pensÕes e cortiÇos o espaço nos romances casa de pensão,

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras PENSÕES E CORTIÇOS: o espaço nos romances Casa de pensão, de Aluísio Azevedo e Suor, de Jorge Amado Leonardo de Andrade Castilho BELO HORIZONTE 2011

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAIS

    Programa de Ps-Graduao em Letras

    PENSES E CORTIOS: o espao nos romances Casa de penso,

    de Alusio Azevedo e Suor, de Jorge Amado

    Leonardo de Andrade Castilho

    BELO HORIZONTE

    2011

  • Leonardo de Andrade Castilho

    PENSES E CORTIOS: o espao nos romances Casa de penso,

    de Alusio Azevedo e Suor, de Jorge Amado

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Literaturas de Lngua Portuguesa.

    Orientadora: Profa. Dr. Ivete Lara Camargos Walty

    BELO HORIZONTE

    2011

  • FICHA CATALOGRFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais

    Castilho, Leonardo de Andrade C352p Penses e cortios : o espao nos romances Casa de Penso, de

    Alusio de Azevedo e Suor, de Jorge Amado / Leonardo de Andrade Castilho. Belo Horizonte, 2011.

    106 p. Orientadora: Ivete Lara Camargos Walty Dissertao (Mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de

    Minas Gerais. Programa de Ps-Graduao em Letras. 1. Realismo na literatura. 2. Naturalismo na literatura. 3. Espao na

    literatura. 4. Azevedo, Alusio, 1857-1913 - Casa de Penso - Crtica e interpretao. 5. Amado, Jorge, 1912-2001- Suor - Crtica e interpretao. I. Walty, Ivete Lara Camargos. II. Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Ps-Graduao em Letras. III. Ttulo.

    CDU: 869.0(81)

  • Leonardo de Andrade Castilho

    PENSES E CORTIOS: o espao em Casa de Penso, de Alusio

    Azevedo e Suor, de Jorge Amado

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Literaturas de Lngua Portuguesa.

    Orientadora: Profa. Dr. Ivete Lara Camargos Walty

    __________________________________________

    Ivete Lara Camargos Walty (Orientadora) PUC Minas

    __________________________________________

    Melnia Silva Aguiar PUC Minas

    __________________________________________

    Luiz Gonzaga Morando Queiroz UNI-BH

    Belo Horizonte, ____ de ____________ 2011.

  • AGRADECIMENTOS

    professora Ivete Lara Camargos Walty que com muita dedicao e afeto me

    orientou na escrita da dissertao.

    A todos os professores do mestrado em Literaturas de Lngua Portuguesa da PUC-

    MG.

    Valria Maria Pena Ferreira, professora do curso de Letras do UNI-BH, que me

    apresentou o mundo literrio.

    CAPES, que foi responsvel pelo financiamento de meus estudos.

    minha me que sempre me apoiou em todos os aspectos de minha vida.

    Ao escritores Alusio Azevedo, Jorge Amado, Coelho Neto e mile Zola. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

  • RESUMO

    Este trabalho tem como objetivo analisar o espao romanesco, pelo vis do realismo literrio,

    nas obras: Casa de penso e Suor, de Alusio Azevedo e Jorge Amado, respectivamente. No

    primeiro captulo, expus as teorias acerca do espao e do romance. Alm disso, trouxe a lume

    alguns aspectos da histria do romance naturalista e do romance de 30. Em seguida, foram

    analisados os espaos da ordem e da desordem e os discursos, pautados nesses aspectos, que

    atravessam a penso e a rua apresentadas no romance escrito por Azevedo. No terceiro

    captulo, foi realizada uma leitura acerca do cortio e demais locais expostos em Suor, para

    mostrar os espaos da alienao e desalienao. No findar desta dissertao, busquei

    evidenciar as convergncias e divergncias no espao textual dos dois romances.

    Palavras-chave: Realismo-Naturalismo, Alusio Azevedo, Jorge Amado, espao, literatura,

    cortio, penso. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

  • ABSTRACT

    This work aims to analize the novelistic space, through the literary realism, in the works Casa

    de penso e Suor by Alusio Azevedo and Jorge Amado, respectively. In the first chapter, I

    showed the theories about the space and novel. Furthermore, I exposed some historic aspects

    of the realistic-naturalistic novels. Then, the spaces of order and disorder and the speeches,

    based on these elements, that pervades the street and the boarding house were analyzed. In the

    third chapter, was realized a reading about the slum showed in Suor to expose the spaces of

    alienation and dealienation. To finish this work, I tried to show the convergences and

    divergences in the textual space of the two novels.

    Key-words: Realism-Naturalism, Alusio Azevedo, Jorge Amado, spaces, literature, slum,

    boarding house. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ............................................................................................................ 08

    2 A JORNADA ROMANESCA ...................................................................................... 10

    2.1 O romance europeu ................................................................................................... 10

    2.2 Os dois momentos do realismo ................................................................................. 13

    2.2.1 Os romances de tese no Brasil ................................................................................. 13

    2.2.2 O realismo social ...................................................................................................... 15

    2.2.3 O espao que distancia e aproxima os realismos ................................................... 17

    3 O ESPAO E O REALISMO EM CASA DE PENSO .......................................... 20

    3.1 Alusio Azevedo e sua produo romanesca ............................................................ 20

    3.1.1 Casa de penso: um romance que ficou no meio e serviu como meio .................. 21

    3.2 O espao da ordem e da desordem ........................................................................... 22

    3.2.1 A aparente ordem ..................................................................................................... 25

    3.2.2 O fatalismo do espao da desordem ........................................................................ 32

    3.2.3 A aparente ordem do texto ....................................................................................... 38

    3.3 O espao metalingustico ........................................................................................... 38

    3.3.1 Ubi societas ubi jus: Onde est a sociedade est o direito ..................................... 50

    4 JORGE AMADO E O CORTIO DO SCULO XX ............................................... 54

    4.1 Jorge Amado e a sua produo romanesca ............................................................. 54

    4.2 Suor: um romance proletrio ................................................................................... 55

    4.4 Casa/senzala ............................................................................................................... 57

    4.5 O espao metalingustico e intertextual ................................................................... 64

    4.6 Com restos de po e circo .......................................................................................... 73

    4.7 Os espaos da desalienao ....................................................................................... 76

  • 5 O ESPAO APROXIMANDO E DISTANCIANDO REALISMOS ....................... 84

    5.1 A construo dos textos atravs dos restos .............................................................. 84

    5.2 Dois sobrados ............................................................................................................. 85

    5.3 O processo de alienao ............................................................................................ 92

    5.4 A doena ..................................................................................................................... 96

    5.5 Espaos realistas que ensinam: a educao dos leitores ........................................ 99

    6 CONCLUSO .............................................................................................................. 102

    REFERNCIAS .............................................................................................................. 104

  • ! "!1 INTRODUO

    Neste trabalho, sero analisados dois romances: Casa de penso (2008) e Suor (1986),

    de Alusio Azevedo e de Jorge Amado, respectivamente. As duas obras figuram em

    movimentos tidos como realistas que esto, entretanto, separados pelo tempo. A obra de

    Azevedo foi publicada em 1884, pertencendo, pois, segundo grande parte dos historiadores da

    literatura brasileira, ao chamado movimento realista-naturalista, que teve como caracterstica

    basilar o uso do cientificismo. Por seu turno, Suor, cuja primeira edio foi publicada em

    1934, est situada, a partir de um vis histrico-literrio, no que se convencionou chamar de

    romance de 30, perodo em que o realismo literrio, em grande parte das obras, foi pautado

    pelas ideias marxistas.

    Na busca de estudar as configuraes do real nos dois romances, em suas diferenas e

    semelhanas vistas por um prisma que supera a moldura dos estilos de poca, elegi o espao

    como elemento operatrio de leitura. Assim sendo, buscar-se- analisar, por meio das

    convergncias e divergncias dos traos de ambas as obras, o espao no texto e do texto,

    levando sempre em conta o conceito de realismo ligado ao momento de publicao dos

    romances. O conceito de espao a ser utilizado ser o formulado pelo gegrafo Milton Santos

    (2008), ao lado das teorias de Roberto DaMatta (1997) que versam sobre a oposio entre

    casa e rua, j que sero alvo, desta anlise, a configurao espacial de cada habitao coletiva

    e a organizao composicional dos referidos romances. Em vista disso, as teorias de Mikhail

    Bakhtin (1993) ajudaro a mapear as vozes e o espao que essas ocupam nas narrativas.

    No primeiro captulo, ser feita uma exposio terica sobre os conceitos essenciais

    para anlise das obras, a partir de um breve trajeto histrico do romance. Dado que esse um

    gnero considerado burgus, em suas origens, importa rastrear, mesmo que rapidamente, seus

    primrdios, buscando compreender melhor como cada autor utilizou-o visando um interesse

    esttico, moral e poltico. Nesse contexto, far-se- uma apresentao da produo de Alusio

    Azevedo, para a situar o romance em anlise. Em seguida, alguns aspectos do movimento

    modernista, que se tornaram fundamentais para a volta do realismo na dcada de 1930, sero

    sucintamente expostos. Ser tecida tambm uma breve apresentao acerca do romance de

    30.

    Os conceitos de espao, ao lado da ideia de detritos veiculada por Michel de Certeau,

    sero discutidos para que possam ser utilizados, assim como a teoria de Jos Carlos Rodrigues

    (1995) sobre o lixo, durante o processo hermenutico de Casa de penso e Suor.

  • ! #!O segundo captulo contar com uma anlise espacial da obra de Alusio Azevedo

    centrada na ideia de ordem e desordem existentes na casa de penso e no fatalismo que

    atravessa a casa de aluguel de cmodos. Ademais, esses elementos sero verificados noutros

    espaos percorridos pelas personagens, como a rua, a repblica de estudantes, casas que no

    so habitaes coletivas, etc. No decorrer da explanao desses fatores, ser analisada mais

    detalhadamente a questo do lixo, o qual faz parte dos referidos espaos e est ligado s

    condutas morais e amorais das personas. Durante a anlise da obra sero trazidos baila

    alguns discursos (os que considerei mais relevantes para este trabalho e que dialogam com os

    espao da casa de penso), tanto das personagens como do narrador, examinados luz das

    teorias, sobre o romance, escritas por Mikhail Bakhtin.

    Ao romance Suor dedicar-se- o terceiro captulo desta dissertao. Assim, sero

    analisados os elementos de alienao e desalienao, os quais so fundamentais para

    compreender como funcionam os espaos apresentados na obra. Destaco que a ideia de

    fragmentao e de detritos ser lida com maior ateno, uma vez que o prprio romance Suor,

    devido sua estruturao textual, proporciona maior discusso no tocante a esse aspecto e,

    por conseguinte, uma aplicao mais aprofundada da teoria de Michel de Certeau, para que os

    supracitados elementos sejam interpretados de maneira mais produtiva. Tal como ser feito

    durante a anlise de Casa de penso, buscar-se- analisar, em Suor, os discursos que

    influenciam a estruturao do cortio e dos demais espaos apresentados na obra.

    Por fim, no ltimo captulo, estudar-se-o os elementos divergentes e convergentes

    entre as duas obras, que se do nos lugares pelos quais as personagens desempenham suas

    aes no decorrer da narrativa. Assim, apontar-se- como Azevedo, no ainda incipiente

    capitalismo brasileiro, usando as tcnicas do romance realista, antecipou ideias que seriam

    mais bem captadas, somente anos mais tarde, durante o realismo desenvolvido nos anos 1930.

    Sero abordadas tambm as doenas que atingem algumas personagens presentes nas

    habitaes coletivas. Verificar-se- como as enfermidades esto ligadas metaforicamente aos

    vcios, em Casa de penso, e alienao, em Suor. O espao do texto e no texto ser, pois,

    explorado nas duas obras, para demonstrar que os dois tipos de realismo, mesmo distantes

    cronologicamente, possuem pontos afins como a educao esttica e moral de seus leitores.

  • ! $%!2 A JORNADA ROMANESCA

    2.1 O romance europeu

    Na perspectiva mais tradicional, o romance pode ser considerado, sem dvida, um dos

    gneros literrios recentes. A forma, apesar de ter sido praticada na antiguidade basta

    lembrar do romance de Petrnio, Satiricon , no foi mencionada na Potica de Aristteles,

    nem na de Horcio. Somente durante a Era Moderna, isto , a partir do final do sculo XV, os

    autores comearam a praticar com mais frequncia a prosa romanesca. Dom Quixote, por

    exemplo, foi publicado no centnio subsequente. No entanto, apenas no ultimar do sculo

    XVIII, na Inglaterra, o gnero ganhou destaque, graas pena de Samuel Richardson, autor

    dos clssicos Pamela e Clarissa. Ian Watt, em Ascenso do romance (2007, p. 12), afirma

    que: o termo romance s se consagrou no final do sculo XVIII. Contudo, os estudiosos

    apontam que as obras romanescas desse perodo, ao mesmo tempo em que ganhavam

    popularidade, passaram a ser alvo de ataques, cujo objetivo era desqualificar o gnero.

    Pensadores como Voltaire, Diderot e Rousseau, clebres por suas ideias filosficas, atacavam-

    no, o que no os impediu de terem se rendido a ele e passado a pratic-lo.

    O fim do sculo XVIII marcaria, pelo menos simbolicamente, a queda da aristocracia

    como consequncia da Revoluo Francesa. Assim, no perodo oitocentista, poca em que a

    burguesia alcanou seu auge econmico e poltico na Europa, o romance tornou-se, de certo

    modo, a epopeia dos burgueses; em outras palavras, o gnero passou a retratar o modo de vida

    burgus em seus diversos aspectos. Inicialmente, esse quadro, pintado por meio de palavras,

    deu-se pelo prisma romntico, o qual foi responsvel por influenciar uma mirade de

    escritores, como Victor Hugo, Camilo Castello Branco, Walter Scott, entre outros.

    O sculo XIX contou com um grande avano da indstria (a Segunda Revoluo

    Industrial aconteceu em 1848) e com um desenvolvimento das cincias naturais e das cincias

    humanas. As teorias cientificistas da poca, como o Evolucionismo Social de Herbert

    Spencer, o Determinismo de Taine, o Positivismo de Comte, buscavam compreender as

    sociedades humanas. Nelson Werneck Sodr, sobre o que foi explicitado acima, aponta o uso

    de tais teorias na determinao de relaes de poder:

    A segunda metade do sculo XIX assiste expanso burguesa no mundo, e por isso

  • ! $$!mesmo, uma fase de lutas militares, de conquistas coloniais, de teorizao de pretensas superioridades proclamadas, de desenvolvimento da produo e do comrcio e, portanto, de invenes, de inovaes tcnicas de avano cientfico. (SODR, 1992, p. 41).

    Arvorando-se em verdade absoluta, tais teorias justificaram, no plano poltico e

    econmico, o chamado neoimperialismo, isto , a busca pelos mercados em colnias e antigas

    colnias e o desprezo a povos de etnias diferentes. Em suma, para os cientistas de quaisquer

    reas naquele perodo, as leis do mundo que abarcavam no s os acontecimentos da

    natureza, mas tambm o comportamento dos indivduos j estariam, pois, determinadas;

    bastava a cincia, com seus avanados mtodos, traz-los tona.

    Dizer isso importante, uma vez que os mtodos das cincias humanas eram calcados,

    em grande parte, naqueles desenvolvidos na biologia, na medicina, na fisiologia, etc. Assim,

    os escritores, imersos nesse contexto, no ficaram alheios a tais descobertas. A literatura

    romntica, cujo pilar de maior importncia era a subjetividade, no se mostrava, para os

    autores, que inaugurariam uma nova maneira de escrever romances, suficiente para apreender

    os fatos, o cotidiano e a vida da sociedade. A partir disso, eclodiu, em Frana, uma nova

    esttica, o realismo, cujo desdobramento foi o naturalismo. Aqueles que adotaram tal potica

    utilizavam as teorias cientificistas como arcabouo terico para a criao de suas produes

    literrias. Assim, surgiram escritores como Balzac (este, juntamente com Stendhal, marcaria

    uma fase de transio entre o romantismo e o realismo-naturalismo), Gustave Flaubert, Guy

    de Maupassant e mile Zola, o qual foi responsvel pela criao do chamado romance

    experimental.

    O mtodo experimental no romance, proposto por mile Zola, que era baseado, por

    seu turno, nos escritos de Claude Bernard um mdico que propunha um maior rigor

    cientfico ao exerccio da medicina , consistia na observao dos dados, em seguida, na

    coleta dos mesmos e, por fim, na aplicao desses na tessitura do romance. Enfim, para o

    autor naturalista, os escritores que quisessem, de fato, introjetar, em suas obras, a verdade,

    deviam aplicar um mtodo guiado pelo pensamento cientificista, na busca de agir de modo

    anlogo a um cientista. Os bigrafos de mile Zola descrevem o hbito do escritor de coletar

    dados que retratassem com fidelidade a realidade. O autor francs percorreu mercados

    quando foi escrever um romance sobre o comrcio de Paris , cortios, casas de prostituio e

    outros ambientes para apreender o real (SODR, 1992, p. 49-50). O romance ganhava,

    assim, o dever de trazer, dentro de uma trama ficcional, acontecimentos e situaes relativos a

    determinados setores da sociedade.

  • ! $&! Por outro lado, as obras realistas-naturalistas possuam como uma das metas principais

    a educao de seus leitores. certo que as obras romnticas e aquelas escritas no sculo

    XVIII tambm eram caracterizadas por esse vis pedaggico; entretanto, no movimento

    realista-naturalista a ideia era a de apontar os males e as enfermidades sociais que assolavam a

    sociedade, para assim conscientizar o leitor dos perigos de certas condutas. A exposio,

    baseada na viso naturalista, da podrido e das partes doentes do organismo social (as

    sociedades no sculo XIX passaram a ser vistas como os corpos humanos em que cada

    segmento possua uma finalidade, do mesmo modo que os rgos), permitia uma melhor

    maneira de corrigi-las, visto que a objetividade cientificista da nova escola apontava que

    acusar para regenerar poderia levar as sociedades a um maior progresso. Essa preocupao

    com a educao moral estender-se-ia tambm ao realismo-naturalismo praticado no Brasil e,

    posteriormente, em alguns romances de cunho marxista que ganharam espao durante a

    dcada de 1930 no Brasil.

    Isso posto, faz-se importante realar que o romance um gnero que est,

    estritamente, ligado a objetivos polticos, desde sua origem. Se nos sculos XVIII e XIX, na

    Europa, foi utilizado para propagar e consolidar o modo de vida burgus, no Brasil, a prosa

    romanesca durante o perodo romntico foi usada, juntamente com a poesia, para exaltar

    as qualidades da ptria recm-independente. O realismo-naturalismo, praticado no romance,

    por sua vez, foi fundamental para propagar as ideias de higienizao, cuja semente teria sido

    plantada ainda quando a famlia real aportou nas terras brasileiras. Algo parecido ocorreu com

    o romance marxista desenvolvido na dcada de 1930, cuja meta era tentar subverter a ordem

    vigente.

    Por isso mesmo, h que se recorrer a Mikhail Bakhtin (1993, p. 135), uma vez que o

    terico aponta que a marca primordial do romance o homem que fala e sua palavra,

    frisando que o sujeito, que fala no romance, um homem essencialmente social (BAKHTIN,

    1993, p. 135). Desse modo, pode-se dizer que ele marcado pelo tempo em que vive, ou seja,

    um ser histrico. Assim, sua fala no nunca individualizada, haja vista que seu discurso

    carrega marcas da sociedade e, consequentemente, dos espaos pelos quais ele transita. Outra

    caracterstica da fala do autor, que permeia a prosa romanesca, o fato de suas palavras serem

    um ideologema, isto , estarem pautadas por um ponto de vista particular acerca do mundo e,

    logo, do espao no qual est inserido (BAKHTIN, 1993, p. 135). Essa presena dos discursos

    pode ser intencional ou no, pois, s vezes, o escritor projeta, inconscientemente, a fala

    doutrem em sua prosa.

    Destaca-se, ento, a importncia do lugar da enunciao no romance e do romance,

  • ! $'!deixando evidente que esse , por excelncia, um gnero plurilngue. A forma romanesca

    comporta, assim, diversos tipos de discursos e um grande nmero de vozes, j que outros

    discursos atravessam o prprio discurso do autor, ou, mais do que isso, integram sua

    composio.

    O romance admite introduzir na sua composio diferentes gneros, tanto literrios (novelas intercaladas, peas lricas, poemas, sainetes dramticos, etc.), como extraliterrios (de costumes, retricos, cientficos, religiosos e outros). Em princpio, qualquer gnero pode ser introduzido na estrutura do romance, e de fato muito difcil encontrar um gnero que no tenha sido alguma vez includo num romance por algum autor. Os gneros introduzidos no romance conservam habitualmente a sua elasticidade estrutural, a sua autonomia e a sua originalidade lingustica e estilstica. (BAKHTIN, 1993, p. 124).

    O terico russo expe, pois, que, no romance, essa variedade de gneros possibilita

    um melhor enfoque de uma determinada realidade (BAKHTIN, 1993, p. 125). Como ser

    visto, nos prximos captulos, a escolha dos discursos que atravessam a obra de cada autor

    um dos fatores que norteiam a prpria construo da ideia de real.

    Importa, desse modo, considerar o gnero romance em sua relao com que o que se

    convencionou chamar de realismo.

    2.2 Os dois momentos do realismo

    2.2.1 Os romances de tese no Brasil

    Os romances cientificistas tambm foram produzidos no Brasil, com certo atraso,

    como bem aponta Lcia Miguel Pereira:

    O atraso com que foi aqui adotado o realismo o sintoma do alheamento dos escritores de ento no s ao mundo, mas s condies do pas. E tambm da maior correspondncia entre o nosso feitio e a atitude idealista. Ao embate das novas idias e condies de vida suscitadas pelo progresso cientfico e industrial do sculo XIX, desde muito caducara em Frana, nosso figurino literrio, o romantismo que aqui teimava em viver. O Guarani do mesmo ano da publicao em volume de Mme. Bovary, anteriormente divulgado por uma revista de grande prestgio. Zola j comeara a srie dos Rougon-Macquart quando Taunay escreveu a Inocncia. (...) S na dcada de 80 se modifica de modo sensvel o nosso panorama literrio. (PEREIRA, 1988, p. 119).

  • ! $(! Sim, a data que serviu de marco para o incio da produo pautada nos ditames do

    realismo-naturalismo, em nosso pas, foi o ano de 1881. Nesse ano, foi publicado o romance

    O mulato, de Alusio Azevedo, que, apesar de ter vrios cacoetes romnticos (elementos esses

    que estiveram presentes em boa parte da produo do escritor maranhense, uma vez que ele

    tambm escrevia folhetins romnticos para sobreviver), considerada a primeira obra realista-

    naturalista feita aqui. H controvrsias no tocante a isso, posto que Josu Montello, por

    exemplo, aponta que, em 1877, o romance O coronel sangrado, de Herculano Marcos Ingls

    de Sousa, j continha caractersticas realistas-naturalistas. No entanto, Montello ressalta que:

    No obstante a circunstncia de ter vindo a lume quatro anos depois de O coronel sangrado, foi o romance de Alusio Azevedo que verdadeiramente assinalou, em nossas letras, a presena da nova escola literria, com o rumor e debate que provocou, de Norte a Sul do pas. (MONTELLO, 1986, p. 69).

    Poder-se-ia dizer que Alusio Azevedo foi um dos maiores representantes do realismo-

    naturalismo brasileiro, e suas obras: O mulato, Casa de penso e O cortio esto no rol dos

    maiores clssicos de nossa literatura.

    importante destacar que a escola que se ops subjetividade romntica, alm de

    inovar, levemente, no tocante forma de composio dos romances, trouxe baila tambm

    temas que, at ento, no haviam sido contemplados pelos prosadores brasileiros. Adolfo

    Caminha, por exemplo, exps a questo do homossexualismo em o Bom Crioulo. Azevedo

    tambm no fugiu do tema, levando-o para os leitores de seus folhetins romnticos que

    continham doses de naturalismo. Em A Condessa Vsper, por meio das personagens

    Ambrosina e Laura, ele apresentou, mesmo que de forma velada, o safismo.

    Eu disse, no incio deste captulo, que as obras realistas-naturalistas foram usadas

    como uma maneira de educar os leitores, expondo a esses as feridas da sociedade. Azevedo

    procurou fazer isso educando os leitores brasileiros tambm no tocante esttica, isto , em

    relao ao gosto literrio dos mesmos. No captulo LXI da publicao em folhetim de

    Mistrios da Tijuca, ele salienta esse aspecto esttico-pedaggico.

    Diremos logo com franqueza que todo o nosso fim encaminhar o leitor para o verdadeiro romance moderno. Mas isso j se deixa ver sem que ele o sinta, sem que ele d pela tramia, porque ao contrrio ficaremos com a isca intacta. preciso ir dando a coisa em pequenas doses, paulatinamente. Um pouco de enredo de vez em quando, uma ou outra situao dramtica de espao a espao, para engodar, mas sem nunca esquecer o verdadeiro ponto de partida: a observao e o respeito verdade. Depois as doses de Romantismo iro diminuindo gradualmente, enquanto as de Naturalismo se iro desenvolvendo; at que um belo dia, sem que o leitor o sinta, esteja completamente habituado ao romance de pura observao e estudo de caracteres. (AZEVEDO apud LEVIN, 2005, p. 25).

  • ! $)!

    Certamente havia o lado comercial em jogo, uma vez que os folhetins alavancavam as

    vendas dos jornais. Entretanto, mesmo contando com essa questo mercadolgica, no se

    pode descartar que Azevedo buscava conduzir o pblico para um estilo diferente de romance,

    que ele acreditava ser o certo, isto , o mais verdadeiro.

    Esse romance verdadeiro seria aquele que tratava a realidade como referencial a ser

    representado, ou seja, a realidade era dada como algo pronto, previamente determinado. Nesse

    sentido, Nelson Werneck Sodr v o naturalismo como um movimento artificial que, na busca

    de retratar a realidade, cai no escamoteamento dessa mesma realidade. Diz o autor:

    O naturalismo, numa poca em que a burguesia e proletariado se chocavam, procurava trazer fico, como crtica, os novos quadros que a existncia europia apresentava, particularmente aqueles quadros urbanos em que se desenvolvia a tremenda luta que a acumulao capitalista proporcionava. Fugindo de figurar as suas exatas dimenses e a profundidade social de seus motivos, o naturalismo descaa inevitavelmente para o excepcional, para o isolado, para o extremo, para o arbitrrio. por isso que acaba por fixar-se no patolgico, nos tipos descomedidos, no brio, no criminoso, na histrica, no anormal, como se criaturas tais estivessem em condies de espelhar o conjunto. Nessas figuras, por outro lado, o que avultava era antes o individual do que o social, da a deformao a que se submetia a transposio da vida para arte. (SODR, 1992, p. 384).

    Observa-se que o conceito de realismo est diretamente relacionado ao conceito de

    realidade com que se lida.

    2.2.2 O realismo social

    Na segunda dcada do sculo XX, os romances de tese comearam a se tornar

    escassos no Brasil. O fato que a literatura cientificista, aps os horrores da Primeira Grande

    Guerra, de 1914, e os acontecimentos que desencadearam a Revoluo Russa em 1917, entre

    outros eventos de cunho poltico ocorridos noutras partes do mundo, no correspondia mais

    aos anseios nem dos leitores, nem dos escritores. A cincia que era tida, at ento, como uma

    verdade absoluta, foi relativizada. Em outras palavras, a f no conhecimento cientificista se

    tornou menor.

    No plano poltico, econmico e social, o Brasil tambm sofreu alteraes com

    influncia dos acontecimentos polticos internacionais mencionados anteriormente. Desse

    modo, no findar do segundo decnio do sculo XX, manifestaes anarquistas e greves de

  • ! $*!trabalhadores eclodiram. De mais a mais, na dcada de 1920, o Tenentismo, a Coluna Prestes,

    a criao do PCB contriburam para a derrocada da Repblica Velha (com o golpe de 1930

    que levou Getlio Vargas presidncia do pas), colocando fim poltica do Caf com Leite

    alternncia entre candidatos de So Paulo e Minas Gerais na chefia do Poder Executivo.

    No que toca esttica, a dcada de 1920 foi fundamental, posto que os modernistas,

    influenciados pelas teorias de vanguarda que surgiram nas primeiras dcadas dos Novecentos,

    romperam com o padro tradicional da literatura que havia sido produzida, at ento. Nesse

    sentido, Mrio de Andrade e Oswald de Andrade, entre outros escritores, influenciados pelas

    vanguardas europeias (cubismo, futurismo, expressionismo), teceram ataques mordazes

    poesia parnasianista e ao realismo-naturalismo na prosa romanesca e no conto, que j

    mostravam sinais de esgotamento esttico. Nos chamados anos heroicos do modernismo

    brasileiro, isto , em seus primeiros anos, o experimentalismo, com os diversos gneros

    literrios, com a lngua, a forma de composio das obras e a retomada de um projeto

    brasileiro de literatura (basta lembrar do Manifesto Pau Brasil do autor de Memrias

    Sentimentais de Joo Miramar), levou a literatura brasileira para rumos diferentes. A

    preocupao com a ideia de real, pautada em teorias cientificistas, foi deixada de lado.

    A dcada de 1930 contou com uma nova produo romanesca que, alm de projetar

    novos autores, passou a conter, mais explicitamente, um engajamento poltico e social. As

    experimentaes estticas, promovidas pelos modernistas dos anos 1920, foram colocadas em

    segundo plano. Desse modo, poder-se-ia dizer que o contexto histrico de 1930, marcado por

    uma presena maior dos partidos polticos e pela expanso da indstria, trazendo, por

    conseguinte, a formao de uma classe proletria assalariada, contribuiu, sobremaneira, para a

    busca por um romance calcado no vis realista, em que algumas caractersticas mais

    tradicionais foram, pois, retomadas. Sobre isso, Edvaldo Bergamo explicita que:

    A partir da dcada de 1930, ocorre um fenmeno cultural de dimenses mundiais caracterizado pelo arrefecimento dos experimentalismos de vanguarda por fora da eminncia histrica que pedia, at mesmo no plano artstico, uma ao poltica efetiva. Por necessidade de eficcia comunicativa junto ao pblico, a arte, e o romance, em particular, numa retomada do estilo realista, sob novas bases ideolgicas, apostou majoritariamente em um contedo sintonizado com os impasses sociais e transfigurado em formas estticas mais convencionais. Esse realismo reformulado, que combatia o modelo capitalista burgus, expandiu-se por diversas partes do globo, encontrando ressonncia, alis, entre os pases de literatura portuguesa. (BERGAMO, 2008, p. 52).

    O engajamento poltico de esquerda, que tinha como base as ideias marxistas, fica

    ntido em vrias obras do perodo. Nos romances de Jorge Amado, como Cacau, O pas do

  • ! $+!carnaval e Suor que objeto de anlise deste trabalho o pensamento socialista e

    comunista guia as personagens. Os livros tornam-se um forte instrumento na tentativa de

    conscientizar o proletariado para uma possvel revoluo moda da ocorrida na Rssia em

    1917.

    Faz-se importante destacar que agora o real, observado nos supraditos romances,

    dado como fruto das relaes econmicas, em uma perspectiva marxista de ideologia como

    reflexo dessas relaes.

    Nesse sentido, vale lembrar com Marilena Chau que

    a histria o real e o real o movimento incessante pelo qual os homens, em condies que nem sempre foram escolhidas por eles, instauram um modo de sociabilidade e procuram fix-lo em instituies determinadas (famlia, condies de trabalho, relaes polticas, instituies religiosas, tipos de educao, formas de arte, transmisso dos costumes, lngua, etc.). (CHAU, 1981, p. 20-21).

    A autora mostra ainda que

    alm de procurar fixar seu modo de sociabilidade atravs de instituies determinadas, os homens produzem idias ou representaes pelas quais procuram explicar e compreender sua prpria vida individual, social, suas relaes com a natureza e com o sobrenatural. (CHAU, 1981, p. 21).

    Essas representaes, inclusive a literatura, so atravessadas por valores e vozes,

    resultantes do processo enunciativo, seus sujeitos, tempos e espaos. Por isso mesmo, como j

    salientei, na busca de estudar as configuraes do real nos dois romances, em suas diferenas

    e semelhanas vistas por um prisma que supera a moldura dos estilos de poca, elegi o espao

    como elemento operatrio de leitura.

    2.2.3 O espao que distancia e aproxima os realismos

    Acredito, assim, que, mapeando a construo do espao do texto e no texto, nas duas

    obras, poderei exercer um modo mais efetivo de l-las, buscando compreender os dois tipos

    referidos de realismo em que se incluem.

    Assim sendo, determinarei o que, nesta dissertao, ser entendido por espao,

    lanando mo da teoria do gegrafo Milton Santos, que o define como

  • ! $"!um conjunto de objetos e de relaes que se realizam sobre estes objetos; no entre eles, especificamente, mas para as quais eles servem de intermedirio. Os objetos ajudam a concretizar uma srie de relaes. O espao o resultado da ao do homem sobre o prprio espao, intermediado pelos objetos, naturais e artificiais. (SANTOS, 2008, p. 78).

    Esse conceito se torna mais amplo quando se entende a ideia de paisagem, que seria,

    nas palavras de Santos (2008, p.67), tudo que vemos, o que nossa viso alcana, a

    paisagem. Esta pode ser definida como o domnio do visvel, aquilo que a vista abarca.

    formada no apenas de volumes, mas tambm de cores, movimentos, odores, sons, etc.

    Paisagem e espao se opem e se complementam, funcionando de maneira dialtica. A

    paisagem poderia ser comparada a uma fotografia, que capta um momento da sociedade.

    Porm, quando as relaes sociais juntam-se paisagem, ela ganha movimento, resultando,

    dessa maneira, no espao.

    O gegrafo alerta para a necessidade daqueles que trabalham com as teorias espaciais

    observarem as relaes entre os objetos e as aes humanas. Para Santos (2008, p. 64), ambos

    possuem uma ligao dialtica; assim, os objetos acolhem as relaes sociais e estas

    impactam os objetos.

    Para analisar de modo mais preciso o espao e as vozes que permeiam os dois

    romances que constituem o corpus deste trabalho, faz-se importante destacar que ambos

    possuem, como cenrio, duas grandes cidades: Rio de Janeiro e Salvador. Devido a isso, o

    espao citadino no texto de grande importncia, pois est no somente atrelado construo

    do enredo, mas tambm estrutura do texto.

    Por isso mesmo, importa lembrar que, durante os Oitocentos, a racionalizao das

    cidades foi levada ao extremo. As duas cidades, Rio de Janeiro (local onde se desenrola a

    trama de Casa de penso) e Salvador (cenrio de Suor) foram fortemente influenciadas pelas

    teorias racionalistas e, claro, pelas cincias que eclodiram no sculo XIX. O Rio de Janeiro,

    desde a chegada da famlia real, sofreu vrias reformas que se tornaram mais rigorosas, a

    partir da administrao do prefeito Pereira Passos, o qual tentou promover, na capital

    fluminense, as mesmas reformas feitas em Paris (alargamento de ruas, retirada dos moradores

    pobres do centro urbano, etc.). Em Salvador, no findar dos Oitocentos, foi executada uma

    obra, cujo objetivo era o deslocamento de um cemitrio da cidade. A ideia era a de afastar os

    miasmas (vapores que, segundo os mdicos da poca, provocam doenas) do local. Nota-se

    que, pautada por esse pensamento racionalista, tentou-se organizar cada ponto da cidade; os

    espaos da morte, da vida, do lazer, etc. passaram a ser regulados. O cidado que quisesse

    viver dentro de uma cidade deveria estar de acordo com essas normas.

  • ! $#!Certeau mostra que esse planejamento parte daquilo que chama cidade-conceito, que

    tem como caracterstica precpua a tentativa de (...) superar e articular as contradies

    nascidas da aglomerao humana (CERTEAU, 2008, p. 172). Em outras palavras, h uma

    preocupao em disciplinar, classificar, hierarquizar, o espao urbano (CERTEAU, 2008, p.

    175), na busca de torn-lo coerente e legvel.

    Entretanto, como foi visto, anteriormente, o espao no algo estanque, pois as

    relaes sociais alteram-no, ou mais do que isso, constroem-no, fazendo com que a ordem e o

    planejamento, pensados pelo vis da cidade-conceito, escapem pela tangente. Nesse sentido,

    Certeau (2008, p. 173) acentua que: (...) na produo de um espao prprio: a organizao

    racional deve portanto recalcar todas as poluies fsicas, mentais ou polticas que a

    comprometeriam;. Assim, o que foge organizao e o que no pode ser reincorporado

    ordem, como os desvios comportamentais, a anormalidade, a doena, deve ser, nesse discurso

    racional, eliminado (CERTEAU, 2008, p. 173). Desse modo, os que defendem os ideais da

    cidade-conceito, quando veem que seus utpicos sonhos de planejamento no se mostram

    eficazes, dizem que a cidade est se degradando, no levando em conta, portanto, as

    estratgias que fogem ao pensamento racional de controlar a urbe. As tentativas de varrer

    aquilo que considerado detrito pela administrao mostram-se ineficazes, uma vez que o que

    seria imprestvel volta e se incorpora malha citadina. O lixo, o qual incorporaria aquilo a

    que dado o nome de prticas microbianas, est muito longe de ser controlado ou eliminado

    pela administrao panptica, isto , uma administrao controladora, que no admite os fatos

    que no se encaixam em seu discurso de ordem e progresso (CERTEAU, 2008, p. 175).

    No estudo de como o espao urbano configurado pelas obras romanescas em anlise,

    ser levada, ainda em conta, uma oposio entre a casa e a rua, dois tipos de espao que,

    como o realismo presentes nas duas obras, ora se distanciam, ora se aproximam, chegando,

    at mesmo, a se confundirem. s vezes, o limite entre ambos torna-se bastante tnue. Para

    Roberto DaMatta (1997, p. 90) a oposio entre rua e casa bsica, podendo servir como

    instrumento poderoso na anlise do mundo social brasileiro, sobretudo quando deseja se

    estudar sua ritualizao.

    Ressaltem-se, pois, alguns elementos que norteiam o estudo dos dois romances, objeto

    desta dissertao: o gnero romance em sua relao com formas de realismo e os diferentes

    conceitos de real; o processo enunciativo, seus sujeitos, vozes, tempos e espaos; o espao

    urbano em sua dimenso pblica e privada, seus detritos e mazelas.

  • ! &%!3 O ESPAO E O REALISMO EM CASA DE PENSO

    3.1 Alusio Azevedo e sua produo romanesca

    Nascido em 1857, em So Lus do Maranho, Alusio Tancredo Gonalves de

    Azevedo, alm de ter sido um dos escritores mais importantes do pas, foi um dos primeiros a

    introduzir as ideias de mile Zola nas letras brasileiras. O escritor, segundo Valentim

    Magalhes, foi o primeiro a ganhar o po por meio da pena; entretanto, ressaltava que o pouco

    que conseguia com os seus escritos no dava para a manteiga. Desse modo, obrigado a viver

    de sua escrita, Alusio Azevedo publicou romances de cunho romntico (para ganhar o leitor)

    e obras realistas-naturalistas (que ele considerava as ideais). Como j foi mencionado no

    primeiro captulo, o escritor maranhense buscava educar o leitor. Partindo disso e das leituras

    feitas acerca de sua obra, poder-se-ia dizer que Azevedo produziu um naturalismo hbrido.

    Por isso, ora suas obras possuam mais elementos naturalistas (O mulato, Casa de penso, O

    homem e O cortio), ora mais caractersticas romnticas (Girndola dos amores, Filomena

    Borges, Uma lgrima de mulher).

    Brito Broca, ao comentar a esterilidade literria de Azevedo, diz que o escritor,

    depois de ser aprovado em concurso para a carreira consular, encerrou a atividade literria,

    pois no conseguia produzir mais contos, romances, etc. (BROCA, 2005, p. 48). Mesmo sem

    me aprofundar nesses detalhes de cunho biogrfico, importa salientar que a leitura do texto de

    Broca faz-se interessante, uma vez que ele comenta que Azevedo tinha como projeto criar

    uma obra, nos moldes da srie de vinte romances escritos por mile Zola, denominada de

    Rougon-Macquart. A srie descreve a histria de uma famlia no Segundo Imprio francs

    que, devido aos vcios, desmorona. Por causa dessa esterilidade literria, que Broca tenta

    investigar em seu texto, o autor conseguiu produzir, na opinio do historiador literrio, apenas

    dois romances moda de mile Zola: Casa de penso e O cortio. Na dcada de 1880,

    vontade para criar essa srie de obras no faltou. Em carta dirigida a Afonso Celso, o autor de

    Filomena Borges pede um cargo pblico para que no tenha que fabricar Mistrios da

    Tijuca e possa escrever Casas de penso (BROCA, 2005, p. 48). Alusio, nesse trecho,

    demonstra que no estava mais disposto a escrever folhetins romnticos; sua ideia era a de

    estabelecer-se, economicamente, para, desse modo, poder realizar seu projeto naturalista.

  • ! &$!

    3.1.1 Casa de Penso: um romance que ficou no meio e serviu como meio

    Escrito em forma de folhetim e, posteriormente, publicado em 1884, Casa de penso

    situa-se, no tocante data de publicao, entre O mulato, de 1881, e O cortio, de 1890.

    Nessa trade, essa obra de Azevedo, pelo menos nas histrias da literatura, foi a que menos

    recebeu ateno. No mximo, h comentrios indicando que o romance possui qualidades

    elevadas, quando comparado s outras obras do autor (as mais romnticas). Josu Montello

    (1986, p. 79) destaca que: Casa de penso e O cortio (...) situam-se no ponto mais alto da

    curva que descreve a evoluo da obra de Alusio Azevedo. Ademais, os historiadores citam

    que Casa de penso foi um alicerce para a construo de O cortio, esta considerada a

    principal obra do autor.

    Dito isso, fica claro o porqu de Casa de penso ser um romance que ficou no meio,

    dado que, alm de ter sido publicado entre O mulato obra que o marco do naturalismo no

    Brasil e O cortio, o romance analisado neste trabalho, no vis da histria literria, serviu

    apenas de escada para uma obra, cujas caractersticas naturalistas so mais evidentes.

    Casa de penso foi inspirado em um fato ocorrido no Rio de Janeiro, a questo

    Capistrano. Amplamente divulgada nos jornais na seo de notcias policiais, a tragdia

    envolvia o estudante Capistrano, o qual foi morto por Antnio Alexandre Pereira, irmo de

    Jlia, a jovem seduzida por aquele (WALDMAN apud AZEVEDO, 2006, p. 4). A questo

    Capistrano interessante na medida em que ajuda a pensar que Azevedo, como um bom

    realista-naturalista, buscava os pontos que ele considerava doentes na sociedade, e que, por

    isso, mereciam uma ateno maior de seus leitores. Entre essas partes enfermas estariam as

    habitaes coletivas e a vinda, feita de modo errado, de um provinciano para a capital, que

    alteravam a ordem da sociedade. No seria errneo afirmar que o fato de a obra ter sido

    baseada em um caso acompanhado com fervor pelos cariocas, provavelmente, teria

    alavancado as vendas do folhetim que depois foi publicado em formato de livro.

    A trama do romance consiste na ida de Amncio, o protagonista, para a Corte. O

    rapaz, oriundo do Maranho, chega capital fluminense com o intuito de estudar medicina,

    hospedando-se na casa de um amigo de sua famlia. Porm, sua estada nessa residncia

    curta, dado que, persuadido por Joo Coqueiro, ele se muda para uma penso. A ampla casa

    controlada por Coqueiro e sua esposa, Mme. Brizard, uma mulher bem mais velha que o

    marido. Os quartos so ocupados por figuras diferentes: um homem que sofre com a tsica;

  • ! &&!um casal, cuja esposa depois se apaixona por Amncio, entre outras personagens. Moram

    tambm na casa: a irm de Joo Coqueiro Amlia Csar e Nini, esta ltima persona, uma

    moa histrica que filha de Mme. Brizard.

    Na casa de penso, Coqueiro e a esposa valem-se de vrias estratgias para casar o

    estudante maranhense com Amlia. Apesar de todos os esforos empreendidos pelo casal, o

    rapaz toma a jovem somente como amante, pois fica claro no decorrer do romance que ele no

    deseja se casar com ela.

    Revoltado com a situao, Coqueiro entrega Amncio Justia, alegando que o

    estudante de medicina havia desonrado Amlia. O rapaz vai a julgamento e absolvido.

    Revoltado com a deciso do jri, Coqueiro invade o hotel em que Amncio se achava

    hospedado e mata o rapaz que falece clamando pela me.

    3.2 O espao da ordem e da desordem

    Casa de penso marcado por uma diferena entre a ordem e a desordem que se

    reflete nas personagens, nos espaos apresentados no romance e tambm na composio e

    organizao do prprio texto.

    A ordem surge, no primeiro captulo com a chegada do jovem casa de Campos, um

    comerciante metdico. Ao descrever a localizao e os aspectos exteriores da casa, o narrador

    j comea a delinear como ser a atitude do negociante, no decorrer da narrativa.

    A casa de Lus Campos era na Rua Direita. Um desses casares do tempo antigo, quadrados e sem gosto, cujo ar severo e recolhido est a dizer no seu silncio os rigores do velho comrcio portugus. Compunha-se do vasto armazm ao rs-do-cho, e mais dois andares; no primeiro dos quais estava o escritrio e noite aboletavam-se os caixeiros, e no segundo morava o negociante com a mulher () (AZEVEDO, 2008, p. 15).

    A localizao do imvel bastante reveladora. Como se sabe, a oposio entre a

    direita e a esquerda repleta de significados. No mundo ocidental, a direita est associada

    retido, ordem, quilo que correto e, em um vis poltico, ao conservadorismo e tradio.

    O imvel de Campos pauta-se por regras comerciais que no esto restritas ao armazm,

    localizado ao rs do cho, e ao escritrio. As normas do comrcio, que regem o primeiro

    pavimento, atingem tambm o segundo andar do velho casaro.

  • ! &'!

    O segundo andar vivia, pois, num brinco, nem um escarro seco no cho1. Os mveis luziam, como se tivessem chegado na vspera da casa do marceneiro; as roupas da cama eram de uma brancura fresca e cheirosa; no havia teias de aranha nos tetos ou nos candeeiros e os globos de vidro no apresentavam sequer uma ndoa de uma mosca. E o Campos sentia-se bem no meio dessa ordem, desse mtodo. (AZEVEDO, 2008, p. 17).

    A descrio desse espao, metodicamente organizado, serve para demonstrar que a

    casa do comerciante livre de quaisquer mculas, assim como a personalidade de seu dono, a

    qual calcada no cumprimento das leis. Para deixar isso claro, o autor vale-se de diversos

    adjetivos, os quais esto ligados ideia de brancura, que, por sua vez, desdobra-se na

    sensao de higiene, sade e limpeza, opondo-se, portanto, como se ver em seguida,

    desordem da repblica de estudantes e aparente ordem da casa de penso, onde o

    protagonista e outras personagens transitam.

    A desordem apresentada ainda nos primeiros captulos do livro e surge justamente

    quando Amncio encontra seu amigo de provncia, o Paiva. Por isso, numa ocasio, em que

    atravessa pela manh o beco do Cotovelo, sentiu grande alegria ao dar de cara com o Paiva

    Rocha (AZEVEDO, 2008, p. 39). Interessante notar que o beco do Cotovelo se ope Rua

    Direita, pois enquanto essa ltima simboliza a ordem, o beco o ponto de partida no Rio de

    Janeiro do trgico fim do estudante de medicina. O espao que o beco representa na malha

    citadina , geralmente, associado a crimes, e a sua prpria composio estreita, sendo, s

    vezes, sem sada, pode ser lida, no texto, como um espao que colocar o protagonista em

    situao semelhante, isto , margem da sociedade. O encontro de Amncio com o esperto

    Paiva, em um local pblico, apresentado logo no incio da narrativa, tambm um teste para o

    sonhador e ingnuo estudante de medicina que encarava a capital fluminense como uma Paris

    dos romances romnticos. A rua se configura como obstculo a ser enfrentado; nesse caso,

    apresentada como um espao, cuja regra bsica o engano, a decepo, a malandragem, essa

    arte brasileira de usar o ambguo como instrumento de vida (DAMATTA, 1997, p. 91). O

    rapaz, acostumado fcil vida provinciana ao lado da me, no possui a malandragem de

    outros jovens estudantes que residem no Rio de Janeiro; a rua para ele, desse modo, torna-se

    um espao altamente perigoso. Alm disso, no beco/rua que o provinciano conhece os

    malandros: Paiva e, por sua vez, Coqueiro, o dono da casa de penso.

    Esse referido espao indicia a desordem que se segue. A repblica onde Paiva reside,

    1 Era comum, no sculo XIX, o hbito de cuspir no cho, mesmo em casa. As escarradeiras eram, ento, muito usuais nas residncias da aludida poca.

  • ! &(!contrapondo-se casa de Campos, j um local, aos olhos do narrador, doente e perigoso.

    S acordou no dia seguinte, quando o sol j entrava pela nica janela do quarto. Sentia a boca amarga e o corpo modo. Assentou-se na cama e circunvagou em torno os olhos assombrados, com a estranheza de um doido ao recuperar o entendimento. O sujeito magro da vspera l estava no mesmo stio; agora, porm, dormia, amortalhado a custo num insuficiente pedao de chita vermelha. Do lado oposto, no cho, sobre um lenol encardido e cheio de ndoas, a cabea pousada num jogo de dicionrios latinos, jazia Paiva, a sono solto, apenas resguardado por um colete de flanela. Mais adiante, em uma cama estreita, de lona, viam-se dois moos, ressonando de costas um para outro, com as nucas unidas, a disputarem silenciosamente o mesmo travesseiro. O quarto respirava todo um ar triste de desmazelo e bomia. Fazia m impresso estar ali: o vmito de Amncio secava-se no cho, azedando o ambiente; a loua, que servira ao ltimo jantar, ainda coberta de gordura coalhada, aparecia dentro de uma lata abominvel, cheia de contuses e roda de ferrugem. Uma banquinha, encostada parede, dizia com o seu frio aspecto desarranjado que algum estivera a a trabalhar durante a noite, at que se extinguira a vela, cujas ltimas gotas de estearina se derramavam melancolicamente pelas bordas de um frasco vazio de xarope Larose, que lhe fizera s vezes de castial. Num dos cantos amontoava-se roupa suja; em outro repousava uma mquina de fazer caf, ao lado de uma garrafa de esprito de vinho. Nas cabeceiras das trs camas e ao comprido das paredes, sobre jornais velhos e desbotados, dependuravam-se calas e fraques de casimira; em uma das ombreiras da janela umas lunetas de ouro, cuidadosamente suspensas num prego. Por aqui e por ali pontas esmagadas de cigarro e cuspalhadas ressequidas. No meio do soalho, com o gargalo decepado, luzia uma garrafa. A luz franca e penetrante da manh dava a tudo isso um relevo ainda mais duro e repulsivo; o corao de Amncio ficou vexado e corrido, como se todos os ngulos daquela imundcie o espetassem a um s tempo. Ergueu-se cautelosamente, para no acordar os outros, e foi janela. O vasto panorama l de fora estremulhou-lhe os sentidos com o seu aspecto. (AZEVEDO, 2008, p. 53-54).

    Essa longa passagem do romance expe uma caracterstica importante do quarto de

    repblica, a semelhana com um crcere, que ser o destino de Amncio no findar da

    narrativa. Essa associao possvel, uma vez que h apenas uma janela, nica ligao com a

    rua, aspecto que colabora para tornar o quarto abafado e infecto. Essas caractersticas

    insalubres propiciam, pois, o surgimento de doenas, fsicas e morais. Seguindo esse

    raciocnio, tem-se a leitura de que a ordem da casa de Campos levaria prosperidade,

    enquanto a desordem da repblica, por sua vez, levaria derrocada.

    Outros elementos corroboram essa exegese. O estudante, deitado em uma das camas,

    est amortalhado, no coberto de maneira aconchegante, ou seja, seu estado o de um

    cadver. Ademais, ele usa uma chita, um tecido barato, que, de certa maneira, representa a

    pobreza do espao e a escassa moral dos estudantes, principalmente do conterrneo de

    Amncio. O lenol, que envolve Paiva, possui, do mesmo modo, caractersticas repugnantes

  • ! &)!como ndoas. Importante ressaltar esse aspecto, quando se ope o quarto casa do

    comerciante, posto que, na descrio desta, a ausncia de manchas destacada pelo narrador,

    que se vale do mesmo vocbulo, ao descrever a repblica, para trazer tona a sujeira do

    dormitrio dos estudantes. O verbo jaz, usado para descrever que Paiva est deitado, refora

    a sensao de doena e morte que permeia o lugar onde se encontram restos de comida, de

    vela e um amontoado de roupa suja. Chamo ateno para o verbo espetar, que est no

    ltimo pargrafo da passagem citada. Amncio, segundo o narrador, foi espetado pela

    imundcie do quarto, que tem todas as caractersticas de um corpo enfermo. Partindo disso,

    pode-se dizer que a doena do quarto teria sido inoculada em Amncio; a sujeira desse

    ambiente contaminar, aos poucos, o estudante do Maranho, o que ser determinante para

    sua degradao moral.

    Baseando-se no que foi dito, importa lembrar Jos Carlos Rodrigues (1995, p. 84),

    quando, nos seus estudos acerca do significado do lixo, mostra que a sujeira, por ser algo que

    ameaa a ideia de uma sociedade perfeita e ideal, rejeitada por esta.

    A leitura da obra, pelo vis espacial, aponta para a desordem que predomina na casa

    de penso e na sociedade que a abriga. Assim, o arranjo espacial, no texto, destaca a

    caracterstica precpua do naturalismo: acusar para regenerar, isto , educar os leitores

    expondo as mazelas da sociedade.

    3.2.1 A aparente ordem

    A casa de penso, o principal local onde a narrativa acontece, representa um lugar em

    que uma suposta ordem camufla a desordem. Em outras palavras, Coqueiro tenta convencer

    Amncio, como ver-se- frente, de que a habitao coletiva uma casa comum, tal como a

    de Campos, um local em que no h desvios de conduta, pois seus moradores seriam pessoas

    honestas e trabalhadoras. Em um dilogo entre Amncio e Joo Coqueiro, em que o ltimo

    tenta convencer o estudante de medicina a se mudar para a casa de penso, o leitor toma

    conhecimento dessa aparente ordem, marcada por uma rotina familiar.

    como lhe digo, recapitulava este. Aquilo no um hotel, uma casa de famlia! (...) Fica-se muito melhor em uma casa de famlia, continuava o outro. A vida em hotel ou a vida em repblica o diabo: estraga-se tudo o estmago, o carter, a bolsa; ao passo que ali, voc tm o seu banho frio pela manh, torradas noite e, se cair

  • ! &*!doente (o que lhe no desejo), h quem o trate, quem lhe prepare um remdio, um caldo, um suadouro, um escalda-ps... Olhe! at, se voc quiser, eu... (AZEVEDO, 2008, p.47).

    importante notar que Coqueiro, para legitimar sua casa como de famlia, ataca,

    justamente, os espaos que esto na contramo da ordem. Portanto, a casa do esposo de Mme.

    Brizard, em sua concepo, no seria uma habitao coletiva como as demais que existiam no

    Rio de Janeiro. Vale dizer que a expresso casa de famlia aparece em outras partes do

    romance. Nesse sentido, importante destacar que a valorizao da famlia estaria

    estritamente ligada ideia de um espao, cuja ordem dos cmodos, rigidamente delimitada,

    coaduna-se com a estrutura familiar. DaMatta expe que o espao da casa:

    (...) rigidamente demarcado e dividido pelas varandas, salas de visita, salas de jantar, cozinhas, banheiros, quarto de dormir, as dependncias de empregada e reas de servio, de tal como que a casa, como uma totalidade, revela um conjunto de espaos onde uma maior ou menor intimidade permitida, possvel ou abolida. (DAMATTA, 1997, p. 91).

    Assim, em uma residncia comum tem-se, por exemplo, os cmodos que servem

    para funes especficas. Na estrutura familiar oitocentista, pode-se observar tambm essa

    separao de funes. O pai era o provedor e o chefe da famlia, era quem, nas famlias mais

    abastadas, trabalhava para ganhar o sustento. mulher cabia a educao das crianas, o

    controle dos empregados ( poca da narrativa, tambm dos escravos) e o zelo pelo ambiente

    domstico. Aos filhos, logicamente, cabia respeitar as vontades dos pais.

    Pode-se ver que a estrutura familiar, baseada no casamento de Coqueiro e Mme.

    Brizard, e a disposio dos cmodos da casa esto, como j foi dito, ligadas, pois os espaos

    que compem um lar esto hierarquicamente delimitados. Contudo, a habitao coletiva

    tende, devido sua configurao espacial e aos moradores, mais desordem. No obstante, a

    leitura do romance mostra que h uma tentativa de se aproximar a casa de penso da

    residncia de Campos, no que toca s normas e, ao mesmo tempo, ao acolhimento e conforto.

    Entretanto, o espao da casa de Mme. Brizard e Coqueiro configurar-se- como um lugar que

    no se aproxima de um local regido e formado pelo parentesco e pelas relaes de sangue,

    elementos esses essenciais para a constituio de uma casa de famlia (DAMATTA, 1997, p.

    93).

    A apresentao da casa comea com o espao externo, ligado natureza:

    E pensando deste modo, ergueu-se disposto a acompanhar Coqueiro, que insistia em lhe mostrar a casa. Principiaram pela chcara.

  • ! &+! Olha. Isto aqui como vs!... dizia o proprietrio. Boa sombra, caramanches de maracuj, flores, sossego!... Bom lugar para estudo! E vai at o fundo. Vem ver! Amncio obedecia calado. Parece que se est na roa!... acrescentou o outro. De manh um chilrear de passarinhos, que at aborrece! Quando aqui no houver fresco, no o encontrars tambm em parte alguma! C est o terrao. Sobe! Subiram trs degraus de pedra e cal (...) Desceram, em seguida, para visitar o banheiro, o tanque, o repuxo e outras comodidades que havia no quintal, e a cada uma dessas coisas novas exclamaes e novos elogios. Subiram outra vez ao primeiro andar, pela cozinha. Um preto, de avental e bon de linho branco, moda dos cozinheiros franceses, trabalhava ao fogo. Coqueiro exigiu que o amigo olhasse para aquele asseio; atentasse para a nitidez das caarolas de metal areado, para a limpeza das panelas, para a fartura de gua na pia. A Madame, dizia ele a rir-se, com ar interessado de quem deseja convencer a Madame traz isto num brinco! Pode-se comer no cho! (AZEVEDO, 2008, p. 81-82).

    A chcara apresentada como um local de liberdade; os pssaros, a sombra, os

    caramanches trazem essa ideia de desprendimento das normas. Para Amncio, essa ideia

    fundamental, uma vez que ele deseja sair das regras impostas na casa do comerciante. Chamo

    a ateno para o modo como descrito o espao da cozinha. Nesse, destaco a cor branca da

    vestimenta do cozinheiro e o aspecto limpo do cho, o qual Coqueiro faz questo de salientar.

    O branco, por demonstrar a pureza da casa, tem papel fundamental nos espaos da ordem e,

    consequentemente, nessa retido disfarada que a casa de penso apresenta. O cho limpo

    tambm marca uma oposio sujeira descrita na repblica dos estudantes.

    A ideia de ordem imiscui-se com a de desordem quando so apresentadas as

    descries dos quartos e das personagens.

    Em cima que estava o grande recurso da casa, porque Mme. Brizard dividira todo o segundo pavimento em oito cubculos iguais, ficando quatro de cada lado e o corredor no centro. Os da frente davam janelas para a rua e os do fundo para a chcara. As paredes divisrias eram de madeira e forradas de papel nacional. (AZEVEDO, 2008, p. 72).

    Prosseguindo, agora, com mais afinco em relao descrio dos aposentos, tem-se,

    por exemplo, no primeiro quarto, a presena de um advogado que auxilia a legitimar a ideia

    de ordem, retido, legalidade etc. O segundo cmodo, por seu turno, mostra um negociante

    que fora bancarrota; alm de receber comentrios negativos, h uma aluso sua esposa

    coxa. Esse elemento pode ser lido, juntamente com o quarto do tsico (o qual aparece de

    maneira mais detalhada), como um prenncio da desordem e da doena que se espalhar, com

    mais fora, pela casa, durante o desenrolar da trama. O Piloto, morador do quarto trs, alm

  • ! &"!de servir como uma figura que d importncia a casa, pelo menos para Coqueiro, demonstra

    que a ligeireza, a astcia, entre outras caractersticas ladinas (lembrando que usadas no

    sentido negativo), transitam pelo espao da habitao coletiva, simbolizando, nesse sentido,

    os desvios da ordem.

    Neste, disse mostrando o n. 1, est Dr. Tavares, um advogado de mo-cheia; carter muito srio! No segundo declarou que morava o Fontes: No era mau sujeito, coitado! Fora infeliz nos negcios: quebrara havia dois anos e ainda no tinha conseguido levantar a cabea. E abafando a voz: Dizem que ficou arranjado... no sei!... Paga pontualmente as suas despesas, mas um unha-de-fome (...) especula com tudo; tem o quarto cheio de fazendas, fitas e tetias de armarinho; vende essas miudezas pelas casas particulares, e dizem que faz negcio. A mulher, uma francesa coxa, empregada na Notre Dame e s vem a casa para dormir. E, indicando o n. 3. Aqui o Piloto (...) reprter da Gazeta (...) um rapaz to popular. Um que anda sempre muito ligeiro, olhando para os lados, aos pulinhos, como um calango. No conheces?! (AZEVEDO, 2008, p. 82-83).

    Os quartos, no trecho acima, misturam-se com a personalidade dos moradores que, por

    sua vez, constroem o espao de desordem/ordem da prpria casa. Essa fuso demonstra como

    a subjetividade dos que residem na casa de penso suprimida. A falta de privacidade entre

    os moradores, que se d devido disposio dos quartos, tambm ressalta a diminuio da

    individualidade dos que residem na habitao coletiva. Poder-se-ia dizer que a relevncia do

    espao do texto e no texto to grande que os conflitos psicolgicos das personagens so, de

    certo modo, menos explorados, uma vez que, em grande parte da narrativa, o espao guia as

    atitudes das personas.

    O segundo andar da casa, onde se encontram os demais cmodos, tambm no foge

    regra exposta no pargrafo anterior. Mas antes de vasculhar cada quarto e cada morador que

    a reside, chamo a ateno para os seguintes detalhes encontrados no segundo pavimento:

    Depois de subir, acharam-se em corredor estreito e oprimido pelo teto. Ao fundo uma janela de grades verdes coava tristemente a luz que vinha de fora. Lia-se nas portas, em algarismos azuis, pintados sobre um pequeno crculo branco, os nmeros de 4 a 11. (AZEVEDO, 2008, p. 83, grifos meus).

    As caractersticas que atingem o estudante de medicina no fim da narrativa, como a

    fatalidade e o encarceramento, as quais podem ser lidas no espao do beco e na repblica dos

    estudantes, como apresentado anteriormente, aparecem novamente na referncia ao corredor.

    Dessa vez, h o emprego dos adjetivos: estreito e oprimido que somados janela de grades

  • ! !(janelas como as de uma priso) e luz melanclica, alm de trazer os mencionados

    elementos, ressaltam que o local est doente. Por meio do discurso direto, esses detalhes no

    escapam ao olhar de Amncio: Aquilo tinha aspecto de casa de sade... pensou Amncio,

    com tdio. No devia ser muito agradvel morar ali. Todos os quartos, entretanto, estavam

    tomados (AZEVEDO, 2008, p. 83).

    A hibridez do ambiente continua na descrio de outros quartos:

    Coqueiro principiou logo, em voz soturna, a denunciar os competentes moradores: N. 4 Campelo, um esquisito, porm bom sujeito, de comrcio; no comia em casa seno aos domingos e isso mesmo s de manh. N. 5 Paula Mendes e a mulher; casal de artistas, davam lies e concertos de piano e rabeca; muito conhecidos na Corte. (AZEVEDO, 2008, p. 83).

    Logo no primeiro pargrafo, do trecho acima, h a utilizao do verbo denunciar e

    do adjetivo soturno. Chamo a ateno para essas duas palavras, posto que elas indiciam que

    h algo de errado nos quartos apresentados pelo dono da penso a Amncio. Assim, pode-se

    visualizar antecipadamente os elementos de ordem e desordem, do aposento quatro ao onze.

    Importante salientar que tambm a presena do casal de artistas, na habitao coletiva, d

    ideia de desordem, uma vez que as profisses ligadas arte esto, na maioria das vezes,

    associadas vida fcil, sem compromisso e sem regras.

    N. 6 Um guarda-livros; bom moo; tinha o quarto sempre muito asseadinho e noite, quando voltava do trabalho, estudava clarineta. O n. 7 era de um pobre rapaz portugus; doente: vivia embrulhado em uma manta de l, por cima do sobretudo, e saa todas as manhs a passeio para as bandas da Tijuca. A porta do n. 8 estava aberta e Amncio viu, de relance, a cauda de uma saia que fugia para o interior do quarto. E logo uma voz aflautada, de mulher, gritou: Cora! Fecha essa porta! uma tal Lcia Pereira... segredou Coqueiro mora a com o marido, um tipo! Estavam na casa h muito pouco tempo. Coqueiro no podia dizer ainda que tais seriam, porque s formava o seu juzo depois de paga a primeira conta. (AZEVEDO, 2008, p. 83-84)

    No nmero seis, por sua vez, o guarda-livros, cuja profisso est relacionada ao

    comrcio, tem, como Campos, uma postura correta. O quarto sete, no entanto, o que ganha

    destaque, durante a narrativa, uma vez que o morador tem uma enfermidade fsica que

    simboliza a doena moral que acomete todos os habitantes da casa. O aposento oito

    apresentado de relance e nele se nota, justamente, a saia de Lcia, que trai o homem com

    quem mora, amasiando-se com outros, sendo que um deles ser Amncio. A pea de roupa

    somada ao espao que se fecha, rapidamente, graas porta, remete o leitor ideia de que

    alguma relao ilcita poder se desencadear ali.

  • ! '%! A apresentao do quarto nove, local onde reside Melinho, indicia a ordem, pois o

    autor descreve o local com os seguintes dizeres: (...) O n. 9 era do Melinho uma prola!

    Empregado na Caixa de Amortizao; no comia em casa, mas, s vezes, trazia frutas

    cristalizadas para Mme. Brizard e Amelinha. Belo moo! (AZEVEDO, 2008, p. 83). A ideia

    de retido moral tambm se repete no aposento dez.

    Coqueiro no se lembrava como era ao certo o nome do sujeito que ocupava o n. 10: Lamentosa ou Latembrosa, uma coisa por a assim! Ele tinha o nome escrito l embaixo. Mas que homem fino! delicadssimo! um verdadeiro gentleman! E tocava violo com muito talento. (AZEVEDO, 2008, p. 84).

    Nesse quarto mora Lambertosa, um dos homens que representa o discurso cientificista

    na narrativa. Mais que a estranheza do nome, importa assinalar o desrespeito indiciado pela

    confuso feita pelo marido de Mme. Brizard, que traz uma ideia de que o conhecimento

    cientificista no levado a srio na casa. Por isso mesmo, Lambertosa aconselha banhos de

    mar enteada de Coqueiro, Nini, moa histrica, e os conselhos no so acatados pela famlia.

    O n. 11, que ficava justamente encostado janela do corredor, pertencia a um excelente mdico, Dr. Correia; estava, porm, quase sempre fechado, visto que o doutor s se utilizava do quarto para certos trabalhos e certos estudos, que, por causa das crianas, no podia fazer em casa da famlia. Vinha s vezes com freqncia e s vezes no aparecia durante um ms inteiro; mas pagava sempre, e bem. Esse quarto, como o outro que ficava na extremidade oposta do corredor, tinha sada para a chcara. (AZEVEDO, 2008, p. 84).

    O ltimo quarto, por seu turno, tem uma configurao espacial extremamente propcia

    para o comportamento do Dr. Correia que, provavelmente, comete algum ato imoral. Na

    apresentao do referido espao, o narrador interrompe Coqueiro e cria um ar de mistrio

    dizendo que o local est sempre fechado. Afora isso, deixa, desse modo, pistas de que algo

    proibido, como o aborto, ocorre no quarto, uma vez que os estudos e os trabalhos no

    poderiam ser feitos em uma casa de famlia. A configurao espacial, como j foi dito,

    corrobora o comportamento ilcito do doutor. H a presena da janela que se abre para o

    corredor, meio esse que facilita a fuga da aludida personagem.

    As janelas, conforme DaMatta, abrem a possibilidade de comunicao entre a casa e a

    rua, podendo ser lidas como objetos que intermedeiam as relaes que se do entre esses

    espaos. E, por isso, elas so um componente, da casa, ambguos, uma vez que esto situadas:

    (...) entre o mundo interior e exterior, so as janelas, de onde se pode ver a rua, com seu movimento, isto , seu desfile constante. Era, portanto, das janelas que as moas da casa podiam entrar em contato visual com seus namorados, conforme chama a

  • ! '$!ateno Thalles de Azevedo (1975). Vemos que certas reas da casa permitiam comunicar o de dentro com o de fora e, com isso, o feminino (que est sempre sob controle) com o masculino. (DAMATTA, 1997, p. 92, grifos do autor).

    A sada para a chcara , da mesma maneira, estratgica para um eventual flagrante de

    uma conduta considerada, aos olhos da sociedade, ilcita. Ora, tem-se, portanto, nas palavras

    do narrador, a confirmao antecipada de que a casa de Coqueiro no uma residncia, cujos

    moradores tenham um comportamento reto.

    As relaes consideradas inapropriadas pela moral da segunda metade do sculo XIX

    ocorrem tambm entre Amncio e Amlia, e, como foi destacado anteriormente, entre o rapaz

    e Lcia Pereira, graas ao arranjo espacial. Todavia, por se tratar do protagonista da trama, a

    modificao do espao apresentada no desenrolar do enredo, a qual auxiliar a personagem

    central a praticar os atos que se opem retido, ganha maiores propores.

    Para se aproximar de Lcia Pereira, por exemplo, o provinciano vale-se das crises de

    histeria de Nini que o abordou enquanto ele se dirigia ao gabinete transformado em quarto. O

    dilogo entre Coqueiro e Amncio, que acontece perto do vo de uma janela, na sala de

    visitas, revela como o estudante de medicina, no seu deslocamento para outro quarto, busca

    uma maneira de manter relaes ilcitas com a mulher de Pereira.

    (...) Amncio, com acentuaes de quem detesta imoralidades, disse ao outro, sem transio: Trata-se de Nini, disse o provinciano em voz soturna (...) sabes, continuou aquele que a pobre menina sofre horrivelmente dos nervos (...) que ela, naturalmente em conseqncia da molstia, coitada, s vezes faz certas coisas que... para mim ou qualquer outro rapaz de bons princpios no valem nada, mas que, se carem nas mos de um desalmado... sim! Tu bem sabes que h homens para tudo neste mundo!... E Amncio, inflamado pelos princpios morais que ele s cultivava teoricamente, parecia mais que ningum preocupado com a pureza dos costumes (...) Ainda ontem, quando me levantei da mesa, seguiu-me at sala (...) Principiou a fazer tolices. Acabas de provar que s homem de bem! A tua ao de um verdadeiro amigo: no imaginas o quanto eu a aprecio. Cumpri com o meu dever... observou o provinciano modestamente (...) nestas questes de famlia sou muito rigoroso. E agora, o que est feito, est feito! Vou para o segundo andar; at mais fresco!... (AZEVEDO, 2008, p. 133-134).

    As atitudes de Amncio e Coqueiro servem de exemplo para demonstrar a tentativa de

    camuflar a desordem que ocorre na casa de penso. No dilogo possvel ver como os

    substantivos: moralidade e famlia so empregados, frequentemente, para disfarar o ato

    dos dois rapazes. Ambas as palavras podem ser consideradas chave, uma vez que a ideia a

    de manter a habitao coletiva como uma casa de famlia. E, por isso que uma leitura atenta

    mostra que o uso do espao, no tocante ao que ocorre na cena descrita anteriormente, ganha,

  • ! '&!ao mesmo tempo, duas funes. A primeira a de simular uma falsa ordem que se d com o

    afastamento de Amncio em relao a Nini; o estudante de medicina muda-se do quarto para

    no ter que confrontar-se com a histrica durante o trajeto para chegar em seus aposentos. A

    situao soa, como demonstra a conversa, adequada, honrada e altamente moral. O rearranjo

    espacial serve tambm para transgredir as regras, uma vez que o seu verdadeiro objetivo o

    de fazer com que Amncio mantenha-se prximo ao quarto de Lcia Pereira, para que, desse

    modo, ele a tome como amante. Nesse caso, porm, o ato beneficiar, somente, Amncio,

    uma vez que Coqueiro, desejando casar a irm, no quer que o provinciano se amasie com

    Lcia.

    3.2.2 O fatalismo do espao da desordem

    Amncio, desde seu encontro com Paiva, no beco e, em seguida, na repblica dos

    estudantes, infectado pela sujeira do lugar. Na casa de penso, devido ao comportamento

    desviante dos moradores, o local j est, pois, doente. O estudante de medicina compor este

    painel de inquilinos, cujas atitudes esto calcadas na desordem. A doena comea de uma

    maneira leve e, aos poucos, levar a casa morte. como se a sujeira fosse se acumulando

    at chegar a um ponto insuportvel, o que leva a transformao da casa em uma habitao

    coletiva inferior, a qual ser povoada por um estrato considerado ainda mais baixo econmica

    e socialmente.

    Desse modo, pode-se dizer que o determinismo, que norteia a obra, no est centrado,

    unicamente, na figura do provinciano. A casa como um todo est fadada ao fatalismo desde o

    principiar da obra. Entretanto, o que ir marcar a derrocada da residncia, pelo menos

    simbolicamente, a doena do tsico e a sua morte.

    (...) O homem estava muito aflito, debatendo-se contra os lenis, no desespero da sua ortopnia. A cabea vergada para trs, o magro pescoo estirado em curva, a barba tesa, piramidal, apontando para o teto; sentia-se-lhe por detrs da pele empobrecida do rosto os ngulos da caveira; acusavam-se-lhe os ossos por todo o corpo; (...) No podia sossegar. O seu corpo, chupado lentamente pela tsica, nu e esqueltico, virava-se de uma para outra banda, entre manchas excrementcias, a porejar um suor gorduroso e frio, que umedecia as roupas da cama e dava-lhe pele, cor de osso velho, um brilho repugnante. Faltava-lhe o ar e, todavia, pela janela aberta para o nascente, os ventos frescos da noite entravam impregnados da msica de um baile distante, e punham no triste

  • ! ''!abandono daquele quarto uma melancolia dura, um spero sentimento de egosmo; alguma coisa da indiferena dos que vivem pelos que se vo meter silenciosamente dentro da terra. (...) Uma lamparina de azeite fazia tremer a sua miservel chama e cuspia o leo quente. Havia um cheiro enjoativo de molstia e desasseio. (AZEVEDO, 2008, p. 177-178).

    O quarto sete, onde o tsico expira, descrito de maneira mrbida, assim como corpo

    do homem que est quase falecendo. O narrador para dizer que a chama fraca que se

    assemelha vida do homem doente est, aos poucos, se apagando, usa o verbo cuspir. O

    ato de tossir e cuspir sangue comum queles que esto na fase terminal da tuberculose.

    Como se pode ver, os objetos que compem o quarto, de certo modo, indicam a doena

    presente no espao; a lamparina cospe, pois, uma chama miservel. Outro verbo, impregnar,

    presente na passagem, chama, da mesma maneira, a ateno. O termo utilizado para reforar o

    abandono do quarto, que invadido por uma msica longnqua, soa agressivo e, ao mesmo

    tempo, refora a ideia de que o espao est tomado por um odor nauseante. Afora isso, h a

    presena marcante da sujeira e de elementos escatolgicos. So usadas as palavras

    excrementcia, enjoativo e, por fim, desasseio que sintetizam toda a imundcie do

    aposento. No entanto, sintomaticamente, apesar de toda a atmosfera mrbida descrita na cena,

    o homem morrer dentro do quarto de Amncio.

    Quando estava quase adormecido, passos agitados no corredor o despertaram em sobressalto e uma pancada em cheio na porta f-lo erguer-se de pulo e precipitar-se para ela. (...) A porta afinal cedeu, e Amncio sentiu cair desamparadamente no cho o corpo comprido e nu do tsico. Estava horrvel. Queria erguer-se, e em vo agitava as pernas e os braos. Amncio tentou ajud-lo, gritando ao mesmo tempo pelo Sabino. Os membros do tsico pareciam quebrar-se-lhe nas mos, que escorregavam com a gordura fria do suor, e no soalho manchas de umidade desenhavam-lhe j o feitio do corpo. (AZEVEDO, 2008, p. 180).

    O narrador faz questo de frisar, no somente nessa passagem, a magreza do tsico.

    claro que a aparncia esqueltica surge devido doena que acometia o corpo do morador do

    nmero sete. Entretanto, como aqui est sendo trabalhada a ideia de que o tsico simboliza a

    doena moral que acomete a casa, vlido dizer que o frgil esqueleto do homem, que parece

    se quebrar quando Amncio o segura, pode ser lido como o prprio comportamento dos

    moradores da casa de penso. A moral de todos to frgil e doente que a todo o momento

    corre o risco de se quebrar totalmente, como a habitao coletiva que, ao olhos do narrador, se

  • ! '(!degrada.

    O fragmento selecionado tem outra informao relevante. Percebe-se que as manchas

    de sujeira adentram todos os locais em que Amncio pisa. A imundcie fsica acompanha,

    paulatinamente, a derrocada moral de todas as personagens. Sendo o provinciano o heri da

    histria, nota-se que suas aes, no desenrolar da trama, so evidenciadas, pelo narrador, na

    descrio de vrios espaos fundamentais na construo da obra.

    O arranjo espacial de Casa de penso coaduna-se com a ideia de explicitar com mais

    veemncia a passagem da ordem desordem. Com a morte de Amncio, isso se confirma de

    maneira mais contundente, pois, no findar da obra, montado um cenrio que reflete os

    sentimentos de Coqueiro e anuncia o prprio ceifar da vida do estudante de medicina e suas

    consequncias.

    Abriu a janela. O dia repontava j, mas enevoado e triste. No havia azul; cu e horizontes de neblinas, formavam uma s pasta cor de prola, onde vultos cinzentos se esfumavam. O homem da venda abria tambm as suas portas. Coqueiro cumprimentou-o, ele respondeu com um risinho insolente, acompanhado de pigarro. Uma calea rodejava lentamente ao largo da rua, o cocheiro vergado sobre as rdeas, o seu casquete sumido na gola do capoto. Coqueiro fez-lhe sinal que esperasse, embrulhou-se no sobretudo, enterrou o chapu na cabea, meteu o revlver no bolso e saiu. Hotel Paris! disse ao da bolia, atirando-se no fundo da carruagem. O cocheiro endireitou-se sobre a almofada, espichou o pescoo, sacudiu as rdeas e os animais dispararam, assoprando grossamente contra o ar frio da manh. (AZEVEDO, 2008, p. 262, grifos meus)

    As duas primeiras palavras destacadas, que se ligam ao dia que desponta, mostram

    tambm o que se passa na alma do irmo de Amlia. O horizonte, o qual d uma ideia de

    viso ampla, est coberto por neblina, alm disso, cinzento, formando, ento, somente uma

    cor. A limitao do referido espao, atravessado pela nvoa, remete ao prprio destino da

    personagem, ou seja, priso e morte, uma vez que Coqueiro ser condenado pelo

    assassinato de Amncio.

    Outro aspecto que deve ser levado em considerao a posio de uma personagem

    sem nome que surge para abrir a venda. O comerciante parece ter sido estrategicamente

    colocado em cena para aumentar o dio do rapaz, posto que esboa um riso provocador, cujo

    objetivo o de insultar.

    No terceiro pargrafo, por seu turno, quando o narrador expe que Coqueiro carrega

    uma arma de fogo, ele explicita que, para proteger-se do frio, enterrou o chapu na cabea. O

  • ! ')!uso do verbo corrobora a ideia de morte, enterro e funeral, que apresentada, de maneira

    acentuada, nos captulos finais.

    De mais a mais, faz-se importante ressaltar que o espao, percorrido por Coqueiro at

    o hotel, permeado pelo frio, tal como o ato, o assassnio, que ele cometer. Alm disso,

    pode-se dizer que a morte est ligada frialdade, pelo corpo frio aps o expirar da vida, e pela

    sepultura, local que recebe o cadver, tambm um local privado de calor.

    Coqueiro enfiou pela escadaria do hotel. (...) Dir-se-ia que ali passara um exrcito de bbados. Por toda a parte vinho derramado, copos partidos, cacos de garrafa e destroos do vasilhame que servira mesa; o oleado do cho escorregava com uma crusta gordurosa de restos de comida e vmito pesinhado; um espelho ficara em fanicos e um aqurio desabara, fazendo-se pedaos e alagando o pavimento, onde peixinhos dourados e vermelhos jaziam, uns mortos e outros ainda estrebuchando. O preto, de gatinhas, em manga de camisa e calas arregambiadas, procurava desencardir o sobrado com um esfrego de coco, que ia embeber ao canto da sala numa tina cheia dgua; enquanto o caixeiro, a jogar o corpo, muito esbodegado, erguia o que estava pelo cho e empilhava as cadeiras sobre as mesinhas de mrmore, ao comprido das paredes. (AZEVEDO, 2008, p. 262).

    O supracitado trecho de suma importncia para perceber como a descrio da

    desordem auxiliar a ressaltar o que foi dito at agora, isto , como a desordem levar

    Amncio, corrompido por ela durante boa parte da narrativa, morte violenta. No incio do

    segundo pargrafo, o narrador j destaca uma multido de bbedos, os quais, devido festa

    para comemorar a liberdade do estudante de medicina, destroem todo o lugar. Tem-se, nesse

    caso, a presena do lixo, dos fragmentos que surgem dos objetos quebrados e que so a base

    da prpria construo de casa de penso, uma vez que o autor trabalha, justamente, com

    personagens que estariam margem de um comportamento reto da sociedade. Alm disso, os

    destroos so anlogos prpria vida de Amncio que, ao trocar a ordem (a casa do

    comerciante Campos) pela desordem, leva a si e outras personagens destruio, tal como os

    objetos em fragmentos. A situao do cho, escorregadio e sujo, assemelha-se ao da repblica

    que tambm j era marcada por essas caractersticas repugnantes, as quais so frisadas pelo

    narrador mais uma vez. A sujeira, uma enfermidade no vis naturalista, que inoculada em

    Amncio na casa dos estudantes, aparece, novamente, para selar, por meio das balas

    disparadas por Coqueiro, o destino do estudante maranhense. A morte, no salo principal,

    aparece antes mesmo do assassnio do rapaz, indiciada nos peixes que se debatem assim como

    o rapaz quando alvo dos disparos.

    O terceiro pargrafo da passagem do romance que est sendo analisado expe um

  • ! '*!arranjo espacial que tenta reestabelecer a ordem do lugar. Duas personagens, uma utilizando

    gua e sabo, e outra ordenando as cadeiras para a limpeza do cho, trazem a ideia de limpeza

    que se ope sujeira da festana. Tal descrio liga-se ao objetivo de apontar os erros da

    sociedade, pois a higiene do local serviria para lembrar que os comportamentos desviantes

    podem ser eliminados, do mesmo modo que os resduos da celebrao. Nesse caso, percebe-se

    que Azevedo trabalha, justamente, com a ideia de que o lixo, devido sua desorganizao,

    uma forte ameaa, e aqueles que esto ligados a ele tambm o so. Por isso, o autor demonstra

    que possvel limpar essa sujeira; a referida cena tem um papel importante na obra, cuja ideia

    a de expor as partes doentes da sociedade, o lixo, aquilo que no presta e que deve ser

    eliminado da cidade-conceito.

    A desordem e, consequentemente, a marginalidade continua reforada pela seguinte

    passagem:

    Onde o quarto do Amncio? perguntou-lhe Joo Coqueiro. Amncio?... repetiu aquele, emperrando no meio da sala para fitar o interlocutor com um olhar morto de sono! Ah! bocejou. O tal moo do pagode de ontem?... Coqueiro sacudiu a cabea perpendicularmente. c, no nmero dois, mas escusa bater, que ele a no est. Ficou l em cima, no onze, com a Jeanete. E, voltando ao servio: Se ele no coisa de pressa, o melhor seria procur-lo mais logo... Deve estar agora ferrado no sono, que levou na pndega at as quatro e meia!... Coqueiro voltou-lhe as costas e dirigiu-se para o segundo andar. Bateu porta do n.11. Bateu de novo. Qui est l!... perguntou na rouquido do estremunhamento uma voz de mulher. Preciso falar a esse rapaz que a est, o Amncio!... Ouviu-se um farfalhar de panos, chinelas arrastaram, e em seguida a porta abriu-se cautelosamente, mostrando pela fisga um rosto gordo, de olhos azuis. Qui est l!... (AZEVEDO, 2008, p. 263).

    Alm da meno festa que durou at a madrugada, o dilogo traz outra informao

    importante, o estudante de medicina est na companhia de uma prostituta. Apesar de no estar

    explicitamente declarado que a mulher uma meretriz, o discurso direto, empregado no

    aludido fragmento, informa o nome da mulher, Jeanete, fazendo meno lngua francesa.

    Era comum, na segunda metade do sculo XIX, a presena de prostitutas oriundas da Frana,

    da Polnia, etc. Isso estende-se, at mesmo, durante o sculo XX; em Suor, de Jorge Amado,

    h uma prostituta polonesa que cai na chamada zona de baixo meretrcio. Sendo ou no

    francesa, a construo da cena indica que Amncio est com uma pessoa, cuja profisso

    vista com maus olhos. H, novamente, a estratgia do narrador de reforar a desordem

    colocando no espao em que ela eliminada (a figura de Amncio representa isso, uma vez

  • ! '+!que condessa no final da narrativa o apogeu da desordem) pa