pequenas percepções jose gil

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    ApresentaoL uiz B . L . O r landi

    Esta apresentao quer apenas uma coisa, que o possvel leitorexperimente algo certamente ocorrido com ele algumas vezes emsua vida: que ele se disponha a praticar lances de leitura nmade,isto , que sedeixe banhar por aquelas vagas de leitura que nos as-,saltam em certos momentos de descuido de ns mesmos ou dasnossas obrigaes burocratizadas. Por que desejar isso? Porque es-ses lances tm avirtude de nos mover quando, de antemo ou emface das primeiras palavras, no submetemos o escrito alheio aum/ presunoso ou cansado j sei. Ler como quem contempla um ros-to: no sabemos o que pode vir de um rosto, pois h imannciaentre elee uma espd de direito expresso inesperada. Por isso,s quando sentimos nosso olhar intensificar-se como "olhar pene-trante", diz o texto de Jos Gil, como um ver sintonizado com avariabilidade das "pequenas percepes", que chegamos a entre-ver defasagens, "deslocamentos" que pulsam na rostidade, alionde um "sorriso que se quer amigvel", por exemplo, pode sermolecularmente surpreendido como imperceptvel deslize "hip-crita", Que a leitura seja tambm assim: uma sintonia multiplica-dora de deslizamentos. Ler em estado de nomadismo, seja parausar a coisa lida como instrumento intelectual ou para fru-iacomo ocasio de gozo, pouco importa, contanto que se leia comoquem pega ondas sem a ilusria certeza de j estar dominando omar inteiro. Que o leitor se aproxime dos textos com essa alma

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    As Pequenas PercepesJos Gil*

    1. Em Diierena e repetio, em que surge pela primeira vez anoo leibniziana de pequenas percepes, estas no cessam de setornar objeto de um tratamento vago e ambguo: desde o princ-pio rejeitadas e identificadas com o virtual e com o inconsciente(tratar-se- mesmo de um "microinconsciente"), elas sero defini-tivamente substitudas pelo "molecular" apartir de O anti-dipo.

    No examinaremos aqui as razes de tal abandono. Se reto-mamos tal noo porque ela nos parece poder contribuir para aconstituio de uma semitica do infinitamente pequeno, neces-sria inteligibilidade de um grande nmero de fenmenos (emmltiplos domnios, como a esttica, a etnologia, a psiquiatria, aretrica). No tentarrnos fazer nenhuma elaborao terica; li-mitar-nos-ernos a mostrar a pertinncia da idia de "pequenaspercepes" no campo da percepo da obra de arte.2. A descrio que se segue ser forosamente esquemtica,simplificada, reduzida e redutora. Derer-nos-emos apenas no queimporta para anossa proposta, asaber, o papel desempenhado pe-las pequenas percepes no processo perceptivo do objeto artsti-co (de preferncia, visual).Tomemos a percepo de um quadro. Distinguiremos nelatrs fases, que correspondem a trs regimes do olhar:

    J os Gil, professor caredrrico da Universidade Nova de L isboa, autor de diversoslivros em portugus e francs.

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    a) Uma percepo trivial (ou meramente cognitiva) das for-mas (uma paisagem, linhas, figuras geomtricas). Fase de recog-nio, ou de apercepo, de uma estranheza que, no entanto,comporta sempre elementos familiares.b) A percepo de um outro espao ou "lugar", no qual oolhar descobre outros movimentos e outras relaes entre as for-mas, entre as cores, outros espaos e luzes. Trata-se ento dapercepo no trivial de um nexo diferente que travessa os ele-mentos pictricos. O olhar percebe, nesse momento, uma outra ""-combinao ou composio do espao, ds cores e do tempo. Emum certo sentido, precisaramos ir mais longe, pois o "espectador"entra no quadro, "torna-se parte dele". Textos belssimos de Kan-dinsky, em Olhares sobre o passado, descrevem essas transforma-es eesse salto do olhar para o nvel no trivial das "estruturas"no aparentes ou escondidas. Notemos que o pintor tem plenaconscincia desses dois nveis de percepo, e trabalha a fim eleque o olhar deslize facilmente de um para o outro. Eis um elemen-to que preciso levar em conta na tcnica - ou "cozinha" - do ar-tista, visto que nada est dado na natureza para que suas formasofeream o belo ao olhar, como dizia Kant.

    c) Por fim, em uma terceira fase, o que muda apercepo doconjunto das formas. Mais deslocamento entre apercepo trivialea no trivial. Pelo contrrio, pois nessa faseessas mesmas formasque parecem triviais "seanimam" com uma vida prpria. O objetodeixa de ser "objetivamente" percebido, atravs-de suas silhuetasou Abschattungen, porque cada percepo singular se oferece porinteiro ao olhar, sem aspectos obscuros ou dissimulados: uma ca-bana na praia de uma tela de Malvitch no possui uma parede defundo, mas, ao mesmo tempo, no sepode falar que lhe falte essaparede (no vemos aparede e, ao mesmo tempo, queremos v-Ia).Doravante, cada forma vai se inserir em uma mulriplicidade vir-rual obtida pelo deslocamento do nvel trivial para o nvel percep-:;'.0 no trivial.

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    Este terceiro nvel de percepo, que poderamos chamar de"esttico" ou "artstico", comporta trs caractersticas essenciais.Em primeiro lugar, trivial eno trivial coincidem nesse nvel, masdeixam aberta essa diferena. O olhar v muito bem a paisagemobjetiva, as casas, as rvores, os camponeses. No entanto, ele os v" transformados, cheios de fora, como se uma intensificao dasformas e das cores tivesse se produzido por conta da coincidnciado trivial e do no trivial (a estrutura escondida que agora vis-vel). Em segundo lugar, a percepo trivial, ainda que esteja pre-.sente, deixa de ser pregnante. Ela passa para o ltimo plano,enquanto as relaes, que antes eram no visveis, chegam ao pri-meiro plano. E, por fim, a percepo no se d mais como sim-plesmente cognitiva ou unicamente sensorial. Trata-se agora deuma percepo de foras. Costumamos dizer que um quadrobem-sucedido "poderoso"; e de uma tela que tenha fracassado,diramos que "fraca" ou que no produz nenhum "impacto"; tra-ta-se de uma linguagem de foras.

    Porque aquilo que torna singular essa marina de Turner, paraalm de sua composio, da organizao de seus elementos e des~us "s.ignos", uma certa qualidade da fora que emana da tela.Essa qualidade temsLEJ-sntensidades prprias, suas velocidades decor ede profundidade. Ela possui, ao mesmo tempo, modulaesinfinitas da fora que dela se emana, e uma singularidade que fazcom que sejaum Turner, eque dentre as telas de Turner seja essaamarina em questo, e no uma outra.

    De onde vem essa dupla caracterstica da fora artstica? Oque uma linguagem das foras? E por que toda obra de arte umreservatrio inesgotvel de foras?3. Recordemos brevemente (e sumariamente) o que L eibnizescreve sobre as pequenas percepes, j que a percepo de umquadro revela uma dinmica de percepes mnimas.O primeiro nvel trivial remete-nos a representaes e forasmacroscpicas (melhor dizendo, a representaes que absorvem

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    foras imperceptveis). Ora, quando o olhar descobre as relaesdissimuladas que constituem o nexo da obra, surge uma espciede nuvem de pequenas percepes que primeiro envolve edepoisimpregna etransforma as formas visveis triviais; no final, quandoo quadro percebido na singularidade de sua fora, ainda deblocos de pequenas percepes que precisamos.

    Isto , o que permite definir a fora como um "invisvel vis-vel", maneira de Merleau-Ponry com respeito aos traos de Klee,no apresena de algo visvel que o olhar captura na fora. Por-que possvel que o olhar no captute, mas que ele prprio sofrauma transformao. E, sobretudo, no podemos nos fechar na ca-tegoria da "presena" fenomenolgica, este invisvel que aarte tor-naria visvel. Estamos diante de um outro tipo de fenmeno.Como sabido, Leibniz cara~teriza as pequenas percep-es pela ausncia de conscincia de si: elas so percepes sem

    apercepo, mas acompanhadas de conscincia. Por no teremconscincia de si, so "insensveis" ou "imperceptveis", ou seja,inconscientes. Inconscientes porque microscpicas ou porque, seunidas umas s outras, no se deixam distinguir. Ou ainda por-que, se fracas ou pouco intensas, no chegam ater uma percepodistinta de si mesmas. I \;Leibniz gosta de dar muitos exemplos: o barulho do moinho

    que seapaga em nossa conscincia por meio do hbito eda repeti-o. O barulho no deixa de impressionar menos anossa audio,mas no o ouvimos mais - ele se tornou uma percepo inconsci-ente. Ou o exemplo do brado das ondas do mar, composto de ru-dos mltiplos das pequenas ondas que fazem parte dele. Ouvimosapenas o brado da grande onda, da qual, entretanto, no teramosconscincia se apreendssemos tambm as impresses sensveismicroscpicas da infinidade de ondas pequenas, das quais no te-mos uma conscincia distinta ou conscincia do todo.As pequenas percepes, escreve Leibniz, so percebidas "con-fusamente em suas partes e claramente no seu conjunto". A per-

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    cepo confusa no possui elementos suficientes para quepossamos defini-Ia, ainda que possamos distingui-Ia das outras. Aidia confusa no se ope idia clara, mas idia distinta. H,ento, idias (ou percepes) simultaneamente claras e confusas;claras porque possuem ao menos um elemento que permite dis-

    " ringui-las das outras, mas no elementos suficientes para que sai-bamos o que elas contm: o que permitiria defini-Ias (caso dasnicas idias claras e distintas).

    A percepo do brado da grande onda clara e confusa; claraporque podemos distingui-Ia da percepo de um outro barulho econfusa porque no podemos separar claramente os elementosque a compem (a quantidade, a intensidade, a forma dos baru-lhos das ondas pequenas).

    Leibniz tambm descreveu, porm, um outro tipo de peque-nas percepes, sem diferenci-Ias de maneira ntida daquelas pr-prias ao rudo do moinho e das ondas pequenas. Alm de formaras macropercepes, as pequenas percepes asseguram, ainda, afuno de passagem entre as duas macropercepes.

    Como se sabe, na mnada, na qual s existem apercepes,percepes e apeties, estas ltimas marcam o movimento detransio entre as percepes. Esse movimento provocado poruma fora, e sua percepo garantida pelas pequenas percepes:h uma continuidade absoluta no movimento das percepes,mesmo quando no nos apercebemos dele. O princpio de conti-nuidade - psicolgica, mas tambm metafsica - se apia na exis-tncia das pequenas percepes.

    Isso significa dizer que podemos reunir em uma outra catego-ria as pequenas percepes que garantem a passagem de uma ma-cropercepo outra. No se trata mais de pequenas percepes,como componentes do brado da grande onda, mas de percepesintersticiais, descritas nos fenmenos que Leibniz evoca: infinitaspequenas percepes marcam a transio entre a viglia e o sono,

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    entre a corda estendida ea corda relaxada do arco. Entre as duasmacropercepes passamos por uma infinidade de estados inter-medirios aos quais corresponde uma infinidade de percepesinfinitesimais.

    Essas pequenas percepes diferem das precedentes porqueno compem nenhuma macropercepo visvel. Eis como Leib-niz as descreve no Prefiicioaos Novos ensaiossobreo entendimentohumano: "So elas [aspequenas percepes] que formam esse nosei o qu, esses gostos, essas imagens; das qualidades dos sentidos,claras no conjunto, mas confusas nas partes, essas impresses queos corpos vizinhos provocam em ns, que envolvem o infinito,essa ligao que cada ser possui com o resto do universo. Podemosdizer que, por conseqncia dessas pequenas percepes, o pre-sente est pleno do futuro e carregado do passado, que tudo (crO}lT IV Ol C l. T I C I .\lTCI . , como dizia Hipcrates), e que, na menor dassubstncias, os olhos to penetrantes quanto os olhos de Deus po-deriam ler toda a sucesso das coisas do universo."

    As pequenas percepes asseguram tambm a continuidadeentre a conscincia e o inconsciente, continuidade na escala daspercepes das mnadas. H infinitos graus de conscincia por-que h uma infinidade de estados intermedirios - desde aqueledas mnadas "todas nuas", daMonadologia, no qual a conscinciacapturada por uma espcie de turbilho ede vertigem, at os es-tados de percepo clara e distinta que excluem toda confuso. \

    Podemos, ento, considerar dois tipos de pequenas percep-es: a) as percepes infinitesimais, imperceptveis, visto que sopequenas demais para serem percebidas. Temos uma ~onscinciasubliminar delas, como aquela que acompanha o barulho das on-das pequenas; b) as pequenas percepes, que recobrem as des-continuidades aparentes entre as percepes. De fato, ainda que aquesto no seja tratada por Leibniz, no podemos reduzir esta ca-tegoria primeira, em nome do continuum, cujo tecido formado

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    precisamente pelas pequenas percepes. Mas isso remete a umadiscusso sobre o continuum no campo da doutrina leibniziana -o que no nos interessa no momento.

    4. Aproveitemos essa questo, em todo caso, para alargar anoo de pequena percepo, fazendo com que ela no dependamais unicamente da diferena de escala. Dito de outra maneira,enquanto Leibniz no distingue a percepo comum da pequenapercepo, graas escala de grandeza que as separa (provocandooutras linhas distintivas), tentaremos definir a percepo mnimapor sua natureza, muito diferente desta da macropercepo.

    Tomemos um rosto e, sobre esse rosto, um sorriso. O sorrisose quer amistoso e, entretanto, percebemos nele um "no sei oqu" que nos revela exatamente o contrrio: eleesconde umaanti-paria profunda, mesmo uma hostilidade. Todavia, apenas umolhar penetrante captura o deslocamento entre aquilo que o sorri-so pretende exprimir e o que realmente exprime. Esse desloca-mento percebido graas s pequenas percepes: trata-se de umsorriso "imperceptivelmente" hipcrita.

    Uma anlise simples mostraria que o deslocamento seestabe-lece entre o conrextothabitual das linhas de rosto que acompa-nham esse sorriso e um novo contexto criado por uma nfimamudana de um ou dois elementos; mudana no suficientemen-te grande para que aqualidade do sorriso sealtere de maneira per-ceptvel e j bastante eficaz para fazer surgir uma diferena decontex~Q_que perturbe ("imperceptivelmente") a percepo dosorriso"J'?ito de outra forma, as pequenas percepes nascem deum deslocamento entre dois contextos: Icom efeito, a sombra quenasceu nesse sorriso no remete aum o-utro sorriso que sedissimu-laria por trs de uma aparncia, mas a uma ~ferena interna sur-gida na prpria_J9..lma do sorriso sincero. Or, essa diferenainterna - que se dissolve em uma diferena entre dois contextos:um, habitual, tornado virtual; o outro, novo, tornado atual- no

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    temforma visvel, j que essa "sombra" de sorriso apenas uma se-parao, uma diferena, um vazio.Entretanto, "percebemos" alguma coisa que seprende ao sor-

    riso visvel. Chamemo-Ia de ocontorno de um vazio.Setomarmos o exemplo de uma palavra que repentinamenteacumula pequenas percepes que lhe invertem o sentido, tera-mos um deslocamento entre dois contextos (de entonaes, degestos, de sons, mesmo desituaes globais deenunciao) eobte-ramos pequenas percepes de silncio, de separaes entre aspa-lavras ou as frases, ou entre os contextos. A sombra imperceptvel(e, no entanto, percebida), lanada sobre essa palavra, poderia serchamada de ocontorno do silncio.

    O que supe que capturaramos mais do que uma seqnciaisolada de pequenas percepes; capturaramos quase uma forma(um "contorno"). Precisaramos dizer que setrata, provisoriamen-te, da forma de uma ausncia.Como diz Leibniz, as pequenas percepes so "essas impres-ses dos corpos vizinhos que envolvem o infinito". Elas compemnuvens ou "poeiras" (expresso de Leibniz). Preferimos chamar es-sas poeiras de atrnosjeras. Pois as pequenas percepes fornecemimpresses confusas mas globais, em constante movimento. E,antes de compor macropercepes - antes que as mirades de pig-t: :mentos de amarelo e' de azul que se agitam se misturem para

    definir o verde -, h uma espcie de tendncia anunciada e pres-sentida no turbilho das pequenas percepes: isso aatmosfera,Essa tendncia , na verdade, uma fora. Ela possui uma in-tensidade e uma direo. Percebemos a natureza da fora na at-mosfera que j anuncia o que vai se mostrar do ponto de vista damacropercepo. No entanto, em sua indeterrninao, aatmosfe-raj possui um vetar, um quantum intensivo, um tnus.Precisaramos dizer que aatmosfera desenha aforma dafora.O "no sei o qu" que capturamos no sorriso amistoso uma at-mosfera precisa, a forma de uma fora que atravessa as pequenas

    ',' .. '

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    percepes. E seasombra do sorriso esboa o contorno de um va-zio, justamente a forma desse contorno que nos remete formada fora.5. Binswanger eTellenbach, depois Deleuze e Guattari, sein-

    teressaram pela noo de atmosfera. Precisemos, ento, alguns as-pectos de tal noo.Seaatmosfera feita de tenses entre micropercepes por-que resulta de investimentos de afeto que abrem os corpos. Naverdade, o corpo que "percebe" a atmosfera, sua densidade, suaporos idade, sua rarefao, seu teor de acolhimento ou de excluso,

    sua velocidade de transformao, sua rugosidade ou, s vezes, seuaveludado que nos atrai como uma doena. Seo corpo percebe to-das essas modulaes da fora porque est aberto, ou seja, suasprprias foras entraram em contato com as foras da atmosfera.Pois aatmosfera induz abertura dos corpos, convidando osrno-se. Ela constitui um meioque impregna imediatamente os corpos,quebrando a barreira que separa o interior do exterior, um corpode outro corpo, os corpos e as coisas.Ei s o que a distingue nitidamente do contexto que visvel eredutvel a um conjunto de relaes ou de signos, que serniotiz-vel. A atmosfera infra-semitica, ela se estende em um con-

    tinuum. Compreendemos, ento, que o nfimo deslocamento doscontextos pode produzir pequenas percepes: atravs da fratura,assim aberta, exalam foras rapidamente captadas pelas foras docorpo. H toda uma dinmica da asmas edo exterior edo interior("um interior coextensivo ao exterior", diz Deleuze): areverso doespao interior para asuperfcie da pele, a dilatao do espao docorpo (virtual, prolongando os limites do corpo para alm dapele), o investimento e a quase-inscrio dos afetos nas coisas enos corpos. A quase-inscrio ou, mais precisamente, acriao deum meio-entre as coisas eos corpos que pertencem a ele, j que aatmosfera area. Os corpos esto serni-abertos na atmosfera. O

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    investimento afetivo no seaplica exclusivamente aum objeto de-terminado: "est no ar". (Mas uma atmosfera pode se formar en-tre dois corpos, como no encanto, no carisma, na seduo, nainfluncia de maneira geral, ou na simples amizade. Mas ento porque essescorpos sedissiparam nas rnultiplicidades de "partcu-las" ou singularidades que constituem agora a atmosfera. Adora-_mosser afetados em mil pontos.)

    Agora podemos compreender o que acontece quando, na per-cepo de um quadro, descobrimos as-estruturas escondidas sobas formas triviais. De repente, um deslocamento seestabelece en-tre essas formas eo seu novo contexto (que no mais o da paisa-gem simplesmente visvel). Eis as mesmas casas e os mesmoscorpos em outros espaos eoutras relaes (que permanecem, noentanto, quase que inalteradas): da separao entre os dois contex-tos jorram infinitas pequenas percepes que compem uma ar:mosfera vibrtil. O quadro se encheu de vida. Capturamos suapotncia precisa, a forma de suas foras, isto , a curvatura (queno possui traado figural visvel) que o movimento das pequenaspercepes esboa na atmosfera.

    Poderamos continfiar a descrio tentando nos dedicar complexidade da percepo artstica. Poderamos mostrar, porexemplo, como na terceira fase, na fase em que cessa o desloca-mento entre os contextos, aforma das foras setorna fora das for-mas; e como essa inverso jamais se completa, como a fora dasformas inverte o seu giro, de novo enecessariamente, na forma dasforas, reconstituindo aatmosfera eo deslocamento entre O triviale o no trivial; como esse movimento de oscilao se acelera, tor-nando-se quase instantneo, ecomo sequebra ou seestabiliza de-finitivamente; como a captura da atmosfera induz a uma osmosecom o espectador (o que Duchamp j havia descrito como umaosmose "material": o afeto do material se mistura ao afeto investi-do pelo artista ou pelo "observador"); ecomo essa osmose produz

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    um devir-forma intensivo - isso ( o a arnr ca_C.~ -:::: -:-:-~;:,::uma fora.

    Preferimos evocar um outro problema: seapercepo da OOfde arte antes de tudo capturada pelo contorno de um vazio oupelo contorno de um silncio - de onde jorra a forma singular deuma fora -:-'ento preciso entender essa osmose esttica (que.chamaramos tradicionalmente de "comunicao") como transfe-rncia e mistura de vazios.Primeiramente, queremos precisar que a forma de uma forasupe o contorno de um vazio. Por no possuir traado figural, ela

    constitui aqualidade intensiva prpria atmosfera do quadro. Elano delimita um contorno (nem seencontra encerrada nele). Pelocontrrio, em seu espao singular, no encontra bordas (porqueh sempre o infinito na percepo esttica), ainda que sejasemprelimitada apartir do exterior (pelo objeto que est no espao obje-tivo; epelas figuras triviais que no deixam de ser vistas). Sea res-peito da forma trata-se agora de uma fora eno de uma figura, porque entre ano-delimitao internada atmosfera eseuslimitesexternos se estende uma faixa vazia, uma separao no visvel: ointervalo que marca aautonomia paradoxal de uma fora que pos-sui uma "forma". O intervalo o contorno do vazio, que o vaziode uma distncia (que destaca aatmosfera intensiva do quadro desua percepo trivial). essevazio que abre tensesque povoam aatmosfera; eporque elesepara afora das formas triviais edas re-presentaes (que possuem um poder entrpico, absorvendo edissolvendo a energia) que tal fora tem uma forma, a forma deum vazio de formas (que parte da separao entre dois contextos).Da, ento, aintensidade pura, concentrada, amplificada, "satura-da", da fora que confere toda a pregnncia percepriva sua"forma".

    Maso que esse vazio? preciso dizer que esse vazio - umadiferena, um intervalo, algo irrepresentado - o que seacha "ins-

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    crito" na obra como no-inscrio. o lugar de uma no-ins-crio.O que uma no-inscrio? Tal idia vem de Ferenczi, esere-mos bastante breves ao evoc-Ia. H traumas psquicos to in-tensos que provocam um efeito de siderao. Tudo se apaga da .conscincia edo inconsciente. o trauma no seinscreve. No seu lu- .gar surge um "branco psquico". De outra maneira, no que diz res-:pei IO u;nsferncia e contratransferncia, Pierre Flida se..ocupou dessa noo de "branco psquico". A dificuldade do ana-lista, insiste Ferenczi, surge da ausncia de qualquer trao do trau-ma, at mesmo no inconsciente.

    Transformando-se essa idia de no-inscrio, possvel le-v-Ia para outros domnios. Por exemplo, ao prprio cerne da vidasocial. O horror das imagens dos massacres, vistos na televiso, ra-ramente seinscrevem - ainda que elas no deixem de ter seus efei-tos: porque, curiosamente, elas sideram, no sentido de Ferenczi,ultrapassam o limiar atual de tolerncia ao sofrimento, mas tam-bm porque as condies miditicas de comunicao das imagensprovocam uma anestesia diante das imagens do sofrimento dosoutros. Assistimos a elas, e aquilo que deveramos experimentarno mais experimentado. No mais o trauma o que sidera, so-mos ns que j estamos, de antemo, siderados e anestesiados,im.uuzados contra os traumas e a violncia. Tornamo-nos bran-cos psquicos; ou melhor, praias cada vez mais extensas de brancospsquicos invadem nossa conscincia e nosso inconsciente.

    Trata-se de um fato banal ebastante bvio. Poderamos partirde pequenos fenmenos to sutis quanto aquele que Walter Ben-jamin descrevia quando, ao falar dos transportes pblicos, notavaque, sem dvida alguma, os seres humanos jamais conseguim semanter sentados um em face do outro, sem se falar, por muitotempo. O no-evento, aevaporao do sentido, a no-inscrio setornaram constantes na vida cotidiana do homem ocidental.

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    Voltemos arte. O que , ento, esselugar vazio cuja forma dafora, graas s pequenas percepes, compe um "contorno": Oque o contorno do vazio ou do silencio? o lugar da no-inscrio. E isso no significa que aobra de arte inscreva o que foiapagado como inscrio, mas que ela inscreve o lugar perdido dano-inscrio.A arte inscreve o lugar da no-inscrio, abre-o, cerca-o e odefine. O que nos toca em uma tragdia de Sfocles no a nossa

    "identificao" com os personagens, mas a abertura, em ns, demltiplos possveis (que eventualmente conduzem a um de-vir-personagem). (Empregamos "possvel" aqui em um sentido li-geiramente diferente do "virtual" deleuzeano; em todo caso, nosentido de um devir-outro prprio singularidade.)O lugar desses possveis, o movimento que permitir os devi-res-outro reais, traa seu contorno: eis a inscrio do lugar dano-inscrio. Ento, apea de Sfocles no mais do que o jogodas inscries possveis, ou dos mltiplos devires-outro que sedes-dobram a partir desse lugar.Ento, o que uma obra de arte apresenta de invisvel? Nadaque no vejamos. Nem a ausncia do visvel, nem mesmo suano-inscrio. A extr[na presena perceptiva das formas, o relevo

    das cores, a plenitude das superfcies e dos volumes extraem suapregnncia do movimento invisvel de foras que inscrevem umbranco (a no-inscrio). Pois esse lugar no o negativo de umterritrio visvel, determinvel, mas o espao positivo "desenha-do" por foras edo qual elas emanam. O brilho intenso eextraor-dinrio das cores de Bonnard vem de um movimento que nos fazentrar no quadro enquanto ele entra em ns, gerando nossos pen-samentos enossas emoes. Graas sua potncia, elenos obriga adescobrir possveis insuspeitados, suscitando movimentos de es-pao que perturbam nosso conhecimento e nossa vida.

    Em suma, ao inscrever o lugar da no-inscrio, no se tratade preencher um vazio ou de traar fronteiras para aquilo que no

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    as possui, ou ainda de definir o indefinido, mas de traar um pla-no de movimento; no uma superfcie de inscrio, mas area deuma circulao infinita de foras, em que o possvel serene ao in-finito.