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101 PENSAR A LEI. INTRODU˙ˆO A UM PROCEDIMENTO METÓDICO JEAN-DANIEL DELLEY Jean-Daniel Delley, Ø professor da Fa- culdade de Direito da Universidade de Genebra, Suiça. ntes de redigir a lei, Ø preciso pensÆ-la. Esse Ø o objeto da legística material que propıe um procedimento 1 metódi- co em etapas a fim de melhorar a eficÆcia da legislaçªo (grÆfico 1). Esse tratamento de tipo analíti- co, que representa o processo de ma- neira linear, Ø claramente artificial. Tra- ta-se, na realidade, de um processo interativo, ou seja, sucessivo. Cada uma das fases nªo pode ser considerada por si mesma, isolada das outras fases e concluída definitivamente (grÆfico 2). Consideremos a primeira etapa, a da definiçªo do problema. Identificar o problema que motiva uma demanda de intervençªo normativa, estabelecer um diagnóstico da situa- 1 Nota do tradutor: a palavra dØmarche foi traduzida de di- ferentes modos, ao longo do texto, em atençªo a que, no portuguŒs, comporta acepçıes como procedimento, tra- tamento e aborda- gem. Buscou-se, em cada contexto, o sentido mais adequado. Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v.7, n. 12, p. 101-143, jan./jun.2004

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PENSAR A LEI. INTRODUÇÃO A UM

PROCEDIMENTO METÓDICO

PENSAR A LEI. INTRODUÇÃO A UMPROCEDIMENTO METÓDICO

JEAN-DANIEL DELLEY

Jean-Daniel Delley,é professor da Fa-culdade de Direito daUniversidade deGenebra, Suiça.

ntes de redigir a lei, é preciso pensá-la.Esse é o objeto da �legística material�que propõe um procedimento1 metódi-co em etapas a fim de melhorar aeficácia da legislação (gráfico 1).

Esse tratamento de tipo analíti-co, que representa o processo de ma-neira linear, é claramente artificial. Tra-ta-se, na realidade, de um processointerativo, ou seja, sucessivo. Cada umadas fases não pode ser considerada por

si mesma, isolada das outras fases e concluída definitivamente(gráfico 2).

Consideremos a primeira etapa, a da definição doproblema. Identificar o problema que motiva uma demanda deintervenção normativa, estabelecer um diagnóstico da situa-

1 Nota do tradutor: apalavra démarchefoi traduzida de di-ferentes modos,ao longo do texto,em atenção a que,no português,c o m p o r t aacepções comoprocedimento, tra-tamento e aborda-gem. Buscou-se,em cada contexto,o sentido maisadequado.

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v.7, n. 12, p. 101-143, jan./jun.2004

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ção julgada insatisfatória, implica uma referência mais oumenos explícita a uma situação diferente.

Toda análise da situação presente remete a valores quepermitem qualificar essa situação e, por conseguinte, osobjetivos que lhe são imanentes. Ou seja, a expressão de umainsatisfação em relação a uma situação de fato revela umatensão entre uma realidade vivida e uma realidade desejada.

Determinação deobjetivos

Estabelecimento de cenáriosalternativos

Definição doproblema

Escolha dassoluções

Avaliaçãoretrospectiva

ExecuçãoAvaliaçãoprospectiva

Gráfico 1

Escolha de soluções

Estabelecimento decenários alternativos

Avaliaçãoprospectiva

Determinaçãode objetivos

Execução

Definiçãodo problema

Avaliaçãoretrospectiva

Gráfico 2

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Do mesmo modo, a etapa que consiste em determinaras metas (finalidades) e os objetivos de uma intervençãopública pode levar a uma modificação da percepção inicial doproblema: uma descrição mais precisa da situação desejada ésuscetível de relativizar ou, ao contrário, agravar o caráternegativo da situação de fato. O inventário dos meios de açãodisponíveis pode, por sua vez, questionar as metas estabelecidasde maneira demasiado ambiciosa.

A divisão do processo de elaboração legislativa emetapas responde a uma necessidade prática: ela facilita aapresentação do caminho e das técnicas de análise próprias acada uma das etapas. É preciso, entretanto, ter sempre emmente o caráter interativo do processo.

O procedimento proposto foi concebido particular-mente para as legislações finalizáveis2 , que visam transfor-mar profundamente uma realidade social, articulando osobjetivos e os meios. Esse tipo de legislação se refere, pordefinição, à noção de eficácia. O procedimento se adapta,entretanto, às legislações condicionais3 , que, como o CódigoCivil, o Código Penal ou os códigos processuais, servemsimplesmente para fornecer um paradigma para os compor-tamentos sociais e não visam à concretização de objetivosprecisos. Em particular, a necessidade de avaliar os efeitos dasreformas e corrigir as leis em função dos resultados dessaavaliação, indispensável para as legislações finalistas de cará-ter dinâmico, revela-se muito útil para as legislações condici-onais mais estáticas.

Nós nos limitamos aqui às três primeiras etapas docaminho que consiste em responder às três questões seguintes:

� Qual é o problema a resolver?� Quais são os objetivos a atingir?� Como alcançar esses objetivos?

I � A DEFINIÇÃO DO PROBLEMA

O legislador se depara com uma multiplicidade dedemandas que exprimem uma insatisfação com relação a uma

2 Nota do tradutor: otermo, extraído dopensamento deNiklas Luhmann,segundo o autor,se refere-se àsleis que, em vez deregulamentarematemporalmentecondutas de parti-culares, dão con-tornos jurídicos apolíticas públicasde execuçãocronologicamenteverificável, portan-to, num certo sen-tido, finalizáveis,com início, meio efim na realizaçãodos objetivos a quese dirigem. Não sepode, no contexto,traduzir �finalisée�por finalizada oufinalista, adjetivosque sugerem, emp o r t u g u ê s ,acepções diferen-tes da pretendidapelo autor. Poressa razão, optou-se, pela expres-são �finalizável�, àfalta de outra quepareça mais ade-quada à qualifica-ção de leis e pro-gramas dessa na-tureza.

3 Nota do tradutor:também trazida dopensamento deNiklas Luhmann, ac l a s s i f i c a ç ã oconcerne às leisque contêm nor-mas gerais, abs-tratas e impesso-ais, sem prazocerto para viger eproduzir seusefeitos.

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FÁBIO

FÁBIO

situação particular e reivindicam uma intervenção do Estado.A natureza da demanda é o resultado de um processocomplexo que não garante uma apreciação exaustiva e objetivada situação. (A)

Muito freqüentemente, o legislador se contenta emassumir os problemas tais como definidos pelos atores sociais(B). Ora, só uma definição autônoma fundada na análise darealidade e uma apreciação dos valores em jogo permitiu aolegislador decidir, com absoluto conhecimento de causa, aoportunidade e a natureza da intervenção legislativa (C). Parafacilitar esse procedimento, a legística substancial propõeuma grade de análise em forma de questionário, a exemplo datécnica de modelização causal. (D)

A. A gênese do problema

Formalmente, o Parlamento é levado a legiferar a partirde demandas compreendidas no seu elenco de atribuições(moções, postulados, iniciativas parlamentares) ou da inicia-tiva do governo. Na Suíça, o impulso pode se originar,igualmente, de uma iniciativa popular.

De fato essas demandas repousam nas reivindicaçõesoriundas do corpo social e veiculadas pela mídia, por gruposde pressão, organizações civis e partidos políticos que agre-gam, selecionam e interpretam as necessidades de seusmembros, do público ou de certas categorias da população,traduzindo-as.

A formulação de um problema, tal como ela chega aolegislador ou ao governo, é o produto de um processocomplexo ao curso do qual se constróem, simultaneamente,a apreensão e a apreciação de uma realidade que justifica umademanda de regulação pública.

Deve-se notar que todos os grupos sociais não dis-põem da mesma capacidade de articular suas necessidades etransmitir suas demandas. Alguns (jovens, pessoas idosas,inválidos, desempregados, etc.) têm mais dificuldade em se

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fazer entender, notadamente por falta de organização ou dosmeios necessários.

Uma outra dificuldade aparece quando se lida comfenômenos que não colocam em jogo interesses substanciaisimediatos e que, consequentemente, não são consideradoscomo problemáticos. Aí se encaixam as novas tecnologias eos novos produtos suscetíveis de provocar efeitos negativosa longo prazo, portanto imperceptíveis imediatamente aosindivíduos e cuja gravidade não é facilmente demonstrávelnum primeiro momento, como, por exemplo, a destruição dacamada de ozônio, o aquecimento da atmosfera ou a poluiçãodos solos. Por esse motivo, a comunidade científica é chama-da a desempenhar um papel cada vez mais importante natomada de consciência desses problemas que não afetam acurto prazo os particulares, mas que podem comprometergravemente as gerações futuras.

Para melhorar a capacidade de seleção do legislador,ao mesmo tempo pressionado por demandas e negligencian-do problemas importantes, Noll4 propôs instituir um órgãode planejamento da legislação a curto e a longo prazo. Esseórgão teria por tarefa inventariar o conjunto de problemasefetivamente expressos pelas sociedades, avaliá-los quantoà sua importância e urgência e detectar os problemas aindanão formulados e que não se tornaram objeto de umademanda ao legislador. Essa idéia de racionalizar o estabele-cimento de uma agenda parlamentar se confronta com umadificuldade formal: confiando tal função de inventariar eclassificar as prioridades dos problemas da sociedade a umórgão independente, corre-se o risco de provocar poucoimpacto sobre a atividade do Parlamento por carecer desuficiente legitimidade política.

Em certos países e no seio da União Européia, essafunção de previsão dos problemas é cumprida parcialmentepelos órgãos de avaliação das escolhas tecnológicas (EvaluationAssessment). Por isso, desde 1972, o Congresso norte-americano dotou-se de um órgão do gênero � Office ofTechnology Assessment � que, a seu pedido, estuda certos

4 P. Noll, Gesetzge-b u n g s l e h r e ,Rheinbeck beiHamburg, 1973,p.75.

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desenvolvimentos tecnológicos de maneira a revelar seusefeitos potenciais sobre a sociedade. Até o presente momento,temas como a poluição do ar e do solo, transportes, energianuclear, informática e biotecnologia foram abordados. Osparlamentares têm, conseqüentemente, obtido elementos deinformação a respeito dos problemas ligados a esses temas,sendo ela suscetível de justificar a intervenção regulatóriaestatal.

B. A ausência de autonomia do legislador

O exame do processo legislativo tal como se desenrolana prática mostra que, muito freqüentemente, a percepção doproblema que motiva a demanda legiferante toma o lugar dadefinição do problema.

O impulso que leva o legislador a agir substitui o exameobjetivo da situação. O legislador aparece antes como instân-cia dirigida exteriormente que como sujeito autônomo.

É freqüente que revisões legislativas sejam empreendi-das pelo simples motivo de que a lei em tela envelheceu,cumpriu seu tempo ou não responde mais às exigênciasmodernas. Ou então, a situação é considerada de tal modonegativa por todas as partes que parece dispensar umadescrição mais precisa.

Noll cita o exemplo da revisão do Código Penal alemão,em 1962, empreendido sem nenhum estudo prévio paradeterminar a evolução da criminalidade e a ausência decriminalização de certos atos havia ou não gerado situaçõesnegativas. Igualmente, as medidas de restrição aplicáveis aestrangeiros, adotadas apressadamente pelo Parlamento suí-ço, em 1994, respondem mais a um sentimento difuso deinsegurança da opinião pública, motivado pelo tráfico dedrogas na região de Zurique, que a uma análise prudente dasituação de fato.

Na Suíça, a fase pré-parlamentar do processo legislativopermite freqüentemente que os interesses organizados parti-

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cipem da concepção dos projetos de lei por meio das comis-sões de especialistas e do procedimento de consulta. Dessaparticipação as autoridades esperam elaborar uma solução decompromisso aceitável pela maioria e, por conseqüência,capaz de evitar ou de superar o teste do referendo; mas elas(as autoridades) contam também com o suporte dos expertspara enriquecer a análise da situação de fato. Na realidade,alguns estudos empíricos disponíveis mostram que a análiseda realidade é amplamente dominada pelas obrigações incon-venientes ligadas à busca de uma solução de compromisso. Apreocupação em encontrar objetivos comuns e meios deintervenção aceitáveis para os participantes relega a planosecundário a necessidade de apreender acuradamente a situ-ação de fato.

Sob o prisma metodológico, o legislador deve seperguntar que razões o compelem a agir e, sem ignorar asdemandas que lhe são dirigidas, ter uma idéia própria sobre oproblema cuja solução é reclamada. Esse distanciamentocrítico lhe permite manter o controle da situação, apreciar anatureza do problema em termos de gravidade e urgência e,caso constate a existência de um problema, julgar os meios deação que ele deve empregar para resolvê-lo.

Quando passa à análise da situação e à definição doproblema, o legislador deve, constantemente, relativizar oimpulso que deflagrou o processo. Esse trabalho de análise edefinição não pode se limitar aos termos e ao direcionamentodados pelo impulso inicial. Por outro lado, um conhecimentopreciso da situação considerada insatisfatória é condiçãoindispensável à avaliação ulterior da legislação. Como saber sea intervenção legislativa teve um impacto sobre a realidade sea ignoramos ou se conhecemos insuficientemente a situaçãoinicial?

Não obstante, a autonomia do legislador se chocacom os limites atinentes, sobretudo, à multifuncionalidadeda legislação. Se for esquecida essa característica, o legis-lador corre o risco de criar pesados inconvenientes. A lei nãoé somente um instrumento a serviço de objetivos substanci-

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ais claramente fixados. De maneira geral, contribui parareforçar a confiança dos indivíduos nas instituições e,igualmente, funciona como resposta simbólica às expecta-tivas, quer sejam de efetividade ou de eficácia dessas. �Osentimento de segurança sobre a via pública tem poucarelação com a estatística de criminalidade. Afinal, não há umlimiar natural de probabilidade de ser vítima de agressãoabaixo do qual nos sintamos em segurança. Nesse sentido,se a segurança não é um fenômeno objetivamente palpável,ela não é menos importante para as relações do cidadão coma ordem jurídica. Disso decorrem conseqüências práticas,sobretudo para a organização policial. As reformas queconsistem em aumentar a presença de agentes da forçapública nas ruas visam menos abaixar as taxas de criminalidade� efeito extremamente duvidoso � que dar aos cidadãos umsentimento de segurança�5 .

Nessas condições, a definição do problema não devenegligenciar sua dimensão psicológica.

Em 1961, quando se adotou, em regime de urgên-cia, uma legislação limitadora da aquisição de imóveispor estrangeiros, o Parlamento suíço não se baseou emuma análise objetiva dos fatos; seria aliás penosa essatarefa em face da inexistência de dados estatísticos. Narealidade, o Parlamento reagiu a um forte movimentode opinião que, por diversas razões, temia o controleestrangeiro do território nacional e, ao legislar sobreisso, essa Corte sinalizava que o Estado tinha consciên-cia do problema e procurava controlar a situação.6

C. A estrutura do problema

A intenção de legislar pressupõe a existência de umproblema. Conhecer o problema em questão e suas caracte-rísticas constitui etapa primordial da abordagem metodológicaque permite decidir sobre a necessidade de legislar e, em casoafirmativo, delimitar o campo de intervenção e os meios aempregar.

5 B.Krems, Grund-fragen der Gese-tzgebung, Berlin,1979, p.32.

6 J,-D, Delley et al.,Le droit em action,Saint-Saphorin,1982, pp.26s.

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Duas condições são necessárias à existência de umproblema:

1) Antes de tudo, um estado de �tensão�, com apercepção de uma distância entre a situação presente e adesejada. O problema nasce da confrontação entre as ordens do�ser� e do �dever ser�.

2) Em seguida, uma imputação de responsabilidade.Sem evidenciar as causas do problema, não há possibilidadede intervenção estatal mediante atuação do Poder/esferacompetente.

Essas duas premissas põem em evidência os elemen-tos constitutivos de um problema, um analítico e outronormativo. A definição do problema acha-se, portanto, emestreita relação com a análise dos fatos e a questão dosvalores. O que é percebido como problema se refere semprea um valor, e o objeto de insatisfação é suscetível de umadescrição empírica.

Erros de apreciação podem surgir nos dois níveis � odos valores e o dos fatos �, conduzindo à preocupação comum problema falso: os fatos considerados não existem ou, seexistem, não têm o caráter de gravidade que lhes é atribuído.Disso decorre que a definição do problema consiste emestabelecer os fatos que permitirão apreciar sua consistência,existência e gravidade, demandando ou não intervençãolegislativa.

D. O procedimento

A definição do problema consiste em adquirir bomconhecimento do tema em questão e recolher os dadosconfiáveis que permitam precisar a situação que originou ademanda de intervenção legislativa. Por exemplo, afirmar queexiste uma crise habitacional não é algo por si suficiente paradecidir legislar ou conceber uma legislação como eficaz; oproblema não se encontra, pois, definido.

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Problematizar o impulso legiferante

� natureza: em que consiste o problema

� causas: a quem atribuir o problema? Em que condiçõesele surgiu e quais são suas causas?

� duração: o problema é permanente ou temporário?

� dinâmica: pode-se observar uma evolução do problema(ciclos, regularidade, agravamento)?

� meios envolvidos: quem é afetado pelo problema e deque maneira, direta ou indiretamente?

� Conseqüências: o que ocorreria caso se omitissem osatores e setores envolvidos?

Retomemos o exemplo da crise habitacional. O impul-so reconhece-a como capaz de demandar uma intervençãoestatal. O legista7 procede inicialmente à identificação danatureza do problema. Trata-se de estabelecer se há inadequaçãoentre oferta e demanda de moradias e, eventualmente, precisaras características dessa inadequação: falta de moradias emcertas categorias, preço de aluguel muito elevado, quantidadeglobal suficiente com distribuição desconforme às necessida-des, etc.

O legista procura, em seguida, descobrir as causas doproblema: escassez de terras edificáveis, custos elevados daconstrução, procedimento complicado para obtenção de au-torização para construir, falta de mobilidade dos locatários,existência de dois mercados paralelos (livre e controlado).Também é importante situar o problema em um contexto maisamplo (por exemplo, a política econômica e a política detrabalho estrangeiro, além da política de ordenamento do usoe ocupação do solo, particularmente).

A análise da dinâmica do problema e de sua duraçãopermite constatar se a evolução verificada obedece a regras:o grau de escassez é constante ou, ao contrário, ele aumenta?Ou ainda, a escassez é de natureza cíclica? Desde quando elaexiste? Etc.

7 Nota do tradutor:Não existe, nadoutrina jurídica ouno processolegislativo brasilei-ro, o profissionalreferido pelo au-tor sob a denomi-nação francesa�légiste�. O termo�legista� emprega-do na traduçãonada tem a ver como médico legista ouqualquer outroprofissional afetoà medicina legal.Por �legista� en-tende-se, no tex-to, o profissionalque se ocupa dapolítica legislativa,estudando a ne-cessidade e a efi-cácia do tratamen-to de determinadamatéria por meiode intervençãolegiferante.

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O inventário dos setores afetados conduz à identifica-ção dos grupos que sofrem com a escassez: por exemplo,jovens casais, população pobre, empresas com dificuldade derecrutar mão-de-obra que não é atraída pelo local em razão dedificuldades para alugar residência.

O legista se colocará igualmente a questão sobre asconseqüências possíveis do problema em caso de não-intervenção governamental: por exemplo, o mercado é susce-tível de reagir à situação de escassez por si mesmo, desenvol-vendo a oferta de moradias?

A análise da situação implica reunir todos os dadosdisponíveis e, em caso de necessidade, suprir as lacunasmediante sondagens e estudos de opinião. Deve-se cuidar paraque os dados não sejam adstritos ao momento presente,buscando-se informações que permitam descrever a evoluçãodo problema ao longo do tempo.

A definição do problema não consiste em justapor amaior quantidade possível de dados. Trata-se de compreendero funcionamento do problema, identificar os atores envolvi-dos e sua lógica comportamental e detectar as interaçõesexistentes entre eles. Essa abordagem é importante para aescolha ulterior dos instrumentos de ação suscetíveis decontribuir para a solução do problema. O exemplo seguinteilustra a necessidade de o legista compreender bem o funci-onamento do ambiente no qual venha a conceber uma inter-venção.

Na Suíça, a lei federal de estímulo à construçãohabitacional, de 1965, visa fomentar a oferta de moradiaspopulares mediante apoios financeiros de natureza diversaque vêm completar os esforços das coletividades públicascantonais e municipais. Ao longo do primeiro decênio,apenas 40 mil dos 55 mil imóveis previstos foram construídos,porque só os atores secundários do setor de construção civil� comunidades, cooperativas de construção e empresasinteressadas em alojar seus empregados � fizeram uso daoferta federal, sem esgotar os créditos disponíveis.

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Ao revés, os atores particulares especializados dosetor de construção civil demonstraram reserva diante dosrecursos oferecidos pelo governo para construções popu-lares na medida em que poderiam conseguir benefíciosmais substanciais do livre mercado. Esse comportamentoé confirmado pela distribuição geográfica das moradiasconstruídas com a ajuda da Confederação, mais numero-sos nas regiões onde as tensões do mercado de locação sãomenores que naquelas onde há maior escassez de imóveisalugados. Com efeito, os investidores privados não têminteresse de aumentar a oferta de moradias onde possamauferir aluguéis de valor maior justamente em razão dessedesequilíbrio entre oferta e demanda. Em contrapartida,nas regiões marcadas por uma distensão no mercado, adiferença menor entre os níveis dos aluguéis livres e os�sociais�(das moradias populares construídas com recur-sos públicos) torna interessante a ajuda federal8 .

Comparados aos fins e objetivos ulteriormenteexplicitados, os resultados dessa primeira fase permitirãoapreciar a oportunidade de uma intervenção ao se medir adistância que separa as situações existente e desejada. Elesfacilitarão, outrossim, a escolha dos instrumentos de ação,pois esses, para serem eficazes, devem levar em conta ascaracterísticas da situação a regulamentar. Enfim, essesresultados são indispensáveis a toda avaliação legislativa queparta da comparação entre as realidades pré e pós-legislação.

Podem-se resumir assim os princípios que devemguiar o legista e o legislador no curso da primeira fase daabordagem metódica:

a) o impulso que motiva o interesse do legislador porum dado problema deve ser inteiramente relativizado ao longodo trabalho de análise da situação e de definição do problema.Essa relativização deixa aberta a opção de não existência doproblema ou sua solução por vias diversas da legislativa, comconseqüente renúncia à intervenção normativa;

b) essa relativização baseia-se na autonomia do legislador,que não está adstrito às demandas populares, devendo também

8 M. Bassand et al.,Polit ique etl o g e m e n t ,Lausanne, 1984.

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forjar conhecimento próprio da situação e apreciação indepen-dente do caráter problemático que possa apresentar. A autonomiado legislador não significa que ele deva, pura e simplesmente,ignorar expectativas e pressões dos grupos sociais demandantes,mas sim levá-las em conta como parte integrante do contextogeral em que se enquadra o problema a resolver;

c) a análise da situação e a definição do problema não selimitam à matéria circunscrita pela demanda de intervenção. Olegislador tem em conta o contexto do problema e os impactospotenciais do mesmo sobre os domínios conexos, de maneiraa evitar recorte prematuro e setorial do campo em que serátalvez levado a intervir. Dessa maneira, ele evita contradições noseio do corpo legislativo e melhora a coordenação das leis.

É preciso ainda mencionar o caso mais freqüente comque se confronta o legislador: o problema cuja solução lhe édemandada se situa em um campo já objeto de uma ou maisleis. Desde logo, essa legislação preexistente faz parte daanálise da situação e deve ser submetida a uma avaliação9 .

Trata-se, com efeito, de estabelecer as causas possí-veis ligadas à legislação e que são fonte do problema levantado.Entre essas causas destacam-se:

� lacunas na aplicação da lei, que pode ser mal feita ousimplesmente negligenciada;

� inadequação dos meios escolhidos em relação aoproblema a resolver;

� definição imprecisa do problema;� evolução do problema no tempo.

O gráfico de modelização causal é uma técnica derepresentação do problema. Ele permite visualizar o problemadecompondo-o em diferentes fatores, estabelecendo os elos(relações de causa e efeito) entre esses fatores e a naturezadesses elos (fortalecimento e enfraquecimento). A vantagemdessa modelização, puramente qualitativa, é facilitar a vistapanorâmica do problema e de seus diferentes elementos sobuma perspectiva dinâmica, o que não é possível com a meraverbalização do problema.

9 Cf. artigo infra deL.Mader.

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O gráfico de modelização causal se constrói a partir daexpressão simples do problema, que constitui seu elementocentral. No exemplo proposto, o item �volume/natureza dosdejetos� traduz o problema colocado por meio da quantidadee diversidade crescentes dos dejetos domésticos. A partirdesse elemento central, podemos desenvolver o sistema defatores que explicam o problema �dejetos�.

Nós começamos pelos fatores mais concretos, comoa obsolescência dos produtos e a multiplicação das embala-gens, a multiplicação da oferta de produtos (que provocaaumento do volume e diversidade dos dejetos) e a eliminaçãoe a reciclagem, que, ao contrário, atenuam o problema.

Depois, passamos aos fatores de caráter mais geral,como a concorrência, que estimula três fatores mencionados(obsolescência, embalagens e aumento da oferta). A concor-rência favorece o crescimento econômico, que contribui paraa elevação do nível de vida, o que, por sua vez, está em estreitarelação com o nível de consumo e com a ausência de valoreconômico atribuído aos dejetos. Estes últimos fatores refor-çam a produção de dejetos. A eliminação dos dejetos induzcustos, poluição e desperdício de recursos que, por fim, podeminfluir desfavoravelmente sobre o crescimento econômico.

Gráfico 3

Gráfico de modelização causal

(Exemplo: eliminação de dejetos)

Concorrência crescimentoeconômico

nível de vidaembalagem

consumodesvalorizaçãodos dejetos

volume/natureza

dos dejetos

externalizaçãodos custos

eliminação reciclagem

custos poluição saturaçãodos lixões

desperdíciodos recursos

obsolescênciaextensãode ofertas

(-)

(-)

(-)

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É por isso que a relação entre custos/poluição ecrescimento econômico é assinalada com o sinal negativo.

O papel do gráfico de modelização causal é colocar emevidência um grande número de fatores explicativos doproblema e das ligações entre esses fatores, de maneira aapreender a complexidade do problema e sua dinâmica. Dessemodo, o legista dispõe de uma representação da realidade quelhe permitirá, eventualmente, elaborar uma estratégia de açãoadequada ao problema a resolver.

Definir o problema constitui o primeiro passo de umaanálise sistêmica que toma a forma de um processo interativo.A qualidade dessa etapa é de fundamental relevância, pois osresultados obtidos constituem a matéria-prima sobre a qualtrabalhará o legista.

II � A DETERMINAÇÃO DOS FINS EDOS OBJETIVOS

O jurista está familiarizado com a pesquisa das finali-dades de uma lei. Ele aí atua sobretudo porque deve aplicar anorma a um caso concreto. Procura, então, o sentido danorma, lançando mão de métodos teleológicos de interpreta-ção (histórica ou contemporânea). Com os meios de investi-gação limitados de que dispõe, ele atualiza os objetivos quesubjazem no texto legal.

A perspectiva do sociólogo do direito e do avaliador dalei é, simultaneamente, parecida e diversa. Como o jurista, osociólogo, pela análise do discurso legislativo e do texto legal,busca recuperar os objetivos a que se propôs o legislador aofazer a lei. Mas ele não pára aí. O estudo da aplicação da lei,terreno de conflito e negociação entre os interesses, vemrevelar-lhe que objetivos se escondem atrás do confrontoentre norma e realidade: a maneira de aplicar uma lei refleteobjetivos freqüentemente estranhos à vontade do legislador10 .

O avaliador também não se pode contentar com areferência aos objetivos explícitos de uma lei para medir sua

10 J. -D. Delley, LMader, �Que fairedes objectifs dansune étude de miseen oeuvre?�,Revue suisse desociologie, 3, 1981.

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eficácia. Uma abordagem tão restrita conduz à negligência departe importante dos efeitos gerados e ao empobrecimento doleque de fins e objetivos efetivamente perseguidos.

A tarefa do legista é bem diferente. A partir de umconjunto de fins e objetivos que lhe é atribuído por seudemandante, ele deve elaborar uma estratégia de ação susce-tível de favorecer a realização desses objetivos. Mas, a essetítulo, o mandato é raramente claro e exaustivo. Eis porque olegista começa por explicitar, classificar e hierarquizar os finse objetivos que lhe são propostos. A partir de um sistemacoerente de fins e objetivos, ser-lhe-á então possível deduzirum conjunto de medidas adequadas.

A determinação dos fins e objetivos preconizados pelalegística reveste-se de importância cada vez maior no quadrodas leis finalizáveis11 do Estado intervencionista (A). Mas aobservação do processo legislativo mostra que essa exigênciametodológica choca-se com forte resistência (B). A legísticamaterial propõe uma série de princípios e se vale de ferramentastécnicas (C) para a determinação dos fins e objetivos legislativos.

A. A importância da definição dos objetivos

O Direito não existe em si mesmo mas em função daperseguição de certas finalidades. Toda lei visa realizar certosfins ou objetivos. Disso decorre a importância, do ponto devista do método legislativo, de definir, da maneira mais exatae precisa possível, as finalidades de uma lei. Essa importânciacresceu com o advento das legislações que Luhmann qualifi-cou de programas finalizáveis, em oposição às regulamenta-ções condicionais. Ou, no dizer de Hayek, legislações �planode batalha� (taxis), em oposição às regulamentações feitascom regras gerais e impessoais (kosmos).

Ainda que isso não seja fácil, já que os dois tipos delegislação são tipos idealizados, pode-se tentar caracterizar,como faremos em seguida, a diferença entre as legislaçõestendentes a realizar um programa finalizável e as legislaçõescondicionais.

11 Nota do tradutor:�finalisées�, a prin-cípio, significa fi-nalizadas.

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a) Os objetivos de uma regulamentação traduzindo umprograma finalizável têm vocação para serem formulados.

Não acontece o mesmo com as regulamentaçõescondicionais (de conduta), como o Código Civil, o CódigoPenal, as leis fiscais ou de polícia. Para serem compreendidos,esses códigos e leis não indicam nem precisam indicar asfinalidades que perseguem. Essas se deduzem das circunstân-cias históricas e da regulamentação dada.

Há, por trás desses códigos e leis, uma filosofia geral eponderações de interesses que não são manifestos, mas que ojuiz procura recuperar quando em face de um problema deinterpretação.

Entretanto, grandes leis intervencionistas concernentesà proteção ambiental, administração territorial ou proteçãosocial, por exemplo, exprimem finalidades tão globais quantoas implícitas nos grandes códigos. Para descobrir os objetivose estratégias é preciso freqüentemente descer a hierarquianormativa até o nível dos decretos ou, quem sabe, dascirculares.

Por vezes, há declarações governamentais paralelas à leique descortinam os alvos visados. O objetivo de atingir 80% deaprovação no vestibular na França, que inspira as leis escolares,resulta de declarações repetidas dos sucessivos ministros deEducação. Na Suíça, o objetivo de se obter uma qualidade de arcomparável à existente nos anos 60 foi afirmado em umadeclaração de intenção governamental contemporânea à adoçãoda lei sobre a proteção ambiental. Às vezes, os objetivosprecisos são definidos em um programa político.

As conferências de cúpula européias institucionalizaramo procedimento: os regulamentos comunitários são,freqüentemente, apenas atos de formalização dos objetivosnelas definidos. Basta considerar o objetivo da implementaçãodo �grande mercado� comum, em 1993, para se dar conta dovalor real dessas declarações de intenção, que os juristasseriam tentados a negligenciar por não terem a forma jurídicaestrita.

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Às vezes, consultando-se os mecanismos de avaliaçãode uma lei é que se podem descobrir os reais objetivos por elaperseguidos. É o caso da lei que institui a �renda de inserção�,na França, cuja justificativa estipula que a lei �é um doselementos de um dispositivo global de luta contra a pobreza,com vistas a suprimir todas as formas de exclusão,notadamente nos domínios da educação, emprego, formaçãoprofissional, saúde e moradia�.

b) Os programas finalizáveis comportam uma articula-ção muito particular dos objetivos e dos meios para alcançá-los.

Os meios são objetivos secundários que devem serrealizados mediante atividades mais concretas. Vê-se, assim,delinear-se uma cadeia de objetivos e meios, que vai dos objetivosmais gerais até as atividades-meio mais concretas. A propósito,o Direito singulariza-se como ferramenta, entre outras, napersecução de certos fins. Para realizar um programa, recorre-mos igualmente ao dinheiro, à informação e à formação. Issoexplica a crescente instrumentalização do Direito. Como numaestratégia, num plano de batalha, a organização mais adequadados meios disponíveis é decisiva para o sucesso.

c) Os programas finalizáveis são concebidos paraserem realizados progressivamente no tempo, por etapas

Esse escalonamento no tempo tira do Direito grandeparte de sua certeza e previsibilidade, pois nem os objetivosnem os meios são fixados invariavelmente. Tomemos inicial-mente os objetivos, alvos a que nos dirigimos sem estarseguros de alcançá-los. Nesse sentido, eles não se apresentamcomo situações de fato a serem necessariamente criadas emprazo determinado, mas justificam, acima de tudo, um pro-cesso dinâmico em cujo quadro o legislador mobiliza forçaspara modificar um estado de coisas julgado indesejável12 . Emoutras palavras, os objetivos são fugazes na medida em quesua definição depende de um contexto que varia no tempo,contexto este em que os próprios conceitos evoluem.

Por outro lado, a organização dos meios não pode serpredeterminada; do mesmo modo que o bom estrategista tem

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PENSAR A LEI. INTRODUÇÃO A UM

PROCEDIMENTO METÓDICO

que modificar seu plano conforme o desenrolar da batalha, ospoderes públicos, encarregados de implementar um progra-ma, devem ser capazes de adaptá-lo ao sabor da evolução dofenômeno sobre o qual pretendem atuar. As técnicas quepermitem assegurar essa flexibilidade são a delegação legislativae a delegação administrativa. Esta última consiste na outorgaà administração de um poder discricionário ou da faculdade deutilizar na lei noções a tal ponto indeterminadas que permitamà administração agir conforme sua vontade, contanto queestejam no quadro das finalidades definidas.

d) Os objetivos dos programas finalizáveis têm voca-ção operacional

Assim é porque os programas devem ser avaliados euma avaliação, salvo em caso de operação a fundo perdido,supõe que os pontos de referência, ou seja, os objetivos, sejamdeterminados com certa precisão. Ao revés, a ratio legis(razão legal) ou os fins das regulamentações de conduta, pornão se prestarem a avaliações, não têm essa vocação operacional.

e) A articulação entre objetivos e meios não é semprerealizável em certos domínios onde o Estado é levado a intervir

Esse é o caso específico dos domínios mal conhecidosou que evoluem rapidamente, como, por exemplo, abiotecnologia, em que do fim visado, qual seja o respeito peladignidade humana, não se podem deduzir os objetivosoperacionais conducentes à sua realização. Em uma situaçãode incerteza como essa, a solução consiste em lançar mão deinstituições (por exemplo, um comitê de ética) e procedimen-tos com os quais os atores implicados possam elaborar regrasde conduta para a gestão do problema.

B. Das dificuldades de formular fins e objetivos

As demandas de intervenção dirigidas ao legisladorencontram sua origem na percepção de um intervalo julgadoinadmissível entre uma situação de fato e os valores buscados.

12 P. Noll, op.cit.,(nota 4), p. 85.

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Essa referência aos valores justifica a reivindicação de mudan-ça, a idéia de que outras situações sejam possíveis. Para estarem condições de adotar as medidas suscetíveis de modificara situação de fato, o legislador deve visualizar com clareza asituação desejável. Sob o prisma metodológico, essa exigênciade clareza é importante por dupla razão. O princípio daeconomia legislativa impõe, de uma parte, que o legisladorintervenha somente se a situação desejada distinguir-se subs-tancialmente da situação de fato. De outra parte, uma concep-ção suficientemente explícita da situação desejada é umacondição indispensável para determinar a estratégia e os meiosde ação na transformação da situação de fato.

Essa exigência parece evidente. No entanto, a análisedo processo legislativo mostra que este esforço de explicitarfins e objetivos é muito freqüentemente negligenciado. Demaneira geral, o legislador tende a reagir a uma situação de fatojulgada inaceitável, só lhe restando colocar em prática meiosa serviço de um projeto claramente identificável.

A inconsistência que muitas vezes caracteriza os finsvisados pelo legislador se explica pela necessidade de encon-trar um acordo entre os interesses divergentes. Limitar-se adescrever a situação desejada de maneira bem genéricafavorece a adesão da maioria: quem atualmente se oporia àassertiva de que �o Estado protege o homem e seu meio naturalcontra os atentados nocivos ou perturbadores que lhes sãoperpetrados�13 ? E essa adesão unânime subsiste ainda quandoa lei de proteção ambiental preceitua que seu fim é �protegeros homens, os animais e as plantas, a biosfera e o ecossistemadas ações nocivas ou perturbadoras, e conservar a fertilidadedos solos�.

Os conflitos surgem tão logo se tentem definir oslimiares de nocividade e os meios concretos de evitar que elessejam atingidos. Se o fim abstrato consistente em favorecerum meio ambiente saudável interessa a cada um, os meios derealizar esse fim vão afetar interesses substanciais deste oudaquele grupo social, de consumidores, de empresas.

13 Art. 24 septies,C o n s t i t u t i o nféderale.

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PENSAR A LEI. INTRODUÇÃO A UM

PROCEDIMENTO METÓDICO

Quando o Parlamento se decide a legislar sob ameaçade iniciativa popular, preconizando a proibição de venda debens imóveis a pessoas domiciliadas no estrangeiro, ele secontenta em afirmar a necessidade de limitar o número dasaquisições imobiliárias, sem precisar se pretende reduzir essenúmero ou simplesmente frear seu crescimento. Esse fimvago reflete a profunda divisão, no seio do Parlamento e dapopulação, entre aqueles que preconizam o livre acesso dosestrangeiros ao mercado imobiliário suíço e os partidários deuma severa restrição desse acesso.

É por essa razão que o sociólogo do Direito, comoavaliador da lei, vai procurar nos textos regulamentares e naaplicação da legislação o material que lhe permitirá construiro sistema de fins e objetivos efetivamente perseguidos.

Notemos, igualmente, que numerosos projetos de leiincluem soluções que têm pouca ou nenhuma relação com osfins explicitamente visados. Estes últimos são freqüentementemais amplos que a dimensão que lhes é dada no projeto. Essadefasagem se explica pelo fato de que o discurso sobre os finsvisa obter sustentação para o projeto e assegurar-lhe legitimi-dade. Esse discurso expressa fins políticos que tanto podemrefletir as promessas eleitorais quanto as reivindicações degrupos de interesse ou a pesquisa de perfil14 15 .

Os conflitos de interesses e a necessidade de mascararas divergências não são as únicas razões da dificuldade comque se defronta o legislador para exprimir um sistema de finse objetivos articulados e explícitos. Em certos domínios, oParlamento, a exemplo dos atores sociais e da opinião pública,encontra-se incapaz de figurar de maneira precisa a situaçãodesejada. Não se trata de camuflagem, mas de ignorância. Aevolução tecnológica é, notadamente, de tamanha amplitude,aberta a tantas possibilidades e ocorre em ritmo tão aceleradoque o impacto das inovações se torna dificilmente previsível.Nessas condições, mesmo que se possa exprimir o fim geral,a determinação dos objetivos e medidas voltadas para suaconcretização se apoia sobre a extrema fluidez da situação aregulamentar.

14 Nota do tradutor: oautor refere-setão somente a uma�récherche deprofil�, expressãobastante utilizadano mercado de tra-balho, no queconcerne a recru-tamento de mão-de-obra. No con-texto, a expres-são parece apli-cável, necessari-amente, ao perfildo eleitorado.

15 Krems, po. Cit.,(nota 5), p. 116.

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C. Princípios e técnicas de determinação dos finse objetivos

O ponto de partida para a determinação dos fins eobjetivos é a análise da emergência do problema e de suadefinição, já que a existência de um problema supõe umatensão entre um estado presente e um estado desejado.Entretanto, é insuficiente inventariar os fins e objetivospróprios aos diversos atores sociais e políticos, afetos a seusinteresses e reivindicações, tomando-os em sua feição origi-nal, escolhendo alguns deles ou combinando-os num compro-misso político.

A definição dos fins e objetivos da lei deve ultrapassaros pontos de vista particularistas para expressar uma perspec-tiva específica do Estado, sob a ótica do interesse público.

A simples negação da situação de fato, percebida comoindesejável, também não é suficiente; é preciso, ao contrário,prefigurar uma situação nova, preferível ao estado de coisasexistente. A determinação dos fins e objetivos implica umaformulação pró-ativa.

Podem-se definir os fins como enunciados sobrecomportamento ou situação futura afeta a um determinadovalor que se quer ver respeitado16. Em sua generalidade, o fimindica uma tarefa permanente que não será jamais realizadadefinitivamente. Ele aponta antes uma direção, uma tarefa acompletar que um estado definitivo de coisas. Assim sucedecom o fim já mencionado de proteção do homem e de seu meioambiente contra as ações nocivas e perturbadoras: é um fimde caráter regulatório, que, na Suíça, sobreleva a responsabi-lidade do poder central sem que se possa pretender seualcance pleno em um dado momento. Esse fim regulatóriodeve ser concretizado por fins operacionais chamados �obje-tivos�. Fala-se em fins operacionais porque são, em princípio,realizáveis por intermédio de iniciativas apropriadas. Na ver-dade, o que se pode visar é à realização desses objetivos, queservem de parâmetro para a avaliação dos resultados quantoà consecução do fim último.

16 Ibid., p. 139.

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PENSAR A LEI. INTRODUÇÃO A UM

PROCEDIMENTO METÓDICO

Como proceder para chegar aos objetivos operacionais?O caminho consiste em estabelecer um sistema de fins eobjetivos hierarquizados. Um tal sistema compreende váriosníveis, das finalidades mais abstratas a objetivos muito preci-sos e às medidas concretas que permitirão realizá-los. Eletoma a forma de uma estrutura de planejamento arbórea.

Para ilustrar esse caminho, tomemos o exemplo dapolítica de moradia, cujo fim é oferecer à população númerosuficiente de residências. Que significa concretamente essefim? É melhor repartir o conjunto residencial existente, aumen-tar a oferta global de moradias ou construir moradias de baixocusto? E quais são as medidas adequadas à realização dessesfins? Operacionalizar um fim significa responder a todas essasquestões. As respostas vão certamente depender da análiseprévia que nos permitiu precisar a natureza do problema.

Construir um sistema de fins e objetivos é, a partir daintenção manifesta, estabelecer uma hierarquia, ordenar osníveis que vão do mais abstrato ao mais concreto, colocando-se a dupla questão do �por quê� e do �como�.

Esse duplo caminho vertical (para cima e para baixo)permite:

1) reatar o(s) fim(ns) inicialmente manifestos aos finsmais abstratos e inserir, assim, a intervenção demandada noquadro mais geral da ação estatal;

2) inventariar os fins e objetivos de mesmo nível quenão são sempre inteiramente compatíveis e harmonizá-losmediante sua ponderação;

3) atualizar toda uma série de medidas concretas capazesde operacionalizar o fim inicial e constituir o estoque deinstrumentos com que se possa traçar uma estratégia de ação.

Pode-se duvidar do interesse de pesquisar os fins, emalto nível de abstração, num caminho que consista em definirum campo de intervenção muito concreto. Oferecer mora-dias suficientes ao povo não é um fim explícito o bastantepara fundamentar uma ação pública? Nesse caso, relacionar

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a oferta suficiente de moradia com um fim mais geral � amelhoria da qualidade de vida � descortina outros fins gerais,últimos, como por exemplo a utilização econômica do solo,os quais sugerem limites que se chocam com a realização deuma oferta suficiente de moradias, relativizando tal fim. Secada pessoa deve dispor de habitação, por outro lado essedireito tem que ser efetivado no quadro da regulamentaçãodo uso territorial. Essa obrigação vai impor uma seleção dosobjetivos e das medidas suscetíveis de conciliar o direito àmoradia com as exigências da administração do território(gráfico 4).

Ligar um fim a outro de nível superior significatambém alargar as perspectivas de ação. Desse modo,pesquisar as razões que motivam uma intervenção emfavor do acesso dos habitantes à propriedade de suamoradia permite atualizar toda uma série de medidas querespondam igualmente a esses motivos. Os fins evocadosem prol de uma promoção do acesso à propriedadeimobiliária são, outrossim, realizáveis, ao menos

Por quê?

Como?

Crescimento de prosperidade(art. 2 Constituição Federal)

Proteção domeio ambiente

Utilização econômicado solo

Regulamentação douso territorial

melhor utilização dasmoradias existentes

melhor utilização dezonas de construção

encorajamento daconstrução de moradias

Melhoria daqualidade de vida

Oferta suficiente

Cada um dispõe de uma moradia suficiente

� taxa de moradias vazias� taxa de moradias de luxo� obrigatoriedade de utilização� direito de utilização das moradias vazias

� densificação das construções � ajuda financeira� obrigatoriedade de construir� extensão de zonas de constução� simplificação de procedimentos� construção pelo Estado

Gráfico 4

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PENSAR A LEI. INTRODUÇÃO A UM

PROCEDIMENTO METÓDICO

parcialmente, por outros meios: assim, a busca dasegurança garantida pela propriedade de onde se morapode ser também atendida por melhores dispositivos deproteção aos locatários. A necessidade de autonomiaencontrará resposta em formas de propriedade como, porexemplo, a cooperativa habitacional, ao passo que aformação de poupança pode ser estimulada por incentivosfiscais.

Esse procedimento de abstração seguido deconcretização enriquece o cardápio de medidas divisáveis(gráfico 5).

Elaborar um sistema de fins e objetivos permite eviden-ciar as eventuais relações de interdependência entre fins eobjetivos de mesmo nível. A realização de um fim podeacarretar impacto positivo ou negativo sobre a realização deoutro fim. A importância que se atribua, respectivamente, aum e outro determinará a natureza das medidas virtualmenteadotadas. Retomemos o exemplo da oferta suficiente de

Por quê?

Como?

segurança autonomia poupança

proteção doslocatários

cooperativahabitacional

favorecer oacesso à propriedade

Gráfico 5

CADERNOS DA ESCOLA DO LEGISLATIVO

126

moradias. Esse fim encontra sua primeira concretização pormeio destes três objetivos concorrentes: (gráfico 6)

Enfatizar um ou outro fator conduz automaticamentea reduzir a importância dos outros: assim, a prioridade definidaem favor da construção de novas moradias relegará a planosecundário a melhor utilização do parque imobiliário existente.Há, então, necessidade de arbitrar o emprego desses fatoresmediante sua ponderação. O peso atribuído a cada fatordeterminará a natureza e a intensidade dos meios respectivosa serem empregados. Assim, definir peso de 60% ao objetivode estimular a construção de moradias implicará utilização demeios diversos daqueles virtualmente usados caso o pesofosse de 10% com relação aos dois outros fatores.

Finalmente, a construção da estrutura arbórea de finse objetivos deve nos conduzir, por concretizações sucessivas,a elucidar os efeitos últimos e concretos que vão traduzir arealização dos fins visados. Essa etapa de determinação dosfins e objetivos encontra ultimação no inventário dos efeitose dos indicadores que os qualificam17 .

Tabela de �Efeitos últimos�

Gráfico 6

10 30 60

17 W. Hugger,Gesetze � IhreV o r b e r e i t u n g ,Abfassung undPrüfung, Baden-Baden 1983,pp.125s.

Objetivos Efeitos Indicadores

1) Melhor utilização doparque imobiliárioexistente.

Abrigar mais pessoas noparque imobiliárioexistente.

Taxa de ocupação dosimóveisTaxa de imóveis nãoocupados.

2) Melhor utilização daszonas edificáveis.

Permitir a construção demais unidadehabitacionais por zona.

Índice de ocupação dosolo.

3) Construção demoradias.

Aumento da oferta denovas moradias

Crescimento líquido daoferta habitacional.

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PENSAR A LEI. INTRODUÇÃO A UM

PROCEDIMENTO METÓDICO

D. A estratégia de realização dos fins

Tão logo se determinem os efeitos últimos buscados,é tempo de inventariar os meios suscetíveis de causá-los e,então, concretizar os objetivos pretendidos.

Para realizar os objetivos ou, em outros termos, pararesolver o problema, o Estado deve atuar sobre os comporta-mentos ou o imaginário dos atores sociais; de maneira diretaou indireta, ele procurará influenciar a escolha destes entre asdiferentes possibilidades de ação que lhes são oferecidas,favorecendo certas alternativas em detrimento de outras e,quiçá, excluindo outras mais.

Os meios de ação de que o Estado dispõe para tanto sãomúltiplos. Fala-se de estratégia porque toda intervenção esta-tal implica uma combinação de meios no espaço e no tempo;com efeito, raras são as situações em que apenas uma medidaé aplicada de maneira uniforme no tempo para produzir osefeitos esperados.

Quais são esses meios? Tradicionalmente, o Direitoexpressa valores cuja realização ocorre mediante aplicação deregras positivas. O �Estado policial� do século XIX e do iníciodo século XX atua pouco, mas de modo constrangedor: oinstrumento de ação essencial é o mandamento, ou comando,que toma forma de lei ou de ato administrativo. É em tornodessas duas figuras que o direito administrativo se estruturou.A estrutura característica da ação do Estado policial é de tipocondicional: as conseqüências da violação das normas �sanções � são previstas e aplicadas pela administração e pelojuiz nos termos de um raciocínio dedutivo. Os controles,jurisdicionais ou de outra natureza, erigem-se na conformida-de das normas inferiores às normas superiores, bem como nados comportamentos às normas jurídicas em geral.

Com o advento do Estado intervencionista moderno eo desenvolvimento das políticas públicas, aparece um outromodelo de ação, de tipo finalista, baseado na articulação demeios, jurídicos ou não, e dos objetivos a realizar: o meio �

CADERNOS DA ESCOLA DO LEGISLATIVO

128

prescrição ou estímulo �, ainda que haja conformidade doscomportamentos, não é mais a garantia de que os objetivosvisados serão atingidos. O meio é somente um instrumento aserviço dos objetivos.

Se o Estado intervencionista ampliou de maneira im-portante sua ação sobre essa sociedade, igualmente alargou,de modo sensível, o leque de meios que emprega: à coarctação(obrigação ou restrição) somaram-se � por vezes comosucedâneos � o incentivo, a persuasão e o acordo. A interven-ção estatal torna-se sempre mais sofisticada, insidiosa e sutil,dirão alguns. Mas, simultaneamente, ela lança mão, cada vezmais, da cooperação das pessoas e grupos sociais sobre osquais se exerce: quanto mais se estende, menos se fazvigorosa. Há uma espécie de lei de Mariotte da ação estatal,análoga àquela que rege a compressão dos gases.

Em tal modelo, os controles formais, de regularidade,perdem sua importância e cumprem papel apenas marginal noque concerne aos instrumentos não jurídicos. Eles perdemtambém importância em face do crescimento do poderdiscricionário reservado à administração para a realização dosobjetivos. Os controles materiais, de eficácia, tornam-se, aorevés, prioritários.

a) Os tipos de instrumentos

Podem-se distinguir diferentes tipos de medidas (ins-trumentos de ação) segundo seu modo de funcionamento:

1) instrumentos de tipo prescritivo ou coercitivo, aosquais são associadas sanções (obrigações, proibições e auto-rizações), ou seja, que impõem comportamentos cujainobservância é passível de sanção;

2) instrumentos de incentivo, que não impõem com-portamentos mas visam a suscitá-los, notadamente por estí-mulo financeiro, positivo ou negativo, informação, formaçãoou mesmo pressão regulamentar;

3) instrumentos de coordenação;

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PENSAR A LEI. INTRODUÇÃO A UM

PROCEDIMENTO METÓDICO

4) fornecimento de bens e serviços públicos peloEstado;

5) disponibilidade de procedimentos que regulem asrelações entre diferentes grupos sociais ou que garantam agrupos determinados a participação em certas decisões;

6) instrumentos de parceria.

As �prescrições� (inclusive os instrumentos deregulação) constituem, ainda hoje, o meio de ação estatal porexcelência, mas são freqüentemente conjugados com outrosinstrumentos18 . Elas exigem, via de regra, o funcionamentode uma administração de aplicação (meios pessoais e porvezes técnicos). Geram custos de controle e de sançãorelativamente elevados, na medida em que impõem compor-tamentos que não são espontaneamente obtidos de seusdestinatários. Estes últimos vão tentar, então, desenvolverestratégias para evadir-se de seu cumprimento. Por issomesmo, é preciso que as prescrições encontrem um nívelmínimo de adesão por parte dos seus destinatários19 .

Os �incentivos� são positivos, quando signifiquemuma vantagem para os destinatários que se conformem aocomportamento desejado, ou negativos, quando penalizem osque escolham conduta diversa. Diferem dos instrumentoscoercitivos porque a sanção que lhes é correlata não têmnatureza propriamente jurídica, podendo ser econômica,moral ou de fato (concreta).

São financeiros, quando visam influir no custo de umcomportamento. Positivos, procuram reduzir esse custo,como no caso das subvenções, dos favores fiscais ou daconcessão de crédito facilitado. Tanto podem conferir direi-tos aos administrados como deixar ao administrador adiscricionariedade para decidir sobre sua utilização.

Os incentivos negativos tendem a impedir ou prevenirum dado comportamento, aumentando seu custo. O casomais típico é aquele das taxas de orientação20 ; contrariamenteao que sucede em caso de mandamento legal, a taxa não

18 Cf. infra, p.138.

19 Cf, por exemplo acorrelação entreo nível de taxa deimposição e aaceitação da fis-calização.

20 Nota do tradutor:taxa de orienta-ção ou de pedá-gio ecológico,quando se circu-la com um auto-móvel, numa gran-de metrópole, emdia que lhe é ve-dado o tráfego.

CADERNOS DA ESCOLA DO LEGISLATIVO

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implica um dever de conduta. Ela não constitui uma sançãopela violação de uma norma de conduta. Os incentivosfinanceiros ajustam-se por completo à lógica dos Estados emeconomias de mercado e, por isso, estão bastante em vogacomo substitutivos dos comandos providos de sanção. Adap-tam-se melhor à diversidade e à evolução dos fatos que osmandamentos. Além disso, importam a participação ativa dosparticulares na realização das políticas públicas. Em geral, ocusto de controle é menos elevado que o concernente àsprescrições.

Cada tipo de incentivo suscita problemas peculiares.Os estímulos negativos, assim como os comandos ordinários,provocam atitudes fraudulentas (tentativas de se subtrair àincidência da taxa). As vantagens fiscais têm o inconvenientede serem atribuídas por administradores fiscais pouco preo-cupados com o sucesso da política pública. As subvençõespodem conduzir a comportamentos não econômicos (custosexorbitantes, substituição artificial de atividades econômicas)e provocar efeitos perversos (excedentes agrícolas).

Também existe o risco de que destinatários poucoorganizados ou desorganizados ignorem ou não façam valerseus direitos a essas subvenções. A efetividade desse tipo demedida implica então um esforço de informação por parte daadministração.

De maneira geral, a efetividade do incentivo, quer sejapositivo ou negativo, depende de um limiar econômico quemotive o destinatário a mudar seu comportamento: abaixodesse limiar, ele desconsiderará tanto o custo adicional repre-sentado pela taxa quanto o benefício da subvenção.

Podem-se imaginar outros incentivos sem caráterfinanceiro, mas com efeitos econômicos. É o caso, porexemplo, da atribuição estatal de rótulos de controle dequalidade para um produto ou da exclusão de uma empresa dalista dos profissionais credenciados para a execução de umatarefa pública.

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PENSAR A LEI. INTRODUÇÃO A UM

PROCEDIMENTO METÓDICO

Desse modo, a Confederação (Suíça), antes mes-mo de dispor de uma legislação de proteção ambiental,introduziu um rótulo de controle de qualidade para asinstalações de aquecimento, consoante padrão de emis-são tolerável. No mercado, esse rótulo adquiriu talimportância que, muito rapidamente, os principais fabri-cantes adequaram-se a esse padrão. No Cantão deAppenzell Rhodes Extérieurs, as autoridades propuseramaos profissionais da construção uma formação em técni-ca de economia de energia. As autoridades explicaramclaramente a esses profissionais que apenas os quecompletassem com sucesso tal formação poderiam sercontratados pelo Estado21 .

O incentivo pode passar pela criação de um mercado.No seio de um quadro prescritivo, o Estado recompensa oscomportamentos de destinatários que fazem um esforço maisrelevante que o exigido por lei. Em matéria de proteção do ar,por exemplo, as empresas que consigam reduzir o nível dasemissões poluentes abaixo do limiar normativo recebemcertificados de direito de poluição que podem ser vendidos aoutras empresas ou usados em suas demais unidades produ-toras nas quais o respeito às normas se revele economicamen-te mais oneroso.

O objetivo desse mercado não é abaixar o volumeglobal das emissões poluentes, mas melhorar a eficiência dalegislação: preferencialmente a impor, de modo linear, aredução de emissões poluentes, independentemente do custoacarretado, o Estado, graças a esse artifício, permite aosdestinatários realizar os objetivos da legislação de modomenos oneroso.

Os incentivos não são submetidos a um regime jurídicouniforme. A questão principal é saber se as exigências delegalidade são aplicáveis. As taxas devem respeitar as exigên-cias estritas que imperam em matéria de impostos. Desde ocaso Wäffler22 , as exigências de legalidade foram estendidasaos incentivos positivos. Mas elas podem ser menos rigorosasque em matéria de administração restritiva.

21 J.D. Delley/L. Mader,L�État face au défié n e r g é t i q u e ,Lausanne, 1986.

22 ATF 103 Ia 369.

CADERNOS DA ESCOLA DO LEGISLATIVO

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Os incentivos, contrariamente às recomendações, tra-duzem-se, invariavelmente, em outorga de direitos, criação deobrigações ou de um status jurídico.

O incentivo pode passar pela informação. Eis um vastodomínio que cobre tanto a informação a um público específico(por exemplo, aos agricultores, no que diz respeito à culturaintegrada; ou aos toxicômanos, no quadro da luta contra aAids) quanto ao grande público (campanhas em favor daeconomia de energia, contra o tabagismo ou pela segurançarodoviária).

A informação torna-se formação quando se dirige a umgrupo particular que desempenha papel primordial em um setorde atividade e lhe transmite conhecimentos suscetíveis de modi-ficar seu comportamento com vistas à implementação dosobjetivos desejados (programa de formação em matéria deeconomia de energia para os profissionais da área de construção).

Se a ação do Estado pelo viés da informação pode-serevelar eficaz em face de uma situação relevante e momentosa(por exemplo, apelo à economia de energia em seguida à crisepetrolífera), ela arrisca-se a perder seu impacto ao longo dotempo, pelo menos no caso de campanhas para o público emgeral, porque, nesse caso, a informação precedefreqüentemente uma intervenção mais constrangedora, pre-parando o terreno, ou a acompanha, facilitando suaimplementação.

O Estado recorre a instrumentos de pressão regula-mentar quando reconhece não estar exatamente em condiçãode definir melhor ou mais eficazmente do que os atores sociaisos comportamentos necessários aos fins que persegue. Elefixa então os fins e objetivos, deixando aos destinatários aescolha dos meios mais adequados para alcançar os objetivospretendidos. O incentivo consiste em fazer pairar a ameaça deuma solução autoritária no caso de não se atingirem osobjetivos pretendidos.

O incentivo, conforme o nível de recompensa oupunição, e a informação, quando é repetitiva até se tornar

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PENSAR A LEI. INTRODUÇÃO A UM

PROCEDIMENTO METÓDICO

propaganda, podem vir a ser instrumentos tão coercitivosquanto as prescrições.

O fornecimento de bens e serviços se desenvolveu demaneira importante no paradigma do Estado intervencionista23 .Todavia, a eficácia desse modo de ação é hoje questionada24

nos seguintes termos: o custo das prestações públicas seriaelevado, os benefícios não seriam usufruídos prioritariamentepor seu público-alvo, nem seriam suficientemente adequadosàs necessidades dos usuários. Daí a tendência de separar asfunções de supervisão (o Estado zela pela prestação efetivados serviços e bens públicos) e de oferta (o fornecedor a serescolhido deve ser aquele capaz de prestar o melhor serviçoao menor custo).

Esses instrumentos materiais não impõem obrigaçõesnem prevêem sanções: sua própria existência conduz à reali-zação dos objetivos visados. A construção de quebra-molasem uma rua modera a velocidade dos veículos sem que sejanecessário impor uma limitação de velocidade. Igualmente,retardar o início do horário escolar diminui o risco de acidentepara os alunos, na medida em que os livra do tráfego nas horasde pico. O interessante nesse tipo de medidas, uma vezfactíveis, é que seus efeitos são facilmente previsíveis e nãooferecem problemas de aplicação.

Os procedimentos e as instituições criam um quadroformal para a tomada de decisão sem determinar, a priori, oresultado material da decisão25 . Associando formalmente osatores sociais ao processo decisório, os procedimentos repre-sentam uma alternativa às prescrições materiais destinadas aproteger os interesses desses atores. À guisa de exemplo,mencionamos a Comissão Federal da Concorrência e aplataforma federal encarregada de coordenar e conceber apolítica das drogas.

Os instrumentos de parceria. No quadro da açãoconcertada, o Estado não impõe obrigações aos administradosapenas com base na lei ou na decisão administrativa, masnegocia com eles. Ele age, então, seja mediante contrato de

23 Por exemplo nocampo da educa-ção, da saúde, dostransportes.

24 Cf. a esse assun-to as teoriasneoliberais e o de-bate sobre adesregulamentação.

25 Por exemplo, o di-reito de ser con-sultado, de fazeroposição ou entrarcom recurso, deser representadonum órgão de de-cisão, a obrigaçãode conciliação.

CADERNOS DA ESCOLA DO LEGISLATIVO

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direito administrativo com um particular ou uma coletividadepública para a execução de uma tarefa pública, seja de maneirageral, celebrando acordos com organizações representativas(convenções coletivas, acordos amigáveis).

E. A escolha dos instrumentos

a) Os princípios

Os princípios de método legislativo que permitemotimizar a escolha dos meios de ação estatal não estão aindamuito desenvolvidos. Pode-se, não obstante, formular quatroprincípios de caráter geral.

1 � O princípio da subsidiariedade

Tem a ver, parcialmente, com o princípio jurídico quedetermina, em face da existência de vários meios conducentesa um objetivo, a escolha do menos constrangedor dos direitosdo administrado. A diferença entre o princípio jurídico e oprincípio de método legislativo é que este último visa àotimização dos meios com relação aos objetivos, ou seja, àeconomia dos meios empregados. Ele tem em vista a açãoestatal, qualquer que seja ela, como geradora de custos aserem minimizados. Sua aplicação supõe uma avaliação deeficiência. Os limites desse tipo de avaliação residem nadificuldade de comparar o custo e os efeitos de diversasmedidas estatais.

É difícil, por exemplo, comparar o custo de umacampanha publicitária com os resultantes do controle de umaproibição legal, assim como os efeitos de ambas as iniciativas.

2 � O princípio da adequação

Da proibição da conduta arbitrária26 decorre a obriga-ção para o legislador de assegurar uma adequação mínima dosinstrumentos escolhidos aos objetivos perseguidos. O contro-le jurisdicional dessa adequação continua bastante teórico namedida em que os tribunais não dispõem de estudos empíricos

26 Art. 4, Constitui-ção Federal.

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que permitam apreciá-la. O princípio do método legislativo vaimais longe que o princípio jurídico. Ele postula uma adequa-ção ideal. O controle dessa adequação supõe tanto umaavaliação prospectiva quanto uma retrospectiva. Se esse tipode avaliação foi feita, os estudos poderiam servir para contro-lar o respeito ao princípio jurídico, na medida em querevelariam uma inadequação manifesta.

3 � O princípio da sinergia

As políticas públicas modernas se caracterizam pelofato de implicarem o recurso conjunto a vários instrumentos(prescrições, dinheiro, informação). O método legislativopostula inicialmente que várias medidas não se entrechoquem.A existência de contradições entre elas não é rara. Em umestudo dedicado à lei Furgler sobre a aquisição de imóveis porestrangeiros27 , nós constatamos que as medidas penais cho-cavam-se com as civis (nulidade da venda feita com violaçãoà lei). O comprador que se considerava lesado pelo vendedornão ousava fazer valer a nulidade por medo de se expor àssanções penais previstas. O método legislativo não se atém aprescrever a não-contradição. Ela visa à otimização da com-binação de meios empregados. Isso implica que se tenha bomconhecimento do funcionamento de cada meio. Seria precisotambém que, no quadro das avaliações, se pudesse pesquisara eficácia da conjugação de meios.

4 � O princípio da celeridade

A experiência mostra que os problemas sociais evolu-em mais depressa que a capacidade dos poderes públicos deencontrar soluções para eles. Na Suíça, em particular, asexigências democráticas e o funcionamento lento do sistemapolítico agravam o problema.

Na eventualidade de os poderes públicos serem incapa-zes de forjar as bases constitucionais ou legais necessárias,vê-se que os mesmos recorrem a paliativos, como disposiçõesinternas de efeito externo (proteção de dados) ou disposiçõesque se tornam juridicamente inatacáveis (organização sem

27 Delley et al., op.cit., (nota 5).

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base legal em matéria de rádios locais, à vista de que o poderde conceder autorizações está a cargo do Conselho Federal28 ,cujas decisões são inatacáveis; no nível cantonal, recurso aodecreto, preferencialmente à lei).

Como os princípios de direito e o método legislativosão, nessa matéria, contraditórios, seria preciso harmonizá-los. É isso que se faz pelo direito à urgência (artigo 89 bis daConstituição Suíça).

Poderia cogitar-se de permitir ao Governo ou aoParlamento a adoção de legislações experimentais segundo umprocedimento mais rápido que o que rege a elaboração da leiordinária, sob a condição de que tais atos se limitem estrita-mente no tempo e que ao término da experiência o legisladorseja obrigado a recorrer ao procedimento ordinário.

b) As técnicas

No momento de proceder à escolha dos instrumentos, olegista é ameaçado pelo perigo da rotina. Sua familiaridade comcertos tipos de instrumento o conduz freqüentemente a preferirconfiar nas medidas que ele já conhece em vez de procurar oinstrumento ou a conjugação de instrumentos suscetíveis deinfluenciar mais eficazmente os comportamentos com vistas aatingir o objetivo desejado. Os instrumentos checados adquiremuma espécie de força normativa que limita a possibilidade deescolha e impede arranjos novos. O fenômeno é particularmentevisível, por exemplo, no que tange ao direito penal: quando umcomportamento penalmente condenável ganha corpo, o legisla-dor escolhe prioritariamente o aumento da pena.

Para além da força normativa, certos instrumentos deação adquirem um estatuto privilegiado por causa da situaçãode fato que contribuíram para criar. Assim, o legisladorescolheu uma rede de canalização para encaminhar o esgotoaté a estação de tratamento, impondo aos emitentes a obriga-ção de se ligarem à rede. Essa escolha exigiu, ao longo dosanos, investimentos de tal importância que se tornou muitodifícil imaginar outra estratégia, por exemplo, mais descentra-

28 Nota do tradutor:este é o nome ofi-cial do governosuíço.

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lizada e dirigida à prevenção, ainda que esta última se revelassemenos onerosa. Nesse exemplo, é a força normativa dos fatosque dita sua lei.

Nesse passo, a abordagem consiste em estabelecer alista mais completa possível dos instrumentos de ação dispo-níveis e capazes de contribuir para a solução do problema emcausa. Somente na seqüência, com base no critério deadequação aos fins visados e na viabilidade jurídica, política efinanceira, poder-se-á fazer a escolha.

O método propositivo de Bender29 constitui a aborda-gem mais simples. Ele se desenrola em três etapas:

1) O problema � por que as pessoas não se comportamde maneira que conduza ao fim almejado? � é descrito emproposições simples.

2) Essas proposições são refutadas, o que conduz adescrever os comportamentos adequados ao fim almejado.

3) Procuram-se, então, as medidas próprias pararealizar as proposições refutadas.

Essa abordagem apresenta uma dupla vantagem. Deuma parte, permite inventariar exaustivamente as medidaspossíveis e, de outra, evidencia os limites de intervençãopública (ver exemplo na página seguinte).

O inventário nada diz sobre a escolha das medidas e asdiferentes combinações possíveis. Para facilitar tais operações,Hugger30 sugere a utilização da �matriz morfológica�, umamaneira de visualizar, de uma parte, os elementos constitutivosdas medidas vislumbradas e, de outra, as variações possíveisdesses elementos. Dessa maneira é possível combinar diferen-tes medidas e elaborar vários cenários de intervenção.

Para continuar no exemplo de uma política visandoequilibrar o mercado habitacional � a oferta de moradiaadequada à demanda �, pode-se imaginar um cenário centradona prioridade do incentivo à construção (flexibilização deprocedimentos jurídico-burocráticos envolvidos na constru-ção, disponibilização de equipamentos e terras edificáveis),

29 Hugger, op. cit.,(nota 18), pp. 133s.

30 Ibid., p.136.

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transferindo-se à coletividade o ônus do esforço financeiroque propiciará, a quem precisa de imóvel e não tem renda, umaluguel subsidiado. Também se pode cogitar de um cenárioem que o Estado ajude os promotores do investimento comsubvenções e vantagens fiscais de maneira a fazer baixar oaluguel das moradias a um nível suportável para os locatários.Ou ainda, um cenário de maior intervencionismo, em que oEstado constrói, ele próprio, as moradias para responder àsnecessidades não satisfeitas pelo mercado.

Assim como o gráfico de modelização causal nospermitiu visualizar o conjunto dos fatores que determinam oproblema a resolver e as relações existentes entre eles, ográfico de modelização dos efeitos31 facilita o inventário dospossíveis efeitos de uma medida ou de um conjunto demedidas, suas relações e sua qualidade (efeitos positivos ounegativos).

O método propositivo. Oferta suficiente de moradias

31 Ibid., pp.145ss.

Proposição Negação Soluções

A escassez de moradiafavorece a elevação dosaluguéis e não estimulaos investidores aconstruir.

A escassez de moradianão favorece aelevação dos aluguéise estimula osinvestidores a construir.

Aumentar o controlelegal dos aluguéis.

(não parece lógico doponto de vistaeconômico)

Não há quantidadesuficiente de terrenosedificáveis disponíveis.

Há quantidadesuficiente de terrenosedificáveis disponíveis.

Modificar os planos dezoneamento paraaumentar a zonaedificável.

Os terrenos edificáveisnão dispõem deequipamento urbano.

Os terrenos edificáveisdispõem deequipamento urbano.

Desenvolver osequipamentos urbanosnas zonas edificáveis.

Os proprietários de casasindividuais situadas naszonas edificáveis nãoestão dispostos a vender.

Os proprietários decasas individuaissituadas nas zonasedificáveis estãodispostos a vender.

Propor uma moradia desubstituição.

O tempo de construçãodos imóveis é longodemais para responderao aumento da demanda.

O tempo de construçãodos imóveis não émuito longo e permiteresponder ao aumentoda demanda.

Acelerar e simplificar oprocedimento deautorização paraconstruir.

O nível dos aluguéisresidenciais novos éelevado demais para amaioria dos interessados.

O nível dos aluguéisresidenciais novos nãoé elevado demais paraa maioria dosinteressados.

Abaixar o custo deconstrução.Abaixar o nível dosaluguéis mediantesubvenção.Aumentar o controlelegal sobre os aluguéis.

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PROCEDIMENTO METÓDICO

III � A AVALIAÇÃO PROSPECTIVA

Como escolher entre as diferentes medidasinventariadas, ou seja, entre os cenários de intervençãopossíveis?

O primeiro critério a levar-se em conta é certamente oda adequação das medidas aos objetivos visados, ou seja, suaeficácia. Mas a eficácia não é um critério abstrato. A realizaçãodos objetivos implica um processo concreto e se choca comtoda uma série de obstáculos, tais como o custo das medidas,sua inserção no ordenamento jurídico, sua aceitação política,viabilidade operacional, tempo disponível para que essesobjetivos sejam atingidos. De maneira mais geral, a escolhadas medidas mais apropriadas aos fins buscados por umalegislação deve levar em conta, além dos efeitos desejados, oimpacto previsível, quer dizer, o conjunto dos efeitos possí-veis sobre os destinatários diretos e os demais públicosatingidos. Da mesma forma, é preciso elucidar o impacto doprojeto sobre outras políticas públicas: assim, uma legislaçãoque vise garantir a oferta habitacional adequada pode, confor-me as medidas vislumbradas, ter efeitos indesejáveis sobre apolítica de ocupação territorial, sobre a conjuntura econômi-ca, etc.

A avaliação prospectiva integra todos esses critérios.Ela visa informar, com a maior precisão possível, o conjuntodos efeitos potenciais das medidas vislumbradas. Trata-se deuma abordagem de otimização que procura evidenciar ascondições da melhor escolha.

As questões a que se tenta responder com a avaliaçãoprospectiva levam a uma situação futura, como tal, desconhe-cida. Os métodos utilizados para elaborar as respostas seaplicam, por sua vez, a dados empíricos, observáveis, relati-vos então a situações passadas. Essa passagem do passado aofuturo � uma extrapolação � representa uma dificuldademetodológica de monta. A validade das respostas sugeridasdepende da capacidade de considerar o contexto provável noqual se inscreverão as medidas avaliadas (evolução econômi-

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ca, recursos disponíveis, mudanças de atitudes), o qual podeconhecer fortes variações.

Distinguem-se dois grandes tipos de avaliaçãoprospectiva conforme esta última se apóie nos métodos deanálise (prüfmethoden) ou nos métodos de teste (testmethoden).O primeiro tipo se aplica a uma medida ou conjunto de medidaspara conhecer aspectos particulares de um projeto legislativo,conforme critérios determinados, enquanto o segundo tentaprever o comportamento de um projeto como se ele houvesseentrado em vigor32 .

A. Os métodos de análise

O direito comparado constitui o método mais simplese freqüentemente usado. Ele fornece informações sobre asexperiências feitas em outros países e dá uma primeiraindicação sobre a utilidade das medidas implementadas,contanto que os efeitos das legislações estrangeiras tenhamsido avaliados. Não se deve, todavia, camuflar os limites dessaaproximação, notadamente as dificuldades inerentes à trans-posição de um modelo de ação para um contexto sociojurídicodiverso.

O legista pode igualmente se apoiar nos resultados daspesquisas de sociologia legislativa, aí compreendidos os quesão fornecidos pelas avaliações retrospectivas. Esses traba-lhos inventariam toda uma série de problemas e efeitos ligadosà legislação em vigor. Os resultados obtidos por meio dessasanálises de base empírica deveriam contribuir para minimizaro risco de uma apreciação fundada, quase exclusivamente, emcritérios de bom senso ou em preconceitos33 . Mas tambémnesse caso é preciso cuidado: a informação extraída daobservação de uma realidade passada ou presente não épertinente para antecipar uma situação futura.

Para prever de maneira mais precisa a intensidade e asmodalidades dos efeitos esperados, é preciso recorrer amétodos estatísticos mais sofisticados, tais como aextrapolação, a análise de interdependência, a modelização ou

32 C. Böhret/W.Hugger, Test undPrüfung vonGesetzentwürfen,Köln/Bonn, 1980,p. 28.

33 Hugger, op.cit.,(nota 18), p. 144.

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a análise custo-benefício. O recurso a esses métodos éparticularmente útil em domínios de intervenção como aquestão fiscal e a política econômica, principalmente, domí-nios para os quais se dispõe de dados quantitativos indispen-sáveis à sua aplicação.

A árvore da decisão é uma técnica simples e útil paracomparar a utilidade das diferentes medidas vislumbradas efacilitar assim a escolha do legista. Com base em sondagens,dados fornecidos eventualmente por estudos de sociologialegislativa ou de direito comparado, ou ainda em pareceres deespecialistas, trata-se de combinar o grau de adequação decada medida ao objetivo visado (eficácia teórica) e a probabi-lidade de aparição do comportamento esperado (efetividade),de maneira a elucidar sua eficácia real (utilidade).

A árvore da decisão

Adequação ao fim(sobre 100)

Efetividade provável(sobre 1)

Utilidade

Medida 1 80 0.8 64

Medida 2 60 0.5 30

Medida 3 40 0.9 36

Medida 4 70 0.6 42

Se a medida 1 apresenta uma adequação ao fim visadode 80%, e se a probabilidade de que ela seja respeitada � emcaso de preceito prescritivo � ou atendida � em caso deincitação � é estimada em 0.8, sua utilidade atinge 64 (80x0.8).A utilidade comparada das diferentes medidas permite proce-der à escolha. Pode-se ainda ponderar o valor de utilidade dasmedidas por meio de seu custo respectivo34 .

B. Os métodos de teste

Contrariamente à simulação, que exige emprego de umcomputador, o �jogo� coloca em cena atores que endossamos papéis dos aplicadores e dos destinatários das medidasvislumbradas e prefiguram o cenário definido pelo projeto delei35 . Esse procedimento é útil diante da impossibilidade de seimplicar diretamente aplicadores e destinatários em uma

34 Hugger, op.cit .,(nota 18),1 4 8 s . ; B ö h r e t /Hugger, op.cit.,(nota 33), p. 158s.

35 Böhret/Hugger,ibid., pp. 73ss.

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avaliação, ou quando se trata de testar as interações entrepessoas cujos interesses divergem. Os resultados obtidos dãosinais de tipo qualitativo sobre os conflitos entre atores epermitem observar os comportamentos destes últimos, assimcomo a adequação dos procedimentos previstos pelo projetode lei, e apreciar a pertinência de diferentes alternativas. Aqualidade dos resultados obtidos depende da capacidade dosatores de exercer os papéis que lhes são atribuídos.

O �teste prático� se pretende mais próximo da realida-de. De fato, ele consiste em verificar os efeitos das medidasvislumbradas, fazendo-se aplicá-las, ficticiamente, por públi-cos potencialmente implicados. Contrariamente ao �jogo�,não se lança mão, nesse procedimento, de atores que endos-sam os papéis, mas dos próprios aplicadores e destinatárioscujos comportamentos face ao projeto são analisados36 .Tomemos o exemplo de um projeto de lei que prevê subven-ções para melhorar a qualidade energética das construções: osproprietários de imóveis são convidados a se manifestar comrelação às possibilidades de subvenção, e uma administraçãoexamina as proposições e toma as decisões, como se alegislação já estivesse em vigor. A qualidade dos resultadosobtidos depende da representatividade das pessoas associadasa essa experiência fictícia.

C. A legislação experimental

A legislação experimental representa a forma maisavançada de teste legislativo. Mas, contrariamente a esteúltimo, trata-se de um ato estatal obrigatório que contémregras de Direito, a saber, normas gerais e abstratas. Todalegislação pode ser considerada como um experimento, querdizer, uma hipótese de ação, uma conjectura sobre o futuroque pode ser desmentida pelos fatos. Se os resultados espe-rados não são alcançados, a legislação será então revista. Alegislação experimental reflete mais explicitamente essa ca-racterística, pois é limitada no tempo e prevê, às vezes, umcampo pessoal ou territorial de aplicação restrita na compara-ção com o campo de aplicação definitivo. Aliás, ela contém umdispositivo de avaliação que permite recolher as informações

36 Ibid., pp. 5973ss.

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pertinentes quanto aos efeitos que opera e apreciar a oportu-nidade de editá-la de maneira definitiva.

A legislação experimental é indicada uma vez que osresultados da avaliação prospectiva se revelem por demaisincertos. Aliás, esse procedimento deve se limitar a medidasextremamente bem delimitadas e puntuais, sobre as quaisestejamos seguros de poder precisar seu impacto, sem maiordificuldade. Apenas medidas claramente avaliáveis atestarão ocaráter verdadeiramente experimental do procedimento.37

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Tradução: Léo NoronhaRevisão da tradução: Diana Ceres e Ruth Schmitz

37 C.-A. Morand," L ' o b l i g a t i o nd'êvaluer les effetsdes lois", Evaluationlégislative et loisexpérimentales,(C.-A. Morand, éd.)Aix-en-Provence,1993, pp. 7933;Böhret/Hugger, op.cit (nota 32),pp. 50ss