pernambuco vivo

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Eles são 30 homens, mulheres e agremiações. Com sua vida, escrevem a cultura pernambucana. Alimentam um mundo imaginário habitado por gigantes, calungas, bichos que falam, santos que se transfiguram e músicas de muitos acordes. Quase todos vêm da periferia, dos arredores, de onde o vento faz a curva. Não falam em linha reta, mas em voltas. Contam de um mundo só deles, que encanta e, às vezes, faz doer. São os Patrimônios Vivos de Pernambuco, mantêm a rica tradição da cultura popular do Estado. Homens, mulheres e agremiações que você vai conhecer agora.

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Page 1: Pernambuco Vivo

Eles são 30 homens, mulheres eagremiações. Com sua vida, escrevem acultura pernambucana. Alimentam ummundo imaginário habitado por gigantes,calungas, bichos que falam, santos quese transfiguram emúsicas de muitosacordes. Quase todos vêm da periferia,dos arredores, de onde o vento faz acurva. Não falam em linha reta, mas emvoltas. Contam de ummundo só deles,que encanta e, às vezes, faz doer. São osPatrimônios Vivos de Pernambuco,mantêm a rica tradição da cultura populardo Estado. Homens,mulheres e agremiaçõesque você vai conhecer agora.

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[BR_JC_10: JC-ESPECIAL-1_MATERIAL <1022_12_PAT_02> [JC1] ... 22/10/13] Author:IMBIONE Date:23/10/13 Time:10:36

Eles são só nossos e, ao mesmotempo, do mundo todo. Dão co-res, sons e vozes à identidade

pernambucana. Homens, mulheres eagremiações de muitos talentos, eles es-crevem com suas vidas trechos da histó-ria do Estado. Não a história oficial, so-bre vencedores e vencidos.Mas as narra-tivas poéticas e maravilhosas que fazemdomundo em que habitam um lugar úni-co. Pela imensa contribuição que dão aoseu povo, mereceram o título de Patrimô-nios Vivos de Pernambuco. Hoje e napróxima terça-feira, dia 29 de outubro, oJornal doCommercio publica os cader-nos Pernambuco Vivo, apresentando aosleitores um pouco da trajetória de arte eencantamento desses 30 guerreiros.O título oficial de Patrimônio Vivo

de Pernambuco é oferecido pelo gover-no do Estado, por meio de um edital daSecretaria de Cultura. Anualmente,uma comissão estadual, formada espe-cificamente para a eleição, reúne-se,avalia os nomes inscritos e selecionatrês novos membros para o grupo. Oprocesso passa pelo aval do ConselhoEstadual de Cultura. O reconhecimen-to foi estabelecido por lei em 2002 –ainda que os primeiros 15 nomes só te-nham sido anunciados em 2006, retroa-tivamente. Desde então, a cada ano, trêsnovos artistas ou agremiações são esco-lhidos. Eles têmquemorar no Estado hápelo menos 20 anos e comprovar atua-ção dentro da cultura local. Mensal-mente, recebem uma bolsa vitalícia– R$ 1.021,62 para pessoas físicas; ouR$ 2.043,24 para instituições semfins lucrativos. É um incentivo paraque se mantenham em atuação e re-passem seus conhecimentos.Para contar um pouco dessa história,

os Patrimônios Vivos de Pernambucoabriram as portas de suas casas, ateliês

e sedes de instituições. Às vezes, as me-mórias se diluem no tempo, e os regis-tros se inscrevem nas entrelinhas. Suasbiografias se confundem com a arte queprofessam. Nas reportagens presentesnos dois cadernos – complementadaspor um site (já no ar), um e-book e umaexposição, que ficam prontos em novem-bro –, o leitor vai perceber que, para es-sas pessoas, vida e obra são uma coisasó. Foram 18 meses percorrendo o Esta-do para encontrar cada um deles. O re-sultado reflete a própria formação cultu-ral do Estado, em sua diversidade ímpar.Maracatus, caboclinhos, frevos, sam-

bas e afoxés. Poetas damadeira, da cerâ-mica e das letras. Atores e bailarinos.Desenho, pintura e escultura. É uma in-crível multiplicidade de manifestaçõesculturais que se desdobram neste espe-cial Pernambuco Vivo. Nomes que vãoalém do Carnaval, do São João e do Na-tal. Artistas que, como já havia alertadoo poeta Padre Antônio Vieira, deveriamestar na boca do povo, nas salas de aula.Durante toda a viagem, impressiona

o sorriso no rosto de cada um deles.Com orgulho, deixaram que seu mun-do fosse compartilhado com os leito-res. Só assim foi possível narrar o retor-no ao sucesso da cirandeira Lia de Ita-maracá e da coquista Selma doCoco, ho-je grandes amigas. A contorcionista Ín-diaMorena redescobre a infância. O ele-gante Galo Preto fala de superação. Ascriações dos xilogravuristas e cordelis-tas Dila, J. Borges e José Costa Leite re-velam cores e rimas. Abrem-se as corti-nas do Teatro Experimental de Arte. Zédo Carmo, Maria Amélia e Nuca fazemorações em forma de esculturas. Arte e fése encontram na Confraria do Rosário enos batuques dosmaracatus LeãoCoroa-do, Estrela Brilhante e Estrela de Ouro.Mateus Araújo

Quem são eles, de onde vêm,que alegria é essa tão conta-giante, que nem os dias tristesabalam o seu canto e o seu vi-

ver? Que mundo é esse, feito de sonhoe poesia, onde cantar é lei, criar é do-te? Quem são esses filhos do povo, ir-mãos da arte, esses pastores da divinacriação, ungidos que se escondiam noanonimato e que agora saem do seu pe-queno mundo para a posteridade? Fo-ram por toda sua existência pelotiquei-ros e saltimbancos da grande comédiahumana – que agora são resgatados pa-ra obra e graça dos seus contemporâ-neos, porque homenagem póstuma éuma visão distorcida da história pre-sente. Alguns deram vida ao barro, ou-tros perpetuaram a imagem. Todoseles honraram a vida e escreveramuma pequena epopeia. Esses homens eessas mulheres que hoje são persona-gens deste caderno especial Pernambu-co Vivo, essas instituições sacrossantasmais amadas do que conhecidas, sãoum pedaço vivo do povo de suor e san-dálias, da história e do orgulho de Per-nambuco. Que sejam todos louvados,com licença de Vinicius de Morais.Louvada seja Selma do Coco, preta e

sábia, elegante na sua echarpe colorida,faceira nos brincos de ametista –guardiã das melhores tradições do nos-so cancioneiro popular: o coco, sob suasmais diversas manifestações. Coco quejá rendeu a Selma nove discos, umDVDe cinco filmes, patrimônio tão expressi-vo que bate o demuitos famosos do sho-wbiz norte-americano. Seja louvada Liade Itamaracá, cujo nome e cuja fama seespalham por esses brasis tão brasilei-ros, dado que a ela se credita o resgateda autêntica ciranda. E ciranda, comose sabe, não é coisa para amador. Louva-da seja ÍndiaMorena, quemambembou

pelos picadeiros dos circos mais famo-sos aos mais humildes, fazendo da co-bertura de lona o teto seu de cada cami-nhada – e que neste mundo de fantasiacorre chão há mais de meio século. Nãoganhou dinheiro, não fez fortuna, nãotem patrimônio – mas virou Patrimônioe tem o riso largo dos que carregam nasmãos os prazeres da vida. Seja louvadaMaria Amélia, rainha do barro e da cria-ção – as imagens moldadas pelas suasmãos talentosas são ornamentos admira-dos bem pra lá do horizonte. E o que di-zer de Galo Preto, hoje de barba branca,com seu pandeiro e seu improviso, cor-tante como o chicote de um feitor – vai-doso sempre com seu chapéu quebrado?Este suplemento especial que hoje

estamos entregando aos leitores, comtextos deMateus Araújo, fotos deHeu-des Regis, criação gráfica de Ícaro Bio-ne e edição de Diana Moura, tem bemmais no seu rico conteúdo. Ele fala depersonagens e instituições que se tor-naram, por justiça e merecimento, Pa-trimônios Vivos de Pernambuco. Perfi-lam nesta honrosa galeria os grandesceramistas Zezinho de Tracunhaéme Zé do Carmo, o Mestre Dila da gra-vura, o cordelista José Costa Leite, oxilogravurista J. Borges, parceiro donão menos famoso Ariano Suassuna,instituições como osMaracatus LeãoCoroado e Estrela de Ouro, a Confra-ria do Rosário e o Caboclinho SeteFlexas. Pioneiro do cinema pernam-bucano, louvado seja Fernando Spen-cer, há mais de meio século envolvi-do com a sétima arte. Dá pra ver, por-tanto, que a leitura deste suplementoserá prazerosa e enriquecedora – umdiferencial que estamos colocando ho-je nas mãos de nossos leitores.Ivanildo SampaioDiretor de Redação

Lia tinha um medo. Em abril de1998, a cirandeira da Ilha de Itama-racá foi convidada para cantar no

festival Abril pro Rock (APR), no Recife.“Olha, eu me meti no meio dos roqueiros.Menino, me deu um medo. Eu pensei: ci-randa com essa batucada será que casa,meu Deus?. E fui embora.” Lia estava lon-ge da mídia. Lançou umLP em 1977,A rai-nha da ciranda, e sumiu do mapa. O convi-te representava uma possível volta. “Ra-paz, o show foi tão bom, mas tão bom,que, se eu pudesse, estava lá todo dia. Osroqueiros ficaram doidos. Dançaram, can-taram, bateram palma. Parecia que eu es-tava ali dentro há séculos.” Depois disso,já gravou mais dois álbuns, Eu sou Lia(2000) e Ciranda de ritmos (2008), e parti-cipou de filmes, entre eles o incrível Reci-fe frio, de Kleber Mendonça Filho. Lia éum Patrimônio Vivo de Pernambuco.O título lhe engrandece a alma. “É bom

ter o trabalho reconhecido com a pessoa vi-va. Se alguém tiver de fazer alguma graçapra mim, faça comigo viva, para eu ver.Não faça depois de eu morrer, não. Essenegócio de a Rua de Lia, a Praça de Lia, aestátua de Lia... Faça comigo viva”, avisa.Alémda projeção nacional, conquistou res-peito ao redor do mundo. Foi chamada de“diva da música negra”, pelo jornal norte-americano The New York Times, e com-parada à voz da cabo-verdiana CesáriaÉvora, pelo jornal francês Le Parisien.Mas sua história não é feita só de alegrias.Aos 69 anos, completados em 12 de ja-

neiro, a artista vive ummomento tranqui-lo depois demuitos altos e baixos. A can-tora, que nos anos 1970 experimentou oapogeu da ciranda, conheceu o abando-no na década seguinte e voltou a brilharfora da ilha depois de ser apadrinhadapelo movimento manguebeat, no APR.Altiva e elegante, Lia era chamada de

Rainha da Ciranda na década de 1970. Aclasse média e o público universitáriosaíam da capital nos finais de semana embusca das rodas de cantiga à beira-mar. Odestino era Itamaracá ou a praia do Janga– ondemorava a famosa DonaDuda. No li-vroDo frevo aomanguebeat, o críticomusi-cal do JC, José Teles, explica que outrosartistas também foram importantes naafirmação da ciranda. Em 1967, Teca Cala-zans lançou um disco com a canção maisconhecida da cirandeira, Quem me deu foiLia, gravada inicialmente por Expedito Ba-racho. A autoria da música foi discutidapor muito tempo. “E no fim das contas amúsica termina sendominhamesmo, né?Quem deu foi Lia e acabou”, brinca. Hojea composição é de domínio público.

Foi no auge da popularidade, em 1977,que Lia lançou seu primeiro álbum. Logodepois foi esquecida. Na virada dos anos1970 para a década seguinte, as indústriasfonográfica e cultural passaram amargina-lizar a música popular brasileira não eliti-zada. Esse ostracismo, somado ao alcoolis-mo e àmá administração da carreira, levoua cantora a uma crise artística e pessoal.“Eu vivia dentro de um poço.” Hoje ela

credita a fama e a vida estável que tem aotrabalho do seu empresário Beto. Depoisdo show do APR, ela conquistou a admira-ção do público jovem e ganhou o mundo.“Perdi a conta de lugares por onde já an-dei. Eu pensei que nunca ia sair dessailha. Aqui é ummato sem cachorro. Nin-guém olha pela cultura.Mas já fui à Ale-manha, Paris, Lisboa. Menino, eu já batio mundo, Jesus!”, sorri, sem esconder asatisfação. Mesmo assim, diz que nãoquer ser a “rainha da cocada preta”.Lia tem ahumildade daqueles que já per-

deram tudo e tiveram que recomeçar. Nãouma vez. Mas várias. No verão de 1988 pa-ra 89, ela teve a residência incendiada.Eram 2h da madrugada quando a casa detaipa começou a pegar fogo. “Foi muita in-veja. Eu tinha acabado de ganhar uma ge-ladeira, e os vizinhos estavam de olhogrande. No outro dia, acharam uma espé-cie de tocha no chão. Alguém tinha toca-do fogo naminha casa.” As idas e vindasda vida e da ciranda obrigaram Lia a ser,por 28 anos, merendeira em uma escolapública da ilha, trabalho que lhe deu sus-tento durante o período longe dos palcos.A casa onde mora com omarido foi her-

dada da mãe adotiva – a quem Lia foi da-da, aos dez anos, por falta de condições fi-nanceiras dos pais biológicos. Chegar atélá é tarefa fácil. Ela mora em Jaguaribe,uma comunidade periférica da Ilha de Ita-maracá, no Litoral Norte do Estado, queainda vive da pesca e do verão. “Chegan-do em Jaguaribe, é só perguntar onde éminha casa que todo mundo sabe.” E sa-be mesmo. “Pegue à direita e vá em fren-te. A casa dela tem uns nomes no muro”,diz um ilhéu. São os nomes da própria ar-tista, grafados em mosaico na parede.Uma batida na porta, e amulher de 1,87mde altura atende com um sorriso largo eum abraço forte. Morena da beira domar, queimada do sal e do sol, Lia é doce.A conversa é no terraço, de frente ao jar-

dim. As paredes da pequena casa guardamemolduradas as lembranças dos 50 anos decarreira. Entre reportagens e cartazes, elatambém eterniza seu amor pelo marido,Antônio.As fotografias dos dois são interca-las por pequenas frases de declarações deamor. “Acho que vi um gatinho” é uma de-las. Uma foto deMestre Salustiano relembraa amizade dos dois. No jardim, entre plantase flores, estão esculturas de pássaros, sapos,golfinho e de Nossa Senhora da Graças.

Como boa filha de Iemanjá, Lia gostade azul e de enfeites. Usa colares, pulsei-ra e brincos. Adora batom. Da Rainhadas Águas, diz que herdou o amor pelomar, mas não frequenta o candomblé.“Só vou num terreiro quando estou pre-cisando de ajuda. Aí faço uns trabalhos.Não faço o mal para ninguém, só peçoajuda para mim.” Transitando pelo sa-grado e o profano que se unem na cul-tura afro-brasileira, Lia é amiga do pa-dre da capela de Jaguaribe, a quem pro-meteu só começar suas apresentaçõesapós às 21h, quando termina a missa. Otemplo está localizado bem pertinhodo Centro Cultural Estrela de Lia. “Àsvezes a gente estava ali com a ciranda,aí tinha maracatu, tinha coco. Tudoquase na porta da igreja. E o padre coma hóstia na mão. Eu via a hora o santocair. Aí ele pediu para eu só começarquando a missa acabasse”, explica.Nas lembranças que tem da infância

em Itamaracá, Lia guarda as imagense a alegria das noites de pastoril e cava-lo-marinho na praça de Jaguaribe. En-tre seus 21 irmãos, ninguém canta, dan-ça nem participa dos brinquedos. Sóela. Desde criança se interessou pelaciranda. Aos 12 anos, já dava entrevis-ta a jornais e rádios e aos 18 se firmavacomo cantora. Atualmente a senhorade sorriso largo faz da beira do marseu palco e sua inspiração. Há trêsquarteirões de casa fica o Centro Cul-tural Estrela de Lia, na areia da praia.Às noites de sábado, o lugar recebe afamosa roda de cirandeiros, com cercade 500 pessoas, entre ilhéus e turistas.A cantora fez da sua vida uma roda de

ciranda. A velhice que chega lhe aflige.Há um medo do esquecimento, comotambém há um medo do ócio. À beiradas águas, ela compõe suas músicas.Sentada na praia, escreve as letras quesão apagadas pelas ondas, e reescritas, ecantadas. “É da areia para o cérebro, docérebro para o papel. Depois eu canto.”Há 15 anos, Lia tinha medo de subir

no palco dos roqueiros. Agora temme-do do futuro. Ela se ressente da faltade um sucessor. A artista conta que te-ve quatro filhos, “mas nenhum quis ci-randar”. Todos morreram recém-nas-cidos. Já perdeu a esperança que depo-sitava no sobrinho Ezaquiel, 22 anos:“O negócio dele é futebol”, lamenta.“Tanta coisa que você tem. Seu traba-lho, sua força, sua luta. E você vai em-bora e não tem ninguém que diga ‘euvou cantar hoje, vou fazer o trabalhodela, vou fazer o show dela’. Infeliz-mente, cada cabeça é um mundo.”

RicardoB.Lab

astier/JCIm

agem

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[BR_JC_10: JC-ESPECIAL-1_MATERIAL <1022_12_PAT_04> [JC1] ... 22/10/13] Author:IMBIONE Date:23/10/13 Time:10:36

São Francisco de Assis escora aslembranças lentas de Zezinhode Tracunhaém. “Vou começar

pelo começo. Num é melhor?”, diz oartista – que incorporou ao codinomeartístico o nome da cidade que forne-ce o barro que lhe deu fama. Nascidoem Vitória de Santo Antão, deixou dese chamar José Joaquim da Silva pa-ra assumir outra terra em sua graça.Principal escultor entre os santeirosda Zona da Mata Norte, Zezinho, aos74 anos, já não dá mais passos largossozinho. Ele precisa da ajuda dos fi-lhos para atravessar a rua e chegaraté o ateliê. A memória responde comhiatos aos estímulos da entrevista.Zezinho chegou ao artesanato por

acaso e necessidade: se tornara pai deuma família que nasceu da aventura dedois jovens. “Aos 20 anos, num domin-go, noite de lua clara que só o dia, rap-teiMaria. A gente queria se casar, o paidela não deixou. Resolvemos fugir. Fo-mos para Vitória e ficamos morandono sítio da minha irmã, numa cochei-ra transformada em casa. Só depoismeu sogro me aceitou e me chamoupara trabalhar com ele emNazaré.”Em 1966 – quando ganhava a vida

arando solo massapê –, em passagemrápida pela vizinha Tracunhaém,descobriu as obras de Lídia Vieira, oprimeiro destaque da arte sacra pro-duzida na Zona daMata Norte.Zezinho percebeu que dava para ga-

nhar dinheiro e decidiu se arriscar.“Fiz umas coisas bem-feitas. Um dia, ajornalista Mariette Pessoa, da Gazeta

de Nazaré, foi à minha casa, viu as pe-ças eme convidou para expor na biblio-teca da cidade”, recorda. A primeiraExposição de Arte Popular de Nazaréfoi a vitrine de Zezinho. Ele vendeutodas as 60 estátuas pequenas de per-sonagens do cotidiano que apresen-tou. Com os 120 mil cruzeiros que re-cebeu, comprou uma casa para morare outra que transformou em ateliê.Zezinho ganhou cada vez mais fama

no Estado e no exterior – pela delica-deza e precisão das suas criações, emtons particulares de terracota. Seu car-ro-chefe é a produção de peças sacras– “adoro esculpir São Francisco de As-sis, pela bondade dele” – mas tambémenvereda por outros mundos. Uma Ie-manjá cheia de curvas e rica em deta-lhes está na catalogação que o próprioartista fez por muitos anos, detalhan-do peça por peça que produziu.Com o destaque que ganhou, o anal-

fabeto Zezinho virou porta-voz dos ce-ramistas. Não se furtou a criticar a fal-ta de união entre os profissionais deTracunhaém quando, em 1999, a criseos afetou – embora ele, ao contrário, vi-vesse um bommomento na sua carrei-ra. Hoje, 14 anos depois e também so-frendo com a diminuição na venda doartesanato, Zezinho sustenta a famíliacom suas peças – agora produzidascom ajuda dos filhos e da esposa – e oauxílio que recebe como PatrimônioVivo. E alimenta um sonho: conhecero exterior. “Quero dar curso lá fora”,diz o senhor, apaixonado pela família ecrente na bondade de São Francisco.

Num final de tarde, vésperado dia de Santo Antônio, de-bruçada sobre umamesa pe-

quena, com as mãos engelhadas pelotempo,Maria Amélia relembra, tocan-do o barro, da sua infância, de seusprimeiros passos como ceramista.Atualmente, ela é a única mulher ce-ramista que tem o título de Patrimô-nio Vivo de Pernambuco. No seu ros-to manso, os problemas de saúde dei-xarammarcas, sequelas de um aciden-te vascular cerebral (AVC). No seucorpo curvo, o derrame deixou do-res diárias. Mas nada tirou de dentrodela a menina que continua redesco-brindo no barro força e vitalidade.Maria Amélia, hoje com 90 anos, co-

meçou a esculpir aos oito. Era uma brin-cadeira, um “castigo” do pai oleiro, quelevava a filha para evitar qualquer tra-quinagem da menina e lhe entregouuma bacia com água, um paninho ebarro. “Ele me mandou sentar e fi-car fazendo uns bichinhos.” Era umpai amoroso, coruja, que achava lin-das as lagartixas desengonçadas quea filha fazia para passar o tempo.Nas idas semanais às feiras (sobre-

tudo à de Carpina), nas quais a famí-lia vendia panelas, bacias e jarros,Amélia foi descobrir a inspiração pa-ra suas obras. Com sua delicadeza esimpatia, a artista reproduz imagensde anjos e santos com desenho naïf.São lindos e bem trabalhados, comtraços de rostos simples e rechon-chudos, embora imponentes. SantoAntônio, São José, Santa Luzia e São

Jorge, os preferidos de Amélia.Patrimônio Vivo de Pernambuco

desde 2011, ela segue se recuperan-do do AVC sofrido em agosto de2012. “Dói tudo. Agora está doendoaté na mão. Às vezes nem posso tra-balhar”, lamenta. “Eu não consigoficar longe do barro. Mesmo quan-do estou com muita dor ou muitoaperreada, chego aqui, pego a argi-la e me esqueço dos problemas. Fi-car parada é muito ruim. É triste.”No dia da entrevista, Maria Amélia

dividia com o filho a tarefa de prepa-rar novas peças para serem vendidasna Feira Nacional deNegócios doArte-sanato (Fenearte), que acontece anual-mente emOlinda. Viúva, a artista temapenas um filho, Ricardo, de 45 anos.“Eu quero deixarminha profissão pa-ra Ricardo. Ele trabalha, viu? Ele meajuda. Faz peça, dá acabamento. Elefaz tudo certo. Meu pai deixou paramim, e eu vou deixar para ele. Que-ria que meu neto pegasse, mas ele épreguiçoso”, comenta, queixosa.Diariamente, nos intervalos do tra-

balho – agora já mais raros –, MariaAmélia também faz fisioterapia. Umadas mais antigas ceramistas de Tracu-nhaém, ela orgulha a cidade, mas nãoabre mão de sua simplicidade e bomhumor. Mesmo em meio à queda navenda de artesanato – crise que come-çou no fim da década de 1990 –,Amélia sempre se mostrou positiva. Econtinua. Se diz feliz, não se cansa deviver. E redescobre sempre a força noseu grande amor: a arte do barro.

Priscila

Buh

r/JC

Imag

em

Antigo Testamento, livro deGênesis, 2,7: “O Senhor Deus for-mou, pois, o homem do barro da

terra, e inspirou-lhe nas narinas um so-pro de vida e o homem se tornou um servivente”. Zé do Carmo, que completa 80anos em dezembro, é temente a Deus.Nunca quis ser Deus, mas passou a fazerdo barro a imagem e semelhança do uni-verso divino. Em Goiana, cidade da Zo-na daMata Norte do Estado, o artista vi-ve entre imagens sacras e lembrançasbarrocas. Sua mãe queria que ele fossepadre. O desejo materno, no entanto,perdeu para o preconceito. Diante daimagem de Nossa Senhora do Rosáriodos Pretos, o padre renegou omenino de12 anos. O seminário dificilmente aceita-ria um padre negro. Restaria a sacristia,aceita como um amém.Mas entre as Ave-Marias, hóstias e novenas, o menino desa-fiava os dogmas com a inocência dequem não aceita que dois mais dois sãoquatro antes de ouvir uma boa explica-ção. “Por que numa igreja dedicada aosnegros as imagens dos anjos e dos santostinham rostos de gente europeia?”, inda-gava, recriminado pela mãe por heresia.Aos 6 anos, José do Carmo Souza

aprendeu em casa o ofício de artista. Suamãe, Joana Izabel de Assunção, era lava-deira e uma das mais famosas ceramistasde Goiana. O pai, Manuel de Souza dosSantos, era padeiro e nas horas vagas fa-ziamáscaras de papel machê para seremvendidas nas feiras livres. Dos primeiroscontatos com o barro foram surgindocriaturas com feições humanas, que,com toques de imaginação de criança,anunciavam uma arte classificada depoisde irreverente, desafiadora e nordestina.“Quando eu era pequeno, costumava

ir com os outros meninos caçar passari-nho, derrubar com badoque. Minha

mãe dizia que eu não fizesse aquilo.Por isso eu geralmente ficava só olhan-do os pássaros. Um dia, quando volteipra casa, resolvi colocar asas em umdos bonecos que eu tinha feito. E fi-cou como um anjo. Minha mãe recla-mou, disse que aquilo era errado.”Era tudomuito complexo para a cabe-

ça de uma criança. Havia um duelo en-tre o que pensava ser certo e errado. En-quanto andava por entre os bancos daigreja, sob as estátuas santas que compu-nham a decoração, Zé, menino, não con-seguia associar as palavras de igualdadedas pregações aos rostos que, a dois pal-mos dos seus olhos, destoavam dos ter-mos proferidos na igreja. Não dava paraentender que os anjos não tivessemas ex-pressões nordestinas, caboclas. E porque harpas, e não sanfonas? Incom-preensível também para sua mãe, quelogo se opôs à arte do filho. Talvez elatambém tivesse a mesma dúvida, maspreferia silenciar e aceitar com maisum amém tudo o que o padre, a Bíblia eo papa diziam: é assim e acabou-se. “Mi-nha mãeme proibiu de fazer imagens.”

A região em que vive Zé do Carmo éuma das referências pernambucanasdos artistas santeiros. Como elenca ojornalista JamildoMelo no livroArtesa-nato em Pernambuco, publicado pela As-sembleia Legislativa do Estado em2003, um dos nomes mais conhecidosde Goiana, na década de 1940, foi omestre Doca, que formou vários artis-tas como seus discípulos, incluindo opróprio Zé e também seu irmão Antônio.Por muito tempo, Zé do Carmo se-

guiu a fórmula comum a muitos dos ar-tistas da cidade. Fez santos, anjos, ani-

mais e utensílios de barro com uma for-ma dogmática. Aos 9 anos, ganhou deum vereador goianense um forno paradar acabamento às peças. Mas dentrodaquele menino que se dividia entre aarte e a fé havia uma provocação, umdesejo de ir além, de criar e mudar.Com a morte de sua mãe, o mestre pas-

sou a ditar suas próprias regras: pôde, devez, fazer seu artesanato no modelo emque sempre quis. Mas foi na década de1980que o nomedo ceramista virou, de fa-to, assunto nacional e até internacional.“(O então arcebispo de Olinda e Recife)DomHelder Câmarame procurou e pediupara que eu fizesse umas peças para darde presente ao papa João Paulo II, queestava vindo para Pernambuco”, lembra.Preparadas as peças, novamente a here-sia – assim vista pela Igreja – assombra-va a arte de Zé do Carmo. “Fiz um triode arcanjos tocadores de pífanos e um an-jo do cangaço, como um Lampião. DomHelder mandou voltar o Lampião, avisouque não ia dar ao papa. ‘Como já se viu,um anjo cangaceiro?’, ele me disse.”Era julho de 1980 quando João Paulo

II veio a Pernambuco. Os anjos tocado-res de pífanos, segundo a Cúria do Reci-fe, foram entregues a Sua Santidade. Opresente rejeitado por Dom Helder, ocangaceiro de asas de 1,5 m, é a únicalembrança concreta que o artista tem davisita. A obra está na entrada do ateliê deZédoCarmo, noCentro de Goiana. Sen-tado numa escrivaninha de madeira,imerso entre pilhas de pastas e papéis,cercado por miguéis, gabriéis e rafaéisque ocupam as prateleiras, o mestre éuma figura representativa da cidade.Sua casa recebe visitantes diariamen-te. O senhor mora com a esposa e o fi-lho – ninguém divide o ofício com ele.São dois espaços com esculturas entu-

lhadas e um sonho de transformar tudoaquilo nummuseu. O artista, com o tem-po, foi guardando peças da sua mãe e deseu irmão. Preserva também as suas pró-prias – hoje pura lembrança do trabalhoque fazia no passado: “Passeimuita fomevivendo de arte”. Há décadas, Zé trocoua cerâmica pela pintura – após viagenspara exposições no Sudeste e no exte-rior, e de fugas para tentar uma vidame-lhor na utópica São Paulo dos retirantes,de onde voltou em 1972. Rendeu-se às te-las e às frases de efeito. Um dos seus xo-dós mais recentes é o Zumbi anjo – oMoisés do quilombo: a figura heroica ne-gra dos Palmares que representa a liber-dade de povos. “Mostrei ao padre e elereclamou. Disse que não tem nada a vercomparar Zumbi com Moisés. Eu disseque tem sim: do mesmo jeito que Moi-sés libertou o povo do Egito, Zumbi li-bertou os escravos das senzalas”, expli-ca, em tom ao mesmo tempo cético ecrente, o homem que sobrevive dosquadros e da bolsa vitalícia que o gover-no do Estado lhe paga mensalmente.Sua história é contada emuma conver-

sa circular. Ele vai levando o interlocu-tor de quadro em quadro. Junto de umapintura, uma fotografia. Gilberto Freyre,aqui, é louvado como “o doutor Gilber-to”, o “padrinho” do Vovô Vitalino –que é um Papai Noel caboclo que desfilapelas ruas locais no final do ano.Entre Pai-Nossos e Ave-Marias, Zé

doCarmovai seguindo sua arte, contrarian-do a muitos com sua fé. A discordâncialhe dá fôlego. Enquanto continua a seajoelhar e comungar todos os domin-gos, sob a companhia das imagens daIgreja do Rosário dos Pretos, seguefirme no seu jeito nordestino de vero divino. Sobre os dogmas, é pedra:“Eu gosto de provocação”.

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[BR_JC_10: JC-ESPECIAL-1_MATERIAL <1022_12_PAT_06> [JC1] ... 22/10/13] Author:IMBIONE Date:23/10/13 Time:10:36

Lampião é moreno, chocho e temolhos azuis. EmCaruaru, noAgres-te de Pernambuco, vive escondido

em uma casa pequena, com dois quartosapertados e uma sala minúscula, longe deluxos, pratarias, ouros e couros. As paredesfrágeis guardamo cangaceiro de traços for-tes e pele amadeirada em tons de verde,preto e azul. Lampião está vivo comessestraços e cores dentro da memória e daobra de José Soares da Silva, Mestre Di-la. O xilogravurista e cordelista, que nas-ceu em 23 de setembro de 1937 (emboradurante a entrevista ele diga ter nascidoem 12 de agosto domesmo ano) no vila-rejo Pirauá, nomunicípio deMacapara-na, Zona daMata Norte do Estado, veioao mundo dez meses antes de Lampiãodesaparecer (oumorrer assassinado pe-las volantes, como narra a história).Na sua memória de infância, entretan-

to, ainda sobrevivem não só o senhor docangaço, como detalhes de sua fisiono-mia e seus feitos. Há 60 anos, Dila desco-briu os versos da poesia popular e os de-senhos entalhados na madeira com o paicaricaturista, Domingos Soares da Silva,num sítio na cidade natal. A ligação comcangaceiros também seria herança pater-na: “Meu pai e alguns dos meus irmãoseram do cangaço. Conheciam Lampião.Eu vi Lampião”. Dila teve 11 irmãos.Na casa em quemora no Centro de Ca-

ruaru – cidade para a qual se mudou des-de 1952 –, Mestre Dila empilha as marcasde Virgulino em uma estante de cincoprateleiras, no canto da sala, perto da por-ta de entrada. Nas matrizes de madeira eborracha em que talha formas, rostos, ani-mais e palavras, reconstrói com a imagi-nação as aventuras e as histórias de mitosnordestinos. “Eu gosto de escrever sobreLampião. É o que vendemais. Sempre fa-lei sobre o cangaço. Escrevia e vendiabem. Tinha pessoas da família dos canga-ceiros que compravam de uma vez sóuns 100 ou 200 folhetos para distribuir.”É por detrás do Parque Luiz Gonzaga,

principal polo das festas juninas de Carua-ru, que fica a casa de Dila. Na fachada háuma placa com sua foto. A casa de doisquartos, de sala e cozinha espremidas, éum destino de turistas. Erammais nume-rosos quando se vendia cordel em deze-nas. Hoje a pessoa compra no máximodois ou três, ao preço de R$ 1 casa. A tra-dição ensaia desaparecer, mas o desejodemantê-la viva não para de aflorar.Os rostos sorridentes nos porta-retratos

espalhados pela sala, sob a intercessãodos santos e santas enfileirados ao lado datelevisão, já não têm nome. Dila, entreolhares baixos e risos de canto de boca,teima com a memória, mas fica nas reti-cências. Aos 76 anos, as únicas certezasque habitam sua cabeça são escritas emrimas. Nas mais de seis décadas comocordelista e xilogravurista, percorrendoas feiras livres de Pernambuco, Paraíba,Ceará e Alagoas, a vida lhe rendeu bonscausos. Nesse caminho, revelou-se sua féem padre Cícero Romão e frei Damião,além do seu respeito por Lampião.O poeta ainda se recupera de um aci-

dente vascular cerebral (AVC), sofridoem junho de 2012. Depois de cinco diasinternado no Hospital Regional doAgreste, em Caruaru, ele passou a viversob cuidados da esposa, dona Valdeci, edos seis filhos. Dila passou meses semandar e falar. Agora vai aos poucos rea-prendendo tudo, com calma e timidez.A mulher pede para que encare a câma-ra, mas o rosto continua curvado sob amesinha em que trabalha diariamente,das 8h às 16h. Há muito o que se falarde Lampião, não há tempo para perder.

A vida que Dila leva como poeta popu-lar é a mesma demuitos outros artistas.Para ele, pouco importa a origem dosfolhetos no medievo europeu. A tradi-ção chegou a esses homens do interiornordestino como expressão de umacultura oralizada, rimada e ritmada,sob tom de humor e sarcasmo, que foiganhando espaço nas feiras. Debaixodo sol, com varais de livretos, os cor-delistas contam suas narrativas, provo-cam o público, recriam o épico e o mí-tico. No caso de mestre Dila, sua técni-ca foi cada vez mais aperfeiçoada.Ele descobriu os artifícios da fabrica-

ção de carimbos e passou a usar a borra-cha na produção de seus trabalhos. Dilalançou um modo particular de impri-mir seus cordéis (o que o pesquisadorpernambucano Roberto Benjamin cha-ma de “folk-off-set”): seja nas cores di-versas que usa em uma só matriz ounas combinações de várias formas sepa-radas e depois unidas em um conjuntoúnico. A partir dos anos 1970, ele inovae passa a imprimir folhetos coloridos.Autor de cordéis como O sonho de

um romeiro com o padre Cícero Romãoe A bagagem do Nordeste, o poeta usao dinheiro que recebe como Patrimô-nio Vivo de Pernambuco para ajudar amanter a casa e a comprar os remé-dios para hipertensão e diabetes. Eletorce para que o dinheiro não atrase.

A família se vira como pode. Na sua ca-sa, Dila mantém a editora Art FolhetoSão José. Além de imprimir os livretospopulares, faz rótulos de bebida.

Há sempre um segredo prestes a ser re-velado pelo artista. O homem que no pas-sado tagarelava, mas hoje vive de pou-cas palavras, é dono de uma doçura,mansidão e carinho emaranhados demistério. A conversa é quase sempreuma visita às memórias. Esquecido pe-la plateia que o aplaudia nos anos1970, o mestre já chegou a ser interna-do três vezes para tratamento psiquiá-trico. A fantasia lhe rendeu, socialmen-te, o nome de louco. Mas seu talentose sobressai. Dentro do mestre poeta,ummundo se move, e a figura de Lam-pião retorna frequentemente: homemmoreno, chocho e com olhos azuis.O universo dos bandos armados que

espalhavamomedo pelo Sertão nordes-tino no embrião da República (início doséculo passado), com relatos de saquesa fazendas, ataques a comboios e seques-tros, é tão bem desenhado aos olhos deDila que arrebatam as grades do incons-ciente dele para se erguer comveracida-de nos ouvidos de quem escuta a fala do

poeta. Os netos dele, seus sucessores,já não sabem falar de cangaço. Não sa-bem porque não entendem nada sobreo tema – é o mestre que diz. Na verda-de, Dila parece estar tão a par do quenarra, que agora conta uma história deum Nordeste muito seu. Um Nordesteque talvez só ele conheça. Uma histó-ria da qual ele é próprio dono.Lampião – que para Mestre Dila é

uma espécie de Dom Sebastião, o reiportuguês desaparecido numa batalhacontra os mouros e eternamenteaguardado – talvez nunca tenha sidotão cultuado quanto dentro desta casapequena e apertada. Sentado, encosta-do na parede, com o rosto que vez ououtra escapa do flash fotográfico, Dilaolha a rua e suspira. Ensaia dizer algo.Os segredos e as histórias vão se mo-vendo dentro dele com as reticências.Um silêncio de quem quer lembrar ouprocura a fala: “Morreu há dois anos,num interior de Minas Gerais. Viviaescondido por lá. Muita gente se pas-sava por ele, inclusive aquele que ma-taram em 1938”, diz, retomando a con-versa. O rosto moreno, o corpo cho-cho, os olhos azuis de Virgulino Fer-reira da Silva jamais vão sair das lem-branças de Dila, que continua a vidatalhando madeiras, contado históriase criando seus próprios fatos: “Pararealizar, eu não tenho mais nada”.

E le nasceu na Paraíba, viajou oNordeste todo, foi à França,mora em Pernambuco e está

apaixonado por Mossoró. Todo dia ésempre igual: Marinês e Gonzaga can-tam na vitrola enquanto o cordelistavai colocando em versos, num papel,a criatividade que ferve dentro delenos 365 dias do ano. “Ninguém virapoeta. A gente nasce poeta”, garanteJosé Costa Leite, que, aos 86 anos,conta todos os causos do mundo.Costa Leite – “tão importante para o

Brasil quanto Goeldi”, segundo o seuconterrâneo Ariano Suassuna – é natu-ral de Sapé, um município de poucomais de 50 mil habitantes na Zona daMata paraibana, mas chegou a Pernam-buco aos 8 anos, ficando até hoje emCondado. Como um daqueles persona-gens retirantes de João Cabral deMeloNeto, ele e sua família fugiam de umaseca ainda mais estorricante: o pai aca-bara de ser envenenado a mando deum feitor de usina. “Foi após uma brigapor causa de jogo do bicho. O meu paipassava bicho, e o feitor foi dizer que ti-nha tirado o prêmio, mas na verdade otalão do jogo dele era de um dia ante-rior. Ele mandou envenenar meu pai.”Sem jamais frequentar uma escola, o

menino foi observando nas feiras públi-cas as rimas dos poetas. Foi assim, ga-rante, que aprendeu a escrever. Costa

Leite viveu a infância como um adulto.Foi cambista, mascate e camelô de fei-ra. Em 1947 começou a vender cordelpelas ruas e dois anos depois criousuas próprias histórias: Eduardo e Alzi-ra e Discussão de José Costa com Ma-nuel Vicente. Aos poucos, também foiaprendendo a ilustrar suas rimas comxilogravura, tornando-se, anos depois,uma das grandes referências dos traçosnordestinos talhados emmadeira.Atualmente, José Costa Leite já não

vai mais às feiras. Vive em casa com aesposa e um neto, mas passa o dia noseu ateliê, nos fundos da residência, es-crevendo e ilustrando. Não trabalhasem ouvir as músicas de Luiz Gonzagae Marinês. É aí que se lembra tambémdo tempo em que compunha canções,algumas delas gravadas em três LPs pe-lo Conservatório Pernambuco deMúsi-ca. “Ave-Maria, hoje, sem voz, não can-to nem rapariga”, brinca o senhor, queatualmente aproveita o tempo livre pa-ra continuar viajando pelo Nordeste,só que agora é por puro divertimento.O tempo vai dando sinal de fim para

o ofício de cordelista. Entulhados emquatro prateleiras num quarto dentrode casa, o escritor guarda 10 mil folhe-tos, além de matrizes. Não sabe o quefazer com o acervo: “Por favor, anun-cie isso na sua matéria. Preciso do di-nheiro. Vendo tudo por R$ 20 mil”.

RicardoB.Lab

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Aquela pequena sala do buro-crático prédio da reitoria daUniversidade Federal de Per-

nambuco (UFPE), no Recife, nuncaserviu como cenário para tantas foto-grafias como foi naquele dia da coleti-va de imprensa convocada pelo pro-fessor e escritor Ariano Suassuna.Ainda mais quando o cheiro do livrorecém-lançado por ele dava pano pa-ra asmangas aos jornais do País. Qua-tro repórteres corriam a caneta so-bre o bloquinho de papel. Ariano des-ta vez não era o foco do encontro, sóadjetivava sua descoberta: um ilustra-dor que nunca sequer havia escutadofalar d’O Romance da Pedra do Reino,nemmesmo do escritor paraibano, vi-rou notícia no Brasil. “O melhor gra-vador popular do Nordeste”, diziaSuassuna. J. Borges jamais esqueceutudo aquilo – e jamais foi esquecido.Xilogravurista e cordelista, o mais

pop dos artistas Patrimônios Vivosmora em Bezerros, numa boa casa àsmargens da BR 232, principal rotaque liga o Litoral ao Sertão de Per-nambuco. J. Borges nasceu num sí-tio a 16 km do centro da cidade, em1935. “Eu comecei a trabalhar aos16 anos, na agricultura, com o meupai. Aí fomosmorar na Zona daMa-ta Sul, em Ribeirão e depois em Es-cada. Foi lá que comecei a traba-lhar com cordel, fazer gravura”, dizJosé Francisco Borges, 78 anos.“Chegava nas cidades, colocava o

tripé com folhetos e abria a mala. De-pois comprei um alto-falante. Quemtinha isso era chamado de ‘camelô ri-co’. Pobre declamava era no peito bra-bo. Às vezes, a polícia dava uma bron-ca, proibia o som. Era uma confusão.Eu vendia bastante”, relembra.

Em meados da década de 1970,Suassuna vivia um auto-exílio. Masresolveu abrir uma exceção. Precisa-va conhecer aquele homem que sa-bia traduzir tão bem a sua obra atra-vés da xilogravura. “Mandou me le-varem até ele. Eu tive sorte.” A entre-vista foi numa terça-feira. “No sába-do da mesma semana, já começarama chegar carros lá em casa e até hojeeu não tive mais sossego na vida”,brinca J. Borges, que só estudou dezmeses e abandonou a escola ainda nainfância, por determinação da avó,que temia que o neto fosse atacadopelo papa-figo nas ruas de Bezerros.Foi tudo muito rápido. Nem o pró-

prio J. Borges se dava conta doquanto sua vida ia mudando. Famo-so, é talvez o Patrimônio Vivo quemais sabe o valor comercial do seutrabalho. Calcula o preço de cadapeça feita na grande prensa que ocu-pa um espaço enorme de uma dassalas anexas ao seu ateliê. Já levousua arte para a Europa, países daAmérica Latina e do Norte, ilustrouobras do uruguaio Eduardo Galea-no, mas continua gravando as coi-sas de Pernambuco, “porque os tu-ristas querem as coisas daqui”.“A palavra do velho (Ariano Suas-

suna) é muito forte. Ele me chamoude melhor gravador popular do Nor-deste, na opinião dele. E o povo acre-ditou, rapaz. O povo é besta. Depoisele começou, nas andanças dele, di-zendo que eu era o melhor do Brasil.Agora, que ele já não sabe mais o quediz, fala que sou o melhor do mun-do”, brinca J. Borges, antes de confes-sar a razão de tudo isso: “Trabalhono meu traço, nunca mudei. E nuncasaí de dentro da minha região”.

RicardoB.Lab

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Page 6: Pernambuco Vivo

[BR_JC_10: JC-ESPECIAL-1_MATERIAL <1022_12_PAT_10> [JC1] ... 22/10/13] Author:IMBIONE Date:23/10/13 Time:10:37

Era19 de outubro de 1996 quando,no sítio do famoso Pai Adão, emÁgua Fria, bairro da periferia do

Recife, os atabaques anunciavam umamu-dança importante. No lugar em que resi-de a matriz do culto nagô em Pernambu-co, Afonso Aguiar era escolhido presiden-te do Maracatu Leão Coroado, o mais an-tigo maracatu-nação do Estado em ativi-dade ininterrupta – que em dezembrocompleta um século e meio. Naquele ano,a agremiação não havia desfilado por fal-ta de integrantes. Por causa da crise, osorixás foram consultados. Nanã escolheue avisou aMestre Luiz de França. Herdei-ro do folguedo criado pelo seu pai, ele en-tregou seu tesouro antes que fosse tarde,antes que tudo virasse peça de museu.Nanã, a senhora poderosa que sabe co-

mo afastar a morte, é uma dasmais respei-tadas orixás. Talvez por isso não houves-se o que temer, pois o futuro do Leão Co-roado estava em suas mãos. Mestre Luizperguntou, Nanã ordenou. O veterano pe-diu para que Afonso também consultassea divindade, e ela reiterou a ordem: o ma-racatu precisava de um novo presidente,e essa pessoa tinha que ser Afonso.

A transição foi mediada pela Comissãode Folclore da Cidade. Os folcloristas epesquisadores Roberto Benjamin e JoséFernando de Souza e Silva e o babalorixáManuel Papai estavam à frente da cerimô-nia. Manoel, sucessor de Adão no terrei-ro, era uma provável indicação para ser onovo presidente, mas não quis a respon-sabilidade. Afonso aceitou, embora nãosoubesse nada sobre maracatu. Entretan-to, já era naquela época um dos privile-giados sábios dos mistérios da tradiçãoiorubá, da religião nagô, o candomblé.Com tantos atributos de fé, Afonso é

intransigente com o lado profano dafesta: “Maracatu é mais religião doque Carnaval”. Há 17 anos à frente danação, ele rege os tambores do LeãoCoroado – fundado em 8 de dezembrode 1863, no centro da capital pernam-bucana – seguindo à risca todo o apren-dizado que herdou de Luiz de França.Atualmente, o folguedo se localiza em

uma das mais conhecidas comunidadesda periferia de Olinda. EmÁguas Compri-das, as ruas são estreitas e espremem ain-da mais as casas – ora trepadas em doisandares, ora rasteiras, com portas e jane-

las escancaradas. São bairros como esseque abrigam boa parte das pessoas e dosgrupos culturais descendentes de negrosem Pernambuco. Foram empurrados, pe-la especulação imobiliária, para lugarescada vez mais distantes do centro.Por uma viela e outra, chega-se à sede

do Leão. A voz forte de Afonso dá as boas-vindas. Na garagem da casa simples, acon-tece a conversa. Basta um olhar ao redorpara perceber que naquele espaço tudorespira maracatu. O estandarte daagremiação, vermelho e branco – coresde Xangô –, saúda quem chega. A peça,guardada com cuidado, envolvida em umsaco plástico para proteger da poeira quesobe da rua sem calçamento, foi um dosobjetos que o presidente recebeu duran-te a cerimônia de transição, em 1996.Junto com ele vieram duas calungas, bo-necas que guardam os espíritos dos an-cestrais, os eguns protetores da nação.Com ajuda do pesquisador Roberto

Benjamin e dos outros integrantes da Co-missão de Folclore, Afonso conseguiu res-taurar os instrumentos e as roupas, reco-locando o Leão Coroado na rua no Carna-val de 1997. Atualmente quem escuta aagremiação de longe logo reconhece a ba-tida de suas alfaias, dando ginga a cercade 90 integrantes. O toque de Luanda,com a cadência mansa e lenta da percus-são, relembra o som que embala as toa-das – ou recados, na linguagem afrorreli-giosa – do candomblé. O nome da naçãotem ligação clara com o título dado aoEstado após a guerra contra os holande-ses no século 17, na Insurreição Per-nambucana (1645-1654). O “coroado”,por sua vez, refere-se à sua realeza.A cor da pele, os cabelos brancos e a

voz forte do Mestre Afonso são um retra-to de tudo o que ele representa e honramas heranças deixadas pelo povo africano.

Nada que se aprenda em livros: religião ecultura foram repassadas oralmente deuma geração para outra. Os princípios dacultura afro-brasileira guiam o Leão Co-roado, cuja fé é depositada em Xangô. “Hágrupos por aí que estão fazendo da culturaum trampolim de artista: é mestre tal, mú-sica de mestre tal. No Leão Coroado, nósnão estamos preocupados com essa fa-ma. Queremos é preservar a tradição”,diz o presidente, babalorixá ortodoxo.Por causa do desvirtuamento religioso,

Afonso retirou o Leão do circuito oficialdo Carnaval do Recife, em que há disputaentre maracatus. A decisão causou polêmi-ca, mas, segundo o mestre, foi uma abertu-ra de caminhos para a nação. Por não serender à pasteurização e às mudanças es-truturais às quais muitas nações têm aderi-do – como a renúncia dos instrumentos tí-picos e a abertura para integrantes não ini-ciados no candomblé –, ele optou porsair das competições. “Hoje os maraca-tus saem por aí com toques dos abês... Ébonito demais, só que não é coisa de ma-racatu. No toque do candomblé, da na-ção nagô, não há abês. Todos usam abêse dizem que são nagôs. Fazem isso porcausa da competição. Mas eu não voumepassar para uma coisa dessas”, justifica.Quando Nanã aprovou a nomeação de

Mestre Afonso na presidência do Leão Co-roado, marcou o início de mais uma etapana história do grupo – que ao longo dosseus 150 anos chegou a ter sua existênciaposta em xeque. A agremiação assistiu àmodernização do Estado e sofreu seusimpactos. Fundada por um estivador,nasceu no centro da capital, em meio aatividades portuárias, mas teve a sedetransferida. Passou por Afogados e ÁguaFria até chegar a Águas Compridas.Embora distante do centro, o maracatu

sempre refaz, no Carnaval, os caminhos dopassado. Sob a proteção da calunga Isabé,o Leão Coroado entoa cânticos saudandoos orixás. No Recife, concentra suas cele-brações no Pátio do Terço, ponto de encon-tro de todas as nações. Quando o babalori-xá Afonso recorreu à sabedoria dos santosdo terreiro sobre a possibilidade de deixaro concurso do Carnaval, não imaginavaque seria tão abençoado. Depois disso tu-do mudou. O Leão Coroado foi reconheci-do como Patrimônio Vivo de Pernambu-co, recebeu o prêmio Cultura Viva, do Mi-nistério da Cultura, e se tornou um dosgrupos que mais viajou pelo mundo comorepresentante da cultura afro-brasileira.“Eu defendo a cultura da gente, embora

seja difícil. Graças a Olorum e aos orixás,nós ainda temos essa bolsa de R$ 2 mil, doPatrimônio Vivo, que nos dá um jeitinhopara caminhar, restaurar as roupas, os ins-trumentos, ajudando também nas nossasviagens.” Como o dinheiro das apresenta-ções (cobram cachê de R$ 5mil) não dá pa-ra remunerar os integrantes, cabe ao mes-tre cativar o apoio dos membros. “Aqui to-do mundo desfila por amor”, orgulha-se.

Nossa Senhora já intercedeupor todos eles: a menina quequeria ser médica passou no

vestibular; o homem acidentado, quepor pouco não foi degolado pela carca-ça do carro, ficou sem sequelas. NossaSenhora sai todo ano da senzala para aigreja. Hámais de 200 anos que oman-to azul e branco é carregado pelos ne-gros nas ruas de Floresta, sob o fortesol do Sertão das manhãs de 31 de de-zembro. A mãe de Cristo intercedeupor todos eles. Mercedes, João, Ma-ria, Antônio, José, Celina, os quase 60marianos dobram os joelhos dianteda imagem da mulher branca, mãetambém dos escravos que trocaram oiorubá pelo latim. Aqui são todos con-frades, crentes na VirgemMaria.Em frente à Igreja de Bom Jesus dos

Aflitos, na calçada da pequena casa denúmero 111, eles vão se sentando. Vãoarrastando os bancos para fora, enfilei-rando as cadeiras de balanço. É finalde tarde na cidade cujo passado é mar-cado pela troca de farpas, tiros e jurasde morte entre as famílias Novaes eFerraz, que assombra os moradoresdesde 1913. Dezenas de pessoas foramassassinadas por questões políticas. Aúltima cena trágica no município foiem 1999, quando o então prefeito OscarFerraz Filho foi morto ao sair da missa.Mas Nossa Senhora, aquela da imagemveneravelmente guardada no armáriode madeira antiga, protege todos.A casa da Confraria do Rosário é

centenária: foi doada pelos senhoresaos descendentes do povo negro es-cravizado, que hoje dobram os joe-lhos e rezam a Salve-Rainha. Os fa-zendeiros deram essa casa aos escra-vos para que eles ficassem aqui duran-te a festa; para não se misturarem

com o povo branco. Maria das Mer-cês tem certeza disso. Historiadora eprofessora do ensino fundamentalda rede de escolas públicas de Flores-ta, ela é rainha perpétua da confrariae vive essa história desde criança.“Não temos uma eleição para ser

perpétuo. Cada posto é passado de ge-ração em geração. A última rainha foiminha tia (Lúcia de Amaro), que pas-sou o posto para mim, como a avó delapassou para ela”, explica Mercês. “Mi-nha tia sempre participou das reu-niões. Eu também, desde pequena. Atéque ela adoeceu e descobriu que esta-va com ‘cê-á’ (Mercês teme pronun-ciar a palavra câncer, a doença quematou sua tia). Numa reunião ela dis-se que os postos dela seriam meus.”Em 2009, quando Lúcia foi obriga-

da pela vida a deixar de ser majestadepara sempre, a sobrinha assumiu a co-roa. Hoje é rainha e juíza de rainha.Mas até 2024 emprestará o trono a ou-tras mulheres, devotas que alcança-ram graças pela intercessão de NossaSenhora e prometeram, como retribui-ção, serem rainhas. “O posto de rei ede rainha tem sempre uma pessoa fi-xa. João é rei perpétuo, mas a gentesó assume a coroa quando não tiverninguém pagando promessa”, explica.Na Confraria do Rosário de Floresta

doNavio, há leis e estatuto. Para ser con-frade, a pessoa tem que frequentar pordois anos ininterruptos as reuniões dogrupo. Participar de todas as atividades.Fielmente. Depois desse tempo, o conse-lho superior – formado por juízes (ouconselheiros, anjos da guarda, proteto-ras, guias) da bandeira, da rainha, do reie dos espadachins, e pelas própriasmajes-tades – decide se abre ou não a “porta docéu” da confraria para aquele cristão.

Na aspereza da geografia sertane-ja, no passado acre da escravidão, ocanto dos negros que trabalhavamnas grandes fazendas da região aospoucos foi domesticado pela cateque-se. Nas terras das propriedades Cur-ralinho, Paus Pretos e Fazenda Gran-de, às margens dos rios Pajeú e SãoFrancisco, surgiu a povoação de Flo-resta. Na segunda metade do século18, o chão rachado daquele Sertãoguardava, temporariamente, o gadoque vinha da Bahia para abastecer osengenhos de açúcar pernambucanos.Os negros trazidos do Congo ara-vam o solo e cuidavam dos bichos.Das senzalas vinham orações. No

único dia livre do ano, os escravizadoslouvavam a liberdade agradecendo àVirgemMaria. O primeiro registro ofi-cial da procissão data de 1792, mas adevoção deve ter começado antes.É madrugada ainda, no dia 31 de de-

zembro, quando os confrades saem àsruas em cortejo. O rei vai buscar a rai-nha. Os espadachins abremo caminho,riscando as espadas no chão, tirandofaísca do atrito. Os fiéis aplaudem,acompanham o itinerário com fanfar-ras. No final, todos se confraternizamao som de maracatu e frevo. Todomundo quer tocar no manto da reale-za. “A roupa abençoa quem a toca”, di-zem os que creem. Foi assim queDonaUrsulina, 64 anos, obteve uma graça.“Faz 20 anos.Meu irmão foi para oReci-

fe e, no caminho, sofreu umacidente. O car-ro capotou e faltou um milímetro para elenão ser degolado pelas ferragens”, lembra.Ursulina se ajoelhou. Rezou o terço e pe-diu a intercessão da mãe de Cristo. “Semeu irmão sobrevivesse, eu seria rainha. E

ele ficou bom.” A gratidão foi recompensa-da com um vestido lindo, daqueles vistosnas revistas demoda, cheio depequenos es-pelhos e lantejoulas, reluzindo o brilho dosol – que parece mais perto daquela gentedo que da gente de qualquer outro lugar.Ursulina, hoje juíza da rainha, é tambémum catálogo ambulante de quase todas aspromessas dos outros. Lembra-se de tudo.A história de Rosa Ferraz, por exem-

plo, Ursulina sabe de cor e salteado. Jáfaz tempo, amoça rica estudava no Reci-fe e queria ser médica. Pediu para queNossa Senhora a ajudasse a passar novestibular. Aprovada, a futura doutoraprometeu ser rainha por um ano. Rosafez o oposto dos confrades pretos: vestiua roupamais simples. “Nós, negros, bota-mosmuito luxo. EnquantoRosa foi de al-percatinhas, bem simplezinha. Ela ébranca. Nós, negros, somos amostrados.É a tradição: muito brinco e leque.”O bê-a-bá católico apostólico roma-

no, entre credos e ladainhas, foi enrai-zado no sangue dos descendentes dosprimeiros confrades. Foi assim comManoel Cassiano, 27 anos, que já nas-ceu dentro da Confraria. Nem imaginacomo é viver fora do grupo. Repassa acriação para o filho. Ele e os outrosmais jovens são a extensão de umaponte que liga passado e futuro. Enten-dem que têm uma responsabilidade delevar adiante uma fé tão particular, deuma irmandade criada ainda na épocada escravidão como fruto de umacatequização dos povos negros.Aqui só se fala no Cordeiro de Deus,

aquele que tira o pecadodomundo.OCor-deiro que, sob a forte intercessãomariana,ilumina e protege os negros de uma cida-de de terra acre, de sol desabrido e de secaseverina. Nossa Senhora já intercedeu econtinua intercedendo por todos eles.

Fotos:RicardoB.Lab

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Eles foram para provocar. Che-garam com palavras complica-das, expressões acadêmicas,

teorias e metodologias estranhas paraquem vivia ali. Aliás, desconhecidaspela maioria mesmo daqueles que su-biam ao palco para interpretar. O quea trupe de professores e atores vin-dos da universidade da capital levoupara o Agreste foi pura provocação.O Festival de Teatro Universitário che-

gou a Caruaru rasgando a história da cida-de em dois eixos, como aqueles que divi-dem a humanidade entre antes e depoisde umgrande acontecimento, estabelecen-do o fim e o início de uma época. Era ju-nho de 1962. E, dali por diante, amadorpassou a ser uma palavra incômoda – ou,usando a linguagem de Bertolt Brecht, otermopassou a causar estranhamento.Na-quele tempo, oTeatro deAmadores deCa-ruaru atraía as atenções e os olhos da socie-dade ainda imune à febre da televisão. NoRecife chegava a notícia de um festival uni-versitário com oficinas, palestras e espetá-culos que, embora simples, prezavam porum trabalho ainda desconhecido por ali: apreparação cênica e corporal dos atores.Até então fazer teatro em Caruaru

seguia uma receita: escolher o texto, di-vidir os papéis e correr para o ensaio.Tudo errado. Aquelas oficinas mostra-ram isso. Apontaram o quanto era im-portante preparar o ator teoricamente,mesmo que ele tivesse muito talento.Todo aquele escarcéu foi a gota d’águae o impulso que faltava para a criaçãodo Teatro Experimental de Arte (TEA).“Naquele momento, vimos o quanto es-távamos atrasados na nossa maneira defazer teatro”, lembra a atriz AraryMarrocos, que começava a dar as pri-meiras lições como professora nas es-colas caruaruenses, quando a cidadevivia o auge de uma produção teatral.

Arary seguiu os passos do marido,Argemiro Pascoal, que foi o nome àfrente da fundação da companhia. Ar-gemiro e seu grupo pediram ajuda aoprofessor Joel Pontes, que integrava aequipe dos acadêmicos. Eles solicita-ram e o mestre topou. “Arranjamoshospedagem e durante dois meses, acada final de semana, vinha um profes-sor do Recife para cá nos dar aulas. Par-te do Teatro de Amadores não quis.Quem queria terminou saindo e fun-dando o TEA, em 17 de julho de 1962.”Durante 16 anos, os ensaios e encontros

doTeatro Experimental ocorreramno au-ditório da Rádio Difusora de Caruaru. Em1978 os ensaios passaram a ser realizadosna garagem da casa de Arary e Argemiro.O casal decidiu então que era hora deconstruir uma sede própria. Tudo aos pou-cos, tijolo por tijolo, moeda por moeda.Hoje o pequeno palco italiano – com umaplateia de 60 cadeiras de plástico, coxias ecamarim – guarda nas paredes preenchi-das por fotos e cartazes a memória deuma história de mais de cinco décadas.Desde a criação, o TEA encenou 54 es-

petáculos, alémde promover cursos e ofi-cinas de teatro, palestras, debates e semi-nários. Levou ainda a sua arte a 65 cida-des brasileiras. Em agosto do ano passa-do, o grupo entrou emumanova fase. Ar-gemiro morreu, aos 83 anos, deixandoparaArary e o filhoFábio a tarefa de sus-tentar um sonho de teatro numa cidadeemque os palcos que interessam à gran-de plateia já são outros: os do forró.

A criação do TEA foi resultado deuma reverberação de ideias. Havia,sim, o desejo de se profissionalizar.Mas o impulso de tudo foi a vontadede fazer do tablado o espelho do po-

vo. Quando a caravana acadêmica che-gou a Caruaru, Pernambuco assistiaao crescimento doMovimento de Cul-tura Popular (MCP). Germano Coe-lho lançava sua cartilha político-cultu-ral com base nos rebuliços que fervi-lhavam nas ruas e praças da Europa.Argemiro Pascoal estava entre os ar-

tistas que participaram da reunião doMCP no Recife. Nascido em Bezerros,ele se mudou para Caruaru aos 18 anose lá iniciou a carreira teatral. O a-bê-cêda Cultura Popular chegava à cena doTeatro de Amadores da cidade e, poste-riormente, do TEA através de monta-gens de textos norteadas pelos pensa-mentos brechtianos. A primeira peça en-cenada pelo grupo, em 1963, foi Um ele-fante no caos. O texto de Millôr Fernan-des causara frisson três anos antes no Riode Janeiro e em São Paulo, mergulhandono teatro do absurdo, refletindo sobre ashipocrisias e a corda bamba dos momen-tos que antecediam o Golpe de 1964.O TEA é referência nas artes cênicas

pernambucanas. Além de formar atores,o grupo foi responsável pelo fortaleci-mento da cena teatral no interior, crian-do festival estudantil emostra com espe-táculos nacionais. Mas nem tudo são lu-zes na ribalta. Este ano, Arary recusou oconvite do Festival de Teatro de Curiti-ba, um dos mais importantes do Brasil,por falta de verba para arcar com as des-pesas de viagem, hospedagem e alimen-tação durante a estada da trupe no Pa-raná. Em 2012 eles haviam participadoda mostra, mas conseguiram o dinheirocom muito sacrifício, pedindo ajuda aempresários locais. A bolsa de Patrimô-nio Vivo oferece ao grupo apenas umaparte da verba necessária para sua sus-tentação. Arary se vê dividida entre oscálculos do escritório de contabilidadee as aulas de história do teatro no TEA.

Mestre Gilmar consegue asso-ciar, de forma espontânea, omaracatu ao significado das

três palavras escritas nas paredes da sededo Estrela Brilhante de Igarassu: “amor,vida, paz”. Negro, descendente de escra-vos africanos, ele aprendeu que esses atri-butos estão nas batidas das alfaias quemarcam, a cada cortejo, o compasso dasbaianas, da rainha e da dama do passo.Aos cinco anos, Gilmar começou a

brincar maracatu. Aos 16, já ocupava afunção de mestre. Além de ditar o ritmodas alfaias, também comanda o coco deroda que movimenta as noites de sexta-feira do município, na RegiãoMetropoli-tana, a 30 quilômetros do Recife. Ensaiosdo Estrela Brilhante são raros. Só quan-do há uma nova loa. “O pessoal do mara-catu mora aqui, já toca há muito tempo,não precisa ficar ensaiando”, afirma.O Estrela, uma das agremiações mais

antigas do Brasil, foi fundado em 1824. Noseu livroViagens ao Nordeste do Brasil, es-crito no início do século 19, o pesquisador

inglês Henry Koster conta que o grupoteria começado na Ilha de Itamaracá, nu-ma das cerimônias de coroação dos Reisdo Congo, da qual participavam escra-vos e negros livres, sob a sombra dos vi-gários da paróquia. É a origem do mara-catu de baque virado em Pernambuco.A genealogia dos batuques do conheci-

díssimo folguedo de Igarassu – que já foitema de matérias na TV, pauta de jornaislocais e do exterior e figurante de novela –começou com o bisavô de Gilmar, seuJoão Francisco. Ele repassou as alfaias e oestandarte paraManoel Próspero de Santa-na, seu genro, casado com Dona Mariú.Foi ela, no entanto, que se transformou nagrande estrela da nação, em que esteve des-de os 12 anos no posto de dama-regente,ou dama do passo. Era como uma guardiã,que portava a calunga Emília, na qual es-tão os ancestrais pretos-velhos da nação.A boneca, dedicada a Oxum, é cuidadosa-mente vestida de amarelo, com muitosacessórios, e guardada a sete chaves.Dona Mariú morreu em 2003, aos 104

anos de idade, cinco anos antes tinha en-tregado à filha, Olga Santana, o posto dematriarca do maracatu. No seu centená-rio, em entrevista ao JC, Mariú expli-cou que, por estar debilitada fisicamen-te, entregou a agremiação à filha. “Tive19 filhos. Nasceram 16 de tempo e trêsforam abortos, mas só criei nove. So-mente dois entraram no maracatu – Ol-ga e um outro que já morreu. Se aindafosse vivo, teria entregado o maracatu aele. Organizar a brincadeira é muito ser-viço para Olga sozinha”, declarou.Gilmar nasceu sob o matriarcado do

Estrela Brilhante. Viu sua avó entregaro folguedo à mãe. E ficou ao seu ladodesde então. No último dia 3 de agosto,Dona Olga morreu, aos 74 anos, após so-frer dois infartos. Gilmar assumiu seudestino e, além demestre, aceitou o pos-to de novo presidente da agremiação.A vida não estava fácil para a matriar-

ca. Em novembro de 2011, quando ela deuentrevista ao JC sobre a calunga Joventi-na – a primeira boneca do maracatu, que

figura na capa deste especial, foi roubadahá mais de 100 anos, recuperada e hoje éexposta no Museu do Homem do Nor-deste –, as sequelas de um acidente vas-cular cerebral nublavam as suas lembran-ças, embaralhavam passado e presente.Com um estilo de comando menos apai-

xonado que suas antepassadas, Gilmar dáinício a uma nova fase na história do Estre-la Brilhante de Igarassu. Dita as regras lan-çando sobre o grupo um olhar muito cen-trado namúsica e nos batuques – em detri-mento à religiosidade do folguedo. “Eu nãogosto muito de falar sobre religião. Temgente que fica dizendo que para participarde maracatu tem que estar na macumba.Não tem nada a ver. Eu tenho minha reli-gião, eu gosto, faço minhas obrigações.Mas maracatu é só um folguedo, é umabrincadeira. Por isso que a gente tenta se-parar uma coisa da outra”, diz o novo pre-sidente. Na agremiação, que ainda preser-va a separação entre omasculino e o femi-nino –mulher não toca; homem não dança–, o sagrado não é exposto ao público.

Se no passado, no início de tudo, há qua-se 200 anos, o racismo assombrava o ma-racatu, hoje o que preocupa os brincantesé a falta de envolvimento da comunidade –que dona Mariú já disse ter sido a grandeforça do Estrela Brilhante. “Ainda existegente batendo na tecla de que maracatu,coco e ciranda é coisa de negro, de pobre ecatimbozeiro. Coisa de rico e branco é ópe-ra, música clássica e MPB. Juntar o povoque gosta de maracatu está cada dia maiscomplicado. Adolescente só gosta de brega.A gente tem uns jovens que tocam, mas sãoda nossa família”, diz o mestre, que minis-tra oficinas na sede do grupo, em outrosEstados e fora doPaís. “Para assumir oma-racatu é preciso conhecê-lo, estudar, sa-ber tocar todos os instrumentos”, afirma.Um maracatu que corre o risco de

se esvaziar é motivo de apreensão. Épreciso atrair os jovens de volta parao folguedo. O Estrela Brilhante de Iga-rassu tem papel de destaque na cultu-ra pernambucana e não se pode per-mitir que a sua história se perca.

Lourenço relutou e renegou mais detrês vezes antes de aceitar o seu des-tino. Nunca gostou de maracatu e

reforçou o desinteresse quando foi estudarem Aliança. Ele fora mordido pelo bicho daurbanização, epidemia na Zona da MataNorte de Pernambuco. “Quem iria namorargente de maracatu?”, pensou. Queria ser daMarinha. Não adiantou. O caminho escritopela vida deu conta de desaguar seu rionum oceano de encanto. Em 1991, décadasdepois da fuga, Lourenço voltou de vez aosítio Chã de Camará para assumir a heran-ça deixada pelo pai, o mestre Batista: entreterras e plantações, havia um maracatu debaque solto, o Estrela de Ouro de Aliança.O pai de Lourenço era nome conhecido

na região. Nasceu em 1934, seis anos de-pois de Aliança se emancipar. Batista erafilho único e cresceu sob os cuidados damãe, dos avós e do tio materno. Em casa,foi descobrindo a cultura popular. As fes-tas da família sempre foram entranhadas

pelos folguedos. Sua mãe, Joana, entre-tanto, nunca deixou que entrasse para obrinquedo. Mas era impossível conter obrincante que vivia em Batista. Em 1º dejaneiro de 1966, um ano depois da mortede Joana, ele fundou o Maracatu Estrelade Ouro. Tesouro que preservou até suamorte, quando o legou para Lourenço.“Ele via em mim a continuação. Como

eu não quis, respeitou minha decisão. Fuimorar no Recife aos 17 anos e voltava emAliança de vez em quando. Ia ver meu paise apresentar no Recife, mas nunca quissaber de participar.” Hoje, José Louren-ço, 59 anos, refaz quase diariamente o tra-jeto da capital até a sua cidade natal. Nes-se caminho, da janela do carro, vê que aestrada que corta o canavial não é maisde barro. Parte do verde é coberta pelapoeira das construções e duplicações darodovia. Agora, mais do que nunca, váriosbichos da urbanização picaram a Zona daMata.Mas essas estradas de cana-de-açú-

car ainda abraçam as cores e o reluzir deuma tradição mística e sedutora, ritmadapelos chocalhos dos homens caboclos.Foi desse feitiço que Lourenço não con-

seguiu escapar. Mesmo sem muitos recur-sos, ele investiu todo o dinheiro que tinhano maracatu. Aos poucos, em parceriacom o produtor cultural Afonso Oliveira,foi criando e aprovando projetos em edi-tais públicos – estaduais e federais. Em1998, o Estrela de Ouro gravou uma dasfaixas do CD Maracatu atômico. De2000 a 2005, o grupo foi vice-campeãodo Carnaval do Recife. Em 2004, o sítioChã de Camará – que abriga também umcavalo-marinho, um boi, um grupo de co-co e uma ciranda – foi titulado Ponto deCultura peloMinistério da Cultura, rece-bendo por isso, no período de três anos,cerca de R$ 185 mil. Com essa verba,Lourenço fez a reforma do espaço, a ma-nutenção das roupas e dos instrumentose comprou equipamentos audiovisuais. A

internet, agora, é uma porta sempre aber-ta para quem vive no local. Antes de ter-minar essa entrevista, uma foto do encon-tro já estava no Facebook do maracatu.Lourenço não consegue esconder que

foi arrebatado. O mesmo brilho que sedestacava nos olhos do mestre Batista há60 anos ressurge namirada do filho. “Ho-je eu acredito em destino”, responde ohomem, que não sabe para quem vai dei-xar a tradição. No Recife, suas duas fi-lhas também não se interessam pelo fol-guedo. Uma estudamedicina; a outra, di-reito. Mas é ele quem diz: “Nunca se sa-be o que a vida prepara para a gente”.No sítio Chã de Camará, anexo à sede

do Estrela de Ouro, há o Centro NossaSenhora da Conceição – Pai Mário, dobabalorixá que tambémé rei do brinque-do. O espaço abriga os rituais cuja essên-cia é guardada como um segredo pelosparticipantes do maracatu. A cada Car-naval, os brincantes passam por ritos de

purificação espiritual, que incluem absti-nência de sexo e de bebida alcoólica. Nocaso do Estrela de Ouro, a cerimônia nãoé obrigatória. Só participa quem quer.Para tocar o folguedo, Lourenço conta

ainda com a ajuda de dois mestres. Ne-gro de rugas bemdesenhadas e sorriso ca-tivante, Zé Duda, 75 anos de vida, 65 demaracatu, puxa as toadas. O tímido ZéLuiz é o mestre dos caboclos de lança. Oprimeiro é alfabetizado só no folguedo.Nunca aprendeu a ler. “Estudar endoida.Eu lá tinha tempo? Só pensava em mara-catu.” Desconfiado, o segundo tem olhosque escapam ao interlocutor e traz umapeixeira presa à cintura. Com a cabeleiraamarela, caminha com seus homens co-mo um guardião. Guerreiros misteriosos,cortam o canavial sob a proteção sagradadas golas reluzentes, bordadas à mãocom lantejoulas de cores vivas. Das li-nhas estreitas traçadas sob a poeira, elesfazem um caminho de arte, tradição e fé.

RicardoB.Lab

astier/JCIm

agem

Page 8: Pernambuco Vivo

[BR_JC_10: JC-ESPECIAL-1_MATERIAL <1022_12_PAT_14> [JC1] ... 22/10/13] Author:IMBIONE Date:23/10/13 Time:10:38

“Ra-rá. Êêêê, tchá. Ra-rá.Tchá, tchá, tchá, tchá”.Dona Selma do Coco, 78

anos, entoa essa onomatopeia em todamúsica que canta. Repete-a também,intercalando às suas respostas, duran-te a entrevista. Virou uma fórmula,um cacoete indispensável quando elasobe ao palco ou assume a postura dafigura pública que conquistou famano Estado, no Brasil e fora daqui, gra-ças ao melô da rolinha fujona, sucessono final dos anos 1990. Assim comoLia de Itamaracá, a coquista tambémfoi redescoberta pela mídia nacionalnuma edição do Abril pro Rock, em1997, um ano antes que a amiga. Aprojeção conquistada colocou a ex-ta-pioqueira do Alto da Sé em pontes aé-reas até então inimagináveis por ela.Aquela noite continua bem viva nas

lembranças da senhora cuja boca reluzouro a cada sorriso desde os 15 anos.Ela escancara com orgulho o pivô dou-rado que já virou refrão de uma desuas músicas: “Moreninha do dente deouro, parece um tesouro a boquinha de-la. Se eu pudesse e tivesse dinheiro, euia em Barreiros e casava com ela”. Oshow no APR foi, de certa forma, fruto

da ligação que a cantora alimentavacomChico Science (1966-1997). O íco-ne do manguebeat gostava de beberda fonte do trabalho, da experiência eda sabedoria de Selma do Coco, co-mo afirma o crítico musical José Te-les, no livro Do frevo ao manguebeat.Acostumada a cantar na praieira epopular Festa da Lavadeira, DonaSelma padecia do mesmo medo queafligia Lia em relação aos roqueiros.“O único show que eu fiz em que fi-

quei cismada de ninguém me derru-bar do palco foi o Abril pro Rock. Ali édose, né? É um perigo para não cair dopalco. Misturar coco com rock, Ave-Maria, não foi fácil, não. Eu fui porquesou doida mesmo. Ra-rá. Sempre pen-so assim: se perdi, perdi; se ganhei, ga-nhei. Menino, o povo gostou mais domeu show do que do show dos roquei-ros. Os roqueiros ficaram arretadoscomigo. Pegaram os panos de bundae foram embora. Ra-rá. Eu dei tantaentrevista depois daquilo”, recorda.Antes desinibida e alegre, Dona Sel-

ma tem se dobrado ao tempo e às in-tempéries da vida. Tornou-se umamulher de humor retraído, demoraa se soltar e traz o sorriso acompa-

nhado por um olhar evasivo. Na casaem que mora com uma nora e as netas,passa os dias sentada em frente à televi-são: “Se chegar gente, eu converso. Senão chegar, eu não converso”. Quandonão está se apresentando, ela rima nacabeça a saudade que guarda do filhoZezinho, que era seu braço direito, ami-go e produtor musical. Ele morreu emabril de 2010. “Nem sempre a gentetem o que quer. Não vou dizer que nãosou feliz. Dependendo do meu Deus,eu sou feliz, e do meu coco. Só nãosou mais feliz porque eu tinha umapessoa que vivia do meu lado, era tu-do na minha vida, mas Deus levou.”

Ela recebe a equipe de reporta-gem numa sala pequena, no térreode uma casa de primeiro andar bemconhecida entre os moradores doLargo do Amparo, no sítio históricode Olinda. Sarcástica e com respos-tas curtas no início da conversa, Do-na Selma atropela palavras ao nar-rar lembranças com uma voz cansa-da, marcada pelo peso da idade. Dizque chegou à música encaminhadapela família. “Meu pai e minha mãe.Minha avó e meu avô. Todos elescantavam. Quando eu cantei o pri-meiro coco, tinha na base de unsdez anos.” Mas ainda não pensavana música como um ganha-pão.Nascida em Vitória de Santo

Antão, Dona Selma – o sobrenomeFerreira da Silva ela quase nem selembra de usar – veio para o Recifeaos 10 anos e por muito tempo foiapenas mais uma entre os milharesdemoradoras do bairro daMustardi-nha, Zona Oeste do Recife. “Eu viviaabandonada. Ninguém me conheciana rua. Hoje todo mundo me conhe-ce. Tu me conheceria se eu morasselá ainda?”, pergunta a coquista.O anonimato saiu de sua vida quando

ela passou a vender tapioca no Alto daSé, em Olinda. Foi peneirar a goma demandioca e fazer a alegria dos turistas.“Tapioqueira, antes, só tinha na Sé.Agora tem em todo canto. Como o cocode roda. Antes só havia perto de onde ti-nha escravidão. Agora tem em tudoque é lugar. Mas não tem amesma qua-lidade”, alfineta. “Aliás, tem. Não vounem dizer que não tem qualidade, pranão dar confusão”, desconversa. Ra-rá.Era exatamente na Sé que a coquista

dialogava sobre música e cultura comChico Science. Na febre dos anos 1990,que misturava lama e caos, alfaia e gui-tarra, Dona Selma viu seu trabalho seraproximado do pop – o mesmo proces-so que contagiou a ciranda deLia de Ita-maracá.Nesse período, as duas se torna-ram grandes amigas. “Quando eu estouarretada, esculhambo com ela. Digo:‘canta aí, nêga safada’”, comenta DonaSelma, numa gargalhada. A mulher,que não tem papas na língua, começa ase soltar na entrevista. Trinta minutosdepois, ela se convence de que a repor-tagem chegou para conversar.Mas aler-ta: “Não gosto de dar entrevista não. Es-tou gostando de dar entrevista a vocêsporque eu gostei de vocês”. Rá-rá.Em 60 anos de carreira, Selma do

Coco já gravou nove discos, um DVD,fez participação em trabalhos de ou-tros artistas e em cinco filmes per-nambucanos. Ela sabe todos os núme-ros de cor. Em casa, há uma sala só pa-ra guardar discos, títulos, troféus e re-cordações – espaço que ela e a norapretendem transformar em um pe-queno museu. “Morre quem canta,mas a cultura nummorre nunca.”

A neta Polyana, aos 9 anos, olha delado a avó fazendo pose para as fotos.A menina talvez não compreenda al-gumas frases tristes, ditas displicente-mente, entre gargalhadas, por DonaSelma. “Eu estou morrendo.” A mu-

lher que já gravou disco na Alemanha,conheceu a Europa e fez shows no Bra-sil inteiro aos poucos vai preparando aneta mais nova para cantar. Já tem ou-tras netas que lhe acompanham nospalcos, mas Polyana agora é a sua prio-ridade. “Vou colocar ela para dar trêspalavras para o vídeo de vocês. Vou co-locar ela aqui do meu lado. Eu estouensinado e vou ensinar. Porque, quan-do eu morrer, ela vai ficar com a mãedela tomando conta do meu trabalho.”A metodologia que naquela casa se se-

gue não tem mistério. É sem rodeios.Cantar coco é abrir a boca e cantar.Aprender a letra e sair entoando. A úni-ca exigência da matriarca é que a pessoatenha energia e ritmo. “Num é todomun-do que tem não”, diz Dona Selma. “Ra-rá”, solta Poly ao finalizar uma das músi-cas, no colo da avó, imitando a coquista.A senhora já não tem a mesma força

que antes.Nos shows, alterna-se aomicro-fone com outras pessoas. A idade vai dan-do os seus sinais. Algumas lembrançascomeçam a lhe escapar da memória.Saudosista, ela confronta o presentecom um certo ressentimento sobre o vai-vém da cultura pop. “As pessoas cha-mam para os shows quem tem fama,quem é bonita, quem todo mundo co-nhece. Se você pudesse escolher entreeu e aquela menina da Bahia (Ivete San-galo), para contratar para um show, esco-lheria quem? Aí é uma questão de gosto.”Dona Selma, que em2011 ganhou o prê-

mio Afro-latino como destaque de mu-lher negra do País – ficou em segundo lu-gar, depois da atriz Zezé Mota e à frenteda cantora Margareth Menezes –, agoraleva uma vida calma, depois de ter se de-dicado à família e à música. A vaidade vi-rou apenas obrigação de quem é famosa,deixou de ser um prazer. “Eu era vaido-sa. Agora num sou mais não. Sou velha,desarrumada. Estou arrumada agora pa-ra dar entrevista. Você pega essamatériae vai botar no jornal. O povo vai me ver.Não posso estar rabugenta no jornal.Eu tenho que ajeitar o pixaim, pra verse chego à metade do que era.” Ra-rá.

T omaz Aquino Leão, MestreGalo Preto, enfrenta uma vi-da de adversidades e supera-

ção. Uma confusão o levou a um pe-ríodo de ostracismo num momentodecisivo para sua carreira. Em 1992,às vésperas das eleições, o embola-dor e coquista foi preso acusado deliderar um grupo de extermínio, emPeixinhos, uma das comunidades daperiferia de Olinda. Foram doisanos, dois meses e seis dias na ca-deia. Ele sabe de cabeça. Não haviaprova que o condenasse. Nenhumatestemunha sequer. Mas ficou a rai-va e a vergonha. Nesse período, GaloPreto deixou de ver e viver a eclosãoda manguebeat, a época em que umanova geração em Pernambuco exal-tou os mestres da cultura popular.Nascido em Bom Conselho, no dis-

trito de Princesa Isabel, no Agreste,ele chegou ao Recife aos 12 anos. Veiocom o irmão, o cantador Preto Limão.“Fomos morar no bairro de CampoGrande. Meu pai não vivia em casa emeu irmão terminou sendo um segun-do pai. Naquela época, Preto Limão fa-zia uma dupla de embolada com ou-tro irmão nosso, Curió, cantando naspraças e nos mercados do Recife. Mui-ta gente me confundia com eles. Maseu não gostava de cantar na rua, de ro-dar o chapéu para pedir dinheiro”,lembra o artista, hoje com 78 anos.

O jovem Tomaz, recém-chegado aoRecife, em 1947, sem ainda ter sido ba-tizado com apelido artístico, foi ven-der frutas nas ruas da capital e termi-nou chamando a atenção do influentepoeta Ascenso Ferreira. “Como eugostava de futebol e música, meu ir-mão me colocou para trabalhar comoambulante. Disse que não queria queeu virasse vagabundo. Mas eu saíavendendo fruta fazendo rima. E passa-va todo dia na porta de Ascenso Fer-reira, até que um dia ele me chamou edisse que gostava da minha música.Ele me deu um cartão de Zil Matos,que tinha um programa de rádio naépoca, e fui atrás. Lá cantei minha pri-meira música, que eu tinha feito aosnove anos, chamada A pinta.” Dali prafrente, a vida foi de altos e baixos.Galo Preto resolveu seguir carreira

solo, sem a parceria de Curió, após par-ticipar do programa de rádio. Partici-pou de caravanas culturais de umaemissora local. Terminou sendo enga-nado e voltou sem cachê. Na década de1970, época em que as televisões locaisveiculavam programação musical, o ar-tista – àquela altura também tocando ja-zz – alimentou parcerias com nomesimportantes da música brasileira, comoJackson do Pandeiro, Cauby Peixoto,

Arlindo dos Oito Baixos e Luiz Gonza-ga. Com sua cantoria, foi criar jinglesem repente para as campanhas políti-cas de Miguel Arraes. “Eu era procura-do por todo mundo, porque o repentefazia sucesso com o povo. E dizem quenessa arte eu sou bom”, brinca o artista.Décadas depois, se Galo Preto perdeu

o bonde da história por conta de sua pri-são – quando tinha tudo para estar noelenco de artistas populares das ediçõeshistóricas do Abril pro Rock, como Lia deItamaracá e Dona Selma do Coco, em1997 e 1998 –, ao tentar refazer a vida, elefoi valente. Sem desistir da carreira, GaloPreto conseguiu aos poucos abrir seu espa-ço na atual cenamusical pernambucana.Em 2007, a convite da Secretaria de

Saúde de Olinda, o coquista foi inte-grar um grupo de músicos locais queparticipou de uma campanha publicitá-ria, ao lado de Beth de Oxum, DonaSelma, Aurinha do Coco e Zeca do Ro-lete; e depois foi personagem-tema dodocumentário O menestrel do coco, deWilson Freire. De rima em rima foilimpando o seu nome, reconquistandoa fama. Na semana passada, ele fez sho-ws, em São Paulo, dividindo o palcocom o cantor pop pernambucano Otto.Senhor elegante, ele não dispensa a

roupa clara. Em toda apresentação, es-tá sempre com terno, calça e chapéu.“Recentemente eu estava com um em-presário que começou a dizer para opovo que eu era de candomblé, só por-que me visto todo de branco. Comosou negro, me ligavam a um preto ve-lho. Mas não sou do candomblé nemtenho nada contra. Só não quis quealimentassem uma mentira”, conta.Hoje o mestre mora na casa da filha,

com ela e o genro. Ele se casou cincovezes, mas agora está viúvo. Galo Pre-to tem um herdeiro musical: o filhoTelmo Anum, de 39 anos, que é guitar-rista e percussionista. O título de Patri-mônio Vivo, no caso de Galo Preto, foimais do que um reconhecimento artís-tico, um incentivo ao seu trabalho. Pa-ra ele, foi uma resposta à sociedade.

Page 9: Pernambuco Vivo

Era mais uma noite de calourosno Circo Democratas eMargari-da Pereira de Alcântara queria

participar do concurso. Tinha decididocantar o bolero Coração materno, de Vi-cente Celestino, um dos seus preferi-dos. Ela precisava ganhar o corte de te-cido e o par de sapatos. Quando pisouno picadeiro, era evidente o seu nervo-sismo. De repente, uma vaia. Ninguémtinha pago ingresso para ver aquela me-nina com pouco mais de 9 anos, franzi-na, catadora de crustáceo, malvestida edescuidada fazer qualquer coisa. Da pla-teia, alguém gritava para ela sair e ir to-mar banho. “Era preconceito daquelepovo. Pedi o microfone e disse que euestavamalvestida porque não tinha con-dições de me arrumar e que catava siripara que meus irmãos não precisassemir pra porta deles pedir esmola.”O silêncio na arquibancada eviden-

ciou a perplexidade do público. Alguémensaiou bater palmas, e começaram asurgir novos gritos, desta vez diziamque a menina já tinha ganhado. Talvez aresposta dada já bastasse e lhe tivessefeito vencedora. “Eu disse que eles nãopodiam dizer que eu tinha ganhado semcantar. E cantei. Todo mundo parou praescutar.” É possível que a menina nemsoubesse o que significavam aqueles tris-tes versos sobre a ingratidão de um fi-lho. Sua voz firme e seu jeito precoce au-mentaram o espanto de quem a assistiae garantiram de vez a premiação. O pa-no, ela dividiu com as duas irmãs e fezuma roupa para usar com os sapatos noNatal, que estava próximo. Tudo que ga-nhasse era lucro. Havia perdido o pai hápouco tempo e partilhava com a mãe astarefas de casa para sustentar os quatroirmãos mais novos. Na escola, sequerterminou a quarta série. O Circo Demo-cratas foi embora e a menina ficou.

Pouco tempo depois, uma nova trupemambembe aparece na vida deMargari-da. Um macaquinho na porta de casa,demanhã cedo, assustou amãe dameni-na, que naquela época já tinha 10 anos.O animal tinha fugido do circo que aca-bara de chegar à Vila São Miguel, nobairro de Afogados, comunidade ondeela morava. Margarida foi devolvê-loao grupo e conquistou a amizade da do-na do circo, que depois foi convidadapara ser sua madrinha de crisma. A re-compensa da menina foi ir a todos osespetáculos de graça. “Logo na primei-ra apresentação que eu fui, a contorcio-nista me chamou atenção. O nome delaera LindaMorena. Eu olhei e disse: ‘Euvou fazer aquilo que ela faz. Vou fazeraté melhor’. E todo dia eu ia lá ver.”No dia em que o Circo Itaquatiara foi

embora, a menina deixou a casa e se-guiu com a trupe, autobatizando-se deÍndia Morena. O pouco dinheiro queganhava nas apresentações era o sufi-ciente para ajudar a mãe e os irmãos.

Índia, a mais famosa contorcionistado Estado e uma das artistas PatrimônioVivo de Pernambuco, reside hoje emuma casa simples e pequena, em Muri-beca dos Guararapes, uma comunidadepobre da RegiãoMetropolitana do Reci-fe, bem próxima ao lixão. As paredes ra-chadas chamam a atenção para o perigoem que vivem a artista e sua família. Elamora com omarido, uma filha e um ne-to. Enquanto aguarda o início da refor-ma a ser bancada pelo Governo do Es-tado, a mulher guarda entulhados, nasestantes da sala, pastas com recortesde jornais, troféus, cartas de autorida-des, prêmios, fotos e vídeos que duran-te os quase 60 anos de carreira for-mam o acervo de uma vida dedicada àarte circense. Na véspera desta entre-vista, ela tinha ganhado o título deMu-lher Evidência – concedido pela Câma-raMunicipal do Jaboatão dos Guarara-pes. Um dia depois, foi titulada cidadãjaboatonense. “Parece ser um dosmaiores reconhecimentos da minha vi-da. O que eu não tive na juventude es-tou recebendo agora na velhice.”Em dezembro de 2011, um incêndio

destruiu o trailer do seu Gran LondresCirco. Um dos artistas da trupe acen-deu uma vela e terminou dormindo.“Conseguimos salvar a lona por sorte,porque estava longe. Agora estou semme apresentar.” Em quase seis décadas,é a primeira vez que ela fica longe do pi-cadeiro. Índia passou por 50 compa-nhias, integrou o Garcia e o NewAmeri-can Circus, que a levaram à Argentina,ao Paraguai e à Bolívia. Além de contor-cionismo, a artista já se apresentou notrapézio voador, na escada giratória eno arame vertical. Aos 69 anos, ela émestre de cerimônias; mas decidiu tam-bém se aventurar na corda bamba so-cial da defesa da classe mambembe.

Com uma vida marcada por tristezas– seu ex-marido, pai de dois dos seus fi-lhos, que morreram ainda bebês, a traiucom uma parceira de circo –, Índia foiparar no hospital. Um problema de pul-mão, há cerca de 30 anos, deixou a artis-ta internada. “Eu passei dois meses hos-pitalizada. Aí, como eu fiz amizade como pessoal, o médico me deixou ficarmais ummês, para eume recuperarme-lhor. Foi quando conheci Maviael, tam-bém internado por causa do pulmão”,conta. Maviael é o seu atual marido.Hoje os dois compartilham o amor, a

responsabilidade de cuidar da família edo circo. O casal pretende inaugurarum circo-escola e também está à frenteda Associação dos Proprietários e Artis-tas Circenses do Estado de Pernambu-co. O trabalho é duro, requer sacrifícios,recursos e valorização. “Eu tenho luta-do é por uma classe de minorias. Hojeeu tenho lutado por alcoólatras, droga-dos, esquecidos e abandonados. Ser ar-tistas de circo não é fácil”, desabafa.

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Eles não têm dia de descanso. Trabalhoe vida, cultura e arte, beleza e poesia:uma coisa só. São os Patrimônios Vivosde Pernambuco. Homens, mulheres eagremiações que transformam oterritório pernambucano num lugarmelhor e mais bonito. Moldam nossaidentidade, nos brindam com a tradiçãoe encantam com o novo. O JC lhes dedicahoje este segundo caderno especial.kwww.jconline.com.br/pernambucovivo

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[BR_JC_10: JC-ESPECIAL-1_MATERIAL <1029_12_PER_02> [JC1] ... 29/10/13] Author:IMBIONE Date:23/10/13 Time:10:43

Eles são parte da história cultural doEstado. Não porque produziramuma peça memorável – um livro,

uma tela, uma sinfonia –, mas porque cria-ram várias, inúmeras, incontáveis obras dearte. Suas biografias podem ser narradasem quantidade e qualidade, num painel tãorico e diversificado quanto suas trajetórias.Neste segundo e último caderno especialPernambuco Vivo – que faz parte da sérieiniciada semana passada –, passeiam mes-tres no Carnaval mais colorido do mundo.Reverenciamos O Homem da Meia-Noite,descemos ladeiras ao som dos frevos rasga-dos dos maestros Duda e Nunes e nos emo-cionamos ao ritmo hipnotizante dos cabocli-nhos. Também trilhamos estradas para en-trar nos salões do forró sertanejo, conhece-mos o vigor das bandas filarmônicas da Zo-na da Mata e ainda nos permitimos revergrandes ceramistas. Neste caderno, por fim,nos despedimos dos Patrimônios que já seforam.Com delicados enredos de vida, os ar-

tistas abriram suas casas e, sem receio,descreveram sonhos, amores, canções; econfidenciaram medos. Mesmo aquelesque esqueceram alguma parte da histó-ria pelo caminho, todos ainda acreditamnum final feliz. Salvaguardados por umtítulo que os torna representantes ofi-ciais da arte pernambucana, mestres dobarro, músicos, cineasta e carnavalescosrecontam narrativas tão suas, ao mesmotempo tão nossas.Além deMateus Araújo, este segundo ca-

derno tem textos de José Teles, Bruno Al-bertim e Diogo Guedes. O projeto Pernam-buco Vivo começou a ser produzido há 18meses, mas não se encerra aqui. No próxi-mo mês, lançamos uma exposição com fo-tografias de Heudes Régis, Ricardo Labas-tier e Priscilla Buhr, e um e-book criadopor Ícaro Bione e FábioMonteiro, com edi-ção de vídeos de Caíque Mulatinho.

Fotos desta página: Igo Bione/JC Imagem

Às18hdoSábado deCarnaval, pon-tualmente, começa uma festa quequase ninguém conhece. Uma ce-

lebração em surdina, trancada a sete cha-ves. Inebriado pela cachaça, um homemcumpre a tarefamais misteriosa de Olinda:vestir oHomemdaMeia-Noite. Talvez ha-jamúsica ou oração como trilha sonora. Al-guns objetos – que não podem ser revela-dos de jeito nenhum– são jogados no chão.Representam oferendas, pedidos de prote-ção, num ritual para abrir caminhos. Háapenas uma mulher entre vários homens.E só uma criança entre vários adultos. “Se-riam para Iemanjá os pedidos?”. “Digamosque sim. Digamos que o calunga tem forçaprópria, mas que Iemanjá o protege”, res-ponde Luiz Adolpho, presidente do Clubede Alegoria de Crítica O Homem daMeia-Noite. A agremiação carnavalesca, uma dasmais famosas de Pernambuco, ganhou fa-ma no Brasil e no mundo graças ao caris-mado seu gigante.OHomemdaMeia-Noi-te é Patrimônio Vivo de Pernambuco.O bloco surgiu emOlinda em 7 de janeiro

de 1931, de uma dissidência da troça Cariri –que abria a folia da cidade nos primeirosraios de Sol do domingo deMomo, por vol-ta das 5h, desde 1921. Um encanador, ummarceneiro, um pintor de parede, um sapa-teiro e um encadernador de livros rompe-ramcoma agremiação emontaram seu pró-prio brinquedo. Saíram de forma tímida àmeia-noite do sábado. Como estandarte,apenas um relógio e uma chave gigantes.“Aí ficou uma rixa entre a gente e o Cariri,para saber quem abriria o Carnaval de Olin-da”, lembra Luiz Adolpho, 49 anos, há 11 àfrente do grupo – foi eleito presidente em2002, após a morte do pai, Tárcio Botelho,

que por 11 anos ditou as regras do bloco.Só em 1932 a cidade foi apresentada à

personificação do galanteador que dá no-me à agremiação, o Homem da Meia-Noi-te. Luiz explica que a peça é um calunga enão recomenda que o tratempor “boneco”.Ele já nasceu gigante, com 3,5 metros e 50kg, no dia de Iemanjá, 2 de fevereiro. Saiu àRua do Amparo pela primeira vez embala-do por uma orquestra de frevo, acompa-nhado por, naquele momento, dezenas defoliões. Inspirado na curiosa figura de umboêmio que circulava pelas ruas olinden-ses às madrugadas e pulava as janelas dasdonzelas para seduzi-las, o Homem daMeia-Noite estampa um sorriso largo, como brilho de um dente de ouro, embelezadopor um elegante fraque e uma gravata bor-boleta, além de uma inseparável cartola.“O Homem foi feito por seu Benedito

Bernardino da Silva, um dos fundadores dobloco, e outros dois carpinteiros. Beneditoeramúsico também e compôs o hino. Algu-maspessoas acreditamque a saída do calun-ga nodia de Iemanjá àmeia-noite, umhorá-riomístico, foi planejada. Outros dizemquefoi coincidência”, diz o presidente. Defen-sor da tese de queOhomemdaMeia-Noitenasceu propositalmente naquele dia e hora,Luiz Adolpho leva adiante uma trajetóriade misticismo. “Há muitas coincidênciasao longo desses anos na vida de quem fazparte dessa história. Umadelas é que a se-gunda sede do clube ficavanaRuadoAm-paro, número 301, onde hoje eu moro.Comprei essa casa sem saber disso. Ou se-ja, OHomem saía do quintal daminha ca-sa”, conta Luiz, num tom de voz tão enig-mático quanto os fatos que ele cataloga.Nesses 82 anos da agremiação, O Ho-

memdaMeia-Noite se tornou figura sincré-tica em meio a uma festa profana. A multi-dão que se aglomera à porta da pequena ca-sa de fachada estreita e colorida em verde ebranco, no Sábado de Zé Pereira, aguarda apontualidade do senhor misterioso. Essa équarta sede do grupo, a definitiva. Emplenopátio da Igreja de Nossa Senhora do Rosá-rio dos Pretos, na Cidade Alta de Olinda, nobairro do Bonsucesso, a saída de OHomemda Meia-Noite é sempre um momento úni-co, que vai além do frevo e dos clarins, e ter-mina entrando em umpatamar religioso.Quem está do lado de fora nem sequer

imagina oque existe do ladode dentro da se-de. Um ritual é preparado, bem antes, paraa saída do calunga. Desde o momento emque é vestido até osminutos que antecedema meia-noite, o gigante é envolvido em umclima de adoração. “Para se ter uma noção,eu só toco noHomem quando ele já está to-talmente vestido. Porque antes disso só tocanele quem bebe cachaça. Eu não bebo”, ex-plica o presidente, que se nega a entrar emdetalhes sobre a cerimônia de preparaçãodo desfile. “Quando ele sai por essa porta,há quem trema, há quem chore, há quem fi-que encantado. É sempre muita emoção.”

LuizAdolpho nunca se imaginoupresi-dente d’O Homem daMeia-Noite. Só de-cidiu concorrer às eleições para o postoquando seu paimorreu. Quis honrar o no-medeTárcio, já queumaoutra chapa fala-va mal dele. Concorrendo com o bone-queiro Sílvio Botelho, Luiz ganhou. Des-de 2002, ele se divide entre a sala de aulae as responsabilidades com o bloco. Pro-

fessor de educação física em quatro esco-las da cidade, o carnavalesco lançou umaadministração com caráter bempolítico.“Nossa gestão foi responsável por abrir

as portas de O Homem da Meia-Noite pa-ra além da comunidade. Demos nova di-mensão a ele. Fizemos parcerias com jorna-listas e pessoas públicas; cuidamos da es-trutura da sede e da própria imagemdo ca-lunga.”No ano passado, após amorte do al-faiate oficial d’OHomem, SeuBrasil, a figu-rinista pernambucana Xuruca Pacheco foiconvidada para assumir o posto, que a par-tir de então será renovado a cada ano (o no-me de 2014 é guardado em segredo, bemcomo o tema que o bloco vai abordar).Em outubro de 2002, quatro meses de-

pois de tomar posse, Luiz Adolpho criou oprojeto Gigante Cidadão, que oferecia aulasde dança, música e teatro para 70 crianças ejovens das comunidades próximas ao Largodo Amparo e do Bonsucesso, em Olinda. Aação, que chegou a ser ponto de cultura,acabou em 2009, mas o presidente já pensaem sua retomada, assim como tambémpla-neja a criação de uma escola de frevo, a pri-meira da cidade para formar tanto músicosquanto passistas. Segundo Luiz, o carátersocial pesou positivamente na hora da sele-ção do bloco comoPatrimônioVivo de Per-nambuco em 2006. “Não foram só a histó-ria e a tradição.O lado social foi decisivo pa-ra nos transformar empatrimônio”, afirma.Graças à bolsa vitalícia, o clube teve a

sede reformada, onde ficam expostosquadros, fotografias e uma réplica do gi-gante feita pelo conhecidíssimo pai dosbonecos olindenses, Sílvio Botelho. Alémdisso, um pequeno museu, no primeiroandar, reúne troféus, reportagens e ví-deos sobre o bloco. O espaço fica aberto àvisitação de quinta a domingo, a partir denovembro até o Carnaval. “Não ficamosabertos o ano inteiro por falta de seguran-ça pública e de uma estrutura de turismoda Cidade Alta, o que é uma pena.”OHomemdaMeia-Noite virou também

números e contabilidade. Figura tarimba-da e recorrente quando o assunto é repre-sentar Olinda ou o Carnaval pernambuca-no, o calunga é o íconemais lembrado, jun-to com a sombrinha de frevo. Essa deman-da também pode custar caro. A figura dogalanteador foi patenteada pelo clube. “De-pendendo de como ele está sendo usado, agente cobra direitos de imagem. Porquehavia umas empresas de publicidade quefaziam campanha tendo a figura do calun-ga em destaque sem pagar nada. Agora es-se dinheiro é tambémmais uma forma dea gente manter o bloco”, explica Luiz.

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[BR_JC_10: JC-ESPECIAL-1_MATERIAL <1029_12_PER_04> [JC1] ... 29/10/13] Author:IMBIONE Date:23/10/13 Time:10:43

Umafelicidade espontânea ilu-mina o rosto de dona JuracySimões a cada quinze dias.

Numa cadeira no alpendre da casa on-de nasceu e vive, no coração da Bom-ba do Hemetério, observa as evolu-ções das muitas crianças, jovens e al-guns curiosos de fora da comunidadeno treino do caboclinho Canindé.“Nasci emCanindé, cresci com Canin-dé. Canindé é minha vida, minha he-rança”, diz ela, o sorriso involuntárioaumentado no rosto a cada vez quepronuncia o nome da agremiação.Com 116 anos de história, o Canin-

dé é omais antigo caboclinho de Per-nambuco em atividade – e, portanto,do mundo. Na casa, vida e entidadese misturam. Num quarto ao lado dacozinha da casa ampla, a imagem depapel machê e fibra de vidro repou-sa a maior parte do ano em meio àsfantasias e alegorias. Só sai para os

desfiles ou, de quando em quando,para os rituais espirituais de home-nagem e agradecimento.A escultura, afinal, simboliza a enti-

dade transcendente de um cabocloconsagrado pela jurema sagrada, umamanifestação religiosa tipicamentebrasileira que funde práticas do can-domblé africano ao kardecismo e aoxamanismo indígena – para alguns, amais antiga religião do Brasil. “Canin-dé tem força e nos protege”, diz donaJuracy, também zeladora espiritualda agremiação. Brincadeira e religiosi-dade unidas, os caboclos mais respei-tosos costumam frequentar os terrei-ros de Jurema para saudar e honrar adivindade tratada como Rei Canindé.Durante os ensaios, o som dos cul-

tos evangélicos de domingo na co-munidade são abafados pela músicahipnótica, mântrica e harmônica docaboclinho. A gaita conferindomelo-

dia à marcação do tarol e do tam-bém percussivo caracaxá. São elesque conduzem os passos do cortejorelativamente simples, vestido depenas em alusão à ascendência indí-gena: porta-bandeira, caciques, pu-xantes, batedores de flechas, ta-puias, curumins, rei e rainha.Segundo uma apostila que o pró-

prio grupo elaborou para repassar aosmembros sua história centenária, Ca-nindé foi fundado pelos estivadoresElesbão e Eduardo, na Rua das Crian-ças, não na Bomba, mas em Afogados,no distante março de 1897. No princí-pio, era formado unicamente porcrianças. Adolescente do grupo, Ma-noel Rufino, antigo rei de outro cabo-clinho, recebeu dos fundadores a mis-são de assumir e manter a tribo.Além de organizar o grupo, pro-

moveu, dentre outras inovações, apresença de adultos no cortejo. Emprincípios do século passado, Rufi-no se mudou com a Tribo Canindépara a Bomba do Hemetério.Mas nem tudo era harmonia. Como

estivesse desrespeitando ou negligen-ciando princípios sagrados do cabocli-nho, Rufino começou a receber críti-cas sucessivas até sua expulsão, porparte de outros dirigentes, na décadade 1950. Os principais descontentescom a atuação de Rufino eram os pró-prios irmãos, Severino eMiguel Batis-ta da Silva. Expulso, Rufino partici-pou de várias agremiações, sem nun-ca se fixar em uma delas. Virou o quese chama de “caboclo corre-campo”.Severino Batista da Silva, o mestre

Bibiano, assumiu a direção. Ele é opai de dona Juracy, a menina queveio ao mundo no meio da cultura docaboclinho em 1945. Com o acidente

vascular cerebral que acometeu seupai em 1984, a herdeira assumiu aagremiação. “Foi muito difícil, mas Ca-nindé mostrou sua força para seguir”,diz ela. Mestre Bibiano passou dezanos como presidente de honra de Ca-nindé até 1994, ano de sua morte.“Juracy é a primeira mulher a diri-

gir um caboclinho em Pernambucoe, portanto, no Brasil”, diz o amigo,professor de música e gaiteiro da Tri-bo Canindé,Washington Guedes. Elee a sobrinha Nana são os parceiros di-retos e constantes de dona Juracy nacondução da agremiação. “São os her-deiros de Canindé”, aponta a líder.Dona Juracy não teve filhos.Com ela, Canindé, organizado, pro-

fissionalizado, passou a acumular tí-tulos até não mais poder. Foi o iníciodo tempo também de muitas viagensao exterior e da consagração de Ca-nindé como hors concours entre asagremiações tradicionais do Carna-val do Recife. Embora tenha sido,em 1935, um dos fundadores da Fede-ração Carnavalesca de Pernambuco,Canindé já não desfila mais em bus-ca de troféus. Ao longo da trajetória,acumulou nove títulos consecutivosdo Carnaval de Pernambuco.“Canindé já cumpriu sua missão,

não pode competir mais. Já fez seupapel na passarela”, diz dona Juracy.“Não existe como competir com umcaboclinho como Canindé”, diz ela,enquanto prova uma fatia da melan-cia na bandeja que será servida aosbrincantes assim que terminem detreinar as manobras e passos simboli-zandomovimentos de guerra, aproxi-mação e recuo, entre tribos rivais. Ca-boclinho é dança guerreira.(Bruno Albertim)

Hánove anos, quando visitavao Recife, a bailarina alemãPina Bausch se encantou pe-

lo compasso apressado e marcado pe-los pés dos caboclos da tribo Sete Fle-xas. “Ela disse que a gente foi o únicobalé descalço de que ela gostou”, lem-bra o mestre José Alfaiate, 89 anos,com um sorriso de canto a canto norosto. O senhor de voz cansada e jeitocalmo criou há 45 anos uma das maisimportantes agremiações carnavales-cas do Recife, que mantém até hojenuma estreita viela no bairro de ÁguaFria, na Zona Norte, uma das maismestiças comunidades da cidade.Seu José começou a brincar cabocli-

nho muito cedo, aos 10 anos. Apaixona-do pelas cores e pelos sons das tribosdançantes, fitava os desfiles dos Carijóse Canindés. “Eu era fã de Carijós”, lem-bra. Criado só pela mãe porque o paimorreu quando ele tinha 2 anos, José Al-

faiate passava o ano se divertindo nosensaios das agremiações. Chegou até aentrar para o clube Tabajara, mas nãosaía no Carnaval porque não tinha di-nheiro para comprar a fantasia. “Naque-la época, era cada um por si, todo mun-do que comprasse suas roupas. Comoeu não tinha condições, não desfilava.”Ao som dos atabaques, preacas (ar-

cos e flechas), tarol e caracaxás, o Se-te Flexas desfila pelas ruas do Esta-do puxado pelas loas (cânticos), colo-rido com lantejoulas, penas e pena-chos verdes e brancos. A jurema –uma mistura de cachaça, vinho,champanhe, folhas de alfavaca e mel– limpa o corpo dos brincantes en-quanto a fumaça do cachimbo do pa-jé abre os caminhos e protege o gru-po. Os cortejos são formados por ca-ciques, curandeiros, guias, curuminse caboclos. Nas apresentações elesexecutam coreografias temáticas: há

as danças do cipó, da rede, da caça edo casamento de uma tribo com outra.Paulinho Sete, filho de José Alfaia-

te, coordena tudo. Sempre ao lado dopai, o rapaz é quem vai se preparandopara no futuro assumir o caboclinho.Criado dentro da agremiação, ele en-tende e conhece todos os passos e rit-mos do folguedo. Foi Paulinho quedançou para Pina Bausch e ensinou àbailarina as coreografias dos caboclos.Em 2005, Pina o convidou para dan-çar em seu balé, na França. O Sete Fle-xas é uma das bases de pesquisa dodançarino e músico Antônio CarlosNóbrega, que também convidou Pauli-nho, na época aos 14 anos, para dar aulasnoTeatroBrincante, a escola de artes cê-nicas domultiartista em São Paulo.Até conquistar esse reconhecimento

entre bailarinos e se tornar PatrimônioVivo de Pernambuco, a agremiação en-frentou uma longa trajetória, que come-ça em 1968. Quando tinha pouco maisde 40 anos de idade, o alfaiate foi ten-tar uma vida melhor em Maceió, Ala-goas. Por lá, numa visita a um centrode umbanda, fez um pedido ao cabocloSete Flexas e foi prontamente atendi-do. Para agradecer à entidade espiri-tual, José criou a tribo e deu-lhe o no-me do caboclo. “No ano seguinte boteio brinquedo na rua, lá em Maceió. Foitudomuito simples, as roupas eram ca-misas demeia e tênis. Ainda assim, ga-nhamos o prêmio de estandarte maisbonito. Em 1970, voltei para o Recife eregistrei o Sete Flexas. Eu trabalhavapara o caboclinho dos outros e nuncatinha direito a nada. O meu, lutei, pe-di muita comissão (dinheiro) no meiodo mundo – naquele tempo nem o go-verno nem a prefeitura ajudavam.Saía batendo nas portas pedindo.”

Assim como o candomblé está parao maracatu, a umbanda está para o ca-boclinho, que os brincantes conside-ram uma fonte de energia e proteção.Fiel, José Alfaiate conta que, já moran-do na capital pernambucana, teve umsonho no qual via médiuns sentadosem tendas, incorporando espíritos.“Eume acordei manifestado, tinha bai-xado o Sete Flexas”, afirma. “Conheçomuito ele hoje. Sempre aparece paramim. É alto, tem cabeça comprida, ros-to afilado, com expressão de um índio.Ele é um caboclo sozinho, não temuma tribo. É um caboclo mestiço.”A cada Carnaval, uma semana antes

das festas, José faz oferendas ao cabo-clo protetor. Leva para mata mel e fru-tas, a fim de pedir proteção. Em 45anos de existência, a agremiação sópassou por uma situação de conflito.“Eu tive num terreiro nagô e, por sim epor não, mandei botar o jogo. A mu-lher disse que Sete Flexas queria umaobrigação: uma lebre na mata. Com-prei uma, fui com a mãe de santo cor-tar o bicho namata e fiz um pedido. Is-so foi para limpar a frente do clube noCarnaval. Mas no dia do desfile, quan-do a gente saiu na rua, veio outro blo-co, e foi uma briga, uma confusão enor-me. Tinha garoto pequeno manifesta-do comExu. Pense”, recorda o alfaiate.“Naquele dia a gente estava indo parao Cabo, depois seguia para a passarelade desfile na Avenida Dantas Barreto,no Recife. Tinha uma criança manifes-tada que dizia que eu ia morrer se fos-se para a passarela. Quando cheguei aoCabo, tive que comprar vela e passarno meu corpo. Nunca peço nada paraderrubar ninguém, principalmentemeus amigos que têm clube.Minha de-voção é pedindo paz”, afirma José.

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[BR_JC_10: JC-ESPECIAL-1_MATERIAL <1029_12_PER_06> [JC1] ... 29/10/13] Author:IMBIONE Date:23/10/13 Time:10:43

Ofrevo, para o maestro Duda,não é um simples gênero mu-sical – ou um patrimônio da

humanidade, como o próprio músicoé do Estado de Pernambuco. O gênerosempre esteve na trajetória e no coti-diano do múltiplo instrumentistamais do que como acordes, partiturase arranjos. Duda é capaz de se magoarcom o frevo, demonstrar seu amorpor ele, temer o futuro, dar conselhospara o presente. São duas personalida-des fortes, talvez, em uma relação deamor incondicional e mágoa reticen-te. Aos 78 anos, o maestro deve seuprestígio em Pernambuco ao frevo,mas a alegria do título traz também oressentimento com o pouco reconheci-mento das suas outras composições.Porque, além de mestre do frevo, José

Ursicino da Silva, nome de cartório deDuda, é um maestro múltiplo, que pas-seia, como todo bom mestre, do eruditoao popular. A música faz parte do seucorpo, como se corresse no seu sangue.Mais do que contagiado pelo vírus damúsica, Duda acredita que já nasceucom ele; estava fadado aos instrumentos,notas, partituras, suítes, arranjos e, claro,suor. “Quando criança, aprendi a tocarem uma banda, a mesma em que meupai tocava, a mesma em que meu avô to-cava. Não tinha internet, porque hoje to-do mundo nem sai dela. Naquele temponão tinha internet, não tinha televisão,música era o que eu tinha pra fazer. Eunão tinha outra opção, não”, aponta.Diz logo que a sua história, que come-

ça em Goiana, pode ser facilmente en-contrada na internet. E pode mesmo,nas mais diversas formas, de enciclopé-dias de música até duas dissertações demestrado. “Mas, se você quiser, conto no-vamente.” Pernambucano e paraibanoaomesmo tempo, Duda se considera um

“meeiro”, por ter nascido a 62 kmdeRe-cife, perto do limite com aParaíba. O co-meço namúsica, seguindo os passos pa-ternos, foi na banda Saboeira, a granderival do grupo Curica. Ali, aos oito anos,conheceu o saxofone, seu companheirode décadas que lhe introduziria ao fre-vo, à partitura e a todo o universo musi-cal. Dois anos depois, aos 10, já mostra-va a sua criatividade precoce: depois dever um filme com omesmo nome no ci-nema, compôs Furacão, o seu primeirofrevo, com “um arranjo simples”.A partir dali, foram mais de 500 dis-

cos gravados. Veio para o Recife em1950 tocar na lendária Jazz Acadêmica,fundada por Capiba. Sua trajetória seconfunde com o frevo, mas ultrapassaem muito o gênero. A Suíte nordestina,por exemplo, já foi executada por or-questras americanas, japonesas e ale-mãs – “e todas as bandas brasileiras”.“As orquestras sinfônicas do mundo to-do e as bandas sinfônicas e filarmônicasdo Brasil inteiro tocam músicas mi-nhas. Tem frevo no meio. Mas tembaião, tem xote, tem maracatu, tudoque é música nordestina tem”, conta.“O maestro Júlio Medalha disse emuma entrevista que, se eu tivesse nasci-do nos Estados Unidos, eu seria umQuincy Jones”, revela, com orgulho.Nas composições eruditas, quase

sempre arranja um modo de ressaltarsua origem, carregando-as do popular.Só que sua capacidade de arranjadornão para aí. Vai de hinos de colégio(“Vez ou outra paro um estudante doColégio Bandeira, na frente de casa, di-go ‘venha cá’ e peço pra ele cantar o hi-no, só para brincar. Depois digo que eucompus”) até arranjos para CDs deigrejas, de suítes a frevos de rua. “Músi-ca para mim tem que ser boa. Pode sererudita, popular, sacra, evangélica.”

Ao explicar umamúsica, Duda para oque estiver dizendo e começa a cantaro-lar. Acompanha a voz com a mão, comose regesse a si mesmo. A melodia é umidioma à parte para o maestro, uma lin-guagem afetiva, em que ele é capaz decontar a história do Brasil, homenagearum filho ou um amigo, representar umaregião, contar suas dores ou alegrias.A música é essa linguagem particular

para Duda; o frevo, a sua primeira e maisdúbia paixão. O ritmo é parte da sua vi-da. Compôs um para cada um de seus fi-lhos. Um dos mais famosos é em home-nagem àquele que seguiu seus passos namúsica,Nino Pernambuquinho, hoje pro-fessor do Conservatório Pernambucano.O problema é que, como o frevo quasenão é lembrado fora do período carnava-lesco, o maestro se ressente da falta detrabalho. “Só se lembram de mim noCarnaval, durante três dias. E o resto doano?”, diz. “Para tocar aqui em Pernam-buco, tenho que enfatizar mais o frevo,o resto da minha obra é esquecida. Afi-nal, santo de casa não faz milagre.”Nesse vaivém sentimental, em de-

terminado período da vida deixou de

compor frevos. Até nas suítes com rit-mos populares, escolhia o maracatu ea ciranda. É a mágoa que continua vi-va. Duda, no entanto, não consegue es-conder por muito tempo a relação ín-tima com o mais pernambucano dosritmos: se preocupa com seu futurocomo se ele fosse um filho que vai se-guir aqui quando o maestro se for.Outro desapontamento é não ser cha-

mado para mais atividades. O título dePatrimônio é um orgulho, mas ele nãoquer ser entronizado em um título:quer continuar tocando o tanto quantopossível. “Já que eu estou vivo, sou pa-trimônio e estou me locomovendo, meusem! Estou pronto para trabalhar, eupreciso trabalhar”, avisa. “Apesar de es-tar com 78 anos de idade, eu estou vi-vo”, brinca. Seu sonho é poder não sótocar, mas ensinar seu conhecimentosobre o frevo para alunos, até para co-nectá-los com a essência do ritmo.“Estão descaracterizando o frevo. A

juventude está pensando que o que é fei-to hoje é o frevo de verdade. É precisoque se conheça o frevo, não se pode co-locar ele numa vitrine, tombar, comouma igreja, ummuseu”, alerta. O proble-ma, para ele, não é a modernização doritmo, mas sim ver o frevo ser valoriza-do cada vez mais no palco e não na rua.“Pormaismoderno que um frevo seja, éa orquestra na rua que toca ele comoele é. Não tem solista, não, é só a orques-tra tocando frevo”, ensina, lamentandoque, em 2012, entre os três primeiros lu-gares do concurso municipal, nenhumacanção era de rua – todas seguiam ar-ranjos que só serviriam para shows. “Ofrevo é contagiante, o frevo é para balan-çar o povo, não é formal. Ficar sentadoouvindo frevo como num velório? O fre-vo não foi feito para isso”, sentencia.(Diogo Guedes)

Em2003 o maestro Nunes, coma autoridade dos seus então 72anos, lançou dois álbuns de fre-

vos, um de rua, outro canção. Amboscom composições inéditas. Algo raro,numa época em que o ritmo andavapor baixo, vivendo de regravações.Ele repetiria o feito cinco anos depois,quando completou seis décadas dedi-cadas não apenas ao gênero, mas aosdiversos ritmos pernambucanos.Obviamente ele é mais conhecido

pelos frevos instrumentais que com-pôs, alguns quase de domínio públi-co, como é o caso de Cabelo de fogo,que divide comVassourinhas (de Joa-na Batista e Matias da Rocha) o títu-lo de marcha-frevo mais executadanas ruas do Estado durante o Carna-val. É uma melodia que todoconterrâneo conhece de cor, emboraboa parte não saiba o nome do autor.Nascido em Vicência em 26 de ju-

nho de 1931, Patrimônio Vivo de Per-nambuco desde 2009, José Nunesde Souza tem uma trajetória artísti-ca muito parecida com a de outrosgrandes nomes do frevo, como Levi-no Ferreira, Capiba, José Menezes.Começou a tocar ainda de calças cur-tas, passou por bandas de música dointerior e veio desaguar no mar.No Recife passou por diversas

agremiações musicais, como BandaUnião Operária, Banda Manoel Óleo,União Operária da Macaxeira e Bandado Liceu de Artes e Ofícios, onde fezcurso formal de música. Também to-cou na banda do Cassino Americano,no Pina, e foi funcionário da Banda daCidade do Recife. Sua ligação com oPartido Comunista do Brasil o levou atrabalhar não apenas com as citadas or-questras operárias, como a ser um dosmais atuantes músicos do Movimento

de Cultura Popular, o MCP, criado noprimeiro governo Miguel Arraes.Militância que não justifica, mas

explica um pouco o ostracismo peloqual o maestro Nunes passou ao lon-go dos anos. Ele tocou frevo na As-sembleia Legislativa, na posse deMi-guel Arraes como governador em1960, como também esteve no palá-cio do Campo das Princesas no dia1º de abril de 1964, quando o Exérci-to ocupou o local e prendeu o gover-nador. Ele costumava contar que se-guiu em passeata até o palácio parase solidarizar com o governo eleitopelo povo. No caminho, os manifes-tantes esbarraram nas forças milita-res que, embora o grupo que protes-tava estivesse desarmado, dispara-ram os mosquetões contra aquelesque faziam resistência ao golpe. Noextinto programa do apresentadorRoger de Renor na TV Universitá-ria, Nunes contou que correu daPraça da República, onde fica o Palá-cio do governo, até a Praça do En-troncamento. Quando chegou emcasa, criou logo um frevo. Depoispassou alguns meses escondido nocampo para não ser morto.Além de ter trabalhado em vários

projetos do MCP, que empregava acultura popular para politizar, alfabeti-zar e, claro, divertir, Nunes militavano PCB a ponto de dar uma de gazetei-ro vendendo o jornal Novos Rumos, ór-gão do partido que funcionou de 1959a 1964 e dava destaque aos aconteci-mentos em Pernambuco. Essa atuaçãoo levou a ser demitido da banda muni-cipal e amargar o isolamento de seroposição, num tempo em que muitagente fazia questão de ser situação.Numa curta entrevista disponível

no YouTube, Nunes afirma que nun-ca compôs pensando em dinheiro.Atendia o apelo da música, que correno seu sangue desde que nasceu:“Aceito a música como se fosse umamulher que eu amasse e, ao mesmotempo, ela fosse ingrata para mim”.Talvez ingrata, mas nem por isso dei-xou de ser fonte de inspiração. Umafonte mais que generosa, que lhe ren-deu cerca de três mil composições.No citado álbum 60 anos de frevo, Nu-nes, a exemplo do fez Lamartine Ba-bo, homenageia diversas agremiaçõescarnavalescas, dedicando-lhes frevosinéditos. Foi o caso dos títulos Este ca-chorro é feio, mas não morde, para a tro-ça Cachorro Feio de Santo Amaro, ouPra você doutora Mércia, feito para aTurma da Jaqueira Segurando o Talo.Entre seus clássicos mais consagra-

dos, estão Cabelo de fogo, É de perdero sapato (que batizou o álbum duplodedicado ao centenário do frevo em2007), e Mosquetão. Esta última é acitada composição inspirada nos epi-sódios que viveu no fatídico 1º deabril de 1964, quando fugiu para nãomorrer dos tiros disparados pelos sol-dados, que feriram e mataram mani-festantes. A vingança do maestro foium frevo: “Onde o coronel usava o

mosquetão, eu usava a alegria”.Uma alegria que ele espalhou pelo

Carnaval, apesar de durante muitotempo ter sido subestimado comocompositor, pela estrutura simplesdos seus frevos, nos quais incorriampoucos acidentes na execução. No en-tanto, a geração que já há algum tem-po dá as cartas no frevo temNunes co-mo uma das principais influências,chegando a estudar com ele, comoFrancisco Amâncio de Souza, o Maes-tro Forró: “Com uma habilidade tal-vez inconsciente, Nunes começou acompor de umamaneira que sua músi-ca pode ser executada por uma orques-tra de qualquer nível. Muita gente cri-ticava, mas acabou que a minha gera-ção – eu, Spok e muitos outros músi-cos – passou pela escola de Nunes.Meu primeiro professor de música su-geriu que os alunos fossem ensaiar naescola de Nunes, ali no Pátio de SantaCruz. Fui várias vezes. Ele foi de gran-de importância para o frevo. Conse-guiu criar um frevo instrumental boni-to, simples e de fácil execução, o que éuma tarefa muito difícil”.A escola de frevo do Maestro Nunes,

dirigida principalmente para crianças,filhos de integrantes de agremiaçõescarnavalescas, foi uma das responsá-veis pela renovação de instrumentistasno Carnaval pernambucano. Na sua ofi-cina na Casa do Carnaval, no Pátio deSanta Cruz, ele cuidava com zelo e pa-ciência da restauração de antigas parti-turas de frevo. Aos 82 anos, infelizmen-te, o maestro do povo foi pego pelo malde Alzheimer. Fica a dúvida se real-mente esqueceu a música, “mulheramada e ingrata”, que o tratou com ca-rinho e desprezo ao longo de mais desete décadas de vida a ela dedicadas.(José Teles)

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As fotografias e os pôsterespendurados na parede doterraço de casa estão entre

as histórias de que o cineasta Fer-nando Spencer ainda se lembracom mais facilidade. Imagens dosirmãos Lumière em preto e branco,cenas da juventude e diplomas deprêmios recebidos vão aos poucosesmaecendo sob a luz solar. Algunsresistem apenas como fragmentosde memória. As mãos, que pouco apouco perdem a luta contra o tre-mor, por anos guiaram as câmerasque registraram enredos e fizerama alegria do cinema pernambuca-no. Da lista de nomes do Super 8ao time dos Patrimônios Vivos de

Pernambuco, Spencer vive um sau-dosismo emaranhado no difícil ro-teiro do esquecimento.Os olhos, na infância, descobriram

a alegria e os movimentos da sétimaarte nos trejeitos de Charles Chap-lin e nas aventuras dos caubóis nor-te-americanos. Descendente de ale-mães, Spencer era levado pelo pai,Nicodemes Brasil Hartmann, aos ci-nemas do Recife. Aos 12 anos, ga-nhou seu maior presente: um proje-tor de filmes de 35 mm. Ali nasciauma paixão para a vida toda. Elemontou nos fundos de casa o CineMetro, para 20 pessoas.Em 1969, o cineasta começou a

carreira de realizador. Filmou empreto e branco A busca, o primeirode seus 44 curtas, rodado em 16mm. Nos anos 1970 ele descobriu oSuper 8, uma bitola que tinha pelí-culas mais baratas e fáceis de manu-sear, dispensando um aparato técni-co caro e sofisticado. Virou uma re-ferência no formato, enfaticamentedefendido nas críticas que publica-va no Diario de Pernambuco. Hoje,com mal de Alzheimer, o cineastase queixa da aposentadoria: “Vocêpassa a ser esquecido”.Em janeiro do ano passado, para

custear o tratamento médico dele edamulher, vendeu parte do seu acer-vo à Fundação Joaquim Nabuco.“Me arrependo, mas eu precisava”,conta o cineasta das três bitolas, co-mo ficou conhecido por já ter roda-do em Super 8, 16 mm e 35 mm.

Opagode, no bar do Didi, aconte-ce. Não é agendado. Tudo co-meça com um encontro de ami-

gos. Há 32 anos, Valdemir de Sousa re-solveu deixar o trabalho de gerente norestaurante português Adega daMoura-ria, no Bairro de Santo Antônio, paraabrir seu próprio negócio. Levou consi-go um violão, a coragem de viver um so-nho e a ousadia de ser seu próprio che-fe. Ele nem esperava que as suas parti-turas de clássicos da MPB dariam lugaràs rodas de samba que já trouxeram aoRecife grandes nomes nacionais antesmesmo de se tornarem famosos.No apertado estabelecimento da es-

treita Rua Ulhoa Cintra, em meio aocaos do Centro do Recife, seu Didi re-

lembra a vida de festas. Enquanto arru-ma o bar para mais uma noite de rodasde samba, que tomam o espaço de quin-ta a sábado, das 18h às 23h, o senhor decabelos grisalhos vai fazendo listas.“Aqui eu deixo todos osmeus instrumen-tos: violão, cavaquinho, reco-reco, pan-deiro. Mais tarde os meninos chegam epegam os instrumentos, aí vira pagode”,diz. Foi assim que as coisas começaram.Recifense, Didi viveu a infância na

Bomba Grande, Zona Oeste da capital,onde brincava à beira do rio. Em casa,acompanhava a boemia do pai, que vira-va a noite tocando boleros, tangos, val-sas e sambas no violão. O menino gosta-va de ver o pai e seus amigos tocarem.Observava cada nota, prestava atençãonos acordes e aprendeu assim, só deolhar. O pai não queria. “Naquela época,andar com violão debaixo do braço eraperigoso. Você podia ser preso e era des-criminado. Hoje a turma tem respeito.”Já adulto, dominando o violão, Didi foi

trabalhar na Adega daMouraria. Antes ha-via sido almoxarife, datilógrafo e auxiliarde escritório. Na Adega da Mouraria, viupassar nomes importantes da música na-cional e lusitana: Jair Rodrigues, CaubyPeixoto, Amália Rodrigues, Pery Ribeiroe Agnaldo Timóteo. Namesma época, eraaluno do Conservatório Pernambucano.Foi no beco estreito do bairro de San-

to Antônio que Didi conseguiu unirsuas paixões: a música e um restauran-te só seu, de onde tirou sustento paracriar os três filhos. “Hoje eu sou a refe-rência do pagode em Pernambuco”,diz, com orgulho de ser pagodeiro.

Tudo dói. Mas o boi está quase depé. As costas doem. Mas o casa-mento já está pronto. As pernas e

os braços estão cansados.Mas asmãos con-tinuam remexendo o barro. Tem um Nor-deste enfileirado na prateleira de ferro,num ateliê pequeno, imprensado entre ascasas de fachadas chochas, numa rua es-treita e aindamais apertada pelo aglomera-do de gente que se aperta dançando forró.É São João no Alto do Moura, em Carua-ru, eManuel Eudócio, 82 anos, vai se guar-dando timidamente entre as miniaturas degente que ele faz com as mãos todos osdias. Vai guardando com carinho as suascrônicas coloridas cheias de arquétipos deum povo que vive de saudade e alegria,mesmo quando a vida nem sempre é festa.

“Tive cobreiro em janeiro. Era dor demor-rer. Tomei tanto remédio, injeção no nervo.Eu sofri tanto no mundo. Emagreci seis qui-los. Estou tomando remédio ainda. Mas sin-to dor, cansaço, fraqueza”, diz o artista que,além de ser Patrimônio Vivo de Pernambu-co, carrega o título de discípulo do MestreVitalino. Ele começou na cerâmica aos oitoanos. Como muitos, iniciou numa brinca-deira. Sua avó, que era louceira, enquantofazia panelas, dava a ele um pedaço de bar-ro para passatempo. Ali foram surgindo pe-quenos cavalos desajeitados, mas vivíssi-mos aos olhos criativos de uma criança.Nascido no Alto doMoura, Manuel, tí-

mido e orgulhoso, observava de longe ojeito do renomadoMestre Vitalino traba-lhar. “Ele veio morar aqui bem pertinho

e vi suas peças. Nunca fui pedir para eleme explicar como fazia. Adolescente, euia olhando e aprendendo por mim mes-mo. Até que comecei a trabalhar direiti-nho. Aqui tinha bem pouquinha casa ena estrada nem passava carro. Comple-tou 65 anos que trabalho nessa arte.”As referências da infância foram ga-

nhando forma na argila. Eudócio, quedançava os olhos vendo as apresenta-ções de reisado, resolveu levar o univer-so do folguedo para o barro. Umamanei-ra, segundo ele, de eternizar o brinque-do. “É tão difícil ver um reisado. Quan-do eu era menino, o reisado começavade noite e ia até o outro dia. A gente sóparava para tomar café.” No seu ateliê, afesta foi recriada emmais de 200 peças.

Ao lado de nomes como Vitalino e ZéCaboclo, Manuel Eudócio foi responsávelpela valorização da cerâmica produzidano Alto do Moura, que ganhou espaço norol da arte popular. Protestante, o artistaleva uma vida tranquila, em casa, ao ladodos filhos que prometem continuar seutrabalho. Para quem costumava dizer que,“quando completasse 50 anos, ia fazer co-mo Pelé e pendurar as chuteiras”, seuMa-nuel hoje faz o contrário. “Quando euadoeço, fico ainda mais doente porquenão posso trabalhar.” Entre dores e analgé-sicos, o mestre segue a vida sem abando-nar a arte. “Não posso parar”, diz. E seemociona ao falar deMestre Vitalino, que,segundo ele, morreu abandonado. “Ele es-tava doente, ninguém queria socorrer.”

No radinho de pilha, no canto dasala, Roberto Carlos canta Ascanções que você fez pra mim.

Mestre Nuca falava sobre Maria. A vidanão tem sido fácil para ele, e as saudadesde sua mulher dificultam ainda mais. Tu-do agora são lembranças e passos lentos.“Eu me sinto sozinho. Preciso arrumaruma nova companheira, alguém que mefaça companhia. Depois que Maria mor-reu, fiquei muito só. Preciso conversar pa-ra que os pensamentos ruins não che-guem”, diz o ceramista, que ficou famosono País por causa dos seus leões de barro.Aos 76 anos, Nuca esconde o sorriso de

canto de boca, ao mesmo tempo em que res-munga por não conseguir mais fazer suas pe-ças. O lado esquerdo do corpo ficou paralisa-

do após um acidente vascular cerebral(AVC). O coração lhe pregou várias peças.Na casa pequena ondemora emTracu-

nhaém, Manoel Borges da Silva cons-truiu uma família de artistas. Dos cinco fi-lhos que teve com Maria, três atuam nacerâmica. Ele nasceu num engenho deNazaré da Mata em agosto de 1937, masse mudou para Tracunhaém aos 3 anos.Aos 8, vendia bonecos de barro na feirade Carpina. Foi aperfeiçoando o trabalho.Em 1968, apaixonado pelo Sport Club einfluenciado pelo leão da bandeira doRecife, resolveu representar os bichi-nhos na argila. As peças, comuma postu-ra altiva e a juba lisa, destoavam da artefeita na cidade naquela época, quando obarro só dava forma a santos e anjos.

“Criei minha família com aminha arte.”Para falar sobre a carreira, o ceramista

vai, aos poucos, puxando os fatos na me-mória. Em suasmelhores lembranças es-tão a amizade com o ex-governador Jar-bas Vasconcelos, um bom comprador, ecom a colecionadora e arquiteta JaneteCosta. Entre as recordações que hojedoem, estão o amor por Maria e a sau-dade que ela deixou. Em dezembro de2012, Nuca ficou viúvo. Foi ela quemdeu a ideia de transformar as jubas li-sas em pequenos cachos, que se torna-ram umamarca registrada do artista.Morando sozinho, omestre tem reapren-

dido a cuidar de si. “O derrame é umadoença triste. Quando não mata, deixa pa-ralítico. Tudo que aconteceu comigo foi

por causa da pressão alta. Ela mandava eucuidar, eu não cuidava. Agora tenho toma-do os remédios.” Ele junta o salário de apo-sentado e a bolsa do Patrimônio Vivo paracomprar medicamentos. A fisioterapia,que fazia três vezes por semana no hospi-tal da Restauração, no Recife, ele abando-nou: “Ficava muito ruim para ir e voltar”.Mas garante que continua a repetir osexercícios que aprendeu no tratamento.O que mais o incomoda é não poder

trabalhar. Emmeio à saudade deMaria eà impossibilidade de criar, Nuca confessauma alegria, a de ver seu trabalho reco-nhecido. “Ser Patrimônio me enche deorgulho. Me deixa feliz saber que repre-sento Pernambuco”, diz o homem que,mesmo triste, parece ter força de leão.

RicardoLa

bastier/JCIm

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[BR_JC_10: JC-ESPECIAL-1_MATERIAL <1029_12_PER_12> [JC1] ... 29/10/13] Author:IMBIONE Date:23/10/13 Time:10:44

Maria nem quis ver a novela, ti-rou os bobes dos cabelos esaiu de casa às pressas para

não se atrasar. Antônio foi direto do tra-balho. Francisco levou os netos. Severi-na e João saíram correndo da escola, as-sim que as aulas acabaram. Todo mundofoi chegando de mansinho, se sentandonas cadeiras de plástico para assistir àapresentação. Todo mundo foi se cum-primentando. Todo mundo se conhecia.Bastou o maestro abrir a pasta de parti-turas e erguer a batuta para os cochi-chos silenciarem. E começou o concertoem Goiana, na Zona da Mara Norte.Patrimônio Vivo de Pernambuco, a

banda filarmônica Curica se orgulhatambém do outro título: é a mais anti-ga em atividade da América Latina. Ogrupo, inicialmente com 15 músicos,foi fundado em 1848 por José Conra-do de Souza Nunes, na Igreja de Nos-sa Senhora do Amparo dos HomensPardos, para tocar nas festas católicasda cidade. A origem do nome daagremiação tem duas versões. Háquem diga que uma senhora chamadaIria, ao ouvir o som que a banda faziana rua, disse ao maestro que a músicaparecia o grito de uma curica (um pás-saro de canto estridente). Outros afir-mam que Iria, escutando uma das pol-cas do repertório, achou que o refrãosoava como “cu-ri-ca-cá”.

Se nenhuma dessas versões prevalecesobre a outra, é consenso que a filarmô-nica acabou se transformando em ummimo dos moradores. Não de todos,mas de uma parte deles. Os goianensesdividem sua paixão entre duas bandas,a Curica e a Saboeira, fundada anos de-pois, em 1855. “Filarmônica de interioré que nem time de futebol da capital: ca-da família torce por uma”, explica Ed-son Júnior, presidente da Curica.Edson e a família são exemplos des-

sa devoção à banda. Ele chegou àagremiação ainda criança, sonhava emser músico. Lembra-se daquela épocacom orgulho. “A gentemal tinha instru-mento e uniforme, se mantinha a par-tir da ajuda dos sócios-colaboradores.Quando eu ia fazer a cobrança, não da-va nem um salário mínimo. Cada umcontribuía com R$ 4, R$ 2”, diz.Durante dois anos, ele ficou na filar-

mônica estudando teoria musical, jáque seus pais não tinham dinheiro paracomprar instrumento. Um convite domaestro da Saboeira fez com que elesaísse da Curica e fosse para o grupo ri-val. “Lá eu teria instrumento. A Saboei-ra sempre teve mais condições, porqueé uma banda de comerciantes, gente ri-ca. A Curica é do povo mais humilde,dos operários”, explica o músico. “De-pois que aprendi a tocar e com o dinhei-ro que juntei, comprei o trompete e vol-

tei para minha banda de origem.”Orgulho é uma palavra-chave den-

tro da Curica. Na história que é repas-sada pelas gerações de músicos, umadas lembranças sempre recontada éa do dia em que a banda tocou com obatalhão da Guarda Nacional que re-cebia o imperador Dom Pedro II,quando ele visitou Goiana em dezem-bro de 1859. Essa presença em mo-mentos importantes da história na-cional, aliada à sua resistência em fa-zer música no interior, terminou for-talecendo a imagem da Curica no res-tante do Brasil e fora do País. Em1944, a filarmônica recebeu a visitado musicólogo uruguaio FranciscoCurt, para pesquisar de perto, na se-de da banda, partituras do século 19.Patrimônio Vivo de Pernambuco

desde 2005, atualmente o grupo sereúne para os ensaios na rua da Igre-ja de Nossa Senhora de Rosário dosNegros, no Centro de Goiana. A casa-sede foi uma doação recebida no dia

do centenário da filarmônica. O acer-vo do repertório da Curica reúne cer-ca de 800 peças, entre músicas reli-giosas, clássicos da MPB, composi-ções barrocas e dobrados. Quandochega o Carnaval, os 60 músicos sedividem também nas orquestras defrevo que animam as festas locais.Um dos integrantes mais jovens da

Curica é Victor, 14 anos, há quatrodentro da filarmônica. São 165 anosque o distanciam da primeira geraçãodo grupo. “Ninguém me incentivou.Eu mesmo quis vir. Minha mãe nãogosta que eu faça parte, porque querque eu vá estudar, mas eu me esfor-cei e entrei. No começo é difícil. Mas,quando a gente se acostuma, passa”,diz. Tímido, o pequeno trompetistavai se entrelaçando aos mais expe-rientes e é um dos destaques das re-tretas. Dois dias por semana ele temaula de música na sede da banda. DeGoiana já viajou paraMaceió e Portu-gal, a fim de se apresentar. Cursandoo nono ano do ensino fundamental, omenino que adora tocar frevo – “Omeu preferido é Vassourinhas” – so-nha com o futuro: “Quero ser da Ma-rinha ou do Exército, mas sem deixara música de lado. Meus amigos da es-cola acham isso chato, falam para eusair. Mas eu não vou sair, não. Gostode futebol, mas prefiro a banda”.

Toda a cidade estava lá paraassistir à estreia. EmTimbaúba, Zona da Mata, o

povo se aglomerava na Praça DonaGuiomar (hoje Praça João Pessoa) pa-ra ver a primeira apresentação dabanda Filarmônica Euterpina deTimbaúba. Fundada em fevereiro de1928, só dez meses depois ela faziaseu primeiro dobrado, no mesmo lu-gar em que havia sido criada, comose fosse um grito de independênciadado pelo professor José Mendesda Silva, na época aos 23 anos.“Existia a Sociedade Musical Pri-meiro de Novembro, mas a bandasozinha já não dava conta da de-manda dos eventos da cidade. Asapresentações eram muitas e haviamuitos músicos por aqui”, lembra oatual presidente da Euterpina deTimbaúba, Eder Gomes.Batizada comumnome que faz alu-

são à deusa da música, Euterpe, abanda filarmônica é um orgulho detimbaubenses. A sede do grupo ficano centro da cidade, ao alto, de ondese pode ver parte do comércio e dasavenidas principais. A banda surgiuem nove de fevereiro de 1928. Atual-mente as coisas vão bem para a filar-mônica, mas nem sempre foi fácil.Em 1962, enquanto o Brasil fervilha-va por causa dos movimentos políti-co-sociais e conflitos partidários, afalta de incentivo público fez comque a Euterpina de Timbaúba fechas-se as portas. “Foramproblemas exter-nos, de perseguição política; e inter-

nos, de divergências da própria dire-toria”, diz Eder. Só em 1989 é que ogrupo foi remontado, por decisão deex-integrantes e com ajuda de sóciose colaboradores, agora na sede atual.O prédio de dois galpões, que aos

poucos vai sendo reestruturado, guar-da as lembranças e a história damúsi-ca de Timbaúba. Aqui 42 músicoscom idades de 17 a 65 anos redesco-brem todo dia o prazer da arte e lu-tam para se modernizar. Desde 1995à frente da regência da banda, omaes-tro Josivânio Rique de Lima, 41 anos,deu uma revirada no repertório dasapresentações, incorporou novos ar-ranjos e canções contemporâneas àsretretas, incluindo uma feliz releiturade Toque de Luanda, criada a partirdas partituras do Maestro Forró, daOrquestra Popular da Bomba do He-metério. “O público jovem não estavamuito interessado nas nossas apresen-tações.Mudamos o repertório da ban-da, tocamosmúsicas mais jovens e fa-zemos algumas coreografias desdeque o novo maestro assumiu.”O resultado é que, além de con-

certos mais atrativos, o grupo ga-nhou mais alunos. A cada mês, gra-ças a um projeto municipal, a Eu-terpina e a Primeiro de Novembrocirculam pelos bairros mais caren-tes da região levando música paratodos. A banda de Timbaúba é Pa-trimônio Vivo de Pernambuco des-de o final de 2012. Além da filarmô-nica, o grupo também tem uma or-questra de frevo, criada em 2010.

“Asbandas de interior equi-valem aos conservatóriosda capital.” A afirmação

é feita por João Paulo Ferreira da Ho-ra, 42 anos, presidente e maestro daBanda Euterpina Juvenil Nazarena, deNazaré daMata. Ele é o próprio exem-plo de suas palavras. Foi no grupo quecomeçou a dar os primeiros passos co-momúsico.Hoje ganha oPaís como in-tegrante da banda do cantor Siba.A Juvenil Nazarena foi criada no dia

1º de janeiro de 1888. À época, Nazaréera uma cidade pequena, onde existiaum grêmio dos comerciantes locais –músicos nas horas vagas. Por isso sur-giu a ideia de se criar uma banda. Comoé tradição no interior, o grupo passou acelebrar o aniversário de fundação comumchurrasco de bode. O animal era ca-pado meses antes. “Quando o povo dacidade via os músicos passarem, dizia:‘lá vão os capa-bode’”, diz João, expli-cando a origem do nome popular que abanda recebeu na cidade: Capa-Bode.Num bonito casarão, em frente à Pra-

ça do Frevo, fica a sede do grupo, ondeacontecem ensaios e reuniões. Tem fa-chada de platibanda com desenho mar-cante e dentro um lindo piso de ladrilhohidráulico. Há cinco anos o lugar pas-sou por uma reforma para consertar otelhado, danificado pelas chuvas.Nas pa-redes, as recordações desses 125 anos de

história estão enfileiradas em fotogra-fias e pôsteres, ao lado de uma imagemde Santa Cecília, padroeira dos músicos.Manter uma banda filarmônica não

é tarefa fácil nem barata. Os custos pa-ra comprar e manter os instrumentossão altíssimos. Graças ao título dePatri-mônio Vivo, que concede uma bolsamensal à Capa-Bode, a situaçãomelho-rou umpouco, segundo João Paulo. “Agente pode dar uma gratificação aosmúsicos. O trabalho é de inclusão so-cial. A gente prepara o cidadão, dáuma profissão. Os professores que es-tão aquimuitas vezes trabalhamvolun-tariamente. Mas eles precisam ganharalguma coisa, têm família”, diz ele, quetambém é representante comercial.“Tiramos muita gente do meio da ruae formamos profissionais. Há pessoasque saíram daqui e hoje são professo-res do Conservatório Pernambucanoou tocam em grupos de renome.”Além da banda, a Juvenil Nazarena

mantém uma escola de formação naqual atende crianças a partir dos 8anos. Ao todo, são 60 alunos. Eles tam-bém se dividem em uma orquestra defrevo. Uma das maiores dificuldadesda agremiação, no entanto, é a preser-vação de sua memória. Com mais deum século de existência, a filarmônicadeixou de registrar vários fatos do pas-sado e agora não tem como resgatá-los.

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[BR_JC_10: JC-ESPECIAL-1_MATERIAL <1029_12_PER_14> [JC1] ... 29/10/13] Author:IMBIONE Date:23/10/13 Time:10:44

João Silva, 78 anos, confirma o ve-lho ditado sobre a força que as coi-sas parecem ter quando precisam

acontecer. Roupa do couro como únicopatrimônio, 16 anos incompletos, resol-veu semandar para o Rio de Janeiro, a en-tão feérica capital federal. “Queria ser ar-tista de todo jeito”, lembra ele, que mora-va com a mãe no bairro recifense de Ca-jueiro. “Grande m...”, gargalha ele, donode um humor tão indomável quanto o ta-lento. “Peguei uma carona em Garanhunse fui-me embora até Alagoas.”No caminho se ofereceu para trabalhar

num trem. Como pagamento, teria a pas-sagem. “O sujeito perguntou quem conhe-cia o Rio e eu disse logo que conhecia.”João nunca tinha saído de Pernambuco.O candidato a artista chegou ao Rio paraentregar a planilha de passageiros da via-gem e, sonho maior, conseguir uma vagana Rádio Nacional. Morou por três diasnum albergue público. “Se eu não arru-masse emprego, teria que sair de lá.”Menos de três luas depois, tinha arru-

mado não só ocupação como moradia.“Fui trabalhar na oficina de uns portu-gueses e fiquei morando por lá. Lavava aroupa e ficava de cueca, esperando se-car”, diz ele. Uma semana depois, os pri-meiros sinais concretos da prosperidade:já tinha dinheiro para mudar de trajes.A arte lhe deu mais que camisas. Com

uma carreira ascendente nos tempos áu-reos da rádio brasileira, iria se tornar umdos maiores parceiros de Luiz Gonzaga,conterrâneo que só conheceria na CidadeMaravilhosa. O filho de Januário gravaria,ao longo da vida, nada menos que 140 can-

ções assinadas por João. Uma pequenaparte, contudo, de seu enorme cancionei-ro. Com mais de mil composições, elecostuma ser regravado por gente comoNeyMatogrosso, Gilberto Gil, Ivete San-galo... “Ivete é uma danada, uma belezade cantora”, diz ele, que teve a sua Nemse despediu demim gravada recentemen-te pela sacolejante diva baiana. “É tam-bém uma amiga arretada. Vai longe naconversa de safadeza”, brinca.Gonzaga é tão importante na vida de

João como ele o foi na trajetória do ami-go. “Faz uma falta arretada, um buracoque ninguém tapa”, diz ele, os olhosma-rejados ao se lembrar do Velho Lua.Quando João se tornou umbem-sucedi-do cantor de baiões na Rádio Nacional,Gonzaga já era majestade. Mas, contra-ditoriamente, vendia muito pouco.Atuando como produtor, João dispa-

rou as vendas do Trio Nordestino, que al-cançou amarca de 280mil unidades. Gon-zaga, apesar da fama, vendia mirradas 2,5mil cópias por álbum. “A BMG me cha-mou para produzir o disco de Gonzaga. Eeu disse que, se não desse um disco de ou-ro a ele, nunca mais precisavam falar co-migo”, lembra o homem que aprendeu atocar violão sozinho, aos 10 anos. Sua es-cola foram os cabarés de Arcoverde.João Silva se dispôs a mexer, justamen-

te, no espírito lírico do Rei do Baião. “Gon-zaga era um gênio, foi quem criou o baião.Mas só cantava lamento,Asa-Branca, o so-frimento do retirante... Eu disse que o po-vo queria mais era esquecer, não lembraro sofrimento.” Na ocasião, houve a primei-ra dasmuitas brigas entre os dois. “Ele dis-

se que não ia gravar embolada, que aquilonão era coisa para ele. Mas faltavam sódois dias para entrar no estúdio e eu dis-se que, se ele não gravasse, eu sairia dodisco.” Com seis músicas de João progra-madas para o álbumDanado de bom, Gon-zaga não teve escolha. Ou aceitava as im-posições, ou ficava com o disco esvaziadode última hora. “Eu ainda disse a ele:‘Olhe, se eu tivesse chegado antes, quemera o rei do baião era eu, e não tu!’.” Noque Gonzaga assentiu: “E era mesmo!”.Rebelde, João exigiu também o des-

monte de um esquemamais oumenos co-mum nas gravadoras. “Os caras gastavamuma fortuna. Ninguém sabia para onde iaaquele dinheiro.” Com um disco drastica-mente mais barato, ele impôs a aplicaçãoda verba economizada. “Eu disse: vão pe-gar o dinheiro e fazer dois Fantásticos eum Globo de ouro.” Estrategista impa-gável do marketing, Silva dirigiu Gonzaganum clipe em que ele aparecia na caçam-ba de um pau de arara, anunciando o ca-minho inverso. “Gonzaga dizia no vídeoque ia largar tudo e voltar ao sertão, queaquele era o último disco dele. Gonzagaera um artista, um ator, chorou logo”, ri.Disco pronto, João Silva voltou para Ar-

coverde tremendo de insegurança. “Passa-va os dias bebendo, commedo de não che-gar ao Disco de Ouro”, diz. Mas o álbumDanado de bom (1984) vendeu nadamenosque 1,6 milhão de cópias. “Gonzaga sóaprendeu a ganhar dinheiro comigo”, ri,mais uma vez, dando um trago comedidono cigarro que fuma com cada vez maisparcimônia. “Em trêsmeses, Gonzaga ven-deu três discos de ouro!” Coautor de Sanfo-

ninha choradeira, Pagode russo e Nem sedespediu de mim, João Silva seria o grandeparceiro deGonzaga a partir daí. O que aju-dou omestre a ganhar um prêmio Shell.João não ficou rico. Mas consegue, co-

mo poucos, viver de direitos autorais, commais de duas mil composições gravadaspor grandes nomes daMPB. Os 49 anos devida no Rio, precisamente no subúrbio deDuque de Caxias, não foram suficientes pa-ra mudar o sotaque nitidamente pernam-bucano do compositor. “E eu sou besta?!Tem gente que nem chega no Rio e já estáentronchando a boca”, ri mais uma vez.Há seis anos, João Silva voltou ao Reci-

fe. Veio em busca de paz interior. “Fiqueiviúvo da mulher com quem passei minhavida toda, o maior amor, minha grandeamiga na vida”, diz. Como não conseguis-se recobrar as forças, ouviu os conselhosde um amigo psicanalista. O terapeuta dis-se para arrumar as malas, largar as lem-branças e a condição de viúvo coitado aque estaria confinado na comunidade emque vivia. “Minha mulher era tão arreta-da que disse que, se ela morresse antes,eu chorasse um pouquinho, mas arrumas-se logo um rabo de saia”, diz ele, as lágri-mas rompendo a moldura das pálpebras,ao se lembrar de dona Sebastiana Gomes.Virou patrimônio Vivo de Pernambu-

co há quatro anos. “O dinheiro até queé bonzinho. Mas bom mesmo é o reco-nhecimento, o prestígio, né?”, diz ele,que até largou a boemia. “Tinha todosos defeitos do bêbado, ficava rico e cha-to. Agora que sou patrimônio, tenhoque manter a compostura!”, gargalha.(Bruno Albertim)

Reginaldo Alves Ferreira,Mes-tre Camarão, tinha 7 anosquando fez seu primeiro

grande show. Foi submetido ao crivodos sanfoneiros da sua família, numadas reuniões no quintal da FazendaCamalaú, no interior da Paraíba. Ti-nha sido levado pelo pai, Antônio, ea mãe, Josefa. Foi tão aprovado quetomou gosto. Continua um nota 10até hoje, sempre que empunha a san-fona sobre os palcos – agora maiorese na presença de outros públicos.Nascido na véspera de São João

de 1940, o músico, que foi apelidadoaos 18 anos pelo cantor Jacinto Sil-va, por causa das suas bochechasavermelhadas, é natural de Brejo daMadre de Deus, no Agreste de Per-nambuco. Ele aprendeu sanfonaolhando o pai tocar. Aproveitava aida de Antônio à lavoura para en-saiar algumas notas no instrumento.Aos 10 anos, foi para Caruaru. Aos18, já fazia parte do elenco de músi-cos contratados da Rádio Difusora.O trabalho emCaruaru foi amplian-

do a bagagem de Camarão. Em 1961,mesmo ano emque representou o Es-tado na festa de aniversário de Brasí-lia com o Trio Nortista (ele, JacintoSilva e Ivanildo Peba), gravou seu pri-meiro disco, pela Rozenblit. Foi nu-ma das apresentações na Difusoraque Camarão tocou com nomes comoHermeto Pascoal e, claro, o onipre-sente Luiz Gonzaga. Novamente oRei do Baião deixa suamarca impres-cindível na história dos Patrimônios

Vivos de Pernambuco. O Velho Lualevou Camarão para gravar dois dis-cos com ele, em 1969 e 1970, na RCA.“Nossa amizade durou enquanto

ele foi vivo. Luiz Gonzaga tambémlutou pelos sertanejos, pela famíliadele, por Exu. Foi quem levou a (ro-dovia) BR até em cima da Serra doAraripe. Ele chegou a trocar showspor alimentos, na época de seca, pa-ra levar para o povo dele”, lembrao sanfoneiro, em entrevista no ca-marim da TV Jornal, no Recife.No entanto, o que transformou

Camarão em um grande mestre foisua ousadia e inovação. O sanfonei-ro criou em 1968 a primeira bandade forró do País, a Bandinha do Ca-marão, em que introduziu ao ritmo– até então compassado pela zabum-ba, o triângulo, o pífano e a sanfona– instrumentos de sopro como tuba,trombone e clarinete. No mesmoano lançou a Orquestra Sanfônica,projeto no qual a sanfona deu basetambém para o frevo e o maracatu.Era um encontro de família.Atualmente Camarão dá aulas na

escolinha Acordeon de Ouro, quecriou em casa, no bairro da Estân-cia, no Recife. Ensina as primeiras li-ções do instrumento a crianças eadultos. Com três filhos, todosmúsi-cos, ele garante a continuidade dasua obra, mas padece de uma saúdefragilizada. Há quatro anos, fez umacirurgia para a retirada dos rins ehoje precisa se submeter a três ses-sões de hemodiálise por semana.

Do meio do chão de terra bati-da, num sábado de show naExposição de Animais do Re-

cife, nos anos 1960, Arlindo viu seu ído-lo pela primeira vez bem de pertinho.Luiz Gonzaga pisava no mesmo palcoem que ele acabara de tocar. O Rei doBaião chamava Marinês para cantar equeria alguém que a acompanhassecom a sanfona. “Coruja, dono da bandade que eu fazia parte, era amigo deGonzaga e disse a ele que tinha umsanfoneiro na exposição. Gonzagamandoume chamar. Eu subi no palco,eleme deu a sanfona. Toquei duasmú-sicas. QuandoMarinês acabou, Gonza-ga me mandou ficar e chamou Waldi-ck Soriano. Toquei com ele também.Quando acabou, ele me agradeceu edisse que eu era muito bom.” O desti-no, sem que o músico ainda soubesse,fez de Luiz Gonzaga o alto-falante damúsica de Arlindo dos Oito Baixos.PatrimônioVivo de Pernambuco des-

de dezembro de 2012, atualmente elepassa as tardes sentado no sofá de casae relembra alguns dosmuitos fatosmar-cantes da carreira. Arlindo começou atocar sanfona ainda na infância, comopassatempo, em Sirinhaém, na Zona daMata Sul. Aos 18 anos, foi tentar a car-reira de músico e, aos 23, dividia seutempo entre shows e o trabalho comobarbeiro em Beberibe, no Recife. Já eracasado, com três filhos, e se apresenta-va com vários artistas locais quando co-nheceu Gonzagão. Não demoroumuitopara que se tornassem parceiros. Foido show na Exposição de Animais a

uma conversa, no dia seguinte, na casado próprio Arlindo, que durou quatrohoras. Luiz Gonzaga abriu as portas damúsica nacional para o colega.“Gonzaga me convidou para tocar

com ele. Viajei muito. Um dia, pedipara gravar um disco. Ele disse que,para eu gravar, tinha que mudar deinstrumento, trocar a sanfona, que asgravadoras já tinham muitas, pelosoito baixos. Fui em Caruaru, com-prei um acordeom oito baixos de Zédo Estado e fiquei estudando. Oitomeses depois ele teve aqui e se lem-brou. Perguntou se eu estava treinan-do. Aí eu mostrei. Ele disse que esta-va bom, me levou para São Paulo egravamos. Mandou colocar na capa‘Arlindo dos Oito Baixos, Mestre doBeberibe’, e daí ficou meu nome.”Simpático, sempre solícito, Arlindo

conquistou o carinho e a admiraçãode muitos artistas. O sanfoneiro quejá tocou comnomes comoElbaRama-lho e Dominguinhos, a quem conside-ra um grande amigo e mestre, contacom a ajuda de alguns parceiros paraseu tratamento médico. Ano passado,antes de ser laureado, ele passou porduas cirurgias para amputar partedas pernas. A bolsa de Patrimônio e aaposentadoria não são suficientes pa-ra cuidar da saúde. Logo após os pro-cedimentos, vários artistas se reuni-ram para um show beneficente, noForró de Arlindo, espaço cultural queele mantém no quintal de casa, emDois Unidos, onde acontecem apre-sentações culturais e aulas de sanfona.

Gug

aMatos/JC

Imag

em/11-6-2009

Page 18: Pernambuco Vivo

Senhores e senhoras donos doseu tempo, os Patrimônios Vivosde Pernambuco representam pa-

ra a arte do Estado um novo capítuloda história de sua cultura. São comopontes, que unem passado e presente,corpo e movimento, memória e cria-ção. Inscrevem, com suas obras, novastradições pernambucanas. Três dessesmestres já se foram, mas deixaram pa-ra o futuro um legado que a morte nãoconsegue apagar. Refundaram a vida.Famoso no Brasil emundo afora,Mes-

tre Salustiano (1945-2008) foi um dosmais conhecidos brincantes merecedo-res do título. Patrimônio eleito em2005, entre os primeiros nomeados, suahistória foi coroada de desafios, perseve-rança e glórias. Saiu da Zona daMata pa-ra Olinda na década de 1960. Trazia con-sigo o maracatu de baque solto e o cava-lo-marinho que fizeram parte da sua in-fância, presentes do avô João Salustia-no. Mestre Salu deixou também sua he-rança, preservada até hoje pelos 15 fi-lhos. Aprendizado que rompeu a barrei-ra do divertimento e virou lição de vida.Num sítio na Cidade Tabajara, na peri-

feria olindense, Salu construiu sua forta-leza. Além demoradia, o espaço se trans-formou há dez anos na Casa da Rabeca,onde acontecem apresentações cultu-rais, palco de resistência dos caboclos de

lança. O chão é de cimento batido, as pa-redes decoradas e o teto com bandeiro-las, tudo cercado de casas onde moraparte da família de brincantes. Após amorte do mestre, em agosto de 2008,aos 62 anos, de problemas cardíacosprovocados pela doença de Chagas, osfilhos dele assumiram também a lide-rança doMaracatu Rural Piaba de Ou-ro. Amemória e o trabalho de Salu sãoguardados com orgulho pelos herdei-ros, entre rabecas e fotografias. Elespretendem criar um museu, o Centrode Referência da Cultura PopularMes-tre Salustiano, onde o material ficaráexposto para pesquisa e visitação.No Sertão pernambucano, na divisa

do Estado com a Bahia, Ana das Carran-cas (1923-2008) fez sua história, conti-nuada com firmeza no trabalho de duasde suas três filhas: Ângela Lima e Ma-ria da Cruz. A artista – Patrimônio Vivoem 2005 – nasceu no município SantaFilomena, em Pernambuco, e morreuem 2008, aos 85 anos, após uma paradacardiovascular. Ela sofreu um acidentevascular cerebral (AVC) em 2004 e vi-veu os últimos dias com a saúde muitodebilitada. Filha de uma índia e de umdescendente de escravos, ela aprendeuem casa a arte do barro. Sua mãe, parasustentar a família durante os períodosde seca, fazia jarros e panelas para ven-

der nas feiras do interior. Fugindo daestiagem, Ana chegou a Picos, no Piauí,onde se casou, teve duas filhas, adotoua terceira, enviuvou e se casou nova-mente, com José Vicente de Barros.Em 1954, o áspero clima sertanejo lhe

fez descobrir Petrolina, cidade à beirado perene Rio São Francisco, onde jun-tou o barro à lenda das carrancas, ima-gens que protegiam os barqueiros con-tra os maus espíritos. “Mamãe era umamulher batalhadora. A gente só não pas-sou fome porque ela sempre trabalhou,buscou alguma coisa para fazer. Ela foiuma supermãe”, lembra Maria da Cruz.De expressões fortes e traços bemdefini-dos, as carrancas de Ana foram ganhan-do fama não só por desobedecerem à tra-dição das peças de madeira (a maioriaproduzida na região), mas também poruma peculiaridade: as figuras sombriase lendárias que ela criava ganharamolhos vazados. Uma homenagem que aartista fez ao marido, que era cego. To-da a obra deixada por Ana está atual-mente reunida no Centro Cultural Anadas Carrancas, em Petrolina, criado naantiga casa da artista. Administradopor suas filhas, o espaço recebe diaria-mente estudantes e turistas que vão co-nhecer o legado marcado na cerâmica.Embora não fosse pernambucano, o

músico Canhoto da Paraíba (1926-2008)

foi nomeado Patrimônio Vivo commui-to orgulho para o Estado, em 2005. Nas-cido emPrincesa Isabel, no Sertão parai-bano, numa família em que música eraquase sobrenome, o neto de clarinetistae filho de violonista se transformou emuma referência do choro brasileiro. Elechegou a Pernambuco em 1958, apósmorar por seis anos em João Pessoa. So-nhou alto e começou a carreira musicalainda adolescente, aos 16 anos, em 1953,quando assinou contrato com a RádioTabajara, na capital do Estado vizinho.A influência do avô e do pai e a con-

vivência com artistas da sua terra na-tal tornaram-no um músico completo.Canhoto, ele ficou conhecido tambémpela maneira com a qual dedilhava oviolão, de modo invertido, sem alterara ordem das cordas – já que dividia oinstrumento com os irmãos destros. Acultura popular pernambucana in-fluenciou grande parte de suas compo-sições. O músico incorporou à suaobra elementos de ritmos como frevo,xaxado, xote e baião, e ganhou a admi-ração de nomes como Paulinho da Vio-la, Radamés Gnattali e Baden Powell.Canhoto da Paraíba morreu em

abril de 2008. Morava com a filha nacidade de Paulista. Dez anos antes, játinha se afastado da carreira musical,após sofrer uma isquemia cerebral.

Tom

Cab

ral/JC

Imag

em/23-7-20

06

Alexand

reBelém

/JCIm

agem

/30-1-2006

RodrigoLo

bo/JCIm

agem

/22-1-20

08