pensamento nômade - deleuze

19
[351] 34 PENSAMENTO NÔMADE DL [1973] Se perguntarmos o que é ou o que vem a ser Nietzsche hoje em dia, sabemos muito bem a quem é preciso se dirigir. É preciso se dirigir aos jovens que estão lendo Nietzsche, que estão descobrindo Nietzsche. Quanto a nós, já somos muito velhos na maioria aqui. O que é que um jovem descobre atualmente em Nietzsche, que certamente não é aquilo que minha geração descobriu nele, que certamente não era aquilo que as gerações precedentes tinham descoberto? Como é que acontece que jovens músicos de hoje sintam-se ligados a Nietzsche naquilo que fazem, embora não façam absolutamente uma música nietzscheana no sentido em que Nietzsche a fazia? Como é que ocorre que jovens pintores, jovens cineastas sintam-se ligados a Nietzsche? Que se passa, ou seja, como é que eles recebem Nietzsche? A rigor, e olhando de fora, tudo o que se pode explicar é de que maneira Nietzsche exigiu para si mesmo e para seus leitores, contemporâneos e futuros, um certo direito ao contra-senso. Não um direito qualquer, aliás, porque ele tem suas regras secretas, mas um certo direito ao contra-senso a respeito do qual eu gostaria de me explicar logo mais, e que faz com que a questão não seja comentar Nietzsche como se DL Em Nietzsche aujourd’hui? T.1: intensités, Paris, UGE, 10/18, 1973, pp. 159-174. A respeito das discussões, foram mantidas apenas as questões apresentadas a Deleuze e transcritas nas pp. 185-187 e 189-190 da referida publicação. O colóquio “Nietzsche hoje?” desenrolou-se em julho de 1972 no Centro Cultural Internacional de Cerisy-la-Salle.

Upload: hevelyn-rosa

Post on 05-Jul-2015

758 views

Category:

Documents


4 download

DESCRIPTION

Conferência realizada por Deleuze no colóquio “Nietzsche hoje?” de julho de 1972 no Centro Cultural Internacional de Cerisy-la-Salle.

TRANSCRIPT

Page 1: Pensamento Nômade - Deleuze

[351]

34

PENSAMENTO NÔMADE DL

[1973]

Se perguntarmos o que é ou o que vem a ser Nietzsche hoje em dia, sabemos muito

bem a quem é preciso se dirigir. É preciso se dirigir aos jovens que estão lendo Nietzsche, que

estão descobrindo Nietzsche. Quanto a nós, já somos muito velhos na maioria aqui. O que é

que um jovem descobre atualmente em Nietzsche, que certamente não é aquilo que minha

geração descobriu nele, que certamente não era aquilo que as gerações precedentes tinham

descoberto? Como é que acontece que jovens músicos de hoje sintam-se ligados a Nietzsche

naquilo que fazem, embora não façam absolutamente uma música nietzscheana no sentido em

que Nietzsche a fazia? Como é que ocorre que jovens pintores, jovens cineastas sintam-se

ligados a Nietzsche? Que se passa, ou seja, como é que eles recebem Nietzsche? A rigor, e

olhando de fora, tudo o que se pode explicar é de que maneira Nietzsche exigiu para si mesmo

e para seus leitores, contemporâneos e futuros, um certo direito ao contra-senso. Não um

direito qualquer, aliás, porque ele tem suas regras secretas, mas um certo direito ao contra-

senso a respeito do qual eu gostaria de me explicar logo mais, e que faz com que a questão

não seja comentar Nietzsche como se comenta Descartes, Hegel. Eu digo a mim mesmo:

quem é hoje em dia o jovem nietzscheano? Será aquele que prepara um trabalho sobre

Nietzsche? É possível. Ou então é aquele que, voluntária ou involuntariamente, pouco

importa, [352] produz enunciados particularmente nietzscheanos no decorrer de uma ação, de

uma paixão, de uma experiência? Isto também acontece. Pelo que conheço, um dos textos

recentes mais belos, mais profundamente nietzscheanos, é o texto em que Richard Deshayes

escreve: Viver, não é sobreviver, exatamente antes de receber uma granada durante uma

manifestação Dla. Talvez os dois casos não se excluam. Talvez se possa escrever sobre

Nietzsche e depois produzir enunciados nietzscheanos no decorrer da experiência.

Sentimos todos os perigos que nos espreitam nessa questão: o que é Nietzsche hoje?

Perigo demagógico (“os jovens conosco”...) Perigo paternalista (conselhos a um jovem leitor

de Nietzsche...) E em seguida, sobretudo, perigo de uma síntese abominável. Toma-se como

aurora da nossa cultura moderna a trindade: Nietzsche, Freud, Marx. Pouco importa que todo DL Em Nietzsche aujourd’hui? T.1: intensités, Paris, UGE, 10/18, 1973, pp. 159-174. A respeito das discussões, foram mantidas apenas as questões apresentadas a Deleuze e transcritas nas pp. 185-187 e 189-190 da referida publicação. O colóquio “Nietzsche hoje?” desenrolou-se em julho de 1972 no Centro Cultural Internacional de Cerisy-la-Salle.DLa Estudante de Liceu, de extrema-esquerda, ferido pela polícia durante manifestação em 1971.

Page 2: Pensamento Nômade - Deleuze

mundo esteja aqui desarmado de antemão. Marx e Freud talvez sejam a aurora da nossa

cultura, mas Nietzsche é claramente outra coisa, ele é a aurora de uma contracultura. É

evidente que a sociedade moderna não funciona a partir de códigos. É uma sociedade que

funciona sobre outras bases. Ora, se consideramos Marx e Freud, não literalmente, mas o

devir do marxismo ou devir do freudismo, vemos que eles se lançaram paradoxalmente numa

espécie de tentativa de recodificação: recodificação pelo Estado, no caso do marxismo

(“vocês estão doentes pelo Estado, e serão curados pelo Estado”, não será o mesmo Estado);

recodificação pela família (estar doente pela família, curar-se pela família, não a mesma

família). É isto que realmente constitui, no horizonte da nossa cultura, o marxismo e a

psicanálise, como as duas burocracias fundamentais, uma pública, outra privada, cuja meta é

operar bem ou mal uma recodificação daquilo que não pára de se descodificar no horizonte. O

caso de Nietzsche, ao contrário, não é absolutamente esse. Seu problema está em outro lugar.

Através de todos os códigos, do passado, do presente, do futuro, trata-se para ele de fazer

passar algo que não se deixa e não se deixará codificar. Fazê-lo passar num novo corpo,

inventar um corpo no qual [353] isso possa passar e fluir: um corpo que seria o nosso, o da

terra, o do escrito...

Conhecemos os grandes instrumentos de codificação. As sociedades não variam tanto,

não dispõem de tantos meios de codificação. Conhecemos três principais: a lei, o contrato e a

instituição. Nós os reencontramos muito bem, por exemplo, na relação que os homens

mantêm ou mantiveram com os livros. Existem livros da lei, nos quais a relação do leitor com

o livro passa pela lei. Aliás, nós os denominamos mais particularmente códigos, ou livros

sagrados. Em seguida há uma outra espécie de livros que passam pelo contrato, a relação

contratual burguesa. É esta a base da literatura leiga e da relação de venda do livro: eu

compro, você me dá o que ler – uma relação contratual na qual todos, autor, leitor, estão

presos. E há ainda outra espécie de livros, o livro político, de preferência revolucionário, que

se apresenta como um livro de instituições, sejam presentes ou futuras. Toda espécie de

mistura é feita: livros contratuais ou institucionais que são tratados como textos sagrados...

etc. É que todos os tipos de codificação estão tão presentes, subjacentes, que os encontramos

uns nos outros. Seja um outro exemplo, o da loucura: a tentativa de codificar a loucura é feita

sob três formas. Primeiramente, as formas da lei, ou seja, do hospital, do asilo – é a

codificação repressiva, é o confinamento, o antigo confinamento que será chamado no futuro

a tornar-se uma última esperança de salvação, quando os loucos dirão: “Bons os tempos em

que nos confinavam, pois hoje em dia se passam coisas piores”. Em seguida, houve uma

espécie de golpe formidável, que foi o golpe da psicanálise: entendia-se que havia pessoas que

Page 3: Pensamento Nômade - Deleuze

escapavam à relação contratual burguesa tal como ela aparecia na medicina, e essas pessoas

eram os loucos, porque estes não podiam ser partes contratantes, eram juridicamente

“incapazes”. O golpe genial de Freud foi fazer passar sob a relação contratual uma parte dos

loucos, no sentido mais amplo do termo, os neuróticos, e explicar que se podia fazer um

contrato especial com eles (donde o abandono da hipnose). Ele é o primeiro a introduzir na

psiquiatria, e é nisto finalmente que consiste a novidade psicanalítica, a relação [354]

contratual burguesa que até então fora excluída dela. E, em seguida, existem ainda as

tentativas mais recentes, cujas implicações políticas e às vezes ambições revolucionárias são

evidentes, as tentativas ditas institucionais. Encontra-se aí o tríplice meio de codificação: ou

bem será a lei, e se não for a lei será a relação contratual, e se não for a relação contratual será

a instituição. E sobre essas codificações florescem nossas burocracias.

Diante da maneira pela qual nossas sociedades se descodificam, pela qual os códigos

escapam por todos os lados, Nietzsche é aquele que não tenta fazer recodificação. Ele diz: isto

ainda não foi longe o bastante, vocês são apenas crianças (“A igualização do homem europeu

é hoje o grande processo irreversível e deveríamos ainda acelerá-lo”). No nível daquilo que

escreve e do que pensa, Nietzsche persegue uma tentativa de descodificação, não no sentido

de uma descodificação relativa que consistiria em decifrar os códigos antigos, presentes ou

futuros, mas de uma descodificação absoluta – fazer passar algo que não seja codificável,

embaralhar todos os códigos. Embaralhar todos os códigos não é fácil, mesmo no nível da

mais simples escrita e da linguagem. Só vejo semelhança com Kafka, com aquilo que Kafka

faz com o alemão, em função da situação lingüística dos judeus de Praga: ele monta, em

alemão, uma máquina de guerra contra o alemão; à força de indeterminação e de sobriedade,

ele faz passar sob o código do alemão algo que nunca tinha sido ouvido. Quanto à Nietzsche,

ele vive ou se considera polonês em relação ao alemão. Apodera-se do alemão para montar

uma máquina de guerra que vai passar algo que não é codificável em alemão. É isso o estilo

como política. De um modo mais geral, em que consiste o esforço de um tal pensamento, que

pretende fazer passar seus fluxos por debaixo das leis, recusando-as, por debaixo das relações

contratuais, desmentindo-as, por debaixo das instituições, parodiando-as? Volto rapidamente

ao exemplo da psicanálise. Em que uma psicanalista tão original quanto Melanie Klein

permanece, todavia, no sistema psicanalítico? Ela mesma o diz muito bem: os objetos parciais

dos quais nos fala, com suas explosões, seus fluxos etc., são da ordem do fantasma. Os

pacientes trazem estados vividos, intensamente vividos, e Melanie Klein os traduz em [355]

fantasmas. Existe aí um contrato, especificamente um contrato: dê-me seus estados vividos,

eu lhe devolverei fantasmas. E o contrato implica uma troca, de dinheiro e de palavras. A esse

Page 4: Pensamento Nômade - Deleuze

respeito, um psicanalista como Winnicott mantém-se verdadeiramente no limite da

psicanálise, porque tem o sentimento de que esse procedimento não convém mais num certo

momento. Há um momento em que não se trata mais de traduzir, de interpretar, traduzir em

fantasmas, interpretar em significados ou em significantes, não, não é isso. Há um momento

em que será necessário partilhar, é preciso colocar-se em sintonia com o doente, é preciso ir

até ele, partilhar seu estado. Trata-se de uma espécie de simpatia, de empatia, ou de

identificação? Mesmo assim, isso é seguramente mais complicado. O que nós sentimos é

antes a necessidade de uma relação que não seria nem legal, nem contratual, nem

institucional. Com Nietzsche, é isso. Nós lemos um aforismo, ou um poema de Zaratustra.

Ora, materialmente e formalmente, tais textos não são compreendidos nem pelo

estabelecimento ou aplicação de uma lei, nem pela oferta de uma relação contratual, nem por

uma instauração de instituição. O único equivalente concebível seria talvez “estar no mesmo

barco”. Algo de pascaliano voltado contra Pascal. Embarcou-se: uma espécie de jangada da

Medusa, há bombas que caem à volta, a jangada deriva em direção a riachos subterrâneos

gelados, ou então em direção a rios tórridos, o Orenoco, o Amazonas, pessoas remam juntas,

que não supõem que se amam, que se batem, que se comem. Remar juntos é partilhar,

partilhar alguma coisa, fora de qualquer lei, de qualquer contrato, de toda instituição. Uma

deriva, um movimento de deriva, ou de “desterritorialização”: eu o digo de uma maneira

muito nebulosa, muito confusa, já que se trata de uma hipótese ou de uma vaga impressão

sobre a originalidade dos textos nietzscheanos. Um novo tipo de livro.

Quais são, pois, as características de um aforismo de Nietzsche, para dar esta

impressão? Há uma que Maurice Blanchot evidenciou particularmente em A conversa infinita DLb. É a relação com o fora. De fato, quando se abre ao acaso um texto de Nietzsche, é uma

das primeiras vezes que não passamos mais por uma interioridade, seja a [356] interioridade

da alma ou da consciência, a interioridade da essência ou do conceito, ou seja, daquilo que

sempre fez o princípio da filosofia. O que faz o estilo da filosofia é o fato de que a relação

com o exterior é sempre mediatizada e dissolvida por uma interioridade, em uma

interioridade. Nietzsche, ao contrário, funda o pensamento, a escrita, sobre uma relação

imediata com o fora. O que é uma bela pintura ou um desenho muito belo? Há um quadro.

Um aforismo também é enquadrado. Mas a partir de que momento se torna belo o que está no

quadro? A partir do momento em que se sabe e se sente que o movimento, que a linha que é

enquadrada vem de outro lugar, que ela não começa nos limites do quadro. Ela começou

acima, ou ao lado do quadro, e a linha atravessa o quadro. Como no filme de Godard, pinta-se

DLb M. Blanchot, L’Entretien infini, Paris, Gallimard, 1969, p. 227 e seguintes.

Page 5: Pensamento Nômade - Deleuze

o quadro com a parede. Longe de ser a delimitação da superfície pictórica, o quadro é quase o

contrário, é o estabelecimento de uma relação imediata com o fora. Ora, conectar o

pensamento ao fora é o que, ao pé da letra, os filósofos nunca fizeram, mesmo quando

falavam de política, mesmo quando falavam de passeio ou de ar puro. Não basta falar de ar

puro, falar do exterior, para conectar o pensamento diretamente e imediatamente ao fora.

“...Eles chegam como o destino, sem causa, sem razão, sem consideração, sem

pretexto, estão aí com a rapidez do raio, tão terríveis, tão repentinos, tão convincentes, tão

outros para serem até mesmo um objeto de ódio...” É o célebre texto de Nietzsche sobre os

fundadores de Estados, “esses artistas com olhar de bronze” (Genealogia da moral, II, 17).

Ou será que é Kafka, o de A Muralha da China? “Impossível chegar a compreender como

penetraram até a capital, que está todavia tão longe da fronteira. Entretanto, estão aí, e cada

manhã parece aumentar seu número (...). Conversar com eles, impossível. Não sabem nossa

língua (...) carnívoros também seus cavalos!” DLc. Dizemos, então, que tais textos são

atravessados por um movimento que vem do fora, que não começa na página do livro nem nas

páginas precedentes, que não cabe no quadro do livro, e que é [357] absolutamente diferente

do movimento imaginário das representações ou do movimento abstrato dos conceitos tais

como eles acontecem habitualmente através das palavras e na cabeça do leitor. Alguma coisa

salta do livro, entra em contato com um puro fora. É isto, creio, o direito ao contra-senso para

toda a obra de Nietzsche. Um aforismo é um jogo de forças, um estado de forças sempre

exteriores umas às outras. Um aforismo não quer dizer nada, não significa nada, não tem

significante como não tem significado. Seriam maneiras de restaurar a interioridade de um

texto. Um aforismo é um estado de forças, cuja última força, ou seja, ao mesmo tempo a mais

recente, a mais atual e a provisória-última, é sempre a mais exterior. Nietzsche o diz muito

claramente: se você quiser saber o que eu quero dizer, encontre a força que dá um sentido, se

for preciso um novo sentido ao que eu digo. Conecte o texto a essa força. Desta maneira, não

há problema de interpretação de Nietzsche, há apenas problemas de maquinação: maquinar o

texto de Nietzsche, procurar com qual força exterior atual ele faz passar alguma coisa, uma

corrente de energia. A esse respeito, todos nós encontramos o problema levantado por certos

textos de Nietzsche que têm uma ressonância fascista ou anti-semita... E já que se trata de

Nietzsche hoje, devemos reconhecer que Nietzsche inspirou e inspira ainda muitos jovens

fascistas. Houve um momento em que era importante mostrar que Nietzsche era utilizado,

desviado, completamente deformado pelos fascistas. Isto foi feito na revista Acéphale, com

Jean Wahl, Bataille, klossowski. Mas hoje talvez isto não seja mais um problema. Não é no

DLc F. Kafka, La Muraille de Chine et autres récits, Paris, Gallimard, 1950, col. “Du Monde entier”, pp. 95-96.

Page 6: Pensamento Nômade - Deleuze

nível dos textos que é preciso lutar. Não porque não se possa lutar nesse nível, mas porque

essa luta não é mais útil. Trata-se antes de encontrar, de assinalar, de reunir as forças

exteriores que dão a tal ou qual frase de Nietzsche seu sentido liberador, seu sentido de

exterioridade. É no nível do método que se coloca a questão do caráter revolucionário de

Nietzsche: é o método nietzscheano que faz do texto de Nietzsche, não mais alguma coisa a

respeito da qual seria preciso se perguntar “é fascista, é burguês, é revolucionário em si?” –

mas um campo de exterioridade em que se defrontam forças fascistas, burguesas e

revolucionárias. E se colocarmos deste modo o problema, a resposta [358] que está

necessariamente em conformidade com o método é: encontre a força revolucionária (quem é

além-do-homem?). Sempre um apelo a novas forças que vêm do exterior, e que atravessam e

recortam o texto nietzscheano no quadro do aforismo. O contra-senso legítimo é isto: tratar o

aforismo como um fenômeno à espera de novas forças que venham “subjugá-lo”, ou fazê-lo

funcionar, ou então fazê-lo explodir.

O aforismo não é somente relação com o fora; tem, como segunda característica, a de

ser uma relação com o intensivo. E é a mesma coisa. Sobre este ponto Klossowski e Lyotard

disseram tudo. Esses estados vividos de que eu falava há pouco, para dizer que não se deve

traduzi-los em representações ou em fantasmas, que não se deve fazê-los passar pelos códigos

da lei, do contrato ou da instituição, que não se deve converter em moeda, que é preciso, ao

contrário, fazer deles fluxos que nos levam cada vez mais longe, mais para o exterior, são

exatamente as intensidades. O estado vivido não é algo subjetivo, ou não o é necessariamente.

Não é algo individual. É o fluxo, e o corte do fluxo, já que cada intensidade está

necessariamente em relação com uma outra de tal modo que alguma coisa passe. É o que está

sob os códigos, o que lhes escapa, e o que os códigos querem traduzir, converter, transformar

em moeda. Mas Nietzsche, com sua escrita de intensidades, nos diz: não troquem as

intensidades por representações. A intensidade não remete nem a significados que seriam

como a representação de coisas, nem a significantes que seriam como representações de

palavras. Então, qual é a sua consistência ao mesmo tempo como agente e como objeto de

descodificação? É o que há de mais misterioso em Nietzsche. A intensidade tem algo que ver

com os nomes próprios, e estes não são nem representações de coisas (ou pessoas), nem

representações de palavras. Coletivos ou individuais, os pré-socráticos, os romanos, os judeus,

o Cristo, o Anticristo, Júlio César, Bórgia, Zaratustra, todos esses nomes próprios que passam

e retornam nos textos de Nietzsche, não são nem significantes nem significados, mas

designações de intensidade, sobre um corpo que pode ser o corpo da Terra, o corpo do livro,

mas também o corpo sofredor de Nietzsche: todos os nomes da história, sou eu... Há uma

Page 7: Pensamento Nômade - Deleuze

espécie de nomadismo, de deslocamento perpétuo de intensidades designadas por nomes

próprios, e que penetram umas nas outras ao mesmo [359] tempo em que são vividas sobre

um corpo pleno. A intensidade só pode ser vivida em relação com sua inscrição móvel sobre

um corpo, e com a exterioridade movente de um nome próprio, e é por isso que o nome

próprio é sempre uma máscara, máscara de um operador.

O terceiro ponto é a relação do aforismo com o humor e a ironia. Aqueles que lêem

Nietzsche sem rir, e sem rir muito, sem rir freqüentemente, e sem dar gargalhadas às vezes, é

como se não lessem Nietzsche. Isto não é verdadeiro somente em relação a Nietzsche, mas em

relação a todos os autores que fazem precisamente este mesmo horizonte de nossa

contracultura. O que mostra nossa decadência, nossa degenerescência, é a maneira pela qual

experimentamos a necessidade de situar a angústia, a solidão, a culpabilidade, o drama da

comunicação, todo o trágico da interioridade. Mesmo Max Brod, todavia, conta como os

ouvintes eram tomados pelo riso quando Kafka lia O Processo. E também Beckett é difícil ler

sem rir, sem passar de um momento de alegria a um outro momento de alegria. O riso, e não o

significante. O riso-esquizo ou a alegria revolucionária é o que sobressai dos grandes livros,

em vez de angústias de nosso pequeno narcisismo ou terrores de nossa culpabilidade. Pode-se

chamar isso de “cômico do além-do-humano”, ou então “palhaço de Deus”, há sempre uma

alegria indescritível que jorra dos grandes livros, mesmo quando eles falam de coisas feias,

desesperadoras ou terríveis. Todo grande livro opera já a transmutação e faz a saúde de

amanhã. Não se pode deixar de rir quando se embaralham os códigos. Se você colocar o

pensamento em relação com o fora, nascem os momentos de riso dionisíaco, é o pensamento

ao ar livre. Acontece com freqüência a Nietzsche encontrar-se diante de algo que considera

repugnante, ignóbil, de causar vômito. E isto o faz rir, ele faria mais ainda se fosse possível.

Ele diz: mais um esforço, ainda não está nojento o bastante, ou, então, é formidável como isto

é nojento, é uma maravilha, uma obra-prima, uma flor venenosa, enfim, “o homem começa a

tornar-se interessante”. Por exemplo, é assim que Nietzsche considera e trata aquilo que

chama de a má consciência. Então há sempre comentadores hegelianos, comentadores da

interioridade, que não possuem o senso do riso. Eles dizem: vejam, Nietzsche leva a sério a

má consciência, [360] faz dela um momento do devir-espírito da espiritualidade. A respeito

daquilo que Nietzsche faz da espiritualidade, eles passam por cima porque sentem o perigo.

Portanto, vê-se que, se Nietzsche dá direito a contra-sensos legítimos, todos aqueles que se

explicam pelo espírito do sério, pelo espírito do pesado, pelo macaco de Zaratustra, ou seja,

pelo culto da interioridade. O riso em Nietzsche remete sempre ao movimento exterior dos

humores e das ironias, e este movimento é o das intensidades, das quantidades intensivas, tal

Page 8: Pensamento Nômade - Deleuze

como Klossowski e Lyotard o viram: a maneira pela qual há um jogo de intensidades baixas e

intensidades elevadas, umas nas outras, a maneira pela qual uma intensidade baixa pode minar

a mais elevada e mesmo ser tão elevada quanto a mais elevada, e inversamente. É este jogo de

escalas intensivas que comanda as subidas da ironia e as quedas do humor em Nietzsche, e

que se desenvolve como consistência ou qualidade do vivido em sua relação com o exterior.

Um aforismo é uma matéria pura de riso e de alegria. Se não se encontrou aquilo que faz rir

num aforismo, qual distribuição de humores e de ironias, e, do mesmo modo, qual repartição

de intensidades, não se encontrou nada.

Existe ainda um último ponto. Voltemos ao grande texto de A Genealogia, sobre o

Estado e os fundadores de impérios: “Eles chegam como o destino, sem causa, sem

razão”...etc. DLd. Pode-se reconhecer aí os homens da produção dita asiática. Sobre a base de

comunidades rurais primitivas, o déspota constrói sua máquina imperial que sobrecodifica o

todo, com uma burocracia, uma administração que organiza os grandes trabalhos e se apropria

do trabalho excedente (“onde eles aparecem, em pouco tempo há algo de novo, uma

engrenagem soberana, que é viva, em que partes e funções são delimitadas e determinadas em

relação ao conjunto”...). Mas pode-se perguntar também se este texto não reúne duas forças

que se distinguem sob outros aspectos – e que Kafka, por sua vez, distinguia e mesmo opunha

em A Muralha da China. Com efeito, quando se investiga como as comunidades primitivas

segmentárias deram lugar a outras formações de soberania, questão que Nietzsche coloca na

segunda [361] dissertação de A Genealogia, vê-se que se produzem dois fenômenos

estritamente correlatos, mas absolutamente diferentes. É verdade que, no centro, as

comunidades rurais estão presas e fixadas à máquina burocrática do déspota com seus

escribas, seus padres, seus funcionários; mas, na periferia, as comunidades entram noutra

espécie de aventura, numa outra espécie de unidade desta vez nomádica, numa máquina de

guerra nômade, e se descodificam em vez de se deixarem sobrecodificar. Grupos inteiros que

partem, que nomadizam: os arqueólogos nos habituaram a pensar este nomadismo não como

um estado primeiro, mas como uma aventura que sobrevém a grupos sedentários, o apelo do

fora, o movimento. O nômade com sua máquina de guerra opõe-se ao déspota com sua

máquina administrativa; a unidade nomádica extrínseca se opõe à unidade despótica

intrínseca. E, todavia, eles são de tal modo correlatos ou interpenetrados que o problema do

déspota será o de integrar, de interiorizar a máquina de guerra nômade, e o problema do

nômade será o de inventar uma administração do império conquistado. Eles não param de se

opor a ponto mesmo de se confundirem.

DLd La Généalogie de la morale, II, § 17.

Page 9: Pensamento Nômade - Deleuze

O discurso filosófico nasceu da unidade imperial através de muitos avatares, esses

mesmos avatares que nos conduzem das formações imperiais à cidade grega. Mesmo através

da cidade grega, o discurso filosófico permanece numa relação essencial com o déspota ou

com a sombra do déspota, com o imperialismo, com a administração das coisas e das pessoas

(encontraríamos todos os tipos de provas disto no livro de Léo Strauss e de Kojève sobre A

Tirania Dle). O discurso filosófico sempre esteve numa relação essencial com a lei, a

instituição, o contrato, que constituem o problema do Soberano e que atravessam a história

sedentária das formações despóticas às democracias. O “significante” é verdadeiramente o

último avatar filosófico do déspota. Ora, se Nietzsche não pertence à filosofia, é talvez porque

ele é o primeiro a conceber um outro tipo de discurso como uma contrafilosofia. Ou seja, um

discurso antes de tudo nômade, cujos enunciados não seriam produzidos por uma [362]

máquina racional administrativa que tem os filósofos como burocratas da razão pura, mas por

uma máquina de guerra móvel. É talvez neste sentido que Nietzsche anuncia que uma nova

política começa com ele (o que Klossowski denomina o complô contra sua própria classe).

Sabe-se bem que em nossos regimes os nômades são infelizes: não se recua diante de nenhum

meio para fixá-los, eles têm dificuldade para viver. E Nietzsche viveu como um desses

nômades reduzidos à sua própria sombra, indo de pensão em pensão. Mas, de outro lado, o

nômade não é forçosamente alguém que se movimenta: existem viagens num mesmo lugar,

viagens em intensidade, e mesmo historicamente os nômades não são aqueles que se mudam à

maneira dos migrantes; ao contrário, são aqueles que não mudam, e põem-se a nomadizar

para permanecerem no mesmo lugar, escapando dos códigos. Sabe-se bem que o problema

revolucionário, hoje, é o de encontrar uma unidade das lutas pontuais sem recair na

organização despótica e burocrática do partido ou do aparelho de Estado: uma máquina de

guerra que não reproduzisse um aparelho de Estado, uma unidade nomádica em relação com o

Fora, que não reproduzisse a unidade despótica interna. Eis talvez o que é mais profundo em

Nietzsche, a medida de sua ruptura com a filosofia, tal como ela aparece no aforismo: ter feito

do pensamento uma máquina de guerra, ter feito do pensamento uma potência nômade. E

mesmo se a viagem for imóvel, mesmo se for feita num mesmo lugar, imperceptível,

inesperada, subterrânea, devemos perguntar quais são nossos nômades de hoje, que são

realmente os nossos nietzscheanos?

Discussão

DLe L. Strauss, De la tyrannie, seguido de Tyrannie et sagesse, de Kojève, Paris, Gallimard, reedição de 1997.

Page 10: Pensamento Nômade - Deleuze

André Flécheux. – O que eu gostaria de saber é como [Deleuze] pensa fazer a

economia da desconstrução, ou seja, como ele pensa contentar-se com uma leitura nomádica

de cada aforismo, a partir da empiricidade, e como que de [363] fora, o que me parece, de um

ponto de vista heideggeriano, extremamente suspeito. Eu me pergunto se o problema da “já

aí” que constitui a língua, a organização estabelecida, o que você chama de “o déspota”,

permite compreender a escrita de Nietzsche como uma espécie de leitura errática que ela

mesma dependeria de uma escrita errática, enquanto Nietzsche aplica a si mesmo o que ele

denomina uma autocrítica e que as edições atuais o revelam como um excepcional trabalhador

do estilo, para o qual, conseqüentemente, cada aforismo não é um sistema fechado, mas está

implícito em toda uma estrutura de remissões. Este estatuto , em seu pensamento de um fora

sem desconstrução, talvez se ligue ao da energética em Lyotard.

Segunda questão, que se articula ainda aqui com a primeira: numa época em que a

organização estatal, capitalista, enfim, chamem-na como quiserem, lança um desafio que é

finalmente aquilo que Heidegger chama da inspeção pela técnica, o senhor pensa sem rir que

o nomadismo, tal como o senhor o descreve, constitui uma resposta séria?

Gilles Deleuze. – Se compreendo bem, o senhor diz que há motivos para se suspeitar

de mim do ponto de vista heideggeriano. Alegro-me com isto. Quanto ao método de

desconstrução dos textos, vejo bem o que ele é, admiro-o muito, mas ele nada tem que ver

com o meu. Não me apresento, absolutamente, como um comentador de textos. Um texto,

para mim, é apenas uma pequena engrenagem numa prática extratextual. Não se trata de

comentar o texto por meio de um método de desconstrução, ou de um método de prática

textual, ou de outros métodos, trata-se de ver para que isto serve na prática extratextual que

prolonga o texto. O senhor pergunta se acredito na resposta dos nômades. Sim, eu creio.

Genghis Khan, é alguma coisa. Ele vai ressurgir do passado? Não sei, em todo caso, sob outra

forma. Do mesmo modo que o déspota interioriza a máquina de guerra nômade, a sociedade

capitalista não pára de interiorizar uma máquina de guerra revolucionária. Não é na periferia

(pois não há mais periferia) que se formam novos nômades. Eu perguntava de quais nômades,

se necessário imóveis e no mesmo lugar, nossa sociedade é capaz. [364]

André Flécheux: -- Sim, mas o senhor excluiu na sua exposição o que chamava de

interioridade... [364]

Gilles Deleuze: -- O senhor joga com a palavra “interioridade”...

André Flécheux: -- A viagem do dentro?

Gilles Deleuze: -- Eu disse “viagem imóvel”. Não é uma viagem do dentro, é uma

viagem sobre o corpo, se for o caso, sobre corpos coletivos.

Page 11: Pensamento Nômade - Deleuze

Mieke Taat: -- Gilles Deleuze, se eu o compreendi bem, o senhor opõe o riso, o

humor e a ironia à má consciência. O senhor está de acordo que o riso de Kafka, de Beckett,

de Nietzsche não exclui chorar por esses escritores, desde que as lágrimas não sejam as que

jorram de uma fonte interior ou interiorizada, mas simplesmente de uma produção de fluxos

na superfície do corpo?

Gilles Deleuze: -- Certamente, tem razão.

Mieke Taat: -- Ainda uma outra questão. Quando o senhor opõe o humor e a ironia à

má consciência, não os distingue mais um do outro, como fazia em Lógica do sentido, onde

um era de superfície e outro de profundidade. O senhor não teme que a ironia possa estar

perigosamente próxima da má consciência?

Gilles Deleuze: -- Eu mudei. A oposição superfície-profundidade não me preocupa

mais em absoluto. O que me interessa agora são as relações entre o corpo pleno, um corpo

sem órgãos, e os fluxos que fluem.

Mieke Taat: -- Isto não excluiria mais o ressentimento, neste caso?

Gilles Deleuze: -- Oh, sim!

...

Tradução deMilton Nascimento NRT

NRT [Parte da tradução brasileira originalmente publicada em Nietzsche hoje? – Colóquio de Cerisy, SP, Brasiliense, 1985, pp. 56-76].