pensar - 28-01-12

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VITÓRIA, SÁBADO, 28 DE JANEIRO DE 2012 www.agazeta.com.br Pensar Apagão da informa ç ão Entrelinhas EM VERSOS, AFONSO ROMANO DE SANT’ANNA QUESTIONA O SENTIDO DA EXISTÊNCIA. Página 3 Resenha GILBERT CHAUDANNE REVISITA A TRAGÉDIA DE MADAME BOVARY . Página 4 Ensaio POEMAS DE PAULO SODRÉ TRAZEM TENSÃO ENTRE A VIDA E A MORTE. Páginas 10 e 11 Artigo ESTUDIOSO APONTA FALHAS DO NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO. P ágina 12 ARTICULISTAS DISCUTEM A POLÊMICA DOS PROJETOS DE LEI ANTIPIRATARIA DOS EUA Págs. 6, 7 e 8 UM CLÁSSICO DE CAETANO NO EXÍLIO Gravado em Londres, há 40 anos, álbum Transa” permanece atual. Página 5 DIVULGAÇÃO O fundador da Wikipédia, Jimmy Wales, que tirou o site do ar durante 24 horas, em protesto contra o SOPA e o PIPA

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Caderno Pensar - 28-01-12 - jornal A Gazeta

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Page 1: Pensar - 28-01-12

VITÓRIA, SÁBADO, 28 DE JANEIRO DE 2012www.agazeta.com.brPensar

Apagão da informação

EntrelinhasEM VERSOS,AFONSO

ROMANO DE

SANT’ANNA

QUESTIONA OSENTIDO DAEXISTÊNCIA.Página 3

ResenhaGILBERTCHAUDANNEREVISITA ATRAGÉDIA DEMADAME

BOVARY.Página 4

EnsaioPOEMAS DEPAULO SODRÉ

TRAZEMTENSÃO ENTREA VIDA E AMORTE.Páginas 10 e 11

ArtigoESTUDIOSO

APONTA FALHASDO NOVOACORDOORTOGRÁFICO.Página 12

ARTICULISTAS DISCUTEM A POLÊMICA DOS

PROJETOS DE LEI ANTIPIRATARIA DOS EUA Págs. 6, 7 e 8

UM CLÁSSICODE CAETANO

NO EXÍLIO

Gravado em Londres, há40 anos, álbum “Transa”permanece atual. Página 5

DIVULGAÇÃO

O fundador da Wikipédia,

Jimmy Wales, que tirou o

site do ar durante 24

horas, em protesto

contra o SOPA e o PIPA

Documento:AGazeta_28_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_1.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:26 de Jan de 2012 21:32:56

Page 2: Pensar - 28-01-12

2PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,28 DE JANEIRODE 2012

marque na agenda prateleiraquempensa

Wilson CoêlhoéAuditorRealdoCollè[email protected]

GilbertChaudanneéescritorepintor.Publicouos livros“Amoçanajanela”e“AbuscadoSantoGraal”,entreoutros.

RicardoSalvalaioéprofessoreescritor. Publicoudois livroseescrevenoblogwww.outros300.blogspot.com

GabrielLabancaéprofessordeComunicaçãoSocialedoutorandoemHistó[email protected]

VIctorAthaydeéadvogadomilitanteemDireitoPúblico,Cível eAmbiental. [email protected]

CaêGuimarãeséjornalista,poetaeescritor.Publicouquatrolivroseescrevenositewww.caeguimaraes.com.br

SergioDamiãoémédicoemembrodaAcademiaCachoeirensedeLetras.estudos@santacasacachoeiro.org.br

FláviaGonçalveséhistoriadora,escritoraecriadoradomovimentoUmaOitava.www.umaoitava.blogspot.com

FranciscoAurelioRibeiroéprofessoreescritor.MembrodaAcademiaEspírito-SantensedeLetras. [email protected]

No Ângulo dosMundos PossíveisAnne CauquelinEm oposição à ideia da Terracomo centro do universo, apensadora francesa levantaa hipótese não apenas daexistência, mas da realidadedos mundos possíveis,

tentando responder às seguintes questões:de que tipo são esses mundos? Onde elessão encontrados? Eles são habitáveis?

268 páginas. Martins Fontes. R$ 36,50

Sócrates & AEducação – O Enigmada FilosofiaWalter Omar KohanO autor explora as ideiaseducacionais de Sócratespara propor uma reflexãosobre o pensamento deum dos maiores filósofos

da história, acerca da política do ensino defilosofia e de seus respectivos atores.

152 páginas. Autêntica Editora. R$ 29

Apontamentosde ViagemJoaquim de AlmeidaLeite MoraesO diário de viagem escritono final do século XIX pelopolítico e jurista J. A. LeiteMoraes é considerado um

marco do gênero no Brasil. Na narrativa, seupercurso de São Paulo a Goiás, onde foranomeado presidente pelo Império Brasileiro.

240 páginas. Companhia das Letras. R$ 25

O Universo Neoliberalem DesencantoFrancisco Antonio Doriae José Carlos de AssisPor meio da matemática eda economia política, osautores sustentam a tese deque o neoliberalismo está

morto como doutrina social e econômica.

224 páginas. Civilização Brasileira. R$ 34,90

LiteraturaEditora quer exportar autores brasileirosA editora Canápe seleciona escritores brasileiros para publicação naEspanha e Portugal. Os interessados devem entrar em contato coma agente literária Ana Brasil, através do site www.anabrasil.com.br.

UniversidadeUfes oferece cursos de extensão em FilosofiaOs cursos de extensão para debater a Filosofia e áreas afins serãooferecidos no primeiro semestre, com aulas em Domingos Martinse Linhares, aos sábados, sob coordenação do professor SergioSchweder. Mais informações: (27) 3268-3181 e (27) 3373-7900.

08de fevereiroHomenagem a Elis Regina em ItaguaçuO show “Elis por essas mulheres” inaugura o Teatro deItaguaçu, no Noroeste do Estado. No elenco, Elaine Rowena,Márcia Chagas, Graziella Ferraz, Francine Germano, JulyVictória e Vera da Matta. A apresentação seguinte doespetáculo será no Theatro Carlos Gomes, em Vitória.

17 Pós-graduação em artesO Programa de Pós-Graduação emArtes (PPGA) da Ufes abre processoseletivo para Aluno Especial, para oprimeiro semestre de 2012. Asinscrições serão feitas de 30 dejaneiro a 17 de fevereiro, nasecretaria do PPGA, no Cemuni I doCentro de Artes, das 9h às 12h. Oedital está no www.ufes.br/editais.

José Roberto Santos Nevesé editor doCaderno Pensar, espaço para adiscussão e reflexão cultural que circulasemanalmente, aos sábados.

[email protected] DEBATE URGENTE

Em protesto, o fundador da Wikipédia, Jimmy Wales,fechou a enciclopédia on-line por 24 horas, no último dia18. O criador do Facebook, Mark Zuckerberg, se referiu àsleis como “pouco pensadas”. Paulo Coelho, o escritorbrasileiro que mais vende livros no mundo, afirmou:“Pirateiem tudo o que escrevi”. Essas foram algumas dasreações extremadas aos projetos de lei antipiratariaconhecidos pelas siglas SOPA e PIPA, que tramitam noCongresso americano. Com a proposta inicial de combatera pirataria e proteger os direitos do autor, o textoapresentado aos congressistas norte-americanos provo-

cou polêmica no mundo real e virtual ao prever ofechamento de sites que compartilham conteúdo que feredireitos autorais. Muitos viram nessas medidas um tipo decensura à liberdade de expressão. Diante dos protestos, osprojetos foram retirados temporariamente de pauta. Po-rém, a discussão em torno da difícil equação que envolvedireitos autorais, combate à pirataria e liberdade deexpressão deve se manter nos próximos meses, comomostram os artigos do professor universitário GabrielLabanca e do advogado Victor Athayde. O debate estáaberto, e é urgente. Bom sábado, bom Pensar!

Pensar na webIlustraçãodoartistaplásticoAlexVieirasobreapolêmicadoSOPAedoPIPA, faixasdodisco “Transa”, deCaetanoVeloso,poemasdePauloSodrée trechosde livroscomentadosnestaedição,nowww.agazeta.com.br

PensarEditor: José Roberto Santos Neves;EditordeArte:Paulo Nascimento;Textos:Colaboradores;Diagramação:Dirceu Gilberto Sarcinelli;Fotos:Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações:Editoria de Arte;Correspondência: Jornal

A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493

JoséAugustoCarvalhoémestreemLinguísticapelaUnicampedoutoremLetraspelaUSP. [email protected]

de fevereiro

Documento:AGazeta_28_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_2.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:26 de Jan de 2012 21:31:07

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3PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

28 DE JANEIRODE 2012

entrelinhaspor WILSON COÊLHO

UMA PEDRA NO CAMINHOOU A ÉTICA DA FINITUDE

UMBERTO NICOLINE

SÍSIFO DESCE A MONTANHAAffonso Romano deSant’Anna. Rocco. 136páginas. Quanto: R$ 19,50

Se, conformeopróprioAffonsoRomano de Sant’Anna, umlivro de poesia não se resumea uma aleatória reunião detextos, mas trata-se de um“projeto poético pensante”,

em “Sísifo desce a montanha”, essa ideiaestá consumada, ou seja, sumariamenteembriagada de seu sumo ou o lugar emque é consumida. E, neste lugar em que oautor faz desfilar enigmas, a condição derebanho como herança de nosso processocivilizatório é desvelada no e pelo olhar,como uma espécie de experiência po-liglota que está na ordem da divindade.Complementando a ideia de Protágoras, ohomempode até ser amedida de todas ascoisas, mas a partir de sua contextua-lização na Torre de Babel, onde a glos-solalia se dá como um instrumento, nãopara compreender o absurdo, mas comouma narrativa da plenitude que realiza nofenômenodopresentequeseapresentanoinstante da ausência.Comorezaamitologiagrega, Sísifo era

filho de Éolo (deus dos ventos que de-sencadeava as tempestades), rei de Co-rinto e, pela ousadia de driblar o destinoe aprisionar a morte, foi condenado aoinferno, onde deveria eternamente em-purrar encosta acima uma enorme pedraque sempre tornava a cair.Éneste sentidoque, tanto Albert Camus, em “O Mito deSísifo”, quanto Affonso Romano deSant’Anna, em “Sísifo desce a monta-nha”, demonstramo trabalho inútil e semesperança a que se reduz a condiçãohumana na contemporaneidade.A diferença, no que diz respeito ao

mito, é que Camus nos deixa aberto odilema de que, conforme Leo Schlafman,“ou não somos livres e o responsável pelomal é Deus todo-poderoso, ou somoslivres e responsáveis, mas Deus não étodo-poderoso”. No caso de Romano deSant’Anna, descer a montanha significaabrir mão da dicotomia, de forma quaseamoral, onde a existência não se medepelopoder deumDeus,mas que se revelano acaso do próprio ato de existir.

PoéticaA poética de Affonso Romano de

Sant’Anna é, antes de tudo, uma relaçãode diálogo entre a estética e a existência,onde – na consciência da finitude – amorte se faz presente para ressaltar avida como possibilidade no universo li-mitado das impossibilidades. Neste sen-tido, no que diz respeito à relação entre aestética e a existência, como o poetaafirma, em “O Enigma Vazio”, que “épedagógico (e fascinante) constatar quepessoas notáveis cometem equívocos no-

táveis”, eu, do alto de minha insig-nificância, atrevo-me a estabelecer umaespécie de trilogia que se compõe a partirde seus livros “Desconstruir Duchamp –arte na hora da revisão”, “O EnigmaVazio – impasse da arte e da crítica” e“Sísifo desce a montanha”.Pode parecer estranho vincular essas

obras, considerando que os dois primeirostítulos são ensaios sobre a arte e, o terceiroe último, um livro de poemas. Mas há umfio de Ariadne que permanece conduzindoas três obras: amorte. Amorte das ideias, amorte da esperança, amorte da ignorânciae, enfim, a morte da arte ou a morte damorte como um grito de consciência.Estamorte é um estágio de observação

do mundo, como uma espécie de su-peração dos deuses, ou seja, morrer –apesar de uma condenação – é um pri-vilégio humano para escapar da eter-nidade. Não é por acaso que, em “Sísifodesce a montanha”, há uma epígrafe deClarice Lispector, onde se diz: “A gradualdeseroização de si mesmo/é o verdadeirotrabalho que se elabora/sob o aparentetrabalho.” Lembra Bertolt Brecht, na peça“Galileu Galilei”, quando o personagemGalileu se retrata em praça pública dianteda pressão da Igreja e Andréas, seudiscípulo, admirador decepcionado comaatitude do mestre e, num momento derevolta, sentencia: “Infeliz da nação quenão tem heróis”, ao que o mestre res-

ponde: “Infeliz da nação que necessita deheróis”. Um grande contraste numa cul-tura escravagista que faz questão de afir-mar o axiomabíblico de que “feliz a naçãocujo Deus é o senhor”.O herói é aquele a quem os gregos

consideravam grandes homens diviniza-dos e que se distinguiam por seus valoresou por suas ações extraordinárias, prin-cipalmente, no que dizia respeito aos seusfeitos brilhantes durante a guerra. Masaqui, o poeta nos mostra o Sísifo de todosnós, humanizados no abandono dos deu-ses. Descer amontanha já éumparadoxo,considerando que só se desce amontanhaquem tem o hábito de subi-la. Desta vez,sem a ilusão de que a pedra ficará nocume da montanha e conscientes de que,

na manhã seguinte, inutilmente, deve-remos novamente empurrá-la.Trata-se de um exercício existencial

com base na ética da finitude como amais importante das grandes questões dahumanidade. Uma espécie de niilismoque não permite a imobilidade, como ospersonagens de Fernando Arrabal, napeça “FandoeLis”, a caminhodeTar, umacidade que não existe. Todos têm aconsciência de que Tar não existe e queninguém nunca chegou, mas todos tam-bém são conscientes de que é necessáriotentar. E tudo isso, em “Sísifo desce amontanha”, Affonso Romano de Sant’An-na o faz com o olhar da simplicidade, dacotidianidade do mundo, tanto na his-tória quanto na ficção que nos rodeiam enas profundas observações das coisas quenos parecem pequenas.Num certo sentido, o poeta – cons-

ciente da condição do homem como umestrangeironomundo– retomaaessênciade seu poema “Que país é este?”, tema demúsica, dissertações e teses, cujo ani-versário de 30 anos de publicação tive ahonra de compartilhar com o autor noano retrasado, na UFBA, em Salvador.Sísifo desce a montanha pergun-

tando a todos e a si mesmo: Que país éeste?, como se questionasse o própriosentido de estar no mundo, como seretomasse o tema drummoniano deque “no caminho tinha uma pedra”.

Affonso Romano de Sant’Anna inspira-se na mitologia grega para compor versos sobre o sentido de se estar no mundo

Um poemaLENTIDÃO E FÚRIADeus (ou que nome se lhe dê)é lento& violento:pode levar bilhões de anospara fazer algo acontecerou pode acabar comigoe com o planeta– num momento.

Documento:AGazeta_28_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_3.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:26 de Jan de 2012 20:49:45

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4PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,28 DE JANEIRODE 2012

Escritor e pintor relê “Madame Bovary” e conclui: protagonista do romance de Flaubertserviu de bode expiatório para uma sociedade que não tem coragem de se olhar no espelho

livrospor GILBERT CHAUDANNE

SANTA EMMA DABOA E DA MÁMORTE

ARQUIVO AG

MADAME BOVARYGustave Flaubert. Tradução:Mário Laranjeira. Companhiadas Letras. 496 páginas.Quanto: R$ 29,50

Trecho“Sua mulher tinha sido outroralouca por ele; tinha--o amadocom mil servilismos que otinham afastado dela aindamais. Antes alegre, expansiva etoda amante, ela tinha setornado, ao envelhecer (àmaneira do vinho em contatocom o ar que vira vinagre) dehumor difícil, queixosa, nervosa.Tinha sofrido tanto, sem sequeixar, primeiro quando o viacorrer atrás de todas as biscatesde aldeia e quando vinte lugaresmal-afamados o mandavam devolta à noite, apático echeirando embriaguez! Depois oorgulho tinha se revoltado.Então ela tinha se calado,engolindo a raiva numestoicismo mudo, que guardouaté a morte.”

Para Flaubert (1821-1880),o amor é uma ilusão deótica. O amor romântico éuma espécie de doença neu-rológica. A protagonista de“Madame Bovary”, Emma

Bovary, é marcada pelo selo do nomepróprio: aima, em francês, é o passado“simples” de aimer (amar), que ex-pressa umaaçãobreve nopassado: comoos amores de Madame Bovary. E o “Bo-vary” pode se escrever “(Le) beau varie”,que corresponde ao fato de queMadameBovary tem vários amantes. Mas Emmanão é uma libertina, nos moldes doséculo XVIII; ela procura o grande amortal qual leu no “Sabrina” da época – opríncipe encantado num cavalo branco,o que corresponde a uma intensa ati-vidade masturbatória das moças criadasem colégios de freiras, e não à realidadesexual-amorosa.Pois, diante do primeiro Don Juan de

Lanchonete, nossas Emmas caem na ar-madilha do “grande amor” e depois sãojogadas na sarjeta. As bonecas tambémchoram. Erotismo não é o amor, ele éegoísta, e Emma os confunde numa mes-ma entidade que só se resolve numterceiro ponto: a morte. Porque Emma éuma grande apaixonada, como Lou An-dreas-Salomé, Edith Piaf, a Princesa deClèves, Santa Teresa de Ávila. Ela é pura,mesmo tendo cometido vários adultérios.Irradia a imagemdeumsantomartírio doamor, como se ela colocasse, nesse amor,algo quenão éda ordemdohumano,masda ordem do divino.O amor é divino – sim – mas os

pequenos homens e as pequenas mu-lheres fazem dele um verdadeiro bordel,onde é descartada a profunda dimensãode se dar àquele que se ama. Ainda maisem uma sociedade como a do século XIX,na França, onde uma jovem vai ser sa-crificada sobre o altar fálico do velhomarido com situação social estável: Mon-sieur Bovary é médico, não é ajudante depedreiro. E o casamento é assim comouma prostituição legalizada, onde é mas-sacrada a juventude de uma moça.Flaubert não clama aos ventos essas

coisas. Como escritor realista/clínico,ele mostra um caso que reflete a pa-tologia de uma sociedade e vai catar osmicróbios da boa reputação burguesanos cantos mais escondidos dos seusarmários. Madame Bovary não se sui-

cidou. Ela foi suicidada pela sociedadeporque, simplesmente, tentou viver seupróprio desejo e não o dos outros; opecado maior numa sociedade onde odesejo é relegado no bordel e onde oamor é uma hipótese inútil.Assim, Flaubert trabalha a literatura

como um médico. Só que o corpo, nessecaso, éocorpo social comoumtodo, enãosó o corpo de Emma, e o erotismo só podeser vivido como prostituição ou tragédiagrega (ver a “traviatta de Verdi”). Mas oque está sendo estigmatizado é a hi-pocrisia, onde o desejo tem marca re-gistrada em cartórios; amorte de Emma écomo a de um samurai, para reconquistarsua honra roubada. Quiseram fazer delauma prostituta – seja pelo casamentoarranjado, seja pela técnica comum de

pegar um “amante” e de calar a boca. E oque ela queria era simplesmente ser ama-da no plano afetivo, no plano sexual. Issoé básico, legítimo numa existência hu-mana. Mas até isso lhe foi negado, e “nãopodemos jogar a pedra na mulher adúl-tera”, pelo menos em Emma, porque elanão tem culpa, a não ser a culpa estranhade querer ser feliz.É impossível dar a definição da fe-

licidade (comoadeDeus oudamulher),e é justamente por isso que esse sen-timento é tão precioso, relacionado amulher e a Deus. A felicidade faz partedo imponderável, algo que não pode sermedido, pesado, avaliado, um “não sei oque” que faz com que, de repente, umarosa, uma moça, o mar se tornem maisbelos que a própria beleza.

Emma, você foi feita para ser amada!Só que no mundo onde você vivia, oamor era desconhecido. Havia espaçoapenas para poder-dinheiro-gozo, masnão para o amor. E, então, sua viaamorosa se tornou, paradoxalmente,uma “via crucis”, e talvez você seja umaespécie deMadalena que não precisa searrepender, porque você não fez nadaerrado. Você não “pecou”, você serviude bode expiatório para uma sociedaderançosa e falsamente cristã que não tema coragem de se olhar no espelho, pormedo de ver o diabo!Doce Emma-cordeiro, como você so-

freu o pior dos sofrimentos: o de não tersido amada. Só a morte lhe amou.Divino “arsenic”! Entretanto seu velhomarido, honesto, cansado dos cami-nhos das doenças, este sim, lhe amou.Mas você, sedenta de corpos ricos-jo-vens-ardentes, não percebeu nada e suadesgraça foi total, porque, de uma certamaneira, simbolicamente (o que àsvezes é a mesma coisa), você o matoupela mesma razão que mataramvocê: por não ser amado.

Como escritor realista/clínico, Gustave Flaubert expõe uma patologia social

Documento:AGazeta_28_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_4.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:26 de Jan de 2012 20:48:22

Page 5: Pensar - 28-01-12

5PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

28 DE JANEIRODE 2012

TRANSACaetano Veloso. 7 faixas.1972. Gravadora: Universal.

falando de músicapor RICARDO SALVALAIO

“TRANSA” CONTINUAATUAL, 40 ANOS DEPOIS

A LETRATRISTE BAHIATriste Bahia, oh, quãodessemelhante…Estás e estou do nosso antigoestadoPobre te vejo a ti, tu a mimempenhadoRico te vejo eu, já tu a mimabundante

Triste Bahia, oh, quãodessemelhanteA ti tocou-te a máquina mercanteQuem tua larga barra tem entradoA mim vem me trocando e temtrocadoTanto negócio e tanto negociante

Trecho do poema “À Cidade da Bahia”, deGregório de Matos, musicado por CaetanoVeloso no disco “Transa”

ARQUIVO AG

Caetano gravou o álbum “Transa” no exílio londrino, após recusar pedido dosmilitares para compor uma música de louvor à Rodovia Transamazônica

Ochoque das ideias tro-picalistas com a ditadu-ra fez com que CaetanoVeloso fosse para Lon-dres em julho de 1969.Caetano tinha sido pre-

so com Gilberto Gil, em São Paulo, nofim de 68. Ambos foram acusados dedesrespeito ao Hino Nacional e àbandeira brasileira. Os músicos foramtransferidos para o Rio e tiveram suascabeças raspadas, sendo liberadosapós o carnaval de 69.Mesmo fora do país, Caetano e Gil

continuaram a protestar e, de Lon-dres, Caetano enviou artigos para ojornal “O Pasquim” e músicas paravários intérpretes, como Gal Costa,Maria Bethânia, Erasmo Carlos eRoberto Carlos. No exílio político, ocompositor lançou “Caetano Velo-so” (1971), disco triste com can-ções compostas em inglês (“London,London”, “Maria Bethânia”) e en-dereçadas aos que ficaram no Bra-sil. Já o álbum seguinte, “Transa”,representou seu retorno ao país.Caetano gravou o LP no final de1971. Porém, a obra foi lançada emterritório brasileiro em janeirode 1972, há exatos 40 anos.

PressãoEm 1971, o cantor conseguiu um

visto de um mês para voltar ao Brasile acompanhar os festejos dos 40anos de casamento de seus pais. Aochegar aqui, sofreu pressão dos mi-litares para fazer uma música delouvor à Rodovia Transamazônica. Ocompositor recusou-se a atender opedido, mas gostou do radical“trans”.Como o título sugere, o álbum é

uma transa de linguagens e ritmos.Caetano funde inglês com português,rock com samba, baião e blues. Sobreo disco, Veloso declarou em uma en-trevista ao ”Jornal do Brasil”: ”Cha-mei os amigos para gravar em Lon-dres. Os arranjos são de Jards Macalé(violão e guitarra), Tutti Moreno (ba-teria), Moacyr Albuquerque (baixo) eÁureo de Souza (percussão). Não saí-ram na ficha técnica e eu tive a maiorbriga com meu amigo que fez a capa.Como é que bota essa bobagem dedobra e desdobra, parece que vaifazer um abajur com a capa, e nãobota a ficha técnica? Era importan-tíssimo. [...] Gosto do disco todo.Orgulho-me imensamente deste somque a gente tirou em grupo”.

CançõesA música que abre o disco é a

bilíngue “You Don't KnowMe”. Nestacanção, o cantor expõe sua solidãolondrina. Destaque para as inúmerasreferências musicais brasileiras. Aprimeira é “Maria Moita”, de CarlosLyra, e a segunda é “Reza”, de EduLobo. Caetano também faz uma au-tocitação colocando um pedaço de“Saudosismo”, cantada por Gal Cos-ta, e finaliza com “Hora do adeus”,de Luiz Gonzaga. Com desabafos eminglês, o compositor faz o prefácioideal para o restante da obra.Na sequência, temos “Nine out of

ten”, que anuncia o poder do reggaee que “a idade da música é passado”.Ao som do reggae, Caetano anuncia:“I’m alive” (estou vivo). Acerca da

canção, o autor disse: “A minha me-lhor música em inglês. É histórica. Éa primeira vez que uma música bra-sileira toca alguns compassos de reg-gae, uma vinheta no começo e nofim. Muito antes de John Lennon, deMick Jagger e até de Paul McCartney.Eu e o Péricles Cavalcanti desco-brimos o reggae em Portobelo Road eme encantou logo. Bob Marley e TheWailers foram a melhor coisa dosanos 70”.Na terceira faixa, intitulada “Tris-

te Bahia”, Caetano põe melodia nasduas primeiras estrofes do poema “Àcidade da Bahia”, de Gregório deMattos, e acrescenta alguns sambasde roda, cantigas de capoeira e afo-xés. A composição tem instrumen-tação e arranjo fenomenais! Já a

quarta canção, a balada “It’s a LongWay”, faz referência a diversas ou-tras obras: “The Long and WindingRoad”, dos Beatles; “Sodade, meubem, Sodade”, de Zé do Norte; “ALenda do Abaeté”, de Dorival Caym-mi; e “Berimbau”, de Baden Powell eVinicius de Moraes. Na faixa seguin-te (único cover do álbum), “Mora nafilosofia”, de Monsueto Menezes eArnaldo Passos, Caetano transformao ótimo samba num rock ‘n’ rollmelhor ainda (“Pra que rimar amor edor?”, diz um dos versos).A existencial e experimental faixa

de número seis, “Neolithic Man”, con-ta com Gal Costa nos vocais e tambémmistura inglês com português. Em-bora soe com extrema brasilidade,Caetano mistura vários elementosmusicais num clima psicodélico. En-cerrando o disco, “Nostalgia” é umblues com a participação de ÂngelaRô Rô, na gaita, e, como em diversasoutras músicas do disco, Gal Costa.Ademais, “Transa” é tão impor-

tante musicalmente (e politicamen-te) que foi eleito em uma lista daversão brasileira da revista “Rol-ling Stone” como o oitavo melhordisco brasileiro de todos os tempos e,neste ano, alguns fãs lançaram narede social Facebook a campanha“Queremos 'Transa’, do CaetanoVeloso, ao vivo”.

Documento:AGazeta_28_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_5.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:26 de Jan de 2012 21:10:56

Page 6: Pensar - 28-01-12

7PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

28 DE JANEIRODE 2012

6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,28 DE JANEIRODE 2012

PESQUISADOR FAZ LEITURA HISTÓRICA DO EMBATE ENTREDIREITOS AUTORAIS E LIVRE CIRCULAÇÃO DE INFORMAÇÕES

guerra virtualpor GABRIEL LABANCA

UMA BATALHADE GUTENBERGÀ WIKIPÉDIA

Para autor, polêmica em torno dos projetos de lei antipirataria SOPA e PIPA, apresentados no Congresso americano, refletem uma discussão antiga e que ainda parece estar longe de ser resolvida

DIVULGAÇÃO

Voltaire cedia manuscritos para mais deuma tipografia com pequenas alterações

No dia 18 de janeiro úl-timo, a maior enciclopé-dia virtual do mundo foiretirada do ar. Surpreen-dentemente, não foramprotestos de professores,

indignados pelas constantes “colas” deseus alunos, que paralisaram a Wi-kipédia em inglês. O próprio site deconteúdo colaborativo decidiu pararpor 24 horas em protesto contra pro-jetos de lei, em discussão no Congressonorte-americano, que limitariam a livrecirculação de informações na internet.Longe de ser exclusividade de nosso

tempo cibernético, o debate sobre a li-berdade de expressão vem dando o quefalar há muito tempo, principalmentedepois do lançamento de uma revolu-cionária geringonça emmeados do séculoXV, a impressora de tipos móveis. De umasó tacada, seu criador, o alemão JohannesGutenberg, causou um duro impacto aoofício dos monges copistas, que mono-polizavam a transcrição de textos, e co-locou à disposição de qualquer empre-endedor a possibilidade de reproduzirquantidades inimagináveis de textos im-pressos. A novidade teve tamanho sucessoque, antes do final do século, já existiamcerca de 1.200 oficinas em 247 cidades

europeias imprimindo exaustivamente.Contudo, se para alguns a circulação

irrestrita da palavra impressa causou en-tusiasmo, para outros causou grande te-mor. Igreja e Estado logo exigiram saber aautoria tanto de quem escrevia como dequem editava as obras em circulação. Jáno século XVI, havia na legislação fran-cesa artigos relativos ao controle dastipografias, determinando quem poderiae como se deveria imprimir. Até mesmoMartinho Lutero, entusiasta da imprensaque tanto o ajudou a popularizar a suatradução da Bíblia para o alemão, em1520, recuou ao perceber que ela poderiasuscitar interpretações políticas e social-mente perigosas.No entanto, se autores e editores que-

riam liberdade para pôr na rua o que bementendessem, quando perceberam que acópia sem autorização de suas obrasameaçava seus lucros, foi das mesmasautoridades que exigiram garantias. Noséculo XVIII, Paris estava rodeada depequenas editoras, nas províncias oumesmo em outros países, como Suíça eBélgica, atentas a toda publicaçãobem-sucedida na capital francesa. Comos livros em mãos, tais editores ra-pidamente copiavam as obras emmaterial de baixa qualidade e as>

Como saber se certaobra realmentetinha sidoconcebida pelonome impresso emsua capa? Tarefaque se tornavaainda mais difícilcom as travessurasde autores comoVoltaire, interessadoapenas em espalharseus textos edifundir suas ideiaslivremente”

vendiammais baratas, inclusive emParis.Nãoapenaspublicavamobraspirateadas,como contrabandeavam para a Françalivros censurados naquele país. Todasessas atitudes não apenas forçaram oseditores parisienses a baixarem seus pre-ços, como desenvolveram a indústriaeditorial das cidades epaíses ao seu redor.Alémdisso, pressionadas por aqueles queviviam das letras, as autoridades fran-cesas foram forçadas a rever a censura decertas obras. Quem mais ganhou comtudo isso, claro, foram os leitores.Os direitos autorais sobre uma obra,

formulados na Inglaterra do séculoXVIII, surgiram antes para proteger oseditores do que os autores. Com apropriedade sobre sua obra assegurada,

os escritores podiam negociá-las com aseditoras, que adquiriam o direito ex-clusivo de publicá-las por um certoperíodo. Assim, os editores se resguar-davam contra seus concorrentes e con-tra os próprios autores, como Voltaire,que muitas vezes cedia os mesmos ma-nuscritos para mais de uma tipografiacom pequenas modificações.Paradoxalmente, ao mesmo tempo

em que se temia a multiplicação dosimpressos, também era grande a preo-cupação com a conservação das pu-blicações. Como averiguar a origina-lidade de um livro impresso? Comosaber se certa obra realmente tinha sidoconcebida pelo nome impresso em suacapa? Tarefa que se tornava ainda mais

difícil com as travessuras de autorescomo Voltaire, interessado apenas emespalhar seus textos e difundir suasideias livremente. Nesse contexto, asbibliotecas funcionavammais como umrepositório de impressos originais doque um espaço para a leitura e oempréstimo de livros.Contudo, a propagação da palavra

impressa era irrefreável. Tanto que, noséculo do Iluminismo, quando pareciahaver uma revolução da leitura, ospróprios intelectuais se preocupavamem criar listas com os poucos livrosnecessários para uma pessoa em toda asua vida. Até mesmo os médicos aler-tavam quanto aos males causados pelaleitura em excesso: perturbação dos

nervos, obstrução do estômago eintestino, palidez e abandono da

realidade.Para aqueles que acham inúteis os

protestos em forma de chacotas via redessociais, é bom lembrar que não foramexatamente os célebres filósofos do Ilu-minismo aqueles que mais inspiraram omovimento de revolta na França. Obrasde autores como Voltaire e Rosseau ti-nham maior circulação nas classes maisabastadas. O povo mesmo consumia achamada “subliteratura”, panfletos quefaziam chacota com a Igreja, a nobreza eas academias. Expondo membros da fa-mília real ao ridículo através de sen-sacionalismo sexual e denunciando acorrupção na Corte, tais panfletos mi-naram a base de confiança entre o mo-narca e seus súditos, deslegitimizaram asautoridades e abriram brechas para aRevolução Francesa.

BrasilNoBrasil, após três séculos de atraso na

instalação da primeira tipografia, a “pi-rataria” de obras de sucesso na Europatambém ajudou a impulsionar o desen-volvimentodomercadoeditorial nacional.Sem qualquer fiscalização, célebres es-critores, comoEçadeQueiroz eAlexandreDumas, poderiam ser facilmente plagia-dos ou pirateados nesse lado do Atlântico.Ambos, inclusive, chegaram a enviar car-tas ao Brasil queixando-se sobre as cópiasnão autorizadas que aqui circulavam.O caso de Dumas chega a ser cômico.

Com o sucesso do folhetim “O Conde deMonte Cristo”, traduzido por JustinianoJosé daRocha no “Jornal doCommercio”,o periódico decidiu veicular a conti-nuaçãodahistória.Noentanto, nãohaviauma segunda parte da trama escrita porDumas. Mesmo assim, algum tempo de-pois circulou no mesmo jornal uma su-posta continuação sob o título de “A mãodo finado”. Na realidade, a história haviasido escrita pelo português Alfredo Pos-solo Hogan e causou grande descon-tentamento ao escritor francês, supostoautor do novo folhetim. Apesar disso, aobra continuou a circular e foi editada atémeados do século XX.A internet certamente acelerou todo

esse processo de troca de informações,pelomenos no lado democrático domun-do. Mas a discussão sobre direitos au-torais e liberdade de expressão é antiga eainda parece estar longe de ser resolvida.Se antes Voltaire brincava comos editoresalterando seus textos, hoje recebemos pore-mail crônicas de Luis Fernando Ve-ríssimo que nunca foram escritas peloautor. A briga entre produtores, distri-buidores e consumidores de produtosculturais parecequeaindavai esquentar, emuito. Por enquanto, só tenho a certezade que, em poucos minutos, esse textoestará circulando livremente pela inter-net. Se é que você jánãoo está lendopela tela do computador.

Jimmy Wales, fundador da Wikipédia, a maior enciclopédia virtual do mundo: defesa de uma internet livre e aberta

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Documento:AGazeta_28_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_6.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:26 de Jan de 2012 22:22:02

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8PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,28 DE JANEIRODE 2012

+ artigo de capapor VICTOR ATHAYDE

A INFORMAÇÃO E SEU VALOR LEGALEm contraponto aos projetos de lei em discussão nos Estados Unidos, advogado observaque a Constituição brasileira assegura a propriedade intelectual e o Direito à Informação

DIVULGAÇÃO

Mark Zuckerberg, criador do Facebook, é uma das personalidades contrárias ao SOPA, para ele uma “lei mal pensada”

Os matutinos de 18 de ja-neiro de 2012 deramdestaque a um fato quedeteve a atenção mun-dial: os protestos porparte do Google, que in-

seriu uma tarja negra sobre seu ico-nizado logo; e do Wikipedia (em in-glês), que ficou fora do ar durante todoaquele dia.Os alvos desses inconformismos fo-

ram dois projetos de lei que tramitavamno Congresso norte-americano, deno-minados Stop Online Piracy Act (SOPA)e o Protect IP Act (PIPA).Entre as grandes personalidades do

mundo virtual, Mark Zuckerberg, o cria-dor do Facebook, chamou o SOPAde “leimal pensada”; e o Sr. Tim Berners-Lee, aquem se atribui a invenção da WorldWideWeb (www), foi além, chegando aqualificar os projetos de violadores dosDireitos Humanos.Comefeito, e isso foi dito na imprensa,

a proposta legal tornaria possível aogoverno norte-americano a retirada doar de sites que veiculassem pirataria,onde quer que estivessem hospedados.No dia 20, a votação dos projetos foi

adiada.Essa narrativa dá uma singela di-

mensão da repercussão que, naquele dia,ocupouosdois primeiros lugares entre osassuntos mais comentados no Brasil,segundo estatística do Twitter.Convém lembrar que, em 2010, Julian

Assange, australiano fundador do Wi-kiLeaks (site que costuma “vazar” do-cumentos diplomáticos norte-america-nos), foi preso emLondres, sob o pretextode ter cometido abuso sexual na Suécia.A imprensa mundial sempre rela-

cionou a prisão de Assange a uma claraconotação política.

LimitesInformação, seja de origem do mun-

do público ou do privado, traz interessee discussão, e esses fatos específicospermitem dizer que o direito à in-formação gera intenso debate sobreseus limites.Entretanto, me causa espanto que o

projeto de lei que tramita nos EUA sejaassunto dos mais comentados por bra-sileiros em redes sociais, mesmo queaquele venha a interferir em sítios

navegados por esses.Por isso, seria conveniente trazer ao

leitor disposições de lei, ainda que deforma objetiva, para estimular o debatenos seus diversos palcos.Pois bem, o Direito à Informação

compõe o patrimônio legal do cidadãocomum e faz parte do rol dos Direitosda Personalidade e Humanos, sobre osquais se fundamenta a República.Assegura o livre acesso de todos às

informações não consideradas sigilo-sas, além de compreender o direito dedivulgá-las, vedado o anonimato e as-segurado o segredo da fonte, “quandonecessário ao exercício profissional”.No caso das informações detidas

pelo Poder Púbico, inclusive, o cidadãotem o direito de obter as que tratam desi e, se negadas, existe ação judicial quelhe garanta o acesso, o habeas data.São garantias Constitucionais, mas

não é só.A Carta Republicana é incisiva em

não permitir a censura ou licença paraas atividades de caráter intelectual,artístico, científico e de comunicação.Por sua vez, também põe limites ao

Direito à Informação, e aqui vale trans-crever o inciso X, do art. 5º. daCRFB/88: “São invioláveis a intimi-

dade, a vida privada, a honra e aimagem das pessoas, assegurado o di-reito a indenização pelo dano materialou moral decorrente de sua violação.”Perceba, leitor, que se por um lado o

Direito à Informação é fundamental, oda “intimidade” também é (logo, semhierarquia entre ambos), e não raroesses direitos estão em conflito. Damesma forma, a propriedade, inclusiveintelectual, é um valor jurídico cons-titucionalmente assegurado, pelo tem-po que a lei fixar.Assim, a despeito da discussão da

inovação legal que tramita a “alguns”quilômetros daqui, julgo importantelembrar que o Direito à Informação, noBrasil, tem proteção legal e valor ju-rídico de relevância constitucional.O Direito brasileiro baliza a con-

duta dos agentes noticiadores e dosconteúdos divulgados, restringe e as-segura. Resta saber se consegue con-ter o que estámundial e virtualmenteexposto.Esse fato, que possui valor, dificil-

mente será alcançado de forma eficazpor norma alguma. É uma crise para osatuais jus filósofos e legisladores, e osaudoso Miguel Reale não vai po-der nos ajudar.

Convém lembrarque, em 2010, JulianAssange,australianofundador doWikiLeaks, foi presoem Londres, sob opretexto de tercometido abusosexual na Suécia. Aimprensa mundialsempre relacionou aprisão de Assange auma claraconotação política”

Documento:AGazeta_28_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_8.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:26 de Jan de 2012 20:29:37

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9PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

28 DE JANEIRODE 2012

poesias

SEVEN POINTFLÁVIA GONÇALVESIndependente da dor, das perdas, dosdanos, da deslealdade, da indiferença;Independente dos perigos, dasofensas;Independente do julgamento tosco,tolo;Independente do desumano;Ainda vou depender do amor, dapaixão, da consciência e sua tirania,das manias;Ainda vou depender dos laços defamília, amizade, umbigo na história;E dependerei da LIBERDADE dePENSAR feroz e incessante,Mas somente de segunda a sábado.Até a Liberdade tem direitoAo silêncio, aos domingos!

crônicas

DOMO ARIGATO GOZAIMASU,SENSEI* JOSÉ DE BARROSpor CAÊ GUIMARÃES

A deusa grega Mnemosine nos lega acapacidade de lembrar. O labirinto damemória é turvo. Atentos a ela, po-demos seguir vida afora com a lem-brança de situações e pessoas que nossão raras e caras, fundamentais e cons-titutivas. Creio nisso com força de ora-ção. Volta e meia acendo uma velaimaginária para a deusa. Que ela nuncame deixe esquecer. Por isso escrevo.Porque não esqueço. E o que me so-brevém, transborda.Na virada do ano, a filha de Urano e

Gaia me foi generosa. Amigos e amigasque não via há anos ou décadas sur-giram como água da nascente. Quemnos lembra o que somos, quem fomos ede onde viemos, é como água cristalina.Limpa nossa alma e deixa a sensação determos vivido várias vidas em uma. Noslabirintos intrincados da memória, o fio

de Ariadne é diáfano. Quase inventado.O que somos é a plataforma do queseremos. E o que viremos a ser é mol-dável. Como a própria água, ao infiltrarpor qualquer fresta e atravessar pedrasólida, gota a gota. Ela pode derrubarcom força paredes largas. Mas tambémtoma a forma de qualquer recipienteque queira contê-la, tornando-se assimvitoriosa sem fraturar estruturas.Essa lição me foi ensinada nos ta-

tames.Há 24 anos, pendurei o quimonoapós contusões, cirurgias no joelho e,principalmente, o surgimento de outrosinteresses, como estudos, boemia, co-meço da vida profissional e o ímpeto devoar nas asas da palavra, pássaro in-domável que me embala e atormenta.Recentemente voltei a treinar com fre-quência. E com mais parcimônia, por-que qualquer contusão depois dos qua-

renta te arrebenta por semanas.Logo no primeiro treino com o sensei

Átila Linhares, na Hikari, hiatos foramquebrados com ele e outros amigosveteranos que ensaiam um retorno.Lembramosnossomestre, sensei José deBarros. Mais do que tornar atletas cam-peões capixabas, brasileiros e sul-ame-ricanos, fundar a Federação Espíri-to-Santense de Judô e formar fai-xas-pretas no Nippon, há mais de 40anos ele vem ensinando gerações dehomens e mulheres a serem pessoas dobem. A respeitar ao próximo, indis-tintamente. A ter solidariedade. A ga-nhar. E a perder. Uma de suas máximassoa como poesia, e se tornou ummantrana minha vida: “No judô, para vencer,no lugar de socar ou chutar seu ad-versário, você se curva”. Essa, nem Pau-lo Leminski, poeta e faixa-preta na artejaponesa do caminho suave, anteviu.Por essa linda lembrança, e por tudo queme ensinou, reitero, aqui, o meu domoarigato gozaimasu, sensei.

*Em japonês, domo arigato gozaimasu significa“muitíssimo obrigado”. Sensei significa professor,mas textualmente é “aquele que veio antes”.

BEM-TE-VIpor SERGIO DAMIÃO

Existe um ninho próximo à “Banca doJorge”. A banca fica entre o MercadoMunicipal e a Padaria Brasil, na Praça SãoJoão. O ninho se acomoda no alto de umposte de iluminação pública. O calor dalâmpada aquece seus habitantes nas noi-tes frias cachoeirenses. O ninho é pe-queno, forma oval, vários gravetos sesobressaem. Não é bonito, mas pareceaconchegante. Os moradores vão se al-ternando, seus proprietários (genitores)expulsam os aprendizes tão logo per-cebem a capacidade de sobrevivência. Foiemumadessas “expulsões”queo conheci.Apesar da passagem frequente pelo localnunca reparara até então. Em um dessesfinais de semana, ao me aproximar dabanca de revistas, reparei no esforço doJorge, o guardador do ninho, em alinharum pequeno pássaro colorido (cabeçapreta e peito amarelo), que dizia tratar-sedo bem-te-vi, de volta à árvore. Após

algumas tentativas de recolocar o nossofilhote de Pitangus Sulphuratus, desistiu.Concluiu que os genitores não o ex-pulsaram, não se tratava de um “ninhego”e, sim, buscavam levá-lo ao amadure-cimento e desenvolvimento através daliberdade. Aprenderia a voar e, assim,ganharia o mundo.Mas ele, tão logo deixava o ninho,

desabava no asfalto. Junto aos carrosda avenida. Pelos riscos do local, di-minuiriam as chances de sobrevivência.Nascera em local inadequado, assimcomo muitas crianças das nossas ruas emorros. Crescem sem perspectivas. Umfuturo ameaçado. Caso estivesse emum habitat ideal, se estivesse no cam-po, logo cantaria. Pelas condições ofe-recidas, corremos o risco de nuncaouvir seu piar. Um canto a menos emnossa cidade. Um empobrecimento emnossa onomatopeia.

Jorge não desiste. Lembra de outrospassarinhos, de gerações anteriores debem-te-vis. Lembra do canto forte, domodopeculiar no assobiar, na chegadadocasal de amantes e futuros genitores. Eleacompanha a natureza, as coisas do serhumano e as coisas da cidade se mis-turando. As gerações se adaptam. Ashormeses acontecem. São maneiras di-ferentesdeviveremevivermos.Bomseriase a ave de cabeça preta e peito amarelocontinuasse exibindo seu canto em todaregião brasileira. Que o bem-te-vi con-tinuasse a encantar São Pedro, padroeirode Cachoeiro de Itapemirim, em mês dejunho e em todos os meses do ano.Quando ele eleva o voo e, ao longe,ouvimos seu sinal, ficamos com a certezaque São Pedro esquece as chuvas e que osol está por vir. Lembramos o calor e oaconchego de um ninho. E é o quebuscamos quando adormecemos.

24 HORASA liberdade é amarelaE nasce, na exata horaDe todo dia.

Sempre exata?Na hora deTodoDia.

De Cor,Incandescente,AqueceSorry.

A liberdadeDa cor que quiserEu a exataDe todo.

Todo DiaAmarelaE noite, azul?S -O-U nas 24 horas.

DEZOITONão há bruma,Não é birth,81 não soma +.Silêncio e o dois?Inverno solar,Tenta em brilhar.

Há mais?A +?Adeus?

Há +?Muito,Veio um.

Basta um,E tudo recomeça...

Documento:AGazeta_28_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_9.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:26 de Jan de 2012 20:26:31

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11PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

28 DE JANEIRODE 2012

10PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,28 DE JANEIRODE 2012

poeta contemporâneo Geraldo Car-neiro, apenas reforça a temática deque “amor e morte” são inseparáveis,daí a ideia dos Contrapontos.Os poemas de Paulo Sodré são mar-

cados por uma musicalidade neossim-bolista, tanto por sua estruturação nouso de aliterações, assonâncias, o com-passo binário de seus textos, o ponto e ocontraponto, versos longos e curtos,quanto por referências a composiçõesmusicais, instrumentos e vocábulos tí-picos do universo musical. Ex.: “Vi tuadança” (p.23):Vi tua dança,/teu baile de foi-

ces,/as foices invisíveis/que recolhemda haste/a papoula,/o grão,/o olharluminoso./Não há música,/nem ma-tiz,/nem vibração/para o cortejo/deteus passos./Um átimo:/que separa/avoz de um silêncio/inamovível./Vejotua dança,/mas canto-te,/sim,/ruido-samente.Note-se que o eu-lírico estabelece um

diálogo com a morte, o “senhor branco”,observa suadança silenciosa, semmúsica,“nem vibração para o cortejo de teuspassos” e contrapõe a essa dança si-lenciosa o seu canto ruidoso. Há re-ferências musicais em vários poemas:“Talvez os cisnes / toquem árias/quandoabresosolhos” (p.25),“Quecanção ocorrerá a teus ouvidos”(p.26), “dedico as sonatas ou osblues que recolho” (p.43), “Umma-drigal que ouço de Monteverdi”(p.61), “Assim levanto o olhar e abocaeamúsica” (p.62),“Toquemosalaúdes” (p. 63) e “Quando ter-minar estas canções” (p.87).O poeta identifica seus poemas como

canções e assume um eu-lírico de tro-vador, figura do poeta-cantor medieval,mas moderno, pois, mesmo usando umtema elegíaco, amorte, ele a trata de igualpara igual, sem a temer ou a lamentar. Oúltimo poema é a certeza da inevita-bilidade da morte que virá, na hora certa,e encontraráopoeta cansadode a esperar,como Manuel Bandeira, “com cada coisaem seu lugar”:“Quando terminar estas canções,/terá

o tempo escorrido o rio/de que se fazemos vinhos/e os frutos e os nomes depedra./Estarei cansado de me ter à es-quina/aguardando a luz/dos postes oudos passos/daquele que/nenhuma pro-babilidade,/faça sol, faça noite, façanuvem,/deixará chegar”. (p.87)

ensaiopor FRANCISCO AURELIO RIBEIRO

O AMOR E A MORTE NOSVERSOS DE PAULO SODRÉ

MONICA SANT’ANNA

SENHOR BRANCO OU OINDESEJADO DAS GENTESPaulo Sodré. Secretaria deEstado da Cultura. 88 páginas,2006. Disponível nosite Tertúlia:www.tertuliacapixaba.com.br

Os poemas de Paulo Sodré são marcados por uma musicalidade neossimbolista, com o uso de aliterações, assonâncias, o compasso binário, versos longos e curtos

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A morte sempre meimpressionou pelasua manifestaçãoradical, exata eirreversível, alémde temerosa”—Paulo SodréEscritor e professor universitário

Indicado como leitura obrigatória para o Vestibular da Ufes, livro de poemas do autorcapixaba aborda a tensão entre a vida e a destruição, com sonoridade simbolista e medieval

Senhor Branco ou oindesejado das gen-tes”, livro de poemaspublicado em 2006,após premiação pelaSecult, é uma das

duas obras de autor capixaba indicadascomo leitura obrigatória para o Ves-tibular da Ufes e tem como autor PauloRoberto Sodré (1962), um dos maispremiados poetas capixabas. É um livrode poemas dividido em três partes,cada uma contendo um contraponto.A Parte I, intitulada “Percurso de

sombra e frescor”, contém 19 poemas eo Contraponto 1, intitulado “com aabreviatura do não”, seis poemas; aParte II, chamada “Percurso de sombrae arrepio”, contém 14 poemas e oContraponto 2, nomeado “sob o grifodos cabelos”, cinco poemas. A Parte III,intitulada “Percurso de sombra e corte”,tem 18 poemas e o Contraponto 3, “dacor do caqui e do azul”, sete poemas.Em sua íntegra traz 69 poemas, em

suamaioria curtos, compoucas estrofese versos. Alguns são apenas dísticos (2versos) como “Gota de água” (p.44):Dizer não antes do tempo:/Facapara tristes gumes.Conforme o autor, o livro foi es-

truturado, inicialmente, com as trêspartes sem os contrapontos, represen-tando cada uma: “Percurso de sombra efrescor (sobre a inadvertência)”. “Per-curso de sombra e arrepio (sobre opressentimento)”. “Percurso de sombrae corte (sobre a manifestação)”.Segundo o autor, “o adjetivo “bran-

co” do título foi pensado no sentidofigurado de “Sem intenções ou in-fluências maléficas”. Também afirmanão o ter pensado em “sentido ét-nico”. O subtítulo derivou do poema“Consoada”, Opus 10, de Manuel Ban-deira, que traz o verso “Quando aindesejada das gentes chegar”, re-ferindo-se àmorte. “Não resisti à ideianem à homenagem”, diz o autor. Natradição medieval, a morte era sim-bolizada, geralmente, por uma mu-lher, a “dama branca”. Paulo Sodréinverte essa associação, como o anun-cia no primeiro poema da Parte I:”Nestes páramos/de sílabas, darei a

ti um rosto,/sim, de homem,/pois seuma mulher deu-me/o que se fezvida,/é de sorte que um homem/marecolha”.

O simbolismo da cor branca, parareferir-se à morte, deve-se ao fato de obranco situar-se nas duas extremidadesda gama cromática, pois significa tantoa ausência quanto a soma de todas ascores. O término da vida, a morte, étambém um momento transitório, umponto de junção do visível e do in-visível; é, portanto, um outro início. Obranco tem um valor-limite, como asduas extremidades da linha infinita dohorizonte. É tambéma cor utilizada nosritos da passagem, segundo o esquemaclássico de toda iniciação: morte erenascimento, como casamentos, ba-tismos, primeira Eucaristia.

ContrapontoConforme o autor, “Um dos temas

mais notáveis da cultura, em geral, eda literatura, em particular, a mortesempre me impressionou pela suamanifestação radical, exata e irre-versível, além de temerosa. Sobre-tudo depois da leitura de certa poesiade Manuel Bandeira, de Hélinand deFroidmont (1197) e Hilda Hilst, pro-duzi poemas em que a morte, em vezde uma figura (geralmente feminina)ora macabra, ora indesejável, fosserepresentada como um sereno ho-mem “belo e castanho” (diferente,portanto, da figura masculina, o atorBengt Ekerot, de O sétimo selo(1957), de Ingmar Bergman”. No en-tanto, embora o autor tenha esco-lhido a morte como tema origináriode sua obra, ele acrescenta a cadaparte um contraponto dedicado aoamor, ou seja, à vida.Na mitologia grega, a morte era

personificada por Tânatos, filho daNoite e irmão do Sono; ela possui,como sua mãe e seu irmão, o poder deregenerar. Em todos os seres vivos,coexistem a morte e a vida, ou seja,uma tensão entre duas forças con-trárias, Eros (o Amor, a pulsão da vida)e Tânatos (a destruição, a morte).A primeira epígrafe, de Manuel Ban-

deira, foi retirada do poema “Momentonum café”, de Estrela da Manhã:“Quando o enterro passou/Os ho-

mens que se achavam no café/ Ti-raram o chapéumaquinalmente/ Sau-davam o morto distraídos/ Estavamtodos voltados para a vida/ Absortosna vida/ Confiantes na vida. Um no

entanto se descobriu num gesto largoe demorado/ OIhando o esquife lon-gamente/ Este sabia que a vida é umaagitação feroz e sem finalidade/ Quea vida é traição/ E saudava a matériaque passava/ Liberta para sempre daalma extinta.”O tema da morte, em Manuel Ban-

deira (1886-1968), poeta modernis-ta, que se iniciou simbolista, é umaconstante. De certa maneira, Ban-deira desmitificou a morte como sím-bolo poético, tornando-a natural, es-perada, previsível, como a tratou em“Consoada”:“Quando a Indesejada das gentes

chegar/(Não sei se dura ou caroá-vel),/Talvez eu tenha medo./Talvezsorria, ou diga:/. Alô, iniludível!/ Omeu dia foi bom, pode a noite des-cer./(A noite com seus sortilégios)./Encontrará lavrado o campo, a casalimpa,/A mesa posta,/ Com cada coi-sa em seu lugar”. A outra epígrafe, do

Há um homoerotismo sugerido nospoemas, pois o eu-lírico é masculinodialogando com o “senhor branco”, aquem espera, deseja e busca, conscien-temente. Há uma descrição visual damorte, bela e desejada, diferente doimaginário clássico: “olhos castanhos”,“cabelos em cachos”, “pálido e esguio”.“Talvez os cisnes/toquem árias/quandoabres os olhos,/líquidos, e castanhoscomo poeira,/para aquele que te es-pera./Talvez cachos rodopiem teus ca-belos/e os lábios claros serenem o ri-so/que de teu rosto vem,/quando docorpo retiras o nome./És lindo e pálido eesguio/ou hediondo como um susto/querompe o peito e tira os sentidos?/Senhor,que beleza/Amaciaria tua voz,/Quandoanuncias tua passagem/Àquele que, sur-preso, te nomeia? (p.25).”Além dessa relação homoafetiva com a

morte,há referênciasexplícitasdoeu-líricocom outros homens: “e se beijei Tiago/ oudesencontrei Roberto,/ tudo estará/ na

mesma/ inevitável/ reticência” (p. 67).

DiálogosHá muitos diálogos de textos, sobre-

tudo coma literatura e amúsica.Alémdosautores citados nas epígrafes, ManuelBandeira, Geraldo Carneiro, Nuno Júdice,Cacaso, Bith, há, também, um diálogoevidente, tanto na estrutura dos poemasquanto nos temas tratados, com estilos deépoca como o Trovadorismo, o Arcadismo(“Os arredores florem” (p.27); o Renas-cimento (o humor, em alguns poemas e asreferências clássicas) e o Barroco. O poe-ma “Ubi sunt?” (Onde estão?) traz umatemática e uma forma claramente bar-rocas, na referência final a Luiz de Gon-gora, poeta barroco espanhol (p.33):“Que será do homem/ao texto dado

tanto?/Que será da mulher/à ciênciadada tanto?/Que será do astro/ao lumedado tanto?/Cinza, gôngora, olvido?”Outra referência literária explícita é

ao poeta medieval Helinand de Froid-mont (ca. 1160- ca. 1237), cronista eescritor eclesiástico. Helinand escreveuum trabalho em francês antigo chamadoLes Vers de la Mort ("Versos da Morte "),em que pede àmorte para exortar a seusamigos abandonarem os prazeres ter-restres. No texto de Paulo Sodré, po-de-se ver, também, a escolha de Froid-mond como referências a Freud e aDrumond, no próprio nome do poeta e aJoão Cabral ( “o finíssimo da lâmina”).A própria construção do texto é mu-

sical, em ritmo binário, com suas trêspartes, em dois movimentos, como umacantata, com suas árias para voz solista.Há referência explícita a Monteverdi,compositor italiano do século XVI, célebrepor seus madrigais prenunciadores dascantatas, no poema “Livro das cinco horase outubro” (p.61):“Um madrigal que ouço de Mon-

teverdi:/ O como sei gentile,/ scalza Ilpiede e sciolta Il crine,/ passeando,

pastoral intensa, seu silêncio,/ pelapaisagem de augúrios”.Também há uma referência textual a

Caetano Veloso, compositor brasileiro,sobretudo a seu disco “Araçá azul”, de1972, citado em 3 poemas da Parte III:“Araçá azul é sonho-segredo” (p.81),“Araçá azul fica sendo” (p. 83) e “Araçáazul é brinquedo” (p. 87).Mais do que uma caligrafia da morte,

de rosto sereno e até por vezes amistoso,“Senhor Branco ou o indesejado dasgentes” são poemas que valem por sipróprios, traços de uma particular e porvezes enigmática relação com a “in-desejada das gentes” e os seus indíciosde sombra e de frio. Paulo Sodré des-mitifica a morte, presentificando-a emseus versos curtos e ritmados, em es-trofes igualmente reduzidas, nos reme-tendo a uma sonoridade simbolista emedieval, com uma forma bastante felizdeumavoz que ecoa ados clássicos,em plena pós-modernidade.

Documento:AGazeta_28_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_10.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:26 de Jan de 2012 20:24:11

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12PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,28 DE JANEIRODE 2012

estudos linguísticospor JOSÉ AUGUSTO CARVALHO

REFÉNS DA INCOMPETÊNCIAProfessor aponta falhas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e alertapara o despreparo de dicionaristas que contrariam normas gramaticais básicas

Onovo desacordo ortográ-fico, deixou-nos reféns dosdicionários e do Vocabu-lárioOrtográfico da LínguaPortuguesa (Volp), nãoapenas por causa do hífen,

mas também por causa dos dicionaristas,nemsemprepreparadospara a funçãoqueexercem. Acredito mesmo que, à exceçãodo falecido Antônio Geraldo da Cunha,que colaborou com o Dicionário Houaiss,nenhum colaborador ou autor de dicio-nário de língua tenha ouponha empráticanoções básicas de lexicografia.O emprego do hífen não tem lógica e

oferece dificuldades de normalização.Nos pares abaixo, a primeira palavra éhifenizada; e a segunda, de formaçãoidêntica, não: planta-mãe/planta ma-triz; célula-tronco/sequestro relâmpago;pé-de-meia/pé de moleque; afro-bra-sileiro;/afrodescendente; norma-pa-drão/desvio padrão; bom-senso/bomgosto; pronto-socorro/pronto atendi-mento; histórico-cultural/infantojuve-nil; passa-tudo/passatempo; perde-ga-nha/ vaivém; ano-novo/ano velho, etc.O Aurélio ensina que o verbo explodir

não se conjuga integralmentepor lhe faltara 1ª pessoa do singular do pres. doindicativo e, portanto, todo o pres. dosubjuntivo.No entanto, nopróprio verbeteexplodir, onde consta essa informação, overbo aparece conjugado em todos ostempos e pessoas. O Houaiss conjugaintegralmente o verbo adequar: eu adé-quo, tu adéquas... No entanto, gramáticoscomo Domingos Paschoal Cegalla (“Di-cionário de dificuldades da língua por-tuguesa”. Rio: Nova Fronteira, 1996, s.v.)ensinam que: “Não existem as formasadéqua, adéquam, com e tônico”.Na minha gramática, denuncio arbi-

trariedades do Volp. Todas as gramáticasensinam que azul-celeste e azul-marinho,por exemplo, são adjetivos invariáveis. OVolp inova: azuis-celestes, azuis-mari-nhos. As gramáticas ensinam que o nomeformado por adjetivo com nome de cormais substantivo comum é invariável:verde-mar, vermelho-brasa. O Volp inova:verdes-garrafas, verdes-mares. Que cri-térios seus autores adotam para ir deencontro às lições tradicionais?Em julho de 2010, ao explicar Gálico,

como a “Palavra do Dia”, o Caldas Auletecolocou como sinônimos os adjetivos pá-trio e gentílico. Mandei um e-mail para a

Lexikon Editora Digital, citando a “NovaGramática doPortuguês Contemporâneo”,de Celso Cunha e Lindley Cintra, editadapela Nova Fronteira em 1985, mesmaeditora do Caldas Aulete: “Entre os ad-jetivos derivados de substantivos cumpresalientar os que se referem a continentes,países, regiões, províncias, estados, ci-dades, vilas e povoados, bem como aque-les que se aplicam a raças e povos. Osprimeiros chamam-se PÁTRIOS; os se-

gundos GENTÍLICOS, denominações estasque foram omitidas na NomenclaturaGramatical Brasileira e na Nomen-claturaGramatical Portuguesa, masque nos parecem necessárias” (Versais egrifos dos autores). E expliquei: Assim,semita é gentílico que compreende di-versos pátrios (hebreus, assírios, aramai-cos, fenícios e árabes); mesopotâmico égentílico que compreende assírios, cal-deus, sumérios e babilônicos; mas pátrio

diz respeito à região: brasileiro, portuguêse francês são pátrios.A resposta, assinada por Luiz Roberto

Jannarelli, é umatestadode submissãoaoerro: ele reconhecea liçãodeCelsoCunhae Lindley Cintra, mas prefere seguir o quedizem os principais dicionários de língua:o Houaiss e o Aurélio. Mesmo reco-nhecendo o erro, insiste em mantê-lo.O Houaiss, no verbete “macho”, con-

traria as gramáticas ao explicar seu em-prego da seguinte maneira: “a) como adj.,aceita as flexões habituais da língua: javalimacho, jacaré macho: toutinegra macha,formiga macha; b) por ser masculino nasignificação, o feminino (macha) do adj. émenos us. do que o substantivo macho,para formar femininos compostos; tal em-prego exige, porém, o uso de hífen, porpassar a tratar-se de palavra composta pordois substantivos: toutinegra-macho, for-miga-macho; esse subst., colocado apósoutro subst. denominador de um ser se-xuado, é um determinante específico in-variável em gênero, mas não em número,e indica que o ser é do sexo masculino (acobra-macho, as aranhas-machos) ou umser viril (um cabra-macho) ou um sermasculinizado (mulher-macho);” Isto é:tanto faz dizer “toutinegra macha” quanto“toutinegra-macho”, variando apenas ouso do hífen. Assim, em “toutinegra ma-cha”, “macha” é adjetivo; em “toutine-gra-macho”, “macho” forma com “tou-tinegra” um substantivo composto. Querdizer: o hífen é que vai indicar se “macho”é adj. ou parte de subst. composto!As gramáticas, contudo, ensinam que

“macho” e “fêmea” são sempre invariáveisem gênero quando se trata de nomesepicenos. Ademais, “macho” e “fêmea”,quando não formam substantivos com-postos, não podem ser considerados ad-jetivos, mas apostos especificativos. Nessecaso, “mulher macho” se escreveria semhífen. O Aurélio dá lição pior: no verbete“macho” exemplifica “cobra macha”, co-mo se “macha” fosse adjetivo e não comose fosse o segundoelemento invariável emgênero na formação da palavra composta.A mesma lição espúria se encontra noverbete “epiceno”. Felizmente, o Houaissnão comungou dessa lição nesse verbete.Só me resta rezar para que os por-

tugueses, dando prova de inteligência ediscernimento, continuem lutando pa-ra que esse acordo ortográfico sejarejeitado por Portugal.

Documento:AGazeta_28_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_12.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:26 de Jan de 2012 20:25:10