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Da letra de mão à letra de forma: percursos da caligrafia nas artes e nas técnicas Francisco G. Cunha Leão Oficina tipográfica do séc. XVI; gravura sobre cobre de Théodor Galle, desenho de Jan van der Straet. Ilustra os vários cavaletes de tipo, com as folhas originais de que o oficial compositor e o revisor se ocupam. Ao fundo, o transporte do papel e a mesa com os atados de papel a imprimir; do lado esquerdo, um impressor fazendo a tintagem da forma no mármore da prensa; outro impressor accionando a alavanca da prensa; num estendal, várias folhas impressas, que, depois de secas, um aprendiz vai juntando em maços. Assiste-se nesta época de fim de milénio à revolução que o computador e as «artes» da informática proporcionam: revolução porque implica qualitativa e quantitativamente uma alteração nos padrões tradicionais de cultura e civilização, com as respectivas incidências sociais, económicas ou religiosas. O seu alcance estará bem longe de ser medido ou avaliado. O que não acontece com semelhantes revoluções que sofreram aqueles que viveram os primórdios da tipografia de Quatrocentos, e ainda aqueles que há milénios transcreveram num suporte de terra endurecida, manualmente e com o auxílio de um estilete, os primeiros signos de transmissão do pensamento humano pela grafia, aos quais podemos fazer coincidir os grandes impérios da Antiguidade e respectivas civilizações; pelo que se pode afirmar que a invenção da escrita não é de forma alguma um processo concluído, quer nas suas múltiplas formas de expressão, quer nos seus efeitos. A nossa preocupação neste estudo centra-se exclusivamente nos aspectos que tiveram incidência directa na ligação da caligrafia e da sua actividade, com o seu natural Página 1 de 14 Da letra de mão à letra de forma 26/3/2004 file://E:\_Universidade\Pagina%20USJT%20-%20Prodgraf\arquivos\Da%20letra%20de%2...

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Da letra de mão à letra de forma:

percursos da caligrafia nas artes e nas técnicas

Francisco G. Cunha Leão

Oficina tipográfica do séc. XVI; gravura sobre cobre de Théodor Galle, desenho de Jan van der Straet.

Ilustra os vários cavaletes de tipo, com as folhas originais de que o oficial compositor e o revisor se ocupam. Ao fundo, o transporte do papel e a mesa com os atados de papel a

imprimir; do lado esquerdo, um impressor fazendo a tintagem da forma no mármore da prensa;

outro impressor accionando a alavanca da prensa; num estendal, várias folhas impressas, que, depois de secas,

um aprendiz vai juntando em maços.

Assiste-se nesta época de fim de milénio à revolução que o computador e as «artes» da informática proporcionam: revolução porque implica qualitativa e quantitativamente umaalteração nos padrões tradicionais de cultura e civilização, com as respectivas incidências sociais, económicas ou religiosas. O seu alcance estará bem longe de ser medido ou avaliado. O que não acontece com semelhantes revoluções que sofreram aqueles que viveram os primórdios da tipografia de Quatrocentos, e ainda aqueles que há milénios transcreveram num suporte de terra endurecida, manualmente e com o auxílio de um estilete, os primeiros signos de transmissão do pensamento humano pela grafia, aosquais podemos fazer coincidir os grandes impérios da Antiguidade e respectivas civilizações; pelo que se pode afirmar que a invenção da escrita não é de forma alguma um processo concluído, quer nas suas múltiplas formas de expressão, quer nos seus efeitos.

A nossa preocupação neste estudo centra-se exclusivamente nos aspectos que tiveram incidência directa na ligação da caligrafia e da sua actividade, com o seu natural

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desenvolvimento na letra de forma, ou impressa. Existe, de facto, um paralelelismo de soluções, uma transposição de técnicas e de estilos que são inquestionavelmente resultado tanto da tradição como da inovação.

Na atividade complementar da escrita, copista e impressor são opostos liminarmente no que se refere à ideia de qualquer acto criador: um translitera fielmente, o outro possui já o génio da invenção ligado à técnica. Se qualquer inovação subsiste, é a nível artístico ou mais propriamente ornamental: o estilo tudo diz, quanto à observação. A técnica situava-se para aquém do plano alquímico, talvez dos matizes das tintas, dos preparos sequenciais da iluminura que se seguia à transcrição caligráfica do texto em cópia, em modos esmerados, imitação ou aproximação à obra divina e ao mero acto de criação, como um espelho, obra de fé.

É do senso comum afirmar que a caligrafia tem o seu início, como arte, em Carlos Magno, ou seja, obra de engenhosos gauleses, que instituíram a famosa letra carolina. Tal não será assim: torna-se evidente que a caligrafia, cuja grafia, era mecanizada pelo cálamo, tem sistematização no mundo romano e grego, pelo menos, e só para nos referirmos à antiguidade clássica ocidental.

A caligrafia, com o cálamo, como instrumento de gravação ou de inscrição pela tinta, é identificada nas escritas do Oriente médio, entre as civilizações egípcias, hitita, suméria ou acádica. É já uma arte semi-mecânica, pois socorre-se instantâneamente do cálamo, antepassado da moderna caneta, quer actuasse sobre placas de argila ou barro, no papiro, no pergaminho ou no papel.

* * *

Não se pense que no mundo medieval as artes da escrita coexistiam com a desorganização ou com a improvisação: certamente uma boa dose de intuição ou imaginação eram necessárias no ambiente dos scriptoria a par com a erudição, que se exprimia exigência de dispor cada vez mais de cópias de todo o corpus do saber.

O copista, ou «escriba» (hoje tomado num contexto algo depreciativo), incluía-se originariamente em dois níveis como o religioso e o administrativo (chancelarias reais, judiciais ou fiscais). Obedecia a uma estrutura profissional que posteriormente se organizou nos modelos corporativos dos mesteres e guildas ou em confrarias laico-religiosas, não só à sombra dos mosteiros, mas também das universidades e chancelarias, com o advento do fenómeno da burguesia nascente.

Oscriptoria exigia uma divisão precisa, sequencial e anónima de várias tarefas até chegar ao resultado final do volume ou códice manuscrito, cópia fiel de uma matriz, o exemplar. A cópia era fundamentalmente um acto repetitivo em que a letra era norma fixa na fidelidade ao texto princeps, à pontuação, às regras das linhas ou ao estilo no desenho da letra. A intuição ocorreria em certas passagens obscuras de difícil interpretação, no desenvolvimento ou utilização das abreviaturas no texto, em certas inovações estilísticas a nível caligráfico. A imaginação intervinha mais no nível meramente artístico e criador, na decoração das iniciais capitulares historiadas ou floreadas, na ilustração da iluminura.

A tarefa mais humilde era preparar o suporte da escrita, o pergaminho ou o velino, para além do papel, cuja utilização foi aumentando com a sua vulgarização e disponibilidade,

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pela dispersão, no século XV, de fábricas de papel por toda a Europa: nessa época, o pergaminho era comercializado (dependendo da sua qualidade e acabamento), cerca de 12 a 15 vezes mais caro do que o papel. O papel, mais frágil e efémero, beneficiava do factor da desconfiança num meio técnicamente pouco inovador, conservador pela disciplina dos métodos, avesso à precaridade ou à funcionalidade que o papel representava, nos actos do quotidiano, como a simples carta ou missiva para além do registo contabilístico.

A preparação do suporte consistia ó após o corte em folhas de formato previamente definido, obtendo-se o folio ó, em fazer o risco da folha, isto é o seu riscado (as linhas em intervalos regulares) e o seu pautado (as margens) em esquadria, calculando e definindo a proporção das margens com a mancha do texto (sua justificação) a preencher. Essa proporção, o mais das vezes feito insuspeitadamente com o apoio da geometria, estabelecia a largura e o comprimento do rectângulo de texto com a maior ou menor proporção da largura das margens, criando, por assim dizer, o regime dos brancos e a perfeita harmonia das respectivas superfícies, isto é, o espaço ocupado pelo negro ou sépia das letras ou o colorido dos motivos iluminados.

Pela oposição entre os brancos das margens e entrelinhas com a superfície manuscrita (ou impressa, como se verá), resultava o equilíbrio da arquitectura e da economia da página, a ponto de permitir a conclusão de que a maior proporção de espaços em branco determina a riqueza e sumptuosidade da obra final. Essa arquitetura da empaginação foi desde logo observada nos primeiros livros impressos: podemos ir buscar a Villard de Honnecourt, famoso arquiteto francês do século XIII, a técnica desse risco da página, cujo traçado se exemplifica e deduz geometricamente.

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[fig. 1]. Construção da mancha de texto segundo o traçado de Villard de Honnecourt.

Os números indicam a ordem pela qual devem ser traçadas as diagonais.

Ou a construção do tipógrafo argentino Raul Rosarivó, que deduziu o traçado regulador da empaginação usada na Renascença, identificando-o com as medidas usadas por Gutengerg na Bíblia de 36 linhas.

[fig. 2]. Formato segundo a projecção de Raul Rosarivó.

Da preparação da folha seguia-se complementarmente a composição das tintas quer de escrita, quer de iluminura, bem como todo o instrumental, a régua, a pena, a raspadeira, antepassada da borracha e todo o instrumental de pintura, bem conhecido e estudado hoje em dia. A preparação das tintas de escrita obedecia a um verdadeiro receituário, quase iniciático e frequentemente secreto, em que intervinha o mais das vezes como base a noz de galho e o negro de fumo, a par com óleos e resinas; da sua preparação, da fluidez ou consistência obtida dependia o bom resultado da sua aplicação, sob a forma manuscrita ou impressa, com diferentes soluções para o pergaminho, o velino ou para o papel, na sua absorção, secagem ou na durabilidade pretendida.

Em tudo isto, o papel do copista-calígrafo associado ao do iluminador, era fundamental pela arte que utilizavam e pela disciplina a que estava sujeitos. Nos scriptoria monásticos coexistiam as diferentes especializações aproveitando os meios humanos existentes ou incorporando elementos laicos cuja valia e perícia se impunham. Dá-se a sua laicização quando a importância dos burgos próximos aumenta, sutentada por uma burguesia cada vez mais activa e libertária, ou pelo letrado, clérigo ou não, o qual se emancipa do protector mundo conventual e se realiza no liceu aristotélico ou na universidade. É com a proliferação das universidades, fenómeno que se verifica a partir do século XIII, que a procura dos textos, dos comentários e glosas que faziam objecto dos estudos se torna imparável, constituindo um dos factores decisivos da insustentabilidade da cópia não ser mecanizada e multiplicada ao infinito, tal como hoje, na informatização do texto que assume aspectos preocupantes de globalização: mais uma vez, a necessidade provoca a

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inovação com consequências imparáveis. A revolução da tipografia, ou seja da invenção da letra de forma, a par com a revolução originária da escrita, foram marcos decisivos para a resultante civilizacional e cultural do mundo moderno: no meio, sempre presente, incansavelmente, o copista-calígrafo, o compositor tipográfico, o digitalizador de textos ou introductor de dados informáticos, permanecem constantes na sua essência que é a de trancrever as letras e as palavras do texto, sem a sua cabal inteligência ou compreensão, sustentados por um aparelho erudito ou criador, que vai do revisor ao tradutor, e ao comentador e autor.

A laicização dos escritórios de cópia e iluminura provoca a independência de uns face a outros com a criação de oficinas próprias: o atelier do copista-calígrafo coexiste com a loja do comerciante de pergaminhos ou de papel, com a oficina do iluminador, do rubricador, do encadernador ou a loja ou tenda do livreiro. Contudo, quem detinha originariamente a «chave» e o poder dos textos era o convento com a sua livraria, proporcionando as fontes e a transmissão do conhecimento.

Era prática comum o empréstimo entre bibliotecas conventuais de espécimes únicos, permitindo a sua cópia a quem deles necessitava. Obra acabada, o volume ou exemplarera cuidadosamente revisto com a fixação e garantia da fidelidade do texto transcrito eme como exemplar. A necessidade de cópias sucessivas a partir dessa matriz, com oaparecimento in loco da universidade (que também detinha scriptoria próprios), leva à solução inovadora do empréstimo, para além da sua venda, quer controlada pelo bibliotecário, quer pelo livreiro como mero representante ou intermediário. O empréstimo, motivado em parte pela sua componente económica, não se efectuava com a transferência temporária de todo o exemplar para cópia posterior: a sua cedência era frequentemente feita caderno a caderno, ou seja, à peça (pecia).

* * *

O primeiro embate entre a cópia manuscrita e a folha impressa deu-se a nível primário entre a iluminura e a gravura, mercê da utilização de uma prensa ou prensagem manual: datam do século XIV as primeiras gravuras talhadas sobre blocos de madeira, axilogravura, com alguns textos também gravados a acompanhar as ilustrações:

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[fig. 3] Bloco xilográfico ilustrado com cenas do Apocalipse e respectivos comentários.

a miniatura iria perder gradualmente terreno perante a gravura em madeira ou em cobre impressa sobre o papel; a cor cedia terreno perante a subtileza do branco e do negro, cuja utilização no desenho era apesar de tudo mais forte em contrastes e menos perfeita nos seus contornos. Dessa primeira fase se conhecem folhas volantes, hoje muito raras, com figuração de santos acompanhadas de textos com orações ou trechos bíblicos; serviam para serem colocadas em oratórios ou simplesmente colocadas em portas ou paredes, tal como os calendários.Contudo, pensa-se que a primeira utilização desta técnica provém do fabrico das cartas de jogar e da indústria têxtil, para repetição indefinida dos padrões de desenho.

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Também dessa época datam os donatos, gramáticas latinas de Élio Donato, provenientes da impressão tabular ou xilográfica na Holanda e na Alemanha, as Ars moriendi ou as Biblia pauperum, já não uma simples folha impressa, mas constituindo um volume, com várias folhas dobradas ou simplesmente juntas, formando cadernos que eram posteriormente cosidos à linha e porventura encadernados em cartão, pergaminho ou pele. Para cada folha ou página era necessário executar em gravura um bloco xilográfico que era por sua vez impresso a negro ou a duas cores, o mesmo negro e o vermelho ou raramente o azul ou o amarelo.

O inventor da tipografia de caracteres móveis, Johann Gensfleish zum Gutenberg (nascidoà volta de 1400 e falecido em 1468), conseguiu executar uma síntese científica e técnica em várias actividades que pouco a pouco se aproximavam do livro impresso comoprocesso acabado: o aperfeiçoamento da prensa de rosca, para vinho ou azeite,transformada para receber o papel, a substituição dos blocos de madeira com letras por todo o processo de gravação e metalografia da letra de forma ou caracter tipográfico. Ou seja, processos derivados da tipografia xilográfica (calendários, ex-votos ou indulgências, etc.), as artes da ourivesaria no trabalho de gravação e utilização de punções de letras, vinhetas decorativas ou marcas de ourives, a fundição de bronzes e outros metais (moeda) para sinos, canhões e tantos outros artefactos. Por outro lado, reúne num só processo o calígrafo, o gravador de punções de letra, o metalúrgico hábil na obtenção da liga metálica e na respectiva fundição dos caracteres móveis , individualmente, moldados a quente, um a um, que o artífice de composição juntaria de modo a formar as palavras e as linhas consecutivas dos textos [fig. 5] em uma ou mais páginas, as quais permitiriam imprimir, após uma tintagem adequada desse conjunto ou «deitado» de letras, uma ou quantas folhas se desejasse para cópia.

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[fig. 4] Fundidor de caracteres móveis no séc. XVI. Note-se o cadinho por onde a liga de metal é vasada no molde.

Em baixo, um cesto com lingotes de tipo já fundido. Gravura de Jost Amman, 1568.

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[fig 5] «Atado» com bloco de texto ou granel, mostrando os caracteres de letra,

a justificação das linhas e espaços.

O processo implicava a necessidade de dispor de milhares de caracteres resultantes de fundição em um alfabeto ou família de tipo móvel em que comportaria uma caixa alta de tipo (maiúsculas), caixa baixa (minúsculas), as vogais acentuadas, um conjunto de abreviaturas e letras em ligatura

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[fig. 6] Cavalete de tipo moderno; as divisões móveis comportam diferentes quantidades de letra.

Esta fundição comporta cerca de 130 caracteres, dispostos segundo uma certa ordem que o compositor sabia de cor.

pelo menos, ou seja, com os primeiros góticos ou romanos, eram necessários um conjunto de punções gravados e respectivas matrizes de fundição, numa variedade que atingia sete ou oito dezenas, como mínimo, as quais proporcionariam os milhares de caracteresnecessários à composição de uma ou mais páginas.

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[fig. 7] Caixas de punções e matrizes com alfabeto grego (Museu Plantin).

[fig. 8] Molde de tipos, o instrumento cujas duas partes ajustáveis deixam um orifício aproximadamente de uma polegada de profundidade, tapado num extremo pela matriz

cinzelada e aberto na outra extremidade para deixar verter o metal fundido, e ajustável à largura de cada letra, desde o M ao I, o que proporcionava quantidades ilimitadas de caracteres de letra, para as diversas matrizes que compunham o alfabeto da língua a

utilizar.

[fig. 9] Punção, matriz, caracter fundido (Museu Plantin).

Este processo de escrita artificial, de caracteres móveis que eram compostos manualmente, durou até ao presente século na indústria tipográfica. O trabalho de corte ou gravação dos punções durava meses inteiros e exigia a especialização e a perícia de um ourives ou gravador de imagens, pois qualquer letra tinha que ter o mesmo corpo ou altura (ou proporção) de modo a poder ser disposto linearmente tal como a mais perfeita caligrafia de um copista num manuscrito. A letra de forma foi inicialmente desenhada e fundida de modo a imitar perfeitamente a letra de mão, para que, uma vez impressa, emprestasse a ilusão de que um manuscrito se tratava.

A primeira obra, com forma de volume, a ser impressa nos prelos de Mogúncia pertencentes a Gutenberg, foi uma Bíblia em caracteres góticos,

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[fig. 10] Trecho da Bíblia de 42 linhas de Gutenberg.

com o texto em duas colunas contendo 42 linhas cada, com os títulos correntes e epígrafes impressos a vermelho e iniciais capitulares manuscritas. Esta atribuição é controversa pois existem hipóteses da sua oficina datar de cerca de dez anos antes, ainda em Estrasburgo, com calendários, donatos e folhas de indulgências. É uma obra notável pela perfeição desde logo obtida, o que sugere uma longa prática e rigor, tanto no tipo de letra empregue, na empaginação e na impressão. Levou cerca de três anos a fazer, de 1452 a 1455, imprimindo cerca de 200 exemplares, dos quais 30 em velino, e os restantes em papel.

Destinada a embaratecer substancialmente o custo da cópia manual, a sua venda não foi tão imediata como talvez julgasse o impressor: as dívidas acumuladas pelo grande investimento efectuado até então, levam o principal sócio de Gutenberg, Johann Fust, ainda em 1455, a exigir o seu pagamento em tribunal, levando o impressor à ruína. Fust dirige-se de Mogúncia a Paris (aí falece em 1466), como simples livreiro, para vender a edição da Bíblia de 42 linhas ou outras edições que teria feito. A novidade era colocar no mercado volumes impressos como se manuscritos fossem. Essa questão foi exemplar, pois, anos mais tarde, com os primeiros prototipógrafos parisienses na esclarecida Sorbonne verificou-se um insurreição contra a «heresia» do livro impresso, apelidando-o de feitiçaria, ao mesmo tempo que as guildas dos copistas e iluminadores queriam proibir a existência de impressores por motivos nitidamente concorrênciais.

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[fig. 11] Colofão da primeira obra impressa em Paris, 1470.

Já em 1457, com a impressão de um Saltério [fig. 12], longo de 143 folhas, ocorre o primeiro colofão (datado e assinado) em obra impressa, complemento do explicit, e que constitui inovação como individualização do trabalho do artífice, o que raramente sucedia com as oficinas dos copistas e iluminadores, que mantinham o anonimato: «O presente volume dos salmos, decorado com belas capitulares e rubricado com suficiente realçe, foi feito com invenção artificiosa da imprensa de caracteres, sem uso de cálamo concluído com indústria para o culto de Deus. Por Johann Fust, cidadão de Mogúncia, e Peter Schoeffer de Gernsheim, no ano do Senhor de 1457, na véspera da festa da Assunção». Mais tarde, num dos derradeiros incunábulos atribuídos a Gutenberg, o Catholicon, impresso em Mogúncia, declara, com maior propriedade da Arte utilizada: «Com o auxílio do Altíssimo a cujo mando as línguas infantis se tornam eloquentes, e que muitas vezesrevela aos humildes o que esconde aos sábios, este nobre livro, Catholicon, acabou de se imprimir, sem ajuda de cálamo, estilete ou pena, mas com a combinação, proporção e harmonia maravilhosas de tipos e punções, no ano de 1460 da Incarnação do Senhor, na magnânima cidade de MogúnciaÖ»

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[fig. 12] Trecho do Saltério de 1457, impresso em Mogúncia na oficina de Fust e Schoeffer.

Desde logo se faz menção da inovação da letra de forma obtida através de punções e do seu uso tipográfico, com a combinação, proporção e harmonia dos tipos de letra. Estes três conceitos merecem ser um pouco desenvolvidos, no aspecto em como por fidelidade à letra de mão se chegou ao caracter de letra cuja harmonia no desenho, sua proporção num corpo ou tamanho e sua combinação na composição da linha e da página, resultaram na nobre arte da impressão.

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