas curriculares

Periódicos Total de artigos que citam as políticas

curriculares

Cadernos de pesquisa 53 Educação e sociedade 70 Revista Brasileira de Educação 21 Ciência & Educação 64 Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências 17 Revista Bras. de Pesq. em Educ. em Ciências 6 Revista Brasileira de Ensino de Física 14 Investigações em Ensino de Ciências 26 A Física na Escola 9 Caderno Brasileiro de Ensino de Física 19

A classificação de cada trabalho foi feita a partir da análise de cada trabalho e

visou, fundamentalmente, levantar seu objeto de estudo e identificar sua principal

temática.

As sínteses dos trabalhos foram elaboradas a partir da identificação dos objetivos

dos estudos, dos referencias teóricos utilizados e dos resultados dos artigos analisados.

Sendo a apropriação o povoamento da palavra do outro com suas próprias

intenções (BAKHTIN, 2006b), buscou-se, nesta etapa do levantamento, identificar o

posicionamento e intenções dos autores em relação às políticas curriculares.

A análise de conteúdo dos trabalhos permitiu identificar e distribuir os trabalhos

em temáticas (Tabela 4). Ressaltamos que estas categorias não foram elaboradas a

priori e sim ao longo das análises realizadas.

A distribuição dos 21 trabalhos que tinham como foco as políticas curriculares

em temáticas mostrou que, embora apenas 0,74% dos artigos publicados nas áreas de

Ensino de Ciências e de Educação se debrucem sobre o tema, são variadas as reações da

comunidade acadêmica em relação a esse tema. As subseções seguintes apresentam as

principais ideias dos autores agrupados em cada temática.

Tabela 4: Classificação dos trabalhos com foco nas políticas curriculares em temáticas

Temática Nº de trabalhos

Na área de Educação

Na área de Ensino de Ciências

Análise dos discursos das políticas curriculares 7 3 4 Políticas curriculares e a formação docente 2 0 2 Políticas curriculares na prática docente 6 0 6 Políticas curriculares e as finalidades da educação 3 3 0

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Abordagens metodológicas para a pesquisa em políticas curriculares

1 1 0

Relações entre Estado e as políticas curriculares 2 2 0 Total 21 9 12

2.3.1.Análise dos discursos das políticas curriculares

A partir da abordagem do ciclo de políticas de Stephen Ball e do entendimento

de comunidade disciplinar escolar de Ivor Goodson, Busnardo e Lopes (2010) buscam

relacionar os principais discursos que circulam no âmbito das discussões da comunidade

de Ensino de Biologia com a produção das políticas curriculares. O estudo baseou-se na

análise dos trabalhos relacionados à temática “currículo” apresentados nos principais

eventos da área de Ensino de Biologia e em sua maioria autorados por professores da

Educação Básica. Os resultados apontam para produções de múltiplos contextos, fruto

da circularidade de discursos, pois muitos dos discursos apresentados nos documentos

oficiais incluem sentidos do contexto da prática assim como discursos dos documentos

são incorporados à prática dos professores.

Lopes (2005) tem como objetivo defender a ideia de que a disciplina escolar é

um híbrido de discursos curriculares. Para sustentar tal ideia, é analisado como os textos

na área de ensino de Química influenciam as políticas de currículo, hibridizando

discursos oficiais e outros discursos curriculares. São articuladas as discussões teóricas

de Ball sobre políticas de currículo, de Goodson sobre disciplinas escolares, de

Bernstein sobre recontextualização, e de Canclini sobre hibridismo. Ao final da análise,

a autora considera evidente o quanto as políticas não são produção exclusiva da esfera

oficial, mas contam com uma participação efetiva dos grupos disciplinares em ensino

das disciplinas específicas. Tais grupos interferem nas políticas e também regulam seus

efeitos na prática. Nesse sentido, compreender os sentidos que são produzidos por esses

grupos nas políticas curriculares e os processos de legitimação associados a essas

políticas permite entender alguns dos mecanismos que efetivamente condicionam a

constituição do conhecimento escolar.

A partir da recontextualização pela comunidade disciplinar de ensino de Física,

da concepção de competências propostas oficialmente a partir de 1990, Silva e Lopes

(2007) têm como um dos seus objetivos trazer à discussão ideias e princípios adotados

em política de currículo. Com base nas discussões teóricas de Ball sobre políticas de

currículo, de Goodson sobre disciplinas escolares, de Bernstein sobre

recontextualização, e de Canclini sobre hibridismo, defendem que o currículo por

competências, apesar de ser um currículo interdisciplinar, é recontextualizado por sua

incorporação a um discurso marcado pela valorização dos conteúdos e da estrutura

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disciplinar, tradicionalmente valorizado na Educação. A partir da análise de textos

selecionados, que compreendiam trabalhos publicados nos principais eventos e revistas

da aérea de Ensino de Física, além de trabalhos de pessoas que se destacavam na área,

os autores concluem que na medida em que, na maioria dos trabalhos analisados, se

busca o apoio nos PCNEM e nas DCNEM para legitimar as propostas curriculares

desejadas, a vinculação com a segunda possibilidade acaba por ser igualmente

legitimada, conferindo às competências e habilidades uma centralidade que pode

contribuir para a desvalorização de conteúdos e para o empobrecimento da discussão

cultural no currículo, reforçando o caráter instrumental de forma mais ampla.

Martins (2000) pretende oferecer contribuições para o debate sobre as mudanças

propostas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais elaboradas para a reforma do ensino

médio no Brasil e divide seu estudo em duas partes: na primeira, avalia o cenário

político e econômico como cenário gerador da reforma educacional ocorrida em 90 e, na

segunda, discute a Resolução do Conselho Nacional de Educação, de 16/06/1998, que

instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, bem como as Bases

Legais – Parte I – dos PCN tomando como referência metodológica para análise desse

discurso oficial a proposição de Bardin (1995) para os modelos de análise estrutural,

procurando revelar os valores implícitos e as condições dos textos legais. A partir dessa

análise, o autor finaliza afirmando que é possível que as escolas de nível médio

construam seus próprios caminhos para percorrer a complicada relação com novos

referenciais teóricos contextualizando os temas culturais e políticos a partir da dinâmica

da sociedade brasileira, que tem sido profundamente influenciada pelo

redimensionamento da acumulação do capital.

Corazza (2001) e Lopes (2004) têm como foco de estudo a teorização crítica do

currículo mostrando a sua contextualização histórico-social e a mescla de diferentes

tendências a discursos distintos e muitas vezes contraditórios sobre o tema. Estes

autores penetram na complexidade desses processos mostrando a necessidade da

apropriação crítica do conceito de hibridismo no sentido de que sejam indagados e

postos em foco os processos políticos e socioculturais em que as propostas curriculares

se inserem. Tais discussões permitem o questionamento das relações de poder que

envolvem nossa sociedade e as políticas curriculares educacionais indicando a

existência de tais relações de poder nas políticas curriculares.

Abreu et al. (2005) analisam os conceitos de contextualização e tecnologias

presentes nos PCN confrontando-os com as concepções que aparecem em livros

didáticos de Biologia e Química, objetivando compreender como esses discursos são

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apropriados e hibridizados. Os autores defendem a ideia de que entender quais os

discursos híbridos presentes nos livros e envolvidos permite identificar as relações de

poder que as políticas instituem. A partir deste entendimento, mostram que as

orientações sobre contextualização e tecnologias expressas nos livros didáticos de

Biologia e Química são hibridizadas a partir de recortes e influências dos campos de

pesquisa em ensino da Ciência de referência, dos textos e discursos oficiais e dos

discursos sociais circulantes que valorizam princípios gerais no panorama mundial.

2.3.2 Políticas curriculares e a formação docente

O artigo de Carvalho, A. (2001) tem por objetivo analisar o impacto das novas

legislações educacionais brasileiras na formação do professor. A autora discute

elementos fundamentais que estão sofrendo mudanças na atualidade. Alguns dos

elementos apontados pela autora referem-se à dificuldade de entendimento, por parte

dos docentes, de conceitos como multidisciplinaridade e integração com a realidade do

aluno, presentes nos PCN, e como esta dificuldade interfere no planejamento das

disciplinas científicas. Afirmando que está completamente de acordo com os critérios

estabelecidos pela Base Comum Nacional para a formação de todos os professores nos

diversos cursos de Licenciatura, e que também está de acordo com a elevação do

número de horas de prática de ensino para esses cursos, a autora conclui que somente o

professor que tem uma sólida formação nos saberes conceituais e metodológicos de seu

conteúdo específico é capaz de planejar atividades de ensino que integrem os três

aspectos: o conceitual, o procedimental e o atitudinal propostos pelos PCN.

A pesquisa de Ricardo e Zylbersztajn (2007) tem como objetivo principal

investigar como estão sendo tratados os PCN na formação inicial dos futuros

professores de ensino médio das disciplinas da área das Ciências da Natureza,

Matemática e suas Tecnologias, bem como verificar a opinião dos seus formadores

acerca desses documentos e sua compreensão a respeito dos principais conceitos neles

contidos, a saber, competências, interdisciplinaridade e contextualização, além de

discutir alguns aspectos teóricos em relação a essas noções presentes na literatura

recente. Foram entrevistados os professores das disciplinas de Metodologia de Ensino

e/ou Prática de Ensino dos cursos de licenciatura em biologia, física, matemática e

química de três universidades públicas. A partir da análise destas entrevistas, os autores

identificaram que há uma boa aceitação dos PCN pelos formadores e que estes os

entendem como síntese dos temas pesquisados na área de Ensino das Ciências, inclusive

na identificação de problemas que a comunidade acadêmica vem apontando no ensino

praticado e que, por outro lado, apenas um pequeno número de professores se coloca

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contrário aos PCN, seja pela forma que chegaram nas escolas, seja pelo teor dos

documentos.

2.3.3 Políticas curriculares na prática docente

O estudo de Veit e Teodoro (2002) tem por objetivo discutir a importância da

utilização das novas tecnologias de informação e comunicação no ensino em conexão

com os PCNEM no processo de aprendizagem, defendendo o uso de uma ferramenta

computacional que favorece a aprendizagem construtivista. Afirmando ser

indispensável o uso adequado das tecnologias de informação, os autores apostam numa

grande contribuição dos PCNEM no desenvolvimento dos planejamentos e dialoga, a

todo tempo, com trechos do documento na elaboração dos planejamentos de aulas que

venham a facilitar a construção do conhecimento através das tecnologias.

Tendo como principal objetivo mostrar e discutir algumas diferenças relevantes

entre a versão preliminar e a versão oficial das novas Orientações Curriculares para o

Ensino Médio, Ricardo et al (2008) investigam, mais especificamente, as modificações

acerca da concepção de competências e do ensino de Física Moderna na prática docente.

Os autores entendem que tais esclarecimentos podem facilitar a compreensão e

implementação das orientações sugeridas no documento e alimentar a permanente

reflexão das práticas educacionais e defendem que um ensino por competências, tal

como proposto nas novas Orientações Curriculares Nacionais, não implica uma revisão

apenas nos conteúdos, mas nas práticas dos professores, pois o que se espera deles é que

consigam encontrar uma conjunção entre atividades experimentais, aplicações e

discussões conceituais, considerando-se seus aspectos históricos e sociais.

Pena e Ribeiro Filho (2003) têm por objetivo discutir a influência dos PCN para

o uso didático da História da Ciência com base em relatos de experiências pedagógicas

publicados em periódicos nacionais especializados em ensino de Física (2000 – 2006).

O estudo aponta que apesar das orientações dos PCN, a referida abordagem

histórica ainda não foi traduzida, de maneira significativa, em experiências didáticas.

Muitas dificuldades são apontadas para explicar tal fato, como por exemplo, os

obstáculos encontrados para estabelecer relações entre Ciência e educação dentro de

uma perspectiva histórica associada a aspectos sociais, econômicos e políticos; a

formação precária do corpo docente neste contexto e a falta de materiais didáticos

adequados que possam ser utilizados nesta abordagem de ensino.

Ricardo e Zylbersztajn (2002) tiveram como objetivos principais de seu estudo

identificar as percepções dos professores do Ensino Médio, da área Ciências da

Natureza, Matemática e suas Tecnologias, bem como da diretoria e da supervisora

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educacional de determinada escola, sobre os PCN e a atual situação de sua implantação

no ambiente escolar. O estudo apontou que são vários os obstáculos encontrados para

levar à prática as propostas das políticas curriculares sendo um dos principais a

dificuldade de compreensão do professores, diretores e supervisores dos conceitos

presentes no documento, como competências e habilidades. Também foram citadas

outras dificuldades relacionadas às disciplinas em análise, como a falta e rotatividade de

professores, além de dificuldades da escola no âmbito geral, como a desvalorização do

profissional e escassez de livros. Dentre as opiniões dos professores, os autores

identificaram uma preocupação dos professores com o como fazer, com a

operacionalidade dos PCN.

Ricardo (2003) tem por objetivo discutir alguns conceitos presentes nas DCN e

nos PCN para o Ensino Médio, tais como contextualização, competências e

interdisciplinaridade, cuja incompreensão tem se mostrado um dos entraves à

implementação das propostas desses documentos em sala de aula. O autor observa que

há uma distância a ser vencida entre a proposta e a prática, cujo sucesso depende da

superação de algumas dificuldades detectadas em pesquisas anteriores, dentre as quais

se destacam: falta de espaço para discussão das propostas do MEC em seu todo e para a

elaboração coletiva do projeto político-pedagógico da escola; ausência de programas de

formação continuada; desencontro de informações entre as instâncias federais, estaduais

e a escola; pouco material didático disponível verdadeiramente compatível com os PCN

e afirma que para que se atinja a dimensão da reforma educacional pretendida há a

necessidade de rever não só os conteúdos a ensinar, mas, principalmente, as concepções

e práticas educacionais correntes.

Partindo de pesquisas anteriores em que identificam a grande dificuldade de

compreensão dos principais conceitos presentes nas DCNEM, PCN e PCN+, a saber,

competências, habilidades, interdisciplinaridade e contextualização, por parte dos

professores de Ciências do Ensino Médio, Ricardo e Zylbersztajn (2008) pretendem

com este estudo oferecer alguns esclarecimentos acerca destes conceitos fundamentais

sob o ponto de vista dos seus elaboradores, utilizando entrevistas semi-estruturadas.

Como resultado o autor aponta que mesmo entre os elaboradores há ambiguidade

terminológica com os conceitos de habilidade e competência. Para os elaboradores a

ideia de interdisciplinaridade não é a de se opor às disciplinas, mas de vislumbrar

competências e habilidades que, para serem construídas, necessitam dos conhecimentos

de mais de uma disciplina.

2.3.4. Políticas curriculares e as finalidades da educação

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Dias e Abreu (2006) discutem, a partir dos discursos sobre o mundo do trabalho

nos livros didáticos da área de Ciências da coleção “De olho no mundo do trabalho”

(editora Scipione), a estreita relação ente educação, economia e os objetivos do

currículo. Baseando-se na teoria de Ball, as autoras entendem a constituição das

políticas curriculares como um processo de negociação complexo que inclui influência,

produção e disseminação de textos circulantes que estão sujeitos à recriação contínua no

contexto da prática. Analisando como os discursos sobre o mundo do trabalho são

apropriados e recontextualizados, as autoras afirmam que os livros didáticos se

apropriam dos conceitos sociais e econômicos de valorização dos saberes necessários à

produção de riquezas (científico-tecnológico) e de outros interesses, sofrendo influência

de todos os contextos que participam do processo de formação das políticas

curriculares. Posicionam-se, por fim, contra esta política na medida em que desta forma

a educação e o conhecimento importam apenas quando seus fins podem gerar vantagens

econômicas.

Lopes (2002b) objetiva, neste trabalho, demonstrar que o processo de produção

de um discurso curricular híbrido nos PCNEM tem por principal finalidade a inserção

social do indivíduo no mundo produtivo. Sua crítica a esta finalidade reside no fato de

que ela limita a dimensão cultural da educação. Desenvolvendo suas ideias a partir dos

conceitos de recontextualização (Bernstein) e de hibridismo (Canclini) e apontado as

ambiguidades expressas no conceito de contextualização nos documentos oficiais como

exemplo do discurso híbrido, a autora afirma que essas ambiguidades são entendidas

como uma ressignificação dos discursos curriculares acadêmicos e defende que tais

ambiguidades são uma forma de se legitimar os parâmetros junto a diferentes grupos

sociais.

Macedo (2009) analisa os PCN, especialmente os de Ciências e os Temas

Transversais tendo como foco articulações universalistas que buscam minar as

demandas da diferença. Apoiam-se na teoria discursiva de Laclau e Mouffe, em que as

políticas curriculares são entendidas como articulações hegemônicas em torno do que

vem a ser entendido como “qualidade da educação”. Ao fazer a análise do documento, a

autora afirma que ao falar da finalidade de educar para a cidadania o documento está

falando em nome de uma totalidade impossível, de um universal que, como todo

universal, constitui-se com base em exclusões. Nesse sentido, entende que, ao preencher

o significante qualidade com a promessa de educar para a cidadania, os Temas

Transversais jogam as demandas da diferença para a margem numa articulação que

permite o controle desse espaço por discursos universalistas e excludentes.

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2.3.5 Abordagens metodológicas para a pesquisa em políticas curriculares

O trabalho de Oliveira e Destro (2005) tem por principal objetivo discutir

concepções de política curricular para caracterizar uma abordagem metodológica de

pesquisa que evidencie processos contra-hegemônicos em políticas curriculares. Os

pressupostos dos autores residem na centralidade da cultura em termos epistemológicos,

a ampliação do campo político e a lógica espacial não-binária dos estudos pós-coloniais.

A política curricular é então entendida como uma política cultural ao ser definida como

um processo histórico no qual diferentes protagonistas produzem tensões em torno da

produção, circulação e consolidação de significados no currículo escolar. Dessa forma,

os autores sugerem o deslocamento da abordagem metodológica hegemônica, ou seja,

da perspectiva global/local para a perspectiva local/global, e "consideram um equívoco

focalizar produção ou implementação, Estado ou cotidiano em pesquisas de política

curricular.” (p.148) Enfim, pontuam algumas questões que podem pautar estudos com

essa perspectiva.

2.3.6 Relações entre o Estado e as políticas curriculares

Pacheco (2000) tem por objetivo identificar diferentes significados para o termo

descentralização, nas questões curriculares e na construção do referencial das políticas

curriculares, argumentando que o currículo é um processo intencional e prático em que

os principais atores são os professores e os alunos. Para tanto, exibe um panorama do

período da reforma educacional das décadas de 80 e 90 no Brasil, na qual, apesar de ter

presentes ideias inovadoras da descentralização, o Estado continua a ser centralista nos

aspectos mais substantivos do currículo pela formulação dos objetivos, da seleção e

organização dos conteúdos, da proposta de atividades e do controle da avaliação,

apagando assim o protagonismo dos seus principais atores.

Hypólito (2010) objetiva analisar as políticas curriculares desenvolvidas no

contexto da globalização e do neoliberalismo que têm orientado as ações do Estado no

campo educacional, como forma de regulação social. Assim, discute os efeitos das

políticas do Estado para o currículo e o modo de gestão que regula a educação e o

trabalho escolar. O autor conclui afirmando que os modos de gestão, constantemente

mostrados como a solução para a educação, chegam às escolas como formas estranhas

de administração e a cada dia mais se mostram ineficientes para enfrentar os problemas

escolares.

2.3.7 Uma síntese

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Diante do que foi levantado e à luz da perspectiva Bakhtiniana, foi possível

apontar diferenças significativas entre as apropriações que os trabalhos fazem das

políticas curriculares: nas temáticas “Análise do discurso das políticas curriculares”,

“Políticas curriculares e as finalidades da educação”, “Abordagens metodológicas para a

pesquisa em políticas curriculares” e “ Relações entre o Estado e as políticas

curriculares”, notamos intenções mais críticas tanto em relação ao teor dos documentos

curriculares oficiais quanto às suas finalidades e relações de poder envolvidas, ao passo

que nas temáticas “Políticas curriculares e a formação docente” e “Políticas curriculares

na prática docente”, os autores têm como intenção, fundamentalmente, discutir

problemas da formação e da prática docente que dificultam a implementação das

políticas curriculares nas escolas e, aceitando o discurso oficial, pouco refletem sobre

essas políticas como algo que deve ser problematizado e discutido.

Nos trabalhos sobre análise do discurso e processo de hibridismo nas políticas,

pudemos perceber um acento valorativo positivo dado aos discursos extra-oficiais, nas

escolas e comunidades disciplinares, que se fundem aos discursos oficiais. Esse

processo confere aos textos curriculares oficiais novos sentidos e significados,

independentemente de haver maior ou menor esclarecimento sobre esses textos

(CORAZZA, 2001; LOPES, 2004b; BUSNARDO e LOPES, 2010; LOPES, 2005;

SILVA e LOPES, 2007; ABREU et al., 2005).

Quanto à relação das políticas curriculares com as finalidades da educação, a

intenção dos autores é demonstrar que o currículo não é um artefato neutro e que existe

nos documentos curriculares oficiais uma valorização de determinados conhecimentos

em detrimento de tantos outros, com o objetivo de atingir determinadas finalidades, tais

como inserir o indivíduo no mundo produtivo, gerando riquezas e vantagens

econômicas (DIAS e ABREU, 2006; LOPES, 2002b) e a homogeneização dos

indivíduos, ou seja, a tentativa de desvalorização das diferenças (MACEDO, 2009).

Nos trabalhos que tratam da implementação das políticas curriculares, seja na

formação ou na prática docente, as pesquisas acentuam a questão da distância entre o

que está proposto nos documentos curriculares oficiais e o que ocorre de fato na prática

escolar, tentando oferecer recursos para minimizar as dificuldades de implementação

das políticas curriculares vigentes (RICARDO, 2003; RICARDO e ZYLBERSZTAJN,

2008; RICARDO e ZYLBERSZTAJN, 2002). Neste sentido, alguns trabalhos

publicados nesta área têm também como intenção reivindicar uma melhoria na

formação inicial para que esta implementação torne-se possível (RICARDO e

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ZYLBERSZTAJN, 2007; CARVALHO, A., 2001; VEIT e TEODORO; 2002; PENA e

RIBEIRO FILHO, 2003).

Pudemos verificar que as políticas curriculares e o currículo em si não têm sido

contemplados pelas pesquisas: apenas 0,74% dos artigos publicados tanto nas áreas de

ensino de Ciências e de Educação se debruçam sobre o tema. Esse dado fortalece a ideia

de Silva (1995) que afirma que o currículo tem sido “tomado como algo dado e

indiscutível, raramente sendo alvo de problematização, mesmo em círculos

educacionais profissionais” (p.184).

Assim como nenhum trabalho da área de Educação ocupou-se de discutir, na

última década, a implementação das políticas curriculares na prática e formação

docente, nenhum trabalho da área de Educação em Ciências ocupou-se das finalidades

educacionais dessas políticas, indicando que existem diferenças substanciais na

apropriação dos documentos oficiais pelos pesquisadores das duas áreas. A origem

dessa diferença parece estar na apropriação do próprio conceito de currículo enquanto

artefato político e cultural pela área de Educação e na base teórica em autores que

problematizam as relações de poder implicadas nos processos de produção e reprodução

das políticas curriculares.

Tendo trazido, com este levantamento, um panorama da produção acadêmica

recente sobre as políticas curriculares de um modo geral, dou continuidade ao debate a

partir de um estudo específico sobre os aspectos mais centrais dos PCNEM da área de

Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e dos PCNEM de Física

2.4 Parâmetros curriculares nacionais para a área de Ciências da Natureza,

Matemática e suas Tecnologias

Pressupondo que as habilidades e competências a serem formadas exigem

conteúdos de diferentes disciplinas, a organização dos PCNEM é realizada por módulos,

de modo que cada módulo englobe atividades e conteúdos que sejam capazes de

desenvolver determinado tipo de habilidade. Assim, os PCNEM tem nas Tecnologias o

princípio integrador das áreas (Linguagens Códigos e suas Tecnologias; Ciências da

Natureza, Matemática e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tecnologias) e

como eixos estruturantes as competências e habilidades, a contextualização e a

interdisciplinaridade.

As competências necessárias para se atingir os objetivos propostos foram

definidas pela Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI e

correspondem a ‘aprender a conhecer`, `aprender a fazer`, `aprender a viver` e ‘aprender

a ser’ (LOPES 2001).

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A partir da articulação das três grandes áreas já mencionadas, a estrutura

curricular do documento tem por finalidade a ‘inter’ e a ‘transdisciplinaridade’ que visa

superar “a organização por disciplinas estanques e revigorar a integração e a articulação

dos conhecimentos, num processo permanente de interdisciplinaridade e

transdisciplinaridade” (BRASIL, 1997, p.2). Segundo o documento, essa estruturação

do currículo também visa “assegurar uma educação de base científica e tecnológica,

onde conceito aplicação e solução de problema concretos são combinados” (p.2)

Na área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, à qual a Física

se integra, defende-se uma transdisciplinaridade e um conhecimento em rede sem que

isto implique a extinção das respectivas disciplinas (MACHADO 1996 apud LOPES,

2004a). A aprendizagem das ciências e das tecnologias é vista de maneira a se fazer

compreender que, enquanto produção humana, o mundo físico e natural difere dos

objetos da Matemática, da Física, etc., embora este o tenha como referência (LOPES,

2004a). A autora considera que o discurso de valorização de uma base científica

comum, cuja finalidade é formar alunos nos “conteúdos específicos potencializadores

de progressivo domínio da integração ciência e tecnologia” (BRASIL, 1997, p. 4) é

percebido como fundamental neste novo empreendimento educacional.

Nas próximas subseções destacarei mais detalhadamente algumas discussões9

acerca dos conceitos estruturantes dos PCNEM. Com a ajuda destas discussões, me

debruçarei, ao final, sobre os PCNEM de Física, tentando trazer à cena algumas

concepções presentes no próprio documento e em outros textos que possam auxiliar no

entendimento das perspectivas dos professores.

2.4.1 Habilidades, competências e interdisciplinaridade

A noção de competência invadiu o espaço educacional e os discursos sociais e

científicos de forma avassaladora a partir dos anos 1970. Documentos oficiais fazem, a

todo tempo, referência a ela e a estabelecem como direcionadora das práticas dos

diversos e diferentes agentes; livros didáticos a enaltecem ou criticam a incorporação do

ensino baseado em competências; diversos eventos são realizados tendo nas

competências o seu carro chefe. As competências povoam as discussões pedagógicas e

9

Estas discussões são alimentadas tanto por meio dos discursos advindos da área da pesquisa em educação quanto daqueles oriundos da pesquisa em educação em Ciências. Ainda que tenham sido considerados potencialmente como perspectivas com as quais os professores poderão dialogar para compor suas perspectiva, é importante esclarecer que os autores revisados vêm de campos de estudo diferentes e, por isso, abordam perspectivas distintas, o que acaba por caracterizar a seção como um diversificado conjunto de concepções.

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levam os professores a buscarem elementos que os auxiliem no seu entendimento e

formas de incorporá-las aos projetos educativos.

Para Ghiraldelli (2000), a ênfase no ensino por competências, as quais

pressupõem “aprender a aprender” e o “aprender a fazer”, sofreu grande influência e foi

retomada a partir dos princípios pedagógicos já presentes na tendência educacional

denominada Escola Nova ou Renovada que se propôs a colocar em prática a teoria

educacional de Dewey, datada do final do século XIX. O propósito da Escola Nova

consistia na inversão da ação pedagógica da chamada Escola Tradicional, dando mais

ênfase à ação do que à teoria. Para tanto, a criança deveria estar preparada, através do

aprendizado da metodologia de resolução de problemas, a lidar com a mudança, a

contingência, a incerteza de um futuro imprevisível (GHIRALDELLI JR., 2000).

As concepções teóricas de Bobbit, Charters e Tyler indicavam que a escola

ensinaria de maneira mais eficiente caso optasse pela reprodução dos procedimentos de

administração científica das fábricas (na época taylorista-fordista) e se empreendesse

um minucioso planejamento dos objetivos a serem alcançados (LOPES, 2001). Segundo

a autora, essa concepção está diretamente ligada à:

“[...] ideia ainda muito presente no senso comum educacional de uma forma mais ampla, de que a qualidade do desenvolvimento curricular, e da educação de uma forma geral, depende da definição precisa dos objetivos [principalmente comportamentais] a serem implementados e, por conseguinte, do perfil de profissional, de cidadão ou de sujeito social que pretende formar, derivado do pensamento de que o currículo existe para atender às finalidades sociais do modelo produtivo dominante” (p.3).

O caráter comportamental dos objetivos é defendido na medida em que o

comportamento do aluno “como expressão objetiva, sem ambiguidades e inequívoca do

processo educacional” (LOPES, 2001, p.3) possibilitaria a avaliação, igualmente

inequívoca, da eficiência de todo o processo. Para a autora, o objetivo do ensino por

competências – como conhecido atualmente – agrega ao comportamentalismo

dimensões humanistas mais amplas de maneira a possibilitar a formação de

comportamentos (competências) que representem metas sociais impostas aos jovens

pela sociedade.

A tendência tecnicista – com sua ênfase nos objetivos claramente determinados e

na capacidade de realização dos indivíduos (o aprender a fazer) – também influenciou

imensamente a abordagem por competência.

Bloom (apud Valente 2002) – pedagogo e psicólogo norte-americano cuja teoria

se insere no paradigma comportamentalista – em seu trabalho intitulado a

“Aprendizagem para o Domínio”, afirma que 90 a 95% dos alunos têm possibilidade de

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aprender o que lhes é ensinado, desde que lhes sejam fornecidas as condições adequadas

de aprendizado. Para Valente (2002), que considera Bloom o autor que mais influência

exerceu nas teorias da aprendizagem na segunda metade do século XX – esta concepção

pode ser encarada como a gênese do ensino por competências.

Ropé e Tanguy (1997) alertam para o fato de que os diferentes usos da noção de

competências nos diferentes espaços – escola, empresa, administração, etc. – causam

dúvidas quanto ao seu real significado. Na área educacional, por exemplo, ela tende a

substituir as noções de saberes e conhecimentos e, na esfera do trabalho, a noção de

qualificação. Para os autores:

“Os usos que são feitos da noção de competências e habilidades não nos permite uma definição conclusiva. Ela se apresenta, de fato, como uma dessas noções cruzadas, cuja opacidade semântica favorece seu uso inflacionado em lugares diferentes por agentes com interesses diversos” (ROPÉ e TANGUY, 1997, p.16).

Da mesma forma, Perrenoud (1999), um dos mais influentes estudiosos acerca

do assunto, se manifesta: “não existe uma definição clara e partilhada de competências.

A palavra tem muitos significados e ninguém pode pretender dar a definição” (p.19).

Embora assuma os múltiplos significados de competência, Perrenoud (1999) se

posiciona em relação ao termo “como sendo uma capacidade de agir eficazmente em

um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles”

(p.7).

Valente (2002) aponta que nas bibliografias podem ser encontrados dois eixos

interpretativos/conceituais:

a) um que explicita o significado de competência como ação que envolve uma

série de atributos: conhecimentos, habilidades, aptidão. Neste caso as competências

englobam as habilidades.

b) outro que diferencia competências e habilidades, seja conceituando

separadamente, ou apenas mencionando-as de forma distinta, porém sem adentrar nas

diferenças – esta última contemplada nas DCN e nos PCNEM.

Segundo Deffune e Depresbiterries (apud VALENTE, 2002), que também se

dedicaram a buscar os diversos conceitos de competências, as definições variam de

acordo com os aportes teóricos em que são baseadas, com a análise das atividades

desenvolvidas no mundo do trabalho e com as diferentes formas como as competências

serão traduzidas para o currículo.

Lopes (2001) aponta que o conceito de competência vem configurando as

reformas curriculares não só do Brasil, mas de muitos países do mundo ocidental. Tal

direcionamento comum encontra-se expresso, por exemplo, no Relatório da UNESCO

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da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI, que defende as

competências enquanto conceito pedagógico central para a prática educativa no ensino

de jovens e adultos, níveis médio e profissionalizante, propondo sua ampliação a todas

as crianças. No Brasil, o ensino baseado em competências foi institucionalizado no

sistema educacional com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 20 de

dezembro de 1996 (LDB/96), que incumbiu à União:

“Art 9º. IV - estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum” (BRASIL, 1996)

Ricardo e Zylberstajn (2008) procuraram compreender como se deu a introdução

das noções de competências e habilidades nas propostas dos PCNEM das Ciências da

Natureza, além das noções de interdisciplinaridade e contextualização. Os autores

destacam que, embora a construção dos PCNEM contemplasse a trajetória de seus

autores, muitos aspectos, como o uso das competências e habilidades, sofreram forte

influência da LDB/96. A esse respeito, um dos elaboradores declara que:

“(...) a gente não definiu que a proposta deveria ser Parâmetros Curriculares Nacionais baseados em competências e habilidades. Isso já foi uma proposta do próprio MEC, quer dizer, nem nós tínhamos clareza, nem fomos nós que optamos que a proposta deveria ser através de competências e habilidades.” (entrevistado citado por Ricardo e Zylberstajn, 2008)

A afirmação acima esclarece que a opção pela abordagem das competências e

habilidades foi feita de “cima para baixo”, isto é, não ocorreu pela iniciativa dos autores

dos PCNEM e sim, como já foi exposto anteriormente, a partir da incumbência dada

pela LDB/96 à União – em colaboração dos Estados, Municípios e Distrito Federal - de

instituir competências e diretrizes básicas para todos os níveis de educação.

Embora os elaboradores assumam que o discurso por competências se mostrou

pertinente para expressar objetivos mais amplos na formação dos alunos, superando a

mera transmissão de conteúdos específicos, este discurso trouxe consigo problemas já

tratados neste capítulo: o termo competência não era apenas uma palavra nova, cujo

significado era consensual, pelo contrário, carregava concepções e significados distintos

que, por não terem sido explicitados nas DCNEM e nos PCNEM, levaram a inúmeras

críticas aos referidos documentos.

Quanto a este aspecto, perguntados sobre a existência, ou não, de aportes

teóricos em relação à noção de competências e habilidades os elaboradores são

taxativos:

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“Eu posso lhe garantir que não havia um autor conhecido. Pouca gente conhecia o Perrenoud, por exemplo, ou o Le Boterf10, ou esses nomes que depois, nos últimos cinco anos se tornaram mais conhecidos.” (entrevistado citado por RICARDO E ZYLBERSTAJN, 2008)

“(...) nós lemos muitas coisas que estavam discutindo sobre competências, lemos o Perrenoud, mas eu não diria para você que nós efetivamente seguimos a orientação de um autor, ou se os Parâmetros pensam as competências segundo o Philippe Perrenoud.” (entrevistado citado por RICARDO E ZYLBERSTAJN, 2008)

Quanto à distinção entre competências e habilidades, alguns elaboradores

entrevistados por Ricardo e Zylberstajn (2008) mencionam que a diferença estaria na

abrangência de cada uma, porém, os próprios elaboradores admitem que tal

diferenciação não é tão simples, nem tão claro e que no próprio documento não há uma

distinção. A confusão terminológica também é percebida no fato de que nos PCNEM,

ao final do documento, existe um quadro para cada disciplina intitulado “Competências

e Habilidades” ao passo que nos PCN+11 o termo habilidades desaparece por completo.

Por também terem participado do processo de construção das Matrizes

Curriculares de Referência do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB),

alguns elaboradores tentam diferenciar os termos de acordo com a definição que

aparecem nestas Matrizes, ou seja, colocando as competências relacionadas à esfera

cognitiva , de construção e mobilização dos conhecimentos, e habilidade como um saber

fazer, na esfera procedimental e instrumental. Porém, mesmo essa diferenciação não se

mostra eficiente, conforme ilustra o exemplo a seguir:

“Então, por exemplo, é uma habilidade você saber manusear o microscópio, ou saber como é que você calcula, ou como você procura uma informação, mas a competência estava relacionada com uma coisa mais ampla. Ela tem uma relação de uma coisa mais cognitiva, mas abrangente, e fortemente vinculada à resolução de problemas. Então, frente a um problema, você poderia ter várias competências. Você poderia, por exemplo, mobilizar conhecimentos, buscar informações, associar-se a outras pessoas.” (entrevistado citado por RICARDO E ZYLBERSTAJN, 2008)

De acordo com Ricardo e Zylbersztajn (2008), neste exemplo, o próprio

elaborador torna-se vítima da ambiguidade terminológica, pois no início da declaração,

procurar uma informação é habilidade, porém, ao final, buscar informações é

competência.

Para alguns autores, como Silva (2000), a ausência de clareza e fluidez com que

os termos competências e habilidades são tratados nas DCNEM e nos PCNEM

10 Le Boterf (1994) compara a competência a um “saber-mobilizar” : implica saber como mobilizar, integrar e transferir os conhecimentos, recursos e habilidades, num contexto profissional determinado. 11

Os PCN+ foram propostos como orientações complementares aos PCNEM e apresenta aos professores exemplos de aplicação das propostas previstas nos Parâmetros.

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praticamente inviabilizam sua utilização como conceitos norteadores das práticas

pedagógicas e da organização curricular.

Para Lopes (2001), o significado do conceito de competência assumido nos

documentos curriculares oficiais do Ministério da Educação (MEC) mescla dimensões

cognitivistas, “oriundas de teorias sobre competências em contextos não educacionais

das ciências sociais” (p. 3) com “enfoques comportamentalistas do conceito de

competências da teoria curricular” (p. 3).

Nas palavras do secretário de educação média do governo Fernando Henrique,

em que os PCN foram implementados, as competências são:

“(...) os esquemas mentais, ou seja, as ações e operações mentais de caráter cognitivo, sócio-afetivo ou psicomotor, que mobilizadas e associadas a saberes teóricos ou experienciais geram habilidades, ou seja, um saber fazer. As competências são "modalidades estruturais da inteligência, ou melhor, ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer", operações mentais estruturadas em rede que mobilizadas permitem a incorporação de novos conhecimentos e sua integração significada a essa rede, possibilitando a reativação de esquemas mentais e saberes em novas situações, de forma sempre diferenciada. As habilidades decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do saber fazer. Através das ações e operações, as habilidades aperfeiçoam-se e articulam-se, possibilitando nova reorganização das competências” (BERGER FILHO, 1999)

Dessa forma, segundo as palavras do secretário, as competências constituem-se

em esquemas mentais que podem ser traduzidos em uma habilidade, uma ação, um

comportamento a ser realizado; requerem a produção de habilidades, ou seja, um “saber

fazer” necessário, principalmente, ao exercício profissional.

Lopes (2001) relaciona este “saber fazer” ao mundo produtivo e ao

conhecimento especializado e considera que ele:

“tende a desconsiderar os indivíduos que têm competências adquiridas nas redes sociais cotidianas. Ou seja, as habilidades e comportamentos vinculados a relações sociais e práticas culturais cotidianas são substituídas por competências técnicas derivadas dos saberes especializados” (p.4)

Assim como já foi apontado no presente estudo, o currículo por competências

não é disciplinar, pois pressupõe que as habilidades e competências a serem formadas

exigem conteúdos de diferentes disciplinas. Porém, para Lopes (2001) “os PCNEM

permanecem garantindo a estabilidade que restringe o debate sobre os objetivos

educacionais aos limites disciplinares” (p. 5). Isso ocorre porque seu processo de

elaboração foi eminentemente disciplinar, ou seja, equipes disciplinares elaboram os

documentos de forma isolada. Além disso, como aponta o trecho a seguir dos PCNEM,

o conceito de interdisciplinaridade não visa a superação das disciplinas, mas:

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“(...) utilizar os conhecimentos de várias disciplinas para resolver um problema concreto ou compreender um determinado fenômeno sob diferentes pontos de vista. Em suma, a interdisciplinaridade tem uma função instrumental. Trata-se de recorrer a um saber diretamente útil e utilizável para responder às questões e aos problemas sociais contemporâneos.” (BRASIL, 1997, p.44)

Sendo assim:

“As competências, que não dependem de saberes disciplinares, se articulam nos PCNEM com as disciplinas, que pressupõem uma determinada seleção de conteúdos, e com a interdisciplinaridade, que pressupõe a inter-relação de disciplinas. Dessa forma, os PCNEM apresentam listagens de competências e habilidades para cada área e para cada disciplina, parecendo conferir um caráter disciplinar às competências específicas.” (LOPES, 2001, p.5)

Dessa forma, os conteúdos ficam circunscritos às competências: interessam os

conteúdos que, de alguma forma, permitem a formação das competências e habilidades

previstas. Segundo Lopes (2001), esta visão se coaduna com uma perspectiva não crítica

da educação, sobretudo no que diz respeito aos processos de inserção social e controle

dos conteúdos a serem ensinados. Mesmo tentando superar limitações do currículo por

objetivos e introduzir princípios mais humanistas, o currículo por competências

permanece no contexto do eficientismo social.

2.4.2 O conceito de contextualização

O conceito de contextualização foi incorporado aos PCNEM a partir de

múltiplos discursos curriculares, nacionais e internacionais, provenientes de contextos

acadêmicos, agências multilaterais e esferas oficiais (LOPES, 2002b). A autora destaca

uma maior apropriação12 dos discursos acadêmicos, levando em consideração que:

“Essa apropriação tanto pode ter sido realizada por influência direta dos textos acadêmicos sobre os elaboradores dos parâmetros, quanto por intermédio de uma mediação realizada em reformas educacionais de outros países que influenciaram a reforma brasileira e/ou pelas agências financiadoras multilaterais. No que concerne especificamente aos documentos do BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento], o conceito aparece de forma incipiente, indicando aparentemente poucas referências específicas para a formulação realizada pelo MEC” (LOPES, 2002b, p.390).

A contextualização surge então como possibilidade de “assegurar uma educação

de base científica e tecnológica, onde conceito, aplicação e solução de problemas

concretos são combinados com uma revisão dos componentes socioculturais (...)”

(Brasil 1997, p. 5) o que, segundo Pereira (2000), significa formar indivíduos a partir

de:

“Experiências concretas e diversificadas, transpostas da vida cotidiana para as situações de aprendizagem. Educar para a vida requer a incorporação de vivências e a incorporação do aprendido em novas vivências”

12 O conceito de apropriação empregado por Lopes (2002) aqui não filia-se à teoria de Bakhtin.

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“Educar para a vida” tornou-se, então, uma afirmativa consagrada. Podemos

entendê-la a partir das heranças deixadas pelo progressivismo de Dewey (apud LOPES,

2002b). Porém, os trabalhos do estudioso vão na contramão das teses dos eficientistas

sociais que centravam-se no modelo fabril de educação e na perspectiva de inserção

social (PINAR et al apud LOPES, 2002b). Para a autora, o conceito de contextualização

“associa-se a princípios eficientistas: a vida assume uma dimensão especialmente

produtiva do ponto de vista econômico, em detrimento de sua dimensão cultural mais

ampla” (p.390).

Já em 1994, Apple (1994b), baseando-se no contexto norteamericano, chamava

atenção para o fato de que a associação entre educação e eficientismo social se constitui

numa espécie de exportação da crise econômica e de relações de autoridade para as

escolas que poderia resolver vários problemas da sociedade:

“Se as escolas, seus professores e seus currículos fossem mais rigidamente controlados, mais estreitamente vinculados às necessidades das empresas e das indústrias, mais tecnicamente orientadores e mais fundamentados nos valores tradicionais e nas normas e regulamentos dos locais de trabalho, então os problemas de aproveitamento escolar, de desemprego, de competitividade econômica internacional, de deterioração das áreas das grandes cidades, etc., desapareceriam quase que por completo, assim querem nos convencer” (p.40)

Nos PCNEM, apesar de serem apresentados três contextos (do trabalho, da

cidadania e da vida pessoal, cotidiana e convivência) é ao contexto do trabalho que é

conferida centralidade a ponto de os outros contextos dois ficarem subsumidos a ele

(LOPES, 2002b).

O uso das Tecnologias como princípio integrador de cada uma das áreas, já

abordado anteriormente, considerado como tema por excelência capaz de contextualizar

as disciplinas e conhecimentos no mundo produtivo indica, também, tal centralidade no

contexto do trabalho (LOPES, 2002b).

A autora conclui seu estudo acerca do conceito de contextualização afirmando

que:

“O ensino contextualizado vem sendo bem aceito na comunidade educacional, como atestam trabalhos apresentados em recentes congressos da área. Rapidamente, vem se fazendo uma substituição do conceito de cotidiano e de valorização dos saberes populares pelo conceito de contextualização, muitas vezes havendo a suposição de que se trata do mesmo enfoque educacional. Desconsidera-se que a contextualização é um dos processos de formação das competências necessárias ao trabalho na sociedade globalizada e à inserção no mundo tecnológico. Ainda que esse mundo seja muito diferenciado em relação ao início do século XX, quando foram produzidas as principais teorias da eficiência social, permanece a finalidade de submeter a educação ao mundo produtivo” (LOPES, 2002b, p.395)

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Dessa forma, assim como em relação aos conceitos de competência e

habilidades, para a autora, prevalece a circunscrição do processo educativo à formação

para o mercado de trabalho e para inserção do indivíduo na sociedade vigente,

desconsiderando as relações existentes com o processo de formação cultural mais

ampla, “capaz de conceber o mundo como possível de ser transformado em direção a

relações menos excludentes” (LOPES, 2002b, p.396).

2.5 O ensino de Física segundo os PCNEM

A equipe que elaborou a versão final dos PCNEM da área de Ciências da

Natureza, Matemática e suas Tecnologias – que abrange as disciplinas de Física,

Química, Biologia e Matemática – foi constituída por professores atuantes na formação

de professores e/ou projetos de pesquisa e extensão das suas respectivas disciplinas

coordenados pelo professor Luís Carlos de Menezes13. Como alerta Lopes (2004a), “os

documentos são produções coletivas, que hibridizam os diferentes discursos em jogo”

(p.60). Assim, continua a autora, ainda que os indivíduos que integram estas equipes

tenham concepções próprias, vê-se registrado nestes documentos ‘convicções’ e

‘princípios teóricos’, hegemônicos ou não, dos grupos disciplinares a que pertencem.

Dessa forma, embora exista uma base comum – denominada “Bases Legais dos

PCNEM” – profundas diferenças epistemológicas e pedagógicas podem ser encontradas

nos diferentes documentos disciplinares, expressando “recontextualizações diversas das

concepções curriculares oficiais previstas para o ensino médio” (LOPES, 2004a, p. 59).

A análise dessas diferenças não caberia no escopo deste texto, sendo nossa intenção

apresentar uma análise preliminar de alguns aspectos epistemológicos e pedagógicos do

documento de Física.

O texto dos PCNEM de Física, acompanhando os outros textos da área de

Ciências da Natureza e suas tecnologias, aborda ao mesmo tempo, os conteúdos

curriculares do Ensino Médio e aspectos do ensino das disciplinas. Ao fazer isso,

também constrói representações de ciência, da relação ensino-aprendizagem, do papel

do cientista, da importância da ciência para a sociedade, etc.

Apresentado nos PCNEM com o objetivo de levar a uma visão da Física que se

volte à formação do cidadão contemporâneo, atuante e solidário, intervindo na realidade

que o cerca, o conhecimento de Física deverá ser de tal forma apreendido que, mesmo

findado o contato com o ambiente escolar, o aluno tenha alcançado a formação

adequada à compreensão e participação no mundo em que vivem (BRASIL, 1997b).

Assim, a questão a ser enfrentada pelos educadores de cada escola, de cada realidade 13 Professor titular do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP)

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social, seria a de selecionar qual Física ensinar para promover uma melhor compreensão

de mundo e uma formação para a cidadania mais adequada. Para isso, o documento

prevê que “o ponto de partida, mas também o de chegada, seja considerar a realidade do

aluno, quer próxima quer distante, os objetos e fenômenos com que lida em seu

cotidiano, ou as questões que estimulam sua curiosidade” (p.23). Mais do que uma

simples reformulação de conteúdos ou tópicos, pretende-se promover com o ensino de

Física uma mudança de enfoque no aprendizado dos conhecimentos físicos,

contextualizados e integrados, visando a individualidade, mas também a coletividade e a

vida profissional do estudante do Ensino Médio (BRASIL, 1997b).

O documento dirige uma crítica ao ensino tradicional afirmando que o ensino de

Física tem sido realizado mediante a apresentação de conceitos, leis e fórmulas, distante

do mundo vivenciado pelos alunos e professores e, embora não apenas, mas também por

isso, vazio de significado. Segundo o documento, o conhecimento vem sendo

apresentado como um produto acabado, fruto da genialidade de mentes como Galileu,

Newton e Einstein, o que leva os alunos a concluírem que não resta mais nenhum

problema significativo a ser resolvido. No entanto, o documento aponta que tal quadro

não decorre única e exclusivamente do despreparo dos professores nem de limitações

imputadas pelas imperfeitas e escassas condições escolares, mas sim, exprime uma

deformação estrutural, gradualmente introjetada pelos atores do sistema escolar, que

passou a ser tomada como algo natural.

O conhecimento de Física “em si mesmo”, de acordo com os PCNEM, não é

suficiente como objetivo, mas deve ser percebido acima de tudo como um meio, um

instrumento para compreender o mundo, podendo ser prático, mas admitindo transpor o

interesse imediato. No Ensino Médio, os temas da Física devem se tornar mais

abrangentes, mas, ao mesmo tempo, devem ganhar uma certa especificidade disciplinar,

já que, para desenvolver habilidades e competências em Física é preciso ocupar-se com

os objetos da Física (BRASIL, 1997b). Espera-se que o ensino de Física na escola

média contribua para a formação de uma cultura científica eficaz, que permita ao sujeito

a interpretação dos fatos, fenômenos e processos naturais, situando e dimensionando a

interação do ser humano com a natureza como parte da própria natureza em

transformação (BRASIL, 1997b).

As competências e habilidades são mencionadas ao longo do texto, estruturando

toda a proposta para a disciplina. Embora o documento também proponha os conteúdos

a serem ensinados – ótica, mecânica, eletromagnetismo, etc. – são as competências e

habilidades a serem desenvolvidas que ganham maior destaque, sendo, inclusive,

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listadas no final do documento. Para Lopes (2004a), nos PCNEM de Física, está

presente a ideia de que os conteúdos são meros instrumentos de formação de

competências, ganhando sentido “pela possibilidade de ser mobilizados para ação em

situações determinadas” (p.63). Para a autora, esse privilégio conferido às competências

pode ser associado ao processo de submissão ao mundo produtivo, como já abordado

anteriormente.

Embora não haja menção direta ao mundo do trabalho ou mundo produtivo, o

efetivo uso das tecnologias associado ao conceito de contextualização – muito

enfatizada no documento e entendida como processo de relacionar os conceitos físicos

com o mundo vivido pelos alunos e professores – associa-se a princípios eficientistas

(LOPES, 2002b), como já foi exposto em um outro momento.

Ao contrário dos PCNEM de outras áreas, o de Física não faz menção direta à

interdisciplinaridade. O que existe é apenas uma rápida referência da importância de

interligar a física à cultura humana mais ampla, apontando, inclusive, “a presença de

elementos da física em obras literárias, peças de teatro ou obras de arte” (BRASIL,

1997b). Lopes (2004a) aponta que, embora a rejeição à interdisciplinaridade tenha

ocorrido de maneira mais aguda no documento de Física, de uma maneira geral o

conceito não se efetivou nos PCNEM. A autora considera que pode ter ocorrido no

Brasil, processo semelhante ao ocorrido no Reino Unido, onde a força do currículo

disciplinar foi maior que a proposta de um currículo nacional interdisciplinar.

Uma análise dos conteúdos curriculares apresentados nos PCNEM de Física a

partir da teoria Bakhtiniana14 mostrou que o documento se apropria majoritariamente da

voz empirista 15 (PRAIA et al, 2002) que atribui à ciência, linguagem e métodos

próprios:

“A Física tem uma maneira própria de lidar com o mundo, que se expressa não só através da forma como representa, descreve e escreve o real, mas sobretudo na busca de regularidades, na conceituação e quantificação das grandezas, na investigação dos fenômenos, no tipo de síntese que promove. (p.22)

A colocação da Física como sujeito da frase dá margem a um sentido de

autonomia em relação aos atores sociais, cabendo ao homem entendê-la, interpretá-la e

14

Esta análise foi publicada nos anais do XII Encontro de Pesquisa em Ensino de Física (FERRAZ et al., 2010b). Ainda que o referido trabalho não esteja diretamente relacionado com a análise que irei empreender na presente dissertação, por enfatizar aspectos epistemológicos dos PCNEM, julguei importante trazer alguns resultados no sentido de mostrar a construção da perspectiva epistemológica do documento a partir do diálogo com outras perspectivas. 15 Doutrina ou atitude que admite, quanto à origem do conhecimento, que este provenha unicamente da experiência, seja negando a existência de princípios puramente racionais, seja negando que tais princípios, existentes embora, possam, independentemente da experiência, levar ao conhecimento da verdade (FERREIRA, 1993)

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utilizá-la, omitindo-se a construção humana, dando ideia de algo que se faz e se move

com autonomia. O destaque dado ao conjunto de regras precisas e à lógica interna da

ciência confere ao texto traços da corrente empirista. Porém, o documento apresenta

instabilidades nesse posicionamento epistemológico quando, por exemplo, por meio de

uma abordagem próxima ao racionalismo contemporâneo16 menciona a elaboração de

modelos de evolução cósmica. Entretanto, ao utilizar na mesma sentença, o termo

“investigar” (p.22) em detrimento de construção de modelo quando se refere ao

conhecimento dos “mistérios do mundo submicroscópico” (p.22), o texto pode levar à

interpretação de que este último seria construído a partir da observação da natureza, o

que estaria compatível com o gênero discursivo empirista.

A ambiguidade é reforçada pelo fato de que apesar de utilizar em seu discurso

inicial a importância da construção de modelos, o documento não faz nenhuma

referência às linhas epistemológicas, não possibilitando ao professor embasamento

teórico para atingir o que é proposto.

No primeiro momento que o documento traz o conteúdo da Física, este já vem

contextualizado:

“Não se trata, portanto, de elaborar novas listas de tópicos de conteúdo, mas sobretudo de dar ao ensino de Física novas dimensões. Isso significa promover um conhecimento contextualizado e integrado à vida de cada jovem. Apresentar uma Física que explique a queda dos corpos, o movimento da lua ou das estrelas no céu, o arco-íris e também os raios laser, as imagens da televisão e as formas de comunicação” (p.23)

Neste trecho, o documento é claro quanto à abordagem do ensino de Física que

privilegia a compreensão do mundo concreto entendido como mundo natural e

tecnológico. A contraposição entre fenômenos como a ‘queda dos corpos’, o

‘movimento da lua ou das estrelas’ e ‘arco-íris’ e fenômenos tecnológicos com os ‘raios

laser’, as ‘imagens de televisão’ e as ‘formas de comunicação’ marca a renovação

curricular pela inclusão do mundo tecnológico, já que os fenômenos naturais já faziam

parte do currículo de Física anteriormente. A ampliação do mundo real contemplando o

mundo tecnológico é confirmada pela maioria dos exemplos listados.

O documento exemplifica com os conteúdos de mecânica e termodinâmica a

abordagem pedagógica que propõe a exploração do vivencial. Entretanto, o vivencial

16

“Na perspectiva racionalista contemporânea põe-se, em causa, toda a observação neutra e espontânea. Considera-se indispensável um enquadramento teórico que oriente a observação. Não defende, contudo, o abandono da observação.que ela não é nem neutra, nem objectiva (...). Não considera que os factos científicos sejam dados (no sentido empirista da palavra), como oferta gratuita do real. Admite, pelo contrário, que eles são construídos, ou seja, que resultam de um longo percurso através da teoria. Só por si um dado de observação não é entendido como um dado científico. Para que o seja, tem que ser uma construção da razão, inserido numa rede de razões, tem que ser visto com os olhos da mente” (PRAIA et al, 2002)

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apresentado não se distingue do vivencial presente nas propostas propedêuticas que no

caso da mecânica focam a análise de “situações práticas” (p.25) de movimentos da

realidade cotidiana e na termodinâmica são as máquinas térmicas e processos cíclicos.

Além disso, a lista de conteúdos resultante também não se diferencia daquela que

professores do ensino médio propedêutico já vinham ensinando antes da reforma

curricular.

Assim, parece que a novidade pedagógica trazida pelos PCNEM de Física seria a

contextualização do mundo natural ampliada ao mundo tecnológico e na medida em

que, segundo Lopes (2002b), a compreensão deste seria importante para atender aos

requisitos da ‘vida adulta´ e, consequentemente, ao mundo produtivo, indica-se que o

documento, assim como os de Química e Matemática, está submetido ao mundo do

trabalho.

A menção ao conhecimento como “construção” (p.22) em um parágrafo e como

“saber adquirido” (p.23) em outro, e, nesta última concepção, o aluno como depósito de

conhecimentos, indica uma visão ambígua da aprendizagem, seja pela sua composição

englobando significados diferentes e opostos ou seja porque o uso indiscriminado destes

termos pode levar à compreensão de que são processos semelhantes.

O final do documento apresenta a preocupação de ligar a ciência-tecnologia e

sociedade. Entretanto, percebe-se uma separação entre o cerne do documento e esta

parte final. A nosso ver, o documento restringe-se ao “modismo” do chamado ensino

cotidiano, que se limita a nomear cientificamente os processos físicos envolvidos no

funcionamento dos aparelhos eletro-eletrônicos, por exemplo. Partilho da opinião de

que essa seria:

“uma forma de dourar a pílula, ou seja, de introduzir uma aplicação apenas para disfarçar a abstração excessiva de um ensino puramente conceitual, deixando, à margem, os reais problemas sociais” (SANTOS E MORTIMER, 2002, p. 4)

O documento finaliza afirmando que os exemplos e os temas tratados não devem

ser consideramos como receitas a serem seguidas, porém expressões como “é

essencial”, “é necessário” e “é imprescindível”, utilizadas ao longo do texto, apontam

contraditoriamente a esta afirmação.

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3. QUADRO TEÓRICO METODOLÓGICO

Neste estudo usarei elementos do arcabouço teórico bakhtiniano, descritos neste

capítulo, para problematizar e analisar a linguagem utilizada pelos professores

investigados com o objetivo de identificar suas perspectivas acerca dos PCNEM de

Física.

3.1 Filosofia da Linguagem de Bakhtin: fundamentos

A linguística do século XIX, ancorada principalmente nos aportes teóricos de

Wilhelm Humboldt em que a língua é nacionalmente individual17, sem negar a função

comunicativa da linguagem, entende essa função como se contida em um segundo

plano, como um elemento secundário, sendo contemplada em primeiro plano a função

da formação do pensamento, independentemente da comunicação. A fórmula de

Humboldt seria então: “Sem fazer nenhuma menção à necessidade de comunicação

entre os homens, a língua seria uma condição indispensável do pensamento para o

homem até mesmo na sua eterna solidão” (HUMBOLDT, apud BAKHTIN, 2003, p.

270). Outros estudiosos, como os partidários de Vossler e sua filosofia da linguagem18,

têm na função expressiva o seu plano principal de estudo. Embora existam diferenças

nas concepções da função comunicativa da linguagem, a essência de todos estes estudos

consiste na expressão do mundo individual do falante. A língua é assumida a partir da

necessidade do homem de auto-expressar-se. Em essência, a linguagem aqui é

considerada do ponto de vista do falante, sem que haja, necessariamente, a relação com

outros participantes da comunicação discursiva. Mesmo ao considerarem o papel do

outro na comunicação discursiva, o papel desempenhado era apenas o de ouvinte que

compreende passivamente o falante.

Ao chamar tais concepções de ficções, Bakhtin aponta que:

“Até hoje ainda existem na linguística ficções como o “ouvinte” e o “entendedor” (parceiros do “falante”, do “fluxo único de fala”, etc). Tais ficções dão uma noção absolutamente deturpada do processo complexo e amplamente ativo da comunicação discursiva. (...) sugere-se um esquema de processos ativos de discurso no falante e de respectivos processos passivos de recepção e compreensão do discurso no ouvinte” (BAKHTIN, 2003, p. 271).

Bakhtin (2003) não pressupõe que estes esquemas sejam falsos ou que não

correspondam, em algum momento, à realidade. Sua crítica está no fato de que esses

esquemas não podem servir quando passamos aos objetivos reais da comunicação 17 Segundo Milani (1994), nessa visão de Humboldt, o indivíduo está contido em uma nação e, expurgadas as condições exteriores à nação, ela é comparável a um indivíduo que segue seu caminho, determinado pelo espírito que lhe é peculiar. 18 O que caracteriza primordialmente a escola de Vossler, é “a negação categórica e de princípio do positivismo linguístico, que não consegue ver mais além das formas linguísticas (em particular as fonéticas, as que são positivas) e do ato psicofisiológico que as engendra” (BAKHTIN, 2004, p. 74)

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discursiva. Neste caso, o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico)

do discurso, adota, uma atitude responsiva ativa em relação a esse discurso: “concorda

ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo,

etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de

compreensão desde o seu início, (...) da primeira fala do falante” (BAKHTIN, 2003, p.

271). Embora o grau desse ativismo seja bastante diverso, segundo Bakhtin, toda

compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva.

Dessa forma, toda compreensão é prenhe de resposta e isso nos leva a consequências

práticas: o ouvinte se torna falante. O momento anterior a resposta em voz real alta, ou

seja, da compreensão passiva do significado do discurso ouvido, é apenas um momento

abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena. O autor admite que nem

sempre ocorre, imediatamente, a reposta em voz alta ao discurso: a compreensão

ativamente responsiva, por exemplo, de uma ordem militar, pode realizar-se

imediatamente na ação (o cumprimento da ordem), pode também permanecer como

compreensão responsiva silenciosa, como em quando assistimos a uma ópera. Porém,

Bakhtin (2003) destaca que, cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente respondido

nestes momentos responde aos discursos subsequentes ou no comportamento do

ouvinte, ao que ele chama de compreensão responsiva de efeito retardado. Vale ressaltar

que, na teoria de Bakhtin, todos esses aportes sobre o discurso descritos acima refere-se

igualmente, mutatis mutandis, ao discurso escrito e ao lido.

Em resumo, toda compreensão real é ativamente responsiva e pressupõe uma

fase inicial preparatória da resposta (seja qual for a forma e o momento em que ela se

dê). O próprio falante não espera uma compreensão responsiva passiva: ele espera uma

resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução, etc., do seu

interlocutor. Além disso, todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou

menor grau:

Porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte) (BAKHTIN, 2003, p. 272)

Conclui Bakhtin que, o ouvinte com sua compreensão passiva, circunscrita nos

desenhos esquemáticos das linguísticas em geral, não corresponde ao participante real

da comunicação discursiva. “Aquilo que o esquema representa é apenas o momento

abstrato do ato pleno e real de compreensão ativamente responsiva, que gera a resposta

(a que precisamente visa o falante)” (BAKHTIN, 2003, p. 273). Dessa forma, o

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esquema das linguísticas em geral deve ser claramente compreendido apenas como uma

abstração e não como fenômeno pleno concreto e real.

Bakhtin (2003) também critica a concepção saussureana de que o objeto de

estudo da linguística deve ser o sistema de signos, valores e suas estruturas, propondo

que a língua seja estudada nas condições concretas (sociais e históricas) de comunicação

em que se realiza. É importante ressaltar que Bakhtin reconhece a existência e a

relevância do estudo das formas e normas da língua, mas assinala que, se descartarmos a

multiplicidade das situações materiais de fala, estaremos negligenciando aspectos

centrais para a compreensão dos fenômenos linguísticos. Uma mudança tão radical na

forma de se estudar a linguagem certamente implica uma nova unidade para a análise

linguística. Assim, enquanto as frases, períodos ou orações, sempre retirados do

contexto em que se inserem, seriam unidades de análise da linguística clássica, a

concepção bakhtiniana tem como unidade de análise o enunciado, sempre analisado na

cadeia de comunicação verbal em que se insere.

A par de todas as indefinições terminológicas e confusões dos linguistas acerca

do que é a palavra, a fala, em que subtende-se por nossa fala qualquer enunciado de

qualquer pessoa, Bakhtin afirma que:

“A indefinição terminológica e a confusão em um ponto metodológico central no pensamento linguístico são o resultado do desconhecimento da real unidade da comunicação discursiva – o enunciado. Porque o discurso só pode existir de fato na forma de enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos do discurso. O discurso sempre está fundido m forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir. Por mais diferentes que sejam as enunciações pelo seu volume, pelo conteúdo, pela construção composicional, elas possuem como unidades da comunicação discursiva peculiaridades comum, e antes de tudo limites absolutamente precisos” (BAKHTIN, 2003, p.274)

Um enunciado é então um ato de linguagem sempre destinado a um outro e seus

contornos permitem e solicitam que este outro realize uma apreciação valorativa (um

estabelecimento de valores) com relação àquilo que falamos ou escrevemos, numa

alternância de sujeitos falantes. Ele não se reduz a formas sintáticas ou morfológicas

isoladas, como orações ou parágrafos, nem tampouco a quantidade de palavras do

discurso, pois pode ir de um polissêmico “Ai!” a um romance completo de Dostoievski.

O enunciado "nos diversos campos da atividade humana e da vida, dependendo

das diversas funções da linguagem e das diferentes condições de comunicação, é de

natureza diferente e assume formas várias" (BAKHTIN, 2003, p. 275).

O uso da língua nas várias esferas da atividade humana leva ao surgimento de

tipos relativamente estáveis de enunciados, chamados por Bakhtin de gêneros de

discurso. Assim, em qualquer situação de comunicação, os falantes envolvidos têm à

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sua disposição um conjunto finito de enunciados, uma espécie de repertório - variável,

mas nem tanto - para dialogar. As situações de encontro e despedida, os gêneros

literários, as cartas, o romance de espionagem, as ordens militares, a sinfonia, as

distintas formas de publicidade, etc. são exemplos de gêneros de discurso.

Para Bakhtin (2003) aprender a falar significa, antes de tudo, construir

enunciados: não aprendemos a língua materna “a partir de dicionários e gramáticas mas

de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na

comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam” (p. 283). Assim, em

cada uma das palavras que usamos para falar estão as vozes daqueles com quem as

aprendemos - e as vozes daqueles com quem eles as aprenderam e assim por diante.

O conceito de voz está intimamente relacionado ao enunciado, pois “um

enunciado oral ou escrito se expressa sempre desde um ponto de vista (uma voz)”

(WERTSCH, 1993, p. 71). Para Bakhtin (2006b), o conceito de voz pode ser descrito

como a interação das múltiplas perspectivas individuais e sociais. O autor demonstra

que as palavras por nós proferidas não são “nossas” apenas; “elas nascem, vivem e

morrem na fronteira do nosso mundo e do mundo alheio; elas são respostas explícitas

ou implícitas às palavras do outro” (p.55).

Assim, não há enunciado neutro que não expresse uma visão de mundo, uma

voz. Para explicitar a carga axiológica do conceito de voz, Wertsch (1993) o aproxima

de “perspectiva”. Na concepção dialógica de Bakhtin, não pode existir uma voz isolada

de outras vozes. Há sempre, pelo menos, duas vozes (a de quem fala e a da pessoa a

qual o enunciado se dirige) e a compreensão de significados só existe quando essas duas

ou mais vozes entram em contato. O falante não é um Adão Bíblico, o objeto do falante

não se torna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado, e, por isso, o

próprio objeto do discurso se torna inevitavelmente um palco de encontro de opiniões

de interlocutores imediatos com pontos de vista, perspectivas, visões de mundo,

correntes, teorias.

3.2 Bases teóricas para um dispositivo analítico

Do ponto de vista conceitual, um dispositivo que pretenda se filiar à proposta bakhtiniana de análise linguística deve estar firmemente ancorado em duas concepções exaustivamente reiteradas pelo autor (BAKHTIN, 2003, 2006a): a de que a análise dos fenômenos linguísticos deve ser feita nas condições concretas em que se realiza e a de que a real unidade da comunicação verbal – e, consequentemente, de sua análise – não é a palavra, a frase ou a oração. A real unidade para a análise da comunicação verbal deve ser o enunciado. Já do ponto de vista operacional, seria importante, uma vez identificados os conceitos norteadores e a unidade de análise, estabelecer o conjunto de procedimentos a serem realizados. Nesse caso, uma investigação dos textos de Bakhtin revela, em vez das inúmeras ocorrências e desdobramentos dos conceitos de enunciado e linguagem, poucas e abreviadas

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referências – quase como se fossem pistas - sobre como deveria ser o conjunto de procedimentos de análise propriamente ditos. Assim, para elaborar os procedimentos deste dispositivo analítico, tomarei por base as diretrizes esboçadas em “Marxismo e Filosofia da Linguagem” (BAKHTIN, 2004a). No que diz respeito à unidade de análise, tratarei do conceito de enunciado a partir do ensaio “Os Gêneros do Discurso” (BAKHTIN. 2003), em que o autor aborda exaustivamente esse conceito, apresentando tanto as suas propriedades quanto uma forma inequívoca de identificá-lo. Trarei, ainda, duas outras propriedades do enunciado apresentadas no texto “O discurso na vida e o discurso na arte” (VOLOSHINOV19, 1926), em uma das poucas vezes que vemos o autor analisar um enunciado mais detalhadamente a partir da sua concepção de linguagem. Esse exemplo de análise também será útil para detalhar e compreender melhor os procedimentos de análise esboçados em “Marxismo e Filosofia de Linguagem” (BAKHTIN, 2006a).

3.2.1 Enunciado: características

Bakhtin (2003) constrói o conceito de enunciado a partir da comparação entre sua concepção de linguagem/comunicação e as concepções tradicionais à época. Assim, em vez das orações, palavras ou períodos extraídos do contexto em que ocorrem, chama atenção para os enunciados, tomando por base o diálogo real, em que se alternam as enunciações dos interlocutores e que “por sua precisão e simplicidade, (…) é a forma clássica de comunicação discursiva” (Bakhtin, 2003, p. 275). Essa concepção dialógica de enunciado, que envolve o papel da alteridade na comunicação, é, então, estendida tanto para outras formas de comunicação quanto para dentro do próprio enunciado. Por um lado, as formas de expressão mais insuspeitas, como obras de arte, sinfonias, livros, peças de teatro também seriam enunciados e, como partes de um diálogo, seriam respostas a e respondidas por outros enunciados. No nível interno de cada enunciado, Bakhtin também vê um diálogo entre autor e ouvinte – dentre outras personagens. Bakhtin (2003) se dedica a detalhar este potente conceito, relacionando-o claramente ao diálogo real e apresentado seis das suas características: estilo, construção composicional, unidade temática, relação com o falante/outros participantes, conclusibilidade e alternância dos sujeitos de fala. As três primeiras são características que os enunciados, unidades reais da comunicação, têm em comum com as orações, períodos e palavras - unidades convencionais da comunicação. Já as três últimas são características que diferenciam os enunciados das unidades linguísticas convencionais. Cabe destacar que essas características, apesar de tratadas individual e sequencialmente neste dispositivo, estão inarredavelmente imbricadas, dialogando e exercendo influência umas sobre as outras. No que tange às características em comum com as unidades convencionais, o estilo de um enunciado é constituído pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua. Já o conteúdo temático referencial se trataria do conteúdo propriamente dito enquanto a construção composicional corresponderia à estrutura do enunciado. É bastante claro, para o autor, que “todos esses três elementos (…) estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação”(BAKHTIN, 2003, p.262). As características que diferenciam os enunciados das unidades convencionais - relação com o falante/outros participantes, conclusibilidade e alternância dos sujeitos de fala -, entendo ser conveniente detalhá-las mais um pouco. A relação do enunciado com o próprio falante se dá justamente pelo fato de a escolha dos meios linguísticos estar diretamente relacionada tanto às ideias quanto à “relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do objeto e do sentido do seu enunciado” (BAKHTIN, 2003, p.289). Essa relação com objeto e sentido afetaria, igualmente, o estilo do enunciado. O autor destaca que esse aspecto

19 Autor pertencente ao chamado Círculo de Bakhtin, grupo multidisciplinar de intelectuais russos que se reuniam regularmente entre 1919 e 1929. Para Faraco (2003), porém, três desses intelectuais merecem atenção – Bakhtin, Voloshinov e Medvedev –, não só devido à confusão de autoria dos textos, mas também pela representatividade desses a cerca do pensamento do Círculo.

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valorativo não pode ser , de forma alguma, considerado um elemento da língua. Isso se deve ao fato de que o arsenal de recursos linguísticos usados para exprimir emoções, apesar de vasto, é totalmente neutro: “as palavras não são de ninguém, em si mesmas nada valorizam, mas podem abastecer (...) os juízos de valor mais diversos de qualquer falante.” (BAKHTIN, 2003, p.290). Já a relação do enunciado com os outros participantes se dá por duas maneiras principais. A primeira vem do fato de que “muito amiúde a expressão do nosso enunciado é determinada não só – e vez por outra não tanto – pelo conteúdo semântico-objetal desse enunciado mas também pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema, aos quais respondemos, com os quais polemizamos” (BAKHTIN, 2003, p.297). Por esse ponto de vista, qualquer enunciado sobre um objeto levaria em consideração, em maior ou menor grau, tudo que os outros já disseram sobre ele. Já a segunda forma principal de relação do outro com o enunciado vem justamente da antecipação que o falante faz das respostas do ouvinte. “A quem se destina o enunciado, como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinatários, qual é a força e a influência deles no enunciado – disto dependem tanto a composição quanto, particularmente, o estilo do enunciado” (BAKHTIN, 2003, p.297). A conclusibilidade é um aspecto interno do enunciado, e que está intimamente relacionado à alternância de sujeitos falantes. Ela sinalizaria que o falante já teria dito tudo o que queria dizer naquele turno de fala e, assim, caberia ao ouvinte responder ao enunciado. É importante ressaltar que resposta, nesse contexto, deve ser entendida de forma mais geral. Nas palavras do próprio autor “o primeiro e mais importante critério de conclusibilidade do enunciado é a possibilidade de responder a ele, em termos mais precisos e amplos, de ocupar uma posição responsiva (cumprir uma ordem, por exemplo)” (BAKHTIN, 2003, 280). A conclusibilidade é determinada por três fatores, organicamente ligados entre si e ao todo do enunciado: a exauribilidade do objeto e do sentido; o projeto/vontade de discurso do falante e as formas típicas composicionais e de gênero do acabamento. A ideia é que estes fatores, combinados ou isoladamente, sinalizam claramente a conclusão do enunciado – e consequentemente, o posicionamento responsivo do ouvinte. A exauribilidade semântico-objetal do tema do enunciado pode se extremamente próxima da completude, nas questões mais cotidianas e factuais - como pedidos de informações, ordens, etc. – ou ser bastante parcial e relativa, como nos campos criativos e científicos. Nestes casos, o objeto é, de fato inexaurível, e a única exauribilidade possível já estaria bastante próxima de uma ideia definida do autor – o que nos leva ao próximo fator: a vontade de discurso do falante. Quando escutamos um enunciado, “imaginamos o que o falante quer dizer, e com essa ideia verbalizada (como a entendemos) é que medimos a conclusibilidade do enunciado” (BAKHTIN, 2003, 281). Assim, a vontade ou o projeto de discurso do falante, além de estar relacionada à própria escolha do objeto, também influencia a exauribilidade semântico-objetal e a conclusibilidade. É importante destacar que “essa ideia – momento subjetivo do enunciado – se combina em uma unidade indissolúvel com o seu aspecto semântico-objetivo, restringindo esse último, vinculando-o a uma situação concreta (singular) de comunicação discursiva, com seus participantes pessoais, com suas intervenções – enunciados antecedentes” (BAKHTIN, 2003, p.281). Isso já nos aproxima do fator seguinte: os gêneros do discurso. A ideia principal aqui é que, apesar de cada enunciado em particular ser individual, “cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros de discurso” (BAKHTIN, 2003, p.261). Assim, a vontade discursiva do falante se realizaria, primeiramente, na escolha de um determinado gênero do discurso, vinculado à situação concreta em que se encontra – o que também influenciaria a exauribilidade do enunciado, uma vez que quando ouvimos o discurso de outra pessoa, “já adivinhamos o gênero pelas primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construção composicional, prevemos o fim” (BAKHTIN, 2003, p. 283). E, se podemos prever o fim, temos justamente a noção da conclusibilidade. O assunto é reputado pelo autor como um dos mais importantes para a análise linguística. No entanto, como voltarei ao assunto mais adiante, finalizo ressaltando que Bakhtin, mantendo a diferenciação entre as unidades convencionais e o enunciado, afirma que esse indício de completude do enunciado não se presta a definições gramáticas ou abstrato-semânticas - e, portanto, também não pode ser encontrado na neutralidade do sistema da língua.

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A última das três propriedades que distinguem o enunciado das unidades convencionais de análise é exatamente aquela que dá seus limites: a alternância dos sujeitos falantes. Novamente, Bakhtin ressalta que esta propriedade é exclusiva dos enunciados e não pode ser encontrada das unidades convencionais da língua: “os limites da oração enquanto unidade da língua nunca são determinados pela alternância de sujeitos do discurso” (BAKHTIN, 2003, p.277). No entanto, entendo que existe algo mais acerca dessa propriedade: o rigor e a precisão com que Bakhtin se refere a ela, aliados às detalhadas diferenciações entre um enunciado e uma oração, permitem usar a alternância de sujeitos falantes como um critério unívoco para a existência / identificação de enunciados – o que é particularmente útil para este dispositivo analítico. O potencial para a utilização desta propriedade como critério de identificação pode ser percebido em trechos como “desse modo, a alternância dos sujeitos do discurso, que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme, rigorosamente delimitada” (BAKHTIN, 2003, p.279); “as enunciações (…) possuem, como unidades de comunicação discursiva, peculiaridades comuns e, antes de tudo, limites absolutamente precisos” (BAKHTIN, 2003, p.274). ; “Essa alternância dos sujeitos do discurso, que cria limites precisos do enunciado” (BAKHTIN, 2003, p.275) . O desenvolvimento da argumentação é assunto da próxima seção.

3.2.2 Enunciado e oração: identificação positiva, negativa e gêneros do discurso

Bakhtin (2003) dedica uma parte importante de "Os gêneros do discurso" para mostrar em que condições e por que um mesmo material linguístico pode ser considerado um enunciado, unidade da análise linguística que propõe, ou uma oração, unidade da análise linguística que critica. Aponto aqui uma importante consequência dos pressupostos que norteiam essa argumentação: no momento em que uma mesma sequencia de palavras pode ou não ser considerada um enunciado, não há nada imanente a nenhum conjunto de palavras capaz de identificá-lo univocamente como enunciado. Ou, dito de outra forma, o que quer que venha a transformar texto em enunciado está fora da massa textual. De fato, "os limites da oração enquanto unidade da língua nunca são determinados pela alternância de sujeitos do discurso. Essa alternância, que emoldura a oração de ambos os lados converte-a em um enunciado pleno" (BAKHTIN, 2003, p. 277). Primeiramente, é importante relembrar que as três características que diferenciam os enunciados das orações são a relação com o falante/outros outros participantes, conclusibilidade e alternância dos sujeitos de falantes - e que elas estão sempre imbricadas no todo do enunciado. É importante perceber também que a alternância de falantes é, dentre as três, a única característica extraverbal. Em seguida, chamo atenção para o verbo converter, na citação anterior e proponho que o sentido pretendido pelo autor seja o seguinte: o material linguístico proferido por um falante, uma vez que respondeu ao turno anterior e foi respondido pelo seguinte, terá, automaticamente, conclusibilidade e relação com os falantes e outros participantes. Assim, entendo que essa característica, apesar de estar sempre imbricada às outras duas, seria uma espécie de característica fundadora do enunciado, marca indelével da sua inserção na cadeia real de comunicação verbal. Proponho, portanto, que a alternância de falantes seja uma condição suficiente para a existência e consequente identificação de um enunciado. Igualmente importante para a elaboração deste dispositivo são os trechos de “Os gêneros do discurso” que tratam das situações e condições em que o material linguístico não pode ser considerado um enunciado. Uma delas, mais simples, é aquela em que o material linguístico é retirado do contexto concreto em que foi produzido. Neste caso, não estaria emoldurado pelo material linguístico de outros falantes e, consequentemente, não seria um enunciado. No entanto, a outra situação apresentada por Bakhtin (2003) é mais delicada: trata-se do material linguístico contido em um enunciado - por exemplo, a segunda oração de um enunciado formado por três orações consecutivas. Neste caso, apesar de sermos tentados a tratar essa oração como um enunciado, é importante lembrar que o contexto dessa oração

“É o contexto da fala do mesmo sujeito de discurso (falante); a oração não se correlaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto extraverbal da realidade (a situação, o ambiente, a pré-história) nem com as enunciações de outros falantes, mas tão-somente através de todo o contexto que a rodeia, isto é, através do enunciado em seu conjunto” (BAKHTIN, 2003, p.277)

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Assim, a segunda oração deste exemplo não pode ser considerada um enunciado. A mesma argumentação sustenta que palavras, frases ou trechos de enunciados não podem ser considerados enunciados. Outro conceito importante para a elaboração deste dispositivo é o de gêneros de discurso. Apesar de afirmar que o uso da língua se faz na forma de enunciados concretos, únicos e individuais, Bakhtin ressalta que “cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso”. (BAKHTIN, 2003, p.277) Assim, em cada uma das situações concretas de comunicação de que participa, o falante não estaria exatamente livre para falar o que quisesse, mas teria suas opções de fala restritas àqueles enunciados que integram o gênero de discurso adequado para aquela situação. “Até mesmo no bate-papo mais descontraído e livre nós moldamos o nosso discurso por determinadas formas de gênero, às vezes padronizadas e estereotipadas, às vezes mais flexíveis, plásticas e criativas” (BAKHTIN, 2003, p.282). E, apesar de as formas dos gêneros serem mais flexíveis, plásticas e livres que as formas da língua, o falante bakhtiniano tem sua enunciação moldada tanto pela língua quanto pelo gênero de discurso. Os gêneros se dividem em dois grupos: os primários e os secundários. Os primários, mais simples, estão relacionados à comunicação discursiva imediata, como a carta e os vários tipos de diálogo cotidiano. Já os secundários, mais complexos - como romances, dramas, pesquisas científicas, etc. - surgem nas condições de um convívio cultural mais desenvolvido e organizado a partir de uma incorporação e reelaboração dos gêneros primários. A diferença entre estes gêneros não é funcional: “esses gêneros primários, que integram os complexos, aí se transformam e adquirem um caráter especial: perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e os enunciados reais alheios” (BAKHTIN, 2003, p. 263). E, exatamente por isso, deixam de ser enunciados - entendo ser esta a transformação de que fala o autor. Assim, uma carta ou uma réplica do diálogo cotidiano, no momento em que são inseridos num romance, por exemplo, deixam de ser um enunciado e passam a ser um acontecimento artístico literário, integrando a realidade concreta apenas como parte do romance. Bakhtin ressalta que “no seu conjunto, o romance é um enunciado, como a réplica do diálogo cotidiano ou uma carta privada (ele tem a mesma natureza das duas), mas à diferença deles é um enunciado secundário (complexo)” (BAKHTIN, 2003, p.264). O autor retorna a essa questão quando propõe a tese de que o enunciado é precisamente delimitado pela alternância de falantes, afirmando que

“Nos gêneros secundários do discurso, particularmente nos retóricos, encontramos fenômenos que parecem contrariar a essa nossa tese. Muito amiúde o falante (ou quem escreve) coloca questões no âmbito do seu enunciado, faz objeções a si mesmo e refuta suas próprias objeções, etc. Mas esses fenômenos não passam de representação convencional da comunicação discursiva nos gêneros primários de discurso” (BAKHTIN, 2003, 276).

Assim, enquanto vemos nos gêneros primários os limites criados pela alternância real de sujeitos falantes, são “as cicatrizes desses limites (que) estão nos gêneros secundários” (BAKHTIN, 2003, 276). Finalizo esta seção esperando ter esclarecido as seguintes ideias, indispensáveis tanto para a estruturação quanto para a precisão do presente dispositivo: i) todo material linguístico proferido por um falante e emoldurado pelo material linguístico de outros falantes é um enunciado ii) a alternância de falantes é condição suficiente para a identificação e existência de um enunciado iii) um trecho de um enunciado não pode ser considerado um enunciado.

3.2.3 O contexto extraverbal

Em “Discurso na vida e discurso na arte: sobre a poética sociológica” (VOLOSHINOV, 1926), o autor critica o método linguístico formal, em que toma-se o verbal não como um fenômeno sociológico mas de um ponto de vista abstrato, defendendo a importância do método sociológico, para o estudo da poética. Mostra os vários pontos em comum entre a palavra na arte e na vida cotidiana, destaca a importância no enunciado – e não da palavra neutra – para o estudo de ambas e vai além, apresentando de forma quase didática, um raríssimo exemplo de análise de enunciados.

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O autor analisa uma situação de uso da linguagem no cotidiano para ressaltar, de

um lado a relação entre o material, a forma e o conteúdo de uma produção verbal, e, de

outro, as relações intersubjetivas que estruturam e organizam a produção, seja ela

artística ou não. A situação em questão refere-se a duas pessoas que estão sentadas

numa sala, ambas em silêncio. Então, uma delas diz “Bem”. A outra não responde. O

autor argumenta que para nós, que estamos ouvindo de fora, esta conversa apresenta-se

completamente incompreensível. Porém, “esse colóquio peculiar de duas pessoas,

consistindo numa única palavra – ainda que, certamente, pronunciada com entoação

expressiva – faz pleno sentido, é completo e pleno de significação” (VOLOSHINOV,

1926, p.5). Seu argumento baseia-se no fato de que por mais que se dê valor à parte

verbal, com seus fatores fonéticos, morfológicos e semânticos da palavra do enunciado,

ou seja, da palavra “bem”, não será possível dar um único passo para o entendimento do

colóquio se não levarmos em consideração o contexto extraverbal. O contexto

extraverbal do colóquio era o seguinte: ambos os interlocutores olhavam para a janela e

perceberam que começava a nevar, ambos sabiam que já se encontravam no mês de

maio e que já era hora de chegar a primavera, e, finalmente, ambos estavam cansados do

prolongado e desapontados com a neve que ainda persistia em cair. Dessa forma, aponta

o autor, a palavra “bem” se expandiria em alguma expressão metafórica tal como “que

inverno teimoso, ele não vai parar, e Deus sabe que é hora” (VOLOSHINOV, 1926, p.

8).

Segundo o autor, o contexto extraverbal apresentado acima compreende três

fatores: 1) o horizonte comum dos interlocutores (a unidade visível – neste caso a sala, a

janela, etc), 2) o conhecimento e a compreensão comum da situação por parte dos

interlocutores e 3) sua avaliação comum dessa situação. Cabe ressaltar que “comum”

aqui não significa, necessariamente, concordância ou coincidência com o horizonte real,

mas sim compartilhamento de determinada situação entre sujeitos participantes: onde o

campo de alcance é mais amplo, o enunciado pode agir apenas se sustentando “em

fatores constantes e estáveis da vida e em avaliações sociais substantivas e

fundamentais” (VOLOSHINOV, 1926, p.6). Assim, diante do exposto, conclui o autor

que:

“um enunciado concreto como um todo significativo compreende duas partes: (1) a parte percebida ou realizada em palavras e (2) a parte presumida. É nesse sentido que o enunciado concreto pode ser comparado ao entinema20” (VOLOSHINOV, 1926, p. 6).

20

O entinema é uma forma de silogismo em que uma das premissas não é expressa, mas presumida. Por exemplo: Sócrates é um homem, portanto é mortal”. A premissa presumida: “Todos os homens são mortais” (nota do autor)

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Dessa forma, o individual e o subjetivo têm impregnado, o social e o objetivo e

“apenas o que todos nós falantes sabemos, amamos, reconhecemos – apenas estes

pontos nos quais estamos todos unidos podem se tornar a parte presumida de um

enunciado” (VOLOSHINOV, 1926, p. 6). Assim, ao falarmos sobre julgamentos de

valores presumidos, estes só serão possíveis não nas emoções individuais, mas nos atos

sociais e regulares, ou seja, as “emoções individuais podem surgir apenas como

sobretons acompanhando o tom básico da avaliação social. O “eu” pode realizar-se

verbalmente apenas sobre a base do nós.” (VOLOSHINOV, 1926, p.6)

Voloshinov (1926) ainda salienta que o horizonte espacial comum pode

expandir-se tanto no tempo como no espaço, dependendo do enunciado: “o presumido

pode ser aquele da família, do clã, da nação, da classe e pode abarcar dias ou anos ou

épocas inteiras” (p.6) e “quanto mais amplo for o horizonte global e seu correspondente

grupo social, mais constantes se tornam os fatores presumidos em um enunciado” (p.6).

Estes dois aspectos serão de extrema valia para as análises desenvolvidas na presente

dissertação.

Ainda em sua crítica a abordagem linguística formal e, também, a abordagem

psicológica, ele reafirma que elas são extremamente falhas ao desconsiderar que

qualquer locução dita em voz alta ou escrita para uma comunicação inteligível, ou seja,

qualquer palavra exceto as depositadas num dicionário, é o produto da interação

social de três participantes: o falante (autor), o interlocutor (leitor/ouvinte) e o tópico (o

que ou quem) da fala (o herói). Ao desconsiderar esta abordagem sociológica, o

linguístico formal e psicológico, embora absolutamente indispensável em suas

abstrações, não atende à demanda, pois cada uma das abordagens, por si só e

isoladamente, são inertes:

“Onde a análise linguística vê apenas palavras e as interrelações de seus fatores abstratos fonéticos, morfológicos, sintáticos) a percepção artística viva e a análise sociológica concreta revelam relações entre pessoas, relações meramente refletidas e fixadas no material verbal. O discurso verbal é o esqueleto que só toma forma viva no processo da percepção criativa consequentemente, só no processo da comunicação social” (VOLOSHINOV, 1926, p. 12)

O autor então, ao fornecer um quadro dos fatores essenciais nas interrelações dos

participantes de um evento artístico, afirma que o autor, o herói e o ouvinte de que fala

o tempo todo não são entidades fora da própria percepção da obra, muito pelo contrário,

eles são fatores constitutivos essenciais da obra. “Eles são a força viva que determina a

forma e o estilo e são diretamente detectáveis por qualquer contemplador competente”

(VOLOSHINOV, 1926, p.13). O autor também considera que o ouvinte, em todos os

casos, é entendido como o ouvinte que o próprio autor leva em conta, “aquele a quem a

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obra é orientada e que, por consequência, intrinsecamente determina a estrutura da

obra” (p.13) e que, portanto, de modo algum nos referimos às pessoas reais, em carne e

osso, que de fato formam o público leitor do autor em questão. Assim como também

não podemos nos referir ao autor em questão como a pessoa de carne de osso que

escreve: “

“Mesmo se o poeta, de fato, extrai sua paixão em grande parte das circunstâncias de sua própria vida privada, ainda assim ele precisa socializar esse sentimento, e, consequentemente, elaborar o evento correspondente ao nível de significação social” (VOLOSHINOV, 1926, p. 13)

3.2.4 Enunciado e vozes

A ideia de que autor, herói e ouvinte não coincidem com as pessoas que, de fato, falam/escrevem e leem/escutam o texto não está restrita ao ensaio “Discurso na vida, discurso na arte”. Em “Os gêneros do discurso”, Bakhtin novamente ressalta que

"O destinatário do enunciado pode, por assim dizer, coincidir pessoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado.(...) Mas nos casos de tal coincidência pessoal uma pessoa desempenha dois papéis, e essa diferença de papéis é justamente o que importa. Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo, ao qual faço objeção, o qual executo, levo em conta, etc.) já está presente; a sua resposta (ou compreensão responsiva) ainda está por vir" (BAKHTIN, 2003, p.301-302).

Fica claro então que, para o autor, o que faz parte do meu enunciado não é o destinatário, mas a imagem que faço dele. Essa imagem é inarredavelmente distinta do destinatário propriamente dito por uma série de motivos, a começar pela própria ontologia: enquanto a imagem que faço de uma pessoa quando enuncio é uma concepção, um pensamento - e, portanto, imaterial - a pessoa propriamente dita é de carne e osso, material - e, por isso, a ela seria impossível "entrar" num texto. Entendo que o reconhecimento desta alteridade, desta clara diferenciação entre sujeitos “de texto” e sujeitos “de carne e osso” é um aspecto central do pensamento bakhtiniano e, por conseguinte, deste dispositivo. Assim, para colaborar com esse detalhamento, trarei os aportes de Amorim e Faraco, relacionando, sempre que possível, os textos destes autores aos originais de Bakhtin. No polo da significação, há dois sujeitos a distinguir. O destinatário propriamente dito - ou destinatário real, como propõe Amorim (2002) - é um sujeito empírico, extratextual e que, ao fim e ao cabo, será o leitor do texto. Já a imagem que o falante faz do destinatário - destinatário suposto (AMORIM, 2002) - é um sujeito de discurso, intratextual. Este sim, tem tamanha força e influência sobre o que se diz e sobre como se diz que é considerado co-autor dos enunciados. No entanto, não custa repetir, é uma figura inarredavelmente ficcional, uma criação do enunciador feita a partir das impressões que tem acerca de seu interlocutor. Voloshinov (1926) o chama de ouvinte. No momento em que encontramos, no nível da significação, uma alteridade entre destinatários, seria razoável esperar que o autor propusesse algo semelhante no polo da enunciação. De fato, para Bakhtin, “a identidade absoluta de meu eu com o eu de que falo é tão impossível quanto tentar suspender-se pelos próprios cabelos!” (BAKHTIN apud AMORIM, 2002. 10). Amorim traz esta frase a propósito da diferenciação entre o autor, que escreveu o texto, e o locutor, que diz "eu" no texto. Já Faraco (2005), tratando a questão da autoria em Bakhtin, afirma que desde "O autor e o herói na atividade estética", escrito na década de 1920, o autor propõe a diferenciação entre autor-pessoa e autor-criador. Haveria, então, 3 "sujeitos" no polo da enunciação: autor-pessoa, autor-criador/autor e locutor. É importante reconhecer a alteridade entre eles. O autor-pessoa seria o escritor propriamente dito, sujeito empírico, sendo perfeitamente possível, de acordo com Amorim, identificá-lo como autor de um texto e continuar sem nada saber acerca de sua pessoa. Em “Os gêneros do discurso”, Bakhtin se refere a esse sujeito como falante. Já o autor-criador (ou autor, para Amorim) é o responsável pelo todo estético da

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obra, sua voz é "portadora de um olhar e de um ponto de vista que trabalha o texto do início ao fim" (AMORIM, 2002, p.11). E, "por ser uma função imanente ao objeto estético e por definir-se como uma posição axiológica, o autor-criador (a voz segunda) é, para Bakhtin, pura relação: não se trata de um ente físico (não é possível encontrar um Dom Casmurro nas ruas como tal)" (FARACO, 2005, p.42). Em “Discurso na vida, discurso na arte”, Voloshinov (1926) o chama de autor. É importante, ainda, distinguir o autor-criador do locutor, aquele que diz "eu" no texto. Para Amorim, a voz do autor não está nas declarações do locutor, mesmo quando este faz declarações diretas do tipo "gosto disso", "concordo com aquilo", etc. Isso ocorre pois o "locutor é sempre um personagem, enquanto a voz do autor está em todo lugar e em nenhum lugar em particular. Mais precisamente, ela pode ser ouvida ali, no ponto crucial de encontro entre a forma e o conteúdo do texto" (AMORIM, 2002, p. 10). Tanto Amorim quanto Faraco dão bastante destaque ao fato de que, para Bakhtin, essas distinções devem ser feitas mesmo em textos autobiográficos e em forma de diário. Finalmente, se levarmos em conta que “na poesia, com na vida, o discurso verbal é um cenário de um evento” (VOLOSHINOV, 1926, p. 12) e que neste cenário interagem autor, ouvinte e herói, é importante, também, ressaltarmos a presença deste último sujeito “de texto” que, para o autor, tanto pode ser alguém como algo sobre o que se fala. Assim, tanto os objetos quantos as personagens – e, até mesmo, o locutor - estariam na categoria de herói. Recapitulando, teríamos, numa situação bakhtiniana de comunicação verbal: i) o autor-pessoa, ii) o autor-criador, iii) o herói – objeto, personagem ou locutor21, iv) o destinatário suposto e v) a voz do destinatário real. Cabe distinguir que enquanto o autor-pessoa e o destinatário real são sujeitos empíricos e extratextuais, os demais sujeitos são figuras de discurso, intratextuais. Por entender que a explicitação da alteridade entre sujeitos contribuirá decisivamente para a clareza do processo de análise, opto pela seguinte nomenclatura: o ser humano que profere as palavras será chamado de autor-pessoa; o sujeito “de texto” responsável pelo todo estético da obra será chamado de autor-criador; aquilo de que se fala / aquele sobre quem se fala / aquele que fala no texto será chamado “herói” - em particular, o sujeito “de texto” que diz “eu” no texto será chamado de locutor; o sujeito “de texto” que corresponde à imagem que o autor-pessoa faz do destinatário será chamado “destinatário suposto” e o ser humano que de fato lerá as palavras será chamado de “destinatário real”.

3.2.5 Apropriação Discursiva

O enunciado, enquanto elo na cadeia da comunicação discursiva, ocupa uma

posição definida em uma dada esfera da comunicação, em um dado assunto, etc, sendo

impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições, sem

compreender que ele não está ligado apenas aos elos precedentes mas também aos

subsequentes da comunicação discursiva:

“O enunciado é pleno de tonalidades dialógicas, e sem levá-las em conta é impossível entender até o fim o estilo de um enunciado. Porque a nossa própria ideia – seja filosófica, científica, artística – nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos dos outros, e isso não pode deixar de encontrar o seu reflexo também nas formas de expressão verbalizada do nosso pensamento” (BAKHTIN, 2003, p. 298)

Sendo encarada desta forma, fica evidente que a experiência discursiva

individual se forma e se desenvolve em uma interação contínua e constante com os

enunciados individuais dos outros. Para Bakhtin (2003), essa experiência pode, em certo

21 Cabe destacar que numa autobiografia, por exemplo, o locutor – aquele que diz “eu” no texto” – é também o herói - aquilo sobre o que se fala no texto.

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sentido, ser caracterizada como um processo de assimilação da palavra do outro, com

um tom mais ou menos criador. Esse tom criador aparece pelo fato de que nosso

discurso é pleno de palavras dos outros, “de um grau vário de alteridade ou de

assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras

dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos,

reelaboramos e reacentuamos” (p. 295).

Assim, é possível associar a assimilação ao que Bakhtin (2006b) aponta, em

outra obra, como apropriação, na medida em que considera a última como um

movimento em que a mescla de discursos, o próprio com o alheio, é capaz de melhor

mediar suas próprias intenções, seus próprios acentos.

Como a vida, coisa sócio-ideológica concreta, a língua situa-se na fronteira entre

si e o outro. A palavra na língua é metade de alguém. Ela se torna "própria" apenas

quando o falante preenche-a com sua própria intenção, seu próprio acento, quando ele

se apropria da palavra, adaptando-o à sua própria intenção semântica e expressiva.

Porém, nem todas as palavras se submeterão facilmente e igualmente a apropriação, a

esta apreensão e transformação em propriedade privada por parte do falante: muitas

palavras teimam em resistir, outras permanecem estrangeiras, estranhas à boca daquele

que apropriam-se delas; eles não conseguem assimilá-las em seu próprio contexto, é

como se o falante colocasse aspas na palavra, fazendo uma espécie de citação direta à

palavra do outro, mesmo contra sua vontade.

Mesmo antes do momento de apropriação, a palavra já não existe de forma

neutra e impessoal (como já expus anteriormente, não é, afinal, do dicionário que os

falantes retiram suas palavras), mas ela existe na boca de outras pessoas, em contextos

de outras pessoas, servindo a intenções de outras pessoas: é a partir destas situações que

tomamos a palavra e as tornamos própria. Por isso:

“pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em três aspectos: como palavra da língua neutra e não pertencente a ninguém; como palavra alheia dos outros, cheia de ecos de outros enunciados; e, por último, como palavra minha, porque, uma vez que eu opero com ela em uma situação determinada, com uma intenção discursiva determinada, ela já está compenetrada da minha expressão (BAKHTIN, 2003, p.294)

Ora, se o último momento [apropriação] consiste em operar em determinada

situação com intenção discursiva própria, expressão própria, serão aí, identificadas as

perspectivas dos professores cursistas acerca dos PCNEM de Física.

Bakhtin fornece também uma categorização das palavras alheias pautada não no

que elas informam ou nos modelos que fornecem, mas na sua intenção de “definir as

próprias bases de nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso

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comportamento” (BAKHTIN, 1993, p.142). Trata-se do discurso de autoridade e do

discurso internamente persuasivo. O processo de formação ideológica normalmente vai

caracterizar-se pela divergência desses dois discursos e, nessas circunstâncias, o

discurso alheio caracteriza-se como um campo de tensões entre duas categorias.

Entretanto é possível que, eventualmente, autoridade e persuasão interior se unam numa

mesma palavra ou num mesmo discurso. Bakhtin (1993) afirma que “o discurso

autoritário exige o nosso reconhecimento incondicional e não absolutamente uma

compreensão e assimilação livre em nossas próprias palavras.(...) entra em nossa

consciência verbal como uma massa compacta e indivisível, é preciso confirmá-la por

inteiro ou recusá-la na íntegra” (p.144) . Já o discurso do outro internamente persuasivo

nos revela possibilidades bastante diferentes. “À diferença da palavra autoritária

exterior, a palavra persuasiva interior, no processo de sua assimilação positiva, se

entrelaça estreitamente com a ‘nossa palavra’” (BAKHTIN, 1993, p. 144-5).

A palavra persuasiva interior constitui-se como metade nossa, metade do outro, é

a palavra semi-alheia propriamente dita e sua “produtividade criativa consiste

precisamente em que ela desperta nosso pensamento e nossa palavra autônoma”

(BAKHTIN, 1993, p.145), organizando nossas palavras, não se mantendo isolada,

imóvel. Se por um lado a palavra autoritária se distancia do diálogo, a palavra

persuasiva interior está aberta a ele. No entanto, não se trata de imitação ou réplica de

outros discursos, mas envolve um confronto de nossos contextos, com nossas palavras,

num processo criativo de transformação do discurso alheio, provocando o diálogo

interno. Nem todas as palavras se submeterão facilmente à apropriação por qualquer

pessoa, podendo as mesmas permanecerem alheias ou soando como estrangeiras na

boca de quem delas se apropriou, não sendo, assim, assimiladas ao novo contexto. Essa

resistência das palavras se deve ao fato de que:

“a linguagem não é um meio neutro que passa livremente e facilmente para a propriedade privada das intenções de um falante, ela é povoada - superpovoada - com as intenções de outros. Expropriá-la, forçando-a a se submeter a sua própria intenção e acentos, é um processo difícil e complicado. (BAKHTIN, 1993, p. 294)”

Dessa forma, podemos afirmar que o povoamento da palavra do outro com

nossas próprias palavras se dará de maneira mais plena ao lidarmos com um discurso

internamente persuasivo, um discurso mais aberto. Porém, isto não significa afirmar que

defronte a um discurso de autoridade não seja possível uma valoração, um acento, uma

intenção própria ao empregar tal discurso e que, por vezes, as enunciações se

constituem como espaço de luta entre essas forças e, sendo assim, sua existência é

sempre tensa, contraditória, ambivalente.

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3.2.6 - Procedimentos de análise

Bakhtin (2006a) propõe que a metodologia do estudo da língua deve seguir três

etapas: i) as formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições

concretas em que se realiza ii) as formas das distintas enunciações, dos atos de fala

isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as

categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma

determinação pela interação verbal. iii) A partir daí, exame das formas da língua na sua

interpretação linguística habitual. Seria possível dizer que quando o autor se refere a

“atos de fala isolados” está falando dos enunciados? Seriam as “categorias de atos de

fala na vida” os gêneros de discurso? E como seria, exatamente, a ligação entre os tipos

de interação verbal e as condições em que se realizam? Com base nos conceitos

bakhtinianos apresentados no capítulo anterior é possível esclarecer estas questões e

finalizar o dispositivo analítico.

Quanto à primeira questão, tudo o que foi dito acerca da alternância dos sujeitos

falantes como característica fundadora dos enunciados permite concluir que todo ato de

fala isolado está, no meu ponto de vista, cercado pelas falas de outros sujeitos.

Quanto à segunda, considero que a resposta é afirmativa, pois de acordo com

Bakhtin (2003):

“O fenômeno dos gêneros do discurso foi estudado por Bakhtin ainda nos trabalhos da segunda metade da década de 20. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (...) há o esboço de um programa de estudo “dos gêneros das manifestações discursivas na vida, determinados pela interação discursiva, e na criação ideológica” e, “a partir daí, uma revisão das formas da língua em seu habitual tratamento linguístico” Aqui mesmo é feita uma breve descrição dos gêneros cotidianos da comunicação discursiva. (p. 446)

Finalmente, a terceira questão é possível responder a partir do que o próprio

autor apresenta em “Discurso na vida, discurso na arte”: O enunciado como um todo

tem duas partes: uma presumida e a outra realizada em palavras. Na parte presumida,

faremos a análise do 1) o horizonte espacial comum dos interlocutores (a unidade do

visível – neste caso, a sala, a janela, etc.), 2) o conhecimento e a compreensão comum

da situação por parte dos interlocutores e 3) sua avaliação comum dessa situação. Já na

parte realizada em palavras, caberá a análise linguística habitual. (VOLOSHINOV,

1926)

E assim, as etapas do dispositivo que proponho são:

1 - Identificação do enunciado

A partir das ideias apresentadas nas seções 3.2.1 e 3.2.2, pode-se concluir

que a própria alternância entre os sujeitos falantes já é suficiente para identificar

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o enunciado, ou seja, o enunciado inicia-se no momento em que o falante toma a

palavra para si e finaliza-se no momento em que este termina o que gostaria de

dizer, permitindo que o outro também fale.

2 - Leitura preliminar do enunciado

O objetivo desta etapa é o primeiro contato com os enunciados no sentido

de: identificar preliminarmente seus elementos linguísticos (estilo, construção

composicional, unidade temática, relação com o falante/outros participantes,

conclusibilidade) e fazer uma articulação prévia entre o material linguístico, as

questões de pesquisa e os conceitos bakhtinianos.

3 - Descrição do contexto extraverbal

A partir da leitura preliminar e da articulação prévia das questões de

pesquisa aos conceitos bakhtinianos, é realizada uma investigação do contexto

extraverbal para identificar, dentre os vários elementos, aqueles que mais

contribuirão para a análise. Esses elementos são então descritos e articulados

com vistas a estabelecer o horizonte espacial comum dos interlocutores, seu

conhecimento e compreensão da situação, sua avaliação comum dessa situação,

o momento social e histórico em que ocorre, a rede de enunciados a que se

relaciona, etc.

Nesta etapa também serão trazidos os contextos individuais dos

professores enquanto autores-pessoas – formação, tempo de magistério, idade,

região e Estado da federação a que pertence, etc. – na tentativa de trazer outros

elementos que poderão melhor compor o entendimento dos enunciados. Embora

a partir do referencial bakhtiniano não haja uma identidade entre autor-criador e

autor-pessoa não se pode deixar de considerar que entre eles há uma relação

muito próxima e íntima.

4 - Análise do enunciado

Consiste em articular os elementos linguísticos (estilo, construção

composicional, unidade temática, relação com o falante/outros participantes,

conclusibilidade), o contexto extraverbal e os conceitos bakhtinianos envolvidos

para responder as questões de pesquisa.

Excetuando-se a primeira e segunda etapas, cuja finalização é bem definida, a

terceira etapa – descrição do contexto extraverbal - poderá ser revista e ampliada, a

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qualquer momento da análise caso seja necessário buscar outros elementos do contexto

extraverbal para melhor compreensão do enunciado.

Abaixo segue um esquema para melhor compreensão das etapas a serem

percorridas no presente dispositivo analítico:

Figura 1 – Esquema das etapas do dispositivo analítico

3.3 Objetivo e questões de pesquisa

Diante do exposto, o objetivo do presente estudo consiste em identificar, a partir

do conceito bakhtiniano de apropriação, perspectivas de professores de Física acerca

dos PCNEM. Entendendo a perspectiva como a voz do(a) professor(a) e que a mesma

não pode ser construída a não ser a partir do diálogo com outras perspectivas, considero

que as seguintes questões de pesquisa ajudam a investigá-la:

- Como os professores, em seus enunciados, se posicionam diante das políticas

curriculares, em especial, diante dos PCNEM de Física?

- Qual concepção de currículo e o posicionamento diante da implementação de

um currículo nacional estão implícitos na perspectiva do professor?

- Quais as aproximações e afastamentos encontrados entre as perspectivas dos

professores investigados?

Tais questões permearão todo o processo de análise, na tentativa de respondê-las a

partir da análise do enunciado do professor.

3.4 Delimitação do estudo

Esclareço que embora o presente estudo tenha como contexto um curso de

formação continuada a distância, como será melhor descrito no próximo capítulo, não

pretendo investigar as especificidades das mediações pedagógicas e tecnológicas

presentes em um curso a distância, sendo estas entendidas apenas contexto de produção

dos enunciados dos participantes. Tampouco aspectos relativos ao desempenho dos

Etapa 1Identificação do Enunciado

Etapa 2Leitura

Preliminar

Etapa 3Descrição do

ContextoExtraverbal Etapa 4

Análisedo Enunciado

Elementos Linguísticos

ConceitosBakhtinianos

Questões de Pequisa

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professores no curso são parte do objeto de estudo. Sendo assim, considero que as

contribuições deste estudo para o ensino de Física podem ser mais relevantes para a

compreensão do discurso e prática dos professores do que para o entendimento das

especificidades da modalidade de educação à distância.

4 CONTEXTO DO ESTUDO

4.1 Contexto do Estudo

A investigação foi realizada no âmbito da formação continuada de professores

de ciências, no contexto de um curso de extensão online para professores de Física do

Ensino Médio, que se realizou numa sala de aula Moodle acoplada ao ambiente virtual

InterAge (REZENDE et al., 2003). O curso foi gratuito, certificado pela Pró-Reitoria de

Extensão da UFRJ (PR-5) e teve a duração de 10 semanas, cobrindo o equivalente a um

total de 40 horas/aula. Problematizou questões referentes aos PCNEM de Física, os

objetivos do ensino de Física e a relação entre o ensino de Física e o mercado de

trabalho. Dentre os 39 professores selecionados para fazer o curso, 17 chegaram até o

final e, por terem apresentado produção adequada, receberam o certificado de

conclusão. O curso foi mediado por dois tutores, estudantes de mestrado, e coordenado

por uma professora doutora do NUTES/UFRJ.

Embora o presente estudo tenha como recorte apenas uma das atividades

realizadas durante o curso – como será explicitado na seção 4.2 – todo o curso será

descrito nas seções seguintes para melhor entendimento do contexto em que o estudo se

insere. Além disso, também cabe destacar que eu – a própria pesquisadora – atuei como

elaboradora e tutora do curso. Sendo assim, tanto o curso quanto a análise que irei

empreender, são, inarredavelmente, não neutros. Interessa-me aqui, apresentar a

singularidade de um olhar atento sobre o objeto de estudo, estudá-lo a partir de

ferramentas teórico-metodológicas consistentes com os fundamentos da filosofia da

linguagem de Bakhtin, reconhecendo e explicitando minha interferência no processo.

4.1.1 O ambiente virtual

O InterAge (http://nutes2.nutes.ufrj.br/interage) foi elaborado em 2004 com base

na perspectiva construtivista e com o objetivo de prover aos seus usuários - os

professores de ciências - recursos tecnológicos para realizar a ruptura com o modelo de

transmissão de conhecimentos. O princípio deste ambiente online é permitir que os

professores construam o conhecimento de forma ativa, assumindo o controle do próprio

processo de aprendizagem (REZENDE et al, 2003). Seus recursos tecnológicos e

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pedagógicos foram desenvolvidos com o intuito de levar o professor a refletir sobre sua

prática profissional e também para promover, por meio de fóruns de discussão e email, a

interatividade e a colaboração entre professores e tutores. Ao longo dos cursos, os

professores têm acesso a materiais educativos e textos de pesquisa em educação em

ciências. O ambiente atualmente conta com 1.468 professores cadastrados.

Em 2011, com o objetivo de facilitar o manuseio dos recursos técnicos e a gestão

dos cursos por estudantes de pós-graduação e de iniciação científica não especialistas

em Informática, decidiu-se integrar as funcionalidades do Moodle (versão 1.9.7) ao

ambiente virtual já existente. O primeiro passo do processo de integração foi fazer uma

sala de aula no Moodle (http://www.interageufrj.org) com o objetivo de familiarizar

professores e tutores com a nova interface e com as funcionalidades de gestão técnica e

administrativa. O curso em questão foi o primeiro a ser realizado nesta sala - e, a julgar

pelos retorno dos professores e tutores, o processo de adaptação foi bastante bem

sucedido.

4.1.2 Cursistas

Divulgação

A estratégia de divulgação do curso consistia em duas partes. Na primeira, o

curso seria divulgado por email para os professores que já estavam cadastrados na base

de dados do InterAge e, na segunda, faríamos a divulgação para os professores em

geral, por intermédio de contatos com secretarias estaduais, municipais, escolas e pelo

site da PR-5. No entanto, como a primeira parte da divulgação foi suficiente para

preencher as vagas oferecidas, a segunda parte da divulgação ficou restrita à publicação

(automática) do curso no site da PR-5. Os 1.468 professores cadastrados no InterAge

foram avisados por email da oferta do curso, entre os dias 15 e 17/02/2011. O email

continha uma ementa do curso e uma ficha de inscrição, que, em caso de interesse,

deveria ser preenchida e anexada ao email de resposta, entre os dias 18 e 25/02. A

equipe recebeu, nesse período, um total de 219 respostas.

Distribuição de vagas e seleção

Inicialmente, seriam oferecidas 25 vagas. No entanto, levando em consideração

o grande número de interessados e uma possível evasão, a equipe decidiu aumentar o

número de vagas para 40. Levando em consideração o princípio da isonomia, a equipe

procurou distribuir essas vagas o mais equitativamente possível no que diz respeito i) às

regiões do país, ii) atuação em escolas públicas e privadas e iii) a diversidade em

relação ao tempo de formado. A equipe também levou em consideração a formação em

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área exata22, a atuação como professor de Física e a formação específica na área. É

importante destacar aqui que, como os emails de seleção foram enviados a toda a base

de dados do Interage, alguns professores de outras áreas e licenciados que não estavam

atuando responderam ao convite enviando a ficha de inscrição. O passo-a-passo do

critério foi seguinte:

1) Descartar as fichas de inscrição dos professores que não tinham formação em

área exata.

2) Descartar as fichas do professores que não atuavam como professores de

Física no Ensino Médio

2) Separar as fichas de inscrição por região

3) Dentro de cada região

3.1) Se houver mais de 8 candidatos, filtrar por formação específica em Física,

diversidade público/privado, diversidade tempo de formado, nesta ordem, até

haver 8 candidatos.

3.2) Se houver 8 candidatos ou menos, está encerrada a seleção

Foram selecionados 39 professores, 17 dos quais concluíram o curso. Dentre os

22 que não concluíram o curso, 3 confirmaram inscrição mas nunca acessaram o

ambiente. Os outros 19 foram contatados pelos tutores quando começaram a se afastar

do curso e atribuíram o afastamento a problemas de agenda. Nas tabelas abaixo estão

registradas a distribuição dos professores que iniciaram e a dos concluíram o curso,

divididos por região, tempo de formado, tipo da escola em que trabalha e formação e

também é apresentado um mapa do país que representa a diversidade regional dos

professores cursistas que iniciaram o curso.

Fig. 1 – Diversidade regional dos professores cursistas

22 Licenciatura em Física e outras áreas das Ciências Naturais.

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Tabela 5 - Distribuição de professores por tempo de formação

Tempo de formado

Iniciaram o curso

% Concluíram o

curso %

menos de 5 anos 15 38% 7 41%

De 5 a 10 anos 14 36% 4 24%

De 11 a 15 anos 5 13% 3 18%

mais de 15 anos 5 13% 3 18%

Tabela 6 - Distribuição de professores por tipo de escola em que trabalham23

Tipo de escola em que trabalha

Iniciaram o curso

% Concluíram o

curso %

Pública 28 62% 13 72%

Privada 17 38% 5 28%

Tabela 7 - Distribuição dos professores por formação

Formação Iniciaram o curso % Concluíram o curso %

Licenciatura em Física 27 69% 11 65%

23

Alguns professores trabalhavam em escolas públicas e privadas. Isso explica o fato de a soma dos que

iniciaram o curso superar 39 e de a soma dos que concluíram o curso superar 17.

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Bacharelado e Licenciatura em Física

3 8% 3 18%

Licenciatura. em Matemática com habilitação em Física

1 3% 1 6%

Licenciatura em Ciências Plenas com habilitação em Física

1 3% 1 6%

Física 2 5% 1 6%

Licenciatura em Matemática 2 5% 0 0%

Licenciatura em Matemática e Licenciatura em Física

1 3% 0 0%

Licenciatura. Plena em Ciências Naturais e Matemática com

habilitação em Física 1 3% 0 0%

Ciências 1 3% 0 0%

4.1.3 Atividades pedagógicas do curso

A proposta de formação do curso se alinhou com a defesa da atuação do

professor enquanto intelectual transformador que, assim como afirma Giroux (1997),

não permite que o professor seja reduzido ao status de técnico de alto nível que apenas

cumpre os ditames, objetivos e parâmetros traçados por especialistas:

“Encarando os professores como intelectuais, nós podemos começar a repensar

e reformar as tradições e condições que têm impedido que os professores

assumam todo o seu potencial como estudiosos e profissionais ativos e

reflexivos. Acredito que é importante não apenas encarar os professores como

intelectuais, mas também contextualizar em termos políticos e normativos as

funções sociais concretas desempenhadas pelos mesmos. Desta forma,

podemos ser mais específicos acerca das diferentes relações que os professores

têm tanto com seu trabalho como com a sociedade dominante.” (GIROUX,

1997)

Todo o curso foi baseado no modelo de formação continuada para professores de

Ciências proposto por Rezende e Castells (2009) cujos pressupostos construtivistas

visam estimular a reflexão sobre a prática; promover a interatividade; incentivar a

colaboração entre os participantes de modo a desenvolver o conhecimento profissional

do professor. Neste sentido, também tivemos como preocupação elaborar um curso

democraticamente, de forma a incorporar ao máximo as contribuições dos professores

cursistas. Assim, a equipe InterAge – da qual faziam parte eu, um outro tutor e a

coordenadora do curso - realizou um roteiro inicial de atividades e, com o desenrolar do

curso, foi adaptando e alterando essas atividades a partir do material gerado pelos

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próprios professores nos fóruns de discussão anteriores. A flexibilidade e agilidade de

edição e publicação de atividades no Moodle foi decisiva para a implementação dessa

proposta de desenho instrucional. Outro recurso bastante explorado foi a incorporação

de vídeos à interface Moodle. Os vídeos foram gravados usando câmeras de

celular/webcams, armazenados no YouTube e inseridos nas introduções das atividades e

em alguns fóruns de discussão, sempre a partir de algum evento do curso. Essa técnica

mais informal de gravação de vídeos, bem como o tom mais pessoal dos enunciados das

atividades e das mediações foram utilizados para aumentar a proximidade entre os

professores cursistas e os tutores.

4.1.4 Descrição do curso

O curso foi dividido em cinco etapas: i) Apresentação Pessoal, com duração de

prevista de 10 dias; ii) Os Pcnem de Física, com duração prevista de 20 dias); iii)

Objetivos do Ensino de Física, com duração prevista de 15 dias; iv) Ensino de Física e o

Mundo do Trabalho, com duração prevista de 15 dias e v) Avaliação do curso, duração

prevista de 10 dias. Apresento a seguir a descrição de cada etapa do curso e ao final, um

quadro (Quadro 1) que sintetiza todo o curso.

Apresentação Pessoal

A Apresentação Pessoal teve por objetivo promover a familiarização dos

cursistas com a interface Moodle e permitir que eles verificassem se seu software e

hardware estavam em condições para que participassem do restante do curso. Para isso,

foram apresentadas informações em diversos formatos, dentre as quais destaco o

cronograma do curso, no formato PDF e um vídeo do YouTube incorporado

diretamente na interface Moodle. Foram apresentados também o Fórum Problemas

Técnicos, projetado para ser o canal para resolução de problemas técnicos e o InterAge

Café, espaço em que os cursistas poderiam criar fóruns de discussão para assuntos

extra-acadêmicos. A atividade consistiu justamente numa visita ao InterAge Café e na

participação no fórum Atividade 1, em que os tutores convidavam os professores a se

apresentarem por intermédio de uma imagem, que seria retirada da internet e inserida no

post. Para ajudar os professores que não tivessem tanta familiaridade com a interface, a

equipe InterAge elaborou e disponibilizou um tutorial para inserção de imagens no

Moodle. Foi realizada também uma atividade usando o recurso do Moodle “Escolha”,

em que os professores informaram o tempo a partir do qual desistem de esperar

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respostas a uma participação que tenham feito num ambiente online. É importante aqui

destacar a grande popularidade do InterAge Café, que foi extensivamente utilizado

pelos professores até o final do curso.

Como o objetivo principal desta atividade era a familiarização dos cursistas com

o ambiente e os outros participantes, nesta etapa não foi apresentado nenhum tipo de

texto/conteúdo para discussão.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio de Física

Esta etapa do curso teve por objetivo familiarizar os professores com os PCNEM

e propor a reflexão sobre o texto “Quem defende os PCN para o ensino médio?”

(LOPES, 2006) por intermédio de atividades e discussões. A primeira atividade,

realizada no fórum de discussão “Atividade 1”, convidou os professores a ler os

PCNEM de Física, selecionar três trechos e postá-los no fórum, juntamente com as

justificativas de sua escolha. Na segunda atividade, “Atividade 2”, os professores foram

convidados a fazer uma participação para relatar suas experiências prévias com os

PCNEM, se já os conheciam, se os conheceram apenas no curso, etc. Com o objetivo de

deixar os cursistas o mais à vontade possível, os tutores gravaram o enunciado da

atividade num vídeo e o incorporaram ao fórum. Nesse vídeo, contaram sua vivência

com os PCNEM de forma bastante informal e pessoal, estimulando os professores a

participar da mesma maneira. A terceira atividade, “Atividade 3”, consistiu na leitura e

discussão de Lopes (2006) por intermédio da identificação e seleção de trechos com os

quais os participantes concordassem ou discordassem. É importante destacar que, ao

longo desta atividade, as discussões realizadas nos fóruns levaram à criação de duas

outras atividades complementares. A primeira teve como tema uma possível associação

entre a má qualidade das aulas de Física e a formação em áreas correlatas (Matemática,

Engenharia, etc.), citada por várias vezes nos fóruns. A outra foi feita a partir da

sugestão direta de um dos cursistas e dizia respeito à viabilidade de um currículo único

e relacionado ao vivencial dos alunos num país tão grande e com tantas discrepâncias

quanto o nosso. As discussões destes fóruns, apesar de concorrentes com aquelas das

atividades originalmente propostas pela equipe, foram muito produtivas. Foi criado um

fórum de discussão para que cursistas e tutores pudessem marcar um horário comum

para um chat, que ficou agendado para o dia 29/04/11. Finalmente, o trabalho final

consistiu na redação de um texto individual de 3.000 caracteres, com espaços, em que

cada cursista foi convidado a responder a pergunta “Quem defende os PCNEM?”. A

entrega foi feita por intermédio da própria interface Moodle. A avaliação levou em

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consideração a assiduidade e qualidade das participações bem como a qualidade do

trabalho final.

Os objetivos do ensino de Física

Esta etapa teve como objetivo promover a discussão sobre os objetivos do

ensino de Física e o contato com textos de pesquisa sobre os objetivos do ensino de

ciências (FOUREZ, 2003). Na primeira atividade, os professores foram convidados a

reler os PCNEM, selecionar dois trechos que identificassem como objetivos do ensino

de Física e postá-los no fórum, acompanhados de uma justificativa. A segunda atividade

foi dividida em duas partes. Na primeira parte, foram convidados a ler o texto de

pesquisa e decidir, em grupo, qual das controvérsias listadas pelo autor seria discutida

na parte seguinte. Já a segunda parte consistiria na discussão propriamente dita.

Novamente, as discussões deram origem a uma atividade complementar, em que os

professores foram chamados a apresentar os objetivos que pretendiam atingir com seu

trabalho junto aos alunos. O chat com os alunos foi realizado e, apesar de contar com

apenas 2 dos 17 alunos ativos - além dos 2 tutores - foi muito produtivo pois foi

possível trabalhar em mais detalhes questões relativas ao texto de Lopes (2006).

Finalmente, no trabalho final o professor foi convidado a escolher uma das

controvérsias apresentadas por Fourez (2003) e redigir um documento de 3.000

caracteres, com espaços, mostrando de que forma os atores do seu entorno imediato se

organizam a partir dessa controvérsia. A entrega desse trabalho e a divulgação das notas

do trabalho anterior foram feitas por intermédio da própria interface Moodle. A

avaliação do desempenho dos participantes do curso levou em consideração a

assiduidade e qualidade das participações bem como a qualidade do trabalho final.

O ensino de Física e o mercado de trabalho

Esta etapa consistiu num fórum de discussão sobre as relações entre ensino de

Física e o mundo produtivo, que foi dividido em três partes: na primeira parte, com

duração de aproximadamente 5 dias, os professores foram convidados a participar e

discutir a partir de suas visões prévias sobre o assunto. No sexto dia, foram

disponibilizados alguns trechos de textos de pesquisa (FRIGOTTO 1988, 1995; PARO,

1999; LOPES, 2006; GANDRA, 2011; CASTRO, 2008) trazendo outras visões sobre o

tema, dentre as quais destaco os pontos de vista de outros setores da sociedade

(organismos financeiros internacionais, candidatos à presidência, empresas, imprensa,

etc) sobre o tema. As íntegras dos textos também foram disponibilizadas caso houvesse

interesse dos professores por uma leitura mais aprofundada. A discussão então

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continuou até o final do fórum, quando cada participante entregou um texto de uma

lauda com a sua perspectiva sobre o ensino de Física e o mundo produtivo, articulando

os pontos de vista apresentados. Todas as etapas da discussão foram mediadas pelo tutor

e a entrega do documento foi feita eletronicamente, por intermédio da plataforma

Moodle.

Avaliação

A Avaliação do curso teve a duração de cinco dias e consistiu, basicamente, na

participação opcional num fórum de sugestões e críticas sobre o curso e no

preenchimento de um questionário individual de avaliação do curso.

A avaliação dos participantes levou em consideração a assiduidade e qualidade

das participações bem como a qualidade do trabalho final. Dos 17 concluintes, três

tiveram bom desempenho, mas receberam a avaliação “razoável” devido a questões de

assiduidade e de atraso nos prazos de entrega; 6 tiveram desempenho excelente, mas

receberam a avaliação “bom” também por problemas de assiduidade e de atraso na

entrega dos trabalhos finais e, finalmente, 8 receberam a avaliação “excelente”.

Quadro 1: Síntese das etapas do curso e respectivas atividades

Etapa Atividades

Apresentação Pessoal Atividade: familiarização do usuário com o ambiente virtual e com os outros participantes

Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino

Médio de Física

1ª atividade: leitura dos PCNEM de Física destacando e postando no fórum de discussão três trechos com no máximo 5 linhas, justificando o motivo por ter escolhido os respectivos trechos 2ª atividade: relato das experiências dos professores com os PCNEM de Física 3ª atividade: leitura e discussão de texto de pesquisa relacionado à implantação do currículo nacional no Brasil (LOPES, 200624) 4ª atividade: entrega de trabalho final respondendo à pergunta: “Quem defende os PCNEM?”

Os objetivos do ensino de Física

1ª atividade: leitura dos PCNEM de Física identificando no texto dois objetivos do ensino de Física, postando-os no fórum para posterior discussão. 2ª atividade: leitura e discussão de texto de pesquisa que abordava a relação entre o que se espera do ensino do Ciências e sua atual crise (FOUREZ, 200325) 3ª atividade: chat com os tutores com o objetivo de os professores colocarem suas reflexões não só sobre o que estava

24 LOPES, A. 2006, Quem defende os PCN para o ensino médio?. In: Alice Casimiro Lopes; Elizabeth Macedo. (Org.). Políticas de currículo em contextos disciplinares. 1 ed. São Paulo: Cortez, v. , p. 126-158. 25 FOUREZ, G., 2003. Crise no ensino de ciências. Investigações em ensino de ciências, 8(2), pp. 109-123

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sendo discutido no curso mas sobre sua prática pedagógica em geral. 4ª atividade: entrega de trabalho final se apoiando em uma das controvérsias apresentadas no texto estudado.

O ensino de Física e o mercado de trabalho

1ª atividade: participação dos professores nos fóruns dando suas visões prévias sobre as relações entre o ensino de Física e o mercado de trabalho 2ª atividade: leitura de alguns trechos de textos que tratavam sobre o assunto sob diferentes pontos de vista (FRIGOTTO, 198826 , 199527 ; PARO, 199928 ; LOPES, 200229 ; CASTRO, 200830; GANDRA, 201131) 3ª atividade: discussão dos textos em fóruns. 4ª atividade: entrega de trabalho final no qual o participante apresenta sua perspectiva sobre as relações entre o ensino de Física e o mundo produtivo, articulando os pontos de vista apresentados no curso

Avaliação

Avaliação do curso: participação em fórum de sugestões e críticas e no preenchimento de questionário individual Avaliação do participante: assiduidade, participação e trabalho final

4.1.5 Mediação dos tutores

Todas as etapas e discussões do curso contaram com mediações pedagógicas dos

tutores. Estas mediações consistiam basicamente de intervenções nos fóruns de

discussão que: traziam para a discussão outros elementos que pudessem auxiliar os

professores a se posicionarem; incitavam a discussão trazendo pontos controversos;

faziam interrelações entre as postagens de diferentes professores; chamavam todos os

professores para participar das discussões, etc.

4.2 Corpus do estudo

O corpus do presente estudo foi composto por 5 enunciados de professores32 de

cada uma das cindo regiões do país – Norte, Sul, Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste – e

26 FRIGOTTO, G., 1988. Formação profissional no 2º. grau: em busca do horizonte da Educação Politécnica. Cadernos de Saúde Pública, 4, pp.435–445. 27 FRIGOTTO, G. 1995. Educação e formação humana: ajuste neoconservador e alternativa democrática. In Pablo Gentili & Tomaz Tadeu da Silva (orgs) Neoliberalismo, qualidade total e educação. Petrópolis, RJ: Vozes 28 PARO, V. H., 1999. Parem de Preparar para o Trabalho – Reflexões acerca dos efeitos do neoliberalismo sobre a gestão e o papel da escola básica. In: FERRETI, C.J. – Trabalho, Formação e Currículo: Para onde vai a escola. São Paulo: Xamã. 29 LOPES, A.C., 2002. Os Parâmetros curriculares nacionais para o ensino médio e a submissão ao mundo produtivo: o caso do conceito de contextualização. Educação & Sociedade, 23(80). 30 CASTRO, C. M.., 2008 Educação não é mercadoria!. Acesso em <21/05/2011>. <http://arquivoetc.blogspot.com/2008/04/claudio-de-moura-castro.html> 31 GANDRA, A., 2011. Academia Brasileira de Ciências quer avanços em pesquisa e no ensino de ciências nas escolas. 32

É importante destacar que todos estes professores analisados declararam estar de acordo com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo I)

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todos atuantes apenas em escolas públicas em resposta ao que foi solicitado na primeira

atividade do curso quando discutimos os PCNEM de Física em um fórum de discussão.

Embora 21 professores tenham respondido à atividade, considerei mais interessante para

o presente estudo compor um corpus que apresentasse semelhanças – todos pertencentes

a escolas públicas – e diferenças – todos pertencentes a regiões diferentes – entre os

professores, na tentativa de melhor compreender quais as aproximações e afastamentos

encontrados entre as perspectivas desses professores e suas possíveis relações com os

contextos individuais em que estão inseridos. Cumpre-se destacar que as diferenças

regionais existentes serão delimitadas pelo último Índice de Desenvolvimento da

Educação Básica (IDEB33), ocorrido em 2009, tanto da região quanto do Estado a que o

professor pertence. A atividade foi apresentada pelo seguinte texto:

Prezados professores, Nesta atividade, convidamos vocês a fazerem o seguinte: 1) Leiam os PCN de Física cuidadosamente (cliquem aqui para download do documento) 2) Selecionem 3 trechos com no máximo 5 linhas cada. 3) Postem neste fórum os trechos, justificando o mais detalhadamente possível, a sua escolha. Caprichem nesta atividade, pois ela será necessária para as próximas. Além de, é claro, em um curso sobre os PCN, o estudo profundo do documento torna-se imprescindível =) Boa leitura e estudo, Tutor 1 e Tutor 2

Esta foi a primeira atividade formal e com conteúdo do curso, já que a atividade

anterior consistia apenas em apresentações pessoais e familiarização com o ambiente

virtual. Assim sendo, ao eleger estes enunciados para análise, tive a intenção de

encontrar a perspectiva do professor anterior às discussões teóricas realizadas ao longo

do curso. Diante disso, como já foi mencionado no Quadro Teórico Metodológico, não

serão considerados aspectos pedagógicos do curso, isto é, as especificidades das

mediações pedagógicas e tecnológicas presentes em um curso a distância. Embora tenha

havido discussões e mediações posteriores à postagem dos três trechos pelos

professores, o recorte do estudo consistiu em analisar apenas esta primeira postagem,

descartando as demais.

33 O IDEB foi criado em 2007 para medir a qualidade de cada escola e de cada rede de ensino. O indicador é calculado com base no desempenho do estudante em avaliações do (INEP) e em taxas de aprovação. Assim, para que o IDEB de uma escola ou rede cresça é preciso que o aluno aprenda, não repita o ano e frequente a sala de aula (MEC, 2007). O índice é medido a cada dois anos e o objetivo é que o país, a partir do alcance das metas municipais e estaduais, tenha nota 6 em 2022 – correspondente à qualidade do ensino em países desenvolvidos. (MEC, 2007)

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A justificativa da atividade mencionada reside no fato de que um curso em que a

discussão principal girava em torno dos PCNEM de Física seria inconcebível sem a

leitura do documento. Com o objetivo de que a leitura fosse uma atividade mais

reflexiva, propusemos esta atividade onde o professor teria não apenas que ler o

documento, mas destacar e justificar a escolha de três trechos do mesmo.

Do ponto de vista da pesquisa, esta atividade também mostrava-se promissora

pois, em consonância com o conceito de apropriação de Bakhtin, ao fazer uma seleção e

ao ter de justificar sua escolha, o professor estaria povoando a palavra do outro - ou

seja, o documento oficial - , com suas próprias palavras e sua própria visão de mundo.

É necessário ressaltar que, em nenhum momento, foi pedido que o trecho

devesse ser escolhido em função do que o professor considerasse certo ou errado, ou do

que ele concordasse ou discordasse: deixar essa avaliação ainda mais a critério de cada

professor foi também uma estratégia para que emergisse sua própria voz.

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5. APROPRIAÇÃO DISCURSIVA DOS PCNEM DE FÍSICA POR PROFESSORES

Neste capítulo, serão apresentadas as análises dos enunciados de 5 professores,

todos atuantes em escolas públicas, porém pertencentes à diferentes regiões da

federação, que responderam à primeira atividade da segunda etapa do curso – “Os

Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio de Física” -, descrita abaixo:

Prezados professores, Nesta atividade, convidamos vocês a fazerem o seguinte: 1) Leiam os PCN de Física cuidadosamente (cliquem aqui para download do documento) 2) Selecionem 3 trechos com no máximo 5 linhas cada. 3) Postem neste fórum os trechos justificando, o mais detalhadamente possível, a sua escolha. Caprichem nesta atividade, pois ela será necessária para as próximas. Além de, é claro, em um curso sobre os PCN, o estudo profundo do documento torna-se imprescindível =) Boa leitura e estudo, Tutor 1 e Tutor 2

As análises serão realizadas à luz da teoria de Bakhtin e a partir das orientações

do dispositivo analítico, ambas apresentadas no Quadro Teórico Metodológico

A partir da teoria bakhtiniana, podemos apontar alguns pontos importantes sobre

os autores-criadores em questão – comuns a todos os professores que postaram seus

enunciados: são professores de Física participantes do curso online “Os Parâmetros

Curriculares Nacionais e os objetivos do ensino de Física”, oferecido no ambiente

virtual de formação de professores, InterAge, do NUTES/UFRJ. Seus destinatários

supostos são os tutores do curso, que entendemos que representam a UFRJ, em

particular, e a academia, de maneira geral e também os outros professores participantes

do curso.

Ressalto que, nas partes da resposta dadas na primeira pessoa do singular,

entendo que a voz que diz “eu” não é a do autor-criador, mas a do locutor. A voz do

autor-criador, perspectiva estética e axiológica responsável pelo todo do enunciado, não

pode ser encontrada em nenhum ponto específico da obra. Assim, posicionar-se usando

a primeira pessoa é um dentre muitos recursos estéticos e axiológicos à disposição do

autor-criador.

O herói, ou seja, aquilo sobre o que o autor-criador fala, são os PCNEM de

Física e, especificamente, os temas tratados nos trechos destacados pelos

professores.

O horizonte espacial comum é um curso de 10 semanas, divididos em 5

módulos: apresentação pessoal, os PCNEM de Física, os objetivos de ensino de Física, a

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relação entre o ensino de Física e o mercado de trabalho e avaliação do curso. O

módulo em questão, em que pela primeira vez se apresenta um conteúdo a ser estudado,

refere-se aos PCNEM de Física. O módulo foi composto por 6 atividades: 3 fóruns

previstos no desenho inicial do curso; 2 fóruns com questões complementares que

surgiram ao longo das discussões e um trabalho individual final. O enunciado estudado

é uma resposta a primeira atividade do módulo. A atividade foi conduzida num fórum

de discussão, em que todos poderiam ler e comentar as respostas dos colegas de curso e

não houve limite de caracteres para a resposta. A duração do fórum foi de 10 dias e

contou com a participação de 25 professores.

O conhecimento e compreensão comum da situação compreende uma série de

conhecimentos tácitos presumidos pelo autor-pessoa no ato de sua fala: os

cursistas/tutores, por serem professores atuantes/pesquisadores em educação, sabem da

existência e leram, por conta da atividade, os PCNEM e que eles são a materialização de

uma política curricular oficial brasileira; todos os cursistas/tutores, por serem

professores atuantes/pesquisadores em educação, reconhecem a importância do

processo de formação continuada tanto para a aprendizagem em si como para a

obtenção de certificados e a consequente valorização profissional; todos os participantes

conheciam uns aos outros através das apresentações pessoais realizadas no início do

curso e sabiam que, ao longo do curso, estariam sendo avaliados pela instituição,

representada, no caso, pelos tutores. A obtenção dos certificados dependeria dessa

avaliação. No que diz respeito ao contrato didático, todos os participantes são adultos e

professores, conhecendo, assim, por um lado a agenda cheia da vida de um adulto que

trabalha como professor e, por outro, a importância dos prazos e regras um ambiente de

aprendizagem.

A avaliação comum presumida pelo falante sobre a situação é a de que o

contexto de um curso sobre o assunto, ministrado pela UFRJ, é um espaço

particularmente relevante para discussão e estudo dos PCNEM. Existe também a ideia

de que sua contribuição, além de colaborar com os colegas, encontrará eco junto à

academia.

As linhas dos enunciados foram numeradas para facilitar sua recorrência, ao

longo da análise. O enunciado intercala trechos dos PCNEM – em itálico – com a

justificativa dada pelo professor.

5.1 Enunciado do Professor Norte

O enunciado do Professor Norte, tal qual ‘postado’ no fórum de discussão, em

resposta à atividade proposta, é apresentado abaixo.

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1 “... é essencial que o conhecimento físico seja explicitado como um processo 2 histórico, objeto de contínua transformação e associado às outras formas de 3 expressão e produção humana. É necessário também que essa cultura em Física 4 inclua a compreensão do conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou 5 tecnológicos, do cotidiano doméstico, social e profissional”. 6 7 Justificativa: 8 9 Escolhi esse trecho do PCNEM de Física por considerar importante que o professor 10 possibilite que os alunos tenham ciência de como foram (e como vão sendo) 11 construídos os conhecimentos científicos. Não menos importante, é necessário 12 também que o professor promova situações onde os alunos possam entender os 13 princípios físicos que estão por trás das aplicações práticas que movimentam nossa 14 sociedade e nossa vida. 15 16 “... é imprescindível considerar o mundo vivencial dos alunos, sua realidade 17 próxima ou distante, os objetos e fenômenos com que efetivamente lidam, ou os 18 problemas e indagações que movem sua curiosidade”. 19 20 Justificativa: 21 22 Achei esse trecho bastante interessante, pois expõe uma preocupação que muitos 23 professores não têm quando planejam suas aulas. No ensino de física, é comum os 24 professores direcionarem, quase que exclusivamente, suas ações didáticas no sentido 25 de preparar os estudantes para os competitivos exames de vestibular, colocando em 26 plano secundário a formação de jovens capazes de relacionarem o que é apresentado 27 na sala de aula com sua vida, a sua realidade e o seu cotidiano. 28 29 “Lidar com o arsenal de informação atualmente disponível depende de habilidades 30 para obter, sistematizar, produzir e mesmo difundir informações, aprendendo a 31 acompanhar o ritmo de transformação do mundo em que vivemos. Isso inclui ser 32 um leitor crítico e atento das notícias científicas divulgadas de diferentes formas: 33 vídeos, programas de televisão, sites da internet ou notícias de jornais. 34 35 Justificativa: 36 37 Selecionei esse trecho por considerar importante a discussão em sala de aula de 38 questões atuais como, por exemplo, aquecimento global, energia nuclear, GPS, etc. 39 Não há como negar que esses temas contemporâneos têm efeitos imediatos em 40 nossas vidas. Acredito que a grande dificuldade dos professores de física é como 41 transpor a informação veiculada na mídia eletrônica e impressa para o ambiente 42 escolar. Infelizmente a formação acadêmica não nos capacita para isso. Somos 43 “treinados” na universidade para fazer conta. Como reverter essa situação? Acredito 44 que indo atrás de livros e artigos publicados que tratam do assunto ajuda muito...

5.1.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor Norte

O autor-pessoa é um professor de 31 anos, natural do Piauí, porém residente em

Tocantins onde leciona a disciplina de Física nos níveis médio e técnico de ensino em

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uma instituição de ensino pública. Sua formação em Licenciatura Plena em Física

ocorreu em 2008 em uma instituição federal de ensino do estado do Piauí e possui

Especialização em Metodologia do Ensino de Matemática e Física.

O Estado do Tocantins ocupa hoje a 12ª posição dentre os 27 Estados, com 3,4

pontos no IDEB para o ensino médio de ensino. A Região Norte, a qual Tocantins

pertence, ocupa, com 3,3 pontos, a última posição dentre as regiões da federação,

juntamente com a região Nordeste (Fonte: INEP 2009).

O primeiro trecho do enunciado (linha1 a linha5) é um recorte dos três trechos

dos PCNEM solicitados pela atividade. No que diz respeito ao tema, trata da

necessidade de se explicitar o conhecimento físico como produto social e da ideia de

que a cultura em Física deve incluir o conhecimento sobre os dispositivos cotidianos.

As palavras “essencial” (linha 1) e “necessário” (linha 3) dão um tom prescritivo ao

texto. E, no que diz respeito à composição/estrutura é possível perceber a ocultação do

agente da passiva no texto, fato especialmente importante se recordarmos o fato de que

o enunciado bakhtiniano é um cenário 34 e que, neste caso, um dos principais

protagonistas - o professor - foi removido. “É essencial que o conhecimento físico seja

explicitado” (linha 1) por quem?

Sua justificativa (linha 7 a linha 14), acompanha, do ponto de vista do tema, o

trecho selecionado dos PCNEM. A primeira parte remete à importância do

conhecimento físico como produto social e a segunda à inclusão, na cultura sobre

Física, do conhecimento sobre “os princípios físicos que estão por trás das aplicações

práticas que movimentam nossa sociedade e nossa vida” (linha 12 a linha 14). Já no que

diz respeito à composição/estrutura, o autor explicita algo que estava oculto no trecho

selecionado: é importante que “o professor” (linha 9) possibilite que os alunos tenham

ciência. Além disso, o fato de não estar se falando de um professor específico faz com

que a expressão “o professor” seja sinônimo de “todos os professores”. A repetição

desta expressão, na linha 12, reforça a compreensão de que o autor se apropria dos

PCNEM enfatizando e reforçando o caráter prescritivo do documento. O acento próprio,

neste caso, consistiria na explicitação e extensão das prescrições aos demais

professores.

O segundo trecho selecionado (linha 16 a linha 18) dos PCNEM refere-se,

também, à necessidade de se considerar o mundo vivencial dos alunos, e mais uma vez,

aponta para a importância da compreensão dos dispositivos com que estes lidam

cotidianamente. A conjunção “ou” (linha 17), apesar de alternativa por excelência, tem

34 “Na poesia, como na vida, o discurso verbal é o cenário de um evento” (VOLOSHINOV, p.12).

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aqui um caráter aditivo, e inclui, nos conteúdos a serem considerados pelo ensino de

Física, problemas e indagações que, apesar não fazerem parte do dia-a-dia dos alunos,

instigam sua curiosidade.

A justificativa do autor-criador (linha 20 a linha 27) para este trecho se modifica:

em vez de reverberar o tema do trecho selecionado, utiliza o tema como um critério de

classificação, dividindo os professores em dois grupos e criticando um deles. Esta

divisão é proposta no momento em que se refere a uma preocupação que “muitos

professores não têm” (linha 22 e linha 23). O primeiro grupo, criticado pelo autor, é

formado pelos professores que não têm a preocupação com os objetos cotidianos e a

curiosidade dos alunos quando planejam suas aulas. Suas ações didáticas são, quase que

exclusivamente, direcionadas no sentido de preparar os estudantes para os competitivos

exames de vestibular (linha 24 a linha 27). O segundo grupo seria formado pelos

professores que tem como objetivo “formar jovens capazes de relacionarem o que é

apresentado na sala de aula com sua vida, a sua realidade e o seu cotidiano” (linha 26 e

linha 27). Ao utilizar as palavras “muitos” (linha 22) e a expressão “é comum” (linha

23) para descrever o primeiro grupo deixa claro que este é significativamente maior que

o segundo. Assim, as aulas planejadas de acordo com os PCN formariam um cidadão

capaz de fazer relações entre o que aprende e o mundo à sua volta. Isso colocaria em

dúvida a qualidade da formação obtida com aulas que preparam diretamente e

exclusivamente para o vestibular. Dessa forma, o professor se apropriou do trecho em

questão para dirigir uma crítica aos seus colegas de profissão que preparam para os

exames vestibulares e reforçar a sua ideia de como o ensino de Física deve realizar-se -

considerando o mundo vivencial do aluno.

No terceiro trecho selecionado pelo autor (linha 29 a 33), o tema toca,

novamente, a presença da Física no cotidiano, porém, por um outro viés: o das

informações científicas veiculadas pelos meios de comunicação bem como das

habilidades necessárias para lidar com esse “arsenal de informações” (linha 29) - entre

elas, a leitura crítica destas informações. Pressupõe também uma sociedade cujo ritmo

de transformação é ditado - ou, pelo menos, fortemente influenciado - pelos temas

científicos.

Pela terceira vez, o autor-criador, inicia sua justificativa utilizando o verbo na

primeira pessoa do singular como recurso para se posicionar como locutor: “(eu)

selecionei esse trecho” (linha 37). Nas três primeiras linhas, acompanha o tema do

trecho selecionado. Nas linhas seguintes afirma que a “grande dificuldade dos

professores de física” (linha 40) é fazer a transposição do conteúdo da mídia para a sala

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de aula, pressupondo assim que i) essa transposição é um dos pontos centrais do ensino

de física ii) a transposição, a ser feita pelo professor, é a melhor maneira de formar o

leitor crítico e atento a que se refere os PCN. Essa grande dificuldade é atribuída a uma

formação acadêmica deficiente, que treina os professores, inclusive o locutor -

evidenciado pelo uso da conjugação “somos” (linha 42) - para fazer conta (linha 43). O

locutor apresenta, como sugestão para que se supere essa dificuldade, a “leitura de

livros e artigos publicados que tratam do assunto” (linha 44), o que sugere i) uma

aproximação com a pesquisa da área, ii) uma importância da formação continuada,

formal ou informal e iii) a ideia de que uma das funções da pesquisa é prover soluções

para problemas concretos de prática de ensino. É importante perceber o fato de que a

mesma academia responsabilizada e criticada pela má formação inicial também publica

os livros e artigos que podem ajudar a resolver o problema apontado pelo autor-criador.

O autor-criador, então, se apropria deste trecho dos PCN para apontar a grande

dificuldade do professor de física, afirmar a importância da transposição do conteúdo da

mídia para o currículo de Física, para criticar a formação inicial - e, por consequência, a

academia - e para ressaltar a importância da formação continuada formal e informal.

No que diz respeito ao tema, destaco o fato de, dentre as várias dimensões do

ensino de Física abordadas pelos PCN, o autor ter escolhido apenas trechos relacionados

à dimensão vivencial. Entendo que, com isso, o autor se apropria dos PCN para

explicitar a centralidade do assunto para a sua concepção de ensino de Física. Podemos

ainda indicar que o fato de o professor ser recém-formado (ano de 2008), uma década

após os PCNEM de Física terem sido publicados – e toda a importância dada ao ensino

que leve em consideração o mundo vivencial do aluno – pode ter influenciado

fortemente sua formação docente neste sentido. O professor apropria-se, também, dos

PCN tanto para fazer uma prescrição dessa concepção de ensino aos outros colegas

quanto para diferenciá-los em dois grupos. Entendo que esse processo de constituição

da identidade profissional a partir da crítica aos colegas de profissão, apesar de não

dizer respeito diretamente à questão de estudo, é uma marca dos destinatários

supostos - no caso, os colegas professores - no enunciado. Já na prescrição de uma

determinada prática de ensino aos colegas, identifico uma marca do destinatário suposto

academia, no momento em que o autor está numa situação de formação continuada e

dialogando com os representantes da organização que oferece formação continuada -

que, eventualmente, poderá aceitar e implementar sua sugestão.

O autor apropria-se dos PCNEM, ainda, para dirigir suas críticas : i) ao ensino

preparatório exclusivo para o vestibular – do qual, a partir de suas informações pessoais,

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ele não participa - que coloca em plano secundário a formação de jovens capazes de

relacionar, criticamente, o ensino de Física ao seu mundo vivencial; ii) a formação

inicial deficiente, que treina os professores para fazer contas, cuja crítica é feita até

mesmo em sua apresentação pessoal.

A partir dessas críticas e do todo estético do enunciado é possível fazer algumas

considerações acerca da perspectiva do autor sobre o documento no contexto estudado.

A primeira seria que o planejamento de ensino em consonância com a característica que

destaca dos PCNEM - a inclusão da contextualização, que, muito embora o autor-

criador não tenha utilizado a palavra propriamente dita, alinha-se quando o autor-criador

referencia e destaca os temas do mundo vivencial - seria desejável e capaz de formar

cidadãos críticos. Nessa perspectiva, o ensino de acordo com os PCNEM teria qualidade

superior ao ensino que visa a preparar exclusivamente para ao vestibular. Podemos

perceber que para o professor, a deficiência do aluno em não aprender não se limita aos

aspectos cognitivos do ensino-aprendizagem, antes, porém, seria necessário dar as

ferramentas – ensino contextualizado - para que o aluno seja conduzido ao aprendizado,

que seja dado a ele a possibilidade de traduzir seus esquemas mentais em habilidades

(competências). Retomando as ideias de Lopes (2002), cuja afirmação é a de que a

contextualização é um dos processos de formação das competências necessárias ao

mundo produtivo, podemos perceber que o professor desconsidera outros aspectos

socioculturais e econômicos do processo de ensino-aprendizagem, agregando ao seu

discurso o discurso do eficientismo social. A segunda seria a de que a formação inicial,

ao não prepará-los para transpor o conteúdo da mídia para a sala de aula -

recomendação que identifica nos PCNEM - ignora o documento e suas orientações - ou

seja, o autor-criador indica que há uma ruptura entre os processos de formação inicial e

as políticas curriculares governamentais. Em contraposição, o autor-criador assume que,

uma das soluções para suprir tal deficiência da formação, encontra-se na formação

continuada, formal ou informal - através de livros e artigos publicados - onde se obtém

subsídios de implementar estas políticas. Além disso, no momento em que afirma que o

grande problema do professor de Física é o “como” transpor o conteúdo da mídia para a

sala de aula, o autor criador dá por correta, garantida e desejável a proposta dos PCN,

além de focar sua prática pedagógica apenas em aspectos metodológicos. Ela estaria

bastante além da atual realidade das salas de aula e se constituiria numa espécie de

solução ou de meta para o ensino de Física.

Assim como na pesquisa em ensino de Física, percebemos também que no

discurso do professor permanece a perspectiva do currículo como prescrição. Embora,

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ele não conceda ao documento força de lei, fica evidente, a partir de seu reconhecimento

incondicional, que o professor assume o documento enquanto um discurso de

autoridade, ainda que seja dada uma valoração, um acento, uma intenção própria ao

empregar tal discurso. Neste sentido, como aponta Goodson (2007), há uma aceitação

dos modelos estabelecidos de relação de poder, o que pode tornar-se perigoso na medida

em que o professor não se assume enquanto intelectual transformador, que é capaz de

identificar as relações entre currículo, poder e sociedade nem enquanto propositor de

alternativas aos modelos vigentes.

5.2 O enunciado do Professor Sul

O enunciado do Professor Sul, tal qual ‘postado’ no fórum de discussão, em

resposta à atividade proposta, é apresentado abaixo.

1 Olá. Segue abaixo os trechos por mim escolhido e meus comentários. Grande abraço a 2 todos. 3 4 “O ensino de física tem-se realizado frequentemente mediante a apresentação de 5 conceitos e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo vivido pelos 6 alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de significados.” 7 8 É o que acontece na grande maioria das vezes, a física é apresentada ao aluno como 9 sendo uma extensão da matemática, apenas, isto é, uma imensidão de equações a 10 serem decoradas e aplicadas, sem nenhum significado, sem nenhuma conexão com o 11 mundo real e então surge a fatídica pergunta, que muitos de nós ficamos reféns, 12 “onde eu uso isso? Para que eu aprendo isso?” e muitas e muitas vezes não sabemos 13 responder, por que também não sabemos, também questionamos e não obtivemos 14 resposta ou quando a obtivemos, reproduzimos: no vestibular, no próximo ano, no 15 próximo conteúdo. Precisamos nós, antes de mais ninguém identificarmos qual o 16 significado daquilo que estamos passando ao nosso aluno, para que ele articule os 17 conhecimentos formal e informal. 18 19 “Insiste na solução de exercícios repetitivos, pretendendo que o aprendizado ocorra 20 pela automatização ou memorização e não pela construção do conhecimento através 21 das competências adquiridas” 22 22 O quadro que se apresenta quando você ouve falar em física é esse, um monte de 23 equações para ser decoradas e muitos exercícios de memorização e repetição do que 24 foi trabalhado anteriormente. Tinha-se um modelo e a partir daí os demais seriam 25 parecidos com ele. Com os modelos de provas do ENEM, a mudança começa ocorrer 26 lentamente, a metodologia começa a ser modificada, mas ainda é um processo lento. 27 Talvez isso ocorra pelo nosso despreparo em trabalharmos dessa forma e também 28 porque muitos professores que atuam na área da física não tenham a formação 29 adequada, embora, também vejamos muitos com formação, trabalhando de forma a 30 priorizar o trabalho mecânico ao intelectual. 31 “É preciso rediscutir qual física ensinar para possibilitar uma melhor compreensão 32 do mundo e uma formação para a cidadania mais adequada. Sabemos todos que, 33 para tanto, não existem soluções simples ou únicas, nem receitas prontas que 34 garantam o sucesso.”

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35 O ensino de física necessita sim de uma reformulação, é necessário adequar os 36 conteúdos de forma que venham a abranger o cotidiano do nosso aluno e comecem a 37 fazer sentido, caso contrário, continuaremos a “falar grego”. Contextualizar, 38 trabalhar de forma interdisciplinar, proporcionar ao aluno a construção do 39 conhecimento, em que este seja um sujeito ativo nesse processo e não mais passivo e 40 trabalhar aliando prática e teoria são sem dúvida algumas opções que já vem sendo 41 discutidas e rediscutidas ao longo dos anos. Faz-se necessário deixar de lado a 42 discussão somente e colocar essas propostas em prática. Fácil? Não, nunca é. Vai dar 43 certo? Talvez, somente tentando saberemos.

5.2.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor Sul

O autor-pessoa é um professor de 43 anos, natural do Rio Grande do Sul e

residente na cidade de São Vicente do Sul do mesmo Estado, onde leciona a disciplina

de Física nos níveis fundamental e médio em duas instituições públicas de ensino. Sua

formação em Física ocorreu em 2004 em uma instituição federal de ensino do Rio

Grande do Sul.

O Estado do Rio Grande do Sul ocupa hoje a 3ª posição dentre os 27 Estados

com 3,9 pontos no IDEB para o ensino médio de ensino. A Região Sul, a qual Rio

Grande do Sul pertence, ocupa, com 4,1 pontos, a primeira posição dentre as 5 regiões

da federação (Fonte: INEP 2009).

O professor inicia seu enunciado com uma saudação ‘a todos’ (linha1)

explicitando, assim, a quem seu enunciado se dirige. Esta introdução elege participantes

do curso e tutores como seus destinatários supostos.

O primeiro trecho selecionado dos PCNEM (linha 4 a linha 6) dirige uma crítica

ao ensino que apresenta ‘conceitos’ e ‘fórmulas’ (linha 5) desarticulados do mundo

vivencial de alunos e professores e, principalmente por este motivo, esses conceitos e

fórmulas acabam por se tornar vazios de significados. Por analogia, embora o trecho

não traga a palavra ‘contextualização’, podemos entender o documento sugere que este

‘vazio’ seja preenchido mediante um ensino contextualizado. Em relação à

composição/estrutura do trecho, a forma ‘tem-se realizado’ na voz passiva deixa

indeterminado o agente, já que o ensino de física torna-se o sujeito da frase. Fica em

aberto assim, quem tem realizado o ensino de forma desarticulada. Mais uma vez,

levando em consideração que o enunciado bakhtiniano é um cenário, temos um dos

principais protagonistas – o professor – removido propositalmente.

A justificativa do professor também segue nesta linha logo na primeiro período

do seu enunciado: quando diz que ‘a física é apresentada ao aluno’ (linha 8) ele também

oculta quem apresenta esta física. Além disso, o professor tem por intenção atribuir a

falta de sentido do ensino de física ao fato dele ser tratado apenas como uma ‘extensão

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da matemática’ (linha 9), o que o transformaria em ensino sem nenhuma conexão com o

mundo real’ (linha 9). Assim como os PCNEM, embora o professor não utilize a

palavra ‘contextualização’, parece clara a sua concordância com este conceito, sua

intenção de inserir o conceito no processo de ensino-aprendizagem e sua crítica aos

professores que apresentam o ensino de Física apenas sob o enfoque matemático.

O professor se coloca pela primeira vez no enunciado como locutor – recurso

axiológico e estético para trazer a si mesmo como personagem do enunciado - no

momento em que utiliza a primeira pessoal do plural ‘nós’ (linha 11) para afirmar que,

assim como os outros professores, permanece refém de perguntas ainda sem respostas

do por quê ensinar física e onde utilizar estes conhecimentos. Para o professor, o motivo

de os professores – inclusive ele - não saberem responder estas indagações reside no

fato de, ao questionarem sobre estas perguntas, ‘não obtivemos respostas’ (linha 14) e,

segundo ele, quando as obtém, suas repostas reproduzem que o ensino de física serve

para o ´vestibular´ (linha 14), para compreender os ‘próximos conteúdos’ dos ‘próximos

anos’ (linha 14). O uso da palavra ‘reproduzir’ acaba por incluir o eco de outras vozes

no seu enunciado, que pretensamente, poderiam ser seus colegas, professores de Física e

talvez também de outras matérias, que repetem essa tradição.

Aqui podemos destacar que o professor, implicitamente, reconhece que os

próprios PCNEM de Física, embora sugiram um ensino contextualizado e próximo ao

mundo vivencial do aluno, não obtêm sucesso ao informar aos professores a que o

ensino de Física se propõe e quais são seus objetivos, deixando os professores à mercê

de discursos que propõem, por exemplo, a preparação para o exame vestibular. Se por

um lado o questionamento do professor sobre motivos ‘por quê’ ensinar Física poderia

ser interessante no sentido de manifestar um senso crítico diante do currículo de Física,

por outro, a importância exagerada dada por ele ao conceito de contextualização parece

indicar que essa forma de ensino é a resposta procurada, o que poderia ser, na visão de

Lopes (2002b), aproximada de um ‘eficientismo social’ já comentado anteriormente.

O professor finaliza a justificativa do trecho selecionado informando que ‘nós’

(linha15) – os próprios professores – ‘antes de mais ninguém’ (linha15) é que devemos

identificar o real significado daquilo que é passado aos alunos, retirando assim, a

responsabilidade das políticas curriculares oficiais sobre este aspecto. Por outro lado,

quando finaliza a sentença “para que ele articule os conhecimentos formal e informal”,

torna a reforçar a contextualização, como o meio de significar o ensino da Física.

A temática do segundo trecho selecionado refere-se, assim como o primeiro

trecho, a uma crítica ao ensino descontextualizado: ‘solução de exercícios repetitivos’

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(linha19), ‘automatização e memorização’ (linha 20) de conteúdos e falta de ‘construção

de conhecimentos’ (linha 20) a partir das ‘competências adquiridas’ (linha 21). Cumpre-

se destacar que neste trecho, assim como discutido na Revisão de Literatura sobre o

conceito de competência, há ausência de clareza sobre como essas ‘competências

adquiridas’ resultam em uma ‘construção de conhecimentos’. Além disso, a presença

dos verbos ‘adquirir’ – ideia de coisa pronta - e ‘construir’- ideia de coisa a ser

constituída - na mesma frase parece colocar ‘competências’ e ‘conhecimento’ em

extremos opostos.

A intenção do autor-criador em relação a escolha do trecho destacado

permanece: dirigir críticas ao ensino de Física excessivamente matemático e

descontextualizado.

Para o professor, o quadro atual ainda é o da Física apresentada mediante ‘um

monte de equações a ser decoradas’ (linha 24) e ‘exercícios de memorização e

repetição’ (linha 24). Porém, segundo ele, os modelos de prova do ENEM35 podem ser

considerados uma pequena mudança neste aspecto, embora ainda este seja um ‘processo

lento’ (linha 27). Ao utilizar o pronome possessivo em ‘nosso despreparo’ (linha 28), o

professor se assume despreparado para empreender tal mudança metodológica. Porém,

ao utilizar um pronome indefinido em ‘muitos professores’ (linha 29) para se referir à

falta de ‘formação adequada’ (linha 30) desses professores não fica claro se seu

despreparo também se relaciona à falta de formação. O que parece claro é que ele não se

coloca no grupo de professores que detém esta formação diferenciada capaz de

empreender um ensino mais contextualizado mas que ainda assim prioriza o ‘trabalho

mecânico ao intelectual’ (linha 31).

O terceiro trecho selecionado, em consonância com os anteriores, também

valoriza um ensino de Física que possibilite ‘uma melhor compreensão do mundo’

(linha 31). Entretanto, o trecho também destaca a necessidade de o ensino de Física

possibilitar ‘uma formação para a cidadania mais adequada’ (linha 33). Ao utilizar o

verbo conjugado na primeira pessoa do plural ‘sabemos todos’ (linha 34), o documento

intenta um viés mais intimista com o leitor - que muito embora saibamos, por analogia,

se tratar dos professores, mais uma vez omite este personagem. Assim, o documento

admite que todos têm conhecimento da dificuldade de se alcançarem tais objetivos e que

35

O Exame Nacional para o Ensino Médio (ENEM) tem como referência a LDB, os PCNEM, a Reforma do Ensino Médio, bem como os textos que sustentam sua organização curricular em Áreas de Conhecimento. O objetivo fundamental do exame é avaliar o desempenho do aluno ao término da escolaridade básica, para aferir o desenvolvimento de competências fundamentais ao exercício pleno da cidadania (MEC/INEP, 1998)

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não existem ‘soluções simples ou únicas’ (linha 34) e nem ‘receitas prontas’ (linha 34)

que ‘garantam o sucesso’ (linha 35).

O início da justificativa do autor-criador pela escolha deste trecho se dá por

meio do verbo ‘é necessário’/‘necessita’ (linha 37) indicando que para ele não há outra

possibilidade para o ensino de física ‘fazer sentido’ (linha 39) a não ser ‘abranger o

cotidiano’ (linha 38) do aluno, pois, caso contrário, ‘continuaremos a falar grego’ (linha

39). Pela primeira vez em todo o enunciado, o professor explicitamente traz o termo

‘contextualizar’ (linha 39) – embora implicitamente a todo tempo a ele faça referência -

e o integra ao conceito de interdisciplinaridade – que em nenhum momento é citado

explicitamente em todo o documento (LOPES, 2002c) - para proporcionar ao aluno ‘a

construção do conhecimento’. A partir desta integração, o professor tem por intenção

tornar o aluno ‘sujeito ativo’ (linha 41) do processo. Como sugestão para atingir tais

objetivos, o professor sugere aliar ‘prática e teoria’ (linha 42), cuja união, segundo ele,

já tem sido ‘discutida e rediscutida’ (linha 43) ao longo dos anos, sendo o atual

momento o de deixar as discussões de lado para colocar as propostas em prática. Assim

como o documento, o professor afirma que a tarefa ‘nunca é’ (linha 43) fácil e cuja

possibilidade de dar ou não certo ele afirma que ‘somente tentando saberemos’ (linha

45). Também chama atenção na justificativa deste trecho, a ausência da apropriação,

pelo professor, do conceito de cidadania. Fica a hipótese de que a melhor compreensão

do mundo e a formação para a cidadania seriam a mesma coisa e que por meio da

contextualização e da interdisciplinaridade seria possível alcançar essa ‘coisa’.

A partir do que foi descrito e do todo estético do enunciado faço algumas

considerações acerca da perspectiva do autor sobre o documento no contexto estudado.

Destaco, primeiramente, o fato de, dentre as várias outras dimensões do ensino

de Física presente nos PCNEM, o autor ter escolhido apenas os trechos que faziam

menção à dimensão vivencial, ao ensino contextualizado. Entendo, com isso, que o

autor se apropria dos PCNEM majoritariamente com a intenção de apoiar a concepção

de ensino de Física contextualizado proposta no documento e, ainda, convencer os

demais participantes do curso da importância e vantagens da contextualização através

de um discurso persuasivo em que ele próprio se coloca enquanto ‘refém’ do ensino

matematizado e distante do mundo vivencial do aluno. Seu enunciado pode ser

entendido como uma espécie de chamamento dos outros professores a empreenderem

este tipo de ensino. A contextualização aparece então na perspectiva do professor como

a solução dos males do ensino de Física.

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Embora utilize os trechos dos PCNEM para apoiar sua concepção de ensino

contextualizado, o professor não entende o documento como doador de respostas aos

seus questionamentos sobre como empreender tal ensino. Esta perspectiva parece se

alinhar com a crítica apontada na Revisão de Literatura do presente estudo em que,

muito embora o documento tente se afastar do ensino propedêutico e se aproximar do

mundo vivencial do aluno, ainda há fortes traços deste ensino propedêutico no texto do

documento, não oferecendo subsídios aos professores sobre como tornar o ensino, de

fato, significativo e próximo da realidade do aluno.

A perspectiva do ensino de Física contextualizado seria, para o professor,

requisito indispensável que, junto com a interdisciplinaridade, permitiria uma atuação

mais efetiva dos alunos na construção do conhecimento.

Assim como na pesquisa da área de Ensino de Ciências, se faz presente no

discurso do professor a perspectiva do currículo como prescrição, na medida em que ele

não traz nenhuma crítica aos modelos de relação entre currículo, poder e sociedade já

estabelecidos (Goodson, 2007). Assim, nesta perspectiva, o “como” fazer do currículo

se torna mais importante para o professor em questão do que o “por quê” e, assim como

textos da área apontam, a falta de formação adequada acaba por torna-se o principal

motivo para a não implementação das políticas curriculares.

Permanece então, em seu enunciado, uma aceitação acrítica daquilo que o

documento propõe, sem estabelecer diálogo com todo o conjunto de perspectivas

trazidas nos capítulos iniciais deste estudo: as intenções neoliberais e mercantilistas

presentes no documento; suas ambiguidades epistemológicas; a circunscrição do ensino

às habilidades e competências que visariam, assim como a contextualização, ao

eficientismo social,.

Embora não tenha abordado explicitamente, ao que parece, a perspectiva do

professor estaria de acordo também com a seleção de conteúdos que o documento

prescreve a nível nacional, desde que o conjunto de conteúdos mínimos sejam ensinados

de forma contextualizada e próximos à realidade dos alunos.

5.3 O enunciado do Professor Sudeste

O enunciado do Professor Sudeste, tal qual ‘postado’ no fórum de discussão, em

resposta à atividade 1 do curso, é apresentado abaixo.

1 Olá a todos 2 Demorei um pouco a responder, mas aí estão os trechos que escolhi: 3

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4 1 - ...É necessário também que essa cultura em Física inclua a compreensão do 5 conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano 6 doméstico, social e profissional. 7 8 De uma maneira geral, acho que as propostas do PCN são muito ambiciosas diante do 9 que temos hoje em termos de realidade na maioria das escolas. Esse trecho é um 10 pouco o exemplo disso. Concordo sim que deve-se incluir "a compreensão do 11 conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano 12 doméstico, social e profissional", mas da forma como é colocado, me parece que há 13 uma obrigação de que esta e outras dezenas de coisas sejam feitas, mas só temos 2 14 ou 3 aulas por semana, e muitas vezes nenhum equipamento disponível. Como 15 cobrar do professor que isso seja feito? Acho importente sim que o parâmetro de 16 qualidade seja elevado, mas isso deve ser cobrado gradualmente, e de várias 17 instâncias, não só do professor. 18 19 2 - ...Enfatiza a utilização de fórmulas, em situações artificiais,desvinculando a 20 linguagem matemática que essas fórmulas representam de seu significado físico 21 efetivo. Insiste na solução de exercícios repetitivos, pretendendo que o aprendizado 22 ocorra pela automatização ou memorização e não pela construção do conhecimento 23 através das competências adquiridas. 24 25 Concordo que o ensino de física se utiliza de situações artificiais. Mas, teríamos 26 condições de ensinar a trabalhar situações "reais"? Com resistência do ar, fluxos 27 turbulentos, pêndulos físicos com atrito e tudo mais? Honestamente, não consigo 28 nem fazer com que os alunos entendam situações fisicamente mais simples, quanto 29 mais as mais complexas, com mais variáveis? Não acho que o uso de fórmulas 30 necessariamente desvincula o significado físico e privilegie a automatização e 31 memorização. Fórmulas existem como síntese de um processo de descoberta e 32 modelização visando a resolução de problemas mais simples, ou a simplificação de 33 algumas situações, que podem ser didaticamente trabalhadas. Como ensinar o que 34 (para mim...) é mais complexo, se não consigo nem fazer os alunos entender o que é 35 a princípio mais simples? 36 37 3 - ...Esse quadro não decorre unicamente do despreparo dos professores, nem de 38 limitações impostas pelas condições escolares deficientes. Expressa, ao contrário, 39 uma deformação estrutural, que veio sendo gradualmente introjetada pelos 40 participantes do sistema escolar e que passou a ser tomada como coisa natural. 41 42 Pouca gente dá atenção a isso. É muito fácil culpar o professor. Aliás, já vi 43 professores culparem outros professores pelo "fracasso" de suas aulas e outras 44 empreitadas, quando na verdade, deveriam ajudar-se e ter consciência de que 45 compartilham de um problema em comum. Acredito sim, de que seja um problema 46 estrutural, essencial, da natureza da origem do ensino, da forma como o ensino de 45 física foi concebido. 47 48 Em resumo, sei que é preciso mudar muita coisa, mas na prática, não sei o que fazer. 49 Leio e re-leio os PCNs, me parecem ótimas sugestões, concordo com a maioria, mas 50 acho que é preciso exemplos de como fazer. Atualmente, essa é a minha busca. 51 52 Um abraço a todos! 53 Professor Sudeste

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5.3.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor

Sudeste

O autor-pessoa é um professor de 32 anos, residente na cidade de Cotia em São

Paulo, onde leciona a disciplina de Física nos níveis fundamental e médio em

instituições públicas de ensino. Sua formação em Licenciatura Plena em Física ocorreu

em 2009 em uma instituição federal de ensino de São Paulo.

O Estado de São Paulo ocupa hoje a 3ª posição dentre os 27 Estados, com 3,9

pontos no IDEB para o ensino médio de ensino. A Região Sudeste, a qual São Paulo

pertence, ocupa, com 3,8 pontos, a segunda posição dentre as 5 regiões da federação,

sendo ultrapassada apenas pela Região Sul (Fonte: INEP 2009).

O autor-criador inicia seu enunciado reconhecendo que demorou para responder

à atividades Sua intenção indica um pedido de desculpas e, consequentemente, de

consideração e estima com os participantes do curso e tutores.

O primeiro trecho destacado dos PCNEM refere-se a algo ‘necessário’ (linha 4)

e, sendo assim, imprescindível ao ensino de Física: incluir na cultura em Física, a

compreensão de aparatos e processos técnicos e tecnológicos do cotidiano do aluno –

seja ele doméstico, social ou profissional. O uso da palavra ‘necessário’ retoma a ideia

apresentada na ‘Revisão de Literatura’ de que, embora o documento afirme não ser uma

‘receita’ a ser seguida, algumas orientações são sim prescrições claras dirigidas ao

professor. Esta prescrição refere-se a um ensino de Física contextualizado que

possibilite ao aluno uma leitura científica dos instrumentos tecnológicos presentes no

cotidiano.

O professor inicia sua justificativa não se referindo, diretamente, à temática

destacada em si. Na verdade sua intenção é dirigir uma crítica ao documento: a de que

suas propostas são ‘muito ambiciosas’ (linha 8) para a ‘realidade na maioria das

escolas’ (linha 9). Ao utilizar ‘as propostas do PCN’ (linha 8) – em detrimento de ‘essa

proposta’ ou ‘a proposta acima’ - podemos entender que a crítica não se refere apenas

ao trecho destacado mas a todo documento. Essa perspectiva fica ainda mais clara na

oração seguinte, quando o professor afirma que o trecho é ‘um pouco o exemplo disso’

(linha 10 – grifo meu). Embora utilize o recurso gramatical da primeira pessoa do

singular para afirmar que concorda com o trecho destacado, a perspectiva do professor é

modulada com a expressão ‘na forma como é colocado’ (linha 12) para se reposicionar,

afirmando que as orientações do documento aparentam ser ‘uma obrigação’ (linha 13)

para que esta e outras ‘dezenas de coisas’ (linha 13) sejam feitas. Aqui parece claro que

o professor não assume o texto do PCNEM como um discurso de autoridade, mas

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aponta que a própria maneira em que as orientações são colocadas no documento dá a

entender um caráter de obrigatoriedade dessas orientações. Sua intenção com esse

apontamento é o de trazer a impossibilidade do professor em cumpri-las pelo fato de ter

‘só 2 ou 3 aulas por semana’ (linha 14) e ‘nenhum equipamento disponível’ (linha 14).

Ao fazer a pergunta ‘Como cobrar do professor que isso seja feito?” (linha 14) o

professor parece estar indicando uma marca do seu destinatário suposto, ou seja, a quem

sua pergunta se dirige: à academia, representada pelos tutores do curso, e aos outros

participantes do curso.

O professor destaca que acha importante existir um ‘parâmetro de qualidade

elevado’ (linha 16) desde que seja implementado e ‘cobrado’ (linha 16) gradualmente e

de todas as instâncias, ‘não só do professor’ (linha 17). Neste trecho, o professor

identifica o documento com qualidade. A partir dessa identidade, sua perspectiva não é

de posicionar contra os PCNEM, mas de apontar as dificuldades de implementá-lo –

sendo inclusive desejável que fosse possível seguir suas orientações – em consonância

com a tendência das pesquisas na área de ensino de Ciências.

O segundo trecho destacado dos PCNEM tem por objetivo criticar o ensino de

Física até então praticado, que ‘enfatiza a utilização de fórmulas’ (linha 19) em

situações não reais – ‘artificiais’ (linha 19) – e que desvincula a linguagem matemática

que essas fórmulas ‘representam’ (linha 20) do seu real ‘significado físico’ (linha 20).

Também critica a solução de ‘exercícios repetitivos’ (linha 21) e a ‘automatização e

memorização’ (linha 22) em detrimento da ‘construção do conhecimento’ (linha 22) a

partir das ‘competências adquiridas’ (linha 23). Assim como ocorre em quase todo o

documento, a composição e a estrutura gramatical do texto não deixam claro quem, de

carne e osso, ‘enfatiza’ (linha 19) ou ‘insiste’ (linha 21) neste ensino tão criticado.

O autor-criador, de um modo geral, utiliza-se do mesma linha de argumentação

anterior: concorda com as orientações do documento, porém a elas dirige crítica quanto

as possibilidades de implementá-las. A marca do locutor – aquele que diz “eu” no texto

– assim como na primeira justificativa, também é muito forte nesta: o professor

continua trazendo, a todo tempo, verbos conjugados na primeira pessoa do singular para

se posicionar e participar como personagem do enunciado. Mais uma vez o professor

traz uma pergunta aos seus interlocutores – destinatários supostos – ‘teríamos condições

de ensinar a trabalhar situações reais?’ (linha 26). Seu posicionamento sobre o assunto,

iniciado com um ‘honestamente’ (linha 27) – dando a entender de que é algo que ele

próprio não gostaria de dizer, mas que é a realidade - é o de que sequer consegue

ensinar aos alunos ‘situações fisicamente mais simples’ (linha 29) quanto mais ‘as mais

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complexas’ (linha 29). Assim, ensinar situações reais, na perspectiva do professor seria

ensinar situações que envolvessem ‘resistência do ar, fluxos turbulentos, pêndulos

físicos com atrito’ (linha 27). Nessa colocação, o professor elaborou uma identidade

entre situação artificial e situação simples, atribuindo assim, à primeira, um sentido que

não seria necessariamente o mesmo atribuído pelos autores do documento.

O professor considera que o uso de fórmulas não privilegie apenas a

‘automatização e memorização’ (linha 31) e que não necessariamente seu uso

desvincule o significado físico e sim que as fórmulas auxiliam na ‘modelização’ (linha

32) de ‘problemas mais simples’ (linha 33) ou ‘simplificação de algumas situações’

(linha 33) a serem trabalhadas didaticamente. Assumindo as situações simples como

opostas às situações reais (que seriam, assim, mais complexas), o professor parece

discordar dos PCNEM entendendo que o documento apontaria que as fórmulas –

utilizadas no nível médio de ensino – dariam conta de representar situações reais. Mais

uma vez utilizando como recurso para se posicionar uma pergunta dirigida aos tutores e

colegas, ele demarca bem que tudo que foi dito é um posicionamento dele – utilizando

para isso a expressão entre parênteses ‘para mim...’ (linha 34) .

Julgo importante destacar que embora no trecho selecionado dos PCNEM seja

feita referência à ‘construção do conhecimento’ (linha 22) e ‘competências adquiridas’

(linha 23) o professor se silencia a respeito destes termos e suas implicações. A

perspectiva do professor é essencialmente construída a partir das dicotomias o que é

proposto versus o que é possível e situação simples versus situação complexa..

O terceiro trecho selecionado tem por intenção não culpabilizar única e

exclusivamente os professores, pois o quadro de dificuldades no ensino-aprendizagem

de Física ‘não decorre unicamente do despreparo dos professores’ (linha 37 – grifo

meu). A primeira coisa que cumpre-se destacar é o fato do documento assumir,

tacitamente, que os professores estão despreparados para empreender tal ensino

proposto pelo documento. A segunda, refere-se à citação, explícita, de ‘professores’

(linha 37). Assim como exposto na Revisão de Literatura, o estilo e estrutura

composicional do documento se materializa com o apagamento do professor como

sujeito das orações, como aquele que realiza as ações. Porém, no tocante a quem são os

culpados, parece importante colocá-los, explicitamente, neste cenário. O documento

também assume as próprias limitações ‘escolares deficientes’ (linha 38) como outro

empecilho para melhoria do ensino de Física, mas não apenas. Para o documento existe

uma ‘deformação estrutural’ (linha 39) introjetada ‘gradualmente’ (linha 39) no sistema

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escolar e que passou a ser tomada como ‘coisa natural’ (linha 40). Que tipo de

deformação estrutural seria essa? O documento não explicita.

A perspectiva do professor em relação ao assunto vai na direção apontada pelo

documento: o professor não pode ser o único culpado pelos problemas do ensino de

Física. Para ele ‘é muito fácil culpar o professor’ (linha 42) pelo ‘fracasso (linha 43) de

suas aulas. O professor afirma ainda que muitos de seus colegas professores se

culpabilizam mutuamente. Neste aspecto, o professor se posiciona afirmando que, na

verdade, esses professores deveriam se ajudar e terem consciência de que

‘compartilham um problema em comum’ (linha 45). Ainda utilizando a primeira pessoa

do singular ele se posiciona afirmando que o problema é sim ‘estrutural’ (linha 46) e

tenta definir qual seria. Para ele, o problema estaria na ‘natureza da origem do ensino’

(linha 46) e na ‘forma como o ensino de física foi concebido’ (linha 47).

O professor finaliza seu enunciado assumindo que é preciso ‘mudar muita coisa’

(linha 48), porém ele não sabe ‘o que fazer’ (linha 48). Isso indica que o professor

assume o documento como orientador de sua prática, mas que o mesmo não se

materializa. Assumindo uma concepção altamente prescritiva sobre o currículo, o

professor afirma que precisa de ‘mais exemplos de como fazer’ (linha 50) e que

atualmente esse ‘o que fazer’ (linha 28) configura a sua ‘busca’ (linha 50). Esse fato

parece trazer uma certa ambiguidade no seu discurso, pois, em outro momento do

enunciado, o professor critica o fato de os PCNEM se colocarem como uma obrigação a

ser seguida.

Com um ‘abraço a todos’ (linha 52) o professor se despede.

Diante do que foi exposto podemos afirmar que a intenção principal do autor-

criador é utilizar os trechos destacados dos PCNEM para chamar atenção para as

impossibilidades de implementar as propostas nele contido. Assim, sua perspectiva é a

de que documento por si só – embora eleito como um ‘parâmetro de qualidade’ (linha

15) – não basta para que o ensino de Física sofra melhorias significativas. Assim, sob a

perspectiva desse professor, parece haver uma indicação de que a melhoria significativa

ocorreria caso fosse possível implementar aquilo que os PCNEM propõem. Em nenhum

momento o professor se opôs às orientações, indicando assim que elas são desejáveis

porém distantes da realidade escolar atual.

O professor, usa os trechos para expor a distância entre a qualidade, encontrada

nas orientações do documento e a realidade das escolas, mantendo sua preocupação

voltada para aspectos das dificuldades e (im)possibilidades de implementação do

currículo. Parece bem clara sua tentativa de se impor no enunciado, registrando a sua

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voz, a sua perspectiva, a partir do seu posicionamento sempre na primeira pessoal do

singular (eu).

A partir daquilo que o professor disse concordar, podemos apontar que o

professor valoriza um ensino contextualizado, que inclua a compreensão de

equipamentos tecnológicos presentes no cotidiano do aluno. Ele entende também que o

documento recomenda o estudo de situações reais, interpretadas por ele como situações

físicas de maior complexidade.

O professor não se manifesta em relação a outros conceitos estruturantes dos

PCNEM tais como competências, habilidades, interdisciplinaridade, embora em um dos

trechos selecionados apareça claramente o termo ‘competência’ (linha 23).

De maneira geral, sua perspectiva está de acordo com a pesquisa em ensino de

Ciências que, em sua grande maioria, aceita acriticamente as orientações do documento

como padrão de qualidade e aponta para as dificuldades de implementá-lo. Ela também

se alinha com a concepção do currículo como prescrição, embora, como já comentado,

exista no seu discurso uma ambiguidade a esse respeito.

Outros diálogos com as perspectivas apresentadas na ‘Revisão de Literatura’ não

fizeram parte do enunciado do professor, como, por exemplo, as relações de poder

estabelecidas através do currículo, a submissão dos PCNEM ao mundo produtivo, etc.

5.4 O enunciado do Professor Nordeste

O enunciado do Professor Nordeste, tal qual ‘postado’ no fórum de discussão,

em resposta à atividade proposta, é apresentado abaixo.

1 Bom dia a todos. Espero que todos estejam gostando do curso como estou. Já fiz 2 alguns amigos, mesmo que virtuais e espero conhecer mais pessoas. 3 Um grande abraço e aí vai a minha resposta. 4 5 1 - “...o aprendizado da Física promove a articulação de toda uma visão de mundo, 6 de uma compreensão dinâmica do universo, mais ampla do que nosso entorno 7 material imediato, capaz portanto de transcender nossos limites temporais e 8 espaciais. Assim, ao lado de um caráter mais prático, a Física revela também uma 9 dimensão filosófica, com uma beleza e importância que não devem ser subestimadas 10 no processo educativo.” 11 12 Nos tempos de hoje, com toda a produção tecnológica advinda de estudos da física 13 (nosso entorno material), com todas as questões postas na relação da sociedade com 14 estes bens de consumo e as inevitáveis transformações sociais que elas geram 15 (dimensão filosófica) e, ainda, com todas as possibilidades de descobertas, dentro e 16 fora do nosso âmbito de domínio – planeta Terra - que nos trazem questões 17 milenares, como a existência de vida em outros sistemas, por exemplo, (visão de 18 mundo e compreensão do universo), é praticamente impossível pensar na sociedade 19 atual sem os conhecimentos básicos desta ciência.

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20 Teríamos, pois a incumbência de levar conhecimentos relativos a estes problemas 21 postos para toda a comunidade – alfabetização e letramento científicos – e, com a 22 ajuda dos outros segmentos das ciências traçarmos soluções para a melhoria do nível 23 da qualidade de vida de todos. 24 25 2 - “O ensino de Física tem-se realizado frequentemente mediante a apresentação 26 de conceitos, leis e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo vivido 27 pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de significado. 28 Privilegia a teoria e a abstração, desde o primeiro momento, em detrimento de um 29 desenvolvimento gradual da abstração que, pelo menos, parta da prática e de 30 exemplos concretos.” 31 32 Não é raro vermos os alunos privilegiando esta forma de ensino. Isso se dá por conta 33 de uma certa “valorização” de uma única forma (ou manifestação) da inteligência. 34 Sabe-se que para o professor é muito mais cômodo trabalhar da forma conteudista, 35 pois com ela transfere-se a responsabilidade do aprender única e exclusivamente ao 36 aluno. Daí, o aluno que se sai bem com esta abordagem torna-se “o sabichão”, “o Rei 37 da cocada preta”, “o Cara”, etc. Assim, este aluno que apresenta tais facilidades 38 propaga para os outros que a única forma de se saber é esta, e como tem o aval do 39 professor, esta ideia se propaga e os outros passam a se conformar com resultados de 40 avaliações medíocres e, sabedores que são, de que a escola dará todas as chances 41 possíveis e imagináveis para que ele progrida, mesmo sem o domínio da disciplina, 42 ele faz o famoso jogo do “Ele finge que ensina, eu finjo que aprendo e vamos nós”. 43 44 3 - “Investigar tem, contudo, um sentido mais amplo e requer ir mais longe, 45 delimitando os problemas a serem enfrentados, desenvolvendo habilidades para 46 medir e quantificar, seja com réguas, balanças, multímetros ou com instrumentos 47 próprios, aprendendo a identificar os parâmetros relevantes, reunindo e analisando 48 dados, propondo conclusões.” 49 50 Como visto no item anterior, a forma de trabalho que é cômoda não é eficaz. A 51 eficácia do ensino de física deve ser buscada através de pesquisas e trabalhos 52 voltados à realidade da vida de todos. 53 Temos tantos exemplos da física aplicada ao cotidiano e a escola simplesmente se 54 nega a perceber isto, como se fosse o avesso da escola aquilo que é da vida prática. 55 Mas, para trabalhar desta forma o professor tem de suar a camisa. Muitas vezes tem 56 de abandonar seu “recanto” para ir ao mundo mostrá-lo ao educando, mas isso requer 57 esforço. Embora seja o modo mais gratificante de se trabalhar. 58 Enquanto o professor não se aperceber de que o mundo nos dá todo o ferramental 59 para trabalhar estaremos “malhando em ferro frio”. Ou a física invade o mundo dos 60 ou eles não aceitam a física!

5.4.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor Nordeste

O autor-pessoa é um professor de 28 anos, residente na cidade de Fortaleza no

Estado do Ceará, onde leciona a disciplina de Física no nível Médio em instituições

públicas de ensino. Sua formação em Física ocorreu em 2007 em uma instituição

estadual de ensino do Ceará.

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O Estado do Ceará ocupa hoje a 10ª posição dentre os 27 Estados, com 3,6

pontos no IDEB para o ensino médio de ensino. A Região Nordeste, a qual Ceará

pertence, ocupa, com 3,3 pontos, a última posição dentre 5 regiões da federação,

juntamente com a Região Norte (Fonte: INEP 2009).

O autor-criador inicia seu enunciado afirmando que está gostando do curso e que

espera que seus colegas também estejam gostando. Considera alguns dos participantes

do curso como amigos ‘mesmo que virtuais’ (linha 2) procurando estabelecer um certo

grau de proximidade com alguns de seus destinatários supostos.

O primeiro trecho escolhido pelo professor destaca a afirmação de que o

‘aprendizado de Física’ (linha 5) – colocado no texto como sujeito da frase – por si só é

capaz de possibilitar ao aluno uma articulação de ‘toda uma visão de mundo’ (linha 6).

Atente-se para o uso do pronome ‘toda’ que passa uma ideia de que o mundo, em toda

sua dimensão, poderá ser compreendido a partir dos conhecimentos da Física,

transcendendo assim os ‘limites temporais e espaciais’ (linha 8). E mais: o aprendizado

de Física também promoveria uma ‘compreensão dinâmica do universo’ mais ampla

que o ‘entorno material imediato’ (linha 7). Neste sentido, a Física teria um ‘caráter

mais prático’ (linha 8) – ligado a um entorno imediato – e também uma ‘dimensão

filosófica’ (linha 9) – transcendendo o espaço tempo. Pode-se depreender que o

documento pretendia aludir aos conhecimentos relativos à astronomia e à cosmologia. O

documento ainda destaca que a dimensão filosófica da Física – com sua ‘beleza e

importância’ (linha 9) não ‘devem’ (linha 9) ser ‘subestimadas no processo educativo’

(linha 10). O uso de ‘devem’ indica uma intenção de obrigação de se considerar tal

dimensão, podendo-se destacar, mais uma vez, a ambiguidade que existe nesta

obrigação e o fato de o documento afirmar não ser uma receita a ser seguida.

O professor inicia sua justificativa trazendo o leitor para o tempo presente – ‘nos

tempos de hoje’ (linha 12) – fazendo-se entender que nem sempre essa foi uma

realidade. Para compor esta parte do seu enunciado o professor utiliza verbos na

primeira pessoa do plural – nós – indicando que inclui e chama para a sua ‘causa’ os

demais professores. Na perspectiva do professor, possuir ‘conhecimentos básicos’ (linha

19) de Física mostra-se de extrema necessidade diante das ‘questões postas pela

sociedade, (...) das possibilidades de descobertas (...) das questões milenares, como a

existência de vida em outros planetas’ (linhas 13 a 18) sendo, inclusive, ‘praticamente

impossível pensar na sociedade atual sem os conhecimentos desta ciência” (linhas 18 e

19). O professor, ao utilizar palavras do próprio documento entre parênteses, parece

querer explicar o significado de cada um destes termos: ‘toda a produção tecnológica

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advinda de estudos de física’ (linha 12) seria, na sua perspectiva, ‘nosso entorno

material’ (linha 13) e ‘as inevitáveis transformações sociais que elas geram’ (linha14)

seria a ‘dimensão filosófica’ (linha 15) do ensino de Física.

Tendo descrito o contexto no primeiro parágrafo, o professor chama os outros

professores à responsabilidade – utilizando o verbo na primeira pessoa do plural –

afirmando que todos os professores teriam a ‘incumbência’ (linha 20) de levar

‘conhecimentos relativos’ (linha..) a estes problemas ‘postos para toda a comunidade’

(linha..), alfabetizando e letrando cientificamente seus alunos e ‘com a ajuda de outros

segmentos das ciências’ (linha 22) o que permitiria então traçar ‘soluções para a

melhoria do nível de qualidade de vida de todos’ (linhas 22 e 23). O tempo verbal

utilizado pelo professor – ‘teríamos’ – isto é, o futuro do pretérito, passa a ideia de

hipótese, incerteza e irrealidade, pois seria algo que já deveria ter ocorrido no passado,

mas que ainda não aconteceu no presente e espera-se que se realize no futuro. O

professor, embora não enuncie explicitamente o termo ‘interdisciplinaridade’, aponta

que para se atingir o objetivo maior – ‘qualidade de vida de todos – as outras ciências

devem se aliar à Física, ou vice-versa. A apropriação que o professor faz do documento

preenche o vazio deixado pelas expressões ‘visão de mundo’ e ’mundo vivido’ de uma

forma muito mais ampla e abrangente que possivelmente os autores dos documentos

quiseram significar – embora, assim como os documentos, também as relacione como

sendo parte de um ensino contextualizado. Formulado no contexto atual, o enunciado do

professor dialoga com uma realidade ambiental muito diferente daquela existente do

final da década de 90, quando os PCNEM foram escritos. Ele vai muito além do

documento, chamando a responsabilidade dos professores em resolver problemas

sociais e conseguir melhorar a qualidade de vida das pessoas.

O segundo trecho selecionado dos PCNEM (linha 25 a 26) dirige uma crítica ao

ensino de Física, que apresenta conceitos e fórmulas desarticulados do mundo vivencial

de alunos e professores e, por este motivo, esses conceitos e fórmulas acabam por se

tornarem vazios de significados. Por analogia, embora o trecho não traga a palavra

contextualização, podemos entender que o documento sugere que este ‘vazio’ pode ser

preenchido mediante um ensino contextualizado. Em relação à composição/estrutura do

trecho, é possível perceber a ocultação do agente da passiva – quem tem realizado o

ensino de forma desarticulada? – fato também constatado no trecho destacado pelo

Professor Sul. Mais uma vez, levando em consideração que o enunciado bakhtiniano é

um cenário, temos um dos principais protagonistas – o professor – removido do

contexto. O trecho do documento continua dirigindo críticas ao ensino que ‘privilegia a

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abstração’ (linha 28) e ‘desde o primeiro momento’ (linha 28) não engloba um

desenvolvimento gradual dessas abstração que, ao menos, ‘parta da prática e de

exemplos concretos’ (linha 30). Assim, o documento não se assume enquanto contrário

à abstração no ensino de Física e sim na forma desarticulada dessa abstração com o

mundo vivencial e casos concretos.

A principal intenção do professor não parece, de antemão, criticar o ensino

descontextualizado e sim a valorização do ensino conteudista como uma ‘única forma

(ou manifestação) de inteligência’ (linha 33). Neste sentido, quando ele declara que para

os professores ‘é muito mais cômodo trabalhar da forma conteudista’ (linha 34) pelo

fato de que nesta forma de ensino ‘transfere-se a responsabilidade de aprender única e

exclusivamente ao aluno’, fica claro que seu olhar para o ensino puramente abstrato e

descontextualizado é de reprovação e que este tipo de ensino é prevalente apenas por ser

o mais cômodo para o professor. Não fica claro em seu discurso se o aluno tem ou não

uma parcela de responsabilidade no seu aprendizado ou se o professor torna-se

inteiramente responsável pelo processo: o que fica claro é que não é apenas o aluno o

culpado pelo seu não aprendizado. Sua crítica à aprendizagem excessivamente abstrata

fica clara também pelos ‘apelidos’, que expressam um tom pejorativo, dados aos alunos

que conseguem obter êxito, tais como ‘o sabichão’ (linha 36), ‘o rei da cocada preta’

(linha 37), ‘o cara’ (linha 37). O professor também afirma que esta realidade se propaga

aos outros alunos menos favorecidos por este tipo de aprendizagem que também passam

a considerá-la a ‘única forma de saber’ (linha 38) e, com o aval do professor, passam a

se conformar com ‘resultados medíocres’ (linha 40) com a certeza de que a escola ‘dará

todas as chances possíveis e imagináveis’ (linha 41) para que ‘ele progrida mesmo sem

o domínio da disciplina’ (linha 41). O professor ainda aponta que este quadro faz parte

do ‘famoso jogo’ (linha 42) ‘ele finge que ensina, eu finjo que aprendo’ (linha 42).

Analisando esse trecho do enunciado mais profundamente podemos indicar uma

ambiguidade no discurso do professor: se por um lado ele critica o ensino abstrato como

única forma de saber, por outro ele critica o fato de que a escola dê chances de o aluno

passar de ano sem ‘domínio da disciplina’, ficando implícita que este domínio da

disciplina se relaciona com o ensino abstrato.

No terceiro trecho destacado percebe-se uma sequência lógica e rígida de passos

que começa pela observação – ‘investigar’ (linha 44) e culmina com a proposição de

‘conclusões’. Assim como abordado na ‘Revisão de literatura’, essa sequência remete

ao empirismo e a um pretendo método científico, na medida em que apaga o papel da

teoria no processo de construção do conhecimento científico. Esse apagamento da

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construção do conhecimento fica ainda mais evidente quando destaca-se o

‘desenvolvimento de habilidades’ (linha 46), que como vimos, juntamente com as

competências, visam ao ‘saber fazer’.

O professor inicia sua justificativa afirmando que a ‘forma de trabalho mais

cômoda não é a mais eficaz’ (linha 50). Essa forma de trabalho refere-se à tratada no

‘item anterior’ (linha 50), ou seja, o ensino conteudista. Na perspectiva do professor ‘a

eficácia do ensino de física’ deve ser buscada ‘através de pesquisas e trabalhos voltados

à realidade da vida de todos’. Em parte, podemos interpretar esta perspectiva do autor-

criador como uma marca de seus destinatários supostos – os tutores que são também

pesquisadores - e o fato de ele buscar um curso de formação continuada numa

instituição de ensino voltada para a pesquisa e ensino. Por outro lado, ao tornar como

objeto dessa ‘pesquisa’ a realidade da vida de todos, ele chega, finalmente à

contextualização, que parecia implícita nos outros trechos, como a solução para o

problema do ensino de Física, apontado pelos PCNEM.

O professor continua seu enunciado afirmando que ‘a escola’ (linha 53) se nega

a perceber que existem ‘tantos exemplos de física aplicada ao cotidiano’ (linha 53). O

motivo dessa omissão da escola não se mostra clara no enunciado do professor e ele

coloca como hipótese a ideia de que o ‘avesso da escola’ (linha 54) seria ‘aquilo que é

da vida prática’ (linha 54). O professor também aponta as dificuldades enfrentadas pelos

próprios professores para empreenderem tal ensino, tendo que ‘suar a camisa’ (linha 55)

e ‘abandonar seu recanto para ir ao mundo mostrá-lo ao educando’ (linhas 55 e 56). O

professor conclui seu enunciado afirmando que ‘o mundo nos dá todo o ferramental’

(linha 58) para trabalhar e caso não percebamos isso estaremos ‘malhando em ferro frio’

(linha 60) e, fatalisticamente, afirma que ‘ou a física invade o mundo dos alunos ou eles

não aceitam a física’ (linha 61) indicando que só há um caminho a ser seguido para que

se logre êxito no ensino de Física junto aos alunos: o conhecimento contextualizado.

Considerando o enunciado como um todo, para o professor, o ensino de Física

que considere o mundo vivencial dos alunos seria requisito indispensável que, junto

com a interdisciplinaridade – ‘outros segmentos das ciências’ – permitiria uma melhoria

na qualidade de vida do alunos. A perspectiva do professor vai além de concordar com o

documento, atribuindo a contextualização papéis muito mais abrangentes e relevantes,

como a do letramento científico e à possiblidade de melhoria da qualidade de vida de

todos.

5.5 O enunciado do Professor Centro-Oeste

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O enunciado do Professor Centro-Oeste, tal qual ‘postado’ no fórum de

discussão, em resposta à atividade 1 do curso, é apresentado abaixo.

1 Olá a todos, os trechos escolhidos por mim são os abaixo descritos. 2 3 “Para isso, é imprescindível considerar o mundo vivencial dos alunos, sua realidade 4 próxima ou distante, os objetos e fenômenos com que efetivamente lidam, ou os 5 problemas e indagações que movem sua curiosidade” pg 3 6 7 Escolhi este trecho pois devemos levar em consideração os conhecimento que os 8 alunos tem, todos os alunos tem um certo conhecimento que trazem para a sala de 9 aula, então a partir dos conhecimentos que eles trazem, podemos elaborar uma 10 discussão e então encaminhá-los para o que se deseja, e com isso fica mais fácil 11 construir o conhecimento, pois são os alunos que dão inicio aos trabalhos, exemplo 12 real é o livro Na vida dez, na escola zero de Terezinha Carraher, e outros, onde na 13 feira o personagem fazia as contas e passava o troco e na escola não conseguia 14 efetuar tais contas. 15 16 “Forma e conteúdo são, portanto, profundamente interdependentes e condicionados 17 aos temas a serem trabalhados”pg 3 18 19 Como havia uma certa continuação nos trechos este segundo evidencia os 20 planejamentos que devemos fazer para que o mundo vivencial dos alunos sejam 21 privilegiados e incluídos, é bem possível que isso só ira se realizar com a prática, 22 pois o planejamento acontece antes do contato com os alunos, porém podemos ter 23 uma ideia das duvidas e dos conhecimentos que os alunos trazem. 24 25 “Como ponto de partida, trata-se de identificar questões e problemas a serem 26 resolvidos, estimular a observação, classificação e organização dos fatos e 27 fenômenos à nossa volta segundo os aspectos físicos e funcionais relevantes” pg 4 28 29 E, como há um encadeamento das ideias, tem que ter um desenvolvimento, este 30 trecho retrata bem como poderemos desenvolver as habilidades e incluir no nosso 31 planejamento por em pratica toda essa gama de conhecimentos, através das 32 orientações do trecho em questão. 33 34 Bons estudos a todos. Professor H

5.5.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Centro-Oeste

O autor-pessoa é um professor de 40 anos, residente na cidade Valparaizo no

Estado de Goiás, onde leciona a disciplina de Física no nível médio de ensino em uma

instituição pública estadual de ensino. Sua formação em Licenciatura Plena em Física

ocorreu em 2009 em uma instituição particular no Distrito Federal.

O Estado e Goiás ocupa hoje no IDEB para o ensino médio de ensino a 12ª

posição dentre os 27 Estados, com 3,4 pontos. A Região Centro-Oestes, a qual Goiás

pertence, ocupa, com 3,5 pontos, a terceira posição dentre as 5 regiões da federação

(Fonte: INEP 2009).

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O primeiro trecho destacado pelo autor-criador dos PCNEM (linhas 3 a 5)

refere-se à necessidade de se considerar o mundo vivencial dos alunos e da importância

da compreensão dos dispositivos com que estes lidam cotidianamente. A conjunção

“ou” (l.17), apesar de alternativa por excelência, tem aqui um caráter aditivo, e inclui,

nos conteúdos de Física a serem considerados, problemas e indagações que, ainda que

não façam parte do dia-a-dia dos alunos, instigam sua curiosidade. A palavra

“imprescindível” (linha 3) é responsável pelo tom altamente prescritivo empregado pelo

documento.

O autor-criador se apropria do trecho dos PCNEM para corroborar a sua

concepção de ensino que leva em consideração ‘os conhecimentos que os alunos tem’

(linha 8). Podemos supor que esta consideração aproxima-se de uma noção cognitivista

de ensino academicamente consideradas ‘concepções construtivistas sobre a

aprendizagem’ - mais especificamente ‘concepções prévias’36 . Para ele, é de suma

importância ‘elaborar discussão’ (linha 10) que se encaminhe para o que os alunos

desejam, ficando assim, os alunos encarregados de dar ‘início aos trabalhos’ (linha 11).

Assim, o professor aproxima o sentido do mundo vivencial, dos objetos e fenômenos do

cotidiano ou dos problemas que movem a curiosidade do aluno, presentes no

documento, de seus conhecimentos sobre pré-concepções dos alunos , trazendo

inclusive a expressão ‘construir conhecimento’ - em detrimento de ‘adquirir’ cuja ideia

perpassa a de o aluno apenas como um depósito de conhecimento - e a citação do livro

“Na vida dez, na escola zero” (linha 12) no qual o aluno que trabalha numa feira ‘fazia

contas e passava troco’ (linha 13) e na escola, onde este mundo vivencial do aluno não

era considerado, esse aluno não conseguia realizar tais contas. Na composição do

enunciado, o professor emprega a todo tempo sua própria voz utilizando-se para isso

verbos na primeira pessoa do singular e também traz ao enunciado seus colegas quando

emprega verbos na primeira pessoa do plural.

O segundo trecho dos PCNEM destacado pelo professor trata da relação forma e

conteúdo: afirma serem profundamente interdependentes e condicionados aos temas

trabalhados.

36

Nesta concepção considera-se que alunos trazem para a sala de aula teorias e explicações sobre o seu o seu cotidiano oriundas de várias fontes, tais como conversas com amigos, familiares, mídia, contextos social e cultural, entre outras. Estas apresentam um caráter espontâneo, antes de intervenções na escola e referenciam explicações do mundo embasadas basicamente na experiência e nas percepções sensoriais. Portanto, são de nível conceitual menos complexo e estão relacionadas com o que se convencionou chamar de conhecimento cotidiano, um conhecimento experiencial e muito contextualizado (GARCIA, 1998, 199 apud KRUGER e GIL, 2005)

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O professor inicia sua justificativa afirmando que esta ideia é uma continuidade

do trecho que ele destacou acima. Para ele este segundo trecho evidencia como devem

ser realizados os planejamentos para se alcançar o mundo vivencial do aluno no ensino

de Física, isto é, que este mundo vivencial seja ‘privilegiado e incluído’ (linha 21) em

todos os planejamentos realizados. O professor afirma que apenas com ‘a prática’ (linha

21) é que ‘isso irá se realizar’ (linha 21) pois apenas após o ‘contato com os alunos’

(linha 22) é que se pode ter conhecimento das ‘dúvidas’ (linha 23) e dos

‘conhecimentos’ (linha 23) que estes alunos trazem. Mais uma vez parece clara que essa

perspectiva do professor se alinha com a teoria sobre concepções prévias dos alunos.

Podemos perceber que a relação estabelecida pelo professor com os PCNEM,

especificamente, é de que ele não é um discurso completo, pois apenas a partir da

própria prática é que o professor conseguirá atender melhor às necessidades dos seus

alunos. A composição do texto ainda se dá na primeira e terceira pessoa do singular, já

deixando bem delimitado que seu discurso pretende-se persuasivo: sua intenção é

chamar os outros professores participantes do curso para corroborar suas perspectivas.

O terceiro trecho destacado podemos considerar que as palavras usadas remetem

ao pretenso método científico. Embora use ‘ponto de partida’ no singular, estes são

vários: ‘identificar questões e problemas a serem resolvidos, estimular a observação,

classificação e organização dos fatos e fenômenos à nossa volta segundo os aspectos

físicos e funcionais relevantes’ (linhas 25 a 27). O documento não faz referência ao

professor enquanto sujeito das ações de ‘identificar’, ‘estimular’, etc. Mais uma vez,

assim como abordado nas análises anteriores, há o apagamento do professor enquanto

personagem do cenário trazido pelos PCNEM de Física.

Iniciando mais uma vez pela afirmação de que o trecho destacado faz parte de

um encadeamento de ideias, o professor afirma que o mesmo ‘retrata bem’ (linha 30)

como se pode ‘desenvolver as habilidades’ e, assim, incluir no ‘nosso planejamento’

(linha 31) – dele e de todos os professores – essa ‘gama de conhecimentos’ (linha 31)

trazidas pelo documento. É interessante notar que o professor não dialoga com os

termos trazidos pelo PCNEM, que remetem ao pretenso método científico e se apropria

deste trecho incluindo o desenvolvimento de habilidades. Cabe destacar que em nenhum

dos trechos houve o uso de tal termo. Embora não tenha explicitado, parece que ele está

se referindo ao desenvolvimento das habilidades dos alunos, mas por outro lado, assume

que os PCNEM também se voltam para orientar os professores, em como por em prática

os conhecimentos trazidos pelo documento. Aqui, a perspectiva do professor é a de

assumir o documento enquanto conhecimento e enquanto orientador de sua prática.

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De uma maneira geral, o professor tem por objetivo principal valorizar o ensino

que se inicie a partir do conhecimento do aluno, que aproximou do mundo vivencial e

do ensino contextualizado, enfatizado no documento. Seu público alvo são seus colegas

professores a quem ele coloca a todo tempo no cenário do enunciado com o uso do

verbo na primeira pessoa do plural.

Percebe-se que ao se apropriar de ‘desenvolvimento de habilidades’, que

complementa o ensino por competências, o professor parece priorizar o ‘aprender a

fazer’ - já discutido na Revisão de Literatura do presente estudo.

O professor assume explicitamente, no terceiro trecho, uma posição de aceitação

das orientações dos PCNEM e desconsiderando as relações de poder que podem estar

implicadas no currículo ao dar ao documento o status de ser uma ‘gama de

conhecimento’ (linha 31) e toma o currículo como prescrição na medida em valorizar e

aceita acriticamente suas orientações.

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6. SÍNTESE DA ANÁLISE, DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do presente estudo consistiu em identificar, a partir do conceito

bakhtiniano de apropriação, perspectivas de professores de Física acerca dos PCNEM

em enunciados redigidos por eles em resposta a uma atividade proposta no âmbito de

um curso de extensão a distância. A partir da síntese das perspectivas de cada professor

apresentadas na primeira seção deste capítulo e entendendo a perspectiva como a voz, o

posicionamento do professor, retomo as questões da pesquisa, que irão balizar a

discussão e as considerações finais, na seção seguinte: Como os professores, em seus

enunciados, se posicionam diante das políticas curriculares, em especial, diante dos

PCNEM de Física? Qual concepção de currículo e o posicionamento diante da

implementação de um currículo nacional estão implícitos na perspectiva do professor?

Quais as aproximações e afastamentos encontrados entre as perspectivas dos professores

investigados?

6.1 Síntese da análise

Os cinco enunciados analisados respondiam a uma atividade que solicitava que

os professores escolhessem três trechos dos PCNEM de Física e justificassem suas

escolhas. Sendo os PCNEM, o herói – aquilo sobre o que se fala – no cenário desenhado

pelos enunciados, é importante observar que a escolha dos trechos do documento

(Quadro 3) já é parte da apropriação que cada professor faz do documento.

Quadro 3: Trechos do PCNEM escolhidos pelos professores

Professor Trechos dos PCNEM

Nordeste “O aprendizado da Física promove a articulação de toda uma visão de mundo, de uma compreensão dinâmica do universo, mais ampla do que nosso entorno material imediato, capaz portanto de transcender nossos limites temporais e espaciais. Assim, ao lado de um caráter mais prático, a Física revela também uma dimensão filosófica, com uma beleza e importância que não devem ser subestimadas no processo educativo” “O ensino de Física tem-se realizado frequentemente mediante a apresentação de conceitos, leis e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo vivido pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de significado. Privilegia a teoria e a abstração, desde o primeiro momento, em detrimento de um desenvolvimento gradual da abstração que, pelo menos, parta da prática e de exemplos concretos” “Investigar tem, contudo, um sentido mais amplo e requer ir mais longe, delimitando os problemas a serem enfrentados, desenvolvendo habilidades para medir e quantificar, seja com réguas, balanças, multímetros ou com instrumentos próprios, aprendendo a identificar os parâmetros relevantes, reunindo e analisando dados, propondo conclusões.”

Sudeste “É necessário também que essa cultura em Física inclua a compreensão do conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano doméstico, social e profissional.”

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“Enfatiza a utilização de fórmulas, em situações artificiais, desvinculando a linguagem matemática que essas fórmulas representam de seu significado físico efetivo. Insiste na solução de exercícios repetitivos, pretendendo que o aprendizado ocorra pela automatização ou memorização e não pela construção do conhecimento através das competências adquiridas.” “Esse quadro não decorre unicamente do despreparo dos professores, nem de limitações impostas pelas condições escolares deficientes. Expressa, ao contrário uma deformação estrutural, que veio sendo gradualmente introjetada pelos participantes do sistema escolar e que passou a ser tomada como coisa natural.”

Sul “Insiste na solução de exercícios repetitivos, pretendendo que o aprendizado ocorra pela automatização ou memorização e não pela construção do conhecimento através das competências adquiridas” “O ensino de física tem-se realizado frequentemente mediante a apresentação de conceitos e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo vivido pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de significados.” “É preciso rediscutir qual física ensinar para possibilitar uma melhor compreensão do mundo e uma formação para a cidadania mais adequada. Sabemos todos que, para tanto, não existem soluções simples ou únicas, nem receitas prontas que garantam o sucesso.”

Centro-Oeste “Para isso, é imprescindível considerar o mundo vivencial dos alunos, sua realidade próxima ou distante, os objetos e fenômenos com que efetivamente lidam, ou os problemas e indagações que movem sua curiosidade” “Forma e conteúdo são, portanto, profundamente interdependentes e condicionados aos temas a serem trabalhados” “Como ponto de partida, trata-se de identificar questões e problemas a serem resolvidos, estimular a observação, classificação e organização dos fatos e fenômenos à nossa volta segundo os aspectos físicos e funcionais relevantes”

Norte “É essencial que o conhecimento físico seja explicitado como um processo histórico, objeto de contínua transformação e associado às outras formas de expressão e produção humana. É necessário também que essa cultura em Física inclua a compreensão do conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano doméstico, social e profissional. “É imprescindível considerar o mundo vivencial dos alunos, sua realidade próxima ou distante, os objetos e fenômenos com que efetivamente lidam, ou os problemas e indagações que movem sua curiosidade” “Lidar com o arsenal de informação atualmente disponível depende de habilidades para obter, sistematizar, produzir e mesmo difundir informações, aprendendo a acompanhar o ritmo de transformação do mundo em que vivemos. Isso inclui ser um leitor crítico e atento das notícias científicas divulgadas de diferentes formas: vídeos, programas de televisão, sites da internet ou notícias de jornais.”

Os trechos selecionados pelos cinco professores têm como tema o ensino

contextualizado, sendo que três destacam ainda, trechos que criticam o ensino

propedêutico baseado na memorização ou no uso de fórmulas sem significado para o

aluno e distantes do seu mundo vivencial. Cumpre-se destacar que diante de um

documento com nove páginas, alguns professores selecionaram o mesmo trecho,

conforme destacado na tabela em cores iguais.

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O Quadro 3 permitiu-nos observar uma uniformidade entre os trechos

selecionados pelos professores de Física investigados, apesar de atuarem nas diferentes

regiões do país. Todos elegeram a crítica ao ensino tradicional (ainda que dois

professores, apenas implicitamente) e a defesa do ensino contextualizado para

dissertarem em suas justificativas.

A partir do Quadro 3, não seria difícil prever que as perspectivas enunciadas

estariam relacionadas ao ensino contextualizado. Além de se apropriarem de temas

semelhantes, essas perspectivas silenciam-se em relação a outros aspectos mencionados

nos trechos destacados, como por exemplo, cidadania, leitura crítica da mídia e a todos

os outros aspectos que estão no restante do documento, não selecionados pelos

professores, como por exemplo, a menção feita ao final do documento, à abordagem

CTS.

Porém, é na justificativa de determinada escolha, que se materializa a

apropriação em si na medida em que o autor preenche de significado termos, conceitos e

ideias não detalhados pelo documento, empregando assim à palavra do outro – o

documento - seu próprio tom valorativo, sua própria intenção, seu próprio acento. Sua

apropriação é feita por meio do diálogo com uma cadeia particular de enunciados, com

o contexto extraverbal e com o seu contexto individual.

Na medida em que o dispositivo utilizado permitiu descrever detalhadamente

vários aspectos da apropriação dos PCNEM (Quadro 4) que estavam imbricados na

construção de cada perspectiva, pudemos ver semelhanças e diferenças entre elas, no

que diz respeito a vários aspectos que estão ligados às questões de pesquisa.

Quadro 4: Síntese dos principais aspectos da apropriação dos PCNEM pelos professores

Principais aspectos da apropriação

Prof Sudeste Prof Sul Prof Nordeste Prof Centro-Oeste

Prof Norte

Posicionamento em relação ao documento

Aceitação Aceitação Aceitação Aceitação Aceitação

Intenções Criticar as propostas dos PCNEM na

medida de suas impossibilidades

de implementação,

especialmente do ensino

contextualizado – que é aceito e desejado pelo

professor

Criticar o ensino preparatório

exclusivo para o vestibular e

distanciado do mundo vivencial

do aluno e a formação inicial deficiente, que

treina os professores a fazer contas

Chamar os professores à

responsabilidade de formação em ensino de Física que considere o mundo vivencial de seus alunos e

que esse aprendizado em Física seja capaz de traçar soluções para melhoria da

Valorizar o ensino que propicie a construção

de conhecimen

to, que se inicia a

partir dos conhecimentos prévios dos alunos,

que aproximou

Apontar o ensino

contextualizado como

imprescindível ao

ensino de Física

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qualidade de vida desses alunos.

do mundo vivencial

Concepção de currículo

Prescritiva Prescritiva Prescritiva Prescritiva Prescritiva

Posicionamento em relação ao currículo

nacional

Não há Não há Não há Não há Não há

A partir das análises realizadas, é inegável que os enunciados dos professores

investigados apresentam uma perspectiva favorável em relação aos PCNEM de Física.

Todos os professores se manifestaram favoráveis aos PCNEM, se apropriando da crítica

que o documento faz ao ensino propedêutico, como se estivessem ‘vestindo a carapuça’.

Além de concordarem com a crítica, concordam com o principal caminho apontado pela

legislação: o ensino contextualizado.

Embora nem sempre explicitem a palavra contextualização, todos os professores

aproximam a expressão mundo vivencial do ensino contextualizado, operando

praticamente uma relação de identidade entre ambos, sentido aparentemente desejável

do ponto de vista do documento. Ainda em consonância com este sentido, o Professor

Centro-Oeste o esclarece aproximando-o dos conhecimentos prévios trazidos pelos

alunos, etapa considerada por ele, imprescindível para a construção do conhecimento.

Entretanto, o Professor Nordeste vai bem além dessa aproximação, entendendo a

consideração do mundo vivencial como alternativa para auxiliar no desenvolvimento de

soluções para a melhoria da qualidade de vida das pessoas.

Ao demonstrarem uma posição de aceitação das orientações dos PCNEM, os

professores investigados desconsideraram em seu discurso as perspectivas trazidas na

Problemática e Revisão da Literatura do presente estudo, tais como as relações de poder

implicadas no currículo; a relação entre o currículo e a submissão ao mundo produtivo;

a contextualização enquanto ferramenta para se atingir ao eficientismo social, o

questionamento sobre a seleção de conhecimentos que compõem um currículo nacional,

as implicações da implementação de um currículo nacional, etc. As críticas levantadas

pelos professores são de outra natureza, se relacionando principalmente às dificuldades

de implementação das propostas oficiais pelos professores e não diretamente ao teor do

documento.

Na medida em que desconsideram as perspectivas críticas, o discurso desses

professores acaba por legitimar o conteúdo dos PCNEM; a concepção do currículo

como prescrição; o conteúdo mínimo nacional; e as relações de poder existentes no

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currículo, o que não os deixou que se assumissem enquanto intelectuais

transformadores.

Em relação à composição e ao estilo dos enunciados, observamos que, ao

optarem pelo emprego dos pronomes pessoais da primeira pessoal do singular – eu – e

da primeira pessoa do plural – nós –, mesmo considerando que os mesmos não

coincidem com o autor-pessoa, estes professores não se omitiram ao expressar suas

perspectivas sobre os PCNEM.

As principais divergências encontradas dizem respeito às intenções de cada

professor ao utilizar, principalmente, os conceitos de contextualização e mundo

vivencial. O potencial do referencial discursivo bakhtiniano permitiu um escrutínio

detalhado da perspectiva de cada professor e revelou deslocamentos importantes na

apropriação do conceito de contextualização, da mesma forma em que outros

referenciais discursivos utilizados recentemente por autores da área de currículo (como

por exemplo, Basil Bernstein, Stephan Ball e Ernesto Laclau) têm possibilitado.

O Professor Nordeste tem como principal intenção chamar os professores à

responsabilidade de formação em ensino de Física que considere o mundo vivencial de

seus alunos e que - conjuntamente com outras áreas das Ciências – esse aprendizado

em Física seja capaz de melhorar a qualidade de vida desses alunos. Assim, o professor

se apropria e preenche de forma muito mais ampla e abrangente o conceito de mundo

vivencial que possivelmente os autores do documento quiseram significar: ele vai além

do documento, chamando justamente a responsabilidade dos professores em resolver

problemas sociais desse mundo vivencial e conseguir melhorar a qualidade de vida das

pessoas. A perspectiva do professor vai além de apenas concordar com o documento – o

que é feito em todo o enunciado - atribuindo a contextualização papéis muito mais

abrangentes e relevantes, como a do letramento e alfabetização científica e a

possibilidade de melhoria da qualidade de vida de todos.

O Professor Centro-Oeste, de uma maneira geral, tem por objetivo principal

valorizar o ensino que se inicie a partir do conhecimento do aluno, que aproximou do

mundo vivencial, enfatizado no documento. Cabe destacar que a partir do seu

enunciado, podemos supor que o professor preenche o sentido de mundo vivencial –

contextualizado – a partir de uma consideração dos conhecimentos prévios trazidos

pelos alunos: aproxima o mundo vivencial de uma noção cognitivista de ensino. O

professor também mostra uma apropriação do termo desenvolvimento de habilidades

embora em nenhum dos trechos selecionados houvesse menção a tal termo.

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O Professor Sul tem por intenção principal dirigir críticas ao ensino de Física

excessivamente matemático e descontextualizado. Na perspectiva do professor não há

outra saída para o ensino de Física a não ser a de abranger o cotidiano. O professor faz

referência explícita ao termo contextualizar e o integra ao termo interdisciplinaridade –

que não é citado em todo o documento – para possibilitar a construção do

conhecimento. Embora utilize os trechos dos PCNEM para apoiar sua concepção de

ensino contextualizado com o qual concorda, o professor não entende o documento

como doador de respostas aos seus questionamentos sobre como empreender tal ensino.

Esta perspectiva parece se alinhar com a crítica apontada na Revisão da Literatura do

presente estudo em que, muito embora o documento tente se afastar do ensino

propedêutico e apontar o mundo vivencial do aluno como alternativa, ainda há fortes

traços deste ensino propedêutico no texto do documento, não oferecendo subsídios aos

professores sobre como tornar o ensino, de fato, significativo e próximo da realidade do

aluno.

O Professor Sudeste concorda com as orientações do documento, porém a elas

dirige crítica quanto às possibilidades de implementá-las – especialmente a

implementação de um ensino de fato contextualizado que é aceito e desejado pelo

professor. Assim, seu enunciado é marcado por afirmações que se alinham a uma

perspectiva de que as propostas dos PCNEM são muito ambiciosas para a realidade na

maioria das escolas. Também parece claro em seu enunciado que o professor não

assume o texto do PCNEM como um discurso de autoridade, mas aponta que a própria

maneira em que as orientações são colocadas no documento lhe confere um caráter de

obrigatoriedade. O professor considera o documento como de qualidade elevada e,

sendo assim, sua perspectiva não é de posicionar contra o conteúdo dos PCNEM, mas

de apontar as dificuldades de implementá-lo, em consonância com a tendência das

pesquisas na área de ensino de Ciências. Embora utilize trechos que fazem referência à

construção do conhecimento e competências adquiridas, o professor não faz menção a

elas em suas justificativas, corroborando ainda mais sua principal perspectiva

construída, essencialmente, a partir das dicotomias entre que é proposto versus o que é

possível. Assim, de uma maneira geral, permanece sua perspectiva de que documento

por si só – embora eleito como um parâmetro de qualidade – não basta para que o

ensino de Física sofra melhorias significativas.

A perspectiva do professor Sudeste também opera um deslocamento de sentido

em relação a uma expressão usada no documento. Na medida em que os PCNEM não

explicitam o que vem a ser a deformação estrutural do ensino de Física, o professor

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preenche seu sentido como sendo relacionada à sua origem e à forma como o ensino de

física foi concebido.

O Professor Norte apropria-se dos PCNEM para dirigir suas críticas ao ensino

que visa exclusivamente ao vestibular, que coloca em plano secundário a formação de

jovens capazes de relacionar criticamente o ensino de Física ao seu mundo vivencial e a

formação inicial deficiente, que treina os professores a fazer contas. Para o professor, o

planejamento de ensino em consonância com a característica que destaca dos PCNEM -

a inclusão da contextualização, que embora o autor-criador não tenha citado diretamente

se alinhe com os temas destacados - seria desejável e capaz de formar cidadãos críticos.

Nessa perspectiva, o ensino de acordo com os PCNEM teria qualidade superior ao

ensino que visa a preparar exclusivamente para ao vestibular. O professor também

atribui fundamental importância à formação continuada, formal ou informal - através de

livros e artigos publicados - onde se obtém subsídios de implementar estas políticas e,

assim, suprir a deficiência da formação inicial. Neste sentido, seu enunciado se alinha

com propostas direcionadas à formação do professor de Física comumente encontradas

na produção da área de ensino de Ciências, levantadas na revisão da literatura.

6.2 Discussão e considerações finais

Os professores autores-criadores dos enunciados analisados têm em comum o

fato de terem participado de um mesmo curso a distância sobre os PCNEM de Física,

considerado como contexto extraverbal. Por outro lado, se consideramos os contextos

individuais, observamos que os professores têm idade, formação e tempo de magistério

diferentes, além de atuarem em escolas públicas que pertencem a diferentes regiões da

federação. Ainda que não haja uma relação de identidade entre os autores-criadores e

autores-pessoa, não se pode negar a influência do autor-pessoa no ato da criação do

enunciado, como já foi abordado no Quadro Teórico Metodológico.

A partir da análise realizada, não foi possível identificar marcas explícitas dos

contextos individuais dos professores – região do país e Estado a que pertencem, tempo

de formação, tempo de magistério, idade, etc. – em seus enunciados, que pudessem nos

remeter a alguma relação entre este contexto e a perspectiva do professor autor-criador.

Assim, apesar das diferenças regionais – os IDEB das regiões do Brasil variam de 4,1 a

3,3 e os dos Estados variam entre de 3,9 a 3,4 – não foi possível identificar, por

exemplo, o quanto estas diferenças impactaram as diferentes significações de termos

presentes nos PCNEM assumidas por alguns professores autores-criadores, embora

também não seja possível afirmar que esses diferentes contextos estão completamente

apartados do enunciado.

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Também apesar das diferenças individuais entre os professores, foi observada a

aceitação acrítica do documento em todas as perspectivas. Uma hipótese para explicar

tal convergência poderia estar na forma como eles construíram a imagem do seu

destinatário suposto: no momento em que os tutores pertencem a uma instituição federal

pode parecer ao professor que o discurso oficial – os PCNEM – é considerado pelos

tutores com válido e desejável. Levando-se também em consideração que esta foi, de

fato, a primeira atividade formal do curso, é coerente pensar que os professores

pudessem não sentir totalmente à vontade para dirigir críticas ao documento. Porém,

esta é apenas uma suposição, pois outras imagens podem ter sido construídas por eles,

como por exemplo, a de que um curso de extensão mediado por pesquisadores em

educação em ciências poderia configurar um contexto favorável à discussão e à crítica.

Mesmo lembrando que o destinatário suposto é considerado como co-autor do

enunciado, é a imagem do destinatário real que está em jogo.

A apropriação acrítica do ensino contextualizado também aponta para uma

sintonia com as pesquisas realizadas no ensino de Ciências, já que muitos dos trabalhos

fazem menção e enaltecem o ensino contextualizado e, assim, os aspectos

metodológicos do ensino de Física como sinalizado em mapeamento recentemente

realizado por Rezende et al, (2009).

Não se trata de rejeitar por completo o ensino contextualizado, mas entender que

este não deveria ser o único aspecto a ser valorizado e considerado redentor de todos os

males do ensino de Física, como já salientado por Ferraz et al., (2010a). O silêncio em

relação à formação do cidadão e sua inserção na sociedade, os objetivos do atual

currículo e sua relação com o mercado de trabalho, a quem se pretende formar, ao papel

do professor enquanto intelectual transformador e não apenas enquanto técnico que

implanta propostas curriculares são apenas alguns exemplos que poderiam trazer a

perspectiva do professor para um viés mais crítico, problematizando-as e relativizando-

as a partir de outros fatores que não a mera consideração do mundo vivencial do aluno

na sua prática pedagógica.

Este silêncio molda igualmente a perspectiva dos professores autores-criadores e

acentua a preocupação metodológica excessiva que visa meramente à transposição

didática dos conteúdos exigidos pelo currículo, deixando de fora o questionamento

sobre por que se tem este currículo e não outro.

Buscando investigar as relações entre os contextos regionais e as perspectivas

expressas pelos professores investigados, encontramos no trabalho de Carvalho, R.

(2011), uma possibilidade de compreensão. A autora analisou a recontextualização dos

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PCNEM por professores das ciências naturais de duas escolas públicas, sendo uma com

índice do ENEM alto e outra de índice de ENEM baixo e descobriu que na voz dos

professores, a contextualização do conhecimento científico assume diferentes

significados, condicionados pela realidade socioeconômica e educacional que

enfrentam: os professores da escola de alto ENEM usavam a contextualização como

um método de ensino, visando à preparação para os exames oficiais, enquanto os

professores da escola de baixo ENEM usavam a contextualização para ensinar algo mais

significativo para a vida do aluno, como uma espécie de prêmio de consolação.

Assumindo que quatro dos professores investigados no presente estudo atribuíram ao

conceito de contextualização o sentido de método de ensino, visando melhorar a

aprendizagem de Física, seria possível afirmar que eles compartilham a perspectiva dos

professores da escola de alto ENEM estudados por Carvalho (2011) e que apenas um

professor, que assume um sentido mais amplo para o conceito de contextualização,

relacionando a este conceito o caminho para a melhoria da qualidade de vida da

população, assume perspectiva semelhante aos professores das escolas que enfrentam

realidades educacionais adversas. Caberia aqui um futuro estudo, incluindo novos dados

relevantes partindo desta hipótese.

Estas e outras questões poderão ser investigadas dando-se continuidade à

análise, ampliando o corpus com os enunciados dos demais professores que

participaram do curso, e assim, aumentando a diversidade de contextos regionais e

individuais. Juntando as perspectivas desses professores a respeito dos PCNEM de

Física às já identificadas, teremos mais elementos para aprofundar a compreensão da

homogeneidade aparente encontrada no presente estudo e dialeticamente virmos a

compreender a possível heterogeneidade entre perspectivas docentes que possivelmente

venha a caracterizar o conjunto mais amplo.

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ANEXO

ANEXO I