perlatto. pensando uma sociologia global

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0 XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 10 a 13 de setembro de 2013, Salvador (BA) Grupo de Trabalho 34 – Teoria Sociológica Pensando uma sociologia global: sociologia brasileira e a geopolítica da teoria sociológica Fernando Perlatto (IESP-UERJ)

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    XVI Congresso Brasileiro de Sociologia

    10 a 13 de setembro de 2013, Salvador (BA)

    Grupo de Trabalho 34 Teoria Sociolgica

    Pensando uma sociologia global: sociologia brasileira e a geopoltica da teoria sociolgica

    Fernando Perlatto

    (IESP-UERJ)

  • 1

    Pensando uma sociologia global: sociologia brasileira e a geopoltica da teoria sociolgica

    Fernando Perlatto*

    Em texto publicado na revista Global Dialogue, na qual sistematiza as ideias

    expostas na conferncia que proferiu quando assumiu a presidncia da International

    Sociological Association (ISA), o socilogo americano Michael Burawoy (2010) fez uma

    defesa daquilo que intitulou como sociologia pblica global. Segundo ele, as

    sociologias nacionais no dariam mais conta de responder aos diversos desafios

    colocados no mundo contemporneo, tanto como decorrncia do avano das foras do

    mercado, quanto da regulao estatal, sendo necessria, por conseguinte, uma maior

    conexo entre as sociologias dos diferentes pases para enfrentar os problemas

    globais. Na mesma Global Dialogue, lrich Beck (2010) retomou algumas de suas

    ideias contidas na obra The Cosmopolitan Vision (2006), quando defendeu a

    necessidade de uma sociologia cosmopolita para enfrentar a agenda terica em torno

    da reflexividade na modernidade. Para Beck, faz-se necessrio, na atual conjuntura,

    um giro cosmopolita crtico na teoria sociolgica, de modo a superar o nacionalismo

    metodolgico, que tende a uma perigosa generalizao de situaes locais para o

    plano global. O que interessa destacar que o chamado de Burawoy a favor de uma

    sociologia global, bem como a defesa de Beck em torno de um giro cosmopolita da

    sociologia, no ocorreram em terreno vazio, mas dialogaram diretamente com outras

    formulaes produzidas ao longo as ltimas dcadas que procuraram repensar os

    mecanismos desiguais de produo e circulao do conhecimento sociolgico entre

    centros e periferias. Quer mediante a defesa de uma descolonizao do

    conhecimento, como, por exemplo, na clssica formulao de Franz Fanon (1961),

    quer atravs da crtica ao eurocentrismo vigente nas cincias sociais (Wallerstein,

    1996), ou da problematizao do imperialismo acadmico dos pases do Norte em

    * Doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Polticos (IESP-UERJ) e Pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES-PUC-Rio).

  • 2

    relao s naes do Sul (Alatas, 2000), a imaginao sociolgica vem buscando, ao

    longo dos ltimos anos, reconhecer a existncia de processos que produzem e

    reproduzem disparidades na formulao e difuso do conhecimento, especialmente da

    teoria social. De modo geral, o que perpassa esses trabalhos a inteno de inquirir a

    lgica a partir da qual os pases centrais produzem as teorias que so simplesmente

    aplicadas nas naes perifricas.

    A defesa de uma sociologia global ou cosmopolita tem ganhado novo escopo

    e legitimidade como decorrncia bvia do avano da globalizao e daquilo que alguns

    autores chamam de fim das fronteiras. O novo contexto mundial caracterizado por

    aquilo que Jrgen Habermas (2001) chamou de constelao ps-nacional seria um

    territrio novo, no qual o Estado-Nao teria perdido parte de sua capacidade de ao,

    em face do surgimento e/ou do agravamento de situaes-problema que extrapolam as

    fronteiras nacionais. Relacionado a este processo, conceitos como identidade

    nacional, partidos, histria nacional, modernizao, formulados em um contexto

    no qual a ideia da nao conferia unidade integradora aos processos sociais, tm

    ficado comprometidos para a anlise das sociedades contemporneas, donde se

    explicaria uma reviso conceitual recente que faz aparecer categorias como

    desterritorializao, mundializao e desencaixe. O alargamento da sociedade

    global e o surgimento de um novo lugar o mundo definem uma situao na qual

    se torna imperativa a superao dos contextos regionalizados para a anlise dos

    processos sociais, promovendo um rearranjo das formas pelas quais as cincias

    sociais, de modo geral, e a sociologia, em particular, se desenvolveram at os dias

    atuais (Ortiz, 2008; Reis, 2009).

    A partir desse quadro que se vislumbra a atualidade do debate em torno da

    sociologia global. No presente artigo, procuraremos contribuir com esta discusso, a

    partir de trs movimentos, a saber: em primeiro lugar, procuraremos apresentar a

    discusso sobre sociologia global no debate contemporneo, dando nfase especial

    aos autores identificados com a chamada crtica ps-colonial ou com as sociologias

    crticas, que tm buscado, nos ltimos anos, problematizar o processo de produo e

    circulao do conhecimento sociolgico entre pases centrais e perifricos. Em

    seguida, mobilizaremos a reflexo de alguns socilogos brasileiros para mostrar como

  • 3

    a sociologia brasileira tem pensando as relaes entre centros e periferias na

    produo da teoria sociolgica. Por fim, dialogando com formulaes recentes sobre a

    noo de cosmopolitismo encontradas, entre outros, nas obras de Craig Calhoun ,

    procuraremos sugerir uma proposta de sociologia global que supere tanto um

    nacionalismo metodolgico estreito, quanto uma perspectiva universalista, que no

    valoriza as diferentes tradies sociolgicas nacionais.

    Sociologia global ou imperialismo sociolgico?

    Uma prova evidente da atualidade da inquirio em torno da geopoltica do

    conhecimento sociolgico, baseada em uma forte crtica ao eurocentrismo terico e

    ancorada na defesa da pluralidade de tradies sociolgicas, a ateno recente dada

    ao tema pela International Sociological Association (ISA). No toa, a associao tem

    estimulado a produo nos ltimos anos de uma srie de livros no sentido de refletir

    sobre a questo e mostrar a pluralidade de tradies sociolgicas existentes nos

    diferentes pases. Obras como National Traditions in Sociology, organizada por Nikolai

    Genov (1989), e Globalization, Knowledge and Society, editada por Martin Albrow e

    Elizabeth King (1990), so exemplos de trabalhos impulsionados pela ISA nessa

    direo. Os trs volumes recentemente editados pela associao intitulados Facing an

    Unequal World: Challenges for a Global Sociology, organizados por Michael Burawoy,

    Mau-kuei Chang e Michelle Fei-yu Hsieh (2010), bem como o livro editado por Sujata

    Patel (2010), The ISA Handbook of Diverse Sociological Traditions, vieram consolidar

    esta preocupao da entidade em discutir as relaes entre poder e produo do

    conhecimento sociolgico, com o intuito de superar os obstculos e estimular novos

    caminhos para a construo de uma sociologia global.1

    No restam dvidas quanto ao fato de que as reflexes problematizadora em

    torno das possibilidades de construo de uma sociologia global provieram, em grande

    medida dos autores identificados com as chamadas crtica ps-colonial ou com as

    sociologias crticas, como Homi Bhabha, Edward Said, Sayed Farid Alatas, Gayatri

    1 Na revista Global Dialogue, vinculada ISA, anteriormente citada, diversos autores tm procurado desenvolver artigos em torno desta temtica. Ver, entre outros: Connell (2010) e Patel (2011).

  • 4

    Spivak, Walter Mignolo, Ashis Nandy e Raewyn Connell. A despeito das diferenas

    existentes nos trabalhos desses autores, possvel afirmar que eles compartilham um

    incmodo com a forma como tem se processado historicamente a produo e a

    circulao da teoria social, e buscam fornecer alternativas no sentido de se

    problematizar o processo j consolidado segundo o qual as categorias sociolgicas so

    produzidas nos centros, em especial nos Estados Unidos e Europa, e apenas

    aplicadas nas periferias. De acordo com essas formulaes, a atual diviso da

    produo e circulao do conhecimento sociolgico muitas vezes acaba por reforar

    uma dominao metodolgica, conceitual e epistemolgica, consolidando

    essencialismos caractersticos da imaginao sociolgica moderna.

    Conforme destacado por Sayed Farid Alatas (2003), a dependncia das

    sociologias perifricas em relao quelas produzidas pelos pases centrais pode se

    manifestar de diferentes maneiras, como, por exemplo, no processo de produo e

    circulao das teorias; na distribuio desigual dos resultados de pesquisas em jornais,

    livros e conferncias; nas disparidades de recursos disponveis para apoiar o

    desenvolvimento das atividades de pesquisa nos pases do Norte e do Sul global; nos

    investimentos direcionados para as instituies de ensino superior; e, por fim, na

    ampliao de oportunidades de pesquisa nos pases centrais, que atrairiam os

    socilogos dos pases perifricos, deslocando-os de suas regies de origem (brain

    drain). Para Alatas, todas essas formas de dependncia intelectual, em escala global,

    constituiriam em problemas centrais para a reflexo em torno das possibilidades de

    construo de uma sociologia capaz de compreender as estruturas e dinmicas de um

    mundo cada vez mais globalizado.

    Talvez a formulao mais bem sistematizada sobre essa discusso tenha sido

    elaborada por Raewyn Connell, em seu livro Southern Theory: The Global Dynamics of

    Knowledge in Social Science, publicado em 2007. Neste trabalho provocador e em

    artigos posteriores, Connell problematiza a mera cpia de teorias da Europa e dos

    Estados Unidos por parte dos pases da periferia, na medida em que os textos de teoria

    social envolveriam uma reificao da experincia do Norte.2 A autora chama a ateno

    2 Conforme destacado por Connel: A despeito das grandes diferenas em estilo e substncia entre os autores, seus trabalhos compartilham as mesmas caractersticas lgicas que refletem o posicionamento

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    para o enorme desconhecimento que existe na academia dos pases centrais de

    diversos pensadores do Sul global, cujas formulaes sobre variados temas e

    problemas teriam o mesmo nvel de complexidade dos autores considerados como os

    clssicos da sociologia. Para Connell, os socilogos do Norte teriam muito que

    aprender com aqueles do Sul, at mesmo pela razo segundo a qual muitas das

    temticas privilegiadas pelos analistas da periferia serem praticamente ignoradas pelos

    autores dos pases centrais. Para Connell (2010a), a ideia de aprendizado mtuo

    entre centros e periferias no que concerne produo e circulao de teorias deveria

    ser tomada no enquanto mera retrica, mas como elemento central de uma prtica na

    qual todas as partes assumiriam a abertura para o processo de aprendizado.

    Na Amrica Latina, tambm tem se testemunhado este movimento de repensar

    o processo de produo e circulao da teoria sociolgica, com o intuito da formulao

    de agendas alternativas. O continente, que entre as dcadas de 1950 e 1970

    testemunhou a produo de trabalhos tericos de enorme relevncia, como as Teorias

    da Dependncia, viu-se nas ltimas dcadas diante de um processo de declnio da

    elaborao terica, tanto como resultado das ditaduras militares que assolaram o

    continente neste perodo, quanto do vis antiterico oriundo da hegemonia da empiria

    absoluta que varreu diversos pases, contribuindo sobremaneira para o

    enfraquecimento da reflexo sociolgica original (Domingues, 2007). Frente a este

    quadro de dependncia terica, diversos autores como Anbal Quijano (2000) e

    Walter Mignolo (2000), muitos dos quais reunidos no Grupo Modernidad/Colonidad,

    tm buscado, cada qual sua maneira, refletir acerca das implicaes do passado

    colonial para a produo dessas assimetrias no plano da produo e circulao da

    teoria, e clamar por um trabalho crtico de de-colonizao. Bons exemplos de tpico enraizado na metrpole. Talvez o mais importante seja que eles constroem conceitos e mtodos para analisar uma sociedade desprovida de determinaes externas. Isso implica dizer que suas metodologias tericas excluem o colonialismo. Eles no escrevem a partir da experincia social de quem foi colonizado, ou se envolveu na colonizao, ou ainda est imerso numa situao neocolonial. E, na verdade, suas imaginaes tericas no incorporam o colonialismo como um processo social significativo. Esse etnocentrismo da imaginao sociolgica mais evidente nas teorias da globalizao. De todos os tpicos sociolgicos, nesse que as relaes entre metrpole e periferia so mais ntidas. Ainda assim, a abundante literatura sociolgica feita no Norte frequentemente projeta caractersticas da modernidade ou ps-modernidade da metrpole para outros espaos. Para muitos tericos, isso tudo o que globalizao significa. Ao refletirem sobre neoliberalismo, escritores do Norte quase nunca citam pensadores do Sul que pudessem corrigir seus pressupostos (Connell, 2012, p.10, grifos da autora).

  • 6

    pesquisas que caminham nessa direo podem ser encontrados na coletnea A

    Colonialidade do Saber: Eurocentrismo e Cincias Sociais, organizada por Eduardo

    Lander (2005), sob os auspcios do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales

    (CLACSO).

    A sociologia brasileira tambm tem buscado enfrentar essa ordem de questes,

    relacionadas ao processo desigual de produo e circulao de teorias entre centros e

    periferias. No obstante esta agenda tenha atravessado toda a histria da sociologia

    brasileira, ela ganhou maior amplitude nos ltimos anos, a partir do dilogo que alguns

    socilogos brasileiros vm estabelecendo com a crtica ps-colonial e com as

    sociologias crticas. justamente desta agenda reflexiva que se trata a prxima

    seo.

    Sociologia brasileira e a geopoltica do conhecimento sociolgico

    No pretendemos realizar uma anlise detalhada das discusses levantadas por

    cada um dos autores brasileiros que procuraram refletir sobre a questo da circulao

    de teorias entre centros e periferias, at mesmo pela razo de que este tema

    transcende a prpria agenda sociolgica (Schwarz, 2000; Santiago, 2004). A inteno

    aqui a de chamar a ateno para o fato de que a agenda reflexiva em torno desta

    questo tem sido de grande relevncia para a sociologia brasileira, como atesta, por

    exemplo, a reflexo de Guerreiro Ramos em torno da reduo sociolgica, na dcada

    de 1960. A preocupao do socilogo era a de pensar um determinado mtodo capaz

    de habilitar o pesquisador a transpor os conhecimentos universais para uma

    perspectiva brasileira, respeitando-se a particularidade de sua experincia histrica.

    sociologia nacional caberia sim um dilogo com aquela produzida internacionalmente,

    mas desde que esse movimento no reproduzisse uma sociologia enlatada,

    reprodutora das teorias elaboradas no exterior, mas que servisse para compreender e

    superar os problemas brasileiros concretos a partir de uma posio crtico-assimilativa

    da sociologia externa. Da, sua formulao a favor de uma sociologia em mangas de

    camisa, fortemente compromissada com os problemas sociais da nao (Ramos,

    1996).

  • 7

    A prpria obra de Florestan Fernandes pode ser pensada nesse dilogo tenso

    envolvendo a produo e circulao terica entre os pases centrais e perifricos.

    Ainda que em algumas passagens de seus textos haja a defesa de que sociologia

    brasileira no caberia propor-se tarefas de grandes significaes tericas, haja vista

    os problemas sociais prticos de grande magnitude a serem enfrentados, em outros

    momentos, se constata no apenas a defesa de uma produo terica nacional mais

    autnoma ainda que em dilogo direto com os pases centrais , mas a elaborao

    de uma percepo segundo a qual pases perifricos desfrutariam das vantagens do

    atraso na produo da teoria sociolgica. Inseridos em contextos marcados pela

    agitao poltica e social, os socilogos da periferia ver-se-iam frente necessidade de

    sair do gabinete e integrar-se nos processos de mudana social, tornando-se mais

    capacitados para produzir anlises e teorias sobre a realidade, ao participarem

    diretamente dos processos sociais. O socilogo da periferia no disporia de um nicho

    para abrigar-se e proteger-se como o scholar europeu ou o socilogo acadmico

    norte-americano. Mas, em compensao, ele estaria mais capacitado para receber,

    em toda a plenitude, a luz do sol, que cresta e castiga, mas ilumina e fecunda o cenrio

    da vida (Fernandes, 1976, p.15-6).

    A sociedade, que no lhe pode conferir sossego e segurana, seria,

    paradoxalmente, a mesma que, ao coloc-lo numa posio que o projeta no mago

    dos grandes processos histricos em efervescncia, permitiria que visse melhor a

    realidade social. Em um contexto de mudana social, como aquele vivido pelas

    sociedades latino-americanas nas dcadas de 1960 e 1970, ningum pode ter (ou, se

    tiver, manter) vistas estreitas. Nesse sentido, os socilogos perifricos teriam

    condies superiores para pensar, no pelas questes estruturais das universidades,

    mas por se verem forados a romperem a carapaa protetora do isolamento, que

    favorece alguns desgnios positivos da especializao custa do alheamento do

    cientista, como e enquanto tal, em face dos fluxos de reconstruo da ordem social

    (p.117-8). Alm disso, as prprias sociedades que se afastam do tipo normal,

    inerente a determinada civilizao, representam, por si mesmas, um problema terico

    para a cincia, colocando novos desafios para a reflexo sociolgica. Nesse contexto,

    o socilogo brasileiro poderia contribuir de forma original e criadora para o

  • 8

    enriquecimento de ramos da teoria sociolgica que no podem ser cultivados com a

    mesma facilidade por seus colegas dos pases desenvolvidos do mesmo crculo

    civilizatrio (p.20).

    Em seu livro A Revoluo Burguesa no Brasil, publicado em 1975, Florestan

    recoloca, a partir de outra perspectiva, o debate sobre a produo e circulao de

    teorias sociolgicas entre centros e periferias, ao questionar a ideia segundo a qual os

    princpios que orientaram a revoluo burguesa nos pases centrais seriam

    reproduzidos nas naes perifricas. De forma mais ampla, possvel dizer que parte

    significativa da bibliografia produzida na dcada de 1970, preocupada em compreender

    o processo a revoluo burguesa no pas, se defrontou com esta temtica, como se

    pode perceber em trabalhos como So Paulo e o Estado Nacional, de Simon

    Schwartzman (1975), Capitalismo Autoritrio e Campesinato, de Otvio Velho (1975) e

    Liberalismo e Sindicato no Brasil, de Luiz Werneck Vianna (1976). Basta pensar, nesse

    sentido, que nesse contexto, variadas obras, tomaram as referncias da sociologia

    histrica comparada baseando-se em autores como Barrington Morre Jr. para

    investigar processos de modernizao de capitalismos retardatrios, que assumiram

    vias de passagem especficas ao moderno, a partir de perspectivas diferenciadas

    daqueles seguidas por pases de capitalismos maduros, como Inglaterra, Frana e

    Estados Unidos. No toa, naes como Rssia, Japo, Itlia e Alemanha foram

    mobilizadas pela bibliografia para compreender as feies conservadoras da revoluo

    burguesa brasileira, impulsionada pela coalizo entre as elites modernas e tradicionais.

    Outro socilogo brasileiro que se debruou sobre a temtica da relao entre

    centros e periferias foi Octavio Ianni (1989). Para o autor, as influncias europeias e

    norte-americanas na sociologia da Amrica Latina sempre se exerceriam em trs

    nveis: terico, metodolgico e quanto problemtica escolhida para a pesquisa. No

    obstante os recentes desenvolvimentos tericos, o continente ainda padeceria de uma

    escassa produo na rea da teoria, o que resultaria na constante assimilao e a

    difuso de contribuies formuladas nos grandes centros. Para alm dos aspectos

    tericos e metodolgicos a envolvidos, Ianni chama a ateno para um ponto

    importante, a saber: o carter externo de grande parte da problemtica sociolgica

    com a qual trabalham muitos socilogos interessados nas sociedades da Amrica

  • 9

    Latina (Ianni, 1989, p.146). Para o autor, diversos problemas investigativos adviriam

    da adoo da problemtica de assuntos externos tematizados sem o necessrio

    esprito crtico. Com o intuito de exemplificar, o autor chama a ateno para estudos

    raciais desenvolvidos no Brasil, que, ao simplesmente importarem acriticamente dos

    Estados Unidos determinada abordagem do tema, acabariam por perder a

    complexidade e especificidade do problema na sociedade brasileira.

    Da mesma forma, a importao das teorias da modernizao conduziriam os

    socilogos das sociedades latino-americanas a interpretarem seus processos de

    desenvolvimento de maneira dualista, conforme explicao hegemnica nos pases

    centrais. Isso, contudo, no fez com que Ianni adotasse uma postura de purismo

    terico em relao adoo de teorias estrangeiras. Pelo contrrio. Para o autor, a

    despeito dos seus aspectos negativos, essas relaes com os centros cientficos

    europeus e norte-americanos so positivas e necessrias (Ianni, 1989, p.148). O

    processo de emancipao da Amrica Latina, quer pensada em sua dimenso

    econmica e poltica, quer interpretada em seus aspectos culturais, dependeria

    tambm do conhecimento e utilizao do que ocorre e se pensa nos centros

    hegemnicos (Idem). De acordo com Ianni, o que se pode e deve discutir so as

    condies de intercmbio entre os centros cientficos (p.149), de modo a evitar a

    importao acrtica por parte dos socilogos da Amrica Latina de teorias e

    problemticas caractersticas dos pases europeus e dos Estados Unidos.

    Talvez a mais bem conhecida formulao sobre a relao epistemolgica e

    poltica entre centros e periferias produzida pela sociologia brasileira seja aquela

    associada Teoria da Dependncia, sobretudo em sua verso mais sofisticada contida

    na obra Dependncia e Desenvolvimento na Amrica Latina, escrita por Fernando

    Henrique Cardoso e Enzo Faletto como um Relatrio para a CEPAL, em 1966, e

    publicado no Chile, em 1969. Dentre outros mritos, este trabalho teve o valor de

    recolocar o debate sobre a dependncia em um novo patamar, passando a questionar

    as explicaes dualistas ento hegemnicas na Amrica Latina, bem como aquelas

    formulaes que propugnavam o desenvolvimento da regio a partir de concepes

    evolucionistas, tomando como base os paradigmas da teoria da modernizao. No

    sentido de construir uma teoria sobre a dependncia, que dialogasse com as teorias

  • 10

    externas sobre o tema, mas que se constitussem enquanto formulaes originais

    elaboradas na periferia, os autores buscaram analisar situaes concretas de

    dependncia em sociedades perifricas, procurando acentuar a anlise das condies

    especficas da situao latino-americana e o tipo de integrao social das classes e

    grupos como condicionantes principais do processo de desenvolvimento (Cardoso &

    Faletto, 1973, p.21).

    Nas ltimas dcadas, a reflexo sobre a circulao de teorias entre centros e

    periferias tem recebido ateno mais sistemtica por parte de diferentes socilogos

    brasileiros, os quais, nos ltimos anos, tm inserido suas reflexes em um dilogo mais

    sistemtico com a chamada crtica ps-colonial e as sociologias crticas. Autores

    como Sergio Costa, Renato Ortiz, Jos Maurcio Domingues, Sergio Tavolaro e Joo

    Marcelo Ehlert Maia tm procurado, de maneiras diferenciadas, participar desse debate

    sobre a geopoltica do conhecimento global, sugerindo a necessidade de um dilogo

    mais intenso com as sociologias produzidas em contextos perifricos com o intuito de

    problematizar a simples importao terica para a compreenso de uma realidade

    como a brasileira, marcada por caractersticas particulares. Sergio Costa, por exemplo,

    em artigo intitulado Teoria por Adio, em aluso ao ensaio clssico Nacional por

    Subtrao, do crtico literrio Robert Schwarz, aponta para a necessidade de a teoria

    sociolgica brasileira caminhar na direo aberta pelas teorias ps-coloniais, as quais,

    desprovincializando a sociologia, lograram sucesso em participar de forma autnoma

    das discusses nucleares da disciplina transcendendo as categorias formuladas no

    mundo europeu e norte-americano (Costa, 2010).

    Em seus livros As Cores de Erclia: Esfera pblica, Democracia e Configuraes

    Ps-nacionais (2002) e Dois Atlnticos: Teoria social, Anti-racismo e Cosmopolitismo

    (2006), Costa buscou desenvolver argumento semelhante ao demonstrar a

    necessidade de um dilogo mais intenso com a crtica ps-colonial no sentido de

    superar uma forma de produo de teoria social dependente da exportao de modelos

    europeus ou americanos, cujas experincias histricas no se relacionariam com

    pases, como o Brasil, com passado colonial. Especialmente em Dois Atlnticos, Costa

    parte do dilogo com a crtica ps-colonial para problematizar duas das concepes de

    cosmopolitismo mais influentes no debate contemporneo aquela formulada por

  • 11

    Jrgen Habermas, tendo como base a ideia de constelao ps-nacional, e a teoria

    da modernizao reflexiva de Ulrich Beck e Anthony Giddens. De acordo com o autor,

    estas concepes cosmopolitas, apesar de ancoradas em supostos democrticos,

    acabariam por reproduzir, de maneira irrefletida, premissas que constituem o ncleo

    metodolgico da teoria da modernizao, na medida em que estariam ancoradas na

    compreenso de que o moderno associa-se ao padro europeu.

    Partindo do diagnstico de Habermas formulado tanto em anlises de

    conjuntura, quanto em textos mais tericos, como A Constelao Ps-nacional ,

    segundo o qual seria necessrio uma sociedade mundial de cidados e a

    consolidao em mbito europeu de equivalentes funcionais das estruturas existentes

    nos contextos democrticos nacionais para promover a integrao social e poltica

    nesta conjuntura ps-nacional, Costa busca demonstrar o quanto estas estruturas

    cosmopolitas, ancoradas em direitos humanos pretensamente universalistas, poderiam

    contribuir para legitimar a consolidao de mecanismos de poder e formas de

    dominao dos pases europeus sobre as demais naes. De forma semelhante, ainda

    que em outra chave de leitura, a viso cosmopolita desenhada por Ulrich Beck e

    Anthony Giddens que, de certa maneira, foi sistematizada na obra Modernizao

    Reflexiva. Poltica, Tradio e Esttica na Ordem Social Moderna se basearia,

    igualmente, num modelo de reflexividade centrado nos sujeitos e instituies de

    sociedades europeias, que, com o avano da globalizao se expandiria do centro

    para os demais pases.

    Um dos socilogos brasileiros que mais tem se dedicado reflexo sobre esta

    temtica entre o universal e o particular no mbito da teoria sociolgica tem sido

    Renato Ortiz (1998, 2006, 2008). Em livros como A Diversidade dos Sotaques. O Ingls

    e as Cincias Sociais, bem como em variados artigos recentes, Ortiz situa sua

    discusso sobre a geopoltica do conhecimento sociolgico no debate mais amplo

    sobre a globalizao e a hegemonia do ingls no mundo acadmico. Para o autor, esta

    dominao do idioma no mbito especfico das cincias sociais no se justificaria, na

    medida em que nesta rea de conhecimento a construo dos objetos se faria por meio

    da lngua e, consequentemente, se referenciaria a um contexto histrico-geogrfico

    especfico. Segundo Ortiz, este predomnio do ingls que se impe em funo de

  • 12

    uma hierarquizao de poder no mercado de bens lingusticos no interior do qual se

    elabora uma falsa aproximao entre a ideia de universal e de global tem

    consequncias deletrias para a sociologia de maneira geral, na medida em que ele

    acaba adquirindo a capacidade de guiar o debate intelectual em escala global,

    definindo a agenda intelectual e estabelecendo quais temas e questes so mais

    relevantes de serem problematizadas, com todos os problemas da advindos para a

    produo e circulao do conhecimento sociolgico entre centros e periferias.

    Nesse sentido, o autor defende que a produo nas cincias sociais deve se dar

    mediante o respeito diversidade de sotaques, valorizando-se a pluralidade de

    idiomas e tradies nacionais responsveis pela elaborao do conhecimento

    sociolgico, sobretudo em um contexto marcado pelas consequncias da globalizao,

    que implodiram as formas tradicionais de se pensar os conceitos sociolgicos,

    centrados nos Estados nacionais. Para Ortiz, o mal-estar em torno do universalismo

    que atravessa a teoria social pode servir como possibilidade de se repensar os padres

    de produo e circulao do conhecimento sociolgico, no no sentido de estimular um

    relativismo que conduza a uma fragmentao das cincias sociais em provncias

    dialetais, com cada qual com fronteiras claras e excludentes, mas para uma direo

    que permita articular de maneira mais bem formulada universalismo e particularismo.

    Segundo ele, possvel pensar em um idioma sociolgico compartilhado por uma

    mesma comunidade de falantes, mas com sotaques distintos, isto , um universo

    comum, mas com diferentes sotaques. Ao se atualizar em contextos diferenciados, este

    idioma guarda sua vocao cosmopolita sem perder a diversidade que o constitui

    (Ortiz, 2012, p.22).

    Os trabalhos de Jos Maurcio Domingues tambm tm procurado dialogar com

    essa reflexo sobre a produo e a circulao do conhecimento sociolgico entre

    centros e periferias. Se esta preocupao j estava fortemente presente em outras

    investigaes do autor sobre a modernidade e aquilo que chama de subjetividades

    coletivas (Domingues, 2007, 2009), ela ganhou maior relevo em estudos mais

    recentes, como aqueles contidos nos livros Teoria Crtica e (Semi) Periferia (2011) e

    Global Modernity, Development, and Contemporary Civilization: towards a Renewal of

    Critical Theory (2012). Partindo do diagnstico acerca da debilidade da insero das

  • 13

    nossas cincias sociais na geopoltica do conhecimento sociolgico, o autor convida a

    uma reflexo terica mais ampla no somente em torno das complexas relaes entre

    centro e periferia no que concerne produo e consumo da teoria sociolgica, mas

    busca, a partir desta problematizao, pensar acerca da modernidade global a partir de

    uma teoria crtica perifrica. O ponto de partida aqui a periferia, mas o objetivo geral

    da reflexo universal. Busca-se colocar em dilogo periferia e centro de modo a

    lanar um olhar analtico mais complexificado em torno da modernidade global em sua

    atual fase.

    De acordo com Domingues, uma teoria crtica formulada na periferia deveria ser

    capaz de combinar, ainda que de forma tensa, a crtica imanente, interna

    modernidade, por um lado, e a alteridade internalizada, dependente de outras fontes

    civilizacionais, mas que se desdobraria nos quadros de uma modernidade

    complexificada. Em outras palavras, trata-se de mobilizar a periferia, a semiperiferia

    e seus socilogos para que, em dilogo com as sociologias centrais, se produza uma

    nova imaginao sobre a prpria modernidade global, em sua terceira fase. Domingues

    destaca que a atual fase da modernidade, diferentemente das duas primeiras que se

    estenderiam do sculo XIX a 1920, e de 1930 a 1970, centradas, respectivamente, no

    mercado e no Estado keynesiano , teria emergido em meados da dcada de 1990,

    impulsionada pelo avano da globalizao, sendo marcada por uma articulao mista,

    caracterizada por giros modernizadores, que implicariam em um crescimento

    exponencial da complexidade social em diversas reas. Nesse contexto, uma teoria

    crtica deveria buscar combinar as experincias e reflexes das periferias e

    semiperiferias no sentido de se constituir uma compreenso melhor dos problemas e

    potencialidades da terceira fase da modernidade.

    Sergio Tavolaro tambm tem se destacado como outro socilogo brasileiro que

    vem buscando, a partir do dilogo com a crtica ps-colonial, apontar as limitaes de

    uma sociologia que se coloca como cosmopolita, mas que acaba por estabelecer a

    Europa e suas instituies como modelos paradigmticos do que seja a modernidade.

    Em artigo intitulado Existe uma Modernidade Brasileira? Reflexes em Torno de um

    Dilema Sociolgico Brasileiro, publicado na Revista Brasileira de Cincias Sociais, o

    autor dialoga com autores clssicos e contemporneos do pensamento social

  • 14

    brasileiro, procurando demonstrar as limitaes de seus diagnsticos, que apontam a

    modernidade brasileira como algo singular quando comparada modernidade

    europeia. De acordo com Tavolaro, esta forma de leitura da modernidade brasileira

    sustentada por uma perspectiva segundo a qual sempre nos faltariam elementos

    modernos encontrados no mundo europeu , exemplificadas pelas interpretaes da

    nossa modernidade elaboradas pela sociologia da dependncia e pela sociologia da

    herana patriarcal-patrimonial, no logram sucesso nem em problematizar o

    essencialismo do que seja o moderno tal qual realizado pelos autores do ps-

    colonialismo , nem em perceber a modernidade no Brasil como um tipo de

    sociabilidade multifacetada, que deve ser compreendida a partir de seus prprios

    elementos (Tavolaro, 2005).

    Em outro artigo, Tavolaro & Tavolaro (2010) criticam os autores identificados

    com o que denominam de tese da excepcionalidade brasileira. De acordo com estes

    autores, a cidadania no pas teria sido sempre caracterizada pelo desvio, sobretudo

    quando comparada com o modelo paradigmtico descrito por T. S. Marshall em

    Cidadania, Classe Social e Status, do percurso para a construo dos direitos civis,

    polticos e sociais. A partir desta perspectiva, o Brasil se configuraria como uma

    singularidade societal por ter desenvolvido um caminho visto como patolgico para a

    resoluo das questes centrais da modernidade diferenciao social, a

    secularizao societal e a separao pblico-privado quando comparado ao

    ncleo da modernidade, representado pelos pases modernos centrais. Dialogando

    com o campo discursivo da condio ps-colonial, Tavolaro & Tavolaro criticam os

    autores identificados com a tese da excepcionalidade brasileira, procurando

    demonstrar que alm do processo de construo histrica e epistemolgica da

    modernidade europeia ter sido marcado por descontinuidades, no podendo, por

    conseguinte, fornecer um padro par excellence do que seja a modernidade, os

    cenrios tradicionalmente tidos como marginais ou perifricos tambm

    desempenharam papis significativos na construo da prpria experincia da

    modernidade.

    Joo Marcelo Ehlert Maia tambm vem contribuindo para a discusso acerca

    das relaes entre a sociologia brasileira e aquelas formuladas em mbito

  • 15

    internacional, sugerindo uma conexo muito profcua com as teorias crticas e ps-

    coloniais, em especial com o trabalho de Raewyn Connell sobre as teorias do Sul, e

    o campo do pensamento social brasileiro. Para tanto, o autor vem demonstrando de

    que forma os autores brasileiros podem falar no apenas do Brasil, mas tambm sobre

    dilemas modernos globais a partir de um ponto de vista distinto daquele formulado no

    mundo europeu e anglo-saxo (Maia, 2009, p.156). Seria possvel ler estes autores e

    suas obras no apenas como fontes para se conhecer o Brasil, mas como

    formuladores de diferentes modos de cognio do mundo social produzidos em uma

    geografia alternativa quela do mundo europeu. Mais do que saber o que os

    pensadores sociais perifricos disseram em suas obras, Maia se preocupa em

    compreender como muitos deles produziram um discurso caracterizado por um mal-

    estar diante da modernidade, que, se por um lado, permite um exame mais abrangente

    sobre a experincia de processos de modernizao que seguiram trilhas diferenciadas

    daquelas adotadas nos pases europeus, por outro lado, possibilita apontar para as

    possibilidades crticas de pensar a partir desses territrios.

    O objetivo central de Maia , portanto, buscar pontes de dilogo entre as

    discusses levantadas por autores do pensamento social brasileiro e aqueles tericos

    da crtica ps-colonial, com o intuito de demonstrar como em ambos os casos so

    formuladas questes que abrem novas possibilidades de reflexo sobre aspectos da

    modernidade que no apenas se vinculavam a estes pases, mas que podem ser lidas

    em uma perspectiva global, embora elaboradas a partir de um outro lugar. Discusses

    formuladas por autores do pensamento social brasileiro vinculadas, por exemplo,

    relao entre Estado e sociedade, no diriam respeito somente ao Brasil, mas o

    transcenderiam, possibilitando uma articulao com alguns resultados tericos da

    crtica ps-colonial e ampliando as possibilidades para se pensar o debate sobre

    Estado e sociedade em uma perspectiva mais ampla do que aquela tomada como

    paradigmtica, elaborada nos pases europeus, mas que tm pouca coisa a dizer sobre

    a experincia da modernizao dos pases perifricos. Trata-se, para Maia (2012a,

    p.83-4), de inscrever a dinmica do pensamento brasileiro numa marcao

    transnacional, de modo a evidenciar o quanto a dinmica das ideias em nossa

  • 16

    sociedade pode ser entendida luz de processos mais gerais que ocorriam no

    apenas nas periferias, mas na prpria metrpole.

    O que podemos desprender da breve anlise realizada sobre esses autores

    que tem havido historicamente um esforo por parte de socilogos brasileiros no

    sentido de se pensar alternativas para o dilogo entre a sociologia nacional e aquela

    formulada em mbito internacional, que no impliquem, necessariamente, em uma

    submisso da periferia s elaboraes tericas feitas no centro. Na prxima seo,

    procuraremos destacar como uma agenda reflexiva em torno desta questo deve se

    ancorar em uma perspectiva cosmopolita, sem que se perda de vista a importncia das

    questes nacionais. Ou, em outros termos, trata-se de pensar essa questo a partir de

    um horizonte normativo em torno de um cosmopolitismo de conexes.

    Cosmopolitismo e nacionalismo

    Nessa seo, nos interessa pensar mais detidamente a prpria ideia de

    cosmopolitismo, na medida em que a reflexo sobre a mesma pode contribuir para o

    questionamento tanto do colonialismo muitas vezes intrnseco a propostas

    relacionadas sociologia cosmopolita, quanto do essencialismo que permeia algumas

    das formulaes daqueles que pretendem criticar este colonialismo, mediante o reforo

    exacerbado das particularidades da periferia.3 Para tanto, apresentaremos, ainda que

    de forma breve, a discusso de Craig Calhoun sobre a ideia de cosmopolitismo,

    elaborada de modo mais sistemtico em seu livro Nations Matter: Culture, History, and

    the Cosmopolitan Dream (2007), no qual o autor fornece pistas interessantes para

    problematizar tanto os essencialismos vindos das teorias cosmopolitas, quanto

    daqueles provenientes das formulaes centradas no nacionalismo metodolgico.

    De acordo com Calhoun, a noo de cosmopolitismo tem estado na moda, tendo

    adquirido nos ltimos anos uma enorme fora retrica no debate terico e poltico.

    Embora a ideia de cosmopolitismo seja bem antiga, remontando a Digenes de Sinope,

    ela vivenciou, ao longo dos sculos, uma srie de transformaes conceituais desde os

    3 No nos interessa aqui fazer uma discusso detalhada sobre cosmopolitismo. Para isso, ver, entre outros, Habermas (2001), Fine (2003), Benhabib (2006), Beck (2006) e Chernillo (2010).

  • 17

    filsofos estoicos de Roma, passando pelos europeus renascentistas e pelos filsofos

    iluministas, com especial destaque para Immanuel Kant, at chegar a tericos

    contemporneos, como Habermas e Beck, adquirindo nas ltimas dcadas uma

    enorme legitimidade nos debates pblicos e no senso comum. Diversas

    transformaes que se processaram nos ltimos anos relacionadas queda do

    comunismo, ao avano da globalizao, ao desenvolvimento de novos meios de

    comunicao e ampliao das esperanas quanto s possibilidades da configurao

    de uma nova ordem global sustentada na ideia de direitos humanos universais ,

    aliadas ao reconhecimento crescente segundo o qual a humanidade est unida por um

    mesmo destino e submetida aos mesmos riscos, tornaram, de certa forma, imperativa a

    discusso em torno da ideia de cosmopolitismo.

    Apesar das diferenas existentes nas formulaes contemporneas, a definio

    hegemnica do termo se consolidou em torno da noo segundo a qual ser

    cosmopolita significaria se comportar acima ou alm das naes, orientado por uma

    tica universal abstrata, que rejeitaria ou, pelo menos, superaria as culturas nacionais,

    tomadas como necessariamente restritivas e repressoras. No discurso cosmopolita,

    portanto, a defesa de uma viso mais ampla e abrangente do mundo pressuporia a

    transcendncia da prpria ideia de nao, que daria lugar a um compromisso com a

    humanidade como um todo. Calhoun, contudo, rejeita esta perspectiva. Segundo ele,

    tal formulao, alm de implicar frequentemente na confuso da noo de

    universalismo cosmopolita com as concepes ocidentais, legitimando toda sorte de

    imperialismos, acaba por pressupor a ideia segundo a qual o mundo cosmopolita j

    uma realidade ou, pelo menos, uma opo para todos, ignorando o fato de que ser

    cosmopolita nos termos propostos apenas uma possibilidade para poucos, mais bem

    providos de capital material, simblico e cultural.

    Embora ressalte a importncia da categoria para se pensar uma ordem

    democrtica, Calhoun preocupa-se em como articular a questo da nao s

    dimenses universalistas do cosmopolitismo. Esta articulao se faz necessria at

    mesmo porque, segundo o autor, o Estado nacional no perdeu na atualidade sua

    importncia nem do ponto de vista analtico na medida em que continua como uma

    importante categoria, tanto como ideologia, quanto como modo de organizao prtica

  • 18

    , nem do ponto de vista normativo, posto que o Estado Nao permanece como

    espao central de articulao de solidariedades diversas e de construo do bem

    comum. No se trata, claro, de uma formulao voltada para a obliterao das

    conexes globais, mas sim de uma aposta no fato de que estas conexes devem estar

    sustentadas em laos de solidariedade social, que so forjados no interior dos prprios

    pases. O que est em jogo para o autor uma espcie de cosmopolitismo de

    conexes, a partir do qual os seres humanos se articulam no apenas a partir de uma

    igualdade abstrata, mas por relacionamentos interpessoais e instituies sociais,

    criados no interior dos Estados nacionais, e que permitem o estabelecimento de redes

    de conexes entre diferentes grupos portadores de tradies locais dinmicas.

    As formulaes de Calhoun sobre o cosmopolitismo parecem sugerir uma

    perspectiva interessante para pensarmos o debate sobre o processo de produo e

    circulao de teorias entre centros e periferias. Sem rejeitar muitas das ideias e

    potencialidades contidas na noo de cosmopolitismo o que o leva a criticar

    formulaes exacerbadamente nacionalistas, que ignoram as relaes e polticas

    transnacionais caractersticas da contemporaneidade, bem como muitos dos avanos

    conquistados com um mundo cada vez mais globalizado , ele aponta os limites das

    suas promessas, que geralmente esto ancoradas em um discurso pretensamente

    universalista e que rejeita a importncia das solidariedades nacionais e locais, tomadas

    como contraditrias a um discurso moderno e democrtico. Sua abordagem tem o

    mrito de trazer uma forte aposta nas conexes cosmopolitas, desde que estas

    estejam ancoradas na valorizao das tradies nacionais que no so vistas como

    necessariamente pr-modernas e desde que se mostrem sensveis s diferenas

    materiais e culturais que esto envolvidas nesse processo e que fazem do

    cosmopolitismo uma tica atraente para alguns, mas no uma boa poltica para todos.

    Concluso

    A partir da anlise acima desenvolvida, gostaramos de concluir este texto

    chamando a ateno para a importncia do desenvolvimento de uma sociologia

    ancorada em um cosmopolitismo de conexes, que se seja capaz, por um lado, de

  • 19

    reconhecer a importncia da crtica ps-colonial, sem que isso implique, por outro lado,

    no abandono de uma perspectiva universalista. Nesse sentido, importante corroborar

    as crticas formuladas pela teoria ps-colonial e referendadas, ainda que com suas

    singularidades, por socilogos brasileiros que pensaram sobre o tema ao pretenso

    universalismo da sociologia europeia que, sob o discurso normativo a favor da

    superao do nacionalismo metodolgico, acaba por essencializar a modernidade e

    suas instituies, identificadas com aquelas existentes no mundo europeu, tomado

    como modelo nico e despido de quaisquer contradies. importante, nesse sentido,

    reconhecer a importncia da nao, em primeiro lugar, como lcus central para a

    constituio de laos de solidariedade social e para a construo de instituies

    fundamentais at mesmo para o estabelecimento de conexes cosmopolitas, e, em

    segundo lugar, para reforar a ideia segundo a qual os elementos nacionais no devem

    ser encarados como necessariamente pr-modernos, na medida em que podem

    contribuir em diversas ocasies para a formulao de discursos e prticas modernas.

    Nesse sentido, tal perspectiva ajuda a encarar as tradies nacionais de forma mais

    generosa, no mais como contraditrias ao cosmopolitismo, mas como portadoras de

    determinados elementos fundamentais para a prpria configurao de uma poltica

    cosmopolita.

    Da mesma forma que se deve criticar um universalismo abstrato, tambm faz-se

    importante evitar um nacionalismo metodolgico estreito, que ignora as formulaes

    universalistas, encarando-as sempre como movimentos de colonizao. Tal

    constatao nos permite questionar o radicalismo daqueles que, ao criticarem o

    colonialismo da sociologia do centro sobre a periferia, encaram tanto os autores que

    produziram suas obras na Europa e nos Estados Unidos, quanto os conceitos por eles

    formulados, como instrumentos do imperialismo sobre os pases e as sociologias do

    Sul, enquanto os socilogos do Sul e suas teorias passam a ser vistos

    necessariamente como produtores de um discurso superior. Ao invs de se buscar

    complementaridades, o discurso que busca romper com as hierarquias vigentes resvala

    naquilo que pretendia criticar: a essencializao do outro, visto como oponente a ser

    combatido. A nfase na necessria maldade dos autores e dos conceitos formulados

    pelo centro contra a imperativa bondade dos autores e dos conceitos elaborados na

  • 20

    periferia, que leva determinados crticos ps-coloniais defesa de um incondicional

    nacionalismo metodolgico, no rompe em absolutamente nada com o essencialismo,

    mas apenas o desloca de lugar.4

    Dito isso, podemos concluir afirmando que as propostas para a construo de

    uma sociologia pblica global, como advoga Burawoy, ou de uma sociologia

    cosmopolita, como defendida por Beck, destacadas no incio do artigo, no devem ser

    descartadas a priori, como pode-se desprender de um discurso radicalmente a favor do

    nacionalismo metodolgico, mas, pelo contrrio, devem ser convertidas em objetos de

    um profundo dilogo no campo sociolgico, que envolva de maneira democrtica os

    segmentos das diversas sociologias nacionais. Variados problemas pblicos globais

    esto colocados na agenda poltica internacional ou podem ser problematizados na

    contemporaneidade, cujas solues exigem um dilogo e uma postura cosmopolita por

    parte dos socilogos do centro e da periferia. Contudo, essas solues devem levar

    em conta as tradies nacionais e os laos de solidariedade local, inclusive, para evitar

    o risco de que sadas pretensamente universalistas, formuladas a partir da Europa e

    dos Estados Unidos, sejam tomadas como as nicas corretas para serem

    simplesmente aplicadas e reproduzidas nas periferias.

    As conversas tericas que socilogos brasileiros vm buscando estabelecer com

    a crtica ps-colonial so passos importantes no sentido de abrir novos caminhos para

    pensarmos nas relaes entre sociologia brasileira e a sociologia mundial, de modo a

    evitar essencialismos nacionalistas e universalistas. Como bem observado por Jos

    Maurcio Domingues (2007, p.11), no se trata de reivindicar uma teoria sociolgica

    autctone, at mesmo porque esta se constituiu como um empreendimento geral,

    sem fronteiras, mas sim de recusar colonialismos intelectuais. Um cosmopolitismo

    de conexes, capaz de tecer articulaes e redes de colaborao intelectual, parece

    ser uma abertura interessante nesse sentido.

    4 Em seu artigo na Global Dialogue, Raewyn Connell (2010a) flerta com posies deste tipo ao criticar a sociologia cosmopolita proposta por Ulrich Beck. Embora seu texto contenha crticas pertinentes ao cosmopolitismo de Beck, ela fora o argumento ao tentar demonstrar, por exemplo, que autores como Bourdieu produziram teorias influentes apenas por serem oriundos de uma metrpole global. Pode-se concordar ou discordar da teoria bourdieusiana, bem como destacar a importncia de outros autores to relevantes quanto ele que produziram suas obras fora da Europa e Estados Unidos e que no receberam a mesma audincia, e pode-se criticar aqueles que aplicam suas idias periferia sem qualquer filtro. Mas negar-lhe estatuto de universalidade por ter produzido sua obra no centro conduz a certo exagero.

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