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1 Pernambuco_Out 07 Alexandre Belém Foto: Alexandre Belém/Concepção: Jaíne Cintra

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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

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Órfãos da elegância pura - Há 50 anos, a moda perdia o estilista Christian Dior

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:D - Por que depois da internet nunca mais a nossa escrita foi a mesma? :*

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Frágil - O patrimônio material dos escri-tores é colocado em discussão

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Romantismo/Romantism - Poetas ingle-ses românticos ganham traduções com-petentes

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Sobre o dis-creto charme do banal - In-tervenções do SPA das Artes mudam nossa paisagem ur-bana de cada dia

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Qual a importância das residências dos escritores para a preservação da nossa cultura? A idéia de fazer uma capa do Pernambuco a partir desse tema surgiu quando o estudante de letras Kleber de Oliveira Silva enviou artigo denunciando a derrubada da casa onde nasceu Osman Lins, em Vi-tória de Santo Antão, sua terra natal. Essa mesma cidade tem um centro de cultura com o nome do autor, que pouca ou nenhuma atividade cultural costuma realizar. A partir da denúncia, a idéia foi investigar em que pé está a preservação desse nosso patrimônio material em tempos em que tanto se fala em patrimônio imaterial.

Nessa matéria de capa, a repórter Marcella Sampaio chegou à seguin-te conclusão: “No caso específico dos escritores, há em Pernambuco um enorme potencial para que os espaços onde passaram parte da vida sejam explorados como ponto de partida para um mergulho na sua produção in-telectual. Seria o caso da materialidade invocar a imaterialidade e provocar sua permanência. Gilberto Freyre, Hermilo Borba Filho, Osman Lins, Clarice Lispector e Manuel Bandeira são apenas alguns exemplos de autores cujo patrimônio material, ocupado em algum momento ou deixado por eles aos seus, chegou a ser transformado em local de visitação ou pesquisa”.

Além da importância da preservação do patrimônio dos escritores, o Per-nambuco vem com assuntos dos mais diversos. Entre eles, o relançamento do álbum do grupo norte-americano Modern Lovers, que nos anos 70 foi contra a corrente do imaginário do rock’n’roll da época, com letras inteli-gentes falando do lado careta de ser e imprimindo os alicerces daquilo que, nas décadas seguintes, seria conhecido como indie-rock. A análise do Mo-dern Lovers ficou nas mãos do jornalista e guitarrista do grupo Mellotrons, Haymone Neto, que vem nos últimos meses colaborando com excelentes artigos sobre música no Pernambuco.

A moda é outro tema que essa edição não deixa de fora. O jornalista Dario Brito investigou os pressupostos daquilo que o estilista Christian Dior nos levou a entender como elegância. “A elegância em seu conceito clássico, que une harmonia e leveza de formas, que acerta nas linhas, combinação e proporção das partes e movimentos e, acima de tudo, a elegância intocável, inquestionável com relação ao caráter de quem pode suportar, com uma pureza ímpar, tais vestes”, analisa Dario.

A professora do departamento de letras da UFPE, Nelly Carvalho, fala de como a internet tem mudado a nossa forma de escrever. E o pesquisador do romantismo, André de Sena, analisa as boas traduções que alguns dos grandes poetas românticos ingleses têm recebido agora no Brasil.

Quando o Pernambuco estreou em janeiro, a poeta Micheliny Veruns-chk foi a primeira a publicar na nossa seção voltada a textos inéditos. Ago-ra, ela está de volta, mas com um lado pouco conhecido do público, o de contista.

O grande destaque desta edição do Pernambuco, no entanto, são as mudanças que têm sofrido o caderno Saber +, que a cada edição fica mais ágil, mais graficamente atraente. É como se a cada número o Saber + fos-se um laboratório de novas idéias e propostas. Nesse número, uma longa entrevista de Marilene Mendes com Jacques Ribeboim discute a polêmica lei que visa cota para os escritores pernambucanos nas livrarias. Outro destaque é um texto de Samarone Lima sobre aquela que permanece como a livraria-arquétipo no imaginário do recifense, a Livro 7.

Boa Leitura e até o próximo número,

Schneider Carpeggiani ([email protected])Editor Executivo

SUMÁRIO EDITORIAL

Entre na briga - O Pernambuco abre espaço para os leitores. Escreva dez linhas sobre “ O futuro da televisão”. Você partici-pará do debate com nossos colaboradores. Veja e-mail no editorial.

O Brasil em 26 horas - Paulo Sérgio Scarpa analisa novas possibilidades de interpreta-ção na maratona de “Os sertões”

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Entre a ação e a consciência social - Estréia de Tropa de Elite coloca a discussão sobre o papel da polícia em foco

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Caretice, esse obscuro objeto de desejo - Clássico do Modern Lovers ganha reedição09

Inéditos - Micheliny Verunschk mostra seu lado contista

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EXPEDIENTEGOVERNADOR DO ESTADO

Eduardo CamposVICE-GOVERNADOR

João Lyra NetoSECRETÁRIO DA CASA CIVIL

Ricardo Leitão

PRESIDENTE

Flávio Chaves DIRETOR DE GESTÃO Bráulio Mendonça Meneses

DIRETOR INDUSTRIAL Reginaldo Bezerra Duarte

GESTOR GRÁFICO

Júlio Gonçalves

EQUIPE DE PRODUÇÃO

Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo

Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco.

Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora de Pernam-buco - CEPE

Rua Coelho Leite, 530, Santo AmaroCEP 50100-140

EDITOR

Raimundo CarreroEDITOR EXECUTIVO

Schneider Carpeggiani

EDIÇÃO DE ARTE

Jaíne Cintra

TRATAMENTO DE IMAGEM

Sebastião Corrêa SECRETÁRIO GRÁFICO

Militão Marques

REVISÃO

Gilson Oliveira

CONSELHO EDITORIAL

Flávio Chaves (presidente), Jaci Bezerra, Paulo Bruscky, Nivaldo Araújo, Ivanildo Sampaio, João Monteiro e Lucila Nogueira

Fone: (81) 3217.2500 FAX: (81) 3222.5126

Intervenção de Mauricio Silva. Foto: Marcelo Lyra/Olhonu/Divulgação

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o mundo da moda, com tantas faíscas e opiniões divergentes, pelo menos uma unanimidade persiste inabalável: Christian Dior sempre será o pai da

elegância. A elegância em seu conceito clássico, que une harmonia e leveza de formas, que acerta nas linhas, combinação e proporção das partes e movimentos e, acima de tudo, a elegância intocável, inquestionável com relação ao caráter de quem pode suportar, com uma pureza ímpar, tais vestes. Há 50 anos, o mundo perdeu o norte desse tipo de bom gosto (Dior morreu repentinamente de um ataque cardíaco em 24 de outubro de 1957). O paradoxo é que atualmente basta ler qualquer semanário de não-notícia, ligar a TV em qualquer programa de variedades ou acessar qualquer blog de moda para perceber que exímias re-presentantes da pá virada como Nicole Richie, Gwen Stefani e Victoria Beckham podem, sim, “parecer” elegantes. Mas nunca como uma manifestação de garbo, de maneiras requintadas e virtude: nunca como alguém que ousasse suportar com dignidade as supremas vestes de Dior nos anos 50.

Baixinho, gordinho, atarracado, tímido e, de certa forma, deslocado, Dior soube se impor como poucos enquanto passou como um meteoro na hora certa: em apenas uma década (sua primeira e retumbante coleção, Linha Corola, surgiu em 1947), ele transformou-se num estilista cujas criações povoavam ao mesmo tempo os sonhos de mulheres das mais altas classes européias como também das donas-de-casa mais puerilmente provincianas de toda classe média ao redor do mundo. Vestir-se com uma criação do mestre era o último grau do desejo, do campo onírico da elegância. Por toda essa influência sem prescedentes, Dior era recebido nos países que visitava com honrarias dignas de um chefe de estado. E merecia isso.

Último grande estilista (de uma era que começou com Charles Worth, ainda no século XIX), Dior revolucionou a moda ao lembrar as mulheres que elas po-diam ser novamente deslumbrantes e que a vida também era feita de elegância. O estilista teve a nobre missão de reconstruir o bom gosto numa Europa pós-Se-gunda Guerra feita de migalhas e acostumada com o racionamento e a masculi-nização. Mulheres, sobretudo as parisienses, que anos antes tinham que investir em criatividade e instinto de sobrevivência para celebrar sua feminilidade até onde era possível: transformando trajes masculinos em vestidos, toalhas de mesa em novas peças ou ainda, desesperadas, traçando uma risca de carvão na parte de trás das pernas, imitando uma meia-calça, artigo de luxo naqueles tempos.

E eis que surge alguém propondo vestidos que consumiam 25 ou 40 metros de tecido (contra os cinco metros castrativos durante o conflito), exibindo char-me, apostando em saias amplas que se abriam a partir de cinturas justíssimas e corpetes armados com barbatanas. Um verdadeiro furacão capaz de sacudir e encantar as mulheres mais assustadas e traumatizadas com anos e anos de penúrias. Tanta novidade nessa retomada da elegância (Dior era fã confesso das modelagens e criações exuberantes do fim do século XIX, trazendo de volta alguns desses valores) que a coleção lançada em 1947 conseguiu arrancar da todo-poderosa e fascinada redatora da Harper’s Bazaar, Carmel Snow, a célebre frase: “This is a new look!”.

Durante décadas, o número 30 da Avenue Montaigne, em Paris, foi o prin-cipal reduto para norteamento da moda mundial, influenciando a estética femi-nina e os estilistas, mesmo após a morte de Dior, quando a marca passou a ter como diretores criativos nomes como Yves Saint Laurent, Marc Bohan e Gian-franco Ferré. Hoje, o templo está sob o comando do inquieto John Galliano, regi-do de perto pelos fortes pilares da Louis Vuitton Moët Henessy. Nesse endereço, o ateliê de alta-costura de Dior fora criado inicialmente com financiamento do magnata do algodão Marcel Boussac. Era a oportunidade para Dior, filho de um abastado comerciante de fertilizantes e que sonhava em ser artista plástico, dar vazão ao seu poderio criativo, contrariando de certa forma a vontade dos pais que o haviam mandado anos antes para Paris a fim de estudar relações interna-cionais. Após passagem nos ateliês de Robert Piguet e Pierre Balman, a sorte lhe caía no colo, graças à ótima impressão que o rapaz que antes vendia croquis de moda, havia causado em Boussac.

Essa arte de impressionar seguiu Dior durante toda sua carreira e, ironica-mente, é hoje a base da elegância deslocada e fluida: mais do que ser um exem-plo de moral e caráter irretocáveis, chamar a atenção por si só é o que conta. E em épocas como esta, na qual a incidência da luz, do vídeo, dos holofotes, é algo quase que como uma energia vital, não há espaço para a elegância original. Enquanto isso, as poucas pessoas de alma pueril e que buscam o bom gosto se confundem na multidão além desse pipocar de flashes. E são relegadas por não saber aproveitar a incidência da luz, por não gritar mais alto. São órfãs da elegância, buscando um novo Dior. Um outro meteoro quase impossível nos dias atuais.

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Há 50 anos morria Christian Dior que sabia que ser elegante é algo que não depende da incidência da luz

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odemos usar a divisão de Umberto Eco em apocalípticos e integrados, para classificar o comportamento das pessoas diante das mudanças sejam sociais, políticas, comportamentais e até lingüísticas . Apocalípticos seriam

os que não aceitam mudanças de qualquer tipo que abale opiniões cristalizadas e os Integrados seriam os que aceitam as mesmas, sem questioná-las: dois pólos opostos

Na Argentina, o jornal La Nación , publicou um editorial sobre a linguagem da internet, que se estendia ao uso da sigla em geral.O tom era apocalíptico. Dizia que a mutilação da palavra corta o vínculo com a experiência pas-sada e impede também a presente, condenando até a redução dos nomes próprios nos apelidos.( como Tião, Beto, Doca)Trazia , em favor de sua posição, as palavras do alemão Heidegger, também lastimando a redução de universida-de para uni, que perdia assim sua força e poder e transformava-se num termo inócuo. Como o editorialista argentino, são muitos os que não aceitam as mudançass, sobretudo em relação aos hábitos novos que nos traz a internet.

Contrariando as posições acima, sabemos que são inerentes à língua os processos de economia lingüística que resultaram em cine, pneu, foto, cd, quilo e você, entre outros.

O lingüista David Crystal, uma das maiores autoridades mundiais em linguagem ,recentemente entrevistado pela Veja, abordou em livro o fenômeno da linguagem da internet. Sua posição é diametralmente oposta, e como au-toridade suas posições são quase incontestáveis.Não diremos que seja integrado , pois suas posições provém de embasamento teórico somado à análise da realidade . Crystal estuda esta linguagem, sem lançar nenhuma sombra de preocupação sobre a permanência das palavras e seu significado, explorando sobretudo a idéia de que a internet é uma forma nova de comunicação que fez uma revolução na linguagem.

Argumenta que a comunicação mediada pelo computador tem características diferentes da fala, mesmo nos e-mails, porque não tem o retorno instantâneo do face-a–face. São mensagens completas, unidirecionais, sem a ajuda da entonação, nem da expressão facial, sendo muito mais lenta na troca de informações, do que a fala.

Porém, o que mais nos interessa é sua diferença em relação à escrita, pois é aí, na simplificação que acarreta, que residem as preocupações. Entre estas, é vista como primeira diferença , a estabilidade da escrita: o texto impresso é estático, enquanto uma página da web pode variar a cada busca. Quanto aos e-mails, a mobilidade de sua forma , a facilidade de modificá-los e/ou encaminhá-los a outro, as possíveis ligações com outros textos, (link) conduzem ao hipertexto.

Os possíveis erros de digitação também não levam a concluir, como na escrita convencional, que o emissor não sabe escrever. São produtos da pressa , logo deletados; são passageiros e voláteis. Os efeitos na língua desse novo meio são duplos: inicia uma mudança no caráter formal e possibilita maior utilização da escrita. São inúmeras abre-viações usadas ( tb.,vc., q.) e a falta de maíusculas e de acentos surpreende o falante de português. A ortografia fora do padrão, condenada na escrita convencional, é usada sem sanções em ambientes de conversa. Também o uso das figuras , os famosos emoticons, que completam 10 anos de criação, expressam a intenção do emissor , sem necessi-dade de palavras , modificando o tipo de texto , fazendo-o constituir-se outro gênero textual

A aparente falta de respeito pelos padrões da escrita está preocupando muitos , prevendo-se que as crianças não saberão escrever no futuro, pela quantidade de abreviações usadas.

O mundo da internet é ainda tão novo e desconhecido para nós como foi o Novo mundo para os europeus no século XVI; estamos apenas no começo de uma era que deverá se desdobrar em muitas mudanças. Quanto à lingua-gem , as abreviações sempre foram usadas na língua, sem terem interferido para dificultar a comunicação. O único cuidado a ter, é que essas novas abreviações sejam usadas apenas na comunicação via computador e não sejam adotadas na escola. A língua tem determinados registros que devem ser respeitados. Não levamos para uma ocasião formal a linguagem das ruas: é um fato intuído por qualquer falante.

Um vocabulário novo, que tem como fonte o inglês, também está entrando para as línguas de todo mundo através da internet,.Tomados como “empréstimos” por línguas diversas, nomeiam situações, operações e atividades restritas ao uso do computador (embora algumas já estejam entrando no domínio geral como formatar e deletar), tornando-se um dos mais criativos domínios lexicais das línguas contemporâneas.

A comunicação pelo computador (e-mail e chat) não usa uma linguagem cifrada, mas diferente, de acordo com o meio novo, recémcriado. É mais que um agregado de características da fala e da escrita e porque faz coisas que nenhum desses outros meios faz , tem que ser visto como uma nova forma de comunicação que gerou sua própria linguagem. Tem regras exclusivas e, sendo assim, não pode ser visto como uma escrita anárquica numa visão apoca-líptica. Este é um avanço tecnológico cujo alcance não podemos medir nem evitar.

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e como a internet fez da pressa sua linguagem Nelly Carvalho

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reage com sonora vaia, mas aí entra o homem de teatro, que domina as ar-tes cênicas. Destitu-ído do personagem Antonio Conselhei-ro, que nesse ponto da história já estava morto e enterrado, José Celso pega um microfone para sen-tenciar, no fundo do teatro: “É tar-de”. E sem precisar citá-lo, nos remete a Bertold Brecht.

José Celso Marti-nez Corrêa precisou de cinco espetácu-los para atualizar a história de Canudos. Ao final, não apon-tou sequer uma luz no fim do túnel so-bre o futuro desse País.

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um país onde o presidente da Re-pública garante que os usineiros

nordestinos são “heróis”, subvertendo a história e negando as conseqüências, a interpretação de “Os sertões”, de Eu-clides da Cunha, pelo diretor José Celso Martinez Corrêa, pode ser considerada como a mais instigante, corrosiva e pro-vocativa de todos os tempos.

Afinal, aponta José Celso, do Teatro Oficina de São Paulo, aquele “coro do cri-me organizado” que encerra a primeira parte da saga – a peça tem ao todo mais de 26 horas de duração –, é o mesmo que aparece nos últimos momentos de “Os sertões”, cinco dias depois. O ouro roubado dos índios pelos Bandeirantes paulistas, no segundo dia, transformou-se, no mesmo saco de couro, na cocaína entregue por um adolescente portando um fuzil AR-15 a um grupo de militares e representantes do poder econômico da República, que celebrava o extermí-nio de Canudos e a morte de Antonio Conselheiro.

Como Euclides da Cunha foi discreto ao tratar da vida privada de Canudos, o Teatro Oficina recriou o ambiente que, na época, era tido pelo governo baiano como sendo uma comunidade libertária, sem propriedades e com valores religio-sos acima dos políticos. E essa comuni-dade tinha, na época, 30 mil habitantes e 6.500 casas, enquanto Salvador, a ca-pital, na mesma época, somava 200 mil habitantes e o Recife, 110 mil pessoas.

A situação privilegiada de Canudos transforma-se, então, em farto material dramático para a recriação coletiva do Oficina sobre o extermínio da cidade. Afinal, a terra de Antonio Conselheiro

tinha lá sua maneira peculiar de ser: não havia leis, repressão e porteiras. Lugar assim atraiu a força de trabalho da região, mexeu com os latifúndios baianos e provocou a ira da Igreja Católica. Padres e bispos exigiam represálias da República alegando que, em Canudos, impera-va um cisma religioso.

Nesse momento, José Celso defende com vigor o Conselheiro: “Não sou esse homem”, grita ele, já no papel do beato, uma figura que, no Nordeste, nunca foi vista como primitiva ou negativa, como queria ver a ainda jovem Re-pública brasileira. “Não sou Ecce Homo”, pro-clama Martinez Corrêa a uma platéia atônita, empurrando o espectador de encontro a Frie-drich Nietzsche.

José Celso começa a armar, então, a des-truição da cidade. Canudos incomodava tanto a República que a solução seria destruir a co-munidade com expedições militares. E a guerra durou um ano, de outubro de 1896 a outubro

de 1897. E foram três expedições policiais, todas repelidas pelos jagunços; e outras quatro com a presença do Exército, com militares experientes da Guerra do Paraguai. Uma elite que pertencia a um Exército em formação vindo para o Nordeste para com-bater jagunços.

Na última tentativa de destruição, cinco meses de batalhas sucessivas. Foi quando o único açude que abastecia a cidade foi enve-nenado pelas tropas, que sofriam constan-tes baixas e humilhações dos jagunços. José Celso, novamente, remete a platéia para os anos 60, logo após o golpe militar. Ele cobre o palco com imensos panos transparentes azulados: a inundação do Lago de Sobradi-nho. Água sobre a região de Canudos: era necessário ir além do extermínio, a Repú-blica precisava, um dia, apagar também os vestígios arqueológicos do massacre, diz o diretor.

Com a chegada dos militares, José Celso passa a comandar também as reações da platéia. Num jogo sucessivo, aplicado nos cinco dias da peça, ele exaure o espectador com texto sóbrio e corrido, mesclando ima-gens fortes e efeitos inesperados, e ofere-cendo em seguida momentos de diversão e humor, sem sair do roteiro original.

É quando José Celso consegue levar parte da platéia a aplaudir com entusias-mo, incentivada pelos atores, a chegada do coronel Moreira César, à frente da quarta e última expedição militar. Num jogo de pala-vras, o diretor usa o Ave, César!, saudação aos imperadores romanos, como sendo uma saudação nazista, o que não é percebido de pronto pela platéia, imersa num jogo de au-ditório de televisão.

Quando o extermínio começa, com imensas metralhadoras invadindo o teatro e o palco coberto de sangue, parte da platéia

O Brasil em 26 horasPaulo Sérgio Scarpa

Peça “Os sertões” enfoca história brasileirasem a esperada luz no fim do túnel

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uma época em que se fala tanto em patrimônio imaterial, conceito tão em voga quanto as discussões sobre autoria e identidade, qual o valor da mate-rialidade para a consolidação da personalidade ou do legado de um artista? A expressão do talento estaria resguardada no interior das paredes de uma

casa? Será que a energia do ambiente é capaz de chamar a atenção para a obra do autor? São questões que se levantam quando um artista parte (ou antes mesmo disso) e deixa atrás de si um ambiente físico capaz de evocar sensações em quem o visita, de familiaridade, conforto, reverência ou estranhamento. Todos sentimentos que, afinal, resvalam na curiosidade e podem abrir precedentes para a divulgação e manutenção da memória do artista em questão.

No caso específico dos escritores, há em Pernambuco um enorme potencial para que os espaços onde passaram parte da vida sejam explorados como ponto de partida para um mergulho na sua produção intelectual. Seria o caso da materialidade invocar a imaterialidade e provocar sua permanência. Gilberto Freyre, Hermilo Borba Filho, Osman Lins, Clarice Lispector e Manuel Bandeira são apenas alguns exemplos de autores cujo patrimônio material, ocupado em algum momento ou deixado por eles aos seus, chegou a ser transformado em local de visitação ou pesquisa. Alguns deles têm uma vida intensa e rica, caso da Fundação Gilberto Freyre e do Espaço Pasárgada. Outros estão em compasso de espera ou não têm projetos do gênero dedicado a eles, como a casa onde viveu Clarice Lispector, no centro do Recife.

A Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe mantém o Espaço Pasárgada e possui uma gerência de patrimônio que analisa pedidos de tombamentos. Segundo Guilherme Almeida, assessor da presidência, não há, no entanto, uma ação específica relativa ao legado ma-terial dos escritores pernambucanos. “Não é que não estejam previstas iniciativas para a área de literatura, mas é que, desde que a atual gestão assumiu, a Fundarpe estruturou suas políticas culturais baseada em diretrizes que privilegiam a inclusão social, a universalização do acesso, a multiculturalidade e a interiorização das ações. Não há orçamento fixo para nenhuma das coordenadorias, mas sim projetos que, caso façam parte das orientações atuais de gestão da instituição, poderão ser contemplados”, explica. Atualmente, está em andamento o projeto “Tombamentos Temáticos”, que tem foco na malha ferroviária estadual. Uma reprodução da proposta na área de literatura não está descartada. “A questão é que muitos desses imóveis já não podem ser tombados por causa de várias mudanças que já foram feitas em suas estruturas arquitetônicas. Outros pertencem às famílias e o Estado não pode interferir diretamente, a não ser que a iniciativa parta dos próprios familiares”, diz Guilherme.

A Fundação Gilberto Freyre, que funciona num casarão onde o escritor viveu durante 40 anos, em Apipucos, é um exemplo de instituição que alia a iniciativa familiar com uma gestão independente e eficiente. Patrícia de Sá, superintendente de administração do local, afirma que o valor de custeio da Fundação é de aproximadamente 30 mil reais por mês, verba proveniente de recursos próprios, gerados a partir dos direitos autorais da obra de Freyre, e também de convênios firmados com a Prefeitura do Recife, Governo do Estado e Governo Federal. A Fundação também elabora freqüentemente projetos que são inscritos nas leis de incentivo à cultura e ajudam a levar vida à instituição. “Apesar da atual Presidente ser filha de Gilberto Freyre, as decisões são tomadas coletivamente, por um conselho”, enfatiza Patrícia. Atualmente, não se sabe exatamente qual é o valor do imóvel, que data do século XIX, e do terreno que circunda a casa. Segundo a superintendente, a última avaliação foi feita há cerca de 20 anos, e está em estudo a contratação de uma empresa para atualizá-la. De qualquer maneira, o local mantém-se conservado e com diversas atividades em funcionamento, o que possibilita ininterruptas pesqui-sas e debates em torno da obra de Freyre.

O Espaço Pasárgada, localizado na famosa rua da União de Manoel Bandeira, mantém na casa onde morou o escritor uma exposição permanente sobre ele. Neste caso, o poder público – o espaço é vinculado diretamente à Fundarpe - tomou para si a administração e gestão do local, que fica aberto à visitação de segunda à sexta, das 8h às 17h. Outras casas e outros autores não tiveram a mesma sorte, e ainda lutam para conseguir mais apoio. A casa de cultura Osman Lins, que já não existe mais, por exemplo, foi criada por Humberto Lins, irmão do escritor, quando era presidente da Câmara Municipal de Vitória, mas nunca chegou a receber muita atenção das autoridades. Já o Engenho Verde, em Palmares, onde nasceu Hermilo Borba Filho, foi transfor-mado em pousada e restaurante, e segundo informações da assessoria de imprensa da Prefeitura, não pertence mais à família. Na casa onde viveu Clarice Lispector há apenas uma placa registrando o fato na fachada. Até onde a reportagem apurou, não há um projeto oficial que contemple o imóvel, localizado na rua da Imperatriz, centro do Recife.

O fato é que falar em “patrimônio dos escritores” soa até estranho, já que a maioria deles não deixou muitos bens e são poucas as famílias que pre-servaram essa memória material em Pernambuco. Em várias cidades do mundo, como na Granada de García Lorca, na Espanha, e na Lisboa de Fernando Pessoa, em Portugal, é comum a utilização do espaço físico ocupado pelos autores durante a vida como atração turística e cultural, o que garante perma-nente interesse na obra deles, ainda que alguém possa discutir que tipo de interesse se gera a partir deste contato fortuito. Como em tudo na vida, porém, é preciso dar os primeiros passos para despertar um gosto legítimo. Talvez seja necessário unir forças - família, autoridades e sociedade – para estabelecer a preservação da memória como um hábito em nosso Estado. Uma coisa é certa – não dá para apreciar sem provar. E a gente prova é de colherzinha.

NMarcella Sampaio

Qual a importância conferida à materialidade para a preservação do legado de um escritor para o futuro?

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istante do humorismo acentuado de”Lisbela e o prisioneiro” (1964), o escritor vitoriense Osman Lins discorre no romance “A rainha dos cárceres da Grécia” (1976) acerca de um dos flagelos que afligem a sociedade brasileira: a perda da memória coletiva.

Problemática, esta, a qual também amargurava o escritor. Através dos seus romances, dramaturgias, contos, novelas, artigos e ensaios Osman Lins partia em busca de um modo de não ser esquecido, refletindo, em cada produção, sobre a função do escritor no meio social.

Em Vitória de Santo Antão (PE), Osman Lins cede o seu nome a uma IES, rua e um centro cultural. Contudo, acreditamos que o escritor não almejava o reconhecimento por esse intermédio, e, sim, pela leitura e pelo conhecimento da sua obra, uma vez que as informações a respeito da sua vida não encerram a importância da sua contribuição à literatura.

Entretanto, na escrita osmaniana Vitória de Santo Antão aboliu a condição de cidade física, distante a 50 quilômetros da capital pernambucana, localizada na zona da mata, passando à categoria de morada de diversos personagens: o antigo ginásio e o Colégio das Damas (“O visitante”); a Rua do Barateiro (“O fiel e a pedra”); o bairro do Cajá e a cadeia de Vitória (“Lisbela e o prisioneiro”); o pátio da Matriz (“O pentágono de Hahn”).

Através da literatura, Osman Lins não permitia o esquecimento da sua origem e, por conseguinte, das recordações da sua infância, marcada pela morte da sua mãe, Maria da Paz. Em decorrência do parto, ela faleceu 16 dias após o nascimento de Osman e não deixou registro fotográfico, levando o escritor a imaginar as feições da sua mãe a partir das informações descritas pelos parentes. Fato, este, que marcou profundamente a vida do escritor e surge nos romance “O fiel e pedra” e “Avalovara”; na peça “O mistério das figuras de barro”; na narrativa “Perdidos e achados” (“Nove, novena”). Em entrevistas, ele disse que corria atrás do que havia perdido sem nunca ter tido: o rosto da sua mãe.

Assim como Vitória, a casa do escritor passa a ser eternizada por meio da sua escrita, seja pela descrição física, seja pelas histórias de viagem contadas pelo seu tio Antônio Figueiredo, o qual surge nos personagens Bernardo (“O fiel e a pedra”), o Tesoureiro (“Ava-lovara”) e Dudu (“A rainha dos cárceres da Grécia”). Além deste, outros parentes do escritor são referenciados em sua produção. A sua avó Joana Carolina empresta seu nome à protagonista da narrativa “Retábulo de Santa Joana Carolina” (“Nove, novena”); sua tia Lau-ra (esposa de Antônio Figueiredo) surge em diversas personagens femininas, como Teresa (“O fiel e a pedra”) e Cecília (“Avalovara”).

A casa onde o escritor nasceu e viveu até o fim da adolescência, localizada na Rua Escritor Osman Lins(!) (antiga rua do Rosário), no bairro da Matriz, serve de ambientação ao conto “A partida”, texto integrante do livro “Os gestos”, no qual o narrador-personagem descreve os últimos instantes na casa da avó e na sua cidade, uma vez que a sua alma aspirava outros ares. Narrativa, esta, que ilustra as últimas vivências de Osman na casa da avó, Joana Carolina, que o criou.

Atualmente, a moradia do escritor reside apenas na sua escrita. A casa de Osman Lins foi demolida e, com ela, o referencial ma-terial da vida do escritor e da residência de algumas das suas personagens.

Diferentemente da moradia de Manuel Bandeira, a casa de Osman Lins não foi tombada pela prefeitura. Ao invés de ser um centro cultural em prol da memória do escritor, a casa foi habitada por diversas famílias, que, a cada reforma interna e externa, descaracteri-zava as lembranças de Osman. Motivo, este, que levou as filhas do escritor a permitirem a demolição. Apenas uma placa, posta pela gestão de Joaquim Francisco, em 1993, localizada na fachada da casa, indicava a residência onde Lins nasceu. A leitura do letreiro era inviável, uma vez que a pintura que revestia as letras estava descascada.

Diante disso, quando comemoramos o aniversário (05/07/1924) e lamentamos a falência (08/07/1978) de Osman Lins, somos levados a refletir sobre o embate entre a busca incessante do escritor pela preservação da memória coletiva e a destruição da sua me-mória individual. A casa de Osman Lins apenas existirá nas fotografias e na sua escrita, sendo, estas, as únicas fontes de conservação das suas reminiscências.

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omentários boca-a-boca sobre filmes brasileiros, antes de estrearem, é algo raro. “Tropa de elite” (Brasil, 2007) se transformou em exceção à regra porque vazou, em camelôs e na Internet, três

meses antes de ser lançado nos cinemas. E virou coqueluche. Exibido até em quartéis, festas e acade-mias de ginástica, o longa-metragem se transformou em sucesso monumental antes de vender um só ingresso. Com tal publicidade gratuita, alcançou uma unanimidade rara: todo mundo que viu o filme o cobriu de elogios, em resenhas amadoras espalhadas por blogs ou simplesmente comentando com vizinhos, amigos e colegas. A verdade é que “Tropa de elite” é um filme superior, sim, porque consegue a proeza de casar com perfeição um senso imbatível de entretenimento com olhar crítico lançado à elite social brasileira.

É difícil resistir à tentação de traçar um paralelo do trabalho de José Padilha com “Cidade de Deus” (2002), filme brasileiro de maior repercussão internacional desde os áureos tempos de Glauber Rocha. Há inúmeros pontos de contato entre os dois longas, a começar pela equipe: Bráulio Mantovani (roteiro), Daniel Rezende (montagem), Fátima Toledo (preparação de atores), Tulé Peak (design de produção) e Lula Carvalho (fotografia) trabalharam nos dois filmes, que dividem ainda a mesma localização geográfi-ca: os subúrbios do Rio de Janeiro, vistos como zona de guerrilha urbana onde a criminalidade rola solta e sem controle. É possível afirmar com segurança que “Tropa de elite” é o filme que os órfãos de “Cidade de Deus” esperavam há anos, e tem tudo para fazer uma triunfante carreira internacional.

Também em “Tropa de elite” a narrativa é estilhaçada, não-cronológica, pois acompanha três dife-rentes personagens seguindo rotas convergentes. No processo, oferece um panorama amplo da questão da criminalidade carioca. A narração em off, bastante tagarela e cheia de humor ferino (com frases que soam como slogans publicitários), remete diretamente ao filme de Fernando Meirelles. Como se não fosse o bastante, há ainda a excelente montagem, assinada pelo mesmo Daniel Rezende que recebeu indicação ao Oscar por “Cidade de Deus”. O trabalho de edição é genial (a abertura, empolgante, soa similar à de “Vamos nessa”, de Doug Liman), pois costura as três histórias em uma narrativa coesa, vi-brante, dinâmica, que jamais perde o ritmo ou a intensidade feroz.

Nos momentos mais ágeis, Rezende e o fotógrafo Lula Carvalho garantem que “Tropa de elite” esteja em sintonia com o que de mais moderno é feito nos filmes de aventura norte-americanos, abusando de técnicas documentais popularizadas em Hollywood pelo inglês Paul Greengrass. Nas seqüências mais frenéticas, a câmera é operada manualmente e colocada estrategicamente no meio da ação, como se estivesse sendo manuseada por participantes de tiroteios, que abusam dos chicotes (movimentos laterais rapidíssimos e improvisados) e do uso intenso do zoom. Tudo isso faz o filme funcionar com eficiência tanto para o adolescente desejoso de ação desenfreada quanto para o adulto com consciência social.

Há, porém, uma diferença crucial entre “Tropa de elite” e “Cidade de Deus”: o ponto de vista. No filme de Meirelles, que mostrava um subúrbio fechado em si mesmo, os narradores eram traficantes que viam o quadro completo de posições levemente diferentes. Padilha resolve melhor a questão da interpenetração de classes sociais, mostrando um namoro inter-racial de menina branca rica com jovem negro humilde, mas enfoca o problema da criminalidade com olho de policial. Os personagens do filme, que tomou dois anos da vida do diretor, foram construídos com base em conversas com uma dúzia de policiais militares, que lhe narraram casos vividos no cotidiano da corporação.

O narrador é o capitão Nascimento (Wagner Moura), oficial de um minúsculo esquadrão da Polícia Militar do Rio, chamado Batalhão de Operações Especiais. Trata-se de uma força de 150 homens treina-dos em táticas de guerrilha urbana. Eles são chamados para resolver os casos de que a polícia normal não dá conta. Nascimento adora o que faz, e odeia com todas as forças tanto policiais corruptos quanto traficantes, mas já está há cinco anos na tropa e quer sair, para poder passar mais tempo com o filho que está por nascer. Para isso, ele precisa encontrar um substituto tão capaz quanto ele. Os candidatos mais fortes são os aspirantes a oficial Neto (Caio Junqueira) e Matias (André Ramiro), dois rapazes honestos, ingênuos e recém-integrados à Polícia Militar.

Uma das maiores qualidades do longa – a performance espetacular de todo o numeroso elenco – é responsável direta pela atmosfera de urgência e intensidade da vida dentro do Bope, uma atmosfera que “Tropa de elite” captura com absoluta perfeição. Preparados pela mesma Fátima Toledo que ensaiou à exaustão o elenco amador de “Cidade de Deus”, os atores de José Padilha oferecem um desempenho coletivamente homogêneo, e sensacional. Apontar destaques é bem difícil, porque Caio Junqueira e André Matias, como os dois aspirantes, estão muito bem, assim como todo o núcleo burguês do filme (Fernanda Machado, Fernanda de Freitas, André Felipe). Entre os coadjuvantes, porém, se destaca o extraordinário Milhem Cortaz, responsável por grande parte do humor involuntário do filme, na pele de Fábio, um capitão corrupto cujo esquema de propina montado dentro de um quartel entra em choque com outro esquema, organizado pelo comandante.

Mesmo reunindo tantos bons atores, “Tropa de elite” pertence a Wagner Moura. Um dos maiores atores de sua geração, o baiano possui um estilo visceral e energético (vide “Cidade Baixa”, de Sérgio Machado). O talento de Moura fica evidente nas seqüências que mostram a vida familiar de Nascimento: embora amoroso e apaixonado pela esposa, ele nunca consegue. Moura passa com perfeição o misto de medo e excitação que o impele a agir sempre com violência extrema. A cena em que o grupo que ele lidera invade uma favela e encontra um universitário comprando maconha (“Quem matou ele foi você!”) é, desde já, um dos momentos de maior intensidade emocional do cinema brasileiro em 2007. Uma atuação digna de Oscar.

Aliás, a defesa incondicional de uma polícia violenta acabou por gerar acusações de que o filme seria “de direita”. O retrato simplista que Padilha desenha da classe média carioca, infelizmente, confirma esta observação. Todos os personagens burgueses do longa-metragem, sem exceção, são alienados, fracos, medrosos, maconheiros. Já os traficantes aparecem como vilões desalmados, que descem a mão pesada sobre os inocentes do morro sempre que ameaçados, e sentem prazer em aparecer para dançar em bai-les funk segurando enormes fuzis importados. O retrato social pintado pelo filme elimina a complexidade das relações entre classe média e periferia.

Depois de conquistar tantos predicados técnicos e narrativos, contudo, este problema não chega a empatar o enorme prazer de ver um filme extremamente bem dirigido, editado e interpretado. Como se não fosse o bastante, “Tropa de elite” também exibe uma edição de som primorosa, tanto nas cenas de ação quanto nos diálogos, repletos de frases sobrepostas. Os atores falam como se fala na vida real, com frases mal formuladas, cortadas pela metade, gírias a dar com o pau. O resultado, sem dúvida, é um raro longa-metragem que, como “Cidade de Deus”, entretém na mesma medida em que faz pensar.

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Entre a ação e a consciência social

Rodrigo Carreiro

Com sucesso assegurado pela pirataria, Tropa de Elite é o cinemabrasileiro apontando novamente quem são os mocinhos e bandidos

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m 1968, o lendário grupo nova-iorquino Velvet Underground lançou seu segundo álbum, o mais extremo, mais ruidoso, mais obsceno, mais tosco e mais livre até

então, “White light/white heat”. O encerramento do lado B tornaria-se seu momento definitivo: os 17 minutos de “Sister ray”, uma “canção” que abordava todos os temas preferidos do guitarrista e vocalista Lou Reed – homossexualismo, assassinato, abuso de drogas, travestis, orgias. A música gira em torno de apenas três acordes e improvisos executados por duas guitarras desafinadas e saturadas, um órgão distorcido e sujo e percussão, gravados num só take. A lenda diz que o engenheiro de som da sessão de gravação não agüentou até o final e pediu para que a banda o chamasse quando a música tivesse acabado (“eu não tenho que ouvir isso. Vou colocar para gravar e sair daqui. Quando acabar, venham me buscar”, teria dito). Ele pode até não ter gostado, mas vários artistas foram influenciados pelo caos sônico de “Sister ray”, e fizeram ver-sões ou referências à música nos anos seguintes.

Um, dois, três, quatro, cinco, seis, e lá está a mesma levada, os mesmos acordes, o mesmo órgão vagabundo. Mas há algo diferente. Ao invés da violência, das drogas, do sexo, o jovem Jonathan Richman está cantando o prazer de sair dirigindo pelas estra-das de Massachusets com o rádio ligado quando está se sentindo só. O ano era 1976 e a canção, “Roadrunner”, que abre o álbum de estréia do Modern Lovers, relançado agora pelo selo Sanctuary. A semelhança não é por acaso. Não bastasse Richman ser fanático pelo Velvet Underground, a faixa foi produzida por John Cale, ex-baixista e te-cladista da banda. Mas “Roadrunner” é ao mesmo tempo uma referência explícita e um rompimento sutil com o universo e a atitude do Velvet Underground. O Modern Lovers parece ter sido o primeiro de uma série de grupos de rapazes bonzinhos, brancos, he-terossexuais e caretas que, nas últimas décadas, brilhantemente souberam se apropriar da estética sônica da seminal banda de Nova York sem necessariamente compartilhar dos mesmos temas e do mesmo estilo de vida decadente.

“Roadrunner” é considerada uma das faixas seminais do rock, tendo sido inclusive in-cluída na lista das 500 melhores canções de todos os tempos que a revista Rolling Stone elaborou em 2004. Mas o que faz dela uma canção tão marcante é difícil explicar. Sobre ela, o crítico de rock Greil Marcus disse: “é a canção mais óbvia do mundo, e também a

mais estranha”. Acredito que o segredo dela está justamente em sua simplicidade e sin-ceridade. Eu mesmo nunca estive em Massachusets, não conheço os lugares citados na letra, mas acho que eles são meros detalhes: o fundamental aqui é aquele sentimento, que tem um pouco de tédio e um pouco de inquietude adolescente, de simplesmente entrar no carro, pisar no acelerador, ligar o som no máximo e sair sem rumo – que Richman conseguiu traduzir tão fielmente em forma de palavras e sons. Mas ela tem também um quê de auto-ironia, como se reconhecesse quão idiota e transitório é esse sentimento, e é esse ponto que talvez causasse o estranhamento de Marcus. “Roadrun-ner” não me parece ser uma canção sobre estar triste ou feliz, mas simplesmente sobre estar vivo. É isso que me faz escrever sobre ela tantos anos depois.

Particularmente, acho que uma canção como esta faria qualquer álbum valer a pena, mas a estréia do Modern Lovers vai muito além disso. Do começo ao fim, todas as faixas são brilhantes. Têm sempre uma tirada genial, uma melodia marcante ou um solo de guitarra que, de tão estúpido, não sai da cabeça. Como em “Pablo Picasso”, em que, sob um ostinato de duas notas, Richman destila toda a sua ironia: “Alguns caras tentam pegar as garotas/e são chamados de babacas/isso nunca aconteceu a Pablo Picasso/ele podia andar por aí/e as garotas não resistiam ao seu olhar/Pablo Picasso nunca foi chamado de babaca/não como você”. Ou na hilária “I’m straight”, que eu traduziria como “Estou de cara”, onde Richman se oferece para substituir o hippie Johnny: “Ele está chapado/mas eu estou de cara/e quero tomar o lugar dele/mas veja bem, eu também gosto dele”. Richman parece estar sempre ironizando o cânone das drogas associadas ao rock, como em “She cracked”, que eu traduzo como “Ela fritou”: “eEa fritou, mas eu não/ela fez coisas que eu não faço/ela come lixo, come cocô, fica chapada/eu fico só, como comida saudável em casa”. Tem ainda “Modern world”, em que o galanteador Richman tenta conquistar uma moça de óculos de aro grosso: “O mundo moderno não é tão ruim/não como os estu-dantes dizem/de fato eu estaria no céu/se você dividisse o mundo moderno comigo”. A galhofa do Modern Lovers transformou toda a mitologia em torno do tripé sexo-drogas-rock’n’roll numa grande piada. Pobre Richman, não conseguia largar do disco do Velvet Underground, mas tudo que ele queria é uma garota que se importasse com ele, com quem ele pudesse passear de carro pelos subúrbios de Boston. Ou isso, ou nada.

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Haymone Neto

Reedição do Modern Lovers desafia o status junkie do rock’n’roll com uma ode ao lado careta de ser

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he poet, musician, translator and São Paulo philosopher Alberto Mar-sicano are disclosing to the country, at this moment, the fruits of some years of work, with a series of launchings that put in evidence, in Por-tuguese language, the art - practically inaccessible until the moment - of the main names of the English romantic poetry of century 19. To all, are four workmanships of poetries translated, published for diffe-rent na- tional publishing companies, of authors of naipe of William B l a k e , Percy Bysshe Shelley, John Keats and William Wordsworth. As Marsicano - also considered the introducer of cítara in Brazil - the next one in the list will be Lord Byron.

The books are, more of the one than never, well come, and fill impor-tant gaps. The Brazilian publishing market has much time was taken offense almost at the inexistence of good translations of the romantic English. To have an idea, the first translation of Blake here in Brazil, she had been made for the proper Marsicano, the L&PM publishing com-pany, in 1984 and was depleted has some years. Now, a new edition of the workmanship, made together with John Milton - homonym of ano-ther famous English poet, but, this, professor of Literature and Trans-lation of the USP - finishes to leave for the same publishing company. “the Marriage of the Sky and the Hell and Other Writings”, congregate all the poems of the book homonym and several others of the visionary poet Blake and can be considered a historical translation. Some months after its launching, in the decade of 1980, left another translation Blake, made for Pablo Vizioli. In the occasion, the periodical Leaf of São Paulo published an article of the critic Nelson Ascher side by side placing the two translations and praising, but making the exception of that while Vizioli university professor (also of the USP) passes 15 years to translate some poems of Blake, then the initial Marsicano translates “almost all the workmanship of Blake” in six months.

Another translation of Alberto Marsicano, of the romantic poet English John Keats, also already is available in the bookstores. “In the Invisible Wings of the Poetry”, for the Ed. Iluminuras, it congregates basic po-ems in the workmanship of Keats, as “Ode to one rouxinol” and “Ode on a ballot box Greek”, died of tuberculosis to the 26 years and consi-dered by many as the main English romantic poet. The third translated book, of this time, of Shelley, will go to leave in the end of the year, for the Disal publishing company and only is treated, according to proper Marsicano, of the first complete translation of this poet in Portuguese language. After some research in Lisbon, the translator discovered that not even in Portugal he had a book with shed poems of Shelley for the Portuguese. “I made many innumerable searches in great bookstores and tallows and the surprise biggest is that the only book with the Shelley last name that I found was of the wife of the poet, Mary Shel-ley, creator of the gótico romance Frankenstein”, assevera Marsicano. Shelley, rejected at its time for the libertarian ideas and humanists that defended, also was another romantic poet to die young, endorsing es-tereótipo of the figure delinquent of the romantic artists. But the fact is that it faleceu in a nautical accident, during a storm, to the 29 years,

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Lançamentos preenchem nas livrarias brasileirasa lacuna de boas traduções dos românticos ingleses

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poeta, músico, tradutor e filósofo paulista Alberto Marsicano está revelando ao país, neste momento, os frutos de vários anos de trabalho, com uma série de lançamentos que põem em evidência, em língua portuguesa, a arte – praticamente

inacessível até o momento – dos principais nomes da poesia romântica inglesa do século 19. Ao todo, são quatro obras de poesias traduzidas, publicadas por diferentes editoras nacionais, de autores do naipe de William Blake, Percy Bysshe Shelley, John Keats e William Wordsworth. Segundo Marsicano – também considerado o introdutor da cítara no Brasil – o próximo na lista será Lord Byron.

Os livros são, mais do que nunca, bem vindos, e preenchem importantes lacunas. Há muito tempo o mercado editorial brasileiro ressentia-se da quase inexistência de boas traduções dos românticos ingleses. Para se ter uma idéia, a primeira tradução de Blake aqui no Brasil, havia sido feita pelo próprio Marsicano, pela editora L&PM, em 1984 e estava esgotada há vários anos. Agora, uma nova edição da obra, feita juntamente com John Milton – homônimo de outro poeta inglês famoso, mas, este, professor de Literatura e Tradução da USP – acaba de sair pela mesma editora. “O Casamento do céu e do inferno e outros escritos” reúne todos os poemas do livro homônimo e de vários outros do poeta visionário Blake e pode ser considera-da uma tradução histórica. Alguns meses após o seu lançamento, na década de 1980, saiu outra tradução de Blake, feita por Paulo Vizioli. Na ocasião, o jornal Folha de São Paulo publicou um artigo do crítico Nelson Ascher colocando as duas traduções lado a lado e as elogiando, mas fazendo a ressalva de que enquanto o catedrático Vizioli (também da USP) passara 15 anos para traduzir alguns poemas de Blake, o então estreante Marsicano traduzira “quase toda a obra de Blake” em seis meses.

Outra tradução de Alberto Marsicano, do poeta romântico inglês John Keats, também já está disponível nas livrarias. “Nas invisíveis asas da poesia”, pela Ed. Iluminuras, reúne poemas fundamentais na obra de Keats, como “Ode a um rouxinol” e “Ode sobre uma urna grega”, morto de tuberculose aos 26 anos e considerado por muitos como o principal poeta romântico inglês.

O terceiro livro traduzido, desta vez, de Shelley, só irá sair no final do ano, pela editora Disal e trata-se, segundo o próprio Marsicano, da primeira tradução completa deste poeta em língua portuguesa. Após várias pesquisas em Lisboa, o tradutor descobriu que nem mesmo em Portugal havia um livro com poemas de Shelley vertidos para o português. “Fiz muitas buscas em inúmeras grandes livrarias e sebos e a surpresa maior é que o único livro com o sobrenome Shelley que encontrei foi o

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da esposa do poeta, Mary Shelley, criadora do romance gótico Frankenstein”, assevera Marsicano. Shelley, desprezado em sua época pelas idéias libertárias e humanistas que defendia, também foi outro poeta romântico a morrer jovem, endossando o estereótipo da figura marginal dos artistas românticos. Mas o fato é que faleceu num acidente náutico, durante uma tempes-tade, aos 29 anos, na Itália.

Já Wordsworth, que é praticamente desconhecido no Brasil, mas considerado na Inglaterra como o terceiro maior poeta de língua inglesa (atrás somente de Shakespeare e Milton), está ganhando agora uma rica edição de poemas, pela Ateliê Edi-torial, também assinada pela dupla Marsicano/John Milton. Intitulado “O Olho imóvel pela força da harmonia”, o livro pode ser considerado o único no Brasil a divulgar a obra de Wordsworth, considerado o pai do romantismo inglês e, por tabela, um dos autores que mais influenciaram a lírica européia posterior. Antes da nova tradução, existia uma pequena edição que reunia poemas traduzidos por Paulo Vizioli, publicada por uma editora pequena e esgotada há vários anos. “Com a morte do Vizioli, não conseguimos localizá-la nem mesmo na Biblioteca da USP, onde lecionava”, revela Marsicano. A tradução oferece virtuosismo técnico, sendo respeitadas as assonâncias, rimas internas, entre outros recursos utilizados por Wordsworth, cuja poesia, profundamente inspirada na natureza, influenciou nomes como Baudelaire, Rimbaud e Fernando Pessoa. “Baudelai-re, quando soube de sua morte, ficou uma semana de luto”, afirma Marsicano. “Várias passagens das ‘Flores do mal’ foram influenciadas por Wordsworth e Coleridge; por exemplo, a temática do albatroz, caído no tombadilho do navio, do famoso poema de Baudelaire, já estava presente na ‘Canção do velho marinheiro’ de Colleridge/Wordsworth. ‘Le Assis’ (‘Os sentados’, de Rimbaud, é a versão francesa de ‘Virando a mesa’, de Wordsworth. E como afirmamos no prefácio ao livro, Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, é o ‘Wordsworth em português’. A temática da sabedoria da natureza, onde encontrar-se-ia a verdadeira metafísica, é praticamente idêntica. Caeiro parece Wordsworth recebido mediunicamente por Pessoa, grafado em português”, completa o tradutor.

O fato é que estes novos lançamentos quebram um pouco uma tradição oriunda desde o século 19 no Brasil, quando era relativamente pequena a circulação de poetas ingleses, em comparação aos franceses. Excetuando-se Lord Byron, o rebelde poeta inglês recriado pela geração ultra-romântica brasileira, que possui dezenas de grandes traduções rimadas e perfeitas em português, os demais poetas do romantismo britânico permaneciam, até agora, acessíveis apenas aos iniciados.

André de Sena

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rincar no balanço, numa manhã de um dia comum, em ple-na praça pública, não deve fazer parte da rotina de muita

gente grande. Durante a ação artística “Balançadores”, fez. O ar-tista cearense Nivardo Victoriano colocou sete balanços espalha-dos pelas árvores da Praça Joaquim Nabuco, em frente ao Restau-rante Leite, e eles lá ficaram, até o final do SPA das Artes (evento de artes visuais que aconteceu no Recife, de 16 a 30 de setembro). Os pedaços de madeira retangular usados como assentos traziam poemas de Manoel Bandeira que falavam sobre dor. A beleza li-teral das palavras combinou com a beleza estética dos desenhos, resultado da maneira como o artista pintou os versos. E aqueles balanços, disponíveis para todos (entre freqüentadores da praça, taxistas, pessoas que trabalham em locais próximos e passantes), significavam ainda um convite à percepção de que bastam coisas simples para aliviar a rotina, ou mesmo a dor, e tornar diferente um dia comum.

Incomum foi também a noite desse mesmo dia, em outra pra-ça, a da Independência (mais conhecida como Praça do Diário), onde foi instalado um telão gigante, que exibia o rosto daqueles que se habilitassem a vender três minutos de sua solidão por três reais. Tratava-se do vídeo-intervenção “Solidão pública”, do artista pernambucano Daniel Aragão.

Mas não foi bem melancolia o que sentiram, ao menos de início, as pessoas que se enfileiraram em frente à estrutura de lona armada para abrigar o artista, a câmera e um vendedor da solidão por vez. Bastava surgir no telão a imagem de quem quer que fosse para começar o levante de vozes, sempre enaltecendo, em tom de zombaria, características físicas dos que vendiam sua solidão. Não dava para não exibir um sorriso encabulado, ou se defender fazendo caretas, mandando beijos, entre outros gestos mais ousados. Algum tempo depois, durante aqueles infindáveis três minutos, as pessoas pareciam conseguir ficar concentradas e esquecerem onde estavam, como se não houvesse ninguém lá fora. E seus rostos pareciam mostrar que, de repente, tinham se dado conta de que estão realmente sozinhas.

Em “Throw”, dos artistas Maurício Dias e Walter Riedweg, do Rio de Janeiro, um vídeo foi exibido na fachada de um prédio do Bairro do Recife. Pessoas corriam até a câmera e atiravam os mais variados tipos de objetos, desde botas, pedras, celulares e flores até ovos e outros gêneros alimentícios (a câmera estava protegi-da por um vidro). Exibido em câmera lenta, o vídeo mostrava a expressão de satisfação nos rostos das pessoas depois de have-rem atirado o que tinham em mãos. As cenas foram intercaladas com outras de manifestações políticas, ocorridas no século 20, na Europa, e a ação foi realizada na Finlândia. Quando jogavam as coisas, no entanto, o alvo imaginado não era exatamente um político ou um regime de governo, e sim a sogra, o namorado ou o chefe, pessoas que costumamos ter por perto, em qualquer lugar do mundo.

As intervenções urbanas mais conhecidas, chamadas de street art, são diferentes das descritas acima. Fazem uso da grafitagem, da pichação, do adesivo e do estêncil. Porém todas costumam, de alguma forma, alterar o espaço urbano, com o objetivo de exibir uma idéia, um sentimento, ou de fazer as pessoas voltarem os olhos para certos lugares esquecidos pelos habitantes das grandes cidades. Levar a arte para as ruas ajuda a deixá-la mais próxima do público comum, que interage sem maiores explicações sobre a obra, mas por pura intuição, e baseados em seu próprio repertó-rio. Para muitos, é assim que deve ser.

O SPA ficou conhecido justamente pelas intervenções urbanas que já apresentou. Com exceção desse ano, que trouxe poucas. Se, no entanto, deixarmos de lado o rigor das definições, outras ações, tidas como performances ou instalações, podiam perfei-tamente ser encaradas como intervenções, visto que alteraram o espaço urbano. No caso de “Jardim suspenso”, o céu da praia urbana de Boa Viagem, que se encheu de pipas. Bastava depo-sitar um desejo na urna para ganhar uma pipa, impressa com um dente-de-leão dourado. A idéia, segundo os artistas paulis-tas Nana Janus e Pedro Jaranillo, surgiu de uma tradição comum em São Paulo e em Bogotá de, ao encontrar uma flor conhecida como dente-de-leão, fazer um pedido e soprá-la. Para reproduzir a tradição, o vento foi representado pelas 100 pipas distribuídas. Sorte das crianças, que ajudaram a empiná-las, tão alto quanto os edifícios da orla, como se quisessem alcançar os céus e, assim, os desejos que, prometeram os artistas, nunca serão revelados.

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Sobre o discreto charme do banalIntervenções do SPA das artes desestabilizam as

esperadas cores do cotidiano pela cidade

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Manoel Castela chegou ainda bastante jovem a esta cidade, um doutorzinho em fraldas a curar os pequenos males e as dorezinhas de barriga de meninos flatulentos. Isso sim é o que ele era, um doutorzinho em fraldas! E digo que seria quase infantil não fosse algo em seu olhar, como se não enxergasse quem fitava e causando a estranha sensação de que enxergava além do que estava mirando, o que devia ser uma virtude de médico. Estudioso, competente e trabalha-dor, acabou angariando clientela e, é claro, forçada confiança, pois ou se confiava nele ou se enfrentava a incômoda estrada, que era terra ou lama conforme a estação, na busca de médico agrisalhado na cidade vizinha. O certo é que es-tabeleceu-se e, com dinheiro na algibeira, consultório montado logo ali no Largo do Comercio, o doutor Castela tratou de procurar moça fina para casamento e não foi difícil arranjar pretendentes visto que todas as moças finas da cidade debatiam-se em febres só de se falar em casório.

Dispensou várias pretendentes, o nosso doutor. Preteriu Esperança e Sofia, declinou Conceição e Socorro. Contratou-se, enfim, com Esparta, filha mais moça do Pedrosa Lima, diretor do Ginásio Municipal. Moça de muitos dotes e alguma beleza, Esparta tinha um apelo irresistível para o médico, uma rijeza de carnes, um ar de saúde e jovialidade que aliado ao fato de, sem ser intelectual, gostar ainda assim de umas poucas leituras dos periódicos e almanaques, coisa que lhe davam um certo verniz. Foram morar na Rua Velha, na casa verde, quase uma mansão, sim senhor! Quase uma man-são! Não se fale, por favor, em amor, mas que viviam a vida dos perfeitos e isso é tudo. Na casa verde, o doutor Castela construiu uma boa biblioteca de móveis pretos e livros elegantes em capas duras e lombadas rijas de letras douradas, lugar no qual ficava a maior parte do tempo quando estava em casa. E foi na biblioteca que amargou a frustração de ver filha após filha nascer, sem esperança de qualquer menino homem. Doutor Castela envelheceu com a nossa cidade que espantosamente parece sempre mais moça do que é na realidade. E todos nós acompanhamos o surgimento do Bairro Novo, os primeiros cabelos brancos dos que ontem galanteavam nas praças, a derrubada das antigas fachadas, as rugas

Micheliny Verunschk

Dia 16O Encoberto

e curvaturas das costas, casas e ruas. Todos nós acompanhamos o desaparecimento do consultório e o surgimento em seu lugar da Casa de Saúde do Doutor Castela, assim como vimos também suas filhas voarem, uma a uma, para estudar na capital, na arribação dos ricos.

Doutor Castela teria a velhice dos justos, não fosse a gravidez de sua filha Ifigênia, uns dois anos depois de casada. Alegria de primeiro avô de menino homem transtornada logo em clara angústia após o parto. A revelação lhe foi inexo-rável: o menino não era o esperado. O menino era o não. Não a todos os sonhos e possibilidades. O menino não seria nunca quem o doutor gostaria que fosse e seria sempre apontado na rua como a marca de seu fracasso, a sua doença, a sua ausência de beleza e saúde. Não saberia ele dos livros nas estantes pretas e menos ainda das mais altas reflexões a que o ser humano chegara em tão pouco tempo de verdadeira civilização ocidental. Em definitivo, aquele menino não era o seu, não era aquele que lhe aparecia em sonhos, alto, luminoso, anjo ou semideus. Nunca seria o seu D. Sebastião tão querido a quem cobriria de afetos e incensos. Odiava. Odiava a doença e, mais que ela, os doentes. Os doentes em sua moleza o constrangiam, a dona esposa do juiz com sua gordura e suas coceiras, o padre e suas perturbações estomacais, os meninos do Silveira e suas gripes sujas, a menina do professor, esta sim a mais odiosa de todos, e sua insanidade raivosa. Teria sido em vão que a mandara para um sanatório, para que ficasse o mais distante possível dos seus cuidados, para que ficasse longe a sua peste? Teria então que agüentar isso, um neto seu, débil, incapaz ? O que fazer então com aquele menino? Foi então que o doutor Castela odiou também o menino. Odiou, porque ele ocupou um lugar que não era seu. Odiou, então, firme, aquele que não era. Odiou com mão segura.

(...)

Na manhã seguinte, Ifigênia foi informada que o seu filho além de todos os problemas, nascera com sério problema cardíaco e, por isso mesmo, não pudera resistir. Doutor Castela e Esparta consolaram a filha com palavras de confor-mação.

(...)

Digo que não foi o aneurisma a causa do tormento do doutor Castela anos mais tarde. Digo que foi o menino que ele matou e que estourou em sangue no seu peito. E digo, porque ouvi um riso de criança no momento final. Era um riso límpido e liberto, alto e luminoso. E então doutor Castela estava morto para transtorno e desespero de Esparta, suas cinco filhas e dos doze netos, todos homens que sucederam àquele mais velho, que era finalmente o esperado, o menino que cumularia de carinhos e simples alegrias o fim de sua vida. O esperado que o seu ódio duro não permitiu se dar a conhecer.

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