perrusi, artur. imagens da loucura

176
A R T U R P E R R U S I I M A G E N S DA L O U C U R A (Um estudo sobre representação social da doença mental entre psiquiatras do Recife) RECIFE, 1995.

Upload: artur-perrusi

Post on 30-Jul-2015

75 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Editora Cortez, 1995

TRANSCRIPT

Page 1: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

A R T U R P E R R U S I I M A G E N S DA L O U C U R A (Um estudo sobre representação social da doença mental

entre psiquiatras do Recife) RECIFE, 1995.

Page 2: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

S U M Á R I O RESUMO 04 PREFÁCIO APRESENTAÇÃO 05 CAPÍTULO I REPRESENTAÇÃO, FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS 07 1) Aspectos epistemológicos e filosóficos da representação 07 2) Representação e Ciências Sociais 18 CAPÍTULO II PARA UM CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL 33 1) Representação e Psicologia: o conceito de

representação social 33 2) Ideologia e representação 47 CAPÍTULO III PROBLEMATIZAÇÃO E METODOLOGIA 61 1) Trabalho de Sísifo 61 a) O "senso comum" 61 b) Representação social e cotidiano 65 c) Ciência, "senso comum" e paradigma 67 d) Saber médico e ciência 71 e) Saber médico e paradigma 75 f) Doença e paradigma 77 2) Discussão metodológica 80 a) O campo da Sociologia 80 b) O sociólogo e seu objeto I 81 c) O sociólogo e seu objeto II 86 d) Interpretação e objeto 87

Page 3: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

e) Indivíduo e discurso 90 f) Técnicas e campo de pesquisa 91 CAPÍTULO IV ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL 96 1) Introdução 96 2) Fenomenologia do pensamento representativo 101 3) O estilo do pensamento representativo 117 CAPÍTULO V CONSTRUÇÃO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL: OBJETIVAÇÃO E ANCORAGEM 132 CONSIDERAÇÕES FINAIS 154 BIBLIOGRAFIA 158

Page 4: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

RESUMO O presente estudo tem como objetivo analisar a representação

social da doença mental entre psiquiatras do Recife. O conceito nodal que alicerça este trabalho é o de representação social, que está fundamentado por outros conceitos, tais como ideologia, cotidiano, paradigma, saber profissional, etc. Tais conceitos auxiliam o entendimento da representação e sustentam a análise de um discurso específico como o saber psiquiátrico. Assim, transitando de categoria em categoria, tentamos mostrar a rede de interdependência que permeia a representação.

A representação social da doença mental entre os psiquiatras

é entendida como uma construção profissional da doença e expressa uma representação biomédica de doença mental. Tal representação sofre interferências e uma instabilidade crônica proveniente da dificuldade de enquadramento biomédico da doença mental. A especificidade epistemológica da doença mental e a clínica psiquiátrica estão sustentadas pela identificação doença/sintoma, caracterizando uma Medicina de sintomas e classificatória, isto é, uma clínica baseada na representação.

Em suma, sustenta-se, aqui, que o discurso dos psiquiatras é

um discurso ambíguo, no qual percebemos elementos lógico-formais originários de uma formação teórico-universitária e elementos análogos àqueles encontrados no chamado "pensamento natural".

O material de pesquisa foi colhido de oito (8) entrevistas

do tipo focalizada com psiquiatras recifenses e o método de análise é, basicamente, calcado na compreensão e na interpretação.

Page 5: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

APRESENTAÇÃO.

"... a representação não é simplesmente um objeto para as Ciências Humanas, ela é o campo mesmo das Ciências Humanas..." As Palavras e as Coisas (Foucault)

Nossa pesquisa tem como meta examinar a representação da doença mental no meio profissional médico, em particular no meio psiquiátrico do Recife. Faremos uma análise interpretativa de um material empírico colhido de oito (8) entrevistas com psiquiatras recifenses.

Os psiquiatras são profissionais médicos, e parece natural que as "imagens" da doença mental se formem por dentro do seu cotidiano profissional. Em conseqüência, levanta-se a necessidade de analisar a representação da doença mental, no meio médico-psiquiátrico, em sua especificidade, isto é, como uma construção profissional.

O conceito nodal que alicerça nosso trabalho é o de representação social, mas devemos assumir que ele por si só não basta. Teremos de colocá-lo numa "ciranda" conceitual em que, sem qualquer hierarquia fixa, diversos conceitos como ideologia, cotidiano, paradigma, saber profissional, etc. auxiliam o entendimento da representação. Assim, o presente trabalho, de categoria em categoria, tenta mostrar a sua rede de interdependência.

Igualmente, faremos um rastreamento teórico do conceito de representação, baseando-nos, inicialmente, em Foucault (FOUCAULT, 1967); em seguida, examinaremos o conceito de representação nas Ciências Sociais e, por último, na Psicologia Social.

Evidentemente, durante esse percurso, analisaremos as diversas categorias citadas acima, que ajudarão a precisar o conceito de representação social, bem como tornarão mais consistente o conhecimento do nosso objeto de pesquisa.

No estudo do discurso dos psiquiatras, necessitaremos de apreender as determinações do seu componente representativo,

Page 6: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

utilizando como instrumento analítico o modelo de "pensamento natural" elaborado por Moscovici (MOSCOVICI, 1978), enquanto que nossos procedimentos estarão calcados, fundamentalmente, num método "compreensivo" e interpretativo.

Usaremos o conceito de representação, alicerçado, principalmente, nos estudos de Moscovici (MOSCOVICI, 1978; 1989-A; 1991) e Jodelet (JODELET, 1986; 1989-A; 1991); para a questão do saber médico, inspirar-nos-emos nas análises de Foucault (FOUCAULT, 1967; 1972; 1984), de Canguilhem (CANGUILHEM, 1982), de Roberto Machado (MACHADO, 1982) e de Eliot Freidson (FREIDSON, 1984).

Para o conceito de paradigma, usaremos o estudo de Kuhn

(KUHN, 1975); quanto ao conceito de ideologia, inspirar-nos-emos em Gramsci (GRAMSCI, 1966), em E. Veron (VERON, s/d; 1981) e em Habermas (HABERMAS, 1987-Tomos I e II). E, por fim, em relação ao conceito de cotidiano, utilizaremos os estudos de José Paulo Netto & Maria do Carmo Falcão (NETTO & FALCÃO, 1987) e de Agnes Heller (HELLER, 1985).

Gostaria, no final desta Apresentação, de agradecer a todos

os que contribuíram para o presente trabalho, inclusive ao corpo de professores do Mestrado em Sociologia da UFPE-PIMES, e ao CNPq, que me adjudicou uma bolsa de estudos durante dois anos e meio, bem como aos médicos psiquiatras entrevistados que, amavelmente, colocaram-se à minha disposição.

A Enaide que, com amor, paciência e cuidados, mostrou-me que uma dissertação furor brevis est.

A Taciana, Sônia, Luíza e João , amigos fraternos, com quem partilhei dúvidas e dos quais recebi apoios decisivos.

A Fernando Navarro, colega e amigo desde o Colégio de Aplicação da UFPE, com quem pude discutir o encaminhamento deste trabalho e com o qual passei grandes momentos de fraterna alegria intelectual.

A Marta, amiga e revisora do texto, que me incentivou até o fim desta Dissertação.

A Maud, mãe e amiga cuidadosa, que encaminhou a presente publicação.

A Gadiel, fugitivo da mosca Tsé-Tsé, que revisou os originais do manuscrito, mesmo sem sair do seu exílio voluntário, em Candeias.

A Professora Dra. Silke Weber, do Curso de Mestrado em Sociologia da UFPE-PIMES, que me transmitiu um pouco da sua alta capacidade intelectual e que soube me conduzir pelos caminhos difíceis da pesquisa, sem fazer concessões, mas com uma dedicação que, seguramente, ultrapassou os padrões mais sérios da competência profissional.

Page 7: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Capítulo I - REPRESENTAÇÃO, FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS. 1 - ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS E FILOSÓFICOS DA REPRESENTAÇÃO. Discutir sobre representação é tão antigo quanto o ato de

filosofar. A representação, como via de acesso ao real ou ao verdadeiro, teve não somente grandes defensores, como também inimigos ferrenhos. Foi na antiga Grécia que se esboçaram os fundamentos de tal discussão, sinalizada pela referência ao papel da percepção. Protágoras, por exemplo, afirmava que " a percepção consiste num duplo movimento, das coisas até o espírito, mas também do espírito até as coisas e, por isso, os conteúdos percebidos têm sempre um ingrediente subjetivo que nos impede de alcançar qualquer certeza sobre a realidade". (ROUANET,1987:36).

Por si só, tal citação ainda não está no campo da

representação. Contudo, tal posição cética funda uma das grandes polêmicas da filosofia grega, dos pré-socráticos até Demócrito, Platão e Aristóteles. O relativismo sofístico, na verdade, levou às últimas conseqüências a desconfiança quanto à veracidade das percepções, declinando praticamente da noção de verdade e afirmando, inclusive, que duas opiniões opostas e antagônicas poderiam ser igualmente legítimas e verídicas.

Os pré-socráticos desautorizaram o acesso ao ente ou ao ser

via representação ou percepção, mas o mundo tal como é seria desvendado pela dianóia, isto é, o pensamento (ROUANET, 1987:36). Por sua vez, os clássicos admitiam a relatividade da percepção, embora não a considerassem completamente ilusória ou fugaz, pois a percepção geraria um conhecimento - válido dentro dos seus parâmetros - relacionado à doxa, isto é, à opinião.

A percepção, nesse sentido, teria como característica a

variabilidade, mas não impediria o saber. Para Aristóteles, "a variabilidade da percepção deixa de ser um argumento contra a objetividade do conhecimento: ela é função de um objeto ainda não compreendido em sua essência" (ROUANET, 1987:37). Mas tal essência pode ser descortinada via representação, uma vez que esta prolonga a percepção, de uma forma encadeada, até atingir o conceito; assim, para Aristóteles, a representação seria uma forma de conhecimento intermediária entre a percepção e o conceito (AMERIO, 1991:100).

De qualquer forma, a filosofia grega, principalmente a

clássica, foi a primeira a esboçar um caminho que, embora

Page 8: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

sinuoso, redundou na ciência moderna: um caminho que passa pela primazia do pensamento, pois, se antes respeitava-se a força da natureza, agora o incontrolável é o poder do pensamento. E se, antes, o "objeto" era o duplo do pensado, como o é na mentalidade primitiva, a partir de então o segundo passa a ser o duplo do primeiro. A filosofia grega, assim, esboça uma filosofia da consciência, ou melhor, prepara, com Platão, o convocador de cópias, uma filosofia da representação.

Todavia, para um filósofo como Heidegger, a representação

surgiu apenas no séc. XVIII, e não na Grécia, porque "l'homme grec est en tant qu'il est l'entendeur de l'étant; voilà pourquoi le monde, pour les Grecs (en dehors de Platon qui l'amorce), ne saurait devenir image conçue" (HEIDEGGER, apud OSTROWETSKY, s/d:325).

No entanto, tal afirmação pode, até certo ponto, ser válida

para o mundo grego pré-socrático, no qual Heidegger foi recuperar a discussão sobre o Ser. Mas questionamos a sua validade para o mundo grego clássico, onde, segundo o filósofo, ter-se-ia iniciado, com Sócrates e Platão, o "esquecimento do Ser".

Em outras palavras, a diluição do ser no ente (existência) ou, em nossa pesquisa, a autonomia da representação e sua viabilidade como via de acesso ao ser ou ao ente.

Na busca do "ser do Ser", Heidegger arremessa-se contra

qualquer acesso, via representação, ao "real", de tal modo que ele irá valorizar menos Platão do que Heráclito ou Parmênides, que "pertenceram a uma dimensão ou experiência de pensar primordial, por conseguinte `mais autêntica', na qual a essência do ser estava presente de modo imediato à linguagem, ao logos" (STEINER, 1990:33).

Mesmo que Heidegger tenha razão, fica-nos a sensação

estranha e pouco razoável de visualizar um mundo grego, principalmente o clássico, sem representação. Poder-se-ia inferir que, na filosofia grega, a representação teria sido apenas sinalizada, embora na vida grega antiga, provavelmente ela tenha tido algum papel. Afinal, o que foi o teatro na Grécia, tão importante para a paidéia, isto é, a formação do homem grego? O que foi Helena, a única, que "encerra em si a cópia, o simulacro"(CALASSO, 1990:33) e, portanto, a substituição?

Page 9: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Desconfiamos que uma filosofia da origem, como propõe Heidegger, desemboca sempre no mito. A Grécia sem representação, que ele procura, provavelmente é a aquela em que predominam as imagens míticas de mundo, pois o mito, no máximo, é uma má representação ou, pelo menos, não aspira a tal coisa. As imagens de mundo míticas produzem uma confusão entre a cultura e a natureza, entre coisas e pessoas, e uma diferenciação opaca entre a linguagem e o mundo, bem como impede uma distinção entre os "três mundos", isto é, o mundo objetivo de estados de coisas existentes, o mundo social normativo e o mundo subjetivo das manifestações expressivas (Cf. HABERMAS, 1987-Tomo I).

Assim, numa sociedade em que as palavras e as coisas não

precisam de mediação, não haveria a necessidade da representação, uma vez que a imagem do mundo seria o próprio mundo, ou seja, não existiria uma imagem enquanto tal, mas, sim, uma reificação dela.

Em suma, numa sociedade em que não ocorre o descentramento

da compreensão do mundo, que levaria a uma diferenciação entre sujeito e objeto, a representação aparece subsumida, visto que a sua existência está condicionada à genética da constituição da relação sujeito-objeto.

Preferimos defender, aqui, a tese de que a representação é

inseparável do problema das estruturas de consciência, como também está inscrita na problemática do acesso ao ser ou ao real, isto é, negar ou defender a representação é discutir as vicissitudes (da razão) do sujeito.

No entanto, Heidegger não é o único filósofo a afirmar que a

representação surgiu no mundo moderno. Foucault, por exemplo, escreve que a era clássica começa com o Quixote, cujas aventuras "traçam o limite onde acabam os jogos antigos da semelhança e dos signos" (FOUCAULT, 1967:70), inaugurando um mundo no qual "os signos (legíveis) já não são semelhantes aos seres (visíveis)" (FOUCAULT, 1967:71). E, realmente, é no mundo clássico que o acesso ao mundo necessitará da imagem desse mundo, isto é, da representação como intermediária entre as palavras e as coisas. A representação, então, aparece como manifestação do mundo no pensamento ou como a tão procurada articulação entre o ideal e o material, perfazendo a ligação entre o indivíduo e o mundo. "Nesse sentido, ela é dupla, mas também reduplicada, substituição (pela imagem, pela idéia) do mundo" (OSTROWETSKY, s/d:328).

Page 10: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Para Foucault, a categoria esclarecedora do saber clássico é a representação: "relação do significante com o significado é a ligação estabelecida entre a idéia de uma coisa e a idéia de uma outra" (MACHADO, 1982:143). Um saber baseado na análise dos seres vivos, das palavras e das riquezas, expressado respectivamente pela história natural, pela gramática geral e pela análise da riqueza, e alicerçado num solo epistemológico que ilumina toda possibilidade de saber, inclusive a Medicina. Em outros termos, um terreno gnoseológico que constitui "uma ciência universal da ordem, tendo como instrumento o sistema de signos e efetuando uma análise em termos de identidade e diferenças, em que o quadro dos signos é a própria imagem das coisas" (MACHADO, 1982:143).

O paradigma clássico é um sistema de signos ordenados, em

que predomina a compulsão classificatória e pululam as ordens taxonômicas. O conhecimento é, então, ordenação do visível pelo sentido dos sentidos, a visão. Não ocorre a penetração na profundidade e sim o privilégio da superfície essencial de um ser: linhas, volumes e superfícies ou, em outras palavras, o que é essencial naquele é a sua estrutura. Não é sem sentido, pois, afirmar que o conhecimento clássico não deixa de ser um proto-estruturalismo (HABERMAS, 1985:322). O discurso clássico, desse modo, aparece como uma análise espontânea da representação e, como tal, entender-se-ia por si mesmo, sobrevoando as práticas que o alicerçam.

Assim, "para Descartes, Hobbes e Leibniz, a natureza se

transforma na totalidade daquilo que pode ser `representado' em um duplo sentido, isto é, representado e também exposto, como representação, mediante signos convencionais" (HABERMAS, 1985:308). A linguagem passa a ser uma fina membrana que envolve o real e permite a representação se conectar com o representado. Ela efetua uma coordenação entre as coisas e as representações de forma transparente, formando uma rede em que estas se ordenam (HABERMAS, 1985:310).

A linguagem se torna um "tableau" em que as ordenações são

niveladas num mesmo plano, e qualquer representação pode e deve ser ordenada, não existindo hierarquia alguma de valor entre elas. O saber depende praticamente da função representativa da linguagem, demonstrando uma limitação, através da qual não seria possível apreender a anterioridade do processo de representação, ou, em última análise, problematizar o portador das representações enquanto sujeito. Na forma, portanto, de ordenar, o homem se nivela a uma planta, dela não se distinguindo enquanto ordem. Não que ele não seja percebido; afinal, "a

Page 11: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

gramática geral, a história natural, a análise das riquezas eram, em certo sentido, maneiras de reconhecer o homem" (FOUCAULT, 1967:402). O que o saber clássico não tem, na verdade, é uma "consciência epistemológica do homem como tal" (FOUCAULT, 1967:402).

A partir de uma análise, extremamente original, de um quadro

de Velasquez, As Meninas, em que a representação aparece em cada um dos seus momentos, exceto como sujeito capaz de auto-representação, Foucault conclui: "no pensamento clássico, para o qual a representação existe, e que se representa ele mesmo nela, nela se reconhecendo como imagem ou reflexo, aquele que tece todos os fios entrecruzados da `representação em quadro' - esse jamais se encontra lá presente. Antes do fim do século XVIII, o homem não existia" (FOUCAULT, 1967:402).

O sujeito portador da representação, pois, não aparece,

porque não se converte a si mesmo como objeto de representação. Mesmo com as primeiras luzes da Modernidade aparecendo no

horizonte, a representação continua, não obstante, no terreno da consciência e ainda é apropriada, fundamentalmente, por uma filosofia "idealista", ainda que esta última questione uma produção simbólica reduzida a um fato de consciência. Assim, ela não está na esfera mitigada da compreensão e nem é um acontecimento contemplativo, bem como não pode ser considerada o suporte de uma função simbólica.

A representação, entre as palavras e as coisas, torna-se uma

"realidade" que produz e é produzida por uma ação, realizada por um agente. A representação, desse modo, faz entrar na história o sujeito, que se percebe por ela e através dela. Trata-se de "um princípio ativo de produção não somente do saber sobre o social, mas do social ele mesmo" (MACHADO,1982:326). Surge, assim, a necessidade de o sujeito portador das representações se perceber como objeto de si mesmo para apreender o processo de representação.

Num tempo de crescente racionalização das imagens de mundo,

em que o mundo externo (mundo objetivo e mundo social) pode ser visto de fora do mundo interno (subjetividade e expressividade) e em que a própria subjetividade vai-se tornando autônoma, cria-se a necessidade da auto-reflexão e de problematizar o homem como objeto de conhecimento.

Paralelamente, na Modernidade, surge uma nova série de

saber, articulando-se com o antigo mas sobrepondo-o, baseado na

Page 12: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

vida, na linguagem e no trabalho (biologia, filologia e economia), que prioriza a análise do empírico, isto é, descarta a representação e releva o objeto empírico; é o nascimento, segundo Foucault, do que ele chama de "ciências empíricas", e o acesso ao real, então, não seria mais pela via da representação.

Mas, em última instância, o que é esse objeto empírico? Ora,

problematizar a vida, a linguagem e o trabalho é transformar o homem no objeto do saber. Ou seja, "estudar esses objetos é estudar o homem. Eles o requerem, na medida em que o homem é meio de produção, se situa entre os animais e possui a linguagem. Eles o determinam, na medida em que a única maneira de conhecê-lo empiricamente é através desses conteúdos do saber" (MACHADO, 1982:133), tornando-se o homem, então, no objeto central da filosofia moderna.

Esta, por sua vez, tanto como as ciências empíricas,

questiona o enclausuramento do saber no espaço da representação, embora a visão foucaultiana, de que a Filosofia de Kant tenha abadonado o espaço da representação, seja polêmica.

Assim, por exemplo, Loparic afirma que, em Kant, existe "o

reconhecimento do dualismo, por um lado, entre o pensar e o ser (entre a representação e a existência) e, por outro, entre o dever e o ser (...) a filosofia teórica kantiana é uma filosofia da representação, que consagra a diferença entre a razão e o seu objeto" (LOPARIC, 1990:89-90).

De qualquer modo, parece que a crítica filosófica moderna

tenha sido inaugurada por Kant, contra a filosofia clássica (baseada numa metafísica da representação e do ser) de Descartes aos Ideólogos. Tal crítica analisa, portanto, "a possibilidade de conhecer a priori os objetos através de uma submissão necessária do objeto ao sujeito. Kant explica a possibilidade do conhecimento a partir de uma investigação sobre as faculdades de conhecimento. Não procura mais uma correspondência, um acordo, uma harmonia entre o sujeito e o objeto, na medida em que é o próprio sujeito que legisla e que constitui o objeto" (MACHADO, 1982:137).

Kant funda, assim, uma Razão centrada no sujeito, que

transforma o seu mundo e o Outro em objetos, com o propósito de representá-los como são ou para intervir neles, buscando, dessa forma, torná-los como deveriam ser. Uma filosofia do sujeito, pois, que tem como modelo uma práxis, baseada na relação sujeito-objeto, na adequação entre o fins e os meios, e um espelho na racionalidade instrumental.

Page 13: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

O homem, desse modo, torna-se um sujeito que, agora, fala e

trabalha, e se transforma em objeto das ciências empíricas; um objeto, como todo objeto aliás, singular e circunscrito e, portanto, com limites. Assim, para a Filosofia, a reificação do homem em objeto assume uma ironia amarga, desde que se cria uma aporia em que "o sujeito cognoscitivo se levanta por cima das ruínas da metafísica para, com a consciência da finitude de suas forças, resolver uma tarefa que requereria uma força infinita" (HABERMAS,1985:312).

E, justo, no momento em que o homem, este ser

autoconsciente, concebe a tarefa divina de construir um mundo e ordenar as coisas, surge a percepção de si mesmo como ser finito e limitado!

Kant, porém, não contorna tal aporia. Simplesmente a utiliza

para fundar a sua teoria do conhecimento em que se separam o empírico e o transcendental, afirmando o sujeito como condição de possibilidade do saber empírico. A limitação cognitiva do sujeito, então, é a base transcendental de um conhecimento de progresso infinito.

Mas, se as conquistas da filosofia e das ciências empíricas

foram produtos de um abandono do espaço da representação, como as ciências humanas o recuperaram?

A resposta de Foucault é polêmica e, de um certo modo,

insuficiente para caracterizar exaustivamente o que são "ciências humanas", desde que existem muitas classificações das ciências que não estão relacionadas à representação, a exemplo do que expõe Piaget (PIAGET, 1967).

Porém, pelo menos como vem apresentada em As Palavras e as

Coisas, a classificação de Foucault é bastante original e relaciona-se com o nosso tema, desde que sua argumentação passa pela representação e nos será útil, posteriormente.

Esquematicamente, as idéias de Foucault podem ser, assim,

comentadas: 1) Para ele, o surgimento das ciências humanas não foi

produto de uma herança de problemas científicos, em que elas aparecem para preencher uma lacuna, ou mesmo de uma evolução epistemológica que redundou no seu aparecimento. Segundo ele, "... as ciências humanas não apareceram quando, sob o efeito de algum racionalismo premente, de algum problema científico não

Page 14: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

resolvido, de algum interesse prático, se decidiu fazer passar o homem (bem ou mal, e com mais ou menos êxito) para o campo dos objetos científicos (...). As ciências humanas apareceram no dia em que o homem se constituiu na cultura ocidental ao mesmo tempo como o que é necessário pensar e o que há a saber" (FOUCAULT, 1967:448). A relação genética das ciências humanas com as ciências empíricas ocorre "apenas" no sentido em que estas são o "a priori histórico" daquelas.

O surgimento das ciências humanas foi um acontecimento da

ordem do saber (FOUCAULT, 1967:448), relacionado a uma transformação geral na episteme, ou do solo epistemológico, em que o espaço da representação foi abandonado pelas ciências empíricas e, assim, ocupado pelas ciências humanas, desde que estas não estudam "o homem no que ele é por natureza, objeto das ciências empíricas, nem o homem enquanto é condição de possibilidade deste saber sobre o homem" (MACHADO, 1982:142) mas, sim, analisam as objetivações criadas por um homem que vive, trabalha e fala.

Mesmo, assim, as ciências humanas ocupam um lugar um tanto

paradoxal na episteme moderna. Enquanto, segundo Foucault, as ciências matemáticas, a Física - numa primeira dimensão -, as ciências empíricas - numa segunda - e a Filosofia - numa terceira - formam um triedro epistemológico, as ciências humanas não estão neste incluídas, porque "... não se pode encontrá-las em nenhuma das dimensões nem à superfície de nenhum dos planos assim desenhados, mas pode dizer-se igualmente que elas são incluídas por ele, pois é no exercício destes saberes, mais exatamente no volume definido pelas suas três dimensões, que elas encontram o seu lugar" (FOUCAULT, 1967:451).

Em suma, situar as ciências humanas é extremamente difícil e

vago. Elas percorrem todo o triedro, numa procura bastarda por uma identidade, tentando formalizar-se ou se matematizar, imitando modelos biológicos, econômicos ou lingüísticos, negando o seu perigoso lugar de intermediário no espaço do saber. As ciências humanas, contudo, teriam uma contradição maior do que a Filosofia, porque "não podem fomentar diretamente aquela dinâmica autodestruidora do sujeito que se põe a si mesmo, senão são inconscientemente instrumentalizadas por ela (...), porque não podem penetrar a coação que as empurra ao aporético redobramento do sujeito que se refere a si mesmo e são incapazes de reconhecer a vontade de autoconhecimento e autocoisificação, que estruturalmente geram"(HABERMAS, 1985:317).

Page 15: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Posição difícil numa sociedade em que as relações humanas são relações entre funções sociais; como apreender, pois, um sujeito sem torná-lo objeto, e como analisar um objeto que é um sujeito? É possível, num movimento interno, por si mesmo, impedir a reificação patrocinada pelas ciências humanas? (Cf. HELLER, 1991:204-216).

2) As ciências humanas começam onde terminam as ciências

empíricas, isto é, elas não estão por dentro destas e não as interiorizam. Na verdade, elas não são um prolongamento, por exemplo, do funcionamento biológico do homem e, sim, estão interessadas no momento em que cessa esse funcionamento, "lá onde se libertam representações verdadeiras ou falsas, claras ou obscuras, perfeitamente conscientes ou embrenhadas (...) oferecidas no que o homem enuncia, ou localizáveis apenas do exterior" (FOUCAULT, 1967:457).

Assim, em relação à Economia, somente existirá ciência do

homem quando "nos dirigirmos à maneira como os indivíduos ou os grupos se vêem uns aos outros, na produção e na troca, o modo como iluminam ou ignoram ou disfarçam esse funcionamento e a posição que nele ocupam, a maneira como se representam a sociedade em que se realiza essa atividade" (FOUCAULT, 1967:458). Ou seja, apenas a partir do momento em que surgem representações das necessidades humanas e da sociedade e, assim, do próprio espaço econômico, é que, sem dúvida, podemos falar de ciência humana.

Além disso, somente podemos falar de ciência humana, quanto

à linguagem, quando analisamos "a maneira como os indivíduos ou os grupos concebem as palavras, utilizam a sua forma e o seu sentido, compõem discursos reais, neles mostram e ocultam o que pensam " (FOUCAULT, 1967:459), isto é, o objeto referido não é a linguagem, mas, sim, "esse ser que, no interior da linguagem pela qual está cercado, possui ao falar o sentido das palavras ou das proposições que enuncia e obtém finalmente a representação da própria linguagem" (FOUCAULT, 1967:459).

Enfim, as ciências humanas tratam a representação porque ela

tornou-se um fenômeno e, portanto, mantém com o sujeito uma relação de exterioridade. Para atingir, de agora em diante, as objetivações humanas, já que os objetos de troca, os seres vivos e as palavras abandonaram o espaço representativo, precisamos passar pelas representações. De certa forma, a representação não está mais, necessariamente, localizada na esfera da consciência e, por isso, ela pode ser apreendida como um produto social e como uma forma de produção social, transformando, no seu retorno

Page 16: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

à consciência, esta em um fato sociológico. E, mesmo quando ela está na consciência, ainda aparece como fenômeno, sendo estudada tanto por uma Psicologia cognitiva como pela Psicanálise.

Porém, se o objeto das ciências humanas é a representação,

como seria um estudo concreto de uma instituição, por exemplo? Ora, quando um sociólogo analisa uma instituição, mesmo que ele a defina como um fato social objetivo, ele só poderá atingi-la, como objeto de conhecimento, através das representações da instituição, isto é, das representações que fazem dela os sujeitos que a compõem. É dessas representações que ele derivará a estrutura e a organização da instituição como tal.

Mas tais representações, por outro lado, só existem quando

produzidas por interações e ações sociais dos sujeitos. E tais ações e interações, por sua vez, só podem ser apreendidas pelas suas próprias representações. Estamos, portanto, num círculo que se desdobra de forma constante. A sensação produzida é a de que, a cada aproximação do objeto, sempre existe um "em si" inabordável. A mediação entre o objeto de conhecimento e o objeto real é feita pela representação, que impossibilita realizar uma identidade entre ambos, ratificando, desse modo, uma separação intransponível.

Na medida em que toda representação é representação de

alguma coisa, guardando, então, uma intencionalidade, sublinham-se os modos através dos quais a representação se relaciona com o objeto, ou como este se dá à representação. Mas, como a representação de uma mesa não é o objeto "mesa" e, tampouco, o representado (a mesa), o objeto é transcendente à consciência. A representação seria um ato da consciência para se relacionar com o mundo, e o representado, o conjunto dos modos de ser (da mesa) dados à nossa experiência, enquanto que o objeto seria um foco para onde se dirigiriam e se reagrupariam as representações de um sujeito.

Por outro lado, pode-se colocar a representação como a parte

"ideal" do real, introduzindo-a para uma definição mais abrangente do objeto social e percebendo-a como uma forma primeira de atingi-lo. A representação faria parte simultaneamente do objeto e do seu próprio conceito, embora não constituísse a única e exclusiva via de acesso ao real.

Não concordamos, na verdade, com a idéia de que o objeto das

ciências humanas seja a representação - pelo menos, quanto à Sociologia; somente quando a Sociologia é alicerçada, implícita ou explicitamente, por uma filosofia da representação, é que

Page 17: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

poderíamos afirmar que a representação é o seu verdadeiro objeto como, por exemplo, nas sociologias de Durkheim e de Parsons.

Contudo, quando isso não acontece, a exemplo de uma

sociologia alicerçada no marxismo, o objeto não é mais a representação e, neste último caso, tal Sociologia, quando analisa as classes sociais, por exemplo, percebe-as como objetos empíricos e não como representações, procurando, então, entendê-las a partir de sua práxis objetiva; somente depois, do ponto de vista analítico, é que se apreendem as "representações" de classe.

Ora, se o marxismo é uma filosofia que tenta criticar a

representação, como via de acesso ao ser ou ao real, afirmando em troca um acesso pela práxis, uma Sociologia fundada sobre tal paradigma não ficará por menos. Assim, se a mediação entre o objeto de conhecimento e o objeto real é feito pela práxis, é possível, conseqüentemente, pensar na identidade de ambos.

Do mesmo modo, a teoria de sistemas de Luhmann prescinde da

representação ou, pelo menos, tenta fazê-lo, quando postula sobrepujar as bases de uma filosofia da consciência (HABERMAS, 1985:434). Por seu turno, a filosofia analítica da linguagem também procura escapar da representação e da filosofia da consciência ao procurar partir, nas suas análises, das expressões lingüísticas, utilizando procedimentos provenientes da Lógica e da Lingüística; a Psicologia comportamental, por sua vez, evade-se da representação ao utilizar os métodos de observação para enquadrar o comportamento num esquema, seja estreito ou mais amplo, de estímulo e resposta.

Afirmar a representação como objeto único das ciências

humanas talvez derive de uma profunda tradição francesa, alicerçada em Durkheim. A crítica de Foucault às ciências humanas não seria, sobretudo, uma crítica às ciências sociais de colorido gaulês? Ao colocar o conceito de representação social como fundante da Psicologia Social e seu objeto único, Moscovici não estaria atualizando tal tradição?

Concordamos, não obstante, com a valorização do conceito de

representação nas ciências humanas. Ele não está, porém, no topo de uma hierarquia conceitual e coexiste "democraticamente" com vários outros conceitos, bem como não é constituinte de uma epistemologia específica. É um conceito unificador, pois a sua transversalidade e, principalmente, a sua localização entre o psicológico e o social, tornam-no não só polissêmico, mas fundamentalmente multidisciplinar; e permite, assim, um diálogo

Page 18: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

aberto e fecundo, baseado nas diversas experiências disciplinares com o seu manuseio, entre a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia.

Enquanto isso, a representação continuou o seu eterno debate

na Filosofia. O divisor de águas dessa discussão, na atualidade, foi, sem dúvida, Heidegger, inimigo ferrenho, como já dissemos, do acesso ao real ou ao ser via representação. Suas postulações influenciaram nossa contemporaneidade filosófica (o debate continua sendo travado de uma maneira intensa e profunda), desde Sartre até Derrida, tanto no âmbito de uma proposta de "enterro" da representação, como quer Deleuze, como numa defesa desesperada dela, como fez H. Lefebvre, que chega a sublinhar: "Como, sem representá-la, compreender e viver uma situação? E como mudá-la? Como perceber o possível? A força de certas representações não viria do fato de elas trazerem em si uma `ficção real', anunciarem um devir, que elas parecem, ao mesmo tempo, realizar?... Se abolimos as representações, as únicas certezas que persistem são a morte e o nada" (LEFEBVRE, apud OSTROWESTSKY, s/d:340).

O inquietante em tal debate é que, comumente, as posições

(incluindo Foucault e Derrida) contra a representação se vinculam a uma crítica total da razão, distante e diferente de uma auto-crítica da razão, e também de "uma crítica da forma de racionalidade científica dominante na idade moderna - na modernidade - européia"(APEL, 1989:67).

Na verdade, criticar a representação como crítica total da

razão significa a crítica do logocentrismo, no sentido de Derrida e do pós-modernismo, e do sujeito, bem como a crítica do logos da metafísica que preconcebeu a relação sujeito-objeto da ciência moderna; isto é, "a objetificação e a disponibilidade do mundo e do ser humano para a consciência (transcendental), que passa por sua última transformação no presente - por exemplo, na microfísica `invisível' -: a passagem do `representar' dos `objetos' ao simples `cálculo' e `constituição' (Bestellen) do `fundo' (Bestände)"(APEL, 1989:72).

Nesse sentido, a razão seria, como afirmou Foucault, via

Nietzsche, uma vontade de verdade identificada a uma vontade de poder e, conseqüentemente, o argumentar não passaria de uma "prática retórica de auto-afirmação por meio do exercício da violência(...); assim como, a (...)formação de consenso através do discurso argumentativo não seria, com isso, nada mais que a sujeição da espontaneidade e autonomia individuais à exigência

Page 19: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

de poder de um sistema social e, nessa medida, algo como alienação de si" (APEL, 1989:68).

A auto-crítica da razão, por outro lado, iniciada por Kant,

pode fundar uma filosofia da consciência - afirmando a representação - ou tentar desmistificá-la, como fez Marx e Freud, mesmo que os seus trabalhos não tenham surtido grandes efeitos. De fato, "ao invés de desmistificar a filosofia da consciência, eles (Marx, Freud e Darwin) a radicalizaram ainda mais, ao inserirem as relações entre sujeito e objeto no processo de auto-conservação da espécie, o que se desdobra em dois modos básicos: o conhecer e o agir. No fundo, portanto, o que comanda o desenvolvimento do mundo e da sociedade é o conhecimento de objetos e o poder que resulta deste conhecimento" (SIEBENEICHIER, 1989:61-62).

Ou, ainda, retomar a representação por fora de uma razão

centrada no sujeito, fugindo assim da filosofia da consciência e do paradigma sujeito-objeto, e colocá-la no espaço da "intersubjetividade" e no de uma teoria da ação comunicativa.

Ou, talvez, quem sabe, o problema da filosofia seja

confundir os processos sociais com as formas do saber, não escapando do universo representativo...mesmo que ela o negue (Cf. OSTROWESKY, s/d).

2 - REPRESENTAÇÃO E CIÊNCIAS SOCIAIS. A representação, no início, fazia parte de uma reflexão

cognitiva imanente, relacionada à subjetividade interna da consciência. Aos poucos, ela vai se deslocando e deságua naquele espaço que Cassirer denominou de "a distância entre o signo e seu objeto". Depois, principalmente com Durkheim, a representação vira um "fato social", ancorada numa reflexão objetiva, que tenta encontrar a sua razão de ser na história, na vida material e na sociedade, para, finalmente, retornar à consciência, menos para centrar-se num sujeito do que para reclamar um espaço na intersubjetividade.

A noção de representação, deste modo, adquiriu, durante o

seu longo percurso histórico, uma polissemia confusa e intrincada, consumando diversas apreensões que a levaram a ser identificada com todo o processo cerebral, com o próprio pensamento, com a idéia de ideologia, com o teatro, etc. Ela invade o território intelectual, deixa a sua marca e desaparece de repente, para reaparecer em outro lugar, tornando-se

Page 20: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

importante aqui, e combatida ali. Ela vive nos interstícios das ciências humanas, desembarcando seja na Sociologia, para depois ser esquecida, seja na Psicologia, mitigada no início para depois deslanchar, e mesmo na Antropologia, com um visual mais simbolista.

Noção, sem dúvida, disputada: no início, a Filosofia tinha

primazia, depois foi reivindicada pela Sociologia e, hoje, a Psicologia Social a toma como um dos seus conceitos fundamentais.

De qualquer forma, assim que a representação tornou-se

fenômeno, ficou passível de ser transformada em objeto empírico. Abandonou a esfera do sentido, domínio filosófico, e passou, através do significante, para as ciências sociais. O real passou a ser visto como construído e a representação deixou de ser, em relação ao objeto, sua parte ideal, oposta ao seu referente material, ou, ao inverso, um elemento material (imagem ou som) do ideal.

Tornou-se, na verdade, um processo de encadeamento na

produção do sentido e, com isso, abriu-se a possibilidade de um conhecimento empírico da experiência humana, em que se investigariam as relações entre o mental e o real, o domínio da consciência, o processo de criação do conhecimento, a determinação do significado, as diferentes manifestações do social, etc.

A representação, nesse sentido, é bem mais ampla, do ponto

de vista da sua utilização, do que, por exemplo, o conceito de ideologia. Ela pode ser utilizada para particularizar uma ordem cultural; percebida como constitutiva do real e da organização social; manuseada para dar conta do comportamento político e religioso; entendida como um fator de transformação social e identificada com o signo, com o significado, com uma forma de conhecimento e de conhecer, com o conceito de mentalidade, com o de imagem de mundo e, evidentemente, com a própria ideologia.

Em suma, a noção de representação se relaciona com o estudo

das estruturas de consciência e, daí, decorre o seu uso amplo e plural por diversas disciplinas das ciências sociais.

Quando se colocou, para a ciência social, a necessidade de

se investigar a forma e em que medida articula-se o signo com o psiquismo, a representação tornou-se um conceito importante, principalmente no que se refere ao estudo antropológico das representações culturais. Tal estudo tornou a Antropologia uma

Page 21: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

espécie de Psicologia Social das sociedades arcaicas, manifestada na análise da "mentalidade primitiva", como, também, numa paráfrase, a Psicologia Social, para Moscovici, não deixaria de ser uma Antropologia da cultura moderna (Cf. MOSCOVICI, 1989-A:83).

Além disso, o conceito de "mentalidade" ou, em última

análise, o estudo de "representações culturais" não aparece apenas na Antropologia mas, também, num território conhecido como "história das mentalidades", de cunho nitidamente etnográfico. Uma História que tentaria "mostrar não apenas o que as pessoas pensavam, mas como pensavam - como interpretavam o mundo, conferiam-lhe significado e lhe infundiam emoção" (DARNTON, 1986:XII), isto é, uma espécie de história cultural, tratando "nossa própria civilização da mesma maneira como os antropólogos estudam as culturas exóticas" (DARNTON, 1986:XII).

Contudo, os estudos das representações culturais produzidos

pela "história das mentalidades" foram circunscritos a uma determinada tradição historiográfica francesa, conhecida como École des Annales, e apresentaram, apesar das repercussões importantes das suas análises, um leque limitado de desafios.

Na verdade, a prosperidade dos estudos de mentalidades teve

uma maior projeção na Antropologia, principalmente com Lévy-Bruhl, estudioso das imagens míticas de mundo nas socieddes arcaicas, e que, por isso mesmo, não deixa de ser um precursor do conceito de representação social como, igualmente, um ponto de referência importante para Moscovici.

Podemos entender, de uma maneira geral, uma mentalidade como

"uma condensação interiorizada da vida social" (CUVILLIER, 1975:82), revelando a inscrição psíquica das crenças e das idéias sociais no indivíduo. Levy-Bruhl afirma que tais crenças e idéias devem ser analisadas como um conjunto que possui uma coerência própria e que é impossível estudá-las a partir do pensamento individual, sendo, portanto, no quadro das representações coletivas, que o indivíduo expressará seus pensamentos e seus sentimentos (MOSCOVICI, 1989-A:67). E tais representações diferem entre si, dependendo do grupo ou sociedade em que estão inscritas, ou seja, "cada tipo de mentalidade é distinta e corresponde a um tipo de sociedade, às instituições e às práticas que lhe são próprias" (MOSCOVICI, 1989-A:67).

Levy-Bruhl refuta, a partir disso, que exista um tipo único

de operação mental aplicável a toda mentalidade humana. Ele não

Page 22: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

encontra, no entanto, uma pluralidade de mentalidades nas sociedades humanas, mas, sim, dois tipos principais, que são a mentalidade primitiva e a civilizada, diferentes entre si na qualidade e na sua oposição mútua. As representações coletivas modernas basear-se-iam em séculos de exercício rigoroso de pensamento lógico e de reflexão, enquanto que a mentalidade primitiva se fundaria, sobretudo, no sobrenatural e numa cognição pré-lógica.

Assim, "os primitivos não percebem nada como nós, do mesmo

modo que o meio social em que eles vivem é diferente do nosso e, precisamente porque o seu meio é diferente, o mundo exterior que percebem também difere daquele que percebemos" (LÉVY-BRUHL, apud CUVILLIER, 1975:83). Sua mentalidade é pré-lógica menos por inferioridade face ao homem civilizado ou por um pensamento evolutivamente anterior ao lógico, isto é, antilógico ou alógico, do que por um modo de pensar impermeável à contradição e a uma visão científica do mundo (CUVILLIER, 1975:83). Sua noção de causalidade, por exemplo, "ignora as cadeias de causas intermediárias e só concebe uma causalidade 'mística e imediata', que implica uma representação completamente diferente do tempo e do espaço'" (CUVILLIER, 1975:84).

O homem selvagem não obedece ao princípio da identidade,

mas, sim, ao que Levy-Bruhl chamou de "lei da participação": "Sob uma forma e em degraus diversos, tudo implica uma 'participação' entre os seres e os objetos numa representação coletiva. É por isso, na falta de um termo melhor, que chamarei de lei de participação ao princípio específico da mentalidade 'primitiva' que rege as ligações e as pré-ligações dessas representações (...). Eu diria que, nas representações coletivas da mentalidade primitiva, os objetos, os seres, os fenômenos podem ser, de uma forma incompreensível para nós, simultaneamente eles próprios e outra coisa diferente deles mesmos" (LÉVY-BRUHL, apud MOSCOVICI, 1989-A:68).

Os bororos do Brasil, desse modo, por mais estranho que

pareça à nossa lógica, consideram-se araras! Entretanto, já nos seus Carnets póstumos, Levy-Bruhl

abandonou a concepção pré-lógica da mentalidade "selvagem", subsumindo tal questão ao caráter místico ou sobrenatural do pensamento arcaico (CUVILLIER, 1975:86), ao ponto de condenar qualquer pretensão de uma teoria explicativa para a "lei de participação", reduzindo o papel da teoria a uma mera descrição. Levy-Bruhl, acertadamente, atenua um critério cognitivo-instrumental de comparação entre as representações arcaicas e

Page 23: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

modernas, mas pára no meio do caminho, quando subestima as explicações sociológicas sobre a origem social da "lei de participação".

Na verdade, não podemos postular uma etapa pré-lógica para o

pensamento selvagem, quanto ao conhecimento e à ação, pois "as diferenças entre o pensamento mítico e o pensamento moderno não radicam no plano das operações lógicas" (HABERMAS, 1987-Tomo II:72). Lévi-Strauss, por exemplo, nega uma oposição entre o pensamento arcaico e o moderno, visto não existir um antagonismo entre o primeiro e um pensamento lógico. Assim, encontramos no pensamento selvagem "uma atitude de espírito verdadeiramente científica"(...) em que "(...) a imagem, o símbolo é um ser concreto, mas assemelha-se ao conceito pelo seu poder referencial" (LÉVI STRAUSS, apud CUVILIER, 1975:94).

As imagens míticas do mundo, igualmente, podem ser

explicadas de forma sociológica, isto é, as estruturas sociais interiorizadas no psiquismo oferecem um esquema de interpretação do mundo.

Isso não quer dizer, no entanto, que o concretismo do

pensamento selvagem não possa ser comparado com etapas ontogenéticas do desenvolvimento cognitivo humano como faz, por exemplo, Moscovici, quando compara a mentalidade primitiva com a da criança e a do "senso comum", discussão que será retomada mais adiante.

As imagens míticas de mundo, com suas figuras mitológicas

vivendo, morrendo, nascendo e reproduzindo uma organização que descansa sobre relações de sangue e aliança, não podem "ter sua origem nem nos 'princípios puros' do pensamento nem tampouco em nenhum modelo existente na natureza" (GODELIER, apud HABERMAS, 1987-Tomo II:75). Sendo assim, o pensamento mítico pode utilizar, através de usos diversos, o esquema de interpretações oferecido pela sua estrutura social - relações de parentesco, sexuais, de troca de mulheres, etc.

Não podemos negar a Levy-Bruhl, contudo, não só a sua

mudança de posição nos seus últimos trabalhos, mas também, seus avanços na noção de representação coletiva. Seus estudos, sem dúvida, analisam menos a sociedade do que o tecido sócio-psíquico e as formas mentais que a cimentam. Ele, igualmente, está menos interessado em encontrar analogias do pensamento científico na mentalidade primitiva do que os sentimentos, as razões e os movimentos que fazem a consciência selvagem. Com

Page 24: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

isso, facilitou, pioneiramente, um exame original dos mecanismos psíquicos e lógicos das estruturas de consciência.

Seu conceito de representação coletiva incorpora elementos

expressivos e normativos, não sendo constituído, portanto, de elementos puramente intelectuais. As representações coletivas dos selvagens são "estados complexos em que os elementos emocionais e motores são partes integrantes das representações" (LÉVY-BRUHL, apud CUVULLIER, 1975:84). Conseqüentemente, permite uma análise imanente da mentalidade arcaica que leve em conta as derivações cognitivas e afetivas, e, ao mesmo tempo, perceba a sua dimensão social respectiva. Estamos, aqui, a um passo da conceituação de Moscovici da representação social como geradora de comportamentos e estímulos expressivos e normativos. Levy-Bruhl, por isso, "abriu um caminho com uma perspectiva nova, um caminho mais concreto e mais praticável que os sociólogos de sua época" (MOSCOVICI, 1989-A:70).

No entanto, foi Durkheim o verdadeiro "inventor" do conceito

de representação coletiva, na medida em que fixou o lugar e os objetos a serem por ele apreendidos, embora tal opinião seja secundarizada por alguns autores (Cf. AMERIO, 1991:100; ORTIZ, 1989).

Pela sua importância, vamos, embora esquematicamente e por

pontos, discutir a concepção de representação de Durkheim. a) Por detrás de todo os conceitos de Durkheim, parece

existir o desejo obsessivo de implementar a Sociologia como a ciência do social. Para isso, Durkheim, de um lado, irá implantar um método positivo de análise do social, inspirado em Comte e, de outro, via Kant, irá considerar o fenômeno social no plano da moralidade. Não é de causar espanto, pois, sua preocupação, durante a vida inteira, em elucidar "a validez normativa das instituições e dos valores" (HABERMAS, 1978-Tomo II:70), bem como em salientar, nos seus estudos das sociedades arcaicas, "as raízes sacras da autoridade moral das normas sociais"(HABERMAS, 1987-Tomo II:70).

Por outro lado, sua vinculação a Kant diz respeito ao

caráter obrigatório que possui a atividade moral: "Mostraremos que as regras morais estão investidas de uma autoridade especial, em virtude da qual são obedecidas pelo fato de mandar. Encontraremos, ainda que por meio de uma análise puramente empírica, uma noção de dever, na qual daremos uma definição que se acerca muito da de Kant. A obrigação constitui, pois, uma das

Page 25: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

primeiras características da regra moral" (DURKHEIM, apud HABERMAS, 1987-Tomo II:71).

A ênfase no caráter obrigatório e coercitivo da moral e,

conseqüentemente, das normas sociais e dos fenômenos sociais em geral, faz parte da estratégia de Durkheim em delimitar e especificar o espaço próprio da Sociologia. A coerção social é uma característica do fenômeno social e, enquanto tal, faz parte de um quadro referencial preciso, em que o cientista aproxima do seu olhar o que ele define como objeto da Sociologia e afasta os fenômenos excluídos dessa definição (DURKHEIM, 1960:33).

Somente assim poderemos neutralizar e superar o caos, gerado

pela multiplicidade de fenômenos ainda indiferenciados, no e pelo pensamento. Faz-se necessária, portanto, a delimitação dos fenômenos em um campo específico de análise, que os aglutine num mesmo conjunto e retire, através do estudo comparativo, invariantes formulados numa lei geral.

Um modo de proceder que, sem dúvida, afasta o sujeito do

objeto, permitindo ao primeiro uma distância para observar o segundo, mas que impede uma imbricação ou identidade entre ambos. O cientista separa o sujeito e o objeto em unidades autônomas, uma representando a outra, em que o sujeito é o representante que se liga ao representado, via uma reação especular.

Ora, se existe uma separação entre o sujeito e o objeto,

como ligá-los de volta? Através de representações comuns que preencham esse espaço vazio?

A resposta provável é que deveríamos atingir o real através

dos seus sinais exteriores, sendo o real encontrado na sociedade, onde existem representações, transfiguradas pela ideação coletiva, que levam ao seu substrato. A sociedade, por isso, é menos um ponto de chegada do que, propriamente, o meio para se alcançar a realidade. As representações podem ser o objeto da Sociologia, mas também são verdadeiras mediações para se atingir a realidade social. No fundo, são metamorfoses da realidade, revelando o sentido de um mundo invisível, projetado feito sombra em nossas mentes. São, igualmente, fatos sociais e, por isso, podem ser tratadas como "coisas", passíveis de observação exterior e de experimentação.

E fatos sociais, para Durkheim, não precisam de um conteúdo

material ou físico para serem considerados como coisas, pois eles "constituem coisas ao mesmo título que as coisas materiais,

Page 26: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

embora de maneira diferente" (DURKHEIM, 1960:XIX). Desse modo, "é coisa todo objeto do conhecimento que a inteligência não penetra de maneira natural, tudo aquilo de que não podemos formular uma noção adequada por simples processo de análise mental, tudo o que o espírito não pode chegar a compreender senão sob condição de sair de si mesmo, por meio da observação e da experimentação, passando progressivamente dos caracteres mais exteriores e mais imediatamente acessíveis para os menos visíveis e mais profundos" (DURKHEIM, 1960:XIX).

A proposta de Durkheim, nesse sentido, aproxima-se do método

clínico, no sentido de tornar visível o invisível e de descer da superfície para alcançar o nível mais profundo. A Sociologia não se esgota, assim, numa mera taxonomia que agrupasse os fenômenos em classes de equivalentes. O agrupamento, na verdade, é apenas um índice ou um sintoma - para continuarmos com a analogia clínica - de algo oculto e latente. Nos fenômenos, existiriam relações objetivas de semelhança indicando sintomas de uma etiologia oculta.

A definição da representação coletiva como fato social, e

deste como coisa, permite a Durkheim fazer uma separação de direito com a Psicologia. O fato social é exterior - assinalando uma incompatibilidade com uma psicologia introspectiva - e coercitivo - o que revela uma causalidade mecânica. As representações coletivas fazem parte de uma natureza sui generis, que é o social, e seus conteúdos (regras jurídicas e morais, crenças, dogmas religiosos, mito, ciência, etc.) pressionam o indivíduo como uma força física, mas de uma natureza específica e necessária. Elas devem ser explicadas por causas profundas que escapam à consciência.

As representações coletivas são objetivas e personificam

fenômenos de "uma ordem de fatos que apresenta caracteres muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem. Por conseguinte, não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, pois consistem em representações e em ações; nem com os fenômenos psíquicos, que não existem senão na consciência individual e por meio dela. Constituem, pois, uma espécie nova e é a eles que deve ser dada e reservada a qualificação de sociais" (DURKHEIM, 1960:3).

Durkheim implementa uma diferença geral em três níveis:

orgânico, psíquico e social. O individual, identificado com o psíquico, possui uma natureza diversa da do social, mas não porque este é comum a todos os indivíduos, visto a generalidade

Page 27: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

não servir para caracterizar os fenômenos sociológicos. Logo, "um pensamento encontrado em todas as consciências particulares, um movimento que todos os indivíduos repetem, não são por isso fatos sociais. (...) Crenças, tendências, práticas do grupo tomadas coletivamente é que constituem os fatos sociais" (DURKHEIM, 1960:6). É preciso ter uma forma cristalizada para ser considerado um fato social, e não apenas um alicerce numa organização definida. Em suma, "é fato social toda maneira de agir, fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então, ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter" (DURKHEIM, 1960:12).

b) Durkheim não percebeu as representações coletivas como um

absoluto, a flutuar no vácuo, e tentou definir o seu substrato. Em A divisão do trabalho social, a noção de um substrato, identificada a uma morfologia social, teve um papel importante, demonstrando que "são as variações de estrutura do meio social que explicam as variações do psiquismo humano" (CUVILLIER, 1975:30). Sendo assim, "a matéria-prima de toda consciência social está em estreita relação com o número dos elementos sociais, a maneira como estes se agrupam e se distribuem, etc; em outras palavras, com a natureza do substrato" (CUVILLIER, 1975:33).

Quando comenta, por exemplo, o livro do marxista Labriola, A

concepção Materialista da História, Durkheim chega a afirmar que o substrato da ideação coletiva são os indivíduos associados. Os estados de consciência não são produzidos isoladamente, em seres individuais, e, sim, derivam "não da natureza psicológica do homem em geral, mas da forma pela qual os homens, uma vez associados, se afetam mutuamente, conforme sejam mais ou menos numerosos e estejam mais ou menos aproximados" (DURKHEIM, apud CUVILLIER, 1975:31).

Contudo, aos poucos, Durkheim vai assumindo uma posição mais

idealista. Afirma que a consciência coletiva não é um epifenômeno em relação à sua base morfológica e que, uma vez "constituído um fundo inicial de representações, estas se tornam realidades parcialmente autônomas e dotadas de vida própria" (DURKHEIM, apud CUVILLIER, 1975:31). Mas a produção de uma nova representação está menos relacionada à estrutura social do que, propriamente, a uma outra representação, isto é, o surgimento de uma representação é inferido, praticamente, do processo interno da ideação coletiva.

Page 28: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Durkheim, em conseqüência, defenderá uma hiper-

espiritualidade e uma identificação da Sociologia com a Psicologia Social. Dirá, também, que a sociedade "não pode constituir-se sem criar ideal (...). Nós a diminuímos quando não vemos nela mais do que um corpo organizado com a mira em certas funções vitais. Nesse corpo vive uma alma, que é o conjunto dos ideais coletivos(...) Em razão disso, (...) a Sociologia se coloca de imediato no ideal (...), não chegando a este, (...) lentamente, ao termo de suas pesquisas, mas dele partindo. O ideal é o seu domínio próprio" (DURKHEIM, apud CUVILLIER, 1975:32).

Chegamos, assim, finalmente, à tese foucaultiana de que o

objeto único da Sociologia é a representação. A Sociologia analisa o social pelo social, mas, agora, as representações coletivas serão inferidas das representações coletivas; isto é, distingue-se a sociedade de outros níveis, como o psicológico e, depois, dentro do nível social, especifica-se uma dimensão própria e com leis singulares, sem uma relação determinada com a estrutura do seu nível.

Tal raciocínio somente estaria correto, entretanto, se a

posição de Durkheim não fosse mais complexa e mais sutil, restando-lhe, talvez, uma ambigüidade, pois não abandonará a noção de substrato social e tentará sempre estabelecer relações determinadas entre as representações coletivas e a estrutura social, principalmente no que se refere ao estudo das representações religiosas nas sociedades arcaicas. Nas suas análises, porém, a determinação social explica menos o conteúdo do que a forma da representação coletiva; a fixidez, a perduração, a universalidade, a impersonalidade e a estabilidade serão os aspectos formais, condicionados socialmente, das representações coletivas.

c) A representação coletiva é homogênea e partilhada por

todos os membros de um grupo, e suas manifestações singulares (mito, ciência, folclore, etc.) guardam uma articulação comum, permitindo uma análise de conjunto dos fenômenos, mas sem uma diferenciação interna específica.

Durkheim, desse modo, concebe a representação coletiva como

um tecido social vivo de onde nasce uma vasta classe de formas mentais, de opiniões e de saberes sem distinção: "elas constituem a herança secular de uma civilização, tudo que a coletividade acumulou de conhecimentos e de ciência no curso de sua existência. Através delas, os homens se unem e se formam, as

Page 29: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

inteligências se penetram umas nas outras. Da sua origem, as representações coletivas tiram uma força e uma ascendência que lhe permite se impor nos indivíduos" (LIPIANSKY, 1991:42).

Nesse sentido, as representações coletivas são distintas das

individuais, uma vez que as primeiras estão situadas numa dimensão diferente das segundas, conferindo-lhes uma natureza específica. Elas se separam das representações individuais, da mesma forma como o conceito, das sensações e das imagens. Para Durkheim, as sensações são um fenômeno de fórum íntimo e se explicam pelas cicatrizes deixadas pelos objetos quando lançados contra a mente. Normalmente, estão mergulhadas num fluxo incessante de ir e vir cérebro/ambiente, com uma sobrevida instantânea, bem como são variáveis, instáveis e incomunicáveis entre si.

Na verdade, o conceito tem como caraterística a sua

perduração; ele é universal, fora do devir e impessoal. A natureza do conceito é distinta da natureza da sensação e da imagem; sua origem explicita sua diferença, ou seja, ele só pode ser explicado do ponto de vista da totalidade social. O conceito está além da sensação, assim como a representação coletiva, da individual. Enquanto as representações individuais emergem do sistema nervoso num nível de complexidade e autonomia que o ultrapassa, as representações coletivas, "produzidas pelas ações e reações trocadas entre as consciências elementares que constituem a sociedade (...), derivam (...)destas últimas e, por conseguinte, as ultrapassam" (DURKHEIM, apud FORACCHI & MARTINS, 1977:42).

Na verdade, depois de estabelecidas as diferenças, as

representações coletivas podem ser comparadas com as individuais pelo simples fato de que elas "são, igualmente, representações" (MOSCOVICI, 1989-A:78) e, por isso, possivelmente, existam leis abstratas comuns às duas dimensões. A comparação, desse modo, basear-se-ia numa análise que focalizasse menos o conteúdo do que a forma das representações, indicando, provavelmente, a necessidade de uma Psicologia formal que estabelecesse uma teoria geral das representações.

d) O conceito é uma representação coletiva que, por sua vez,

possui sempre um fundo conceitual; em conseqüência, ela pode ser uma forma de conhecimento social. As representações coletivas religiosas são consideradas, por exemplo, como "os primeiros sistemas de representações que o homem fez do mundo, como a mãe da filosofia e das ciências e como a fonte da qual emanam as categorias do entendimento" (CUVILLIER, 1975:32). Durkheim chega

Page 30: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

a perceber as representações coletivas como "um mundo de 'noções-tipos' que assimila às idéias platônicas: o indivíduo, acrescenta ele, entrevê desde logo 'todo um reino intelectual de que participa, mas que o ultrapassa; é essa uma primeira intuição do reino da verdade" (DURKHEIM, apud CUVILLIER, 1975:34).

A verdade da representação coletiva vem da sua aceitação

social pelos indivíduos, isto é, a condição de ser coletiva passa pela condição de ser verdadeira. E se, de um lado, um conceito submete-se a critérios de veracidade, postulados por uma comunidade de cientistas, do outro, a representação coletiva é, por necessidade, submetida a um controle indefinidamente repetido: os homens que aderem a ela verificam-na por experiência própria; não seria possível, pois, que fosse completamente inadequada ao seu objeto, isto é, "as idéias, as representações, não podem tornar-se coletivas se não corresponderem a nada de real" (DURKHEIM, apud CUVILLIER, 1975:35).

Durkheim se interessa pelas representações coletivas

religiosas não só porque o fenômeno religioso revela uma "ciência incipiente", mas, sobretudo, por ele ser uma atividade moral. Assim, ele vai estudar as sociedades arcaicas e, conseqüentemente, as normas pré-estatais, visto elas gozarem de uma autoridade moral de per si.

Tais normas têm uma força obrigatória, em que se baseiam as

sanções, ou seja, elas são sociais por natureza. São regras "que apresentam esse caráter peculiar: nos incitam a não realizar os atos que nos proíbem simplesmente porque eles nos são proibidos. Eis o que se chama caráter obrigatório da regra moral" (DURKHEIM, apud HABERMAS, 1975:35).

Deste modo, as atividades sociais possuem uma coerção moral

interna às suas manifestações, não sendo a moral um produto dos indivíduos mas, sim, da sociedade. Possuindo um caráter impessoal e impositivo, e não sendo a moral a soma das condutas individuais, os indivíduos têm que, necessariamente, reportar-se a uma moralidade superior que se chama sociedade.

O sacro e o santo, aliás, também possuem esse caráter; na

verdade, a moral, na sociedade arcaica, é sempre sacrossanta. Ao mesmo tempo, o profano tem um valor inferior e uma dimensão separada da do sacro, semelhante à dualidade coletivo x individual.

Page 31: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

A moral tem a sua base no sacro e ambas as origens vêm da

sociedade, enquanto expressão de uma consciência coletiva. Ora, como tal consciência é supra individual, sendo os sujeitos individuais subsumidos por ela, "não nos resta outro objetivo possível para a atividade moral do que o sujeito sui-generis formado pela pluralidade de sujeitos individuais associados de maneira a formar um grupo; resta apenas o sujeito coletivo" (DURKHEIM, apud FORACCHI & MARTINS, 1977:49).

As representações coletivas, assim, "correspondem à maneira

na qual esse ser especial, que é a sociedade, pensa as coisas de sua própria experiência" (DURKHEIM, apud LIPIANSKY, 1991:42). A sociedade, portanto, é postulada como uma pessoa coletiva que tem uma estrutura transcendente às consciências individuais, e tal personificação foi o preço que Durkheim pagou na sua concepção de "consciência coletiva" e de "representação coletiva".

Igualmente, cria-se um círculo vicioso em que a moral se

baseia no sacro, que se alicerça nas representações coletivas de um macro-sujeito, que produz um sistema de normas obrigatórias... ad nauseum (Cf. HABERMAS, 1987-Tomo II:76).

Aquele método objetivo e positivo, que Durkheim desenhou

como fundador da Sociologia, fica, portanto, comprometido. A Sociologia se ajoelha, então, diante de uma Filosofia da qual Durkheim tentava tanto se afastar. Uma sociedade postulada como um sujeito coletivo, que pensa sobre a sua própria experiência, através de suas próprias representações, isto é, com uma capacidade de reflexão, nada mais é do que o Eu transcendental - ou Deus, numa linguagem mais coloquial - da filosofia da representação, fundada por Kant. A sociedade se torna o a priori histórico do ser humano, e o objetivismo, então, é trocado por uma ontologia do social.

e) A representação coletiva nas sociedades arcaicas é,

fundamentalmente, uma representação simbólica. O Totem sagrado é uma cristalização de uma representação coletiva; ele é o símbolo da reprodução do grupo social. A representação simbólica fixa, nas representações individuais e nas ações, a continuidade social e constitui, também, o poder de inércia e de perduração que mantém acesa, durante o desenrolar das gerações, a ideação coletiva.

Page 32: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Mas tal poder de inércia somente pode atualizar-se através da figuração simbólica do Totem, sob o risco de se volatilizar no éter, visto o símbolo não possuir massa ou matéria - a sua substância decorre da sua figuração. Com este último, a representação simbólica assume as propriedades do representado e, assim, ela se torna a mediação entre os indivíduos e as coisas, como também constitutiva da realidade ∗ .

Fabrica-se, igualmente, uma duplicação de mundos: "Numa

palavra, ao mundo real em que se escoa sua vida profana superpõe outro que, num sentido, existe apenas em seu pensamento, mas ao qual atribui em relação ao primeiro uma espécie de dignidade mais alta. É, pois, a um duplo (grifo nosso) título, um mundo ideal" (DURKHEIM, 1994:603). Não deixa de ser interessante encontrar, novamente, a duplicação do ato representativo, tanto do mundo como do indivíduo.

A representação coletiva fixa e cristaliza, através da

figuração, a ideação coletiva. Sua inércia é a da repetição, isto é, um martelar constante em eternos instantes, como música minimalista.

Do ponto de vista dos indivíduos, ela se fixa na memória,

lugar onde é possível o passado tornar-se presente. A representação de Durkheim, nesse sentido, é menos criadora do que reprodutora. Ela se aloja na memória, na retenção dos fatos, na tradição e na perpetuação de um status quo. Uma ação, assim, sempre se reporta a uma ação anterior, visto que ela se alicerça numa experiência acontecida. Ela se relaciona a uma representação apontada menos para a inovação do que para a tradição, menos para uma vida social em vias de se fazer do que para uma já feita. A ação, para ser verdadeiramente uma ação, tem que se posicionar na região entre o já acontecido e o que vai acontecer. Em Durkheim, a representação é causa da ação, estando a segunda localizada na região entre o passado e o presente. Por isso, talvez, seja impossível, para Durkheim,

∗ Devemos nos lembrar da conceituação de Moscovici sobre representação social, isto é: representação = figura/significação. Para LIPIANSKY (1991:44), a interpretação de tal equação seria freudiana:

figura = representação de coisa e significação = representação da palavra. Mesmo concordando com o último autor, preferimos a seguinte formulação: figura = Durkheim (processo de figuração da representação

coletiva) e significação = Freud (processo do inconsciente)

Page 33: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

postular uma sociologia da ação, uma vez que a representação estaria numa relação de anterioridade com a ação.

Nesse sentido, para criar uma teoria da ação, Durkheim teria

de abandonar a tese de uma ontologia do social, pois toda ação é uma ação de sujeitos; "mais do que isso, de sujeitos individuais. A ação coletiva é apenas o 'resultado' ou o 'conjunto' das decisões de sujeitos individuais. E mesmo que as normas e estratégias de ação sejam constituídas intersubjetivamente, o consenso resulta da anuência de cada um e de todos os sujeitos individuais" (HELLER, 1991:212; HABERMAS, 1987-Tomo II).

Assim, a única ação possível, para Durkheim, seria aquela de

um sujeito transcendente - a sociedade - sobre si mesmo; e, mesmo assim, uma ação, também transcendente, que estaria fundada numa representação primeva, anterior no tempo e na história.

Do mesmo modo, com a separação ontológica entre o social e o

psíquico, a representação coletiva ficou além de uma apropriação cognitiva, em que se examinariam as relações entre o sujeito e as idéias e entre estas e suas condições sociais de produção. Não é possível discutir sobre a cognição de um sujeito transcendental, pois não existe um cérebro transcendente e uma intersubjetividade a examinar, visto ele se relacionar sempre consigo mesmo. Definitivamente, quem pensa, chora e come é o homem concreto da vida.

Entretanto, é impossível negar os avanços do conceito de

representação coletiva em Durkheim e o parentesco direto de seu conceito com o de Moscovici. Existe, também, a ênfase nos aspectos, por assim dizer, "dramatúrgicos" da representação coletiva, isto é, ela não apenas cristaliza formas de conhecer, mas também simboliza e dramatiza as relações sociais. A representação coletiva incorpora elementos cognitivos e intelectuais, bem como elementos lúdicos e estéticos da vida social.

Os elementos expressivos seriam, para Durkheim, subprodutos

das determinações cognitivas da representação, que, expressando "intelectualmente" relações sociais, abrem espaço para a dimensão imaginária e, conseqüentemente, para a dimensão lúdico-estética - os elementos expressivos são inerentes às operações mentais. Em suma, as representações coletivas condensam no seu âmago elementos cognitivos-instrumentais, normativos e expressivos, sendo, praticamente, uma espécie de "forma de vida".

Page 34: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

CAPÍTULO II - PARA UM CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL. 1 - REPRESENTAÇÃO E PSICOLOGIA: O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

SOCIAL. Se Durkheim tinha o objetivo supremo de fundar uma

Sociologia científica, independente da Filosofia e distinta dos objetos da Psicologia, esta última não ficou por menos. O séc. XIX, praticamente, foi uma luta para diferenciar a Psicologia,

Page 35: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

via construção de uma Psicologia empírica, da Metafísica. Tal luta não foi fácil, pois a Metafísica, via Kant e a filosofia da representação, colocou um veto à possibilidade de se fundar uma ciência como a Psicologia.

Na Crítica da Razão Pura, Kant rejeita uma Psicologia

racional, porque esta repousa sobre um conceito sem intuição, e retira a possibilidade de uma Psicologia empírica, visto ser impossível "medir um 'fato' psíquico, enquanto tal, variá-lo sistematicamente, e a simples observação direta o altera"(GRECO, 1969:934). Uma epistemologia da Psicologia, portanto, que postulasse o estudo de representações do sujeito cognoscitivo para fundar uma Psicologia do conhecimento em geral, estava vetada, irônica e justamente, por uma filosofia da representação.

Mesmo assim, apesar do veto, vários pensadores tentaram,

entre o empirismo e o racionalismo, fundar, com o conceito de representação, uma Psicologia empírica e racional. Wundt, por exemplo, "salientava que uma parte importante da atividade psíquica reside 'no inconsciente profundo da alma': este último é 'o palco dos mais importantes processos psíquicos', através dos quais encontram-se os processos indutivos que presidem à construção complexa das 'representações gerais'. São estas últimas que chegam à consciência: esta é capaz não apenas 'de reunir uma grande quantidade' de acontecimentos psíquicos, mas igualmente de exercer um controle crítico sobre as produções do espírito. A representação desempenha assim um papel central na continuidade do processo de conhecimento, que é a única base possível para uma ciência da experiência enquanto ciência empírica do sujeito cognoscitivo" (AMERIO, 1991:101).

Wundt, provavelmente, centrou-se mais no aspecto criativo do

sujeito cognoscitivo do que, propriamente, na capacidade criativa da representação.

Foram outros pensadores, como Brentano, Husserl, Schutz e

talvez Freud, que ressaltaram a capacidade criativa da representação. A ênfase nesse aspecto permitiu, inclusive a Moscovici, vislumbrar seu papel constitutivo na produção da realidade social. A representação, nesse sentido, teria uma capacidade de "negar o seu objeto e de se colocar através desta negação além dela" (AMERIO, 1991:101), isto é, ela não seria uma mera fotografia do objeto e, sim, uma negação que produziria um outro objeto, uma outra realidade.

Page 36: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Se a representação continuou sendo um conceito importante na Filosofia e em ramos isolados da Psicologia, como a Psicanálise, ela desapareceu quase por completo das ciências sociais após Durkheim.

Pode-se, nesse caso, ventilar três hipóteses para explicar

tal eclipse: 1) O conceito de representação entrou num estado de

hibernação ou de latência, desde que não se tinha, ainda, conseguido apreender o seu processo de enraizamento no social e nas relações intersubjetivas. Tal lacuna foi preenchida com o advento de novas correntes científicas como o Estruturalismo, a Lingüística, a Semiologia e mesmo a Psicanálise, a partir do momento de seu reconhecimento científico e de uma incorporação às ciências sociais. Tais correntes teóricas, assim, permitiram à representação uma base concreta em que se apoiar;

2) O conceito de representação social sofreu, segundo

Jodelet, obstáculos epistemológicos provenientes da Psicologia e da ciência social. Na primeira, o domínio do modelo behaviorista impediu a apreensão da especificidade cognitiva dos fenômenos mentais, e, na segunda, um tipo mecanicista de marxismo, que considerava os fenômenos superestruturais como um epifenômeno da base material da sociedade, rejeitou a teoria da representação como um idealismo da Sociologia burguesa (JODELET, 1991:16);

3) A terceira hipótese seria mais complexa e teria uma explicação de fundo sócio-epistemológico, merecendo ser apresentada de forma mais longa, embora esquemática.

Marx, Durkheim e Weber, fundadores da Sociologia clássica,

compartilhavam o mesmo ponto de vista de que o trabalho é, no capitalismo, o fato social principal. A interação social e o mundo intersubjetivo, reino da representação, estariam subsumidos conceitualmente na "sociedade do trabalho". A prioridade da Sociologia seria, então, decifrar o papel determinante que o trabalho (divisão do trabalho, classes trabalhadoras, normas de trabalho e organização do trabalho) e a sua racionalidade teriam na sociedade moderna.

Assim, como afirmou Claus Offe, "o objetivo da teorização

sociológica pode, de maneira geral, ser resumido como a análise dos princípios que formam a estrutura da sociedade, programam sua integração ou seus conflitos e regulam seu desenvolvimento objetivo, sua auto-imagem e seu futuro. Se considerarmos as respostas dadas entre o final do século XVIII e o término da Primeira Guerra Mundial às questões que se referem aos

Page 37: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

princípios de organização da dinâmica das estruturas sociais, podemos certamente concluir que ao trabalho foi atribuída uma posição chave na teorização sociológica. O modelo de uma sociedade burguesa consumista preocupada com o trabalho, movida por sua racionalidade e abalada pelos conflitos trabalhistas, apesar de suas abordagens metodológicas e construções teóricas diferentes, é o foco da produção teórica de Marx, Weber e Durkheim"(OFFE, 1989:168).

Um modelo de sociedade baseado numa praxis da produção

desconsidera ou, pelo menos, atenua uma práxis alicerçada na interação social e na comunicação, na qual seria possível realçar a importância de um conceito como o de representação social. Os problemas de uma "sociedade do trabalho" favorecem mais, do ponto de vista sociológico, uma teoria social da integração sistêmica que englobe a integração social, do que, propriamente, uma teoria social da integração social que englobasse a integração sistêmica.

As mudanças estruturais no modo de produção capitalista nos

últimos 50 anos diminuíram, paradoxalmente, a importância de uma sociedade fundada na práxis da produção. Tais transformações repercutiram, e muito, nas ciências sociais. Assim, pode-se dizer que, na Sociologia contemporânea, "o trabalho e a posição dos trabalhadores no processo de produção não são tratados como o princípio básico da organização das estruturas sociais; que a dinâmica do desenvolvimento social não é concebida como emergente dos conflitos a respeito de quem controla a empresa industrial; e que a otimização das relações entre meios e fins técnico-organizacionais não é compreendida como a forma de racionalidade precursora de mais desenvolvimento social" (OFFE, 1989:171).

Desse modo, aos poucos, a categoria "trabalho" foi perdendo

a prioridade em relação ao papel determinante, que possuía no passado, confinando-se a áreas mais específicas da Sociologia. Foi diminuindo, também, o seu papel determinante na formação da consciência e da ação social. Em seu lugar, como fundamentos para uma teoria da ação e da consciência, foram surgindo categorias como socialização, interação, comunicação, etc. O campo central do interesse sociológico se deslocou da esfera do trabalho para os problemas da vida cotidiana e do "mundo vivido", realçando a importância de dimensões sociais que ficam à margem do mundo da produção, isto é, instâncias como "a família, papéis sexuais, saúde, comportamento `desviante', interação entre a administração do Estado e seus clientes, etc" (OFFE, 1989:173).

Page 38: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Os estudos de Foucault, Touraine (Cf. TOURAINE, 1984), Gorz,

Heller e, principalmente, os de Habermas tomaram um trilho, por assim dizer, "antiprodutivista" e valorizaram a esfera do cotidiano e as análises de "modos de vida", percebendo novos campos de ação e novas formas de racionalidade. Surgiram, em conseqüência, novas dicotomias na Sociologia, tais como modo de produção x modo de vida, ação racional intencional ou instrumental x ação comunicativa, sociedade industrial x sociedade pós-industrial, integração sistêmica x integração social, mundo sistêmico (poder e dinheiro) x mundo vivido (interação e comunicação), etc; dicotomias, de fato, que representam uma das maiores dificuldades para uma teoria integrada da mudança social.

Não foi surpreendente, pois, o deslocamento da Psicologia

Social, a partir da década de 60, para o estudo do "conhecimento prático", isto é, o conhecimento "espontâneo", "ingênuo", "natural" do "senso comum". A Psicologia Social, que sempre procurou uma definição do seu objeto de conhecimento, encontrava na dimensão do cotidiano as formas de conhecimento adequadas às suas categorias de análise. O "senso comum" estaria inscrito na realidade cotidiana do "mundo vivido" e ancorado no mundo da intersubjetividade e da integração social. Podemos afirmar, nesse sentido, que o conceito de representação social foi forjado para o entendimento das formas de racionalidade existentes na vida cotidiana.

Desse modo, surgiu uma nova dicotomia nas ciências sociais

fundada na oposição saber científico x "senso comum", isto é, o saber científico seria um conhecimento institucionalizado, inscrito no mundo sistêmico, e o "senso comum", um saber do "mundo vivido". A representação social, segundo Moscovici, seria produto dos movimentos sociais - agentes típicos do "mundo vivido" - que estão inscritos numa "socialidade vivida", possuindo uma ação anti-institucionalizadora na cultura e anticonvencional na política (MOSCOVICI, 1991:82).

Em suma, sustentamos que, além de motivos epistemológicos,

existiram, também, determinações de natureza sociológica no renascimento do conceito de representação.

Moscovici se apropriou do conceito de representação coletiva

de Durkheim, utilizando-o como um conceito fundador de um novo continente de pesquisas. Primeiro, retirou do conceito durkheiminiano o peso da ontologia social, mudando, conseqüentemente, o seu campo de aplicação, agora situado a meio

Page 39: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

caminho entre o social e o psicológico; segundo, inscreveu no conceito uma consistência cognitiva bastante acentuada; terceiro, delimitou-o, especificando o seu campo de ação, ou seja, o cotidiano; e quarto, especificou a representação como uma forma de conhecimento particular, relacionada à comunicação, à interação social e à socialização.

Moscovici, igualmente, trocou o termo "coletivo" por

"social", não devido a uma mera originalidade nominal, nem por oposição às representações individuais mas, sim, para realçar o dinamismo social que existe no âmago da representação, impregnando a vida afetiva e intelectual dos indivíduos de uma sociedade. O termo "coletivo" insinua apenas uma diferença face ao termo "individual", fixando, na verdade, uma ontologia distinta, ao passo que "social" é bidirecional, isto é, afirma, por um lado, a representação como uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada e, por outro, percebe a sua realidade psicológica, afetiva e axiológica, inscrita no comportamento do indivíduo. As representações seriam sociais, desde que produzidas nos processos de mudança e de interação social.

Assim, a representação pode ser considerada como um sistema

de interpretação da realidade, organizando as relações do indivíduo com o mundo e orientando as suas condutas e comportamentos no meio social. Tal sistema de interpretação se enraíza nas formas de comunicação social, permitindo ao indivíduo interiorizar as experiências, as práticas sociais e os modelos de conduta. O indivíduo consegue, através das representações sociais, construir e se apropriar de objetos socializados. Nesse sentido, as representações sociais "são abordadas ao mesmo tempo como o produto e o processo de uma atividade de apropriação da realidade exterior ao pensamento, e de elaboração psicológica e social desta realidade" (JODELET, 1989-A:37).

O mistério das relações entre a esfera individual e a social

seria desvendado pelo conceito de representação social, que retoma essas relações e as torna menos ontológicas do que orgânicas. Não é surpresa, assim, a necessidade de uma reavaliação dos conceitos de comportamento, atitude e conduta - esclarecidos por uma teoria da comunicação social - os quais seriam a força dinâmica e propulsora da representação. Por isso, uma teoria comportamental, nutrida pelo conceito de representação social, seria, fundamentalmente, psico-social. A representação social, assim, constituiria uma "modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de

Page 40: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

comportamentos e a comunicação entre indivíduos" (MOSCOVICI, 1978:26).

A representação, ao substituir mentalmente um determinado

objeto (uma pessoa, uma coisa, uma idéia, etc), reconstrói as cadeias de significações que o formam, restituindo-o simbolicamente e, também, inscreve no significante novos significados. Na verdade, a reconstrução do objeto da representação forma um novo objeto que tem uma certa independência do original - se é que se pode falar em objeto "original", porque, geralmente, as representações são representações de representações. O objeto, assim, seria reconstruído, interpretado e expressado pelo sujeito (JODELET, 1989-A:37).

O conceito de representação social instrumentalizou a

Psicologia Social para superar os limites do modelo behaviorista que impõe uma teoria comportamental estreita, baseada no modelo estímulo-resposta, e que abstrai completamente a composição social do comportamento humano. As críticas de Moscovici, contudo, foram direcionadas a um modelo comportamental arcaico e estreito que se traduzia na fórmula S-R dos primórdios do behaviorismo waltsoniano. A partir das décadas de 40 e 50, o modelo evoluiu e foi enriquecido por um "O", situado entre o "S" e o "R", e que se refere "às condições de manutenção do organismo, sejam elas motivacionais (estados de privação), cognitivas (sistemas de crenças e valores), variáveis de personalidade (introversão/extroversão) etc"(RANGE, 1991:405).

O esquema atual parece ter a seguinte conformação: *cognições

S_______O_____R *emoções ________ C __________K *ações

Nesse caso, C "refere-se às conseqüências positivas, negativas, mistas ou nulas que as ações do organismo podem provocar(...) e K, (...)aos esquemas de reforçamento (contínuo, intermitente etc.) que estão atuando sobre R que produziu C" (RANGE, 1991:405). Não existiria, portanto, no esquema atual, uma ruptura entre os universos exterior e interior do indivíduo, como no modelo antigo. A representação determinaria, ao mesmo tempo, S e R, perpassando por todo o modelo. Assim, o neobehaviorismo coincidiria com as elaborações de Moscovici, possibilitando um novo intercâmbio entre um modelo estritamente comportamental e o da representação social

Page 41: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

A representação está presente no estímulo e na resposta de uma determinada ação, enquanto que a atitude e a opinião estariam localizadas unicamente na resposta ao estímulo. A opinião de um indivíduo, por si só, não esclarece o contexto em que foi dada, nem os critérios de valor e as categorias que a sustentam. Ela seria, de um certo modo, passiva e não criativa, caracterizando uma "fotografia" do momento. A opinião, no máximo, revela uma preparação de uma ação, embora baseada na simulação verbal de uma conduta conhecida, enquanto que a representação ultrapassa tal aspecto "na medida em que remodela e reconstitui os elementos do meio ambiente em que o comportamento deve ter lugar"(MOSCOVICI, 1978:49).

As imagens, por sua vez, serviriam de filtros para a

percepção, selecionando e controlando percepções e interpretações de objetos que nem são rejeitados, nem reprimidos. Desse modo, as imagens "desempenham o papel de uma tela seletiva que serve para receber novas mensagens, e controlam freqüentemente a percepção e a interpretação daquelas mensagens que não forem inteiramente ignoradas, rejeitadas ou recalcadas"(MOSCOVICI, 1978:48). As representações não seriam imagens no sentido de cópias da realidade, pois não "respeitam" a realidade, combinando e engendrando novas imagens e, com isso, criando novos objetos.

De forma geral, a representação teria cinco características

essenciais: " - sempre é a representação de um objeto; - possui um caráter de imagem e a propriedade de poder

intercambiar o sensível e a idéia, a percepção e o conceito; - possui um caráter simbólico e significante; - possui um caráter construtivo; - possui um caráter autônomo e criativo"(JODELET, 1986:478). A representação seria, sobretudo, uma forma de conhecimento,

modelando o objeto com diversos suportes lingüísticos, de comportamento e materiais (JODELET, 1989-A:43) mas, também, um saber prático intrinsecamente relacionado à experiência social e possuindo um alto grau de intervenção social.

A inscrição social da representação, por outro lado, seria

determinada pela comunicação social, que possui um papel

Page 42: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

fundamental nas mudanças e nas interações formadoras do consenso social. A comunicação social determinaria os níveis de apropriação e de criação da representação social e seria um processo com três níveis estruturais: 1) aspectos cognitivos; 2) formação da representação (objetivação e ancoragem); e 3) edificação da conduta (opinião, atitude, estereótipos) (JODELET, 1989-A:47).

Examinaremos, neste trabalho, apenas os dois primeiros

níveis, visto que o terceiro estaria relacionado ao processo de difusão e propagação da representação social, sendo, portanto, secundário aos outros processos.

O primeiro nível caracterizaria o modo cognitivo da

representação social, que se expressaria como um "pensamento natural" ou pensamento representativo. Essa conceituação seria construída em oposição ao modo cognitivo da ciência, visto que o "pensamento natural" seria o modo cognitivo do "senso comum". A cognição científica seria representada pelo pensamento informativo, que teria as seguintes características: 1) é formado por conceitos e signos; 2) possui validade empírica; 3) é dominado pelo "como"; 4) apresenta tipos de inferência fixos; 5) é limitado nas sucessões dos atos mentais; e 6) possui apenas algumas formas sintáticas disponíveis (MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:558).

O pensamento representativo seria, praticamente, o oposto do

informativo, isto é, teria as seguintes características: 1) é formado por imagens e símbolos; 2) possui validade consensual; 3) é dominado pelo "por quê"; 4) tem uma pluralidade de tipos de inferência; 5) apresneta uma flexibilidade na sucessão de atos mentais; e 6) possui várias formas sintáticas disponíveis.

O "pensamento natural" seria determinado por vários fatores,

tais como: dispersão da informação; focalização dos sujeitos sobre uma relação social; pressão para a inferência; personificação dos conceitos e dos fenômenos; figuração de imagens e conceitos; e ontologização das relações lógicas ou empíricas. Tais fatores expressariam uma fenomenologia do pensamento natural, ilustrando as condições em que as representações são pensadas e constituídas.

O segundo nível estrutural da comunicação social estaria

relacionado aos dois processos de formação da representação: a objetivação e a ancoragem.

Page 43: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

A objetivação consiste em um processo de seleção em que o objeto social representado é apropriado e são retidos, por constrições afetivas, axiológicas e ideológicas, os elementos que lhe convêm, com os quais constrói a sua representação (Cf. LIPIANSKY, 1991:39). Formar-se-ia a imagem mais adequada ao campo cognitivo do sujeito, focalizando e reconhecendo o objeto mas, também, opacificando e desconhecendo o mesmo. Em suma, a objetivação desvia os elementos do objeto representado da sua totalidade em função de critérios culturais e normativos.

Na verdade, o processo de objetivação seria comum a todas as

produções simbólicas e não, apenas, específico à representação social. A expressão simbólica é o denominador comum de todas as atividades culturais, que individualmente são diferentes, embora preencham a mesma tarefa: a objetivação. Sendo assim, a própria linguagem se objetifica em expressões sensoriais, isto é, "no próprio ato da expressão lingüística as nossas percepções revestem-se de uma nova forma. Deixam de ser dados isolados; abandonam o seu caráter individual; são reduzidas a conceitos que são designados por `termos' gerais. O ato de `designar por um termo' não se limita a acrescentar um sinal meramente convencional a uma coisa já existente - a um objeto anteriormente conhecido. É, antes um pré-requisito da verdadeira concepção dos objetos; da idéia de uma realidade empírica objetiva" (CASSIRER, 1961:66).

O mito seria um exemplo relevante da objetivação; nele, as

emoções "não estão simplesmente transformadas em meros atos; estão transformadas em 'obras" (CASSIRER, 1961:68).

A objetivação também está presente na arte e na poesia,

tendo sido ressaltada, metaforicamente, por Goethe: "E assim começou (...) aquela tendência de que eu não me

pude desviar através de toda a minha vida; nomeadamente a tendência para transformar numa imagem, num poema, tudo quanto me encantava ou me perturbava, ou de qualquer maneira me preocupava, e para chegar comigo mesmo a uma certa compreensão desse fatos, podendo depois corrigir a minha concepção das coisas exteriores e conseguir que a minha inteligência satisfeita deixasse de se ocupar delas. Esta faculdade era-me mais necessária do que a ninguém, pois a minha natureza impelia-me de um extremo a outro. De resto, todas as minhas obras que chegaram ao público são somente fragmentos de uma grande confissão" (GOETHE, apud CASSIRER, 1961:68).

Page 44: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Na representação social, não encontramos, propriamente, confissões individuais e, sim, psicossociais, com as quais o indivíduo crava no social a sua especificidade, após ter sido alvejado por ele. Assim como o mito, a representação social é uma objetivação da experiência humana, e não de uma experiência individual. Pode-se, sem dúvida, construir uma representação individualmente; contudo, ela seria conhecida e percebida como imagens e não como realidade. A representação social de um objeto seria percebida menos como um símbolo do que como "algo" real, isto é, ela não seria intuída e, sim, transformada em imagens - "reais" o suficiente para determinar orientações de conduta e interpretações de mundo.

O processo de objetivação "materializa" idéias e conceitos

em um núcleo figurativo ou em uma esquematização estruturante. Desse modo, a objetivação "faz com que se torne real um esquema conceitual, com que se dê a uma imagem uma contrapartida material, resultado que tem, em primeiro lugar, flexibilidade cognitiva: o estoque de indícios e de significantes que uma pessoa recebe, emite e movimenta no ciclo das infracomunicações pode tornar-se superabundante. Para reduzir a defasagem entre a massa de palavras que circulam e os objetos que os acompanham, e como não se poderia falar de 'nada', os 'signos lingüísticos' estão ligados a 'estruturas materiais' (tenta-se acoplar a palavra à coisa)" (MOSCOVICI, 1978:111).

Além da naturalização, que o núcleo figurativo engendra, a

objetivação também tem, como uma de suas características fundamentais, a classificação, "que coloca e organiza as partes do meio ambiente e, mediante seus cortes, introduz uma ordem que se adapta à ordem preexistente, atenuando assim o choque de toda e qualquer nova concepção. Quer seja adaptada aos seres, aos gestos ou aos fenômenos, a classificação responde a uma necessidade fisiológica. Trata-se de cortar o fluxo incessante de estimulações para se conseguir chegar a uma orientação e uma decisão sobre quais os elementos que nos são sensoriais ou intelectualmente acessíveis. É imposta uma grade que permite denominar os diferentes aspectos do real e, por seu intermédio, defini-lo. Se aparece uma grade diferente, suas novas denominações são associadas às entidades existentes, que elas ajudam a redefinir" (MOSCOVICI, 1978:113).

A classificação, de certo modo, seria um verdadeiro processo

de ordenação ideológica, em que se opacificam partes do real e se iluminam outras que sejam adequadas ao campo de interesses do indivíduo. Contudo, a classificação é um processo encontrado de forma geral nas representações. Podemos lembrar a compulsão

Page 45: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

classificatória do saber clássico, estudado por Foucault, em que a base epistêmica fundamental era a representação; ou, ainda, mencionar as necessidades taxonômicas de uma clínica médica, baseada também na representação, ainda não alicerçada na anátomo-fisiologia. A classificação, desse modo, seria um processo conservador de transformação do novo e do proibido.

A objetivação, em linhas gerais, poderia ser decomposta em

três processos: construção seletiva, esquematização estruturante e naturalização (JODELET, 1986:483). Tais processos são fundamentais para o pesquisador perceber o conteúdo das representações sociais, que comumente é apreendido de duas formas: a primeira seria o tratamento do conteúdo representativo como um campo estruturado, em que se perceberiam os elementos constitutivos das representações, ou seja, informações, imagens, crenças, valores, opiniões, elementos culturais, ideológicos, etc (Cf. JODELET, 1989-A:55); a segunda forma estaria relacionada a um núcleo estruturante, em que os elementos centrais seriam atitudes, modelos normativos e esquemas cognitivos (JODELET, 1989-A:55).

O segundo processo de formação das representações sociais

seria a ancoragem, que, sem dúvida, revela uma originalidade bem mais acentuada do que a objetivação. Poder-se-ia dizer que a ancoragem é a grande descoberta de Moscovici, pois ela "designa a forma na qual os elementos representados contribuem para expressar e constituir as relações sociais" (LIPIANSKY, 1991:40).

É bem verdade que, mesmo sem negar a originalidade de

Moscovici, poder-se-ia encontrar a ancoragem já em textos de Piaget, quando estuda o mecanismo da aprendizagem; em Freud, no seu conceito de super-ego e na análise das relações objetuais; e, ainda, em Mead, no seu estudo do mecanismo da formação das normas e papéis sociais.

A ancoragem fixa "a representação e o seu objeto numa rede

de significações que os permite adequarem-se aos valores sociais, dando-lhes coerência" (JODELET, 1989-A:56). Ela interioriza - no sentido de trazer para dentro - esquemas de ação e, ao mesmo tempo, inscreve o objeto, enquanto novidade, numa determinada estrutura de valores através de um processo de familiarização. Ocorre, também, uma internação - no sentido de tornar intrínseco - das relações com o objeto, isto é, transforma-se a representação em símbolos utilizáveis que permitem a interpretação e a ação no meio social.

Page 46: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Os processos de interiorização e internação constituem a "integração cognitiva do objeto representado dentro do sistema de pensamento preexistente e as tramsformações derivadas deste sistema, tanto de uma parte como de outra. Já não se trata, como no caso da objetivação, da constituição formal de um conhecimento mas, sim, de sua inserção orgânica dentro de um pensamento constituído" (JODELET, 1986:486). Assim, a ancoragem acumula "as três funções básicas da representação: função cognitiva de integração do novo, função de interpretação da realidade e função de orientação das condutas e das relações sociais"(JODELET, 1986:486).

A ancoragem atua numa rede de significados, jogando e

intercambiando, de forma comunicativa, valores intrínsecos e extrínsecos do indivíduo para equilibrá-los de forma não-contraditória. Na verdade, tal equilíbrio se alicerça superficial e não profundamente na latência do espírito. A ancoragem patrocina, devido à integração cognitiva, a fusão de elementos díspares, ocasionando o que Moscovici chamou de polifasia cognitiva (MOSCOVICI, 1989-B:16). O equilíbrio se fundamenta na capacidade da representação em negociar com a realidade, isto é, aqui vale menos a pretensão à verdade do que a realização do consenso. A representação induz a uma ação visando ao entendimento, mas a pretensão de validez postulada é frágil e intercambiável.

A representação social transforma-se, através do processo de

ancoragem, num sistema de interpretação, que "possui uma função de mediação entre o indivíduo e o seu meio, assim como entre os membros de um mesmo grupo. Capaz de resolver e expressar problemas comuns, transformados em código, em linguagem comum, este sistema servirá para classificar os indivíduos e os fatos, para constituir tipos em relação aos quais os outros indivíduos e grupos se avaliam e se classificam. Converte-se em instrumento de referência que permite a comunicação numa mesma linguagem e, por conseqüência, a influência recíproca" (JODELET, 1986:488).

Vale salientar, contudo, que a conceituação da representação

social, como uma forma de conhecimento, não nos diz muita coisa, uma vez que "só percebemos o real através da representação" (MORIN, 1986:105). Uma representação mental, por exemplo, também seria uma forma de conhecimento e poderia estar relacionada ao "senso comum", embora não fosse uma representação social.

Assim, cada indivíduo de um determinado grupo social possui

"no seu cérebro milhões de representações mentais, umas efêmeras, outras conservadas na memória de longo prazo,

Page 47: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

constituindo o `saber' do indivíduo" (SPERBER, 1989:116). Uma parte dessas representações mentais são públicas, isto é, foram apropriadas pelo indivíduo como objetos socializados, vertendo-se em representações mentais para, depois, através da comunicação social, transformarem-se, novamente, em representações sociais.

A comunicação social permite que uma representação social

seja traduzida em uma mental. Uma representação seria social a partir do momento em que foi largamente distribuída, permanecendo de forma durável em um grupo social. Existiria, assim, um processo social dialético intenso na tradução e na transformação de representações sociais em mentais e vice-versa.

No entanto, a representação social continua social, mesmo

traduzida em uma mental, desde que o seu caráter social esteja mais relacionado à sua função de formação de condutas e de orientação das comunicações sociais do que a uma dicotomia simples do tipo mental x social. De qualquer forma, percebem-se, comumente, algumas características gerais da representação como se fossem especificidades da representação social, isto é, identifica-se uma generalidade com uma particularidade. Vimos, inclusive, que objetivação, classificação e, mesmo, naturalização seriam menos uma especificidade da representação social do que uma generalidade das representações. As diferenças, na verdade, entre os tipos de representação seriam bem mais iluminadas por uma teoria geral da representação, em que se distinguissem os diversos "tipos de conhecimento" engendrados pelas representações.

A representação, como já dissemos, não é uma cópia da

realidade e, sim, uma espécie de analagon, isto é, uma tradução construtiva da realidade percebida (SPERBER, 1989:104). Um analagon que seria menos "realista" do que, propriamente, tradutor e transformador do objeto representado. A representação, como diria Husserl, "presentifica" a realidade. A percepção de um objeto (idéia, coisa, outra representação, etc.) implica na sua apropriação neuro-sensorial, transformando os "proto-signos" em informações codificadas "que, por sua vez, serão objeto de novas traduções, até uma última e maior transformação que é a representação" (SPERBER, 1989:104).

Produz-se, desse modo, uma imagem que não deixa de ser uma

apropriação subjetiva do mundo, embora seja sentida como uma presença objetiva da realidade. A representação seria, ao mesmo tempo, uma construção do objeto afastada do original e um analagon, isto é, uma presença do mundo exterior na mente do

Page 48: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

indivíduo. Podemos perceber, nessa aparente dicotomia, a constituição imaginativa da representação, por um lado, e a sua relação umbilical com a realidade, por outro. Na verdade, não existe uma irredutibilidade entre estas duas facetas da representação, uma vez que ela "é o ato constitutivo idêntico e radical do real e do imaginário" (MORIN, 1986:106).

A representação seria uma forma de conhecimento compreensivo

"porque transmite um conhecimento no próprio ato que faz surgir um analogon do fenômeno percebido" (MORIN, 1986:135). A representação, de fato, funciona por redução analógica, ou seja, ela é "um conhecimento do semelhante pelo semelhante que detecta, utiliza, produz similitudes de maneira a identificar os objetos ou fenômenos que percebe ou concebe" (MORIN, 1986:131).

A redução analógica foi percebida, também, por Boltansky, na

sua análise da passagem da linguagem médica para a leiga: "A redução analógica que permite a passagem das categorias da Medicina às categorias da Medicina popular, efetua-se na maior parte dos casos em função, ou da sinonímia, ou da homonímia do termo emprestado e desconhecido, com outros termos conhecidos" (BOLTANSKY, 1989:76). O próprio Moscovici, inclusive, inferiu a redução analógica, quando conceituou a representação social como uma forma de familiarizar o estranho e a novidade (MOSCOVICI, 1978:56).

Por outro lado, a representação seria uma forma de

conhecimento "que torna o conceito e a percepção de certo modo intercambiáveis, uma vez que se engendram reciprocamente"

(MOSCOVICI, 1978:57). Estranho intercâmbio, pois o conceito prescinde do objeto para existir, enquanto que a sua ausência impossibilita a percepção. A representação, no entanto, "mantém essa oposição e desenvolve-se a partir dela; ela re-presenta um ser, uma qualidade, à consciência, quer dizer, presente uma vez mais, atualiza esse ser ou essa qualidade, apesar de sua ausência ou até de sua eventual inexistência. Ao mesmo tempo, distancia-os suficientemente do seu contexto material para que o conceito possa intervir e modelá-los a seu jeito" (MOSCOVICI, 1978:57).

O objeto, assim, não coincide, necessariamente, com a sua

representação. Tal independência da representação em relação ao objeto determina algumas repercussões no seu conteúdo representativo. Ora, como o conteúdo de uma representação depende da sua relação com o objeto, podem-se produzir três

Page 49: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

tipos de efeitos diferentes no conteúdo representativo de uma representação (Cf. JODELET, 1989-A:53-54).

O primeiro deles seria o de distorção, em que todas as

características do objeto estariam presentes, embora algumas mais exageradas ou minimizadas do que outras. O segundo efeito seria a suplementação, isto é, seriam investidos aspectos inexistentes e imaginários ao objeto, com a finalidade de torná-lo adaptado aos valores dominantes. E, enfim, o terceiro efeito diz respeito à supressão em que parte dos aspectos que formam o objeto é eliminada por critérios normativos.

Fica evidente, nesse sentido, a semelhança entre tais

formulações e o conceito de ideologia, principalmente aqueles derivados da matriz marxiana da "falsa consciência"; de fato, o próprio conceito de representação possui uma grande semelhança com o de ideologia.

Denise Jodelet, atentando para o perigo, propõe uma definição de representação social que não sofreria tais indeterminações: "O conceito de representação social designa uma forma de conhecimento específico (...) as representações sociais constituem modalidades de pensamento prático orientados para a comunicação, a compreensão e o domínio do ambiente social, material e ideal. Como tais, apresentam características específicas a nivel de organização dos conteúdos, das operações mentais e da lógica" (JODELET, 1986:474).

Contudo, a definição de Jodelet, apesar de extremamente

útil, funciona muito mais como uma indicação geral e, em nossa opinião, insuficiente para visualizar a diferença entre ideologia e representação.

Com efeito, existem teorias, como a de Althusser, que

postulam a ideologia como um sistema de representações, e outras que identificam o "senso comum" como uma elaboração ideológica (Gramsci), quando não surgem noções embaraçosas como a de "representação ideológica" (Cf. ALTHUSSER, 1983:85). Ou, ainda, autores, como Maria Luisa Nunes de Moura e Silva, que afirmam que "o estudo das representações sociais deve ser remetido para o estudo da ideologia; porque é no seio desta instância social e de suas determinações materiais que se definem, de fato, para os indivíduos e/ou grupos, as possibilidades do conhecimento e representação de `objetos' sociais" (SILVA, 1978:224).

Sem dúvida, tal fato cria uma grande confusão conceitual.

Mesmo admitindo a polissemia dos termos ideologia e

Page 50: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

representação, bem como o seu parentesco teórico, achamos conveniente a tentativa de diferenciá-los, para evitar uma perda de foco na análise de nosso objeto de estudo.

2 - IDEOLOGIA E REPRESENTAÇÃO. Se julgarmos a ideologia sobre a ótica de expoentes da

teoria da representação social, como Jodelet e Moscovici, o resultado será extremamente negativo (Cf. JODELET, 1991; MOSCOVICI, 1991).

"A noção de ideologia é uma noção ideológica" afirma, de

forma peremptória, Moscovici (MOSCOVICI, 1991:67). Sectarismos à parte, a diferença entre a ideologia e o conceito de representação seria um tanto arbitrária. Com efeito, a ideologia pode ser um sistema de representações, mas, também, pode ser uma dimensão substantiva da sociedade ou, ainda, uma "falsa consciência".

Teoricamente, as relações entre representação social e

ideologia podem ser as seguintes: 1) os conceitos são semelhantes e complementares; 2) a representação é um elemento constitutivo da ideologia; 3) a representação social faz parte da dimensão ideológica (esta como uma instância social); e 4), o conceito de representação social é distinto do de ideologia

(JODELET, 1991:22). Examinaremos, ao longo da análise, três posições sobre a

ideologia e suas relações com a representação social. Elas estariam enquadradas na formulação, acima, do seguinte modo: a primeira e a segunda posições estariam enquadradas em 3), e a última, um tanto arbitrariamente, como veremos, em 1).

Faremos, aqui, uma breve discussão sobre as conceituações

marxistas de ideologia, uma vez que todas as posições examinadas têm uma filiação explícita ou implícita com o marxismo. Os elementos para uma teoria da ideologia estão espalhados difusamente na obra de Marx. Desse modo, as posições marxianas nem sempre são sistemáticas e, por isso, levam invariavelmente a interpretações, no mínimo conflituosas. Podemos inferir, assim, num espectro de interpretações marxistas sobre a ideologia, três parâmetros gerais, como propõe Raymond Williams:

"1) um sistema de crenças caratcerístico de uma classe ou

grupo;

Page 51: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

2) um sistema de crenças ilusórias - idéias falsas ou consciência falsa - que se pode contrastar com o conhecimento verdadeiro ou científico;

3) o processo geral da produção de significados e idéias" (WILLIAMS, 1979:60).

Na versão lukacsiana, por exemplo, os parâmetros 1) e 2)

estão combinados numa visão que infere as ideologias fundamentadas em posições de classe mas, excetuando a ideologia revolucionária do proletariado, elas são percepções ilusórias ou falsas da realidade. O parâmetro 1) é encontrado isoladamente em Lênin, assim como o 2) foi trabalhado por Althusser. O parâmetro 3) foi usado, preferencialmente, por marxistas semiólogos (Volosinov, Medvedev e Baktin). Já Gramsci, a nosso ver, combinaria de uma forma original o parâmetro 1) com o 3): a ideologia seria, assim, o "campo do significante" por excelência e, ao mesmo tempo, particularizada pelas relações de classe.

Examinaremos agora a posição gramsciana de ideologia e,

depois, uma de caráter semiológico que, de certa maneira, possui um parentesco com a primeira.

No Cadernos do Cárcere, a ideologia aparece determinada

pelas forças materiais, com um acento pronunciado na sua dialética e nas suas interpenetrações (GRAMSCI, 1966:63). Ao mesmo tempo, afirma-se o papel positivo da ideologia, colocando-a como "forma" da estrutura material da sociedade, além de inferi-la como uma dimensão ontológica que reproduz, no plano das suas instâncias e discursos específicos, o "formato" da totalidade social. Embora, em várias passagens, Gramsci ressalte o caráter negativo da ideologia, o sentido conceitual de ideologia mais presente em sua obra parece ser o acima referido.

Desse modo, a ideologia é pensada como uma dimensão

ontológica da estrutura social, e tal dimensão, inclusive, é larga o suficiente para que nela se incluam a instância cognitiva e as representações sociais. Gramsci, com efeito, deduz que a "proposição contida na Introdução à Crítica da Economia Política, segundo a qual os homens tomam conhecimento dos conflitos de estrutura no terreno das ideologias, deve ser considerada como uma afirmação de valor gnoseológico e não puramente psicológico e moral" (GRAMSCI, 1966:52). Assim, a criação de um novo terreno ideológico, isto é, "uma reforma das consciências e dos métodos de conhecimento, é um fato de conhecimento, um fato filosófico" (GRAMSCI, 1966:52).

Page 52: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

O conhecimento, aqui, seria entendido no sentido mais "largo" possível, ou seja, ele não seria monopolizado pela ciência, que seria, apenas, uma de suas modalidades. Tal noção de conhecimento, transcendendo o saber científico, baseia-se numa leitura bastante original da Introdução de Marx, que não coloca a ciência como uma forma ideológica (Cf. MARX, 1978:30). Para Gramsci, em conseqüência, a ideologia seria, também, uma forma de conhecimento, assim como as representações sociais.

Por outro lado, o conceito gramsciano de ideologia possui

uma afinidade com o conceito croceano de religião, isto é, a religião como uma "weltanschauung". Dessa forma, a ideologia como uma concepção de mundo teria no seu núcleo "normas de vida", realizando uma dimensão ética e normativa que interpela o sujeito para a ação prática; a ideologia, pois, seria uma "relação vivida".

Assim, o conceito gramsciano de ideologia teria "uma tripla

dimensão positiva: uma dimensão cognitiva, enquanto esfera na qual os homens tomam consciência das contradições do real; uma dimensão ontológica, enquanto nível superestrutural da totalidade social e `forma' da estrutura econômica; e uma dimensão axiológica-normativa, enquanto horizonte de valores que apelam à ação, à prática" (SANTOS, 1980:44).

Contudo, mesmo concordando que a ideologia fundamenta um

nível superestrutural, ficamos na dúvida se, em Gramsci, o conceito de ideologia seria tão largo ao ponto de constituir a própria superestrutura. De fato, Gramsci chega a indagar "onde encontrar o limite entre o que deve ser entendido como ideologia, no limitado sentido croceano, e a ideologia no sentido da filosofia da praxis" (GRAMSCI,1966:262), isto é, todo o conjunto das superestruturas. Ora, se a ideologia é tão "ampla", ela englobaria a ciência, que seria também "uma superestrutura, uma ideologia" (GRAMSCI, 1966:71). Com tal afirmação, poder-se-ia cair nas garras do ideologismo, ou seja, reduzir todas as formas de conhecimento à ideologia. Ou, então, como uma solução provisória, poderíamos supor que a ciência tenha sido uma "região" da ideologia que, com o desenvolvimento histórico, tornou-se autônoma e com uma "eficácia própria", não se separando da sua "origem" ideológica mas, sim, apenas, distinguindo-se dela.

Por conseguinte, a ciência, a filosofia e o "senso-comum",

certamente, fariam parte da superestrutura ideológica da sociedade; mas, afinal de contas, qual é a diferença entre eles?

Page 53: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

A diferença, por exemplo, entre a Filosofia e o "senso-comum" seria a quantidade de atributos qualitativos (coerência, elaboração individual, etc) que a primeira possui em relação ao segundo (GRAMSCI, 1966:18), não existindo, em suma, uma descontinuidade entre ambos, mas sim uma continuidade. A Filosofia constituiria, ainda, o nível superior da ideologia, enquanto que a diferença entre a ciência e os outros ficaria um tanto obscura, talvez centrada na natureza do seu objeto e de seus procedimentos analíticos.

Gramsci propicia grandes avanços no conceito de ideologia ao

perceber a sua dimensão axiológico-normativa, conseguindo, assim, apreender a sua estrutura institucional, sem incorrer no equívoco de localizar a ideologia na consciência, postulando-a como um mero sistema de idéias.

A ideologia, desse modo, não estaria separada da sua

realidade material, não existindo um mundo à parte de idéias e pensamentos puros. Na verdade, os produtos ideológicos seriam formados na e com a realidade social material; teriam uma expressão material acessível objetivamente - desde expressões como a palavra, o som, um gesto, a escrita, a imprensa, etc, até a sua objetivação institucional e, neste último sentido, a ideologia seria um conjunto de práticas que institui normas de conduta e formas de conhecimento.

Gramsci, mesmo ampliando e dando uma positividade ao

conceito de ideologia, não perde de vista o seu caráter de classe. A ideologia é pensada como uma estrutura, de um todo contraditoriamente integrado, e não como a de um todo integrado sem contradições.

Por sua vez, a unidade contraditória da estrutura ideológica

é formada por várias ideologias, nas quais se distingue, como determinante, o antagonismo entre a ideologia dominante e a dominada. As ideologias são diferentes e os sujeitos interpelados por elas vivem em realidades díspares, existindo, contudo, um terreno comum a todos: a realidade da dominação de classe.

Ora, a partir do momento em que colocamos como premissa a

existência de uma ideologia dominante, baseada numa dominação de classe, podemos, em decorrência, supor que as ideologias subalternas se formam em relação a esta dominação, incorporando no seu seio elementos que conformam a sua sujeição à ideologia dominante.

Page 54: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Em todo caso, não existe apenas uma dicotomia entre a ideologia dominante e a dominada mas, também, uma circulação entre ambas. Desse modo, existe uma influência recíproca entre as ideologias das classes subalternas e a ideologia dominante. Não existiria, nesse sentido, uma adequação passiva das classes subalternas às interpelações ideológicas dominantes, bem como seria uma ingenuidade supor uma ideologia popular "pura" e independente, incorruptível por natureza.

Neste momento, porém, não incorporaremos a conceituação

gramsciana de ideologia, embora ela nos sirva para sustentar ou inspirar, mais adiante, a discussão sobre o "senso comum" e suas relações com os saberes institucionalizados. Com Gramsci, também, não perderemos de vista as relações de poder, tão subestimadas na teoria da representação social, que estão inscritas em toda atividade simbólica.

Por outro lado, em diversos pontos, o conceito de

representação social se identifica com o gramsciano de ideologia e, até, prolonga-o teoricamente. Pode-se especular, aqui, sobre a possibilidade de uma apropriação marxista da teoria da representação social, transformada em uma teoria...da ideologia.

Do ponto de vista semiológico, a ideologia não seria uma

instância ou um nível da totalidade social, mas uma dimensão ou estrutura substancial que atravessaria a sociedade por inteira e pelo interior de todo e qualquer material significante. Não que tudo seja ideológico, mas que a ideologia seja parte constituinte de todo fenômeno social. Além disso, a ideologia não pode ser identificada com a consciência, pois ela não deve ser "divorciada da realidade material dos signos" (MEDVEDEV, apud BRAGA, 1980:57); por outro lado, "localizar ideologia na consciência é transformar o estudo das ideologias num estudo da consciência e suas leis; e não faz diferença se isto é feito em termos transcendentais ou em termos empírico-psicológicos" (VOLOSINOV, apud BRAGA, 1980:58).

Em conseqüência, "todo produto ideológico e todos os seus

sentidos ideais não estão na alma, nem no mundo interior, nem num mundo à parte das idéias e puros pensamentos, mas no material ideológico acessível objetivamente - na palavra, no som, gesto, combinação de massas, linhas, cores, corpos vivos, etc. Todo produto ideológico é uma parte da realidade social material em torno do homem, um aspecto do horizonte materializado. Qualquer coisa que uma palavra possa significar, ela está antes de mais nada materialmente presente, como coisa enunciada, escrita, impressa, sussurrada ou pensada. Ela

Page 55: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

estabelece uma relação entre indivíduos, que é objetivamente expressa nas reações combinadas das pessoas: reações em palavras, gestos, atos, organizações, etc. O intercurso social é o `medium' no qual o fenômeno ideológico primeiro adquire sua existência específica, seu significado ideológico, sua natureza semiótica" (MEDVEDEV, apud BRAGA, 1980:58).

Nesse sentido, ideologia não seria um sistema de

representações, pois ela "não designa um conjunto finito de mensagens" (VERON, s/d:53). Tal designação não pode ocorrer porque "o conjunto de mensagens identificáveis, como pertencentes a um sistema ideológico dado, tal como o conjunto de frases que podem ser produzidas em uma dada língua, é infinito" (VERON, s/d:53). Em conseqüência, "uma ideologia não é um conjunto de elementos (representações, conceitos, idéias) que foram produzidos na sociedade: ela é um conjunto de regras de produção (...) uma ideologia não é um conjunto de mensagens, mas um sistema (acabado) de regras semânticas para produzir uma quantidade infinita de mensagens. Em outros termos, a noção de ideologia designa uma competência social e não um `paquet' de performances" (VERON, s/d:53).

Assim, a ideologia estaria situada no nível da competência,

e a representação, no da performance, ou, ainda, para utilizar uma linguagem saussuriana, a ideologia estaria no campo da língua, e a representação, no da fala (Cf SAUSSURE, 1974). O sistema ideológico não teria um conteúdo, mas, sendo um sistema de regras de produção de sentido, seria um campo em que se poderia investir não importa qual conteúdo. Já a representação, mais relacionada com a fala, a temática e seu objeto, teria um processo e um conteúdo evidenciáveis.

A passagem da ideologia à representação não seria direta e

sem mediações, como poderíamos pensar. Se a ideologia está inscrita no material significante, a sua expressão como representação precisa de um canal adequado. Tal intermediação seria realizada pelo discurso que, apesar disso, não se esgota como mero lugar de passagem de sentido do campo ideológico para o da representação. O discurso, num contexto mais amplo, seria uma realidade intermediária situada entre a língua e a fala (REBOUL, 1980:39).

Contudo, não incorporaremos, de forma completa, tal

conceituação de ideologia, que, de certo modo, torna a representação social um epifenômeno da instância ideológica. Aproximaremos, isto sim, tal conceituação à de episteme de Foucault (Cf. FOUCAULT, 1967), que, por sua vez, será

Page 56: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

particularizada e aproximada de um conceito alargado de paradigma (Cf. KUHN, 1975), para entendermos o modo de pensar médico-psiquiátrico.

Assim, as conceituações gramsciana e semiológica de

ideologia serão utilizadas, embora não de todas aplicadas, em nosso trabalho.

A partir de algumas propostas de Moscovici e Habermas (Cf.

MOSCOVICI, 1991; HABERMAS, 1987-Tomo II), tentaremos construir, em primeiro lugar, uma noção mais negativa de ideologia, identificando-a como "falsa consciência", o que não impede, como se poderia pensar, de inferir a ideologia, também, como uma forma de conhecimento, desde que a "falsa consciência", tornando ambivalente o conhecimento, não impede a sua pretensão de validez e de verdade.

Marx, por exemplo, realizou uma crítica ideológica da

cultura burguesa do século XIX, sublinhando as suas conquistas teóricas, embora criticasse a sua profunda ambivalência. Assim, a crítica marxiana desmascara a ambivalência de uma cultura que tem pretensões de "autonomia e de cientificidade, de liberdade individual e de universalismo, de auto-exame radical sem circunspecção" (HABERMAS, 1987-Tomo II:498), mas que, ao mesmo tempo, produz uma heteronomia e uma racionalização cultural, uma fragmentação da personalidade humana e uma defesa do status quo, uma profunda desigualdade e um embotamento da percepção da alteridade.

Em suma, uma crítica ideológica da ciência, por exemplo, não

diminui suas conquistas gnoseológicas e, sim, ressalta apenas "o gigantesco problema dos erros e ilusões que não cessaram (e não cessam) de impor-se como verdades ao longo da história humana"

(MORIN, 1986:13). A verdade, como disse Bachelard, é a retificação do erro (Cf. BACHELAR, 1978). A ideologia, enquanto tal, é histórica e historiada, e na modernidade pode servir a uma prática criticamente transformadora, embora sirva, principalmente, a uma "transfiguração idealista de uma prática afirmativa, reforçadora do existente" (HABERMAS, 1987-Tomo II:498). A ideologia teria, assim, uma dupla natureza de conhecimento e desconhecimento.

Em segundo lugar, tentaremos deslocar o conceito de

ideologia para o campo institucional, inferindo-o menos como uma dimensão substantiva da sociedade do que como um fetichismo

Page 57: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

institucional. Tal deslocamento terá como premissa fundamental a impossibilidade da existência da ideologia no "mundo vivido".

A ideologia, nesse sentido, participa dos fatos objetivados

pelas instituições e, em geral, "apresenta-se como uma construção altamente intelectual da qual eliminam-se todas as proposições e tonalidades que não se deixam inserir na única linguagem autorizada a reproduzir os valores e as intenções de um grupo. Ela parece conduzida a um protótipo ideal da cognição e ajusta todas as outras cognições no interior desse protótipo que é, a cada vez, determinado do exterior. Nesse sentido, ela rompe com o pensamento e a linguagem habituais que nós utilizamos e com os quais nos relacionamos" (MOSCOVICI, 1991:72).

A ideologia torna um saber institucionalizado num saber que

se cristaliza em aparelhos de poder, realizando a sua estabilidade e homeostase na consolidação de uma ortodoxia inquestionável. Ela transforma o saber em um universo reificado e institucionalmente autônomo, bem como desacoplado do resto da sociedade. Produz-se um saber desumanizado e indiferente que imobiliza as significações sociais, delas apropriando-se e tornando-as monopólio seu. Um saber ideologizado, assim, monopoliza um determinado objeto social e legitima o seu conhecimento como o único viável e verdadeiro.

Surge, desse modo, uma "cultura de especialistas", em que o

profissional estaria dominado pelo cálculo utilitarista de seus próprios interesses e por atitudes cognitivas instrumentais frente a si mesmo e aos demais. A profissão perderia o seu caráter vocacional (Cf. WEBER, 1970), adquirindo um caráter individualista baseado na competitividade de cargos e no desejo de ascender na carreira. Esse estilo utilitarista e unilateral de vida profissional perfaria o que Weber chamou de "especialista sem coração" (Cf. HABERMAS, 1987-Tomo II).

A comunicação entre sujeitos seria permeada por relações de

subordinação e de domínio, acarretando, com isso, uma assimetria comunicativa. O "especialista sem coração" e o seu cliente, por exemplo, não falariam a mesma linguagem, pois estão numa relação de "super-ordenação no interior da divisão social do trabalho ou do sistema de instituições" (HELLER, 1983:114) ou, mesmo, numa relação de subordinação.

A reificação de uma saber institucionalizado corresponde ao

fetichismo de uma instituição, que se tornou separada do resto da sociedade de onde surgiu. A instituição aparece como uma realidade objetivada e asséptica frente às estruturas simbólicas

Page 58: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

do cotidiano. Uma das conseqüências, desse fato, é a separação entre a organização da instituição e a estrutura de personalidade do indivíduo.

Uma análise do efeito da reificação institucional nos

indivíduos, por exemplo, pode ser encontrada, com certas reservas, em Gramsci, que definiu o fetichismo da seguinte maneira:

"Como se pode descrever o fetichismo? O organismo coletivo

constitui-se de indivíduos singulares, os quais formam o organismo na medida em que se entregam e aceitam ativamente uma hierarquia e uma direção determinadas. Se cada um dos membros individuais pensa o organismo coletivo como uma entidade estranha a si mesmo, é evidente que este organismo não existe mais de fato, transforma-se num fantasma do intelecto, num fetiche. É preciso ver se este modo de pensar muito difundido, não é um resíduo da transcendência católica e dos velhos regimes paternalistas. Ele é comum a uma série de organismos, ao Estado, à Nação, aos partidos políticos, etc. (...) O que espanta, e é característico, é que o fetichismo desta espécie reproduz-se em organismos `voluntários', de tipo não `público' ou estatal, como os partidos e os sindicatos. Somos levados a imaginar as relações entre o indivíduo e o organismo como um dualismo e a pensar numa atitude crítica exterior do indivíduo ao organismo (se a atitude não é de uma admiração entusiástica acrítica). Nos dois casos uma relação fetichista" (GRAMSCI, 1984:177).

O fetichismo institucional determina um estranhamento nos

indivíduos que fazem parte da instituição. No entanto, o fetichismo ocorre, também, em relação à sociedade. A instituição se transforma num sistema auto-regulado que luta para a conservação de seus limites e se torna um fragmento reificado do mundo social (Cf. HABERMAS, 1978-Tomo II:213). Contudo, o fetichismo institucional é menos o produto de "resíduos transcendentais católicos" ou de uma ilusão institucional do que de uma ilusão constitutiva do real. A reificação institucional não é um não-saber da consciência dos indivíduos e, sim, um produto social, isto é, faz parte do próprio funcionamento da sociedade.

Um saber ideologizado é um discurso fetichista que "não é

nem sequer um discurso ilusório sobre a realidade; mas o discurso da própria realidade: a ideologia é um momento da realidade" (ROUANET, 1987:105). Assim, o fetichismo institucional, de cuja análise Marx é pioneiro, é possível historicamente a partir do momento em que os complexos

Page 59: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

institucionais adquirem uma autonomia e os âmbitos de ação institucional, formalmente organizados, prescindem da reprodução simbólico-cultural do mundo da vida (Cf. MARX, 1975). Ocorre, então, o que Habermas chama de desengate entre o mundo sistêmico e o mundo da vida, isto é, "com os subsistemas diferenciados através dos meios de controle, os mecanismos sistémicos criam as suas próprias estruturas sociais isentas de conteúdo normativo, que se erguem por cima do mundo da vida" (HABERMAS, 1978-Tomo II:261).

Uma ação institucional formalmente organizada significa, na

sociedade capitalista, uma ação baseada no burocratismo (Cf. WEBER, 1969-Tomo I), que seria "um sistema racional em que a divisão do trabalho se dá racionalmente com vista a fins" (TRAGTENBERG, 1974:139). A modernização capitalista segue este padrão burocrático de institucionalização, baseado numa racionalidade cognitivo-instrumental, que penetra por entre os respiradouros da vida cotidiana, subsumindo a racionalidade prático-moral e prático-estética à sua lógica depauperadora.

O mundo vivido, reino da razão comunicativa e celeiro

cultural, sofre um processo de racionalização (instrumental) e torna-se dependente de uma mediação dos mecanismos sistêmicos. A penetração da racionalidade sistêmica no mundo vivido adota, então, "a forma patológica de uma colonização interna à medida que os desequilíbrios críticos na reprodução material (isto é, as crises de controle analisáveis em termos de teoria de sistema) só podem ser evitado ao preço de perturbações na reprodução simbólica do mundo da vida (ao preço de crises, posto que `subjetivamente' são vivenciadas como ameaças à identidade, ou de patologias)" (HABERMAS, 1987-Tomo II:432).

A colonização do mundo da vida, através da mercantilização

das práticas morais e do burocratismo das normas sociais, produz a sua fragmentação, "o esvaziamento cultural e a coisificação, a perda de sentido e de liberdade, a subsunção patogênica da esfera pública e privada" (SIEBENEICHIER, 1989:153), etc. Assim, a racionalização progressiva do mundo da vida determinou o "desencanto" do mundo e uma perda de sentido geral das coisas, isto é, o mundo da vida se torna cada vez mais dominado pelo tecnicismo.

Por outro lado, com a profanação completa da cultura

moderna, ocorre uma "nivelação de racionalidade entre o âmbito de ação profano e uma cultura definitivamente desencantada, esta

Page 60: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

última perdendo aquelas propriedades que a capacitavam para assumir funções ideológicas" (HABERMAS, 1987-TomoII:499).

Na verdade, podemos encontrar três determinações para a

impossibilidade da existência da ideologia no mundo da vida. A primeira, e mais básica, estaria relacionada à subsunção do sacro na vida cotidiana moderna (HABERMAS, 1987-Tomo II:499), na qual vem se perdendo a aura do sacro e volatizando-se "esse tipo de produção da imaginação criadora que foram as imagens de mundo" (HABERMAS, 1987-Tomo II:500).

Desaparece, assim, a possibilidade de representações

globais, totalizadoras e integradas, como são as ideologias, isto é, impossibilita-se a existência daquelas visões de mundo que Gramsci identificou com o conceito croceano de religião (Cf. GRAMSCI,1966).

A segunda determinação para o "fim das ideologias" no mundo

da vida se refere à institucionalização e à profissionalização das esferas de conhecimento do cotidiano, produzindo uma autonomização da ciência, da moral e da estética. Tais instâncias, separadas uma das outras e da sociedade, normatizam-se como uma "cultura de especialistas" - distante do público e incapaz estruturalmente de socializar os seus conhecimentos.

O fetichismo institucional do saber instrumentaliza as

estruturas comunicativas e de conhecimento do cotidiano, empobrecendo-o culturalmente e esvaziando a capacidade reflexiva das produções ideativas dos indivíduos. O modo de vida do cotidiano se torna um tanto naturalizado e automático, submetendo-se às interpelações estandardizadas dos saberes dos especialistas. A racionalização progressiva do mundo da vida se exerce através de uma restrição sistemática da comunicação

(HABERMAS, 1987-Tomo II:264). Assim, o saber cristalizado no fetiche institucional se

apropria da capacidade de refletir sobre a realidade e, ao mesmo tempo, torna-se o único capaz de produzir representações totalizadoras e integradas, ou seja, monopoliza a produção de ideologias. O mundo da vida, desse modo, recebe de fora as construções ideológicas, que instrumentalizam os significados, as condutas e os comportamentos da vida cotidiana. O cotidiano, ironicamente, perde a capacidade de produzir ideologias, mas ganha em alienação.

As instrumentalizações sistêmicas das estruturas

comunicativas do mundo da vida não são percebidas enquanto tais,

Page 61: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

possuindo um caráter ilusório alicerçado numa consciência objetivamente falsa. Assim, "os ataques do sistema no mundo da vida, que alteram a estrutura dos plexos de ação de grupos socialmente integrados, têm de permanecer ocultos. As coações dominantes da reprodução que instrumentalizam o mundo da vida, sem diminuírem a aparência de autarquia desse mundo, têm, digamos assim, de se ocultar nos poros da ação comunicativa" (HABERMAS, 1987-Tomo II:264).

A "falsa consciência" não se expressaria como ideologia,

isto é, como interpretações globais e totalizadoras, uma vez que o mundo da vida teria perdido a capacidade de produzir ideologias. A camuflagem das contradições da realidade se efetua, justamente, pela incapacidade da consciência de evitar a sua fragmentação. A "falsa consciência" no mundo da vida, assim, realiza-se como uma consciência fragmentada (Cf. DEVEREUX, apud PELBART, 1989:199). A hipopercepção da alienação não é mais realizada por um discurso integrado e totalizador, que produza um silêncio sobre as contradições da realidade social, e, sim, pela ausência de qualquer discurso ou, pelo menos, por um discurso estilhaçado em mil pedaços.

Ora, "o mundo da vida se constitui sempre na forma de um

saber global intersubjetivamente compartilhado por seus membros; e sendo assim, o equivalente funcional da ideologias, do qual já não se pode dispor, poderia simplesmente consistir em que o saber cotidiano que se apresenta sempre na forma totalizadora permanece difuso (...). A consciência cotidiana fica despojada de sua força sintética, fica fragmentada" (HABERMAS, 1987-Tomo II:501).

Desse modo, as duas condições que determinam a inexistência

da ideologia no mundo da vida são extremamente alienantes, embora a terceira determinação seja positiva. O advento da modernidade, nesse sentido, patrocinou o surgimento de uma racionalidade comunicativa "que emancipou o homem do jugo da tradição e da autoridade, e permitiu que ele próprio decidisse, sujeito unicamente à força do melhor argumento, que proposições são ou não aceitáveis, na tríplice dimensão da verdade (mundo objetivo), da justiça (mundo social) e da veracidade (mundo subjetivo)" (ROUANET, 1989:14).

A modernidade, como toda produção histórica humana, possui

uma ambivalência estrutural, isto é, produz um potencial de emancipação, de um lado, e um potencial de alienação, de outro. A modernidade, do ponto de vista da emancipação, tem como uma das suas características fundamentais o pluralismo, uma vez que

Page 62: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

o processo de racionalização cultural foi tornando relativas as bases de produção de imagens de mundo, calcadas no dogmatismo.

Assim, a verdade tornou-se relativa, pois, agora, ela "não

pode encontrar-se em uma só teoria ou ponto de vista, mas distribui-se necessariamente pelas diversas teorias e pontos de vista, só podendo portanto ser recuperada através da plena consideração do conjunto das teorias e pontos de vista, tanto existentes como possíveis" (DASCAL, 1989:221).

Por outro lado, uma pluralidade de verdades implica

necessariamente uma pluralização de interpretações do mundo, isto é, não existiria uma ideologia que esgotasse todo o conteúdo normo-axiológico da sociedade. Pois, "o moralmente bom, como Aristóteles já advertira, acertadamente, não é um ponto mas, sim, um campo com diversos pontos possíveis de decisão correta, ora igual, ora aproximadamente" (HELLER & FEHER, 1985:123).

A verdade, assim, não seria a condensação do único, mas um

largo espectro de possibilidades onde se alojaria o diverso. Não mais existiriam, em conseqüência, interpretações globais que pudessem totalizar universalmente e subordinar todas as interpretações de mundo existentes; se tal fato pudesse ocorrer, como parece já ter acontecido, isso nada mais seria do que o produto de uma reificação do mundo da vida, como, por exemplo, o nazi-fascismo e o comunismo totalitário.

Enfim, a concepção de ideologia, aqui sustentada, é muito

"negativa". Devemos ressaltar, porém, que construímos tal conceito em função do fetichismo institucional, isto é, em função de um processo de alienação. O conceito de ideologia pode ser visto, também, do ponto de vista da emancipação, isto é, ele reproduz o jogo dicotômico da modernidade entre a alienação e a emancipação.

Assim, na verdade, a distinção entre um momento alienado e

outro emancipativo seria de conteúdo metodológico. Com efeito, a alienação e a emancipação são momentos de um mesmo processo histórico, contraditório e ambíguo, como a modernidade, que, para Habermas, se dicotomizaria numa modernidade cultural e noutra sistêmica (Cf. HABERMAS, 1985).

Assim, entenderíamos o fetichismo institucional como uma

tendência estrutural da sociedade tardo-capitalista, embora percebamos, também, uma contra-tendência de encontro ao fetichismo na ciência, na moral e na estética, expressada, por

Page 63: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

exemplo, pelos movimentos de renovação moral e estética do espaço público e político e de socialização pedagógica das conquistas científicas.

O conceito de ideologia, do ponto de vista da emancipação,

poderia ser apropriado de forma "positiva". Um saber institucionalizado como, por exemplo, a ciência, poderia representar uma reintegração da consciência fragmentada do cotidiano e, ao ser socializado no mundo da vida, ao invés de colonizá-lo com uma racionalidade instrumental, libertá-lo-ia do seu estado hipobúlico através de uma razão libertária, susceptível de brotar de novos espaços públicos, mediada pela intelectualidade.

A ideologia, nesse caso, seria o que chamamos de "ideologia

reconstrutora", isto é, uma interpretação global do mundo suficientemente relativa para ser pluralista - uma espécie de unidade do diverso.

Mas, afinal de contas, quais seriam o papel e a localização

da representação social nessa concepção de ideologia? A representação social constitui um dos conceitos

fundamentais do mundo da vida e do cotidiano, possuindo uma homologia funcional com a ideologia. Por um lado, expressa a fragmentação da consciência cotidiana; por outro, expressa o poder simbólico de constituição da realidade social.

Assim, existiria um intercâmbio incessante entre a

representação social e a ideologia. O discurso fetichista colonizaria o mundo vivido com uma racionalidade instrumental, enquanto que a representação social impediria o fetichismo das instituições e dos saberes institucionalizados (Cf. MOSCOVICI, 1991:82); a ideologia como razão que emancipa, por sua vez, reintegraria a consciência fragmentada do cotidiano, ao passo que a representação social expressaria a fragmentação da consciência cotidiana.

Page 64: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Capítulo III - PROBLEMATIZAÇÃO E METODOLOGIA 1. TRABALHO DE SÍSIFO a) O "senso comum" Segundo Moscovici, a representação social é um conceito

fundamental para o entendimento do "senso comum"; através dele, pode-se construir uma epistemologia "popular" em contraposição a uma epistemologia científica. O mundo moderno reproduziria uma bifurcação ou uma divergência radical "entre os dois modos de conhecimento ou de aquisição de conhecimentos, um padronizado e o outro não padronizado" (MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:540). Uma dicotomia que, inclusive, vem-se reproduzindo com várias etiquetagens: "lógica e mito, pensamento doméstico e pensamento selvagem, mentalidade lógica e mentalidade pré-lógica, pensamento crítico e pensamento automático" (MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:540).

O "senso comum", ou conhecimento não padronizado,

corresponderia a uma forma de pensamento mais "natural" e

Page 65: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

espontâneo, típico da conversação cotidiana. As pessoas comuns procurariam articular o conhecimento à sua vida, sem pretensão alguma de transcendência e sem necessitar de regras e convenções para pensar. Seria um pensamento "livre", embora fortemente influenciado pela tradição e pelos estereótipos de linguagem (MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:541).

A bifurcação entre a ciência e o "senso comum" foi produzida

por uma sociedade bifurcada: "uma minoria de especialistas e uma maioria de amadores, consumidores de conhecimento adquirido através de uma educação sucinta ou através dos meios de comunicação" (MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:541). Tal divisão, segundo Moscovici, representa a grande diferenciação do mundo moderno, qual seja, a separação da ciência e da técnica da vida cotidiana. Assim, teria ocorrido uma absorção das tradições culturais pelos "especialistas", produzindo uma "cultura de especialistas", encapsulados nas suas instituições e nas suas disciplinas; ao passo que o conhecimento "profano" teria ficado entregue a si mesmo, fragmentado e esvaziado na cultura de massas (MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:541). Em conseqüência, a oposição entre o "senso comum" e a ciência seria menos de ordem lógica ou orgânica do que de ordem social.

O "senso comum" seria "um corpo de conhecimentos fundado na

tradição e enriquecido por milhares de observações e de experiências, sancionadas pela prática" (MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:542). A ciência, inicialmente, evoluiu desse "corpo de conhecimentos", mas, depois, no mundo moderno, apartou-se do "senso comum", chegando a uma ruptura completa; ela destrói e desmonta, peça por peça, o conhecimento não científico que foi produzido, através das gerações, pelos homens comuns (MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:543).

De tal perspectiva, o "senso comum" possuiria um

conhecimento de "primeira mão", baseado na experiência social comum, e outro, de "segunda mão", dominante no mundo moderno, proveniente da absorção do conhecimento científico (MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:544). As representações sociais, nesse sentido, seriam produzidas pelos agentes formadores de opinião, através da difusão, da propagação e da propaganda.

A partir do exposto, podemos tecer, agora, algumas

observações críticas à noção de "senso comum". O "senso comum" é visto como um modelo cognitivo semelhante

às estruturas mentais da mentalidade pré-lógica de Lévy-Bruhl e da criança sociocêntrica de Piaget (Cf. MOSCOVICI, 1989-A).

Page 66: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Certamente, o "senso comum" pode ser considerado uma "estrutura mental", embora seja prudente evitar paralelismos precipitados entre "imagens de mundo" e o desenvolvimento cognitivo do Eu. Assim, devemos ter os seguintes cuidados neste tipo de comparação:

" - É fácil se deixar desviar pela confusão entre estruturas

e conteúdos: a consciência individual e a tradição cultural podem coincidir no conteúdo, sem por isso expressarem as mesmas estruturas de consciência. - Nem todos os indivíduos são igualmente representativos do grau de desenvolvimento de sua sociedade: nas sociedades modernas, por exemplo, o direito tem uma estrutura universalista, ainda que muitos membros dessas sociedades não sejam capazes de julgar, deixando-se guiar por princípios. Ao contrário, nas sociedades arcaicas, houve indivíduos que dominavam operações formais de pensamento, embora a imagem mítica do mundo coletivamente partilhada correspondesse a um estágio inferior do desenvolvimento cognoscitivo. - O modelo ontogenético de desenvolvimento não pode refletir as estruturas da história do gênero, pelo simples fato de que as estruturas coletivas de consciência valem tão-somente para os membros adultos da sociedade: os estágios de interação incompleta, que surgem ontogeneticamente em primeiro lugar, não encontram correspondência nem mesmo nas sociedades mais antigas, já que as relações sociais como a organização familiar tiveram desde o início a forma de expectativas generalizadas de comportamento, ligadas de modo complementar (ou seja, a forma de interação incompleta). - Finalmente, são diversos os pontos de referência, na história individual e na história do gênero, com base nos quais são avaliadas as mesmas estruturas de consciência: a conservação do sistema de personalidade coloca imperativos inteiramente diversos dos que são colocados pelo sistema social" (HABERMAS, 1983:18).

Seria preferível, assim, produzir homologias abstratas entre

modelos cognoscitivos e o desenvolvimento do Eu. Temos a impressão de que a teoria da representação social, em alguns momentos, possui o objetivo de encontrar invariantes cognitivos no "senso comum" e, com isso, concebê-lo como uma categoria atemporal.

Vale a pena repetir as diferenças entre o pensamento

informativo (científico) e o representativo, que seriam as seguintes:

Page 67: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Pensamento informativo: 1) formado por conceitos e signos; 2) possui validade empírica; 3) dominado pelo "como"; 4) apresenta tipos de inferência fixos; 5) limitado nas sucessões dos atos mentais; 6) possui apenas algumas formas sintáticas disponíveis.

Pensamento representativo: 1) formado por imagens e símbolos; 2) possui validade consensual; 3) dominado pelo "porquê"; 4) pluralidade de tipos de inferência; 5) flexibilidade na sucessão de atos mentais; 6) várias formas sintáticas disponíveis.

Ora, M. Bloch encontrou as seguintes diferenças entre os

atos de fala, formalizados pela práxis ritual, e os do cotidiano, na organização tribal:

"Atos de fala formalizados:

1) padrões fixos na tonalidade da voz; 2) limitação na eleição da entonação; 3) excluem-se algumas formas sintáticas; 4) vocabulário parcial; 5) rigidez na seqüência dos atos de fala; 6) as ilustrações têm fontes limitadas (escrituras, provérbios, etc); 7) aplicam-se conscientemente regras estilísticas em todos os níveis. "Atos de fala cotidianos: 1) eleição da tonalidade da voz; 2) eleição da entonação; 3) possibilidade do uso de todas as formas sintáticas; 4) uso indiscriminado do vocabulário; 5) flexibilidade na seqüência dos atos de fala; 6) não são muitas as ilustrações que se tomam de um corpo fixo de analogias aceitáveis; 7) não se adotam conscientemente regras estilísticas" (BLOCH, apud HABERMAS, 1987-Tomo II:268).

As semelhanças dos modelos são gritantes e,

conseqüentemente, poderíamos relacionar o pensamento representativo com os atos de fala do cotidiano, de um lado, e o pensamento informativo com os atos de fala formalizados da práxis ritual, de outro.

Page 68: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Na verdade, não somos contra a procura de invariantes

cognitivos entre o "senso comum" primitivo e o moderno, mas sim, a produção de um modelo atemporal reproduzível em qualquer sociedade histórica. Em suma, contestamos a suposição de que exista na história cognitiva humana uma dicotomia eterna e invariável entre um pensamento padronizado e um não padronizado.

Outrossim, não existiu um "senso comum", enquanto tal, nas

sociedades primitivas, uma vez que ele só começou a existir a partir do surgimento histórico do seu oposto, a ciência. Situar o "senso comum" historicamente significa, desse modo, examiná-lo como uma percepção social e, ao mesmo tempo, priorizar na análise o seu conteúdo e não a sua forma cognitiva. O perigo de cair num "cognitivismo" seria o de tornar o conceito de "senso comum" tão formal que passaria por cima de suas especificidades históricas e das diferenças de percepção em cada segmento social - não parece existir apenas um "senso comum", mas vários. Além disso, a formalização do conceito de "senso comum" pode transformá-lo num conceito empirista, em que se perderiam de vista a sua história, as suas determinações culturais, etc.

Moscovici compreende a ciência e o seu saber como o universo

da desumanização e da indiferenciação, isto é, como um universo reificado (AMERIO, 1991:104). Ele transforma, de forma polêmica, uma tendência da sociedade moderna num fato irredutível. Assim, no universo reificado da ciência, "as coisas são a medida do homem, e a sociedade é vista como um sistema de classes e de papéis na qual os membros são desiguais" (AMERIO, 1991:104), enquanto que, no universo consensual da representação social e do "senso comum", "o homem é a medida de todas as coisas e a sociedade é vista como um grupo de indivíduos iguais e livre" (AMERIO, 1991:104).

O problema de tal formulação é que vivemos concretamente num

sistema de classes e de papéis sociais distintos, em que a reprodução material e simbólica produz uma evidente desigualdade entre os indivíduos, o que diminuiria bastante o papel da representação social (AMERIO, 1991:104). Ou, ainda, não fica claro quem são, afinal, os agentes produtores, de fato, das representações sociais, problema, aliás, não muito bem resolvido por Moscovici (Cf. MOSCOVICI, 1986).

Nesse sentido, tanto o "senso comum" como os agentes

formadores de opinião não dariam conta da criatividade e do papel constituinte do real que a representação social possui e que tanto foi ressaltado por Moscovici.

Page 69: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Ademais, a noção de ciência empregada por Moscovici

identifica-se mais com a ciência natural do que com a ciência social. Ora, se considerarmos o fetichismo institucional como uma tendência, e não como um fato irredutível, poderemos inferir que, em situações de não reificação do saber, seria possível uma dialética mais fecunda entre a ciência e as formas de conhecimento do "senso comum". E, se considerarmos que a ciência social sofre mais interpelações do "senso comum" do que a ciência natural, uma vez que os seus objetos já são previamente estruturados simbolicamente pelos indivíduos na sociedade, poderemos perceber interpelações axiológicas e cognoscitivas do "senso comum" na ciência social.

b) Representação social e cotidiano Para tentar resolver alguns problemas abordados na

discussão, acima iniciada, pretendemos aproximar o conceito de representação social ao de cotidiano. Achamos necessário, assim, um "alargamento" do primeiro, relacionando-o com o segundo, sendo este último considerado como a dimensão constitutiva do mundo da vida e que realiza a reprodução social através da reprodução dos próprios indivíduos.

O cotidiano é uma dimensão constitutiva da sociedade e, num

certo sentido, é uma correia de transmissão da intersubjetividade do mundo da vida. Se, anteriormente, analisamos a colonização sistêmica como um modo de penetração do mundo sistêmico no mundo da vida, afirmamos, agora, que o cotidiano é a forma através da qual o último penetra no primeiro. Assim, mesmo que o sistema prescinda de mecanismos normativos, não seria possível a sua sustentação num vazio intersubjetivo, uma vez que, por mais reificados que sejam o poder e o dinheiro (mecanismos sistêmicos), eles não deixam de ser relações sociais.

Acreditamos, dessa forma, que a representação social é uma

modalidade de produção ideativa típica da cotidianidade. O conceito de cotidiano eliminaria qualquer ilusão idealista sobre a produção da representação social, pois esta teria a sua inscrição material na cotidianidade. Somente, assim, podemos afirmar que a representação social é uma construção do real que "diz respeito à elaboração mesma de um objeto social pelos membros de nossa sociedade" (HERZLICH, 1975:24).

O cotidiano é um conceito de totalidade e envolve toda e

qualquer atividade humana. Assim, "a vida cotidiana é a vida de

Page 70: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico. Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humano-genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao contrário, não há nenhum homem, por mais 'insubstancial' que seja, que viva tão-somente na cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente" (HELLER, 1985:17).

A cotidianidade se expressa pela heterogeneidade, o

imediatismo e a superficialidade extensiva (NETTO & FALCÃO, 1987:65), perpassando atividades como "a organização do trabalho e da vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a purificação" (HELLER, 1985:18). Nesse sentido, a relação entre o pensamento e a ação é direta e espontânea, pois o sujeito necessita de respostas funcionais aos conjuntos de fenômenos que o rodeiam, isto é, não necessita de um conhecimento da estrutura das relações em que está inserido, mas sim de uma capacidade de manipular as diversas variações que surgem no seu ambiente.

Ora, a realidade se apresenta aos homens "como o campo em

que se exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade" (KOSIK, 1976:10). No mundo vivido e cotidiano, o sujeito não percebe a realidade "sob o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente" (...); ao contrário, "o indivíduo 'em situação' cria suas próprias representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade" (KOSIK, 1976:10).

O cotidiano é o mundo da rotina, em que a repetição das

atividades do "dia-a-dia" permite a recriação permanente da vida social. A rotina é basicamente expressa, na consciência dos indivíduos, como uma consciência prática ou seja, a vida cotidiana engaja, constantemente, a capacidade reflexiva dos indivíduos; mas, "a reflexão somente opera, em parte, ao nível discursivo: o que os agentes sabem sobre o que fazem e por que o fazem - sua competência enquanto agentes - depende da consciência prática, a qual é tudo aquilo que os atores conhecem de forma tácita, tudo aquilo que sabem fazer na vida social sem que, no entanto, possam exprimi-lo diretamente de forma discursiva" (GIDDENS, 1987:33).

Em suma, ao percebermos a representação social como uma

modalidade expressiva da consciência prática e como o modo de

Page 71: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

produção ideativo típico da cotidianidade, podemos alargar, com isso, o conceito de representação social, cujo movimento, nesse sentido, transcenderia a uma mera tipicidade cognitiva do "senso comum" e estaria inscrito, de vez, na práxis social.

c) Ciência, "senso comum" e paradigma Analisaremos, aqui, embora por tentativas e experimentando

alguns conceitos, as relações entre o saber científico e as formas de conhecimento do cotidiano. Vale frisar que nosso intuito não é definir a natureza da ciência e nem esclarecer, de uma vez por todas, as suas relações com as formas de conhecimento do cotidiano.

Estamos bem longe disso! No fundo, nosso movimento parecerá,

muito mais, com o jogador que, após driblar vários adversários (conceitos), chuta a bola para fora diante do gol escancarado (verdade). Esperamos que o simples fato de termos conseguido chegar na pequena área represente, ao menos, alguma coisa.

Numa primeira aproximação do problema, diríamos que não

existe uma ruptura entre o "senso comum" - identificado com as formas de conhecimento cotidiano - e a ciência. Esta, inserida num conceito "alargado" de ideologia, restaria como uma espécie de "região", surgida e desenvolvida historicamente no solo ideológico, e que teria alcançado, aos poucos, a sua autonomia relativa. O conhecimento científico, assim, não deve ser visto como algo externo à práxis social; uma ciência pela ciência, por exemplo.

Na verdade, compreender a natureza da ciência exige o

conhecimento de sua inscrição específica e de sua eficácia própria na práxis social. As relações entre o "senso comum" e a ciência seriam entendidas como uma circularidade, em que o ponto de partida estaria em algum lugar indefinido do círculo, talvez numa região disforme onde não poderíamos distinguir ciência de "senso comum".

Tal concepção teria semelhança com a formulação de Bakhtin

sobre a circularidade da cultura, na qual existe uma influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura hegemônica (Cf. BAKHTIN, 1986). Dessa forma, a ciência e o "senso comum" seriam as duas metades de uma totalidade cindida, que sempre se recompõe na linha de fuga da produção social do conhecimento humano.

Page 72: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Podemos, de forma geral, concordar sobre a gênese da ciência como uma região surgida do "continente ideológico". Entretanto, fica-nos a dúvida quanto ao seu processo de expansão e independência, pois, com o seu desenvolvimento e sua "regionalização", a ciência se destacou, por assim dizer, da ideologia e, evidentemente, do "senso comum". Tal posição, contudo, não consegue explicar qual é, afinal de contas, a diferença entre o "senso comum" e a ciência.

Seria a diferença apenas quantitativa? Existiriam somente

continuidades entre o "senso comum" e a ciência? Ora, os dois lidam com "fatos". Um empirista diria que a

ciência sistematiza, cataloga e que sua teoria da causalidade é mais abrangente do que a do "senso comum"; não haveria, pois, uma diferença qualitativa entre o conhecimento em geral e o científico. Desse modo, o conhecimento surgiria da sensação para, depois, tornar-se racional. Essa ligação entre o sentir (percepção) e o racional se manteria pela ditadura dos fatos - império da intuição e da percepção.

Uma posição anti-empirista, ao contrário, afirmaria que o

conhecimento científico não tem origem no sensível, mas sim, no racional. Ou seja, a origem do conhecimento não é o real, pois o conceito não se produz a partir do dado e, sim, em direção ao fato. Desse modo, o conhecimento da realidade seria um processo comandado pelo conhecimento e condicionado pela realidade. Onde estaria o "senso comum" nesse processo? Simplesmente não "está", pois o objeto do conhecimento é construído e o movimento dessa construção é teórico.

Contudo, tal posição é bastante centrada no processo interno

da produção científica e não causa espanto que, em linhas gerais, ela seja sustentada por Bachelar (Cf. BACHELAR, 1978).

Vejamos, por exemplo, um seu "discípulo", Canguilhem, para

quem a epistemologia sempre é história e histórica, embora se trate de uma história conceitual: o conceito tem um privilégio original, pois ele é o que melhor exprime a racionalidade científica. Uma história interna à ciência que rompe com as versões contínuas e factuais do positivismo, mas que não problematiza as relações do conhecimento científico com o seu Outro, isto é, os conhecimentos não científicos, embora, em diversas passagens, Canguilhem relacione a história conceitual com as condições sociais e políticas da época.

Page 73: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Precisaríamos, na verdade, de um conceito que problematizasse as relações entre o conhecimento científico e os outros modos de conhecer. Talvez a solução esteja na utilização do conceito de paradigma de Kuhn, entendido, aqui, como um complexo "sui generis" de dados nocionais, de predisposições, de atitudes e de valores (Cf. KUHN, 1975). Nesse sentido, o paradigma não seria um sistema fechado, incomunicável com o mundo externo, mas estaria inscrito num determinado solo "epistemológico" e cultural e inserido, desta forma, numa totalidade mais vasta, em que não existiria uma dicotomia entre "internos e externos" ou uma hierarquia que colocasse a ciência num trono emoldurado. Em qualquer situação, os valores perpassariam longitudinalmente o conhecimento científico, resgatando o diálogo com o "mundo vivido" e as "representações sociais".

Mesmo assim, como escolher, dentro da formulação de Kuhn, um

conceito de paradigma? Margaret Masterman, por exemplo, recenseou 21 sentidos diferentes para o termo "paradigma" no livro de Kuhn, dentre os quais: "designar uma realização científica universalmente reconhecida que fornece modelos e soluções para uma comunidade de profissionais; significa um mito; aparecer como 'constelação de perguntas' ou como `tradição' ou ainda como 'modelo'; aparecer como analogia; como especulação metafísica com capacidade produtiva no domínio da ciência; como dispositivo aceite por uma lei comum; como fonte de instrumentos; como figura de 'gestalt' determinando mundos autônomos de percepção; como ponto de vista epistemológico geral; como definição de um campo específico da realidade..." (MASTERMAN, apud COELHO, 1982:42).

Outra dificuldade quanto à utilização do conceito de

paradigma, em Kuhn, consiste tanto na sua tendência a ser fechado, interno à produção científica, e não "aberto" às influências do exterior - existe o "interno" e o "externo" em Kuhn -, como na problematização de valores da comunidade científica e, não, do "mundo vivido". Assim, ele é, antes, aplicado às ciências naturais do que às ciências sociais, estas, como parece entender Kuhn à maneira de um positivista, sendo pré-paradigmáticas, isto é, pré-científicas; contudo, isso não parece tão conclusivo para ele, quando se refere, por exemplo, a paradigmas filosóficos ao analisar Descartes.

Além disso, usa-se, atualmente, o conceito de paradigma em

literatura , bem como, no seu "Novas regras do método sociológico", Giddens se apropria - apesar de fazer algumas modificações no conceito - do uso do paradigma em Sociologia,

Page 74: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

interpretando-o como "quadros de significância" (GIDDENS, 1978:56). Para ele, não existiria, num dado momento, apenas o monopólio de um paradigma, mas, sobretudo em ciência social, seria comum existir uma situação multi-paradigmática, concordando, assim, com a crítica de Bourdieu a Kuhn (Cf. COELHO, 1982:42).

Não somente os paradigmas não são incomunicáveis, bem como

"conhecer um novo paradigma é abarcar um novo quadro de significância no qual as premissas familiares são alteradas: os elementos do novo esquema são aprendidos através da alusão metafórica ao velho" (GIDDENS, 1978:56).

Mesmo assim, toda essa discussão percorre somente os

caminhos sinuosos da ciência, de modo que a "metáfora" tem um duplo papel na evolução científica, explicando, por um lado, a passagem de um paradigma para um outro, através de mecanismos de transposição que permitem velhas palavras dizerem coisas novas, e, por outro, explicando a persistência "irracional" de alguns cenários conceituais num determinado ambiente científico. Aplicar a função metafórica para compreender a dialética entre a ciência e o "senso comum" exigiria, no caso, fazer algumas modificações no conceito de paradigma para adequá-lo aos nossos objetivos, embora pagando o preço de descaracterizar o mesmo.

Tal descaracterização ocorreria, fundamentalmente, pela sua

migração de uma teoria a outra e de um campo epistemológico a outro; contudo, sofrer modificações não significa eliminar necessariamente a sua utilidade. Assim, o conceito de paradigma, quando de sua transposição, precisará incorporar a interferência do axiológico na produção científica. A aproximação, nesse sentido, do conceito de paradigma em relação ao conceito de episteme, de Foucault, seria pertinente, posto que o primeiro, assim como o segundo, não deixa de ser um sistema de regras de formação do discurso.

Por outro lado, o que o conceito de episteme traria de

interessante para o paradigma é a diferença que postula entre o saber, conhecimento do Homem, e a ciência, conhecimento da Natureza. Ao mesmo tempo, o conceito de episteme tenta descobrir as condições históricas de possibilidade dos discursos e das práticas que dizem respeito a um determinado saber.

Foucault, por exemplo, ao analisar o saber psiquiátrico, não

se restringe ao saber médico, mas amplia a análise para as práticas de internamento e as instâncias sociais - Igreja, Medicina, Justiça, etc; não apenas analisa o saber médico sobre

Page 75: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

a doença mental mas, também, a sua percepção social (Cf. FOUCAULT, 1978), postulando, inclusive, que a última foi fundamental para o surgimento da Psiquiatria, polemizando, conseqüentemente, com as histórias oficiais dessa disciplina, que a consideram como uma conquista da razão médica.

A discussão sobre a percepção social permite recuperar,

também, as influências do "senso comum". A formação social da consciência não seria algo inerte e submisso; ao contrário, ela agita-se, lança-se, transborda nos saberes estabelecidos. Tal "agitação" propõe novos problemas para o saber, bem como, e isso é fundamental, traz à baila o que Thompson chama de experiência

(Cf. THOMPSON, 1981). Em outros termos, a experiência consubstanciaria as respostas mentais e emocionais de um indivíduo ou de um grupo social - nesse caso, podemos falar, também, de respostas institucionais -, aos acontecimentos e objetos sociais relevantes.

A doença, por exemplo, é um objeto social relevante; ora, se

ela é um monopólio oficial da Medicina, isto não impede a produção de conhecimentos sobre a doença por fora do saber médico ou, mesmo, a formação de uma experiência social a respeito do processo mórbido. A doença é percebida e experimentada por qualquer ser humano e, como seres racionais, os homens e as mulheres refletem sobre o que lhes acontece e ao seu mundo. Suas experiências exercem pressão sobre a consciência social, bem como propõem novas questões e proporcionam "grande parte do material sobre o qual se desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados" (THOMPSON, 1981:16).

O paradigma, assim, estaria acima da teoria, enquanto

conceito mais amplo e difuso; mas, também, abaixo dela, na medida em que seu alcance cognitivo não está conscientizado ou explicitado. De fato, a vivência de um paradigma, segundo Thomas S. Kuhn, é acrítica: "A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômenos; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são vistos" (KUHN, 1975:45).

O paradigma, portanto, não se identifica propriamente com

uma teoria - ele existe, inclusive, à revelia de qualquer teoria - e, sim, com um conjunto de procedimentos, hábitos e instrumentos metodológicos. Determinados conteúdos do paradigma possuem, de certa maneira, algumas analogias com os conteúdos da representação social, que tem, inclusive, um aspecto cognitivo bastante atuante, revelando-se como uma forma de conhecimento,

Page 76: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

ao passo que, no paradigma, o elemento cognitivo atua de forma específica, relacionado a um discurso lógico-formal e racionalista da realidade.

d) Saber médico e ciência Do ponto de vista do conhecimento, a Medicina possui,

internamente, uma divisão que confunde a análise. Na maioria das vezes, ela é negada e, apenas, uma forma de interpretação é mantida; justamente aquela que afirma a exclusividade de um de seus pólos. Alguns, desse modo, realçam somente o seu caráter científico, enquanto outros, simplesmente, o negam, percebendo a Medicina unicamente como uma prática profissional e tendo, como método de conhecimento, a clínica. Na verdade, não podemos negar à Medicina o seu caráter científico, bem como a sua especificidade de saber profissional∗ .

Vale dizer que a segmentação do conhecimento médico pode, em

determinadas circunstâncias históricas, transformar-se num autêntico conflito institucional, quando, por exemplo, o aparelho de formação (sistema hospitalo-universitário), fundamentado na "ciência médica", contrapõe-se ao cotidiano profissional, alicerçado na clínica. Na verdade, desde a "revolução epistemológica" dos meados do século XIX, dentro da qual podemos mencionar o darwinismo, a teoria celular e, principalmente, a medicina experimental (Cf. GRMEK, 1990), a "clínica médica" vem, paulatinamente, sendo subsumida à "ciência médica". Isto é, cada vez mais o diagnóstico clínico, fundado na observação e na escuta do paciente, é subordinado ao "diagnóstico instrumental", assentado na mensuração de fatores etiológicos e no desenvolvimento tecnológico, tais como: gastroscopias, broncoscopias, eletro-encefalogramas,

∗ Aparentemente, tal divisão surge, processualmente, a partir do

século XVII, afirmando-se no século XIX com a Medicina experimental e, depois, com a profissionalização dos médicos. Hoje, esse processo é

visível nas atuais tensões (conflito e adequação) entre a prática médica e as conseqüências das descobertas da Biologia celular. Os dois pólos (científico e profissional) da Medicina podem, pontualmente, assumir

relações de complementariedade. Na verdade, dividir a Medicina em "ciência" e "profissão" não é nem um pouco original. Claude BERNARD (1966), por exemplo, já falava, no século XIX, numa Medicina

"experimental" e noutra como "arte".

Page 77: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

cardiogramas, análises de laboratório, o scanner, a ressonância magnética nuclear, etc .

De qualquer forma, o método clínico não pode ser

identificado ao método científico. O médico, na rotina profissional, examina o paciente baseando-se em informações que indicam os mecanismos pelos quais são gerados os sintomas. Nesse sentido, o médico aplica um conhecimento científico, embora não esteja interessado, primariamente, em desenvolver, ou transformar, as teorias empregadas na atividade clínica. Em vez disso, ele usa as teorias existentes para explicar as doenças e curar ou tratar os pacientes.

A clínica, é certo, pode descobrir novas doenças, isto é, um

conjunto articulado de sintomas (novos ou articulados de forma original) e que, inicialmente, tem o status de "síndrome". Mas, ela é incapaz de descobrir os mecanismos causais que geram os sintomas e explicam a doença. E, sem dúvida, tais situações, como a descoberta de novas doenças, criam uma motivação poderosa na direção de novas pesquisas em Medicina.

Contudo, a clínica médica, por si mesma, não tem como

objetivo a geração de novos conhecimentos. Ela parece ser, na verdade, um sistema interpretativo que relaciona, de forma causal, um ou vários sintomas a uma ou mais lesões ou disfunções, mas sempre a posteriori, isto é, os mecanismos causais já foram descobertos e inseridos no conhecimento clínico, via "ciência médica".

O médico, mesmo o especialista, não é um cientista e, sim,

um profissional que aplica o seu conhecimento na vida cotidiana, mantendo um contato diário com as pessoas, suas vidas e concepções. O médico seria formado para uma vida prática e, não, para uma reflexão crítica sobre o seu saber e o seu objeto. É raro um médico se perguntar sobre o que é doença; na verdade, ele não precisa "saber" e, sim, "detectar", "procurar", "examinar", "olhar", "diagnosticar", etc.

O paradoxal é que o médico "luta" o tempo todo com os seus

doentes para legitimar o seu conhecimento, bem como isolar as visões "profanas" de doença. Tal luta não é propriamente persuasiva - pelo menos no cotidiano e excetuando a "saúde pública" -, baseada no confronto entre noções de doença, mas, sim, "técnica", alicerçada na eficácia, na produtividade e na tecnologia de tratamento dos médicos. Estes não precisam propriamente "pensar" sobre a doença, desde que a imensa força

Page 78: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

da legitimidade social da sua profissão torna a sua visão nosológica, a priori, verdadeira.

O trabalho profissional médico exige, por natureza, pouca

reflexão teórica, sendo, basicamente, um trabalho de aplicação que difere marcadamente, por exemplo, do trabalho do pesquisador. Assim, "na medida em que a prática médica faz tão pouco uso da ciência, esse uso obedece a uma orientação característica: ele se esforça mais em aplicá-la do que em criá-la ou nela contribuir. Dado que esse trabalho se concentra em problemas concretos e sua solução prática, é preciso que ele continue, mesmo se faltando-lhe um fundamento científico: baseado na intervenção, ele é independente da existência de conhecimentos atestados" (FREIDSON, 1984:172).

O médico baseia a sua prática menos no saber do que na ação,

realizando-a como um fim em si mesmo. Nesse sentido, ele é um pragmático, que confia nos "resultados" aparentes de sua ação e, assim, acumula o seu conhecimento menos a partir de um saber existente do que de sua experiência direta e pessoal; daí, inclusive, a gigantesca importância que o médico projeta no tratamento. Sua técnica é toda baseada na racionalidade clínica, que não é, como a científica, um instrumento destinado a explorar ou a descobrir princípios gerais e, sim, um método de triagem e de estabelecimento das interconexões entre os fatos ou sintomas visíveis e as hipóteses diagnósticas.

Em conseqüência, a "teoria" do médico se constrói em função

de sua prática médica, não sendo nada mais do que generalizações da sua experiência clínica, isto é, "de uma experiência pessoal necessariamente marcada pelas prevenções do indivíduo. Como muito bem o disse Oken, a 'experiência clínica se reduz freqüentemente a uma mitologia pessoal sustentada por um ou dois incidentes ou pelas histórias de colegas" (FREIDSON, 1984:180).O conhecimento do médico, assim, possui um parentesco com o "conhecimento prático"; isto é, pode ser visto, lato sensu, como uma representação social.

Posto isto, como é possível pensar a Medicina Clínica e

Profissional? Talvez, a Medicina Clínica seja um tipo de saber, e não

propriamente uma ciência, isto é, seria, provavelmente, um conjunto de elementos que caracterizaria uma prática discursiva. Assim, segundo Foucault, "a este conjunto de elementos, formados de maneira regular por uma prática discursiva e que são indispensáveis à constituição de uma ciência, apesar de não se

Page 79: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

destinarem necessariamente a lhe dar lugar, pode-se chamar saber" (FOUCAULT, 1967:220).

Desse modo, "um saber é aquele de que podemos falar em uma

prática discursiva que se encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que adquirirão ou não um estatuto científico (o saber da Psiquiatria, no século XIX, não é a soma do que se acreditava verdadeiro, é o conjunto das condutas, das singularidades, dos desvios de que se pode falar no discurso psiquiátrico); um saber é também o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso (neste sentido, o saber da Medicina clínica é o conjunto das funções de observação, integração, deciframento, registro, decisão, que pode exercer o sujeito do discurso médico); um saber é também o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, são aplicados e se transformam (...); finalmente, um saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso (...). Há saberes que são independentes das ciências (...), mas não há saber sem uma prática discursiva definida, e toda prática discursiva pode-se definir pelo saber que ela forma" (FOUCAULT, 1967:221).

Por outro lado, definindo-a como um saber e não como uma

ciência, permite-se a entrada das "influências axiológicas"; referindo-a como um saber profissional, diminui-se a sua "objetividade" ou pretensão à verdade (ou à ciência) - de fato, o médico tem como meta principal o tratamento.

Afirmando a Medicina como uma "profissão de intervenção", ao

invés de uma "profissão de saber", sustentamos que ela tem uma aplicação prática evidente num setor importante da população e, conseqüentemente, impõe-se a necessidade de um "controle oficial" sobre a formação profissional e uma proteção contra médicos incompetentes e indivíduos não-médicos.

Cria-se, desse modo, uma situação em que os médicos possuem

um monopólio legal sobre o seu trabalho - a Medicina é um "mercado fechado" -, formando uma fronteira nítida entre profissionais e não-profissionais, ao mesmo tempo em que, pela aplicação prática de seu saber na vida cotidiana, a Medicina mantém um contato diário com as pessoas comuns, sua vida e suas concepções.

e) Saber médico e paradigma

Page 80: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Segundo Laplantine, "o pensamento médico oficial de nossa sociedade, justamente aquele que se beneficia da maior legitimação social, não seria compreensível sem seu modelo epistemológico de referência, as ciências exatas. Mais precisamente, ele se constitui ele mesmo como sendo o intermediário prático da biologia. Seu discurso, coextensivo ao seu objeto, é o biomédico, não conhecendo e nem reconhecendo nenhum outro. E tudo aquilo que não entra no seu campo de saber ou é abandonado às elocubrações do pensamento não científico ou submetido aos seus ditames" (LAPLANTINE, 1992:266).

O médico aparece, em conseqüência, inscrito na

particularização de um conhecimento especializado e formado por dentro de um paradigma epistemológico advindo das ciências naturais, embora o contato com estas (Biologia, principalmente) tenha sido muito proveitoso na história da Medicina. De fato, podemos entender porque a Anatomia, a Fisiologia, a Histologia, a Embriologia, a Neurologia, etc., prescindiram epistemologicamente das ciências sociais, ainda que nas áreas mais "permeáveis" da Medicina (Medicina Social, Epidemiologia, Psiquiatria, predominantemente) sempre existisse - seja de forma explícita ou implícita - a necessidade de introduzir fatores sociais, culturais e psicológicos para o esclarecimento da etiologia, do diagnóstico e da terapêutica da doença.

O paradigma biomédico, em conseqüência, identifica-se ou se

expressa num discurso naturalista, que sempre teve dificuldades de se apossar da determinação sócio-cultural-psicológica de certas doenças, entre as quais, a doença mental.

No trabalho cotidiano do médico, o seu saber, enquanto

paradigma biomédico, raramente é questionado, e as regras que "informam" a prática médica (inclusive a sua teoria) não são transparentes para o médico. A subordinação deste ao paradigma ocorre passivamente, bem como os "produtos" da atividade médica são imunes (pelo menos em parte) à crítica. O paradigma é visto, deste modo, como "natural" - a única visão possível - e absorvido, por assim dizer, "inconscientemente", levando os médicos a se comportarem como o peixe do provérbio chinês: "o último a saber da existência da água".

Devemos lembrar, ainda, que a formação de um médico está

baseada na aquisição de uma "base técnica" - fundamentalmente, na manipulação de meios para combater as doenças - e, não, de uma reflexão (crítica) prático-teórica a nível profissional; portanto, mais suscetível para absorver acriticamente conjuntos de procedimentos, hábitos e técnicas.

Page 81: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Os psiquiatras, diante de uma pergunta cortante como "o que

é doença mental?", responderiam menos de acordo com a sua formação universitária do que com a sua experiência profissional, adquirida na aplicação cotidiana do seu saber. O psiquiatra não "recitaria" a resposta, trazida pelo seu aprendizado universitário, mas, sim, elaborá-la-ia, também, a partir do imediatismo de seu cotidiano profissional, ou seja, produzir-se-ia uma construção profissional da doença mental, que seria nada mais nada menos do que uma representação social específica que inscreveria, no seu âmago, determinações, provenientes do "senso comum" (contato com as diversas representações existentes na sociedade) e do seu próprio meio ambiente. Podemos aventar, portanto, que a prática discursiva da Medicina realiza-se enquanto um saber profissional e possui diversas características que a distinguem de outros saberes.

Mas, como identificar o conhecimento do médico com uma

representação social, mesmo que específica, se existe uma identificação desta com o "senso comum"?

Ora, segundo o próprio Moscovici, é menos importante, na

qualificação da representação social, definir o seu agente ou a sua fonte do que a sua função (MOSCOVICI, 1978:76-77). A representação social teria como função específica a contribuição "para os processos de formação de condutas e de orientação das comunicações sociais" (MOSCOVICI, 1978:77). Em conseqüência, não existe motivo para procurar a representação social num "locus" externo à profissão, desde que o próprio cotidiano profissional do psiquiatra produz as suas representações sociais sobre o objeto de sua prática: a doença mental.

Além disso, uma representação social surge onde houver

perigo para a identidade do grupo social, "quando a comunicação de conhecimentos submerge as regras" (MOSCOVICI, 1978:174) que o grupo se outorgou. Assim, uma pergunta como "o que é doença mental?" atinge diretamente as premissas do saber psiquiátrico, fazendo com que, no fundo, o psiquiatra responda, defendendo-se.

f) Doença e paradigma As doenças e, especialmente, a doença mental podem ser

consideradas como "desvios sociais", e as normas, as regras e o sistema axiológico que "produzem" e "imputam" - o desvio nunca está simplesmente "lá" - tais desvios são construídos, na sociedade moderna, por grupos sociais específicos, relacionados à gestão do controle social; o desvio social, em particular a

Page 82: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

doença, é construído socialmente. O problema, conseqüentemente, é elucidar as características dessa construção: as concepções, as hipóteses, os modos de proceder que modelam a significação do desvio entre os agentes de controle (Cf. FREIDSON, 1984).

Os médicos, na sociedade moderna, são o grupo social

específico encarregado de "atribuir" o desvio à doença. Tal "atribuição" ocorre através, principalmente, da construção profissional da doença, que, a nosso ver, pode ser elucidada pelo estudo das representações da doença entre os médicos.

Uma coisa, assim, é analisar a doença na sua realidade

física; outra, é apreender a relação entre a doença e a sociedade. Quem produz os "sentidos da doença" é o meio social, com a nossa sociedade reservando um lugar privilegiado, nesse processo semiótico, para a Medicina. Dessa forma, doença, do ponto de vista histórico, é o seu status físico + sua significação social. O médico suprime a segunda parcela da soma e, por isso, minimiza a significação social da doença. O médico, em conseqüência, não apenas trata uma entidade física chamada de doença, mas também a impregna, mesmo involuntariamente, de significação social.

Como o médico percebe a doença apenas do ponto de vista do

paradigma biomédico, calcado principalmente na Biologia, ele subsume a significação social da doença ao seu status físico; ou melhor, o médico atribui à significação social da doença um carimbo completamente biológico. A significação social da doença é a sua apreensão como uma entidade biológica. O efeito maior dessa atribuição é pensar que a doença não tem um significado social e esquecer, assim, que o próprio fato dela ser compreendida socialmente como um fenômeno meramente biológico representa, pari passu, uma atribuição social de um significado. A naturalização da doença impede que o ato mesmo de atribuição de significado seja percebido como social. O papel social da doença e do doente é, consequentemente, mitigado.

De todo modo, o problema se torna dramático no que diz

respeito à Psiquiatria, face à dificuldade e ambigüidade na definição do "status" físico da doença mental. Ora, podemos, de uma certa maneira, diferenciar os limites entre o componente orgânico ou funcional de uma doença e a sua significação social; entretanto, no caso da doença mental, não sabemos como os limites se realizam.

O problema não é de insuficiência científica e, sim, de

abordagem epistemológica. Quando encontramos uma patologia

Page 83: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

orgânica, "naturalmente" isolamos a totalidade fisiológica do indivíduo; porém, face a uma psicopatologia, necessitamos colocá-la na dinâmica das relações inter-pessoais e sociais em que está inscrita. O "modo de estar" do doente na sociedade é condicionado pela dinâmica social e histórica que a modela e lhe dá forma, fazendo com que a psicopatologia de um sujeito seja incompreensível fora das práticas do meio em relação a ele.

A doença mental desestabiliza, assim, o modelo médico de

percepção da doença calcado na clínica. A Psiquiatria não pode basear a sua prática médica no olhar anátomo-clínico da Medicina moderna, uma vez que não existem referenciais orgânicos em que se apoiar. A clínica psiquiátrica não torna visível o invisível, porque este último, simplesmente, não existe; a doença, portanto, estaria na superfície e se identificaria com o sintoma que seria, geralmente, o comportamento desviante; ou seja, comportamento desviante-sintoma-doença tem sido o caminho clínico da Psiquiatria.

A Psiquiatria, em conseqüência, não conseguiu desvencilhar-

se da clínica médica do final do século XVIII, quando "desaparece a diferença total entre sintoma e doença. A doença não é mais uma natureza oculta e incognoscível; sua natureza, sua essência é a sua própria manifestação sensível enquanto fenômeno, ao nível dos sintomas: uma doença é um conjunto de sintomas capazes de serem percebidos pelo olhar. Mas desaparece também a diferença absoluta entre sintoma e signo. Na medida em que o sintoma permite distinguir um fenômeno patológico de um estado de saúde ele também é signo da doença, o que significa dizer signo de si mesmo pois a essência da doença é ser um conjunto de sintomas" (MACHADO, 1982:104).

A Psiquiatria, pois, é uma Medicina de sintomas. Pode-se comprovar tal afirmação examinando o mais famoso e

atual código de classificação de doenças mentais do mundo, a saber, o DSM-III, lançado pela APA (Associação Psiquiátrica Americana).

O objetivo principal do DSM-III é "... obter concordância

diagnóstica entre os autores. Postulando-se 'a-teórico', o DSM-III quer evitar assumir uma teoria ou outra, justamente para tentar a adoção de várias correntes, pois é no campo da etiologia que as teorias tornam evidentes suas características, de modo que, em Psiquiatria, nenhuma das hipóteses etiológicas foi realmente provada; o DSM-III (e DSM-III-R) não se preocupa com a etiologia" (SONENREICH & KERR-CORREIA, 1990:8).

Page 84: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Como se afirma no próprio DMS-III: "dada a posição a-teórica

do DMS-III com respeito à etiologia, tentamos descrever de maneira exaustiva as manifestações de transtornos mentais e, somente em casos raros, como apareceram esses transtornos. Tal aproximação pode ser qualificada de d̀escritiva', na medida em que as definições de transtornos mentais consistem geralmente de descrições das características clínicas dos mesmos" (SONENREICH & KERR-CORREIA, 1990:8. Grifos nossos).

O DSM-III, desse modo, pretende ser científico e postula

como método a observação e a experimentação. Contudo, a Psiquiatria clínica só pode adequar-se ao método científico pela metade, isto é, ela incorpora tão somente a observação, uma vez que não se baseia em experimentos. Assim, entende-se a ênfase na descrição das características clínicas dos transtornos mentais.

Os próprios autores do DSM-III, nesse sentido, reconhecem as

dificuldades encontradas, lançando uma esperança baseada na fé: "...nossa opinião é a de que progressos reais podem vir com os novos dados obtidos, testando hipóteses alternativas promissoras, sobre como definir e classificar os transtornos mentais. Este é o nosso sonho" (SONENREICH & KERR-CORREIA, 1990:12. Grifo nosso).

Um sonho que, na verdade, pode transformar-se em pesadelo,

pois a Medicina, baseada na anátomo-clínica, tem como fundamento o seu consenso etiológico e, enquanto a Psiquiatria não conseguir um mínimo de coerência nas suas referências etiológicas, ela continuará fadada a ser apenas "descritiva". Não causa espanto, pois, tanta preocupação compulsiva dos psiquiatras com a descrição dos sintomas da doença mental. Ademais, descrever sintomas envolve a necessidade de classificá-los e enquadrá-los numa taxonomia nosológica, o que corresponde à grande ambição do DMS-III de tornar a Psiquiatria uma Medicina taxonômica e sintomatológica coerente e padronizada.

A Psiquiatria, portanto, jamais escapou das rédeas de uma

Medicina classificatória (Cf. FOUCAULT, 1967), isto é, a Psiquiatria jamsis conseguiu exorcizar a representação.

2 - DISCUSSÃO METODOLÓGICA a) O campo da sociologia

Page 85: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Durante o seu desenvolvimento, a Sociologia não engendrou um processo de diferenciação comparável à Economia e, mesmo, à Ciência Política. Ela acompanhou o processo de demarcação das esferas de conhecimento especializado, embora se tenha mantido ambígua em relação à sua própria discriminação num campo de análise específico. Ora, se o conhecimento sociológico se tornasse um domínio completamente especializado e autônomo, provavelmente perderia de vista o seu objeto, bem como o seu campo de análise ficaria tão restrito que subverteria a sua identidade. Tal ambiguidade, no seu processo de diferenciação enquanto conhecimento específico, deve-se à natureza de seu objeto de análise que, como veremos, não pode ser pensado como uma especificidade desacoplada da totalidade social.

A Economia, por exemplo, ao contrário da Sociologia, pode se

apropriar do seu objeto, a atividade econômica, como um subsistema de ações, cuja autonomia e eficácia própria produz a impressão de um "sistema sem sujeito". O objeto da Economia pode se "destacar" do todo social e ser reduzido analiticamente a uma ação racional com relação a fins ou seja, um subsistema de ação racional, fundamentalmente instrumental, que prescinde de uma legitimação axiológica (Cf. HABERMAS, 1987-Tomo I; WEBER, 1964; MARX, 1975).

Ao mesmo tempo, a atividade econômica no capitalismo,

devido à sua extraordinária complexidade, tem como forma básica de constituição a integração sistêmica, perfazendo assim um sistema de relações, distanciado histórico e espacialmente, no qual indivíduos ou coletividades são vinculados a outros, sem que ocorra uma interação face a face ou uma co-presença física no tempo e no espaço (GIDDENS, 1987:77).

A integração sistêmica é um lugar comum, e inevitável, na

Sociologia , se ela deseja analisar a sociedade capitalista, como também é inegável que, no capitalismo, o processo de racionalização social privilegia uma racionalidade do tipo cognitivo-instrumental (Cf. WEBER, 1964). Contudo, para a Sociologia, a constituição social não se resume à integração sistêmica, como também a ação social não se subsume à racionalidade cognitivo instrumental. Na verdade, quando a Sociologia examina a ação, a integração, a reprodução, a socialização e a interação social, ela não pode, por exemplo, considerar a ação social como um subsistema, porque do contrário seríamos levados a pensá-la como uma especificidade e não como uma dimensão substantiva da sociedade.

Page 86: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

A integração social, por sua vez, baseada no processo de interação social (co-presença), consolida as integrações sistêmicas de cada subsistema; mas, se fosse desconectada da sociedade, perder-se-ia a malha fundamental em que se baseiam todas as atividades humanas e o cotidiano se tornaria um subsistema especializado, não se sabe em quê. O cotidiano, por certo, ficaria, de forma paradoxal, homogêneo, diferenciado e subordinado a uma funcionalidade instrumental, opacificando as manifestações expressivas e as questões prático-morais da vida cotidiana.

b) O sociólogo e seu objeto - I O âmbito da ação social, base das práticas cotidianas,

condensa um amplo espectro de fenômenos e várias formas de racionalidade, inclusive aquela em relação a fins. A Sociologia, ao problematizar a ação social, analisa as estruturas do "mundo da vida", que alicerçam e iluminam, como um espectro de luz banhando todas as cores, os subsistemas da Economia e da Política. Os contextos, assim, da socialização, da integração e da interação sociais são apreendidos sociologicamente a partir das estruturas da prática cotidiana, levando "em consideração todas as formas de orientação simbólica da ação" (HABERMAS, 1987-Tomo I:21).

Os constructos sociais (instituições, documentos,

proferimentos verbais e não-verbais, utensílios, etc.) não são inteligíveis sem o seu sentido e o seu significado, uma vez que estes participam da sua própria constituição. Pode-se, evidentemente, observar um proferimento verbal como um som, descartando o seu significado implícito, mas, para uma leitura sociológica, precisar-se-ia recompor o proferimento no que ele tem de mais importante, ou seja, a sua produção de sentido.

Por certo, quando examinamos uma estrela no firmamento,

projetamos um sentido "estrela" nesse objeto e, desse modo, somos sujeitos dessa significação. Aparentemente, uma estrela só existe, para nós, a partir do momento em que ela tem um significado. Para Marx, a natureza, considerada abstratamente e fora de um contexto humano, não existe, afirmação que não deixou de gerar uma certa confusão. Ela foi interpretada, por exemplo, por Mach e Avenarius, como uma fórmula idealista. Sem dúvida, eliminando-se o conceito de práxis, ou simplesmente ignorando-o, poder-se-ia, de fato, interpretar a frase de Marx à la Berkeley - não há objeto sem sujeito - ou, ainda, de forma kantiana - o sujeito conhece o objeto que ele mesmo produz.

Page 87: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Contudo, Marx não estava negando a anterioridade ontológica da natureza, mas apenas ressaltava que ela não é nada enquanto o homem dela não se apropria ou a transforma, embora, é claro, ainda não possamos "transformar" uma estrela em um objeto humano, salvo como objeto de conhecimento ou numa obra poética.

Mas, quando analisamos um constructo social, além de sermos

sujeitos de uma significação, pois projetamos um sentido para o constructo, somos também afetados pelo seu significado, que pré-existe a toda e qualquer projeção nossa. Assim, ao entrarmos em relação com um constructo social, somos também objeto de suas significações, independente de querermos ou não transformá-las em nossos objetos de conhecimento.

Quando, por exemplo, um sociólogo vai a campo para reunir

informações relevantes sobre uma instituição, ele supõe que os seus membros "são capazes de lhe fornecer informações que ele não pode obter de outra forma e que as idéias, opiniões e intuições dos membros do grupo diferem das suas" (HELLER, 1991:208). Os membros da instituição são sujeitos de suas ações e de suas significações, fazendo parte de um espaço social diferente daquele do sociólogo; este não pode intuir, isoladamente, sobre o significado da instituição abordada, porque não faz parte dela, ou seja, ele precisa de uma metodologia de abordagem que o possibilite apreender as informações sobre a instituição.

O sociólogo, igualmente, não aborda, de forma direta, o que

é a instituição, mas, sim, a intersecção do que nela é dito e feito. Ele precisa, então, compreender o que foi dito sobre e feito na instituição e, conseqüentemente, necessita interagir, de uma forma ou de outra, com os sujeitos da informação prestada.

Um problema de tal interação é que os sujeitos das opiniões

colhidas são vistos pelo sociólogo como objetos; o sociólogo necessita reificá-los para entendê-los. Além disso, "os sujeitos pesquisados não são interlocutores: eles respondem a perguntas, mas não as formulam. Eles respondem a perguntas específicas tidas como relevantes da perspectiva do sociólogo, membro de uma outra instituição. Responder a questionários é uma situação `anormal' para os membros das instituições pesquisadas. A `anormalidade' da situação exerce influência sobre o sujeito-objeto em maior ou menor medida. Em parte, como resultado da anormalidade da situação, em parte, como resultado da rigidez das perguntas e da impossibilidade de um diálogo real, as respostas não expressam completamente as opiniões, idéias,

Page 88: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

intuições dos sujeitos interrogados. Aquilo que na Física recebe o nome de `relação de incerteza' está evidentemente presente na Sociologia empírica: os meios de obtenção da informação exercem influência sobre o sujeito-objeto que fornece a informação" (HELLER, 1991:209).

Pode-se pensar em resolver toda essa problemática melhorando

as técnicas de entrevista e de pesquisa; e, sem dúvida, elas são importantes para melhorar a interação entre o sujeito pesquisador e o pesquisado, embora o problema de fundo não possa ser solucionado, desde que "a reificação do sujeito pode ser contrabalançada mas não completamente superada" (HELLER, 1991:209).

A reificação, todavia, não é apenas um privilégio da

Sociologia, caracterizando também os processos de interação da vida cotidiana, pois, num mundo diferenciado em uma multiplicidade de papéis sociais, a intuição não é o bastante para as exigências cognitivas do dia-a-dia. Desse modo, "as formas de vida na modernidade, se é que existem, são múltiplas e fragmentadas, o que nos impede de compreendê-las através de puro insight" (HELLER, 1991:214).

Por outro lado, os sujeitos informantes da instituição

pesquisada são produtores de um saber pré-teórico, que é, justamente, o âmbito do objeto da pesquisa. Os sujeitos pesquisados produzem conhecimentos sobre a instituição, porque a fazem e a vivem, enquanto o sociólogo, antes da pesquisa, é um mero leigo e não um teórico sobre o assunto. O saber dos entrevistados pré-existe ao saber do sociólogo e é a condição sine qua non para o seu próprio conhecimento. O pesquisador encontra, assim, o seu objeto de conhecimento já estruturado simbolicamente e constituindo uma parte vital da reprodução da vida dos sujeitos da instituição.

Na verdade, esse campo da Sociologia sempre tem seus objetos

estruturados simbolicamente, porquanto o seu campo objetual é tudo aquilo que se pode perceber como elemento de um mundo da vida; a saber: "... desde as manifestações imediatas (como são os atos de fala, as atividades teleológicas, etc.), passando pelos sedimentos de tais manifestações (como são os textos, as tradições, os documentos, as obras de arte, as teorias, os objetos da cultura material, os bens, as técnicas, etc.), até os produtos gerados indiretamente, suscetíveis de organização e capazes de se estabilizar a si mesmos (como são as instituições, os sistemas sociais e as estruturas de personalidade)" (HABERMAS, 1987-Tomo I:154).

Page 89: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Se o sociólogo do nosso exemplo entra em contato com um

saber pré-existente produzido pelos entrevistados, ele não pode ter acesso a essa realidade, já estruturada simbolicamente, apenas pela observação; de fato, ele precisa compreender o que foi dito e, em conseqüência, participar, ainda que virtualmente, de um processo de comunicação. Nesse caso, é necessário como premissa, na interação entre o sociólogo e os entrevistados, a inserção de ambos num mundo comum, onde seja possível o processo comunicativo mediado pela linguagem, que tem "a função da integração social e da coordenação dos planos de diferentes atores na interação social" (HABERMAS, 1989:41).

O contato interativo entre o sociólogo e os entrevistados é

baseado numa ação que visa à comunicação, bem como as manifestações simbólicas, produzidas pelos últimos, não têm apenas um significado, mas também uma pretensão à validez. Por isso, o sociólogo não pode separar, na leitura das informações obtidas, as questões de significado das de validez, se deseja escapar de uma análise meramente descritiva do objeto.

O problema, na verdade, é muito mais complexo e envolve dois

níveis: o primeiro se refere à obtenção dos dados, e o segundo, à descrição teórica dos mesmos. De um lado, o sociólogo obtém dados de um mundo (no caso, a instituição) já estruturado simbolicamente, ao qual não se pode ter acesso direto pela observação; de outro, os dados não podem ser descritos independentemente do seu marco teórico, uma vez que eles não são separados da teoria utilizada e sua formulação está contaminada de categorias teóricas (Cf. HABERMAS, 1987-Tomo I:156; MOLES, 1971; KUHN, 1975).

O sociólogo, nesse sentido, primeiro, vai "se servir, como

participante dos processos de entendimento, das linguagens que encontra em seu campo objetual, pois somente através desses processos pode ter acesso aos dados" (HABERMAS, 1987-Tomo I:158); e,depois, reconstruir estes últimos de acordo com o seu paradigma teórico. Os problemas do sociólogo, para a obtenção de dados relativos à vida cotidiana, não são diferentes, a priori, daqueles das pessoas comuns. Poder-se-ia, de certa forma, deduzir que o sociólogo, como participante de um processo comunicativo, não tem um acesso ao mundo vivido distinto dos sujeitos pesquisados. E se tal acesso não é distinto, o sociólogo não pode utilizar a linguagem de forma neutra, pois "não pode 'montar' nessa linguagem sem recorrer ao saber pré-teórico que possui como membro de um mundo da vida, de seu próprio mundo da vida, saber que ele domina intuitivamente como

Page 90: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

leigo e que introduz sem analisar em todo processo de entendimento" (HABERMAS, 1987-Tomo I:158).

O sociólogo, depois de todo esse trajeto, começa então a se

perguntar qual é, afinal, a diferença entre o seu conhecimento e o dos seus entrevistados. Mesmo sabendo que é no fulcro da ação gerada para o entendimento onde se encontra a matriz das pretensões de validez e, assim, as possibilidades de crítica, ele tem de admitir que qualquer um, em princípio, pode ter uma consciência reflexiva e crítica das pretensões de validez.

Nesse momento, ele terá duas opções: 1) assume como premissa uma etnometodologia radical e afirma

a identidade entre o seu conhecimento e o saber comum. O que o sociólogo deseja, aqui, é um aprofundamento etnográfico, em que ocorra "um esforço hermenêutico de 'fusão de horizontes" (GIDDENS, 1987:402). Seguindo esse raciocínio, ele pode negar ou, simplesmente, depreciar a verdade e a objetividade do seu saber e se tornar um adepto de um "pragmatismo radical" ou, então, de um "kuhnisianismo de esquerda" (Cf. RORTY, 1990).

2) assume um discurso moderado, enfatizando que é possível

superar o particularismo do contexto do cotidiano, uma vez que o sociólogo possui uma "atitude teorética" diante do mundo e, assim, pode destacar-se do contexto do "mundo da vida" e de sua própria prática individual. A crítica das pretensões de validez teria como alicerce uma reserva de conhecimento que o homem comum não possui, pois "esta reserva de conhecimento é estruturada de forma diferente daquela na qual cada um dispõe na sua vida cotidiana" (SCHUTZ, 1984:48).

Tal estruturação diferente do conhecimento "extramundano"

pode ser inferida a partir de uma posição institucional, identificando a ciência como o meio e o lugar dessa "reserva de conhecimento". O pesquisador conseguiria uma atitude teorética e, desse modo, uma superação dos limites cognitivos do saber comum, ao substituir o sistema de valores do cotidiano pelo do mundo científico. Isso significa que o sociólogo interage com o entrevistado, embora não siga as intenções de ação deste último, uma vez que o seu sistema de ações se encontra alhures, no mundo científico. Despojando-se de seu papel de ator e não se subsumindo às ações do entrevistado, ele tem condições de compreender estas últimas, o que, no fundo, significa um retorno ao problema da objetivação, pois, compreender uma ação a partir de outro sistema de ações, representa corporificar as intenções de ação, a subjetividade e a consciência em produtos avaliáveis.

Page 91: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

O sociólogo assume uma posição hermenêutica (Cf. GADAMER,

1976) partir do momento em que se baseia na compreensão das razões do entrevistado e faz destas a melhor forma de entender as suas ações.

Assim, existe um primeiro instante, ético e cognitivo, em

que o pesquisador reivindica um "critério de credibilidade" (Cf. GIDDENS, 1987:404), salvaguardando a dignidade das proposições do entrevistado (Cf. BOUDON, 1990:229; STEINER, 1991:27); um segundo instante, no qual se reconstrói o significado das proposições, como um "conteúdo objetivo de uma emissão ou manifestação susceptível de crítica" (HABERMAS, 1987-Tomo I:188); um terceiro, em que ocorre uma avaliação crítica das proposições de acordo com os parâmetros empíricos e teóricos do pesquisador e os resultados do seu mundo científico (critérios externos de validação) e, enfim, um quarto momento, cuja característica é a utilização dos "critérios internos" (GIDDENS, 1987:406) de validação inerente ao mundo do sociólogo.

c) O sociólogo e seu objeto II Podemos esclarecer melhor toda essa discussão, abandonando o

nosso querido sociólogo e recorrendo ao nosso próprio exemplo. Nossa pesquisa consistiu em analisar as representações da

doença mental entre os psiquiatras. Afora essa situação banal, soma-se a particularidade de sermos, também, psiquiatra. Assim, obtivemos informações de pessoas que compartilham conosco, além do mesmo "mundo vivido", um meio profissional análogo. Assim, entramos em contato com um saber já estabelecido, numa interação de pesquisa em que foi impossível não levar em conta não somente o significado do que foi dito, mas também sua pretensão de validez.

Os dados que obtivemos foram, justamente, os significados

das palavras faladas na entrevista. A compreensão de tais dados, por sua vez, exigiu-nos uma relação intersubjetiva com os entrevistados produtores de nossas informações. Devido a nossa própria participação no processo de interação e comunicação com os entrevistados, não poderíamos exigir-nos uma atitude objetivada em relação aos dados obtidos, desde que a compreensão de "um significado é uma experiência impossível de se fazer solipsisticamente, por se tratar de uma experiência comunicativa" (HABERMAS, 1987-Tomo I:159).

Page 92: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Se fôssemos, pelo menos, um astrônomo, poderíamos analisar uma estrela, assumindo, em relação a ela, uma atitude objetivada, mas, numa pesquisa com sujeitos entrevistados, é impossível, "ao compreender o que é dito - quer se trate de uma opinião que é relatada, uma constatação que é feita, de uma promessa ou ordem que é dada; quer se trate de intenções, desejos, sentimentos ou estados de ânimo que são expressos"

(HABERMAS, 1989:42)-, não deixarmos de entrar num processo de comunicação e assumir uma atitude performativa.

Habermas define, de forma peremptória, a nossa situação: "a

compreensão de uma manifestação simbólica exige essencialmente a participação em um processo de entendimento. Os significados, que se encarnam em ações, em instituições, em produtos do trabalho, em contexto de cooperação ou em documentos, somente podem ser iluminados a partir de dentro. A realidade simbolicamente pré-estruturada constitui um universo que pode ser incompreensível apenas se for enxergada com os olhos de um observador incapaz de comunicação. O mundo da vida só se abre a um sujeito que faz uso de sua competência lingüística e de sua competência de ação. O sujeito somente pode ter acesso àquele participando, ao menos virtualmente, nas comunicações de seus membros e, portanto, convertendo-se a si mesmo em um membro pelo menos potencial" (HABERMAS, 1987-Tomo I:160).

No entanto, a nossa participação num processo interativo de

pesquisa não se identifica com as intenções de ação dos sujeitos entrevistados. Nossa atuação se passa em outro nível: como sociólogo, nosso papel de ator se inscreve na atividade da "instituição" Sociologia. Assim, nossa atuação não corresponde àquela dos entrevistados, ou seja, não atuamos na interação de pesquisa e, sim, concentramo-nos na escuta e na compreensão dos significados encontrados no processo de entendimento.

Nesse sentido, se não atuamos no processo interativo de

pesquisa, pelo menos participamos nele virtualmente. Tal situação não nos impede de reconhecer e levar a sério as pretensões de validez proferidas pelos entrevistados durante o processo de entendimento - somente podemos entender um proferimento se soubermos as condições de sua validade.

d) Interpretação e objeto Tivemos, portanto, de nos posicionar em relação ao material

simbólico produzido pelos entrevistados, bem como de problematizar as suas manifestações, produzidas numa ação

Page 93: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

orientada para o entendimento. Somente, assim, foi possível saber as razões por que tal entrevistado disse isso ou aquilo. Foi preciso, portanto, interpretar racionalmente o nosso material empírico.

Por outro lado, nossa situação possui ainda outro agravante,

isto é, a nossa pesquisa consistiu em analisar, nos entrevistados, as representações da doença mental.

Ora, só podemos apreender o conteúdo de uma representação

através de uma outra de conteúdo similar. Uma representação de uma representação não se adquire descrevendo e, sim, interpretando o conteúdo representativo (Cf. SPERBER, 1989:118). O sociólogo se torna, portanto, um intérprete do material colhido na entrevista, o que não é surpreendente, pois compreender já é interpretar, de forma mais ou menos implícita.

Contudo, os problemas daí decorrentes são complexos e de

difícil resolução. A melhor interpretação não é aquela que se parece mais com o conteúdo da representação interpretada (SPERBER, 1989:123). Se assim fosse, a melhor interpretação seria a tradução literal do conteúdo representativo. A interpretação não pode ser um retrato fiel do conteúdo da representação. Ela depende da intuição do intérprete e obedece às implicações do seu posicionamento.

As interpretações vão do manifesto ao latente, isto é, o

intérprete tem que ultrapassar a superfície do "texto" para encontrar os seus significados ocultos. Uma interpretação jamais esgota o material colhido de uma entrevista e pode ser sempre suplantada por uma outra mais abrangente. Na verdade, o objetivo de uma interpretação é, justamente, produzir uma base para futuras outras interpretações. O efeito do encadeamento das interpretações é análogo ao que Freud chamou de super-interpretação, isto é, designa "uma interpretação que se destaca secundariamente, quando já foi fornecida uma primeira interpretação, coerente e aparentemente completa" (LAPLANCHE & PONTALIS, 1980:647).

Mas, por que isso acontece? Ora, o material colhido é uma formação racional-simbólica

que não se esgota em apenas uma determinação, ou seja, tal formação é resultante de um complexo de determinações. Desse modo, as manifestações simbólicas dos entrevistados se organizam em seqüências significativas diferentes, cada uma correspondendo a uma etapa de interpretação. Em suma, a super-interpretação é

Page 94: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

esclarecida pela existência de uma superdeterminação (LAPLANCHE & PONTALIS, 1980:647).

Neste momento, podemos questionar se é possível evitar a

explicação interpretativa como um fim em si mesmo e, conseqüentemente, uma cadeia sem fim de interpretações ad nauseum. Acreditamos que, aqui, devemos evitar tanto a "compulsão talmudiana" como o pragamatismo analítico.

Na interpretação talmudiana, o material interpretativo é um

texto sagrado, imutável e eterno, cuja característica maior seria "o comentário sem fim e o comentário do comentário..."

(STEINER, 1991:63). As interpretações seriam círculos concêntricos em torno do Livro e seus desenhos semânticos intermináveis. Elas não descortinariam o latente, pois as profundezas são invisíveis e ilegíveis e seu "princípio de realidade" seria a sua ligação de origem, o texto sagrado.

Já na interpretação analítica, "a lógica e o princípio motor

da associação livre, sobre os quais são fundadas a teoria e a prática da Psicanálise, colocam em cena séries infinitas. Não somente cada unidade da cadeia associativa entra em relação linear e horizontal com a seguinte, mas também, ela pode se constituir como o ponto de partida de uma nova série ilimitada de conotações, associações e reminiscências ligadas entre si. A decisão do analista em interromper o desenvolvimento da análise, de pôr um fim naquilo que é, no sentido mais manifesto, uma frase sem fim, após sessenta minutos, ou antes das férias de verão, é totalmente arbitrária (...). Freud (...) reconhece que determinados sintomas e manifestações neuróticas podem ressurgir tempos depois do final da terapia. Ele admite que a noção de fim, no processo analítico de associações verbais, é sem fundamento teórico" (STEINER, 1991:68).

A interpretação na Psicanálise seria contingente e

convencional, o que significa, entre outras coisas, que não há uma hierarquia de valor entre uma e outra interpretação. O fim do processo de interpretação e, mesmo, a escolha entre duas interpretações são determinados de maneira pragmática. É difícil dizer que a Psicanálise tenha critérios de validade, embora possua, devido à relação terapêutica, critérios de credibilidade, porque o que importa é menos a verdade da interpretação do que o seu potencial significativo enquanto tal - não existe, nesse sentido, a necessidade de uma referência empírica ou factual. A interpretação analítica é heurística, por natureza.

Page 95: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

A interpretação na ciência social é contextualizada, não se

limitando ao espaço do texto e nem à relação interativa, pois é conectada aos contextos não semânticos da interação. Significa uma combinação especial entre fato e convenção, possuindo um condicionamento realista e, assim, sendo passível de verificação empírica. A interpretação sociológica sofre o crivo dos critérios de validade (externo e interno) comuns às ciências sociais, reproduzindo uma hierarquia entre as representações em termos de complexidade e poder explicativo - nesse sentido, elas são menos contingentes do que seletivas.

Todavia, os critérios de avaliação do intérprete, baseados

na sua intuição e no seu ponto de vista, são, no mínimo, limitados. A limitação da interpretação se acentua a partir do momento em que se descobre que uma significação não é uma causa e que uma atribuição desta não implica numa explicação. Assim, as generalizações surgidas das interpretações do sociólogo são, antes, modelos interpretativos que explicariam situações particulares, do que, propriamente, uma teoria. Generalizar uma interpretação, decididamente, não produz uma teoria (SPERBER, 1989:126), porque a interpretação depende do seu contexto particular - a questão para o intérprete é como transcender a singularidade da produção interpretativa.

Como, então, resolver esse problema? Poder-se-ia propor duas soluções: 1) produzir uma

epidemiologia da representação, descartada de antemão por causa de nossa minúscula amostra; 2) supor, heuristicamente, que cada entrevistado é uma aplicação particular da cultura ou subcultura de seu grupo social ou, em sentido amplo, supor que um indivíduo "... é um portador passivo de tradições ou, em termos mais dinâmicos, aquele que concretiza, sob mil formas possíveis, idéias e modos de comportamento implicitamente inerentes às estruturas ou às tradições de uma sociedade dada" (SAPIR, apud MICHELAT, 1980:194).

e) Indivíduo e discurso O material colhido na entrevista seria uma expressão

sintomática, complexa e contraditória do grupo social analisado. O entrevistado, vetor da sua cultura, internaria estruturas objetivas de sentido e apropriar-se-ia de relações sociais, reconhecendo-se nelas, bem como interiorizaria esquemas de ação e condutas coletivas. Para a Sociologia - utilizando uma

Page 96: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

linguagem metafórica - o indivíduo seria uma passagem, um trânsito, para o social.

Nesse sentido, as manifestações simbólicas dos

entrevistados, pela necessidade metodológica de problematização, seriam entendidas como discursos. Tal procedimento tem pertinência, pois os discursos não podem ser analisados de forma auto-referente, sem se levar em consideração outros contextos que não sejam os lingüísticos.

O discurso, de forma geral, pode ser entendido como um texto

situado dentro de "... suas condições sociais de produção, (...) como um elemento a mais da realidade" (NASSIF, 1982:23). O discurso, desse modo, seria toda prática enunciativa considerada "em função de suas condições sociais de produção, que são fundamentalmente (...) institucionais, ideológico-culturais e histórico-conjunturais" (ROBIN, apud NASSIF, 1982:23).

Tal conceito de discurso se aproxima do foucaultiano de

formação discursiva, definido como "(...) o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma alocução, um sermão, um panfleto, uma exposição, um programa, etc.) a partir de uma posição dada em uma conjuntura determinada" (FOUCAULT, apud MAINGUENEAU, 1989:14). Assim, o discurso pode ser considerado como uma prática social que expressa representações e valores dominantes ou subalternos. O discurso seria inseparável do seu contexto não discursivo e de seu lugar de enunciação. Ele incorporaria a dissonância entre o lugar da enunciação e o enunciado, através de três registros estreitamente articulados:

"- a formação discursiva confere `corporalidade' à figura do

enunciador e, correlativamente, àquela destinatário, ela lhes dá `corpo' textualmente; - esta corporalidade possibilita aos sujeitos a `incorporação' de esquemas que definem uma maneira específica de habitar o mundo, a sociedade; - estes dois primeiros aspectos constituem uma condição da `incorporação' imaginária dos destinatários ao corpo, o grupo dos adeptos do discurso" (MAINGUENEAU, 1989:48).

Desse modo, com o conceito de discurso, seria possível

realizar o nosso objetivo de transcender a mera singularidade dos sujeitos entrevistados, desde que o discurso incorpora, na sua definição, as determinações sociais e textuais, encaminhando-nos para a comunidade discursiva dos entrevistados.

f) Técnicas e campo de pesquisa

Page 97: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Diante de toda essa problemática, achamos natural utilizar

como técnica de pesquisa a chamada "entrevista de profundidade" ou "focalizada", que teria as seguintes utilidades para o nosso trabalho:

1) a nossa amostra é pequena e a "entrevista focalizada" é

uma técnica adequada para suprir a ausência quantitativa de dados, permitindo uma apreensão qualitativa destes últimos; 2) permite uma "liberdade" e uma "abertura" para o entrevistado aprofundar o tema proposto; 3) facilita a coleta do material, adequando-o ao processo interpretativo; 4) permite a reconstituição de modelos cultural-simbólicos, interiorizados pelo entrevistado; 5) o material colhido do entrevistado abrange não só proposições de verdade, como também conteúdos normativos e expressivos; 6) e, enfim, a "entrevista focalizada" é uma técnica de pesquisa viável para o estudo de representações, principalmente porque permite dar conta de pensamentos ou verbalizações, condicionados à oralidade e produzidos como comunicações informais.

O procedimento técnico adotado se caracteriza, também, "pelo emprego de fórmulas e clichês convencionais e lineares que tanto facilitam para o indivíduo a comunicação como substituem uma reflexão, necessária mas impossível, no momento do estímulo" (SILVA, 1978:28). Ora, essa "espontaneidade discursiva" revela, justamente, o estilo expressivo da representação social.

Fizemos, ao todo, oito (8) entrevistas, utilizando um gravador (tempo médio de uma hora, para cada entrevista) e dividindo os psiquiatras entrevistados em dois grupos, isto é, o primeiro consistindo de psiquiatras professores ("psiquiatra-professor"), e o segundo, de psiquiatras comuns ("psiquiatra"). Tal divisão tem como objetivo observar as possíveis diferenças entre psiquiatras que, por serem professores, refletem mais freqüentemente sobre a doença mental e psiquiatras simplesmente médicos, que trabalham em asilos, consultórios e ambulatórios, "desacostumados" a refletir sobre a doença mental. Enfim, queríamos investigar, também, se tal divisão repercutiria na representação de doença mental.

Paralelamente a uma análise interpretativa do material colhido nas entrevistas, fizemos uma análise temática do conteúdo das entrevistas.

Assim, fizemos uma decomposição do "texto" em unidades de significado, através de um sistema taxonômico baseado em

Page 98: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

categorias circunscritas e definidas. Procuramos, então, reunir tais unidades de uma maneira nem ambígua e nem contraditória. Tal método nos permitiu quantificar e realizar cruzamentos dos temas encontrados nas entrevistas. Assim, pudemos controlar as ocorrências de certas noções e temas, obtendo uma primeira imagem mais unificada do material colhido, bem como as grandes linhas de diferenciação do seu conteúdo; igualmente, pudemos relacionar os significados entre si e organizá-los em unidades temáticas.

Contudo, no nosso trabalho, a análise temática terá apenas um valor indicativo e secundário em relação à análise interpretativa. A justificativa para tal procedimento tem a sua razão de ser nas limitações de uma análise temática dentro de uma amostra tão pequena como a nossa.

Nesse sentido, a análise temática produziria, principalmente, limitações no processo interpretativo: 1) a composição de temas em unidades de significado isola os mesmos e dificulta a passagem do conteúdo manifesto para o latente; 2) a quantificação encontrada numa amostra tão pequena não é representativa e não tem valor estatístico algum; 3) os resultados encontrados no material, colhido através da quantificação gerada pela análise temática, não indicam que o mais freqüente seja o mais determinante, pois diversos conteúdos latentes e determinantes de um material simbólico podem aparecer mitigados, mascarados e com uma freqüência pouco significativa; 4) enfim, a análise temática pode significar apenas um retrato sistematizado e organizado do material colhido nas entrevistas, isto é, a linguagem interpretativa se identificaria com a linguagem interpretada.

Nosso estudo de representação, pelas suas limitações específicas, não é comparativo, ou seja, não fizemos comparação alguma entre as representações da doença mental entre os psiquiatras com as do "senso comum", bem como qualquer comparação das primeiras com as dos médicos não-psiquiatras.

Por isso, tivemos de realizar uma análise, digamos assim, "formalista" da representação:

1) para identificar o conteúdo das enunciações dos entrevistados com o "pensamento natural", locus da representação social, aplicamos literalmente as categorias encontradas por Moscovici: a) a dispersão da informação; b) focalização dos sujeitos sobre uma relação social ou um determinado ponto de vista; c) pressão para a inferência; d) a personificação dos conhecimentos e dos fenômenos; e) a figuração de imagens ou

Page 99: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

conceitos; f) e, finalmente, a ontologização das relações lógicas ou empíricas;

2) para identificar o estilo de pensamento dos entrevistados, procuramos: a) seu sistema lógico e seu metassistema normativo; b) evidências de repetição informal ou formalismo espontâneo; c) evidências de causalidade fenomenal; d) evidências de argumentação conclusiva e não analítica;

3) para identificar, no discurso dos entrevistados, características de uma produção representativa, procuramos: a) imagens e símbolos; b) validade consensual; c) dominância do "por quê"; d) diversidade nos tipos de inferência; e) flexibilidade na sucessão de atos mentais; f) diversidade no uso das formas sintáticas disponíveis.

Quanto aos processos constitutivos da representação social - a objetivação e a ancoragem -, tivemos algumas dificuldades metodológicas devido ao fato de nosso trabalho não ser comparativo. Apesar disso, procuramos detectar o processo de objetivação, no material colhido nas entrevistas, através da utilização de um esquema de estruturação em que pontuam os pares saúde/doença e normal/anormal. Quanto ao processo de ancoragem, analisamos como o esquema de estruturação adquiriu uma significação para os atores implicados, isto é, de que forma os pares citados acima sofreram uma operação complexa de redefinição, permitindo uma compatibilidade com o sistema simbólico próprio dos psiquiatras entrevistados. Devemos frisar, ainda, que o esquema de estruturação foi construído, fundamentalmente, pela análise de conteúdo, enquanto que a ancoragem foi revelada pelo processo interpretativo.

Para terminar, um último posicionamento metodológico com relação ao material colhido nas entrevistas.

De certa forma, existe uma dificuldade em compreender representações de determinado objeto (doença) em indivíduos que possuem um conhecimento teórico do assunto, pois estudar a representação social da doença mental entre os psiquiatras é bem diferente de estudá-la no público em geral. Ora, a Psiquiatria faz parte de uma profissão e, como tal, possui o seu espaço institucional sancionado socialmente, bem como um discurso sobre o seu modo de ser e sobre o objeto de sua ação, a doença mental. Sendo assim, a representação do psiquiatra sobre o seu objeto não pode ser separada do seu discurso informativo: o psiquiatra se constitui num meio social em que a sua prática está informada por um discurso racional lógico-formal.

Page 100: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Isso pode trazer complicações se assumirmos uma posição que necessite de uma distinção entre o discurso informativo e o representativo. Se colocarmos, por exemplo, uma descontinuidade entre ambos, como classificar o que o psiquiatra refere sobre a doença mental? Afinal, da sua fala, o que é ciência e o que é representação?

Na verdade, uma distinção de fato entre discurso informativo e representativo seria conseguida através de uma crítica racionalista deste último, com todos os perigos daí decorrentes. Assim, qual a função da representação nesse caso? Teria ela alguma função positiva no surgimento da noção de doença mental entre os psiquiatras? Ou seria ela pura mistificação, uma falsa consciência que atrapalharia o saber psiquiátrico? Provavelmente, teríamos a necessidade de averiguar o conceito mais "adequado" de doença mental para aplicá-lo no discurso psiquiátrico. De qualquer maneira, seria um conceito que, ao definir analiticamente a doença mental, faria uma distinção entre duas abordagens sobre um mesmo objeto, isto é, a científica e a representacional. Assim, através desse conceito, far-se-ia uma investigação racionalista a fim de separar, na fala do psiquiatra, a representação do discurso científico.

Mas, como defender um determinado conceito em detrimento de outros?

Certamente, uma crítica racionalista, ao separar o discurso informativo do representativo, tornaria o problema da "verdade" da doença mental um monopólio da ciência. Não perceberíamos, dessa forma, o discurso psiquiátrico sobre a doença mental de uma maneira mais abrangente, em que entrariam, na sua formação, tanto um saber racional e lógico-formal, quanto valores e determinações de natureza ideológica.

Em suma, para apreendermos a representação da doença mental entre os psiquiatras, tivemos de analisar discursos que possuem determinações provenientes do imaginário social e do saber médico propriamente dito.

Page 101: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Capítulo IV - ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL

1 - INTRODUÇÃO

Dividimos este capítulo em dois momentos para melhor organizar a análise e a exposição do processo de pesquisa.

O primeiro momento diz respeito à aplicação do modelo do "pensamento natural" ao material empírico e o segundo refere-se à constituição dos processos de objetivação, elucidada por um esquema de estruturação e de ancoragem.

Page 102: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Segundo Moscovici, "os dados de que a maioria das pessoas dispõe para responder a uma pergunta são, em geral, simultaneamente insuficientes e superabundantes" (MOSCOVICI, 1978:250), isto é, os indivíduos podem conhecer pouco um determinado assunto, embora possam produzir referências abundantes sobre o mesmo em relação a outros assuntos. Pode-se, por exemplo, saber pouco sobre a Psicanálise, mas isso não impede que se façam diversas referências ao seu papel político, etc. Tal situação revela uma defasagem "(...) entre a informação efetivamente presente e aquela que teria sido necessária para dominar todos os elementos de que depende a seqüência de raciocínios" (MOSCOVICI, 1978:250); ou seja, existiria, aqui, uma defasagem constitutiva.

Ora, a constituição dessa defasagem ocorre menos da quantidade de informação possuída do que da determinação do campo de interesses do sujeito. Evidentemente, o acesso às informações e o nível de conhecimento do indivíduo são fatores importantes para a apropriação e apreensão cognitiva de objetos sociais, embora a variação quantitativa e qualitativa da informação dependa, fundamentalmente, do campo de interesses e do lugar que ele ocupa na sociedade. Assim, "a distinção entre o homem inculto e o homem culto, este último utilizando modos de raciocínio mais científicos, perde seu valor. Com efeito, diante de certos problemas, todo indivíduo é inculto. A educação escolar e universitária cria maior capacidade de compreensão dos conhecimentos que circulam na sociedade. Entretanto, com muita freqüência, as diferenças esfumam-se e, seja qual for o nível de educação atingido, os indivíduos estão armados de maneira idêntica para comunicar ou emitir uma opinião" (MOSCOVICI, 1978:251).

Um físico e um operário, por exemplo, estariam "armados de maneira idêntica para comunicar ou emitir uma opinião" sobre um objeto social como a doença mental, embora o conteúdo de suas respostas pudesse apresentar diferenças, principalmente quanto aos campos de interesses existentes. As variáveis sexo, idade, profissão, classe social, contexto cultural teriam, certamente, uma influência nas opiniões do físico e do operário, porém suas visões de doença mental viriam de um fundo básico comum ou, digamos assim, de um padrão primário de representações, alicerçado na prática natural da vida e na experiência do mundo. Tal fundo básico comum se inscreve na prática cotidiana da comunicação, ficando impermeável à toda tentativa de problematização.

Page 103: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Na verdade, as informações sobre um determinado objeto social, no caso, a doença mental, têm como base uma experiência social primária com o dito objeto, ou seja, essa experiência determinaria um modelo básico de apreensão que permitiria uma validade pré-reflexiva em torno dele. Tal modelo seria a estrutura de um campo de representação de um objeto social determinado, em que suas diversas e diferentes representações sociais, produzidas pelos grupos sociais, reportar-se-iam. O campo de representação seria "primário" porque constitui uma camada profunda de saber não problematizado no qual não existe, como para as outras formas de saber, uma consciência intencional.

O campo de representação teria uma estabilidade e uma resistência contra as mudanças simbólicas que, por acaso, aparecem historicamente no mundo vivido, e, também, um imediatismo que lhe daria uma característica um tanto paradoxal: um saber ao mesmo tempo intenso e deficiente. O campo de representação primário teria uma força totalizante, constituindo uma totalidade que possui um centro e várias periferias disformes e porosas que se misturam com outros campos de representação - tais campos possuem um caráter holista formando uma rede larga de ramificações semânticas (à imagem de um arbusto) em que as unidades de significação somente poderiam ser compreendidas a partir de sua totalidade. Existiria, assim, um solo sócio-cultural fértil do qual brotariam abundantemente representações e "visões de mundo".

As diferenças, por exemplo, nas diversas representações sociais da doença mental, quanto à sua significação, às estratégias e finalidades terapêuticas, etc., seriam produzidas menos por uma distinção substantiva nas representações do que por uma diferenciação social, ocorrida no processo simbólico de constituição do objeto-doença. Ocorreria, assim, uma emancipação de modelos secundários do campo de representação primário do objeto-doença, transbordando no meio social diversas e diferentes percepções da doença mental, que, por assim dizer, possuem uma origem comum.

Os modelos secundários de doença mental se emancipam do campo de representação primário devido à existência de uma profusão de papéis e lugares sociais, construídos pela diferenciação e pela estratificação social, que produzem uma variedade de representações sociais. Numa sociedade pouco diferenciada e estratificada, por exemplo, poder-se-ia especular que os modelos secundários de objetos sociais não se distinguiriam, praticamente, do seu modelo primário e, portanto, o campo de informações sobre um determinado objeto social seria bem mais homogêneo e linear.

Page 104: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Os modelos secundários constituiriam um horizonte de percepções, permeável às mudanças e vicissitudes do tempo e, portanto, enraizado na situação histórica do momento. Formariam representações frágeis e instáveis, porque dependente do contexto e, principalmente, do consenso social existente. Elas flutuariam ao sabor da estratificação social, bem como estariam relacionadas a conhecimentos temáticos inscritos nessa dimensão espaço-temporal chamada de atualidade.

A estruturação simbólica primária da realidade aparece, geralmente, direcionada por categorias bipolares do tipo bom/mau, verdadeiro/falso, bem/mal, belo/feio, justo/injusto, eficaz/ineficaz, agradável/desagradável, sagrado/profano e, no caso particular da doença mental, saúde/doença e normal/desviante

(Cf. AEBISCHER, 1991; LAPLANTINE, 1989). Tais categorias são orientadoras de valor e circunscrevem o campo normativo, prático, cognitivo e axiológico em que se move o sujeito no meio social.

As categorias orientadoras de valor têm uma validade consensual numa dimensão que, de certo modo, está subjacente à diferenciação e à estratificação social, isto é, tal consenso se encontra na dimensão do cotidiano em que os fenômenos aparecem com um caráter multidimensional. A prática cotidiana condensa interpelações normativas, afetivas e proposicionais que permitem às categorias orientadoras de valor serem uma produção axiológica, uma forma de conhecimento e um campo de ação.

Tais categorias, dessa forma, pertencem ao fulcro de nossa socialidade ou, em outros termos, estão inscritas numa formação mais primeva, indistinta e caleidoscópica, de natureza antropológica.

O seu caráter indiferenciado lhe permite estar em todas as atividades humanas, uma vez que, segundo Agnes Heller, "pensamos, agimos, experimentamos sentimentos e sensações com orientações de valor e através delas. Só se assumíssemos uma perspectiva exterior à sociedade, essas categorias poderiam ser puro objeto de nosso pensamento. Quando afirmo ou nego, convido, proíbo ou aconselho, amo ou odeio, desejo ou abomino, quando quero obter ou evitar alguma coisa, quando rio, choro, trabalho, descanso, julgo ou tenho remorsos, sou sempre guiado por alguma categoria orientadora de valor, freqüentemente por mais de uma. Portanto, é evidente que toda categoria orientadora de valor é um conceito da linguagem corrente. E é igualmente óbvio que toda pessoa também sabe o que significam esses conceitos e, por isso, utiliza-os adequadamente" (HELLER, 1983:58).

Page 105: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Nesse sentido, saúde e doença, do ponto de vista da sua significação social, são categorias orientadoras de valor, porque suas significações sociais influenciam as nossas atividades, os nossos comportamentos e orientam, de forma normativa, nossas decisões quanto ao proibido, ao evitado, ao escolhido e ao preferido. A doença, sem dúvida, é uma orientação de valor que tentamos evitar e que possui um enquadramento sócio-cultural diferente em cada sociedade determinada. A doença, de tal perspectiva, pode ser vista como um constructo social e, ao mesmo tempo, como uma categoria orientadora de valor (Cf. FREIDSON, 1984).

As pessoas, desse modo, sabem o que é doença e, na verdade, elas precisam saber, uma vez que não existe um indivíduo que não tenha tido uma experiência mórbida e necessitado de lhe atribuir, e de lhe acolher, uma significação. O processo de significação da doença envolve indivíduos e coletividades em situações históricas determinadas, em que as diversas representações sociais da doença mental, surgidas dessa experiência comum, não estão numa hierarquia que vai da mais falsa à mais verdadeira, pois o que está em jogo, aqui, é menos a verdade de uma representação social do que, propriamente, a sua significação.

A representação social da doença entre os médicos seria, do ponto de vista de sua significação social, um modelo secundário, construído, como todos os outros modelos, a partir da experiência social com a doença. O modelo médico de doença, assim, é um modelo secundário que se reporta à doença enquanto categoria orientadora de valor. O universo de informações do médico sobre a doença é orientado pelo seu modelo, que, por sua vez, não elimina as influências do campo de representação primário da doença, ou seja, seu modelo de doença codifica as questões levantadas pela experiência social com a doença e faz de sua representação uma unidade de ação e conhecimento incontestável na sua vida cotidiana.

Contudo, é inegável o poder consensual do modelo médico de doença que, praticamente, no mundo moderno, subsume todos os outros modelos à sua hegemonia. Assim, não seria surpresa que, atualmente, o modelo médico de doença fosse o espelho em que se refletem todos os outros modelos secundários, isto é, o modelo médico hegemonizaria os modelos secundários existentes, no "senso comum", ao sobredeterminar o próprio campo de representação primário.

De qualquer forma, o físico e o operário, de nosso exemplo, produzem, também, representações sociais da doença, codificadas a

Page 106: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

partir do campo de representação primário da doença e do modelo médico. Os seus modelos secundários de doença são marcados, certamente, pelos papéis e lugares que eles ocupam na sociedade, mas, apesar disso, não revelam uma distância específica com o padrão primário de representação da doença. Suas representações, em última instância, não têm uma diferença essencial entre si, porque eles não se apropriam da doença enquanto um grupo social específico e, sim, como indivíduos singulares, que vivenciam as suas experiências mórbidas num mundo da vida comum a todos.

O físico e o operário não se apropriam da doença como um objeto de conhecimento - seus objetos específicos são outros - e, sim, vivenciam-na como uma experiência existencial e como uma relação social. Os seus modelos de doença, portanto, estão num universo um tanto indefinido, chamado de "senso comum", que estrutura o seu campo de informações sobre a doença.

Os médicos se tornaram um grupo social específico encarregado de apropriar a doença como seu objeto e, com isso, impuseram fronteiras nítidas com outras formas de percepção do fenômeno mórbido, adquirindo uma autonomia relativa em relação ao "senso comum" e ao próprio campo de representação primário da doença.

De fato, quando um grupo social se especializa na apropriação de um determinado objeto social, ele se distancia de outros grupos e da experiência social, comum a todos, com o dito objeto. A especialidade de um grupo envolve, geralmente, a aquisição de uma legitimidade no exercício do seu saber e uma posição de ilegitimidade para concepções concorrentes. A Medicina personifica muito bem todo esse processo, ao ponto de deter legitimamente o monopólio do conhecimento sobre a doença, podendo, assim, sobredeterminar os campos representacionais, seja o primário ou os secundários, da doença.

A forma de organização intelectual que subjaz no "senso comum" é chamada por Moscovici de "pensamento natural" ou "pensamento representativo", perfazendo uma diferença com a forma intelectual organizativa da ciência: "os quadros onde se elaboram as ciências - homogeneidade da informação, especialização dos grupos, busca de originalidade, etc. - concorrem para mostrar que seus métodos intelectuais correspondem a imperativos coletivos definidos. Pode-se supor que outras organizações intelectuais recorram a métodos e princípios lógicos diferentes, dependendo de relações ou funções sociais diferentes" (MOSCOVICI, 1978:250).

Page 107: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Mas, qual seria a forma de organização intelectual de indivíduos que fazem parte de um grupo social específico e que mantêm com a doença mental uma relação especial?

Em suma, queremos, aqui, penetrar na "forma" em que ocorrem os discursos dos psiquiatras entrevistados, para, inicialmente, encontrar sinais de uma linguagem específica, como a da "representação social", que tem o seu locus no chamado "pensamento natural". Assim, analisaremos, um por um, cada elemento do modelo de "pensamento natural", verificando se ocorre ou não a sua manifestação nos discursos dos entrevistados.

2 - FENOMENOLOGIA DO PENSAMENTO REPRESENTATIVO.

Aparentemente, a resposta de um psiquiatra a uma pergunta como "o que é doença?" teria um campo informativo alicerçado na sua formação científica e na sua experiência clínica. Não haveria, desse modo, uma dispersão de informações e, sim, uma concentração de informações sobre o tema.

Contudo, o que encontramos no material pesquisado demonstrou uma dificuldade, por parte dos entrevistados, em definir o que é doença, doença mental, etc. As respostas, na maioria das vezes, começavam vacilantes, como se existisse um esforço cognitivo para unificar, num todo coerente, a definição dos assuntos tratados. Geralmente, a resposta vinha acompanhada de uma tergiversação e, ao mesmo tempo, de uma tentativa de "negociação" com o assunto, visando a um consenso que mostrasse que a definição de doença, decididamente, é vaga.

Assim, para alguns entrevistados:

"Doença é uma situação que pode ser definida de várias maneiras (...) uma coisa assim muito vasta"; ("psiquiatra-professor") "doença... olhe, doença eu entendo como você ter um... como é que eu poderia definir?... Você tem um... você tem um curso de vida normal... É doença... em Psiquiatria, né? Ou qualquer doença?"; ("psiquiatra") " ah, isso aí é até uma coisa meio difícil da gente conversar (...) eu não sou muito bom em definir"; ("psiquiatra-professor")

Page 108: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

"doença mental é... a ausência de saúde em termos mais específicos, né? Assim, incapacidade da pessoa julgar e..."; ("psiquiatra") "então isso é um conceito que tem assim muito mais, uma fluidez muito maior..." ("psiquiatra-professor"), etc.

A performance claudicante demonstra um tempo de adaptação cognitiva à situação de interpelação e ao assunto proposto, porém mostra, principalmente, um aspecto do "pensamento natural", ressaltado por Moscovici, e que aparece, aqui, de maneira nítida: a pressão para a inferência.

Ora, todo indivíduo na sua vida cotidiana sofre diversas pressões para assumir posições práticas e normativas sobre os mais diversos assuntos, isto é, ele deve sempre estar em condição de responder. O médico-psiquiatra, numa entrevista, não foge a essa regra - mais ainda quando o assunto é doença, pois socialmente ele é o indicado para responder sobre tal assunto. Uma pessoa não médica pode negociar, livremente, a sua definição de doença, ou seja, não se exige dela uma definição precisa, uma vez que não está socialmente "compromissada" a uma resposta necessária. Um médico, contudo, que não consegue definir uma doença, seguramente gera para consigo mesmo e para os leigos um certo constrangimento.

Diante da pergunta "o que é doença?", a primeira coisa notável que aparece, nos discursos analisados, é um sentido de defesa, baseado em reticências, evasivas e vacilações, que, inicialmente, servem para arrumar no pensamento a resposta mais abalizada.

Na verdade, precisa-se de um certo fôlego para iniciar a comunicação, pois, para o entrevistado, "cumpre-lhe optar entre os termos de uma alternativa, tornar estáveis e permanentes opiniões que possuem um alto grau de incerteza, encurtar os possíveis desvios e ligar, a esse respeito, as premissas às conclusões que, por outro lado, não são diretas. Mas tudo isso é resultado de pressões que se observam e que requerem a construção de um código comum e estável, obrigando os participantes a um diálogo, a uma troca de idéias, a fim de adaptarem suas mensagens a esse código (...) os indivíduos que esperam reemitir imediatamente as mensagens recebidas reduzem o número de categorias de julgamento empregadas para as interpretar e unificam, talvez prematuramente, seu campo intelectual. Antecipações precipitadas, adesão estrita ao consenso, a um código, respondem à obrigação que se impõe aos membros de um

Page 109: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

grupo social de estabilizarem o seu universo e de restabelecerem uma significação que estava ameaçada ou era contestada" (MOSCOVICI, 1978:252-253).

As "antecipações" aparecem, com freqüência, nas entrevistas, manifestadas em respostas prontas, em definições lacônicas e tautológicas, bem como fixando a validade do argumento na autoridade de alguma entidade ou pessoa, como no exemplo abaixo.

Perguntado sobre o que é saúde, um entrevistado afirmou:

"É a falta de doença. A inexistência da doença. Bom, brincadeira à parte, né, seria o bem-estar físico e psíquico, né, a aceitação dessa definição das Nações Unidas e ponto final, não se pode discutir mais" ("psiquiatra").

O "argumento da autoridade" pode ser considerado como uma "antecipação", no sentido de que a autoridade oferece ao argumento uma legitimidade que não existiria se ela não fosse referida e, ao mesmo tempo, "esgota" a definição - "não se pode discutir mais". Referir a definições já dadas e consensuais permite que o entrevistado ofereça ao interlocutor "(...) as respostas `dominantes', aquelas que são mais compartilhadas, as mais esperadas e que têm maiores probabilidades de ser entendidas e aprovadas por todos, para que possam ser simultânea e reciprocamente dirigidas e validadas" (MOSCOVICI, 1978:253). Um exemplo de fórmulas consensuais, aliás, aparece na velha máxima, repetida por, pelo menos, dois entrevistados, de que "doença não tem, tem doentes".

Consideramos, também, como um fenômeno da pressão para a inferência, o recurso à definição negativa ("ausência", "falta", "não é...", "inexistência", etc.), isto é, explica-se uma coisa negando-se outra. Esse recurso pode ser utilizado para ajudar no desenvolvimento da resposta como, por exemplo, no dizer de um entrevistado:

"Doença é... doença não é apenas, não é apenas sinal e sintoma não (...) é a ausência de um conforto no sentido amplo, é a ausência de um bem-estar em sentido amplo (...) é fundamentalmente uma falta de possibilidades... uma falta de possibilidades de gerenciar bem a vida..." ("psiquiatra-professor")

Ou, então, simplesmente ocasionar definições circulares e tautológicas. A resposta, por exemplo, "doença é a ausência de saúde" já contém a definição de saúde como "ausência de doença", ou seja, centra-se num pólo que somente existe enquanto negação

Page 110: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

do seu oposto que, por sua vez, aparece definido da mesma forma; em suma, não se define absolutamente nada.

Por outro lado, as fontes de informação dos entrevistados, sobre a doença mental, são menos dispersas do que de pessoas não médicas (Cf. HERZLICH, 1975; JODELET, 1989-B), isto é, o campo informativo dos psiquiatras entrevistados provém de uma configuração que vai do modelo biomédico até o modelo desviante da doença mental. Se não ocorre completamente uma dispersão de informação (MOSCOVICI, 1978:250), pode-se mostrar, pelo menos, o amplo espectro do campo informativo, principalmente no que se refere ao modelo desviante da doença mental, uma vez que este se fundamenta menos no desvio funcional do modelo biomédico do que no desvio social baseado no comportamento, mais próximo de padrões primários de representações sociais.

Todavia, verificamos que o fenômeno da dispersão de informação ocorre com a passagem da pergunta "o que é doença mental?" para "o que é loucura?" e "o que é normalidade?", isto é, para assuntos de difícil enquadramento no modelo biomédico de doença e que necessitam de fontes de informação mais amplas e menos precisas.

Por um lado, a concentração de informação ocorre, sobremaneira, em assuntos como a etiologia da doença - o termo etiologia é mais utilizado em medicina, portanto, mais "tranquilizador" - e a doença neurológica, infinitamente mais "enquadrada" no modelo biomédico do que a doença mental; de outro, a dispersão se torna presente em assuntos como a periculosidade do paciente, a relação entre o saber psiquiátrico e o "senso comum", o preconceito contra o doente mental, etc.

A dispersão de informações ocorre toda vez que não é possível enquadrar um objeto, de forma estável, na sua representação, enquanto que a concentração de informações demonstra uma relação mais estável entre ambos. Os dois fenômenos estariam, assim, relacionados com a zona de interesses do indivíduo e com a adequação do objeto social à sua representação.

No nosso caso específico, poder-se-ia afirmar que a concentração de informações ocorre, também, quando aparece na resposta um jargão próprio do vocabulário médico. Como exemplo paradigmático, observe-se este pequeno trecho do depoimento de um entrevistado:

"Veja, doença neurológica tem sinais, sintomas e substratos anátomo-patológicos claros e definidos, né?.

Page 111: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Doença mental não, salvo algumas doenças específicas, salvo algumas doenças facilmente identificáveis, sobretudo as doenças de caráter neurológico, ou as doenças decorrentes de agressões externas, ou de alteração metabólica, ou de modificação bioquímica...". ("psiquiatra-professor")

Ou, ainda, neste outro depoimento:

"Veja! A doença mental existe quando existe um desequilíbrio de neurotransmissores, com certeza. Aí você fica ansioso, você fica deprimido, você... com medos patológicos, você fica esquizofrênico, você delira, você está intoxicado, você está alcoolizado, você tomou cocaína, bebeu demais, falta serotonina, falta de sistema-GABA, você tem uma depressão endógena até uma depressão endoreativa, que é um estado maníaco. Maníaco, você está excitado, tudo isso corresponde a alterações de uma bioquímica, uma neuroquímica, que corresponde ao sistema de neurotransmissão" ("psiquiatra-professor").

Podemos perceber, sem dúvida, a presença de um jargão médico no emprego de palavras como sinais, sintomas, substratos anátomo-patológicos, alterações metabólicas, neurotransmissores, depressão endógena, etc.

Por outro lado, a dispersão de informações pode ser visualizada, também, através da utilização de um jargão não-médico ou, pelo menos, derivado do vocabulário médico.

Assim, para um entrevistado,

"Loucura é... quer dizer; loucura, pô, loucura é uma porção de coisas... loucura é gíria; pra algumas pessoas, loucura é um estado de bem-estar (...) e, do ponto de vista médico, formal, não é uma palavra que passe muito sentido, né, porque... popularmente é uma desorganização muito grande..." ("psiquiatra")

Ou, ainda, para outro entrevistado:

"Loucura é um termo mais histórico (...) com o qual o indivíduo mostra uma perturbação no seu comportamento, no seu convívio social (...) algo que subleva os padrões, as convenções, as normas de conduta social" ("psquiatra-professor")

E, finalmente, como se vê noutro depoimento:

Page 112: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

"Olha, amigo, seguindo o conceito moderno, quer dizer, normal é aquilo que existe com maior freqüência em termos de comportamento. Então, normal seria isso. Isso pode mudar de região para região, de sociedade para sociedade. Quer dizer, o que é normal na nossa sociedade pode ser anormal na sociedade norte-americana, na sociedade japonesa" ("psiquiatra")

Por outro lado, a dispersão de informações ocorre mais acentuadamente entre os "psiquiatras" do que entre os "psiquiatras-professores". Os primeiros, por exemplo, são mais objetivos e lacônicos, sintéticos e evasivos, apresentando respostas do tipo:

"doença é uma falta de saúde"; "(doença mental) é o afastamento da realidade"; "doença é uma ausência de saúde"; "doença é a alteração de estado físico e mental e social de um paciente"; "(doença) é quando o seu organismo deixa de funcionar normalmente". ("psiquiatras")

Os segundos, por sua vez, são mais prolixos, ilustrativos e, na maioria das vezes, são polissêmicos na definição de doença e de outras noções, como um deles, por exemplo, que afirma que a doença

"é sofrimento, é dor, é desconforto, é perda da liberdade; de uma maneira global, sistêmica, corpo-mente". ("psiquiatra-professor")

Provavelmente, isso ocorre porque os "psiquiatras-professores", pela natureza da sua atividade intelectual, refletem sobre o objeto-doença, e os "psiquiatras" nem tanto, embora a polissemia dos primeiros possa significar, também, uma dispersão de informações.

A dispersão de informações é acompanhada de uma dificuldade de enquadramento, ocorrendo, então, uma maior pressão para a inferência. Mas a determinação maior para o campo informativo é "a focalização dos sujeitos sobre uma relação social ou um determinado ponto de vista (...). Espontaneamente, um indivíduo ou um grupo concede atenção específica a algumas zonas muito particulares do meio ambiente e mantém certa distância em relação a outras zonas do mesmo meio ambiente. A distância e o grau de implicação em relação ao objeto social variam, necessariamente" (MOSCOVICI, 1978:251-252).

Ora, um indivíduo, ao se apropriar de um objeto social, focaliza-o de maneira seletiva, sob o ditame e as regras de sua

Page 113: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

representação; o que não "entra" no modelo precisa, então, ser codificado e apropriado de um jeito que não entre em contradição flagrante com os outros elementos da representação. A focalização seletiva representa uma reapropriação do objeto social ou a sua "neutralização", para eliminar uma possível ameaça a uma unidade de ação e conhecimento. A loucura, nos exemplos citados, é um exemplo dessa focalização seletiva, desde que ela precisa ser enquadrada ou expulsa do modelo vigente.

A loucura pode ser expulsa do modelo vigente por sua incompreensibilidade. Como já vimos, para um psiquiatra entrevistado, a loucura, do ponto de vista médico, "não passa muito sentido".

Ou, então, numa exclamação muito mais peremptória, ela não é, simplesmente, aceitável. Como afirma outro entrevistado:

"a terminologia pode não ser adequada, mas se for levado a sério, o termo loucura não é muito bem aceito, não é um termo médico" ("psiquiatra-professor").

Entretanto, a melhor solução parece ser a do compromisso, isto é, enquadrar a loucura no modelo vigente; assim, a loucura será reconhecida como uma visão vulgar da doença mental.

Desse modo, para um entrevistado,

"A loucura seria principalmente os quadros clássicos de psicose, ditas endógenas (...). O louco seria o psicótico, o nervoso seria o neurótico e o desajustado seria o psicopata". ("psiquiatra-professor")

Ou, ainda, noutro depoimento,

"a loucura existe, então, como a alienação, como a perda do senso da realidade. Em suma, loucura no senso estrito da palavra é o delirante, é a esquizofrenia, é o comportamento bizarro, é a incompreensibilidade, aí sim, essa é a loucura (...), mas deixa bem claro, loucura é uma das coisas, uma pequena coisa dentro do maior que é a doença. Loucura é uma das formas do adoecer psíquico (...), a loucura seria a esquizofrenia". ("psiquiatra-professor")

E, finalmente, para um terceiro entrevistado,

"na minha opinião é o nome vulgar da doença mental. Aí, nesse caso, quando se fala assim é uma coisa mais

Page 114: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

abrangente, mais pra outro lado, menos profunda." ("psiquiatra")

A loucura é capturada nosologicamente por uma projeção do modelo de doença mental da Psiquiatria no "senso comum". Ela é reintegrada no discurso, quando ela é tomada como a visão "vulgar" da doença mental. É amenizado, de certa maneira, a carga desviante que possui o termo "loucura", visto como doença, isto é, o enquadramento nosológico "abafa" as conseqüências maléficas de um desvio social, como a loucura.

Uma característica marcante da fenomenologia da representação social é a personificação dos conhecimentos e dos fenômenos. Podemos notar, com efeito, que, comumente, as teorias vêm acompanhadas com o nome de seu fundador, bem como muitas descobertas anatômicas em Medicina ou terapias vêm, também, personificadas e, até mesmo, fenômenos naturais são tratados com nomes de pessoas. Assim, é possível projetar, sobre uma existência concreta, uma teoria abstrata e obter uma familiaridade com fenômenos impessoais, bem como tratá-los como se eles tivessem uma realidade social perceptível ou, melhor, como se fossem personalidades definidas (MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:553).

Associar coisas com nomes, desse modo, tem uma função cognitiva de tornar um determinado objeto social adequado aos problemas do cotidiano, como também permite, num certo sentido, "materializar" uma representação, facilitando a ação e as inferências cognitivas do sujeito.

Entretanto, não encontramos, no universo das entrevistas, a personificação dos conhecimentos e dos fenômenos; como se fosse por convenção e por formação, os psiquiatras não utilizaram fatores personativos de significação. O interessante desta situação é que a despersonalização dos conhecimentos e dos fenômenos é uma característica do pensamento científico: "os participantes de um discurso científico aprendem com afinco a negligenciar todos os fatores pessoais de significação, os traços lexicais, gramaticais e estilísticos de seu discurso informal deverão ser diferentes; cada cientista reage a cada discurso unicamente por meio das operações pertinentes de seus substitutos lingüísticos" (MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:553).

Se não é possível aplicar essa formulação, literalmente, no nosso material empírico, ela não deixa, contudo, de ser pertinente quando acusa a despersonalização dos discursos encontrados. Porém, resta ainda a explicação do porquê dessa

Page 115: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

despersonalização, encontrada em conjunto com outras características fenomenológicas da representação social (pressão para a inferência, focalização e dispersão de informação).

Pode-se levantar, aqui, algumas hipóteses: 1) a despersonalização seria causada pela formação médica do psiquiatra, que implementaria um discurso similar ao do científico; 2) o discurso biomédico é despersonalizado em essência, pois naturaliza o doente em doença, influenciando, portanto, a própria expressão cognitiva desse discurso; 3) o discurso dos psiquiatras é ambíguo, incorporando elementos fenomenológicos do discurso do "senso comum" e da ciência.

Desse modo, seguindo o desenvolvimento de nossas análises ao longo do trabalho, concordaríamos com a combinação das hipóteses 1) e 3).

Mas, se não aparece uma personificação do conhecimento e dos fenômenos nos discursos analisados, certamente não é o caso do processo de figuração, isto é, os discursos apresentam, com freqüência, a substituição dos conceitos e das argumentações por imagens construídas através de uma linguagem metafórica e cheia de hipérboles.

Como exemplo, transcrevemos resposta de um entrevistado sobre a existência ou não de periculosidade no paciente psiquiátrico:

"Ah, existe! Existe! (...) um paciente arrancou dois olhos de um outro e um olho extra de um outro paciente, ficando três olhos no chão, dentro de um hospital superlotado de pacientes antigos e crônicos (...) houve uma cena horrenda, em que um paciente, fortíssimo, espancou um paciente que ficou muito mal, e um outro que teve um traumatismo craniano, com exposição de massa encefálica (...), esse homem não foi tolhido nem com a chegada da rádio-patrulha; só o foi com uma massa de pacientes, com os enfermeiros e a rádio-patrulha (...). Evidentemente, que essa periculosidade era n vezes maior no tempo de Pinel, não sei como ele teve coragem de cortar as cadeias..." ("psiquiatra-professor")

Realmente, não se pode negar o impacto persuasivo dessa imagem fortíssima, que foi utilizada, na argumentação, para defender a existência de uma periculosidade do paciente psiquiátrico, estimulada pelo ambiente do asilo mas controlada pelo uso de psicofármacos.

Page 116: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Diz, ainda, o mesmo entrevistado:

"Eu, na minha clínica privada, não tenho qualquer tipo de problema, nunca tive qualquer tipo de problema com nenhum doente bem medicado, sobretudo, atualmente, porque você sabe que a periculosidade maior está naquele paciente esquizofrênico retardo; (...) esse tipo de paciente pode ser beneficiado com as medicações; basta uma injeçãozinha intra-muscular uma vez por mês feita em ambulatório (...). Esse paciente, provavelmente, é um excelente candidato pra viver na sociedade. Periculosidade existe, mas pode ser trabalhada, é isso o que eu quero dizer. Eu não posso negar que a periculosidade existe, como existe o risco de suicídio. Mas isso não justifica a criação do asilo. O asilo é muito mais grave para o prejuízo humano do que a eventual eclosão..." ("psiquiatra-professor")

Portanto, a argumentação não é desenvolvida com argumentos "neutros", que defendam o uso de psicofármacos e o fim do asilo, e, sim, pelo uso de imagens expressivas de conteúdo violento, que têm o objetivo de persuadir de uma forma mais "emocional" do que, propriamente, racional e lógica. A imagem de violência, construída pelo entrevistado, leva-nos a uma outra que se refere à agressividade do doente mental.

O uso de imagens e metáforas no lugar de conceitos denota uma tentativa de simplificar a comunicação. Na verdade, o emprego de tais recursos não é exclusivo do "senso comum", mas de toda tentativa de comunicação em situações, por assim dizer, informais. Assim, o conceito de "força", por exemplo, que na Física se traduz por uma relação entre a massa e a aceleração, adquire, no "senso comum", um sentido de esforço, análogo a desempenho e a tração muscular (MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:555).

Se um indivíduo conhece Física e emprega a imagem da tração muscular para entender o que seja força em mecânica, ele estará usando o processo de figuração para ilustrar o seu argumento e torná-lo mais fácil de aceitação, como é usual, por exemplo, na vulgarização da teoria da relatividade, que não é feita pela demonstração de cálculos complexos e, sim, por exemplos tirados do cotidiano. Outra situação, sem dúvida, é um indivíduo, desconhecedor da mecânica, que utiliza o termo na frase "a força é a lei", numa conversação cotidiana.

Provavelmente, os dois exemplos acima demonstram um processo de figuração, embora o primeiro indivíduo saiba o que é "força", do ponto de vista mecânico, e empregue imagens com fins didáticos

Page 117: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

e ilustrativos; enquanto o segundo pensa que "força" é o que ele diz. Pode-se demonstrar, no segundo caso, que o termo "força" vem da física mecânica; contudo, o termo atualizado no "senso comum" passou por tantos processos de filtragens e de elaborações, que se encontra numa cadeia sinonímica, indiferenciado e imerso, em companhia de outros termos, tais como: robustez, vigor, energia, autoridade, poder, prestígio, influência, valor, esforço, ânimo, coragem, veemência, intensidade, violência, violação, impulso, estímulo, incitamento, potência, ação, etc.

Desse modo, podemos entender o processo de figuração de dois modos: o primeiro, no sentido de uma substituição de conceitos por imagens, metáforas, etc; o segundo, como um processo de substituição de conceitos científicos - que foram apropriados e elaborados - por imagens "equivalentes" no "senso comum". Acreditamos que a segunda conceituação seja a mais próxima de Moscovici, embora encontremos, nos seus exemplos, uma ambigüidade suficiente que permita uma utilização da primeira conceituação.

De qualquer forma, o processo de figuração, que encontramos nas entrevistas, teve, como característica principal, a substituição de conceitos e argumentações por imagens e ilustrações de exemplos, muitos dos quais com conotações afetivas, com a função aparente de tornar o argumento o mais persuasivo possível.

Nesse sentido, sobre a razão do preconceito contra o paciente psiquiátrico, um entrevistado afirma:

"Uma razão que se deve entender é a decantada agressividade. O louco pode agredir alguém, matar alguém de alguma maneira. Você pode ser agredido por ele dentro de casa, você está dormindo, ele lhe mata você dormindo (...) quando traziam o doente, a coisa mais interessante de você ver, é que a família chega, traz o doente pra internar, porque ninguém suporta alguém agredindo, ou o pai, ou a mãe, a sogra, o papagaio... quebrou tudo dentro de casa (...) quer dizer, eu acho (o preconceito) muito ligado à agressividade, ao potencial de risco que ele (paciente) ofereceria, e isso decantado durante `n' gerações. Eu acho que fica alguma coisa disso e, principalmente, é o medo do desconhecido que está dentro de todos nós". ("psiquiatra")

Na verdade, a figuração, nesse caso, não é apenas a substituição de um conceito por uma imagem e, sim, a substituição de uma argumentação, baseada num estilo médico, científico e

Page 118: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

quase "abstrato", por uma outra próxima do "senso comum", baseado num estilo expressivo e concreto.

De fato, poder-se-ia afirmar a periculosidade do paciente psiquiátrico e formular uma resposta ao preconceito social existente sob uma linha de argumentação "conceitual".

É interessante verificar que o entrevistado, autor da argumentação, afirmara anteriormente que a loucura não era um termo médico, embora, no caso acima, tenha substituído, em um momento (ato falho?), os termos médicos "paciente psiquiátrico" e "doente mental" por um termo do "senso comum": "louco". Mas, "louco" não é uma imagem, embora possa contribuir para formar uma que, nesse caso, reforce o núcleo central da argumentação, isto é, a agressividade.

O último elemento fenomenológico da representação social é a ontologização das relações lógicas ou empíricas, que se refere à passagem do conteúdo próprio da ciência ao do "senso comum".

Ora, a lógica da ciência é uma lógica de relações. Se, por um lado, "ela tenta diminuir ao máximo a possibilidade de passar um status de substâncias e de coisas aos resultados de suas análises e de suas observações (...), por outro, (...) as representações têm uma propensão a corresponder às idéias e às palavras coisas, qualidades e forças (...), isto é, (...)a representação ontologiza um ser lógico e mesmo verbal" (MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:555).

Um exemplo clássico de ontologização foi proposto, por Moscovici, na sua obra A representação social da psicanálise, em que verifica a transformação de um conceito abstrato, como o analítico de complexo, numa coisa biológica existente nas pessoas.

Em nossa pesquisa, encontramos, sem dúvida, alguns exemplos de ontologização nos discursos analisados, sendo o mais evidente a declaração, abaixo, de um entrevistado:

"Doença mental? Olhe, doença mental, como eu entendo, é o seguinte, quando existe uma quebra... no... seu psiquismo, tem uma certa anormalidade e de repente ele começa a ter alterações..." ("psiquiatra")

Nesta formulação, o psiquismo é visto como uma coisa que se "quebra", gerando alterações e anormalidades na pessoa. O recurso à ontologização, nesse caso, tem uma clara função de

Page 119: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

simplificação da representação intelectual. De fato, ao relacionar a cada noção um fenômeno e a cada palavra uma coisa, "... é possível diminuir o número de associações mentais e encurtar as cadeias lógicas" (MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:556), isto é, reintroduz-se a problemática num contexto geral mais simplificado e mais acessível.

Contudo, existe um processo de ontologização, que ocorre comumente no discurso médico-psiquiátrico, distinto daquele que acontece no "senso comum", isto é, a ontologização mais freqüente no discurso analisado é a ontologização da própria doença.

Nesse sentido, um entrevistado afirma que

"A percepção médica é aquela que nós aprendemos na Faculdade, né? Seria aquela percepção acadêmica da doença em si" ("psiquiatra");

Ou, ainda, como afirma outro depoente:

"... o psiquiatra, como médico, tenta colocar a doença mental como alguma coisa que esteja desorganizada dentro do seu psiquismo, do seu corpo, da sua mente. Então, ele procura alguma coisa que está errada no sistema neuro-central, alguma coisa que está errada no cérebro, que está provocando isso..." ("psiquiatra");

Ou, enfim, na afirmação de um terceiro entrevistado:

"doença neurológica é aquela que se exterioriza através de sinais e sintomas eminentemente orgânicos" ("psiquiatra-professor");

Igualmente, consideramos a afirmação "doença é a ausência de saúde", comum nas entrevistas, como uma ontologização, uma vez que a ausência de saúde é a presença da doença, significando uma oposição radical entre ambos. Ora, "o estado patológico não é uma alteração da normalidade, mas a presença ou ausência de um princípio definido. Entre saúde e doença não pode haver continuidade ou comunicação: o abismo que as separa é qualitativo" (PELBART, 1989:207) .

A Medicina ontológica é antiga e predominou cientificamente até o início do século XIX, quando surgiu, segundo Foucault, a medicina dos sintomas e a anatomia patológica (Cf. FOUCAULT, 1987). A Medicina, desse modo, apresentou um novo olhar, em que "... o significante sintoma e o significado doença fundem-se num

Page 120: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

único registro, tomando a totalidade da cena médica: não há mais essência patológica" (PELBART, 1989:208). A doença mental, em particular, caiu nas rédeas do par bipolar normal/patológico, tornando-se um tipo específico de comportamento desviante.

Porém, se a ontologia da doença foi destruída cientificamente, ela continuou a predominar profissionalmente. Segundo Jean Clavreul, "no século XIX, o combate antiontológico e antinosológico foi mais obra dos biólogos e filósofos que dos médicos. (...) Mesmo hoje, o retorno ao conceito de doença é inevitável. Qualquer que seja o interesse de estudo das modificações quantitativas que possam sofrer as constantes biológicas, a doença permanece um fato qualitativo" (CLAVREUL, 1983:135).

A ontologização da doença, portanto, é um fato epistemológico, relacionado à hegemonia de um paradigma, baseado nas ciências naturais, na profissão médica. A reificação do fato patológico passa por uma necessária naturalização do doente e a imposição da ausência de qualquer discurso por parte do doente. Ou, como diria Leriche: "Se se quer definir a doença, é preciso desumanizá-la" (CLAVREUL, 1983:136).

Assim, a ontologização da doença verificada nas entrevistas não indica, necessariamente, um elemento do "senso comum" no discurso dos psiquiatras e, sim, um elemento original do próprio saber psiquiátrico. A ontologização da doença no "senso comum", por sua vez, percebida pelos trabalhos da Psicologia Social, pode ser produto não apenas de uma reificação de um ser abstrato, como a doença, mas, sim, uma cristalização de um fenômeno que já vem da própria Medicina.

Devemos enfatizar, ainda, que a ontologização da doença predominou entre os "psiquiatras", enquanto que os "psiquiatras-professores", com exceção de um, enfatizaram a doença como um desvio patológico da normalidade, embora visões ontológicas, também, permeassem as suas respostas.

De qualquer forma, como bem alertou Jodelet, "a tendência a dotar de realidade um esquema conceitual não é privativa do 'senso comum'. P. Roqueplo destaca a tentação, entre os próprios cientistas, de ontologicizar os modelos que familiarizam o aspecto teórico do seu saber. O modelo 'coisificante' do átomo levou os físicos a considerar que o eletron é 'algo'que gira ao redor de 'outra coisa', o núcleo" (JODELET, 1986:483).

Page 121: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Por fim, vale a pena, neste momento, fazer um pequeno parêntese e examinar mais de perto o seguinte problema: durante as entrevistas e sua análise, ficamos diante de uma questão que precisava de um exame mais atento, ou seja, explicar o motivo da grande dificuldade da maior parte dos entrevistados em definir o objeto da sua disciplina, a doença mental. Como a relação entre o psiquiatra e o seu objeto clínico é fundamental na discussão sobre a representação social da doença mental, achamos pertinente investigar, com mais atenção, esse problema.

Acreditamos que a fenomenologia da representação - discutida, acima, em pormenor - explica, em parte, o motivo da dificuldade de resposta dos entrevistados. De fato, eles também ficaram em apuros para responder, com precisão, ao que seriam normalidade e loucura, por exemplo. Pode-se argumentar, aqui, que tais termos não são propriamente "médicos" ou que ultrapassam as noções habituais da Medicina, tendo por isso causado um quase tormento para a resposta. E, realmente, os entrevistados, na maioria, não tiveram trabalho em responder sobre o tratamento, a etiologia - mesmo se argumentando que não existe, ainda, consenso na matéria - e, principalmente, sobre a doença neurológica. Se a confusão para responder "o que é a doença mental?" fosse determinada pela condição mesma do discurso expresso oralmente, haveríamos de supor que, em todas as perguntas, os entrevistados teriam tido dificuldade em dar uma resposta - o que não foi o caso.

A título de hipótese, podemos insinuar duas outras explicações diferentes, embora complementares, para a dificuldade dos psiquiatras em responderem, por exemplo, "o que é doença?", que saem do âmbito da "fenomenologia da representação".

Podemos explicar a dificuldade dos entrevistados em definir a doença mental, demonstrando que tal noção é "politética".

Tal termo foi forjado, segundo Boudon, pelo antropólogo R. Needham, influenciado pelas análises de Wittgenstein nas "Investigações Filosóficas". Assim, "ele designa precisamente essas palavras que evoca Wittgenstein, nas quais o sentido é determinado pelas semelhanças de família que ligam os seus diversos usos" (BOUDON, 1990:328). Podemos perceber melhor isso, na análise da palavra "jogo", realizada pelo filósofo austríaco:

"§66 - Considere, por exemplo, os processos que chamamos de 'jogos'. Refiro-me a jogos de tabuleiro, de cartas, de bola, torneios esportivos, etc. O que é comum a todos eles? Não diga: "Algo deve ser comum a eles, senão não se chamariam 'jogos'",-

Page 122: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

mas veja se algo é comum a eles todos. - Pois, se você os contempla, não verá na verdade algo que fosse comum a todos, mas verá semelhanças, parentescos, e até toda uma série deles. (...) Considere, por exemplo, os jogos de tabuleiro, com seus múltiplos parentescos. Agora passe para os jogos de cartas: aqui você encontra muitas correspondências com aqueles da primeira classe, mas muitos traços comuns desaparecem e outros surgem. (...) E assim podemos percorrer muitos, muitos outros grupos de jogos e ver semelhanças surgirem e desaparecerem

E tal é o resultado desta consideração: vemos uma rede complicada de semelhanças, que se envolvem e se cruzam mutuamente. Semelhanças de conjunto e de pormenor.

§67 - Não posso caracterizar melhor essas semelhanças do que com a expressão "semelhanças de família"; pois assim se envolvem e se cruzam as diferentes semelhanças que existem entre os membros de uma família: estatura, traços fisionômicos, cor dos olhos, o andar, o temperamento, etc., etc" (WITTGENSTEIN, 1979:38-39).

A expressão doença mental seria como o termo jogo; não teria uma definição precisa, pois recobriria, nos seus diversos sentidos, toda uma gama de semelhanças e assim conservaria uma imprecisão crônica.

A doença mental é um constructo social, ou seja, ela é construída socialmente como uma experiência individual e coletiva. A sua significação social gera uma polissemia, porque todos os indivíduos e os grupos sociais podem, em última análise, proferir-lhe um sentido, embora, na sociedade moderna, a Medicina tenha, para isso, uma maior legitimidade. Existiria, portanto, uma distribuição social - comumente assimétrica - de significações da doença mental, cada uma com a sua pretensão de validade.

Tal raciocínio é perfeitamente aplicável à doença em geral, tanto à sua construção social como à sua polissemia. Dessa forma, a dificuldade de definir a doença é reconhecida por vários autores; Jaspers, por exemplo, afirma que o médico é aquele "que menos procura o sentido das palavras 'saúde e doença'. Do ponto de vista científico, ele trata dos fenômenos vitais. Mais do que a opinião dos médicos, é a apreciação dos pacientes e das idéias dominantes do meio social que determina o que se chama 'doença'" (JASPERS, apud GANGUILHEM, 1982:93). Giovanni Berlinguer, por sua vez, escreve que "tudo se complica quando se procura definir o que é a doença" (BERLINGUER, 1985:19).

Page 123: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

A hipótese de que a doença mental é uma expressão "politética" e, também, polissêmica tem sua validade, embora continue não explicando porque foi mais fácil, aos entrevistados, responder sobre a doença neurológica do que sobre a enfermidade mental. Podemos responder a essa questão, discutindo a segunda explicação, que pode ser considerada uma continuação da problemática discutida acima.

Quando um médico precisa definir o que é uma doença, pode utilizar, entre outros, o recurso de defini-la, tomando como referência a sua etiologia. Tal recurso é interessante porque permite ao médico discernir o elemento comum das doenças. Ainda que várias doenças tenham etiologias diferentes, tal fato não impede de serem definidas a partir de um critério geral, fundado na anatomia patológica. Acreditamos, assim, que o recurso à etiologia, como critério definidor da doença, permite um esvaziamento da pressão polissêmica, quanto aos significados da doença, proveniente do meio social. Ela não seria mais, na aparência, um termo "politético" e permitiria uma definição mais precisa e menos ambígua.

Pode-se argumentar, aqui, que a transformação, para um determinado público, de um termo "politético" a um "não politético", significaria que ele foi, enfim, apropriado cientificamente; ou, então - esse argumento não exclui o anterior -, que o critério etiológico tem uma sólida ancoragem institucional na Medicina, demarcando-se naturalmente como o verdadeiro princípio definidor da doença (Cf. BOUDON, 1990:354).

A definição de doença fica subordinada, assim, à definição de sua etiologia, embora isso não signifique, necessariamente, responder à pergunta "o que é doença?" e, sim, "qual é a etiologia de tal ou qual doença?", fato que, no fundo, mascara a polissemia inerente ao termo "doença".

Na verdade, a Psiquiatria não tem um consenso etiológico e, sim, um conjunto de tendências nosológicas, que propõem essa ou aquela etiologia. Definir a doença mental a partir de um critério etiológico é marcar posição e, em suma, polemizar. Assim, sem consenso etiológico, a significação de doença mental, do ponto de vista da Medicina, fica "livre", excessivamente livre, da definição de sua etiologia e de toda normatização - et pour cause, a "doença mental" permanece como uma expressão "politética".

Assim, a dificuldade dos entrevistados em definir a doença mental se deve, basicamente, a um problema particular de sua

Page 124: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

disciplina: a falta de um consenso etiológico. Por isso, pôde-se definir a doença neurológica de uma maneira mais fácil, porque esta possui critérios etiológicos consensuais, permitindo uma definição a partir de uma causalidade reconhecida. No entanto, essa hipótese se alicerça numa outra anterior: os entrevistados aceitam que a definição de doença necessita de uma etiologia reconhecida. E, tal hipótese, não é de todo evidente, pois um dos entrevistados defendeu que a doença mental ultrapassa o paradigma médico, afirmando assim um dualismo nosológico. Mas não sabemos se esse dualismo se propõe a sustentar um outro tipo de causalidade para a doença mental ou se exclui a necessidade mesma de uma etiologia definidora.

3) O ESTILO DO PENSAMENTO REPRESENTATIVO

Uma situação de conversação impõe elementos cognitivos e expressivos, podendo refletir-se no conteúdo e na forma do discurso de um sujeito. Se os nossos entrevistados tivessem escrito as suas opiniões, teríamos, certamente, encontrado diversas mudanças significativas na análise; as vacilações, as tergiversações, a pressão para a inferência, por exemplo, provavelmente não teriam aparecido com tanta nitidez. Haveria, nesse caso, uma pressão para evitar as contradições e um investimento na apreensão das categorias, evitando superposições de noções antagônicas entre si - o discurso apareceria bem mais "médico".

Um texto escrito oferece menor poder de negociação para um possível consenso entre interlocutores, mas, em compensação, ele tem um tempo duradouro e um espaço contínuo para conseguir tal intento. Um texto escrito por um médico, por exemplo, sobre um assunto médico, é um trabalho reflexivo que exige dois sistemas cognitivos: "um que procede às associações, inclusões, discriminações e deduções, ou seja, o sistema operatório, e o outro que controla, verifica e seleciona com a ajuda de regras, lógicas ou não; trata-se de uma espécie de metassistema que reelabora a matéria produzida pelo primeiro" (MOSCOVICI, 1978:255-256).

Por outro lado, a situação de conversação é uma comunicação de idéias, em que os interlocutores, face a face, tentam forjar as suas idéias e reflexões no desenrolar dessa interação. Os objetivos da interação comunicativa são produzir uma influência ou uma aprovação, pois "nenhum outro produto é esperado, nem dela resulta" (MOSCOVICI, 1978:255).

Page 125: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Desse modo, "tal pensamento é o seu próprio fim, e se visa à persuasão, à aprovação, também visa simplesmente à possibilidade do indivíduo ou do grupo poder orientar-se, poder compreender, e não constituir um discurso que seja duradouro e transmissível como obra acabada, livro ou artigo. Por conseguinte, a comunicação é, por um lado, direta e, por outro, transitória, limitada no tempo. Tudo se passa como se o único registro possível de opiniões, de produtos intelectuais, estivesse no cérebro e no corpo humanos" (MOSCOVICI, 1978:255).

O "pensamento natural" exige, também, um sistema operatório que comande as associações, inclusões, etc.; mas ele se diferencia quanto ao metassistema, que possui um caráter normativo. Moscovici entende que, com isso, "a) o pensamento natural está orientado para a comunicação direcional e "controvertível"; b) o pensamento natural implica, como todo pensamento, um sistema de relações operatórias e um metassistema de relações de controle, de validação e de manutenção da coerência. Entretanto, neste caso, as últimas relações são normativas. Isso basta para explicar por que se trata de um pensamento que utiliza regras lógicas, mas não as aplica conscientemente" (MOSCOVICI, 1978:257).

Moscovici afirma, com razão, que toda pessoa no cotidiano baseia suas reflexões num mundo bastante hierarquizado, "onde existem regiões preferenciais, tendências mais para um modo de reflexão do que para um outro e significações estáveis. Estas indicam as combinações permitidas e as combinações proibidas de proposições disponíveis. Buscando quais sejam os critérios de combinações permitidas e interditas, verifica-se que as primeiras são as que estão associadas, direta ou indiretamente, ao grupo do sujeito, e as segundas as que se associam a um outro grupo. Quanto mais esses grupos forem definidos, mais claras são as permissões e interdições" (MOSCOVICI, 1978:256).

As opiniões, desse modo, constroem-se em referência ao outro do grupo e, provavelmente, "um católico irá recusar-se a reter certo número de opiniões e juízos que ele mesmo formulou se souber que, por outro lado, tais opiniões ou juízos são aprovados ou emitidos por um comunista. Nesse contexto, os semelhantes se repelem e os contrários se atraem" (MOSCOVICI, 1978:256).

Tudo indica que, para Moscovici, a existência de um metassistema normativo é monopólio do "senso comum". O metassistema da ciência, como foi dito acima, "controla, verifica e seleciona com a ajuda de regras, lógicas ou não" o sistema operatório, porém não o normatiza.

Page 126: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Mas, o que significa "regras lógicas ou não"? "Ou não" pode significar regras normativas? Difícil saber!

Contudo, e para usar a mesma linguagem de Moscovici, o conhecimento científico pode ter um metassistema de caráter normativo, bem como o médico profissional, geralmente, busca critérios de "combinações permitidas e interditas", em que "as primeiras são as que estão associadas, direta ou indiretamente, ao grupo do sujeito, e as segundas as que associam a um outro grupo" ou, também, a algo que não possa ser inscrito nas possibilidades do seu saber.

O conhecimento científico tem um metassistema normativo, porque, antes de tudo, é um discurso ou, como diria Granger, " a ciência é um discurso e quem silencia sobre esta condição arrisca a não mais encontrá-la" (GRANGER, apud EPSTEIN, 1990:103). Um discurso que, certamente, possui uma sintaxe que sofre "(...) as constrições que interligam os fenômenos e representam as chamadas `leis científicas'. Mas, e a sua semântica? Por quais `significados' estão estes significantes?" (EPSTEIN, 1990:7).

O "empirismo lógico" (Cf. ABBAGNANO, 1984:7), por exemplo, propôs, entre outras coisas, um metassistema normativo que controlasse a "semântica" do discurso científico e que funcionasse como uma vacina para qualquer tipo de discurso especulativo. Tal metassistema estaria encarregado de "determinar prescrições sobre como os cientistas `devem' praticar a ciência" (EPSTEIN, 1990:105). O falsificacionismo de Popper, por sua vez, exigiu o estabelecimento de "(...) normas que permitam distinguir os enunciados científicos dos não científicos" (EPSTEIN, 1990:105).

Pode-se dizer que, nesse caso, existiria a necessidade de um específico metassistema normativo interno às ciências e que "norma", aqui, não se refere ao campo das normas sociais.

Mas, e as influências externas, as normas e os valores sociais?

Um famoso paleontólogo e historiador da ciência, uma vez, nos avisou de que " a maioria de nós não somos suficientemente ingênuos para acreditar no velho mito de que os cientistas são modelos de objetividade isenta de preconceitos, igualmente abertos a todas as possibilidades e chegando às suas conclusões apenas através do peso dos indícios e dos argumentos lógicos. Nós temos a compreensão de que nossas predisposições, preferências,

Page 127: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

valores sociais e atitudes psicológicas desempenham importante papel no processo de descoberta" (GOULD, 1990:281).

Pode-se dizer, também, que a situação, supracitada, não se relaciona com um metassistema propriamente dito e que o metassistema do "senso comum", que se utliza, igualmente, de regras lógicas, embora não as aplique conscientemente, é de natureza diferente daquele da ciência.

Tudo bem! Mas isso não impede a existência do "senso comum"!

O problema, talvez, fique mais nítido com a aplicação do conceito de paradigma na produção científica. Desse ponto de vista, "as práticas teóricas e experimentais são regidas pelas regras ou princípios do paradigma vigente. As leis ou teorias estabelecidas não podem contradizer estes princípios ou regras. Estes têm alguma semelhança com as regras de um jogo. Neste último caso, todavia, as regras são explícitas e o seu caráter arbitrário e convencional é óbvio. Nos paradigmas, o fator convencional e arbitrário de suas regras, que são implícitas e nem sempre totalmente conscientes, fica, de algum modo, oculto, (...), o resultado dos experimentos científicos testam menos a validade dos princípios do paradigma do que a capacidade dos cientistas em resolver quebra-cabeças com solução mais ou menos garantida por estas regras, mas que, de qualquer forma, não podem infringi-las" (EPSTEIN, 1990:108-109).

Por outro lado, quando um católico, para utilizar o exemplo de Moscovici, recusa as opiniões de outro grupo, como o comunista, ele está seguindo os seus valores e suas supostas regras de convivência; mas, quando ele aceita as opiniões comunistas voluntariamente, supõe-se que ocorreu uma negação das suas antigas opiniões e uma adesão ao comunismo. Pois bem, como diria Kuhn, "decidir rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro..." (KUHN, 1975:108).

Um médico tem a tendência de raciocinar conforme seu modelo biomédico de doença e rejeitar proposições estranhas ao mesmo. Seu raciocínio clínico pode ser, sem dúvida, extremamente lógico, mas a projeção de um significado a uma doença depende menos da clínica do que do modelo de doença do médico. É inevitável que sua representação de doença imponha uma normalização na sua conduta profissional, para que ele possa reconhecer socialmente o que são saúde e doença.

Rejeitar ou aceitar uma representação de doença mental não significa, necessariamente, que foram utilizados critérios

Page 128: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

"científicos", mas, também, critérios normativos, advindos da visão de doença mental do sujeito.

Se existem normas a guiar as escolhas dos psiquiatras entrevistados, podemos supor que elas estejam relacionadas à identidade profissional e à do seu saber, inscritas na sua representação de doença mental, o que, aliás, foi possível perceber nas respostas relacionadas com a visão de doença e de tratamento dos não-médicos.

Quando, por exemplo, perguntamos sobre a diferença entre a percepção leiga da doença mental e a médica, surgiram respostas como a que segue:

"Eu acho que a médica é mais restrita, porque a gente vai seguindo critérios e o que a maioria das pessoas pode pensar de doença mental, às vezes, não é necessariamente isso não. Um pequeno desvio pode fugir um pouco da normalidade; uma pessoa assim mais excêntrica, às vezes, as pessoas pensam ser um doente mental, que, na realidade... a gente, como psiquiatra, não percebe isso. No caso da doença mental, para o psiquiatra deve haver alguns critérios, pelo menos para mim. Eu sigo os critérios..." ("psiquiatra")

A Psiquiatria, por esse ponto de vista, diferencia-se do "senso comum" por possuir critérios (não sabemos ainda de qual natureza) que lhe permitem, por exemplo, não confundir um pequeno desvio com uma doença mental. Insistimos, então, no tema, perguntando qual seria a superioridade da Medicina em relação ao "senso comum".

Ainda, segundo o mesmo entrevistado, por exemplo,

"Seria, a partir do momento que a gente entra em contato com o ser, em contato com a pessoa, é... já seria... é... com a intenção assim de tratar ou, pelo menos, de ter alguma conduta em relação a isso". ("psiquiatra")

O psiquiatra, assim, teria um contato mais profundo com a pessoa - "com o ser" -, provavelmente com uma pessoa com algum problema ou desvio, e esse contato já seria com uma intenção de tratar ou, segundo o entrevistado acima, "pelo menos, de ter alguma conduta em relação a isso".

Poder-se-ia interpretar tal afirmação supondo que o contato mais profundo tenha uma relação direta com a intenção de tratar, não ficando o psiquiatra passivo diante de um desvio ou de um "problema" de uma pessoa.

Page 129: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

No entanto, nossa insistência no tema continuou, afirmando o mesmo entrevistado que:

"Eu acho que a gente (os psiquiatras) vê, observando com mais exatidão e... e... vou citar mais um exemplo: no caso das pessoas achar alguém diferente, ficam comentando, só comentando, e a gente (os psiquiatras) quando percebe alguma coisa não vai ridicularizando, não vai... Pode, até, levar em conta determinada conduta dessa pessoa, orientar se for o caso... Uma pessoa... um amigo que tá com alguma coisa, e a gente percebe e orienta um tratamento... ("psiquiatra")

O psiquiatra, assim, teria critérios para distinguir uma doença de um simples desvio, pois ele tem um "olhar" que permite uma observação mais precisa. Ele não ridiculariza o desvio ou a doença mental, isto é, ele desestigmatiza, orientando e tratando; o psiquiatra "vê" melhor, porque tem melhores critérios, embora tais critérios não tenham sido esclarecidos pelo entrevistado.

Contudo, nas duas últimas respostas, ressaltam-se a intenção e a orientação de tratamento. Ora, o tratamento da doença é um mandato social do médico e significa uma renormalização da pessoa "problemática ou desviante" no meio social-afetivo. Trata-se, pois, de uma questão menos científica do que normativa o imperativo psiquiátrico de tratar o comportamento desviante patológico.

"Ver" um desvio - mesmo que seja uma doença e que a nossa percepção seja melhor do que as outras - significa a produção de uma avaliação, conforme um condicionamento social e critérios normativos, desde que avaliar uma doença somente é possível através de uma concepção da mesma. Ora, uma "concepção de doença é muito diferente das concepções ou realidades científicas neutras, tal como o `vírus' ou as `moléculas', visto que, por natureza, ela é avaliativa. A Medicina é um empreendimento moral como o direito e a religião, no qual o objetivo é descobrir e enquadrar as coisas que ela considera como indesejáveis" (FREIDSON, 1984:214).

Isso não quer dizer que não exista um fundamento científico na Medicina e que não se reconheça a realidade biológica da doença. O problema é que, quando se chama alguma coisa de "doença", as conseqüências desse ato são independentes do estado biológico do organismo.

Page 130: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Na verdade, podemos perceber, de novo, a exclusão de uma visão de doença mental, que compete com a psiquiátrica, no depoimento abaixo:

"É muito difícil, muito difícil diagnosticar loucura. Eu não aceito essa terminologia `loucura'. Eu sou mais pela definição de doença mental, certo? Porque loucura tornou-se pejorativo atualmente; porque no início ela englobava só as psicoses e hoje qualquer indivíduo que altere um pouco o seu comportamento é louco. Então, na minha concepção, loucura é apenas um adjetivo e não sinônimo de doença mental" ("psiquiatra")

Reafirma-se, aqui, a nosologia médica ("eu sou mais pela definição de doença mental"), ao ponto de se reconhecer a dificuldade de "diagnosticar" a loucura, e, ao mesmo tempo, recusa-se este termo, porque é pejorativo, visando a uma despreconceitualização da doença mental.

Mas a recusa da noção de loucura tem como motivo, também, o fato de ela pertencer a uma visão do "senso comum", como bem parece mostrar o depoimento abaixo, do mesmo entrevistado:

"Olha (...) a percepção médica (da doença mental) é aquela que nós aprendemos em termos de faculdade, né? Seria aquela percepção acadêmica da doença em si. Enquanto que a percepção vista pelas pessoas leigas diz muito respeito àquela definição que eu te falei sobre loucura, anteriormente, que é quase no aspecto pejorativo. Quer dizer, qualquer indivíduo, pelo simples fato de ter um distúrbio mental é taxado como doente mental ou louco. Eu acho que essa percepção do leigo se choca frontalmente com a percepção que eu tenho como profissional médico. Então, fica difícil para mim chegar a uma conclusão do que é a percepção vista pelo leigo (...) fico sem meios para definir realmente o que significa isso, essa diferença um do outro". ("psiquiatra")

Novamente, a ênfase em "despreconceitualizar" a doença mental, via rejeição do termo loucura, reconhecido como um termo leigo, sugere um choque entre as duas percepções de tal magnitude que impede, até mesmo, o entendimento de uma pela outra.

Na verdade, enquanto no primeiro exemplo a diferença, basicamente, residia nos critérios de doença e na intenção de tratamento, o segundo se relaciona com a capacidade de diagnosticar. Ora, "o diagnóstico e o tratamento não são atos biológicos aos ratos, aos macacos e aos homens, mas atos sociais

Page 131: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

particulares aos homens" (FREIDSON, 1984:215), isto é, diagnosticar e tratar uma doença significa ter uma idéia dela e uma maneira de responder às mudanças que ocasiona.

Os dois exemplos acima, contudo, não são paradigmáticos do material colhido nas entrevistas. Alguns entrevistados não rejeitaram a percepção leiga da doença e reconheceram, inclusive, o seu papel autônomo e complementar, no tratamento da doença mental.

Como afirma, por exemplo, um entrevistado:

"... Veja, o instrumental médico não é garantia de superioridade, porque em muitas situações as pessoas dão soluções à problemáticas, tidas como mentais, às vezes sem instrumental médico. Curandeiras é um fato, rezadeira é um fato (...). É inegável, muitas situações são melhor resolvidas fora do hospital, fora do ambulatório, fora da clínica psiquiátrica, do que dentro do meio médico" ("psiquiatra-professor").

Mas todos tiveram a preocupação de mostrar a necessidade da prática médica e de um lugar diferenciado da representação médica de doença mental na sociedade. Igualmente, alguns defenderam o monopólio médico do tratamento da doença mental, enquanto outros procuraram uma divisão de trabalho terapêutico com outras disciplinas.

Por outro lado, a existência e a necessidade de um complexo de normas e valores, que controla e valida o modelo médico de doença, podem relacionar-se com a natureza profissional do saber médico, que precisa se apropriar da doença e reconstruí-la segundo os ditames de sua legitimidade social.

O nosso objetivo, de qualquer forma, foi desnudar a presença de um metassistema normativo na representação de doença mental, acoplado, evidentemente, a um sistema de regras lógicas e classificatório, que caracteriza a clínica médica.

Tal metassistema teria as seguintes funções: 1) função interna: controle, validação e manutenção do processo de construção profissional da doença mental, cujas conseqüências diretas seriam a autolegitimação profissional, a manutenção da identidade de grupo e um enquadramento da doença mental como objeto médico; 2) função externa: absorver, neutralizar, isolar ou, sendo o caso, excluir representações de doença mental não-médicas.

Page 132: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Uma característica marcante do estilo do pensamento representativo é o que Moscovici chama de formalismo espontâneo, isto é, "a existência e o emprego de um estoque de lugares, de juízos e expressões que traduzem a confiança nas fórmulas consagradas" (MOSCOVICI, 1978:257); um recurso retórico e econômico que facilitaria a comunicação e o esforço de integrar as noções verbalizadas num todo coerente.

O entrevistado, durante a comunicação, necessita traduzir suas reflexões em um esquema comum e, diante da pressão para a inferência, precisa definir a doença, formulando uma opinião. Contudo, "passado o primeiro momento, o do questionamento, ele vê-se colhido numa série de soluções, de fragmentos de modelos debilmente encadeados. Além disso, nada o obriga a explicitar esse encadeamento. Ele tem apenas que fornecer, então, algumas indicações desses modelos, calculando que o interlocutor reconstituirá ele mesmo os contextos e as relações necessárias. Pensamento e comunicação desenrolam-se assim de um modo econômico. A economia deve-se ao fato das palavras pertencerem à linguagem aceita do grupo e às suas conotações convencionais" (MOSCOVICI, 1978:258).

Assim, pensar, para o entrevistado, identifica-se com a sua verbalização. As paradas, os subentendidos, as semi-afirmações não precisam ser esmiuçados e o pensamento passa, rapidamente, para a esfera da linguagem. O que foi dito se caracterizaria pela repetição de palavras e argumentações, isto é, "não se exagera dizendo que o pensamento natural se distingue pela iteração, a redundância" (MOSCOVICI, 1978:258).

Nesse sentido, aliás, um entrevistado afirma:

"O que seria anormal? Rapaz, olhe, falando honestamente é muito... na minha clínica, na minha experiência clínica essa coisa de normalidade e anormalidade é relativíssimo, entendeu? Completamente relativo. Seguramente não é um padrão estatístico, seguramente não é apenas um padrão estatístico. Pra algumas situações específicas da clínica, da clínica psiquiátrica e da clínica psicanalítica é desconforto. Ele não estaria numa situação de saúde, conseqüentemente não estaria nas condições de sua normalidade se ele está desconfortável, se o sujeito está desconfortável. Então, nesse sentido, o anormal é extremamente variável, é extremamente variável. Variável no tempo, variável na idade do sujeito, na fase de vida. Sujeito homem ou mulher, quer dizer, a pessoa na fase de vida, momento, situação que tá atravessando, condição

Page 133: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

econômica que tá vivendo. Não acho que é tão fácil definir assim, sabe, rigorosamente falando, eu não posso dizer a você dois ou três padrões de anormalidade, que eu considere satisfatório plenamente, a não ser que fosse uma aula acadêmica, puramente acadêmica. Mas, na prática, num consultório do psiquiatra, ou do psicanalista isso é relativíssimo, relativíssimo". ("psiquiatra-professor")

O entrevistado repete sem cessar, durante toda o discurso, a dificuldade de definir a anormalidade, a sua relatividade e sua intensa variação. Toda a sua argumentação orbita em torno da relatividade da anormalidade, afirmando que a anormalidade e a normalidade não são padrões estatísticos, para reiterar a relatividade. Mais, ainda, a anormalidade pode ser um desconforto, iterando a sua variabilidade e afirmando que se pode definir a anormalidade numa aula acadêmica, mas que, na prática, "isso é relativíssimo".

Por outro lado, não fica muito claro, algumas vezes, se Moscovici identifica o "pensamento natural" com o do "senso comum" ou com o expressado oralmente. Se o primeiro for identificado com o terceiro, então o pensamento natural pode ser encontrado no discurso científico, uma vez que este pode ser expressado oralmente. E se o pensamento natural identifica-se com o "senso comum", o formalismo espontâneo não seria uma característica única desse tipo de expressão ideativa, pois aparece, também, como elemento secundário na comunicação oral de conteúdos científicos. O formalismo espontâneo pode ser, isto sim, considerado como um elemento formal do pensamento expressado oralmente, seja científico ou do "senso comum", embora se sobressaia mais neste do que naquele, tendo em vista as características particulares (formalização lógico-racional) do discurso científico que impedem a predominância do formalismo espontâneo.

Assim, encontramos o formalismo espontâneo tanto no discurso dos "psiquiatras-professores" como no dos "psiquiatras" , embora a sua presença denote menos no primeiro do que no segundo. Pode-se argumentar que tal descoberta revela um indício da presença do pensamento natural no discurso dos entrevistados; porém, pode-se dizer, também, que isso não significa muita coisa, a não ser uma característica formal do pensamento expressado oralmente.

Segundo Moscovici, outra característica importante do estilo do pensamento representativo é a causalidade fenomenal, que ilustra o papel da intenção do sujeito na formação de sua representação do objeto social. A causalidade fenomenal se

Page 134: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

diferencia da causalidade eficiente, típica da ciência, desde que não leva em conta a conexão entre uma causa estabelecida e seu efeito: "se dois eventos são percebidos em conjunto, considera-se que um deles, por motivos diversos - vizinhança, intenção do sujeito, agrupamento na mesma categoria - é a causa e o outro o efeito" (MOSCOVICI, 1978:261).

Podemos perceber como funciona a causalidade fenomenal, através desse exemplo de Moscovici, tirado das suas próprias entrevistas:

"A Psicanálise seria um dos fatores religiosos mais importantes de reerguimento moral. Deve-se assinalar que foi depois do aparecimento da Psicanálise que se desenvolveram os movimentos católicos, como o dos padres-operários" (MOSCOVICI, 1978:261).

Moscovici mostrará que não existe relação de causa e efeito entre a Psicanálise e o desenvolvimento dos movimentos católicos, menos ainda com o aparecimento dos padres operários. A relação causa-efeito entre a Psicanálise e o movimento católico é mediada pelo papel da intenção e dos interesses do entrevistado na estruturação do seu universo representativo. Ora, o entrevistado é um cristão favorável à Psicanálise, que tenta articular, intencionalmente, esta última com alguma coisa relativa ao movimento católico, de tal modo que a Psicanálise pudesse ser melhor apreendida sem causar conflitos com o campo de interesses de seu grupo social. Um objeto social, portanto, "é sempre apreendido como algo associado a um grupo e à finalidade desse grupo" (MOSCOVICI, 1978:261).

Na causalidade fenomenal, o sentido da relação causal é determinado pela adesão de um sujeito a um determinado grupo social, não importando, aqui, se existe ou não uma conexão entre a causa e o efeito. A procura de uma conexão que esclareça o sentido de uma relação causal seria tarefa da ciência.

Mas, será que o pensamento científico só "leva exclusivamente em conta a conexão entre uma causa estabelecida e seu efeito" (MOSCOVICI, 1978:260. Grifo nosso)?

A descoberta de uma conexão entre uma causa e um efeito é um exercício de inferência, produto também de uma intenção do cientista. A intenção se inscreve na própria inferência da conexão, isto é, esta não surge da pura manipulação de fatos e, sim, de uma dialética entre o cientista, sua teoria, predisposições, preferências, valores e fatos. Não é raro na

Page 135: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

ciência, portanto, encontrar inferências de conexões causais arbitrárias.

Examinemos, por exemplo, a seguinte afirmação:

"Poderíamos perguntar se o tamanho pequeno do cérebro da mulher depende exclusivamente do tamanho pequeno do seu corpo. Tiedemann propôs essa explicação. Mas não devemos esquecer que as mulheres são, em média, um pouco menos inteligentes que os homens, diferença que não deveríamos exagerar, mas que, nem por isso, deixa de ser real. É portanto lícito supor que o tamanho relativamente menor do cérebro das mulheres depende, em parte, da sua inferioridade física e, em parte, da sua inferioridade intelectual" (BROCA, apud GOULD, 1989:137).

O autor, acima, toma como causa o tamanho dos cérebros femininos e como efeito a inferioridade intelectual das mulheres em relação aos homens. Poder-se-ia dizer que o tamanho do cérebro não tem nenhuma relação com a inteligência e que o autor inscreveu as suas intenções e preconceitos no sentido da relação causal. A inferência da conexão entre o tamanho do cérebro e a inteligência feminina está interligada com os preconceitos que o autor partilha com o seu grupo social e a sua época.

Ora, o problema desse exemplo é que ele foi produzido por Paul Broca, eminente professor de Clínica Cirúrgica na Faculdade de Medicina, em Paris. Cientista famoso no séc.XIX e adepto convicto da antropometria e da craniometria, extremamente populares nas ciências humanas daqueles tempos, Paul Broca era um cientista meticuloso, fazendo as medições do tamanho dos cérebros com o mais escrupuloso cuidado e exatidão.

E, sem dúvida, o tamanho do cérebro feminino é menor que o masculino, como também é evidente que "Broca percebeu que parte dessa diferença podia ser atribuída à estatura mais elevada dos homens. No entanto, não fez qualquer tentativa para medir o efeito do tamanho por si só, e chegou a afirmar que isso não poderia ser levado em conta para a diferença total" (GOULD, 1989:137), porque se sabia, a priori, que as mulheres possuíam uma inferioridade intelectual.

Na época de Broca, já existiam indicativos científicos suficientes para descartar um relação causal entre o tamanho do cérebro e a inteligência, mas ele não levou "exclusivamente em conta a conexão entre uma causa estabelecida e seu efeito". O exemplo de Broca não é único e não é raro na ciência moderna

Page 136: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

acontecer tal coisa; a causalidade fenomenal, portanto, pode existir na ciência, embora geralmente tenha um papel secundário.

De qualquer forma, a causalidade fenomenal não ocorreu com muita freqüência no discurso dos nossos entrevistados, tanto entre os "psiquiatras-professores" como entre os "psiquiatras".

Contudo, analisemos um exemplo em que o entrevistado discute o motivo da existência do preconceito social contra o paciente psiquiátrico:

"Sim, porque vem carregada de todas essas coisas pelas quais se reconhece a loucura, né?! Quer dizer, loucura coloca em ameaça a ordem, o estabelecido. E, então, tanto o herói, o reformador e, também, o louco - o doente mental, no caso - coloca em ameaça a estabilidade do sistema (...) então, a loucura, como uma coisa ameaçadora, tem que ser rejeitada. Ela ameaça, ela ameaça (...) e, então, atribuímos a eles (os pacientes psiquiátricos), como se nós colocássemos para fora, atribuíssemos a alguém, aquilo que é insuportável, aquilo que ameaça a nossa existência". ("psiquiatra-professor")

O entrevistado tinha criticado, anteriormente, o uso da Medicina como um instrumento de controle social do comportamento desviante, assumindo uma posição semelhante àquela que foi chamada de "antipsiquiatria". Desse modo, o entrevistado percebe a relação desse tipo de Medicina com o comportamento desviante na forma de um controle político-ideológico, bem como projeta uma intenção política no sentido causal do preconceito social contra o paciente psiquiátrico. Assim, este se identifica com o louco que, por sua vez, é identificado como um subversivo (um herói, um reformador) do sistema social.

Em suma, o preconceito seria um efeito do caráter subversivo da loucura.

Pensamos que, nesse exemplo, não só aparece a causalidade fenomenal, isto é, A é conectado a B, via intenção do sujeito, como também existe um mecanismo de analogia, que produz semelhanças entre o paciente psiquiátrico, o herói e o reformador, determinado pelo campo de interesses do entrevistado.

Vejamos outro exemplo, nesta interessante explicação do preconceito social contra o doente mental. Segundo um entrevistado, tal preconceito

Page 137: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

"Existe. Pelo medo das pessoas de adoecer, por tá tão próximo. Aquela coisa que, enquanto não se vê, é como se não existisse. Mas, a partir do momento que tá vendo, seja com o vizinho, com um familiar ou com quem quer que seja, tá próximo. Tá próximo e a qualquer momento pode acometer ele também, né. Se ele não se identifica com a pessoa, se é alguém desconhecido que ele nunca viu... Mas, depois que ele vê que é alguém da família, da casa, do meio social, ele se identifica e pode perceber que a doença pode acometer qualquer pessoa". ("psiquiatra")

O preconceito é o efeito do medo das pessoas de adoecer e, pelo que entendemos, o medo é o efeito da proximidade ("tão próxima") da doença mental das pessoas; proximidade, sentida como contigüidade ou como possibilidade de adoecer e que ocorre quando a doença mental é percebida ou é "vista". Mas a sua percepção implica, antes disso, num processo de identificação com a pessoa doente, que, geralmente, é um familiar ou alguém conhecido, isto é, do grupo social em que se constrói a identidade do indivíduo.

O encadeamento para se chegar ao preconceito seria doente-identificação-(percepção)-proximidade-medo-preconceito ou, em outras palavras: se, no meio onde vivo e como tal me socializo, alguém adoece, percebo nele uma alteridade que também pode me acometer. Logo, tenho medo e, depois, preconceito. O medo da doença é o medo desta em mim. Mas, por que o preconceito? Talvez porque o medo da doença seja o medo da alteridade, que, em última instância, não pertence ao grupo de identificação do sujeito.

Não sabemos, contudo, se a nossa interpretação é válida ou não; na verdade, nossa ênfase, aqui, é na demonstração de que o sentido da relação causal proposta necessita de outros elos causais intermediários para ser entendido. De fato, as relações causais encontradas nas entrevistas, geralmente, eram "interrompidas" ou "incompletas", como no exemplo, abaixo:

"Olhe, esse preconceito, eu acredito que tem origem muito remota, né. Quer dizer, o doido, o louco, ele é marginalizado pela sociedade, você vê o indivíduo que sofre de doença mental de uma maneira diferente. Eu acredito que é uma coisa cultural essa marginalização do doente mental e a gente percebe essa marginalização em todas as esferas, em todos os extratos sociais, da classe mais baixa à classe mais alta; é indistinto..." ("psiquiatra")

O preconceito é o efeito da marginalização do doente mental, mas, por que o marginalizam? Não se sabe. Talvez porque seja visto de "uma maneira diferente". Marginaliza-se, então, porque é

Page 138: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

diferente? Mas por que o "louco" é visto de forma diferente? Por que ele é marginalizado? O argumento, assim, torna-se circular, porque faltam elos causais intermediários para se entender o sentido da relação causal proposta.

Deste modo, existe um limite no sentido da relação causal relacionado ao estabelecimento do campo de julgamento do entrevistado. O medo e a marginalização do doente mental, por exemplo, são as causas do preconceito, e, nada mais se acrescentando, o resto poderia ser inferido de uma maneira ou de outra. A conexão causal é concluída antes da demonstração dos elos causais pertinentes, isto é, o entrevistado conclui antes mesmo de argumentar. A argumentação, portanto, é pressionada pelo primado da conclusão - última característica do estilo do pensamento representativo.

Assim, "a conclusão, dada desde o princípio, define a zona de seleção das outras partes do raciocínio, destaca-as do todo. Essa ação reguladora confere a este estádio do processo lógico, que deveria ser final, uma posição dominante e faz dele um símbolo, um indicador do conjunto. Podemos atribuir esse privilégio, por um lado, à presença da norma ou das preferências sociais, individuais na conclusão e, por outro lado, a uma tendência mais geral de busca de significações. As premissas só têm sentido, alcance ou valor em relação ao termo do julgamento" (MOSCOVICI, 1978:263).

As respostas da maioria dos entrevistados são descritivas, com ilustrações de exemplos, ou, simplesmente, colocando-se uma definição, que é repetida depois durante toda a argumentação. Contudo, o componente descritivo, na maioria das vezes, transforma-se automaticamente em explicação, isto é, o entrevistado descreve pensando que está explicando. Nesse sentido, existe uma confusão entre a descrição e a explicação que, no fundo, é reflexo da passagem, sempre alcançada mas nunca terminada, do pensamento informativo para o representativo (Cf. MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:557).

Enfim, chegamos ao término dessa análise "formalista" do discurso dos entrevistados. Nossas conclusões, evidentemente, são menos definitivas que indicativas, começando pela resposta ambígua que daremos à pergunta: o discurso dos psiquiatras entrevistados traduz, do ponto de vista formal, um pensamento representativo?

Diremos que sim e, com certeza, também que não.

Page 139: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Tal postura se justifica porque, aparentemente, encontramos um amálgama entre um pensamento representativo e um informativo no discurso dos psiquiatras entrevistados. Na verdade, não exatamente um amálgama, mas sim, uma tensão inscrita no discurso, isto é, uma ambigüidade de um discurso que se nutre de um modelo biomédico de doença e, ao mesmo tempo, de uma experiência profissional com a significação social da doença mental.

Assim, encontramos uma dicotomia formal no discurso dos psiquiatras entrevistados, em que: a) conceitos e signos convivem com imagens e símbolos; b) proposições empíricas misturam-se com afirmações válidas consensualmente; c) respostas dominadas pelo "como" encontram-se com outras dominadas pelo "por quê"; d) intercâmbios de tipos fixos de inferência, baseados no raciocínio clínico, mesclam-se com outros tipos de racionalidade; e) e, por fim, encontramos uma flexibilidade de atos mentais e um uso, no discurso, de diversas formas sintáticas.

Pode-se dizer que a passagem do pensamento informativo para o representativo acompanhou mais o "psiquiatra" do que o "psiquiatra-professor". Contudo, isso não autoriza dizer que o discurso dos "psiquiatras" entrevistados seja "senso comum", embora descarte a possibilidade, pelo menos formal, de ser um discurso científico. Por outro lado, o discurso dos "professores-psiquiatras" não pode ser considerado exatamente um discurso científico, embora seja alicerçado numa reflexão, no todo, mais aprofundada.

Na verdade, entre a ciência e o "senso comum" - se colocamos, o que é discutível, os dois como extremos de uma linha vertical ou horizontal - existe um limbo onde navegam diversos tipos de saberes, entre os quais o saber (médico) profissional. O "professor-psiquiatra" estaria imediatamente mais próximo da ciência e com uma capacidade mais rápida de atualização dos seus conhecimentos, enquanto o "psiquiatra" comum estaria num movimento pendular que o aproximaria do "senso comum", sendo basicamente um "técnico" que aplica seus conhecimentos, principalmente de taxonomia nosológica, na prática cotidiana.

A diferença entre o "professor-psiquiatra" e o "psiquiatra" comum estaria em que o primeiro superpõe, à sua prática profissional, uma outra de natureza mais reflexiva, enquanto que o segundo apenas atualizaria, basicamente, as técnicas terapêuticas da Medicina.

Page 140: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Capítulo V - CONSTRUÇÃO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL: OBJETIVAÇÃO E ANCORAGEM.

Segundo Moscovici, na sociedade moderna, existe uma categoria de indivíduos que tem como métier a produção de representações sociais e, como encargo, a difusão de conhecimentos científicos e artísticos: médicos, terapeutas, animadores culturais, especialistas da mass-média, etc. Eles seriam, para o mundo contemporâneo, o que os fazedores de mitos teriam sido para as civilizações arcaicas (MOSCOVICI, 1969-A:83).

O médico é, no mundo moderno, o principal agente de difusão do conhecimento sobre a doença e, ao mesmo tempo, aquele que limita a sua reprodução. A legitimidade do discurso sobre a doença é um monopólio da Medicina, inibindo o surgimento de outras concepções de doença suficientemente competitivas e legítimas. Em conseqüência, a representação social da doença entre indivíduos não-médicos se revela, tão somente, a partir da sua relação com o conhecimento oficial e oficioso da Medicina, seja no contato direto com o médico - único portador legítimo de um saber sobre a doença - seja no contato com a vulgarização científica e com os meios de comunicação.

O médico divulga menos uma representação científica da doença do que a hegemoniza na sociedade. Por um lado, a coerção do seu mandato social de tratamento das doenças isola e neutraliza outros tratamentos alternativos; por outro, a legitimidade social do seu saber produz um consenso em torno da sua representação de doença. Um saber-poder médico que minimiza a visão de doença vivida pelo doente e identifica a doença vista pela cultura, que engloba tanto o doente como o médico, consigo mesmo.

Em conseqüência, encontramos, principalmente no meio urbano, menos uma representação autóctone de doença do que uma hegemonizada pela Medicina. A doença mental, por exemplo, sempre refratária a padronizações de sentido e recoberta com uma carga desviante, também foi aos poucos recodificada pelo "senso comum", segundo os ditames do modelo médico.

Existe, por outro lado, um conhecimento de "primeira mão" da doença (Cf. MOSCOVICI & HEWSTONE, 1986:544), relacionado a uma tradição e a um consenso cultural em torno desse determinado objeto social. Porém, existe, também no "senso comum", um conhecimento de "segunda mão" da doença, proveniente das

Page 141: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

instâncias institucionalizantes e produtoras de um saber legitimado socialmente, como a Medicina, que é consumido e transformado pela vida cotidiana.

Dessa forma, ocorre uma desarticulação e uma rearticulação permanentes do modelo médico de doença, em que se decompõem os seus elementos principais - agora, elementos articulados e fundidos numa "nova" visão, digamos assim, "mimética" de doença (Cf. BOLTANSKY, 1989:22). Esse processo contraditório, constituído pela assimilação do discurso médico da doença e pela sua transformação em uma visão de doença particular, pode ser creditado ao que chamamos de "senso comum".

No entanto, esse processo de assimilação não é passivo e não deixa de ser problemático. O modelo médico de doença, ao ser interiorizado pelo "senso comum", passa por um processo complexo de decodificação, seleção e descontextualização determinado pelas experiências do cotidiano. As representações surgidas desse processo possuem uma "objetividade" e uma inserção material imediatamente determinada pelas experiências concretas do "modo de vida" das pessoas. Por isso, após a assimilação do modelo médico de doença, a identificação com este fica mais difusa e distante, perfazendo uma constante tensão entre uma representação "científica" da doença e sua representação social.

A representação de doença, no universo do "senso comum", não se constitui, pois, independentemente do conhecimento médico (Cf. HERZLICH, 1975). Porém, se não existe uma independência, até que ponto pode-se dizer que essa representação de doença é um conhecimento enquanto tal? Isto é, poder-se-ia polarizar um conhecimento da doença pelo ""senso comum"" com aquele encontrado na Medicina?

Ora, existe há bastante tempo uma polarização entre uma Medicina dita "científica" e uma paralela chamada de "popular", embora a segunda nunca tenha deixado de se enraizar na primeira e, "longe de constituir um corpo de conhecimentos perfeitamente autônomos, resultava, pelo menos parcialmente, da difusão da Medicina científica de épocas anteriores" (BOLTANSKY, 1989:26).

Assim, segundo Boltansky, "a medicina científica, nos séculos XVIII e XIX, entrou em contato com a medicina popular e como, ao se vulgarizar, e em se deformando, ela pouco a pouco impregnou o conhecimento popular a ponto de se confundir com ele. `Por uma série de transições insensíveis - escreve M. Bouteiller - os velhos dados científicos entraram no domínio dos curandeiros de aldeia'. É inicialmente através da literatura divulgada pelos

Page 142: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

vendedores ambulantes, que se difunde a medicina científica. Como mostrou Robert Mandrou, esses livros de mascates, em geral anônimos, são `redigidos por gráficos, tipógrafos ou outros, que se tornam escritores', que vão buscar essas informações `no fundo da tipografia onde trabalham, ou seja, na massa de publicações do século XVI que ainda existem em maior ou menor quantidade nos arquivos de suas oficinas. `Eles basearam-se - escreve Mandrou - num repertório constituído em grande parte pela cultura científica da aristocracia medieval' e, principalmente, em antigos tratados de medicina. (...) Igualmente intermediários entre a medicina científica e a medicina popular eram os `amadores esclarecidos e caridosos' ou o `vigário', que prodigavam seus cuidados aos doentes. (...) Os autores dessas obras de divulgação `valem-se dos mais ilustres mestres da medicina, Hipócrates, Galeno, Dioscórides Avicenna, Alberto o Grande, Paracelso (...), assinalando ao mesmo tempo a simplicidade e a modicidade das preparações que eles preconizam" (BOLTANSKY, 1989:27-28).

A Medicina popular, pois, partia do conhecimento médico antigo e estabelecido, existindo entre ambos uma série de elos intermediários que processavam transformações e reinterpretações no sentido e na função da representação médica de doença. A descontextualização era tão grande que os diversos elementos, emprestados do modelo médico e digeridos pela cultura popular, tornaram-se estranhos e distantes de seu modelo de origem (Cf. BOLTANSKY, 1989:31).

O indivíduo não recebia o conhecimento médico de forma direta e, sim, através de um grande número de intermediários que já haviam reinterpretado e descontextualizado, parcialmente, o material assimilado. O esquecimento da origem científica da representação da doença era facilitado, também, pela pouca legitimidade que a Medicina e a ciência, de um modo geral, possuíam na cultura popular ou, em outras palavras, no "senso comum". O médico, por exemplo, tinha um respeito social equivalente ou, até mesmo inferior, a um curandeiro de aldeia.

Atualmente, a relação de um indivíduo com o conhecimento médico é, praticamente, direta, sendo o intermediário desse conhecimento, na maioria das vezes, o próprio médico. A legitimidade da Medicina, em compensação, é praticamente consensual na sociedade moderna, isto é, qualquer conhecimento alternativo ao médico é considerado ilegítimo. Tal situação, certamente, dificulta ou mesmo impede a formação de um conhecimento autônomo da doença em outra dimensão que não seja a da própria Medicina. O indivíduo sabe o que é doença, porém o seu

Page 143: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

saber não tem legitimidade alguma e sua experiência com o fenômeno mórbido somente produz uma significação quando inserida na relação médico-paciente.

Pode-se supor que, no mundo moderno, existe um impedimento relativo na produção de conhecimentos fora do aparato institucional do saber científico. Os conhecimentos alternativos precisam, dessa forma, institucionalizar-se para obterem uma consenso social. A legitimidade social do conhecimento científico esvazia a do "senso comum", produzindo uma situação um tanto paradoxal, em que a difusão de um conhecimento se socializa mais facilmente na proporção inversa do seu reconhecimento científico.

Assim, "os diversos tipos de conhecimentos parecem difundir-se hoje tanto mais facilmente quanto menos nitidamente for reconhecido seu caráter científico, ou se preferimos, quanto menos evidente for seu caráter técnico e mais se aproximarem eles dos conhecimentos familiares utilizados na administração da vida cotidiana; pois seu poder de evocação será menor, imporão menos respeito e poderão mais facilmente ser descontextualizados" (BOLTANSKY, 1989:32).

A Medicina, madrasta do conhecimento da doença, impõe, paradoxalmente, uma embrutecedora "ignorância" no "senso comum". A legitimidade social do conhecimento médico impede o "senso comum" de adquirir uma autonomia na produção de suas representações sociais da doença. Tais representações permanecem, na maioria dos casos, "em estado latente, de uma certa maneira escondidas no discurso, e só se traem pelo emprego de certas palavras ou de certas imagens particulares" (BOLTANSKY, 1989:70). Enfim, tudo ocorre como se a ilegitimidade das representações sociais do "senso comum" dificultasse a sua explicitação.

Se as representações sociais da doença aparecem de forma fragmentária e latente, o papel do pesquisador seria, então, de reconstruí-las, procurando substituir a fragmentação existente por representações coerentes e organizadas. O grande perigo, aqui, é identificar as representações construídas pelo pesquisador com as produzidas pelo sujeito pesquisado, isto é, produzir um objeto "que não é a representação tal como é representada pelo agente, mas a representação que seria a desse agente se ele mesmo fosse o teórico de suas representações ou, na pior das hipóteses, o `arquétipo' imutável e misterioso que modelasse à sua própria revelia as sua representações" (BOLTANSKY, 1989:71).

Page 144: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Assim, o "senso comum" teria dificuldade em produzir representações coletivas da doença, uma vez que lhe falta uma autoridade que lhe "conferisse uma espécie de direito de cidadania e permitisse sua difusão dentro de todo um grupo social" (BOLTANSKY, 1989:71).

O estudo da objetivação de uma representação social da doença, desse modo, passaria pela apreensão das regras que possibilitam a construção no "senso comum", isto é, seria o estudo da inscrição do modelo médico na sociedade. A intervenção social da Medicina deixa um excesso de significações que precisam ser absorvidas de algum modo. A objetivação faria esse trabalho, absorvendo tal excesso e, principalmente, materializando o conteúdo absorvido num núcleo figurativo.

Por outro lado, a objetivação de uma representação social, enquanto tal, não se diferencia substancialmente daquela que ocorre na vulgarização científica (JODELET, 1986:483) e, nem mesmo, de toda representação em geral. Toda objetivação, na verdade, é uma objetivação de algo que vem de fora, isto é, de algo que é novo e que precisa de um reconhecimento. O novo que vem de fora perde, ao ser objetivado e reconhecido, a conexão com a sua origem. Em conseqüência, torna-se problemático, por exemplo, analisar uma objetivação de uma representação no seu meio social de origem.

Ora, os médicos e, em particular, os psiquiatras constituem o grupo social responsável pela determinação da representação de doença mental na sociedade moderna. A relação entre a Medicina e o "senso comum", no que se refere à doença mental, sempre foi problemática, desde que o enquadramento desta num modelo nosológico nunca teve uma legitimidade comparável à de outras doenças, permitindo, com isso, uma maior liberdade na criação de representações da doença mental, com certo grau de autonomia, no "senso comum". Porém, acreditamos que, no mundo moderno, a Psiquiatria conseguiu ou, pelo menos, vem conseguindo uma legitimidade desestruturadora das representações de doença mental originárias do "senso comum".

Sendo assim, de que modo poderíamos conceber o processo de objetivação da representação de doença mental entre psiquiatras? Afinal, objetiva-se o quê?

O "senso comum", de um modo geral, tem duas maneiras de se relacionar com um objeto social: a primeira seria direta e estaria associada a uma experiência primária, alicerçada na tradição e na cultura, com o objeto; a segunda, indireta, estaria

Page 145: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

relacionada à objetivação de um conhecimento científico em uma representação social, isto é, a relação com o objeto social seria mediada pela representação, surgida da objetivação do conhecimento científico.

O modelo médico de doença emerge, historicamente, de uma experiência social com a doença e, a partir de sua institucionalização, cristaliza-se como um saber autônomo e independente do "senso comum". Atualmente, com o peso de sua legitimidade social, o modelo médico seria a matriz principal das representações da doença existentes no "senso comum", o qual teria apenas uma influência fugaz naquele.

Contudo, o conhecimento médico não se formou isoladamente nos laboratórios médicos ou nas experiências clínicas dos médicos. Devemos admitir que "sempre houve um momento em que, no final das contas, a atenção do clínico foi chamada para certos sintomas, mesmo que unicamente objetivos, por homens que se queixavam de sofrer ou de não serem normais, isto é, idênticos a seu passado. Se hoje o conhecimento da doença pelo médico pode prevenir a experiência da doença pelo doente é porque, outrora, esta experiência suscitou, chamou o conhecimento. É, portanto, de direito, se não de fato, porque há homens que se sentem doentes, que existe uma Medicina e não porque existem médicos que os homens tomam, através deles, conhecimento de suas doenças" (CLAVREUL, 1983:131).

A Medicina teria, assim, uma dívida para com o doente e, indiretamente, com o "senso comum", embora isso não tenha impedido, do ponto de vista da relação médico-paciente, "a ausência de qualquer discurso da parte do doente" (CLAVREUL, 1983:131).

Desse modo, se é possível inferir uma objetivação do conhecimento médico pelo "senso comum", a recíproca, contudo, não é verdadeira. Pode-se, todavia, aplicar o processo de objetivação ao conhecimento médico, contanto que se tome como premissa a existência de uma especificidade do saber médico em produzir as suas próprias representações, trazendo, como conseqüência, mudanças no modelo usual da objetivação.

De fato, algumas fases do processo de objetivação ocorrem de modo diferente se aplicadas à representação médica de doença. A seleção e a descontextualização, assim, não atuam em relação a uma teoria ou a uma representação que vêm de fora e, sim, ao próprio objeto do modelo médico, a saber, a doença.

Page 146: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

O modelo médico, por exemplo, seleciona da doença apenas o seu significado bio-normativo, desprezando a sua significação social, bem como descontextualiza noções como a de loucura, para identificá-la com a própria doença. O paradigma médico, dessa forma, dita o que vai ser percebido da doença.

A naturalização ou a ontologização, como vimos, ocorre tanto na materialização de esquemas conceituais como, principalmente, a serviço de um paradigma que naturaliza o doente e ontologiza a doença.

Enfim, chegamos a um dos pontos centrais do processo de objetivação que é a esquematização estruturante de uma representação. No caso da representação da doença mental entre os psiquiatras, encontramos como núcleo figurativo a dupla oposição de dois pares bipolares, saúde/doença x normal/desvio. Os dois pares perfazem um continuum em que o primeiro seria o ponto referencial fundamental e o ponto irradiador da representação, enquanto que o segundo seria o ponto secundário, um tanto oculto na representação, mas que exerceria uma atração considerável, principalmente quando a representação da doença mental se aproximasse do comportamento desviante.

O continuum seria representado dessa forma: saúde _ _ _ _ _ _ _ normal doença desvio

No meio do continuum, representado acima, existiria um pontilhado configurando a passagem de um par para o outro. Naquela região, conformar-se-ia uma espécie de ecótone em que se misturariam elementos subjacentes aos dois pares oponentes. A representação da doença mental, alicerçada no primeiro par, jamais passaria, como um todo, para o segundo par. Suas incursões no par normal/desvio não ultrapassariam a região mista, embaralhando unidades temáticas da sua representação com elementos do segundo par.

O par bipolar saúde/doença seria o dominante do continuum e determinaria, pelo menos entre os psiquiatras entrevistados, a representação de doença mental, que seria a expressão do modelo biomédico de doença, enquanto que normal/desvio estaria relacionado a modelos sócio-situacionais, como a Antipsiquiatria, e a modelos psicodinâmicos, como a Psicanálise.

O primeiro par, saúde/doença, que nos interessa mais de perto, teria as seguintes características:

Page 147: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

- etiologização e ontologização da doença mental; - etiologia da doença mental endógena (orgânica, genética ou funcional) e relacionada à singularidade do indivíduo; - doença mental como sofrimento psíquico; - isomorfismo entre doença mental e doença orgânica (monismo médico); - medicalização da doença mental; - classificação nosográfica e sintomatológica da doença mental; - despreconceitualização da doença mental; - redução dos sintomas como objetivo da terapia; - controle social do comportamento desviante.

No entanto, essa representação não é partilhada de forma homogênea por todos os psiquiatras entrevistados, desde que diversos itens não aparecem em todas as entrevistas. A ontologização da doença, por exemplo, aparece fundamentalmente entre os "psiquiatras" , enquanto que, nos "professores-psiquiatras", ela surge misturada com a noção de desvio.

O item etiologia da doença mental é bem mais diverso, aparecendo aqui e ali outras determinações etiológicas que não a endógena. Contudo, as mudanças individuais de cada entrevistado significam menos uma outra representação do que, propriamente, variações e flexibilidade de uma mesma representação.

Por outro lado, a representação não é estável, parecendo uma imagem que sofre interferências, isto é, ela não consegue dar conta de diversos problemas relativos à especificidade da doença mental. A instabilidade da representação se acentua quando os temas estão relacionados à significação social da doença mental ou quando determinadas facetas desta não se enquadram ao núcleo figurativo da representação.

De fato, podemos notar tal instabilidade acompanhando o caso particular, porém paradigmático, de um entrevistado.

No início, o entrevistado definiu a doença como a ausência de saúde (ontologização); depois, afirmou que a determinação etiológica da doença mental era biológica (etiologia endógena) e, enfim, sustentou a necessidade da medicalização no tratamento.

Contudo, definiu desse modo a doença mental:

"Doença mental é... a ausência de saúde em termos mais específicos... a incapacidade da pessoa julgar". ("psiquiatra")

Page 148: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Nesse sentido, a "ausência de saúde em termos mais específicos" seria "a incapacidade da pessoa julgar". Pode-se sustentar, entretanto, que a resposta não saiu da representação bio-médica de doença, inferindo que a incapacidade de julgamento fosse derivada de uma lesão cerebral. Porém, "julgar", nesse caso, provavelmente tem relação com o discernimento de valores sociais, isto é, com a capacidade do indivíduo de discernir o certo do errado, o justo do injusto, o bom do mau, etc. Em suma, um indivíduo com tal incapacidade possui, certamente, um comportamento desviante.

Mas, vejamos outra resposta do mesmo entrevistado, quando perguntado sobre a diferença entre o anormal e o patológico:

"Eu acho que aí (no patológico) existe o sofrimento, já sofre, já faz sofrer, já ameaça as pessoas ou ela". ("psiquiatra")

O sofrimento, o desconforto e a dor fazem parte da representação biomédica da doença mental; porém o patológico, como "ameaça" às pessoas, seria sinônimo de comportamento desviante, isto é, de infração às normas sociais de conduta adequada. Pode-se dizer, por outro lado, que uma doença infecciosa ameaça o paciente e as pessoas, embora, provavelmente, o significado de "ameaça" esteja relacionado com uma suposta periculosidade do doente.

Podemos perceber isso na resposta do mesmo entrevistado sobre a existência de pacientes perigosos:

"Existe! Existe! E se tiver delirante... eu já vi delirante matando o filho. Mas, só alguns casos. Tem gente por aí muito mais perigoso e não é doente mental". ("psiquiatra")

Assim, acreditamos que o significado de "ameaça" esteja embutido na presunção, por parte do entrevistado, da periculosidade do doente mental. É interessante verificar que, anteriormente, o entrevistado tinha defendido vigorosamente a despreconceitualização e a descriminalização do doente mental e, agora, passa a sustentar uma periculosidade exemplificada, inclusive, com uma imagem de assassinato.

A representação biomédica de doença mental vai, desse modo, sofrendo interferências de elementos relacionados ao desvio normativo-social. Assim, a doença como ontologia dá passagem ao doente; a etiologia biológica da doença mental é substituída pelo

Page 149: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

comportamento desviante e, enfim, o desvio social praticamente não se distingue do "desvio patológico".

As interferências do par normal/desvio podem surgir em diversos temas, inclusive na questão do tratamento da doença mental. Um entrevistado, por exemplo, defendeu uma determinação etiológica para a doença mental, bem como um tratamento "fundamentalmente bioquímico" e "essencialmente medicamentoso". Poder-se-ia pensar, pois, que o tratamento da doença mental fosse monopólio do médico-psiquiatra, visto ser ele o único autorizado legalmente a manusear medicação quimioterápica.

Contudo, quando perguntado sobre a necessidade do monopólio do tratamento pela Medicina, um entrevistado respondeu que

"Não, em hipótese alguma. A Psiquiatria é uma área médica, uma especialidade médica que tem o seu próprio parâmetro, é diferente das outras especialidades. A gente tem que trabalhar em equipe. É evidente que a parte mais importante tem que ser do psiquiatra, mas nós não podemos de maneira alguma esquecer os paramédicos. É fundamental a atuação do psicólogo, do terapeuta ocupacional, da enfermagem e da assistente social". ("psiquiatria")

Assim, apesar da determinação etiológica orgânica e do tratamento "essencialmente medicamentoso", seria "fundamental" a atuação dos "paramédicos" (psicólogos, enfermeiros, etc.), uma vez que a Psiquiatria "é diferente das outras especialidades" médicas. Mas, à indagação de "qual seria a especificidade da Psiquiatria?", o entrevistado não consegue responder com precisão.

Talvez a grande dificuldade da Psiquiatria seja o seu próprio objeto, isto é, a doença mental. As definições de doença mental dos entrevistados, geralmente, extrapolam o modelo biomédico de doença e, quando isso não ocorre no momento da definição, as ambigüidades aparecem logo depois em outras unidades temáticas. Assim, o tema "doença mental" causaria interferências na representação por trazer embutidos elementos do par normal/desvio.

A representação biomédica de doença mantém a sua estabilidade quando o tema não oferece perigo, como acontece, por exemplo, no tema da doença neurológica. Nesse caso, todas as respostas dos entrevistados foram coerentes com a sua representação de doença, isto é, todos definiram a doença neurológica pela sua etiologia. Foram, assim, unânimes em

Page 150: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

relacionar a doença neurológica a um substrato orgânico evidente. Alguns entrevistados, inclusive, compararam a doença mental com a doença neurológica, mostrando que a primeira não possuía um substrato orgânico como a segunda, embora defendesse a identidade conceitual de todas as doenças.

Por outro lado, um exemplo precioso de uma tensão na representação da doença mental se encontra no tema da normalidade. Os psiquiatras entrevistados definiram a normalidade em termos de média comportamental, com exceção de dois "psiquiatras-professores"; um deles psicanalista e outro mais próximo de uma posição "antipsiquiatra". O primeiro respondeu do ponto de vista do relativismo cultural e o segundo afirmou a normalidade como capacidade de criação e de adaptação.

Vejamos essa resposta paradigmática de um entrevistado:

"Normal seria o que não extrapola a média, a média de uma determinada população - a média comportamental no caso da Psiquiatria". ("psiquiatra")

Na verdade, a definição de normal como média é proveniente da Fisiologia que "encontra, no conceito de média, um equivalente objetivo e cientificamente válido do conceito de normal ou de norma" (CANGUILHEM, 1982:198; DURKHEIM, 1960). A doença seria uma variação, seja como excesso ou como falta, em torno de um parâmetro considerado como normal. Assim, o normal como média não fugiria do paradigma médico, visto que a Fisiologia não deixa de ser um dos alicerces da Medicina.

Porém, se é discutível o emprego da noção de média para conceituar normalidade na Medicina em geral, o problema se agrava mais ainda quando do seu emprego na Psiquiatria, principalmente utilizando a noção de média comportamental.

O médico, diante de uma patologia orgânica, consegue isolar uma totalidade fisiológica do indivíduo; porém, na frente de uma psicopatologia, o psiquiatra necessita situá-la na dinâmica das relações interpessoais e sociais em que está inscrita. A personalidade torna-se, conseqüentemente, um conceito mediador para entender a patologia mental. Assim, como não é possível entender a doença mental como um desvio fisiológico, é necessário entendê-la através do conceito de personalidade mórbida, como um desvio comportamental.

O normal, como média comportamental, significa que seria possível apreender um padrão de condutas individuais aceitas pela sociedade. O desvio desse padrão de condutas seria catalogado

Page 151: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

como anormal ou patológico, construíndo-se, portanto, num tipo médio de comportamento ideal aceito socialmente.

Entretanto, é extremamente difícil demonstrar uma "impropriedade situacional" de um psicótico. O psiquiatra, desse modo, passa rapidamente do desvio social ao sintoma mental e "tende a apresentar a mesma dificuldade que o leigo para avaliar a impropriedade de um dado ato - o que é defensável no caso de atos extremamente desviantes, mas não quando se trata de muitas outras impropriedades mais suaves" (GOFFMAN, 1978:10).

Os psiquiatras e, em particular, os entrevistados podem provar que um determinado comportamento é desviante, mas não conseguem traduzi-lo como patológico. Sua tarefa se torna quase impossível, pois eles não têm "um mapeamento técnico dos vários padrões de comportamento aprovados em nossa sociedade", bem como ainda "não conseguiram nos fornecer uma estrutura básica sistemática que permitisse a identificação e a descrição do tipo de delito representado pelo comportamento psicótico" (GOFFMAN, 1978:10).

Na verdade, a normalidade entendida como média impede, do ponto de vista comportamental, diferenciar o anormal do patológico, ou, melhor dizendo, no cômputo geral, praticamente identifica os dois termos. A identificação do anormal com o patológico significa menos um desejo do psiquiatra do que uma limitação no seu conceito de normalidade; esse impasse, porém, pode representar, na prática, a psiquiatrização do comportamento desviante ou, em outros termos, o controle do desvio social.

Ademais, pode-se afirmar que uma representação de doença mental, baseada numa Medicina ontológica, renega a noção de normalidade. A doença, vista ontologicamente, seria uma essência oposta à saúde e, nunca, um desvio desta última. Por isso, a Medicina ontológica refere-se muito mais ao termo "saúde" do que ao de "normalidade". Uma contradição básica da Psiquiatria, conseqüentemente, seria a mistura explosiva de uma visão ontológica da doença com a utilização da noção de normalidade. A contradição se torna, assim, bem mais marcante entre os entrevistados que não são professores, pois, como vimos, eles sustentam uma visão ontológica da doença com muita maior ênfase do que os professores.

Contudo, a definição de normalidade enquanto média pode ser apropriada por uma Medicina ontológica, desde que a normalidade seja identificada positivamente com um ideal de perfeição. A normalidade fisiológica ocorreria, por exemplo, quando os órgãos

Page 152: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

funcionam com toda regularidade e uniformidade de que são capazes. Mas, para a clínica psiquiátrica, a identificação da média comportamental com um ideal de perfeição a confundiria, perigosamente, com um empreendimento moral.

De qualquer forma, todos os psiquiatras entrevistados fizeram ressalvas quanto à definição de normal como média comportamental, embora a ressalva não tenha significado, necessariamente, uma negativa na definição.

Vejamos um exemplo de um entrevistado:

"Olha, seguindo o conceito moderno, normal seria aquilo que existe com maior freqüência em termos de comportamento. Então, normal seria isso. Mas pode mudar de região para região, de sociedade para sociedade. Quer dizer, o que é normal na nossa sociedade pode ser anormal na sociedade norte-americana, na sociedade japonesa, na sociedade européia". ("psiquiatra")

A contraposição entre a média comportamental e um relativismo cultural foi realizada por todos os entrevistados. Porém, tal contraposição parece ser contraditória, uma vez que a média como sinônimo de normalidade, pelo menos para a Fisiologia, corresponderia a um fato detectável objetivamente, enquanto que o relativismo cultural seria um conjunto de normas sociais determinado historicamente. O relativismo cultural, na verdade, minimiza o conceito de média comportamental ao impor um conceito qualitativo e não quantitativo de normalidade.

Sendo assim, os psiquiatras possuiriam uma visão ontológica da doença mental (embora não tão predominante entre os "psiquiatras-professores"), sobressaindo-se o eixo saúde/doença. O recurso ao relativismo cultural, nesse sentido, funcionaria como uma minimização do termo normalidade em relação ao de saúde, isto é, afirmar-se-ia uma definição de normalidade como média comportamental para, depois, esvaziá-la conceitualmente.

Desse modo, a utilização do relativismo cultural não significou uma saída da representação biomédica de doença e, sim, uma volta à representação através de um impasse conceitual realizado pela contraposição de duas definições diferentes.

As dificuldades dos psiquiatras entrevistados em assumir, sem contradições, a sua representação de doença mental, devem-se à defesa de uma unidade inconteste entre a patologia orgânica e a mental. O psiquiatra "olha" clinicamente a doença mental - ou, pelo menos, tenta -, porém não consegue relacionar, de forma

Page 153: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

precisa, um sintoma visível com uma causa orgânica ou funcional invisível, como é de praxe na clínica médica. O sintoma que o psiquiatra "vê" é o comportamento desviante do paciente, que não pode ser enquadrado pacificamente numa conexão causal com disfunções ou lesões orgânicas. O enquadramento sintomatológico do comportamento desviante extravia o caminho do psiquiatra do par ontológico saúde/doença para o par normal/desvio. Não é possível evitar tal interferência, pois a doença mental seria a única patologia - pelo menos até os dias de hoje - que não pode ser apropriada clinicamente apenas pela sua significação biológica.

Pode-se dizer que foi um avanço para a Medicina o fim do dualismo entre o soma e o espírito, isto é, o fim de uma dicotomia entre patologias orgânicas e mentais, passando a existir simplesmente patologias. E, provavelmente, causa euforia a postulação de uma patologia concreta que englobe no mesmo domínio o orgânico e o mental.

Como afirmou um entrevistado,

"Eu estou cansado de trabalhar com doenças psicossomáticas e já me acostumei a não parar pra perguntar se ela é física ou é mental. Ela é tão-somente uma doença". ("psiquiatra-professor")

Assim, uma marca importante da representação de doença mental encontrada nos entrevistados é a identidade entre os dois tipos de patologia. Contudo, se a realidade demonstra a unidade entre o corpo e a mente, isso não quer dizer que possamos utilizar os mesmos métodos e os mesmos conceitos para analisar o domínio psicológico e o fisiológico.

A Anatomia e a Fisiologia ofereceram, sem dúvida, à Medicina um método que sustenta uma ordenação de fenômenos numa coerência global e não exclui a abstração de uma singularidade mórbida e nem sua causalidade, isto é, a patologia orgânica utiliza o conceito de totalidade sem deixar de abstrair a singularidade. Seria possível, por exemplo, perceber um conjunto determinado de reações hormonais, no qual um elemento essencial seria um distúrbio na supra-renal. A abstração de uma singularidade, como o distúrbio, não impede a visualização da totalidade que representa o conjunto de reações hormonais.

Ora, isso não acontece na psicopatologia, desde que é contraproducente delimitar um distúrbio qualquer e deste inferir um encadeamento funcional susceptível de afetar o conjunto da personalidade.

Page 154: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Com efeito, "a coerência de uma vida psicológica parece assegurada de maneira diversa que não a coesão do organismo; a integração dos segmentos tende, neste caso, a uma unidade que torna cada um deles possível, mas resume-se e recolhe-se em cada um: é o que os psicólogos chamam, no seu vocabulário tomado à fenomenologia, a unidade significativa das condutas que encerra em cada elemento - sonho, crime, gesto gratuito, associação livre - o comportamento geral, o estilo, toda a anterioridade histórica e as implicações eventuais de uma existência. A abstração não pode, então, fazer-se do mesmo modo em psicologia e em fisiologia; e a delimitação de um distúrbio patológico exige na patologia orgânica métodos diversos dos da patologia mental" (FOUCAULT, 1984:17-18).

A identidade entre a doença orgânica e a mental revela, na verdade, um reducionismo em que a especificidade do psíquico é opacificada. Os psiquiatras entrevistados, no desejo obsessivo de se identificarem com o modelo biomédico de doença, procuram na realidade física do cérebro (desequilíbrio nos neurotransmissores, lesões orgânicas, etiologia heredo-genética, etc) a comprovação da sua cientificidade médica, em detrimento do aparelho psíquico. Assim, sustentam, explícita ou implicitamente, um monismo, ou melhor, um "neomonismo" (como é paradigmático em dois "psiquiatras-professores"), nem psíquico e nem biológico, em que a atividade psíquica estaria em co-referência e identidade com a realidade cerebral.

Tal posição não deixa de ser interessante e aceitável, desde que "se reconheça a) que a identidade comum à qual se referem espírito e cérebro ainda não foi identificada; b) que a identidade do cérebro e do espírito comporta uma contradição visto tratar-se, evidentemente, da identidade do não-idêntico!" (MORIN, 1986:72).

Assim, como afirma André Bourguignon, "a solução do problema corpo-espírito não pode então deixar de ser contraditória: o corpo (atividade nervosa encefálica) e o espírito (atividade psíquica) são ao mesmo tempo idênticos, equivalentes, e diferentes, distintos. Tal solução impõe que nunca se privilegie um dos termos da contradição a favor do outro, sobretudo quando se trata de investigação científica" (BOURGUIGNON, apud MORIN, 1986:73).

Preferimos, aqui, sustentar menos um "neomonismo" do que uma unidualidade complexa que reconheça:

Page 155: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

"* A ineliminabilidade e a irredutibilidade de cada um desses termos; * A sua unidade inseparável; * A sua insuperabilidade recíproca, a sua necessidade mútua e a sua relação circular; * A insuperabilidade da contradição estabelecida pela sua unidade" (MORIN, 1986:73).

O problema de se identificar doença orgânica com a doença mental não seria apenas produzir um reducionismo, mas também, deixar de reconhecer uma hierarquia de integrações, em que a integração psíquica emerge e se baseia na integração bio-cerebral num nível superior. O aparelho psíquico teria, assim, novas propriedades irredutíveis ao nível inferior da integração bio-cerebral, ou seja, uma disfunção ou uma patologia de um nível hierárquico superior não pode ser idêntica a uma patologia de um nível inferior.

F. Jacob define, de uma maneira generalizada, que "a hierarquia na complexidade dos objetos tem, por conseqüência, duas características: por um lado, os objetos existentes em determinado nível constituem sempre uma amostra limitada em relação a todas as possibilidades oferecidas pelo conjunto de combinações do nível mais simples; por outro lado, podem surgir em cada nível novas propriedades que determinam novas constrições nos sistemas. O que não passa, afinal, de mais um acréscimo de constrições. As que existem em determinado nível aplicam-se também aos níveis mais complexos. Contudo, quase sempre as proposições que têm maior importância a determinado nível deixam de a ter nos níveis mais complexos" (JACOB, 1989:64-65).

Em suma, a instabilidade da representação biomédica de doença mental dos entrevistados tem como uma das suas causas fundamentais o não reconhecimento epistemológico da especificidade da doença mental. Tal desconsideração permite a interferência do par normal/desvio, desestabilizando a representação. O flanco da representação biomédica de doença mental estaria aberto à entrada de todos aqueles elementos relacionados com a significação social da doença mental e com a especificidade epistemológica desta em relação à doença orgânica. A singularidade da doença mental se funda, assim, no par bipolar normal/desvio, e não apenas no saúde/doença.

A representação biomédica da doença mental é silenciosa em relação à determinação social da patologia mental. O psiquiatra, dessa forma, quando interpelado sobre a etiologia da doença mental, utiliza recursos argumentativos conhecidos e familiares,

Page 156: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

que estão inscritos na sua representação de doença. Mas, quando interpelado sobre os condicionamentos sociais da enfermidade mental, o psiquiatra preenche as lacunas do seu discurso com elementos estranhos ao seu modelo de doença.

Enfim, como escreve Foucault, "não se pode, então, admitir prontamente nem um paralelismo abstrato, nem uma unidade maciça entre os fenômenos da patologia mental e os da orgânica; é impossível transpor de uma para outra os esquemas de abstrações, os critérios de normalidade ou a definição do indivíduo doente" (FOUCAULT, 1984:20).

Sem dúvida, durante toda esta discussão, o processo de objetivação da representação foi acompanhado implicitamente pelo processo de ancoragem, pois existe uma relação entre a cristalização de uma representação de doença mental, por uma parte, e um sistema de interpretação do objeto-doença e de orientação de comportamento, por outra.

Na verdade, o processo de ancoragem se confunde com o próprio modus vivendi do médico-psiquiatra, realizando-se o enraizamento social da sua representação de doença. A ancoragem confere significado e uma utilização à representação, integrando-a cognitivamente ao paradigma em que se move o médico-psiquiatra.

Mais ainda, tal processo não apenas se confunde mas, também, se identifica com a construção profissional da doença mental. A ancoragem define menos as regras de produção de sentido da representação do que, propriamente, a realização delas como interpretação da realidade social e orientação das condutas e das relações sociais. Na verdade, a ancoragem estaria relacionada à esfera do fazer e da ação, mediados pelos significados do comportamento do sujeito.

Os psiquiatras são um grupo social específico que realiza uma apropriação de um objeto social de maneira específica e distinta do resto da sociedade. Sua missão, definida socialmente, é tratar os doentes e, portanto, intervir ativamente na direção daquele que sofre de alguma enfermidade. O psiquiatra é orientado para a descoberta de doenças mentais e cria, apesar de inconscientemente, significações sociais do fenômeno mórbido, mesmo que o pense apenas do ponto de vista da sua significação biológica. A construção profissional da doença o leva a criar novas regras para definir o desvio psicopatológico, projetando para o social o seu paradigma.

Page 157: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Na construção profissional da doença mental, se inscreve o processo de identificação profissional. É interessante, nesse sentido, verificar a preocupação dos entrevistados em resguardar um papel para a Medicina. Eles enfatizaram, sobremaneira, a necessidade de um lugar privilegiado para o tratamento na Medicina, o qual possui uma relação especial com a identidade profissional dos médicos, porque é o guardião do seu monopólio. O consenso em torno do saber médico deve-se, fundamentalmente, ao monopólio do tratamento, visto que, do ponto de vista de uma doença que precisa ser erradicada, não seria concebível um saber que evitasse a sua realização terapêutica.

A luta profissional da Medicina foi menos pelo consenso em torno de sua concepção de doença do que pelo monopólio do tratamento. Podemos dizer que o tratamento é a representação da doença em ação. Existe, assim, uma relação estreita entre uma representação da doença e o seu tratamento. Foi a partir do monopólio terapêutico que a Medicina pôde, aos poucos, projetar socialmente a sua representação biomédica de doença.

No caso dos entrevistados, ocorreu uma divisão entre os "psiquiatras-professores" e os "psiquiatras"; os primeiros sustentaram uma visão mais psicossomática de doença mental do que ontológica e, em conseqüência, postularam um tratamento baseado na complementaridade entre a psicoterapia e a farmacoterapia; os segundos mostraram uma visão ontológica e predominantemente somática de doença mental e um tratamento essencialmente medicamentoso.

Vejamos, agora, um exemplo paradigmático da relação representação/tratamento na afirmação de um entrevistado:

"Olha, na minha concepção, eu sou da linha organicista. Eu acredito que toda doença mental tem uma base orgânica. Evidentemente, não tenho capacidade, nem meio para provar, mas acredito que no futuro será descoberto todas as origens das doenças mentais. Provavelmente, a genética fará isso. Eu acredito que a doença mental é de origem genética". ("psiquiatra")

O argumento, acima, estaria baseado num postulado de fé na organicidade da doença mental. Em nossa opinião, a inscrição social de uma representação e a orientação de comportamento produzida implicam, comumente, numa acriticidade em relação às premissas da postura tomada. A semelhança com a inscrição social de um paradigma num meio científico é evidente.

Page 158: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

O mesmo entrevistado reafirma, então, a sua representação de doença na terapia:

"Fundamentalmente o tratamento é bioquímico. A psicoterapia entra com uns 30% a 20%. Eu acho que a medicação é essencial. Eu não fujo disso não; isso é a minha concepção; isso é a minha forma de agir, meu modo de pensar, meu modo de atuar profissionalmente. Essencialmente medicamentoso". ("psiquiatra")

A relação entre o tratamento e a representação de doença é confirmada pelas associações reveladas pelo entrevistado entre a sua forma de agir, o seu modo de pensar e sua atuação profissional. A concepção de doença do entrevistado é colocada como um vaticínio ou uma espécie de destino para o qual estava condenado irreversivelmente ("eu não fujo disso não").

A ancoragem da representação de doença mental produz uma ligação direta com uma ação terapêutica respectiva. Uma tomada de posição terapêutica pode, também, orientar uma opinião e um comportamento sobre a sua institucionalização. Pode-se especular qual seria a relação entre uma visão de tratamento, por exemplo, e a defesa de uma organização terapêutica, como, no nosso caso, o hospital psiquiátrico.

Nesse sentido, todos os "psiquiatras-professores" foram contra o hospital psiquiátrico e propuseram outras alternativas institucionais, principalmente o hospital geral. O hospital psiquiátrico, de fato, com o seu sistema de reclusão asilar, impede, necessariamente, um tratamento que combine psicoterapia e medicamentos. A crítica foi contundente, afirmando-se que o asilo psiquiátrico patogeniza e estigmatiza o doente.

Os "psiquiatras-professores" revelaram, também, uma preocupação mais nítida com o doente interno, fato que ocorreu, raramente, entre os "psiquiatras". Tal preocupação pode ser creditada a uma representação menos ontológica de doença mental em que o doente aparece com mais nitidez do que, propriamente, a doença.

De todo modo, a opinião contrária ao hospital psiquiátrico está, também, inscrita na defesa, por parte dos "psiquiatras-professores", de uma unidade patológica na Medicina. Assim, o hospital psiquiátrico foi representado como um desvio do caminho natural da Medicina, produzido por uma visão de doença mental distante do paradigma médico.

Nas palavras de um entrevistado:

Page 159: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

"Eu vejo o meu doente como um todo e sou absolutamente contrário à separação da Psiquiatria da Medicina. Acho que foi um desvio horrendo; nós perdemos foi o caminho nessa história toda. E só vejo um caminho de volta: é a reintegração. E a reintegração da Psiquiatria com a Medicina passa não só pelo posicionamento teórico, pelo ensino novo na universidade, mas sobretudo pela extinção do asilo". ("psiquiatra-professor")

O entrevistado responsabiliza o hospital psiquiátrico por ter separado a Psiquiatria da Medicina e sustenta que o fim de tal desvio passa por sua extinção.

Contudo, nada indica historicamente que a Psiquiatria tenha sido isolada da Medicina; na verdade, foi a Medicina que, ao se apropriar da doença mental como seu objeto, produziu o hospital psiquiátrico. A Medicina também contribuiu para o isolamento de determinadas morbidades estigmatizantes, como foi o caso da lepra, da tuberculose, do câncer e, atualmente, da AIDS.

Por outro lado, os "psiquiatras" entrevistados, com uma exceção apenas, foram céticos quanto à substituição do hospital psiquiátrico. Pode-se especular que, do ponto de vista de um tratamento "essencialmente medicamentoso", o asilo psiquiátrico não produza qualquer obstáculo. Mas se pode pensar, também, que uma visão ontológica de doença, combinada com um organicismo, privilegie menos o doente do que a doença, que é priorizada em detrimento daquele.

Uma representação organicista da doença mental produz uma naturalização do seu objeto e, de um certo modo, objetiva o paciente, eliminando o contexto sócio-psicológico em torno do qual se formou o estado mórbido. A conduta do psiquiatra seria a de encontrar em toda doença mental uma etiologia orgânica, com exceção das neuroses, que, segundo os "psiquiatras", possui uma determinação "psicológica".

Não é surpresa, pois, verificar-se uma divisão de trabalho com a Psicologia, a qual estaria qualificada para ajudar no tratamento das neuroses, embora seja desprezada na terapia das grandes psicoses. As neuroses seriam um tanto minimizadas em relação às psicoses, visto não possuírem uma etiologia orgânica, isto é, seriam doenças mentais que não teriam tanta importância na nosologia psiquiátrica. Em geral, as definições de doença mental dos psiquiatras se relacionavam predominantemente com o modelo das psicoses.

Page 160: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Desse modo, a conduta "inadequada" do doente estaria relacionada a uma hipotética disfunção orgânica. O psiquiatra, ao assumir o modelo biomédico de doença, tenta amoldar-se a sua eterna madrasta: a Neurologia. Por isso, a justificação de sua visão organicista faz com que os "psiquiatras" - e, também, muitos "psiquiatras-professores" que defenderam, por exemplo, uma "neuropsiquiatria" - utilizem recursos explicativos advindos da Neurologia e, em conseqüência, ocasionando uma lacuna quanto aos componentes sócio-psicológicos da doença mental.

A ontologização da doença mental, combinada a um organicismo, determina, na relação psiquiatra/paciente, uma exclusão de ambas as posições subjetivas. Da parte do paciente, ocorre a sua objetivação pelo discurso clínico e a sua naturalização pela doença orgânica. O psiquiatra, por sua vez, só intervém para extrair da fala do paciente dados objetivos sintomatológicos. Ele só existe como referência constante ao seu saber e ao corpo psiquiátrico, anulando-se enquanto sujeito perante a exigência de objetividade científica do modelo clínico-organicista.

A dessubjetivação do psiquiatra apresenta-se, além do seu próprio efeito alienador óbvio, como um motivo de proteção e de alívio para o psiquiatra. "Olhar" um paciente psiquiátrico como uma objetividade natural - uma doença orgânica - evita o contato comunicativo com este doente; evita tomar consciência de que, apesar da doença, ele é um sujeito comunicativo. Na verdade, a "neutralidade" do psiquiatra evita o seu envolvimento com o intenso sofrimento psíquico do paciente.

O hospital psiquiátrico, segundo os "psiquiatras", não estigmatiza o doente, desde que é a estigmatização deste que estigmatiza o hospital.

Segundo um entrevistado,

"O estigma que se tem contra o hospital psiquiátrico é o estigma que se tem contra a doença mental. (...) No meu entender não é o hospital psiquiátrico que estimula esse estigma. O hospital psiquiátrico é mais estigmatizado pela própria população, pelo próprio público. É uma situação que estimula, dá fama, mas é mais a fama pelo próprio estigma que a sociedade coloca no doente mental". ("psiquiatra")

Os "psiquiatras", pelo que pudemos averiguar, não encaram o hospital psiquiátrico como um desvio da Medicina e, sim, um local profissional adequado. Eles defendem uma unidade patológica entre

Page 161: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

a doença mental e a orgânica, mas não inferem, como conseqüência, a extinção do hospital psiquiátrico.

Como disse um entrevistado, o hospital psiquiátrico

"sempre existirá. O que se pode fazer é restringir os critérios de internamento, mas sempre existirão pacientes que necessitarão de internamento. Talvez, por pouco tempo de internação. Mas continuará a existir o internamento e o hospital, não importa o tipo de trabalho que seja feito, nem as mudanças que ocorrerão". ("psiquiatra")

Os "psiquiatras" sustentaram que o conhecimento médico seria superior ao conhecimento leigo da doença mental e que essa superioridade teria uma relação unívoca com a capacidade de tratamento da Medicina. Desse modo, eles se posicionaram contrariamente à posição defendida pelos "psiquiatras-professores", que sustentaram uma igualdade entre o conhecimento leigo da doença e o médico, afirmando que a Medicina teria apenas uma maior sofisticação e uma tendência de se apropriar do desvio como uma doença.

A ancoragem da representação de doença mental repercutiu na questão da identidade profissional de maneira diferente para os "psiquiatras" e os "psiquiatras-professores". Os primeiros se preocuparam em enfatizar a diferença existente entre o conhecimento médico e o leigo, afirmando uma legitimidade social da sua profissão na sociedade; os segundos tiveram a necessidade de defender a volta da Psiquiatria ao seio da Medicina, preocupando-se com a legitimidade dessa disciplina no interior da sua própria profissão. São, portanto, orientações de conduta diferentes, determinadas por uma inscrição não homogênea da representação.

Por outro lado, os psiquiatras entrevistados tiveram a preocupação em despreconceitualizar a doença mental. O fato, contudo, de designar um comportamento desviante como uma doença mental envolve um processo de rotulação do indivíduo (Cf. SCHEFF, 1978), sendo, portanto, impossível não existir, mesmo que inconscientemente, um processo de condenação moral. O psiquiatra pensa que condena apenas a "doença" e não o doente, não percebendo que, ao fazer isso, separa o ato de despreconceitualização do de rotulação. Por mais liberalidade com que o psiquiatra trate o seu doente, isso não evita as conseqüências sociais de seu paciente ter sido por ele designado como doente.

Page 162: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Ora, os psiquiatras estão mais interessados nas conseqüências físicas e, no máximo, psicológicas do diagnóstico e do tratamento do que nas suas conseqüências sociais e morais. A Psiquiatria, assim, tenta minimizar o preconceito social contra a doença mental, mas produz, ao mesmo tempo, a rotulação do comportamento desviante. A ancoragem de uma representação biomédica de doença envolve uma conduta que separa a doença do doente, separando, por conseguinte, a despreconceitualização da rotulação.

Na verdade, os psiquiatras aumentam o número de desvios do comportamento entendidos como doenças mentais, pois a sua missão é justamente descobrir "desvios patológicos" (CF. FREIDSON, 1984).

Como disse um entrevistado sobre a diferença entre o conhecimento leigo de doença e o médico:

"(...) Então, os leigos são capazes de detectar o desvio daquele padrão de normalidade. Mas somente o médico repara que aquilo é doença..." ("psiquiatra-professor")

O saber psiquiátrico seria projetivo, no sentido de inscrever nos desvios do comportamento a marca da morbidade. A ancoragem transformaria a representação biomédica de doença mental em um instrumento de interpretação do comportamento desviante, enquanto "desvio patológico". Um instrumento, pois, ancorado na conduta do psiquiatra diante dos desvios sociais.

Um sintoma dessa projeção do sentido mórbido no desvio comportamental pode ser visualizado, de certo modo, na forma como os psiquiatras entrevistados identificaram a loucura com a doença mental. Seria isso, portanto, um exemplo da captura psiquiátrica, em termos nosológicos, do comportamento desviante? Na verdade, parece refletir mais uma interpretação da realidade do desvio comportamental, realizada pela ancoragem de sua representação de doença mental, do que qualquer outra coisa. A ancoragem socializa uma representação de doença mental entre os psiquiatras e projeta para o mundo, via poder e hegemonia dos médicos, a condição de se viver constantemente sob o signo da identidade entre loucura e doença mental.

Page 163: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seria ingenuidade pretender que este desfecho fosse entendido como uma conclusão, pois uma Dissertação é um longo e tortuoso aprendizado e o seu final representa, geralmente, o fim de um começo. Talvez uma espécie de clareira no meio de uma floresta em que se visualizam, ao longe, vários caminhos.

Iniciamos o processo de investigação com uma inquietação e terminamos com uma problemática. Podemos dizer que respondemos, de alguma forma, às nossas perguntas, embora as respostas tenham produzido outras inquietações e, em conseqüência, novas perguntas. Geralmente, no processo de conhecimento, surgem, ao mesmo tempo, o problema e a solução, ainda que esta última transborde os seus limites e se metamorfoseie em novos problemas.

Por outro lado, existe no começo da investigação uma espécie de latência na reflexão e o desejo de considerar as coisas menos como contingentes do que necessárias. O pesquisador se sente numa espécie de labirinto de múltiplas vias em que precisa seguir, mesmo que arbitrariamente, uma direção determinada.

Por isso, para encontrar um caminho mais preciso, procuramos rastrear as origens do conceito de representação e, se foi necessário começar pelo começo, nada como buscá-lo onde tudo quase sempre se inicia: na Grécia. Assim, saímos da Grécia e fomos parar no Recife. Uma viagem longa, com várias conexões e escalas, toda realizada e comandada pelo conceito de

Page 164: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

representação, que, apesar de ter sofrido diversas modificações, permaneceu íntegro em todo o percurso. A representação embarcou numa viagem conceitual como uma categoria epistemológica e chegou a seu destino menos polissêmica e mais aplicável metodologicamente.

Talvez, a grande virtude da Psicologia Social tenha sido encontrar uma localização epistemológica adequada para a representação, ainda que isso não signifique uma censura para a sua utilização na Filosofia, na Antropologia e na Sociologia.

O conceito de representação social permitiu à Psicologia Social não se restringir a parâmetros normativos puramente psicológicos, nem à descrição pura e simples de fenômenos individuais; na verdade, a Psicologia Social compreendeu que faz parte das ciências sociais, ultrapassando uma mera teoria do comportamento. Assim, a representação social induziu nela, além de um desejo de totalização subjetiva, um desejo de totalização estrutural, isto é, um desejo de Sociologia.

Se uma das grandes dicotomias existentes nas ciências socais é a distância entre o individual e o coletivo, a estrutura e a subjetividade, podemos supor que o conceito de representação social tenha diminuído tal distância, operando como uma ponte entre o psicológico e o sociológico. A representação social permite à ciência social não ficar espremida entre uma visão "holista" de sociedade e uma "atomista" de indivíduo, demonstrando que o "aspecto de estrutura" e o "aspecto de ação" devem-se complementar.

No entanto, devido à especificidade do nosso objeto de estudo, foi preciso uma modificação no conceito de representação social, além do que, para a sua maior elucidação, outros conceitos foram discutidos, tais como saber, ideologia, cotidiano, paradigma e profissão.

Ora, utilizamos o conceito de representação social para apreender a representação de doença mental entre os psiquiatras. O saber psiquiátrico sobre a doença mental não pode ser reduzido ao "senso comum" e nem à ideologia, isto é, ele é um saber profissional. Outrossim, ele não é um conhecimento científico, embora seja baseado em um discurso lógico-formal. A posição específica do saber profissional determinou, desse modo, um diálogo conceitual com os vários conceitos citados, acima.

A modificação engendrada no conceito de representação social foi a sua transformação em um conceito fundamental do cotidiano e

Page 165: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

não, propriamente, do "senso comum" ou, melhor, a representação estaria relacionada com as formas de conhecimento do cotidiano. Esta mudança nos permitiu "alargar" o conceito e perceber o discurso dos psiquiatras entrevistados do ângulo do seu cotidiano profissional.

Igualmente, ao deslocarmos o conceito de ideologia para o campo institucional, pudemos perceber uma complementaridade entre a ideologia e a representação social. A ideologia, entendida como fetichismo institucional ou como uma ideologia reconstrutora, teria uma relação dialética com a representação, entendida como uma consciência fragmentada da realidade ou como uma consciência pluralista desfetichizadora. Sustentamos, também, que a tendência estrutural da sociedade moderna se inscreve no pólo fetichismo institucional/consciência fragmentada e que o saber médico pode-se tornar um subsistema institucional, apartado da vida social, esvaziando os conteúdos representativos da doença no "senso comum".

Tivemos, ainda, a necessidade de discutir a relação entre a ciência e as formas de conhecimento do cotidiano, concluindo, na análise, que o saber médico é dominado por um paradigma naturalista proveniente das ciências naturais, que transforma a representação da doença numa representação biomédica.

Mostramos, em seguida, que a Psiquiatria tem uma dificuldade em se enquadrar no modelo médico de doença por causa da especificidade epistemológica da doença mental, bem como que a clínica psiquiátrica estaria sustentada pela identificação doença/sintoma, caracterizando uma Medicina de sintomas e classificatória, isto é, uma clínica baseada na representação.

O profissional médico é um técnico e, enquanto tal, não tem necessidade de refletir sobre o seu objeto/doença, embora isso não prejudique a clínica, o atendimento e o tratamento dos doentes. Sua representação de doença é dominada pelo modelo biomédico de doença, que impede o médico de perceber o significado social da mesma, uma vez que é a profissão médica que atribui socialmente um significado biológico à enfermidade. A atribuição social de um significado biológico à doença seria o fator fundamental para os médicos não apreenderem a significação social da mesma.

A hegemonia de um modelo biomédico de doença traz graves problemas para a Psiquiatria, na medida em que o sintoma psiquiátrico se identifica com o comportamento desviante, que não pode ser reduzido a uma mera expressão de uma patologia orgânica.

Page 166: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

Tal situação causa uma instabilidade crônica na representação psiquiátrica da doença mental, que fica num movimento pendular entre o par bipolar saúde/doença, do qual emerge o modelo médico, e o normal/desvio, representado por modelos sócio-relacionais e psicodinâmicos de doença.

Na verdade, a visão dos psiquiatras entrevistados sobre a doença mental estaria a meio caminho entre uma concepção fetichizada e outra fragmentada: fetichizada, porque a concepção biológica substitui e opacifica a significação social da doença mental; e fragmentada, porque invariavelmente a representação biomédica sofre interferências desestruturadoras provenientes da especificidade nosológica. Além disso, é uma visão fragmentada, não só em conseqüência de interferências, como as citadas acima, mas também porque o psiquiatra é um médico e, como tal, um técnico desacostumado a realizar reflexões sobre o seu objeto clínico.

Em suma, sustentamos que o discurso dos psiquiatras entrevistados é um discurso ambíguo, no qual percebemos elementos lógico-formais, originários de uma formação teórico-universitária, e elementos análogos àqueles encontrados no chamado "pensamento natural".

Uma Dissertação é menos um ponto de chegada do que de partida, tanto sob o aspecto pessoal como, principalmente, teórico-metodológico, assentado nas suas falhas e nas suas virtudes, propiciando uma problemática nova ou, pelo menos, uma revisão de uma já existente.

Nesse sentido, é necessário assinalar diversos "pontos futuros" em nosso trabalho que precisariam de uma complementação em investigações posteriores:

1) Não investigamos, aqui, a representação do doente mental entre os psiquiatras e, em conseqüência, deixamos de explorar todo um conjunto de problemas estimulantes para a nossa problemática. Seria, assim, pertinente investigar as articulações entre esta representação e a de doença mental no meio psiquiátrico. Uma articulação que, provavelmente, revelaria uma concepção antropológica do homem, que, de forma embrionária, pudemos perceber, subsidiando as respostas dos entrevistados nas questões relativas à periculosidade do paciente psiquiátrico.

Por outro lado, sugerimos para o estudo desta questão a seguinte hipótese: quanto mais biomédica a representação de doença mental e de doente mental menos ela necessita de um

Page 167: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

subsídio antropológico. Com efeito, existe, de forma latente, nos conhecimentos fisiológicos e patológicos, uma concepção do Homem vivo, porém esta antropologia não figura, atualmente, entre as preocupações fundamentais dos médicos e da sua representação biomédica da doença.

2) Não realizamos um estudo comparativo de representações de doença mental, seja entre médicos e psiquiatras seja entre médicos e não-médicos. Um estudo comparativo poderia esclarecer, talvez, de forma contundente, a objetivação e a ancoragem da representação social de doença mental no meio médico e psiquiátrico, como também as relações entre o "senso comum" e o saber profissional médico.

3) Uma questão sugerida, embora apenas teoricamente esboçada, foi a relação entre a construção profissional da doença e seu papel na formação da identidade profissional do médico. A construção profissional da doença e a articulação em torno de si das questões relativas à identidade, à competência e ao saber médico, podem constituir uma problemática estimulante para futuras investigações. Em conseqüência, necessita-se de uma investigação das representações profissionais do médico e sua articulação com a construção profissional da doença.

• Por fim, as relações entre o saber profissional e a ciência merecem uma investigação teórica mais aprofundada, tanto quanto uma elucidação do conceito de profissão médica e sua articulação com a institucionalização das esferas de saber da sociedade

• B I B L I O G R A F I A

ABBAGNANO, Nicola (1984) - História da Filosofia - Vol.XIV, 3º ed., Lisboa, Presença.

Page 168: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

AEBISCHER, Verena (1991) - "Vers une anthropologie des médecines naturelles", In AEBISCHER, Verena et alli (1991).

AEBISCHER, Verena et alli (1991) - Idéologies et représentations sociales - Suisse, Delval.

ALTHUSSER, Louis (1983) - Aparelhos ideológicos de estado - Rio de Janeiro, Graal.

AMERIO, Piero (1991) - "Idées, sujets et conditions sociales d'existence", In AEBISCHER et alli (1991).

APEL, Karl-Otto (1989) - "Teoria dos tipos de racionalidade", In Novos Estudos (23:67-87). São Paulo, Cebrap.

BACHELAR, Gaston (1978) - "A Filosofia do Não", In Os Pensadores- Bachelar - S.Paulo, Abril Cultural.

BAKHTIN (VOLOCHINOV) Mikhail (1986) - Marxismo e filosofia da linguagem - São Paulo, Hucitec, 3º ed..

BARDIN, L. (1978) - L'analyse de contenu - Paris, PUF.

BASAGLIA, Franco (1985) - A instituição negada - Rio de Janeiro, Graal.

BERLINGUER, Giovanni (1976) - Psiquiatria e Poder - Minas Gerais, Interlivros.

BERLINGUER, Giovanni (1985) - A Doença - São Paulo, Abril Cultural.

BERNARD, Claude (1966) - Introduction à l'étude de la médecine expérimentale - Paris, Garnier-Flammarion.

BOLTANSKY, Luc (1989) - As classes sociais e o corpo - Rio de Janeiro, Graal, 3º ed..

BOUDON, Raymond (1990) - L´art de se persuader - Paris, Fayard.

BRAGA, Maria Lúcia Santaella (1980) - Produção de Linguagem e Ideologia - São Paulo, Cortez.

CALASSO, Roberto (1990) - As núpcias de Cadmo e Harmonia - São Paulo, Companhia das Letras.

Page 169: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

CANGUILHEM, G. (1982) - O normal e o patológico - Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 2º ed..

CASSIRER, Ernst (1961) - O mito do estado - Lisboa, Europa- América.

CLAVREUL, Jean (1983) - A Ordem Médica: poder e impotência do discurso médico - São Paulo, Brasiliense.

COELHO, Eduardo Prado (1982) - Os Universos da Crítica - Lisboa, Edições 70.

COSTA, Jurandir Freire (1976) - História da Psiquiatria no Brasil - Rio de Janeiro, Documentário.

COSTA, Jurandir Freire (1979) - Ordem médica e Norma familiar - Rio de Janeiro, Graal.

CUNHA, Maria Clementina Pereira (1986) - O espelho do mundo - São Paulo, Paz e Terra.

CUVILIER, Armand (1975) - Sociologia da Cultura - Porto Alegre, Globo.

DARNTON, Robert (1986) - O grande massacre dos gatos; e outros episódios da história cultural francesa - Rio de Janeiro, Graal, 2º ed..

DASCAL, Marcelo (1989) - "Tolerância e interpretação", In DASCAL, Marcelo (Ed.), 1989.

DASCAL, Marcelo (Ed.) (1989) - Conhecimento, linguagem e ideologia - São Paulo, Perspectiva.

DURKHEIM, E. (1960) - As regras do método sociológico - São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2º ed..

DURKHEIM, E. (1970) - Sociologia e Filosofia - São Paulo, Forense.

DURKHEIM, E. (1994) - Les formes élémentaires de la vie religieuse - Paris, PUF/Quadrige, 3º éd..

EPSTEIN, Isaac (1990) - "Thomas S. Kuhn: a cientificidade entendida como vigência de um paradigma" - In OLIVA, Alberto (Org.), (1990).

Page 170: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

FIGUEIRA, Sérvulo A. (Org.) (1978) - Sociedade e Doença Mental - Rio de Janeiro, Editora Campus.

FORACCHI, Marialice Mencarini & MARTINS, José de Souza (1977) - Sociologia e sociedade (leituras de introdução à sociologia) - Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos Editora S.A.

FOUCAULT, Michel (1967) - As Palavras e as Coisas - Lisboa, Portugália.

FOUCAULT, Michel (1972) - Arqueologia do Saber - Petrópolis, Vozes.

FOUCAULT, Michel (1978) - História da Loucura - São Paulo, Perspectiva.

FOUCAULT, Michel (1979) - Microfísica do Poder - Rio de Janeiro, Graal.

FOUCAULT, Michel (1984) - Doença Mental e Psicologia - Rio de Janeiro, Graal.

FOUCAULT, Michel (1987) - O Nascimento da Clínica - Rio de Janeiro, Forense Universitária, 3º ed..

FREIDSON, Eliot (1984) - La profession médicale - Paris, Payot.

GADAMER, Hans-Georg (1976) - Vérité et méthode: les grandes lignes d´une herméneutique philosofique - Paris, Seuil.

GHIGLIONE, Rodolphe et alli (1980) - Manuel d'analyse de contenu - Paris, Armand Colin.

GIDDENS, Anthony (1978) - Novas Regras do Método Sociológico - Rio de Janeiro, Zahar.

GIDDENS, Anthony (1987) - La constitution de la société - Paris, PUF.

GINZBURG, Carlo (1987) - O queijo e os vermes - São Paulo, Companhia das Letras.

GOFFMAN, Ervin (1978) - "Sintomas mentais e ordem pública", In FIGUEIRA, Sérvulo (Org.) (1978).

GOFFMAN, Erving (1984) - Manicômio, Prisões e Conventos - São Paulo, Perspectiva.

Page 171: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

GOULD, Stephen Jay (1989) - O polegar do panda: reflexões sobre história natural - São Paulo, Martins Fontes.

GOULD, Stephen Jay (1990)- Vida maravilhosa: o acaso na evolução e a natureza da história - São Paulo, Companhia das Letras.

GRAMSCI, Antonio (1966) - Concepção dialética da História - Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

GRAMSCI, Antonio (1984) - Maquiavel, a política e o estado moderno - Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 5º ed..

GRECO, Pierre (1967) - "Epistémologie de la Psychologie", In PIAGET, Jean (Org.) (1967).

GRMEK, Mirko D. (1990) - La première révolution biologique - Paris, Payot.

HABERMAS, Jürgen (1983) - Para a reconstrução do materialismo histórico - São Paulo, Brasiliense.

HABERMAS, Jürgen (1985) - El discurso filosófico de la modernidad - Madrid, Taurus.

HABERMAS, Jürgen (1987) - Teoria de la acción comunicativa; racionalidad de la acción y racionalización social - Tomos I e II. Madrid, Taurus.

HABERMAS, Jürgen (1989) - Consciência moral e agir comunicativo - Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

HELLER, Agnes (1983) - A filosofia radical - São Paulo, Brasiliense.

HELLER, Agnes (1985) - O cotidiano e a história - Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2º ed..

HELLER, Agnes (1991) - "Sociologia e desfetichização" - In Novos Estudos (30: 204-216) - São Paulo, Cebrap, (1991).

HELLER, Agnes & FEHER, Ferenc (1985) - Anatomia de la izquierda occidental - Barcelona, Ediciones Peninsula.

HERZLICH, C. (1975) - Santé et maladie: analyse d'une représentation sociale - Paris, Nouton, 2º éd..

JACOB, François (1989) - O jogo dos impossíveis: ensaio sobre a diversidade do mundo vivo - Lisboa, Gradiva, 2º ed..

Page 172: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

JODELET, Denise (1986) - "La representación social: fenómenos, concepto y teoría" - In MOSCOVICI, Serge (Org.) (1986).

JODELET, Denise (1989-A) - "Représentations sociales: un domaine en expansion" - In JODELET, Denise et alli (1989).

JODELET, Denise (1989-B) - Folies et représentation sociales - Paris, PUF.

JODELET, Denise (1991) - "L'idéologie dans l'étude des représentations sociales" - In AEBISCHER, Verena et alli (1991).

JODELET, Denise et alli (1989) - Les représentations sociales - Paris, PUF.

JUNKER, Buford H. (1971) - A importância do trabalho de campo (uma introdução às ciências sociais) - Rio de Janeiro, Lidador.

KOSIK, Karel (1976) - Dialética do concreto - Rio de janeiro, Paz e Terra, 2º ed..

KUHN, Thomas S. (1975) - A estrutura das revoluções científicas - São Paulo, Perspectiva.

LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J-B. (1980) - Vocabulário da Psicanálise - São Paulo, Martins Fontes.

LAPLANTINE, François (1989) - "Antrhopologie des sistèmes de représentations de la maladie: de quelques recherches menées dans la France contemporaine réexaminées à la lumière d'une expérience brésilienne" - In JODELET, Denise et alli (1989).

LAPLANTINE, François (1992) - Anthropologie de la maladie - Paris, Payot.

LEVINE, Andrew, SOBER, Elliott & WRIGHT, Erik O. (1989)- "Marxismo e Individualismo metodológico" - In Revista Brasileira de Ciências Sociais (II/4, 10) - São Paulo, ANPOCS, 1989.

LIPIANSKY, E. Marc (1991) - "Représentations sociales et idéologies: analyse conceptuelle" - In AEBISCHER, Verena et alli (1991).

LOPARIC, Zeljko (1990) - Heidegger réu: um ensaio sobre a periculosidade da filosofia - Campinas, Papirus.

Page 173: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

LUZ, Madel T. (1986) - As instituições médicas no Brasil - Rio de Janeiro, Graal, 3º ed..

LUZ, Madel T. (1988) - Natural, Racional, Social - Rio de Janeiro, Campus.

MACHADO, Roberto (1982) - Ciência e Saber - Rio de Janeiro, Graal.

MAINGUENEAU, Dominique (1989) - Novas tendências em Análise do Discurso - São Paulo, Ed. Pontes.

MARX, Karl (1975) - O Capital: Crítica da economia política - livro 1, vol 1, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 3º ed..

MARX, Karl (1978) - "Para a crítica da Economia Política" - In Os Pensadores - Marx - São Paulo, Abril Cultural.

MICHELAT, Guy (1980) - "Sobre a utilização da entrevista não- diretiva em Sociologia" - In THIOLLENT, Michel (1980).

MILES, Agnes (1982) - O doente mental na sociedade contemporânea - Rio de Janeiro, Zahar.

MOLES, A. (1971) - A criação científica - São Paulo, Perspectiva.

MORIN, Edgar (1986) - O método três: o conhecimento do conhecimento - Lisboa, Publicações Europa-América.

MOSCOVICI, Serge (1978)- A Representação Social da Psicanálise - Rio de Janeiro, Zahar.

MOSCOVICI, Serge (Org.) (1986) - Psychologie Sociale, Paris, PUF

- (V. também: (1986) - Psicologia Social - Buenos Aires, Paidös. Trad. esp.).

MOSCOVICI, Serge (1989-A) - "Des représentations collectives aux représentations sociales" - In JODELET, Denise et alli (1989).

MOSCOVICI, Serge (1989-B) - "Préface" - In JODELET, Denise (1989- B).

MOSCOVICI, Serge (1991) - "La fin des représentations sociales?" - In AEBISCHER, Verena et alli 1991.

Page 174: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

MOSCOVICI, Serge & HEWSTONE, Miles (1986) - "De la science au sens commun" - In MOSCOVICI, Serge (Org.) (1986).

NASSIF, Alberto Aziz (1982) - "El Analisis del Discurso: ofício de Artesanatos" - In , Cadernos TICON/UNAM ( n@ 16), México, 1982.

NETTO, José Paulo & FALCÃO, Maria do Carmo (1987) - Cotidiano: conhecimento e crítica - São Paulo, Cortez.

OFFE, Claus (1989) - Capitalismo desorganizado - São Paulo, Brasiliense.

OLIVA, Alberto (org.) (1990) - Epistemologia: a cientificidade em questão - Campinas, Papirus.

ORLANDI, Eni P. (1988) - Discurso e leitura - São Paulo, Cortez.

ORTIZ, Renato (1989) - "Durkheim: arquiteto e herói fundador" - In Revista Brasileira de Ciências Sociais (n@ 11) - São Paulo, ANPOCS, 1989.

OSTROWETSKY, Sylvia (s/d) - La représentation et ses doubles - texto mimeo..

PELBART, Peter Pál (1989) - Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão - São Paulo, Brasiliense.

PIAGET, Jean (Org.) (1967) - Logique et connaissance scientifique - France, Gallimard.

PICCINI, Mabel (1983) - "Sobre la Produccion Discursiva - La comunicacion y las Ideologias" - In Cadernos TICON/UNAM (nº 22), México, 1983.

RANGE, Bernard P. (1991) - "Relações funcionais entre obsessões e compulsões: uma caracterização conceitual" - In Jornal Brasileiro de Psiquiatria (40 (8):405), 1991.

REBOUL, Olivier (1980) - Language et Ideólogie - Paris, PUF.

RORTY, Richard (1990) - Science et solidarité: la vérité sans le pouvoir - France, Éditions de l´Éclat.

ROSA, Annamaria Silvana (1991) - "Idéologie médicale et non- médicale et son rapport avec les représentations sociales de la maladie mentale" - In AEBISCHER, Verena et alli (1991).

Page 175: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

ROSEN, George (1979) - Da polícia médica à Medicina Social - Rio de Janeiro, Graal.

ROUANET, Sérgio P. (1987) - A razão cativa - São Paulo, Brasiliense, 2º ed..

ROUANET, Sérgio P. (1989) - As razões do iluminismo - São Paulo, Companhia das Letras, 2º ed..

SANTOS, João Agostinho (1980) - "Gramsci: ideologia, intelectuais orgânicos e hegemonia" - In Temas, vol. IX (vários), São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1980.

SAUSSURE, Ferdinand de (1974) - Curso de linguística geral - São Paulo, Cultrix.

SCHEFF, Thomas (1978) - "Doença mental: o ponto de vista da teoria da rotulação" - In FIGUEIRA, Sérvulo A. (Org) (1978).

SCHUTZ, Alfred (1994) - Le chercheur et le quotidien - 2º tirage, Paris, Meridiens Klincksieck.

SIEBENEICHIER, Flávio Beno (1989) - Jürgen Habermas: razão comunicativa e emancipação - Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

SILVA, Maria Nunes de Moura (1978) - Fábricas da Esperança: Ideologia e representações sociais no Nordeste - Recife, UFPE-PIMES.

SPERBER, Dan (1989) - "L'étude anthropologique des représentations" - In JODELET, Denise et alli (1989).

SMITH, Andrew Croyden (1985) - Esquizofrenia e Loucura - Porto Alegre, Artes Médicas.

SONENREICH, Carol & KERR-CORREA, Florence (1990) - "Para uma Psiquiatria dos anos noventa" - IN: Revista ABP-APAL, 12 (1,2,3,4), 1990.

STEINER, George - Heidegger (1990) - Lisboa, Dom Quixote.

STEINER, George (1991) - Réelles présences: les arts du sens - Paris, Gallimard.

SZASZ, Thomas S. (1979) - O mito da doença mental - Rio de Janeiro, Zahar.

Page 176: Perrusi, Artur. Imagens da Loucura

TEIXEIRA, Sonia Fleury (Org) (1989) - Reforma Sanitária - São Paulo, Cortez.

THIOLLENT, Michel (1980) - Crítica metodológica, investigação social e enquete operária - São Paulo, Polis.

THOMPSON, E.P. (1981) - Miséria da Teoria - Rio de Janeiro, Zahar.

TOURAINE, Alain (1984) - Le retour de l'acteur - Paris, Fayard.

TRAGTENBERG, Maurício (1974) - Burocracia e ideologia - São Paulo, Ática.

VÁRIOS (1987) - Cidadania e loucura (políticas de saúde mental no Brasil) - Petrópolis, Vozes.

VERON, Eliseo (1978) - "Sémiosis de l'idéologique et du pouvoir" - In Communications, n@ 28 (7-20). Paris, Ed. Du Seuil, 1978.

VERON, Eliseo (1981) - Produção do Sentido - São Paulo, Cultrix.

VERON, Eliseo (s/d) - Remarques sur L'idéologique commme production de sens - Mimeo.

WEBER, Max (1969) - Economia y Sociedade - Tomo I. México, Fondo de Cultura Economica.

WEBER, Max (1970) - Ciência e Política: duas vocações - São Paulo, Cultrix.

WILLIAMS, Raymond (1979) - Marxismo e Literatura - Rio de Janeiro, Zahar.

WITTGENSTEIN, Ludwig (1979) - "Investigações filosóficas" - IN Os Pensadores - Wittgenstein. São Paulo, Abril Cultural.