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NÓMADAS 152 JosØ Augusto PÆdua* PENSAMENTO ILUSTRADO E CR˝TICA DA DESTRUI˙ˆO FLORESTAL NO BRASIL COLONIAL ORIGINAL RECIBIDO: 26-XI-2004 – ACEPTADO: 01-II-2005 PÁGS.: 152-163 * Profesor del Departamento de Historia, Universidad Federal de Río de Janeiro e inves- tigador visitante del Centro de Estudios Brasileros, Universidad de Oxford. E-mail: [email protected] El artículo discute el surgimiento de una crítica sistemática de la destrucción de los bosques en la obra de algunos intelectuales que actuaron en Brasil a finales del siglo XVIII. Esa crítica fundamentada en las nuevas teorías económicas y científicas que surgieron en el contexto de la Ilustración Europea –como la Fisiocracia, la “Economía de la Naturaleza” y la “Teoría del Desecamiento”– condenó las mentalidades y prácticas dominantes en la economía colonial, consideran- do que la devastación de los bosques y de otros recursos naturales era consecuencia de su atraso social y tecnológico. Palabras clave: Brasil, historia ambiental, economía colonial, bosques, Ilustración. O artigo discute o aparecimento de uma crítica sistemática da destruição das florestas na obra de alguns intelectuais que atuaram no Brasil no final do século XVIII. Essa critica, fundamentada nas novas teorias econômicas e cientificas que surgiram no contexto da Ilustração Européia –como a Fisiocracia, a “Economia da Natureza” e a “Teoria do Dessecamento”– condenou as mentalidades e práticas dominantes na economia colonial, considerando que a devastação das florestas e de outros recursos naturais era conseqüência do seu atraso social e tecnológico. Palavras chave: Brasil, história ambiental, economia colonial, florestas, ilustração. The article discuss the appearance of a systematic criticism of forest destruction in the work of some intellectuals that acted in Brazil at the end of the 18th century. These critics, schooled in the new economic and scientific theories that emerge in the context of European Iluminism –like Physiocracy, “Nature’s Economy” and “Desiccation Theory”– condemned the mentalities and practices dominant in the colonial economy, considering that the destruction of forests and other natural resources was a consequence of its social and technological backwardness. Key words: Brasil, environmental history, colonial economy, forests, enlightenment.

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Page 1: PENSAMENTO ILUSTRADO E CR˝TICA DA DESTRUI˙ˆO … · 152 nÓmadas pÁdua, j. a.: p ensamento ilustrado e crÍtica da destruiÇÃo florestal no brasil colonial josØ augusto pÆdua*

NÓMADAS152 PÁDUA, J. A.: PENSAMENTO ILUSTRADO E CRÍTICA DA DESTRUIÇÃO FLORESTAL NO BRASIL COLONIAL

José Augusto Pádua*

PENSAMENTOILUSTRADO E CRÍTICA

DA DESTRUIÇÃOFLORESTAL NO BRASIL

COLONIAL

ORIGINAL RECIBIDO: 26-XI-2004 – ACEPTADO: 01-II-2005

PÁGS.: 152-163

* Profesor del Departamento de Historia, Universidad Federal de Río de Janeiro e inves-tigador visitante del Centro de Estudios Brasileros, Universidad de Oxford. E-mail:[email protected]

El artículo discute el surgimiento de una crítica sistemática de la destrucción de los bosques en la obra de algunosintelectuales que actuaron en Brasil a finales del siglo XVIII. Esa crítica fundamentada en las nuevas teorías económicasy científicas que surgieron en el contexto de la Ilustración Europea –como la Fisiocracia, la “Economía de la Naturaleza”y la “Teoría del Desecamiento”– condenó las mentalidades y prácticas dominantes en la economía colonial, consideran-do que la devastación de los bosques y de otros recursos naturales era consecuencia de su atraso social y tecnológico.

Palabras clave: Brasil, historia ambiental, economía colonial, bosques, Ilustración.

O artigo discute o aparecimento de uma crítica sistemática da destruição das florestas na obra de alguns intelectuais queatuaram no Brasil no final do século XVIII. Essa critica, fundamentada nas novas teorias econômicas e cientificas quesurgiram no contexto da Ilustração Européia –como a Fisiocracia, a “Economia da Natureza” e a “Teoria do Dessecamento”–condenou as mentalidades e práticas dominantes na economia colonial, considerando que a devastação das florestas e deoutros recursos naturais era conseqüência do seu atraso social e tecnológico.

Palavras chave: Brasil, história ambiental, economia colonial, florestas, ilustração.

The article discuss the appearance of a systematic criticism of forest destruction in the work of some intellectuals thatacted in Brazil at the end of the 18th century. These critics, schooled in the new economic and scientific theories thatemerge in the context of European Iluminism –like Physiocracy, “Nature’s Economy” and “Desiccation Theory”–condemned the mentalities and practices dominant in the colonial economy, considering that the destruction of forestsand other natural resources was a consequence of its social and technological backwardness.

Key words: Brasil, environmental history, colonial economy, forests, enlightenment.

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153NÓMADASNO. 22. ABRIL 2005. UNIVERSIDAD CENTRAL – COLOMBIA

Já é tempo de seatentar nestaspreciosas matas

Em 1799, na sua “Memória so-bre a Capitania de Minas Gerais”,o mineralogista José Vieira Coutoprocurou apontar possíveis solu-ções para a crise econômica vivi-da por aquela região do sudestebrasileiro, tendo emvista a decadência donotável ciclo de ex-tração de ouro e dia-mantes que marcouprofundamente a suapaisagem e vida soci-al no século anterior.Em determinado mo-mento de sua refle-xão, podemos ler asseguintes palavras:“Já é tempo de seatentar nestas pre-ciosas matas, nestasamenas selvas, que ocultivador do Brasil,com o machado emuma mão e o tiçãoem outra, ameaça-asde total incêndio edesolação. Uma agri-cultura bárbara, aomesmo tempo muitodispendiosa, tem sidoa causa deste geralabrasamento. O agri-cultor olha ao redorde si para duas oumais léguas de matascomo para um nada, e ainda nãoas tem bem reduzido a cinzas jáestende ao longe a vista para le-var a destruição a outras partes.Não conserva apego nem amor aoterritório que cultiva, pois conhe-ce mui bem que ele talvez nãochegará a seus filhos” (Couto,1848 [1799]: 319).

É provável que a primeirareação do leitor contemporâneo di-ante deste documento seja de pro-funda surpresa. Agora que a MataAtlântica foi quase totalmentedestruída, restando apenas cerca de7% da sua cobertura original, gran-de parte da opinião pública brasi-leira considera que “já é tempo dese atentar nestas preciosas matas”.

Poucos imaginam, no entanto, quehá mais de dois séculos algumasvozes estavam se levantando paradefender esta mesma necessidade.

Não se trata, por certo, de es-tabelecer uma identidade simples eabstrata entre o discurso ambien-talista contemporâneo e as preocu-

pações de um naturalista ilustradosetecentista com o destino das flo-restas. Não reconhecer as enormesdiferenças de contexto cultural, ide-ológico e sócio-econômico entre ofinal do século XVIII e o início doséculo XXI implicaria em um ina-ceitável anacronismo. Mas seriaigualmente errôneo, ao meu ver,não investigar os possíveis víncu-

los históricos entreambas as realidades.

Em primeiro lugar,é preciso considerarque se está abordandoo processo de forma-ção de uma sociedadee de um território que,não obstante as impor-tantes transformaçõese rupturas sofridas aolongo do tempo, apre-senta um grau conside-rável de continuidadegeográfica e sociológi-ca. Mais ainda, pode-se argumentar que noprocesso de formaçãoda economia colonialno Brasil constituiu-seum certo modelo deocupação do território,e de relacionamentocom as grandes flores-tas existentes na suapaisagem, que emgrande parte continuaa ser atualizado no pre-sente. Algumas das prá-

ticas que observamos nas atuaisfronteiras de destruição florestal naAmazônia –como é o caso da pró-pria tecnologia das queimadas– re-plicam e atualizam práticas quehistoriografia ambiental vem recons-tituindo através do estudo das anti-gas fronteiras de destruição florestalna Mata Atlântica (Dean, 1998).

Río Magdalena; puente entre San Agustín y José de Isnos.El Río Grande de la Magdalena, E. Acevedo Latorre

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Em segundo lugar, no que serefere à história das idéias, existeuma importante pergunta sobre agênese da crítica da destruição domundo natural, e mais especifica-mente das florestas, no universo damodernidade ocidental. A historio-grafia mais recente parece estar in-dicando que precisamos associaressa gênese com a dinâmica cultu-ral da modernidade em um sentidomais amplo do que antes se supu-nha. Ela não está relacionada ape-nas com as conseqüências dagrande transformação urbano-in-dustrial, que começou na Europa nofinal do século XVIII, mas tambémcom uma série de outros processosmacro-históricos que, em parte, fo-ram anteriores. Entre estes proces-sos, pode-se destacar a expansãocolonial européia e a incorporaçãode vastas regiões do planeta a umaeconomia-mundo sob a sua domi-nância, inclusive biomas e ecossis-temas que não faziam parte da sua

experiência histórica anterior. Umoutro marco essencial, indissociáveldessa expansão, foi a consolidaçãoda ciência como um modo privile-giado de entendimento do mundo.

Tudo isso configurou uma cenainternacional profundamentetransformada em suas estruturas epaisagens, inclusive no aspectosubjetivo. A implantação de es-quemas massivos de exploração domundo natural nas Américas, naÁsia e na África, em benefício daeconomia européia, tiveram umimpacto ecológico que só agoracomeça a ser avaliado em toda asua extensão (Crosby, 1986; Tur-ner, 1986). Por outro lado, o nas-cimento da proposta de umaciência natural e de uma geografiauniversais –cuja realização, ou pelomenos a pretensão, não pode serdissociada da expansão planetáriados europeus, em termos culturaise econômicos– facilitou a identi-

ficação reflexiva desses impactose, em alguns pensadores, alimen-tou o surgimento de uma posturacrítica diante dos mesmos.

É importante, nesse ponto, es-tabelecer uma conexão entre o tex-to de Vieira Couto, e de outrosautores brasileiros que mencionareiadiante, e as investigações inovado-ras que vem sendo realizados porRichard Grove, sobre as origens dacrítica ambiental moderna. Segun-do esses trabalhos, elaborados combase em uma vasta documentaçãoprimária, o início de uma percepçãomais intensa e abrangente da pro-blemática ambiental, especialmen-te a partir do século XVIII, não sedeu propriamente no contexto eu-ropeu, mas sim no das colôniastropicais européias. Pois, Grove afir-mou que em certas regiões, como ailha Mauritius (no Oceano Índico)e algumas ilhas do Caribe, assimcomo, mais tarde, em partes da Ín-

Vapor porel río Magdalena

hacia el puerto deLa Dorada.

El Río Grandede la Magdalena,

E. Acevedo Latorre

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dia e da África a percepção dadestrutividade ambiental adquiriuforça entre cientistas e administra-dores coloniais dos séculos XVIII eXIX. A brutalidade e rapidez dosprocessos de transformação econô-mica da natureza nessas regiões pro-duziram uma degradação ambientalmais evidente do que na Europa,onde a modificação da paisagem, eo próprio desflorestamento, estariaocorrendo de maneira mais diluída,se bem que não homogênea, ao lon-go de vários milênios. Tal visibilida-de, além disso, teria sido facilitadapelo contraste entre a velocidade dadinâmica destrutiva e o ambientenatural dos trópicos – complexo,frágil e pouco familiar aos olhos doseuropeus (Grove,1995).

A percepção destas paisagens dedegradação no mundo colonial, porcerto, não se deu de maneira auto-mática e “objetiva”, requerendotambém uma disposição subjetiva,

de uma fundamentação teórica parao olhar crítico diante da destruiçãodo mundo natural. Esta fundamen-tação, segundo Grove, estaria re-lacionada com certas correntesintelectuais emergentes na culturaeuropéia Ilustrada que valorizarame defenderam a unidade e a impor-tância sistêmica dos diferentes ele-mentos da natureza. Foi o caso dadoutrina econômica Fisiocrática eda idéia do “Sistema da Natureza”de Lieneu, Buffon e Humboldt.

O caso brasileiro, no entanto,apresenta elementos próprios den-tro deste quadro comparativo. Nosexemplos analisados por Grove, aproblemática ambiental era pensa-da e enfrentada por intelectuais eadministradores oriundos das me-trópoles colonizadoras, geralmentefuncionários das próprias compa-nhias de comércio e dos governoscoloniais. Sua intenção, portanto,era buscar uma maior perfeição e

permanência para o próprio empre-endimento colonial. No Brasil, aocontrário, ela foi discutida por in-divíduos nascidos no país, membrosda elite política e intelectual localque, apesar de educados na Euro-pa, queriam um desenvolvimentoautônomo para a região de ondeprovinham. Alguns destes persona-gens, inclusive, utilizaram o temada destruição ambiental como ar-gumento de crítica ao colonialismoe de defesa da independência. Amotivação política, desta forma, foibastante diversa, apesar das influ-ências teóricas serem semelhantesàquelas detectadas por Grove emoutros espaços coloniais (Pádua,2002).

De toda forma, o texto citadono inicio do presente artigo forne-ce elementos importantes para pen-sar no nascimento da crítica dadestruição do mundo natural nahistória do pensamento brasileiro.

Vapor ascendiendopor el río.El Río Grandede la Magdalena,E. Acevedo Latorre

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O aparecimento de uma reflexãosistemática sobre a necessidade deconservar as florestas existentes noterritório do país, por exemplo,data exatamente do final do séculoXVIII, quando alguns intelectuais,com base nas novas teorias difun-didas na Europa sobre a importân-cia dos bosques para a saúdebiológica e climática do território–e conseqüentemente da sua capa-cidade de produção econômica–começaram a condenar duramentea devastação provocada pela eco-nomia colonial. Ao dizer que “já étempo de se atentar nestas precio-sas matas”, o mineralogista de Mi-nas Gerais estava diferenciando-secriticamente de um passado no qualelas haviam sido tratadas como sefossem um “nada”. O objeto maisdireto de condenação era a agricul-tura de corte e queima, que viviada fertilidade provisória gerada pe-las cinzas das árvores calcinadas.Um segundo foco de crítica, pro-fundamente relacionado com o pri-meiro, foi o caráter instável enômade desta agricultura, já que odomínio do método das queimadas

forçava um avanço descontroladoda fronteira de destruição florestal.Como os terrenos abertos pelo fogodegradavam-se após alguns anos deuso, tendo que ser abandonados, ocolonizador não desenvolvia “ape-go” e “amor” pelo território culti-vado. Seu olhar estava semprevoltado para o horizonte, direcio-nado pelo movimento de “levar adestruição a outras partes”.

Para os intelectuais que come-çaram a criticar esta dinâmica,como foi o caso de Vieira Couto, opadrão predatório de ocupação daterra era uma herança do passadocolonial. Ele fazia parte do arcaís-mo social, econômico e tecnoló-gico que caracterizava a sociedadebrasileira. A continua aniquilaçãodas “produções naturais” do terri-tório, como então se dizia, não eraentendida como um “preço do pro-gresso”, ao estilo da visão hoje do-minante, mas sim como um “preçodo atraso”, uma conseqüência dacontinuidade de práticas rotineirasestabelecidas nos primórdios dacolonização.

E assim vãocontinuando nadestruição dos bosques

Este tipo de percepção críticarepresentava uma novidade mar-cante no contexto do Brasil colo-nial. O tema das florestas, porcerto, não era novo. A convivên-cia com a Mata Atlântica, especi-almente, marcou a formação daAmérica Portuguesa desde os seusprimeiros momentos. No começodo século XVI, quando os europeuschegaram pela primeira vez ao atu-al território brasileiro, o tamanhoda massa verde que cobria o litoralatlântico do nordeste ao sul do país,podendo penetrar de 100 a 500 qui-lômetros no interior, devia estar emtorno de 130 milhões de hectares.A floresta era onipresente. O olharinaugural da Carta de Pero Vaz deCaminha, em 1500, já estabeleciaque “a estender os olhos, não podí-amos ver senão terra e arvoredos”(Caminha, 1968 [1500]: 93).

O espanto inicial, porém, trans-formou-se posteriormente em uma

Problemas deerosión en el río

Magdalena(cercanías de

Honda). El RíoGrande de la

Magdalena, E.Acevedo Latorre

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avaliação bastante ambígua do sig-nificado desta floresta, ou maisacertadamente deste mosaico deflorestas tropicais litorâneas. É ver-dade que as riquezas da natureza tro-pical foram saudadas por escritoresleigos e eclesiásticos ao longo detodo o período colonial. Mas namaioria dos casos este discursoelogioso não se dirigiu à totalidadeda Mata Atlântica, preferindo des-tacar alguns elementos marcantesda sua fauna e flora. Papagaios, ma-cacos, cajus e maracujás, para nãofalar de árvores isoladas como oPau-Brasil, receberam mais atençãodo que a floresta como um todo.Mesmo nos casos de leitura positi-va do conjunto da paisagem, a pre-sença dos bons ares e das águaspuras receberam primazia em rela-ção às matas. Até pelo fato de co-rresponderem mais diretamente aossinais de saúde e perfeição presentesnos relatos bíblicos e na literaturamédica da antiguidade mediterrâ-nica, que tanto influenciaram os es-critores pós-renascentistas europeusnos trópicos coloniais (Holanda,1959 e Assunção, 2001).

Esta tendência, por certo, nãopode ser considerada absoluta. Ojesuíta Simão de Vasconcellos, porexemplo, destacou entre os ele-mentos que indicavam a naturezaparadisíaca do território brasileiroa presença de “matas imensas, gló-ria e coroa de todo o arvoredo douniverso” (Vasconcellos, 1977[1668]: 79). Mas o fato é que a vi-são geral da Mata Atlântica noBrasil colônia, especialmente nocotidiano da produção e do assen-tamento, aproximou-se bem maisda imagem difundida em 1711 poroutro jesuíta, André João Antonil,em seu “Cultura e Opulência doBrasil por suas Drogas e Minas”.

Na obra de Antonil, ao menos in-diretamente, a floresta não foi vis-ta como uma glória, mas sim comoum grande estorvo. Isto fica clarona seguinte passagem, que apre-sentou a fórmula mais sintética esugestiva da agricultura predató-ria vigente no período colonial:“feita a escolha da melhor terrapara a cana, roça-se, queima-se,alimpa-se, tirando-lhe tudo o quepodia servir de obstáculo” (Anto-nil, 1976 [1711]: 112). A MataAtlântica, em toda a sua diversi-dade, não era mais do que um obs-táculo para o avanço da cana.

Este tipo de leitura refletiu apercepção dos agentes da econo-mia colonial, para quem a presen-ça da floresta, efetivamente, eraum problema prático do dia a dia.E mais ainda, para quem a abertu-ra continua da fronteira, atravésdas queimadas, representava amaneira mais fácil e barata deavançar na produção agrícola. Épreciso reconhecer, aliás, que talvisão era perfeitamente racionaldo ponto de vista do imediatismoeconômico, especialmente se le-varmos em conta que a MataAtlântica aparecia, aos olhos doscolonizadores, como um oceanoverde sem limites. O mito da natu-reza inesgotável, neste sentido, fa-voreceu a consolidação de métodosdescuidados e extensivos de produ-ção rural. O próprio Antonil adotoueste ponto de vista, ao reconhecer,por um lado, que as fornalhas dosengenhos eram “bocas verdadeira-mente tragadoras de matos”, maspor outro que “só o Brasil, com aimensidade de matos que tem, po-dia fartar, como fartou por tantosanos, e fartará nos tempos vindou-ros a quantas fornalhas quanto sãoas que contam” (Ibid: 115).

O nascimento de uma críticasistemática deste tipo de visão re-quereu o aparecimento de novosenfoques teóricos, que valorizas-sem a presença das florestas napaisagem e, ao mesmo tempo, re-conhecessem a possibilidade doseu esgotamento. No mundo luso-brasileiro, este estilo de pensamen-to possui uma origem bastanteprecisa. Em 1772, a Universidadede Coimbra passou por uma im-portante reforma, que teve por ob-jetivo aproximá-la das novascorrentes de filosofia natural e eco-nomia política que estavam empleno desenvolvimento na Euro-pa. Para participar desta reforma,o naturalista italiano DomenicoVandelli estabeleceu-se em Portu-gal, onde difundiu a “economia danatureza” de Lineu, Buffon e Duha-mel de Monceau, associada às te-ses da escola econômica Fisiocratasobre a valorização dos recursosprimários. Para setores importan-tes da elite política portuguesa,este esforço de reforma acadêmi-ca tinha um claro sentido econô-mico. Um melhor conhecimentoda natureza, especialmente nas ri-cas regiões coloniais, serviria paragerar avanços produtivos, inclusi-ve com a descoberta de novas téc-nicas que promovessem maioreficiência e menos destrutividadeno uso dos recursos naturais.

O contexto científico e políti-co da época, efetivamente, era fa-vorável às demandas por umarelação mais cuidadosa com as flo-restas. A chamada “teoria dodessecamento”, desenvolvida nosséculos XVII e XVIII por acadê-micos ingleses e franceses, relaci-onava a destruição da vegetaçãonativa com a redução da umida-de, das chuvas e dos mananciais

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de água, gerando prejuízos concre-tos para a economia rural (Grove,1995: 153-165). As novas pesqui-sas sobre agronomia, por outrolado, defendiam a importância daconservação dos bosques comomeio para evitar a erosão e empo-brecimento dos solos. Ao passoque as novas técnicas de silvicul-tura estavam demonstrando queera possível extrair madeiras de for-ma inteligente e não destrutiva, pre-servando a base florestal através domanejo e do reflorestamento. Esteúltimo ponto, aliás, tornou-se mui-to sensível na política européia dofinal do XVIII. Com o avanço dosconflitos militares que seguiram àRevolução Francesa, as diferentespotências européias preocuparam-se com a garantia do suprimentode madeira para os seus navios deguerra, estabelecendo políticas elegislações que buscavam conter adestruição das matas nos espaçosmetropolitanos e coloniais.

Foi neste contexto histórico queum grupo de estudantes brasileiros,do qual fazia parte José VieiraCouto, aproximou-se de Vandellie, com base no novo instrumentalteórico que estava emergindo, co-meçou a formular uma série de crí-ticas bastante duras ao caráterrudimentar e ambientalmentedestrutivo da economia colonial.Um tema que se tornou objeto dedebates regulares na Universidadede Coimbra e na Academia Realdas Ciências de Lisboa, criada em1779. É importante ter em menteque as críticas formuladas por estegrupo de intelectuais estavam fir-memente embasadas no ideáriocientificista, antropocêntrico e eco-nomicamente progressista do Ilumi-nismo e, mais especificamente, dochamado “Iluminismo Luso-Brasi-leiro”. A natureza não era defen-dida pelo seu valor estético ouespiritual, ao estilo da tradição ro-mântica, mas sim por seu valor po-

lítico e econômico. A destruição edesperdício das produções naturaiseram condenados como um crimehistórico, na medida em que priva-va o país de recursos essenciais parao seu progresso futuro. É interessan-te observar, aliás, que este enfoquedominou a crítica ambiental brasi-leira até o final do século XIX(Pádua, 2002). Ao contrário dospaíses como os Estados Unidos e aInglaterra –onde intelectuais liga-dos à cultura romântica formularamcriticas concretas, ou mesmo inspi-raram movimentos, em favor daconservação do mundo natural(Fox, 1981 e Wiener, 1981)– osartistas e escritores ligados ao ro-mantismo brasileiro, que tanto sevaleram da natureza como recursoestético, muito raramente se posi-cionaram contra a destruiçãoambiental concreta que estavaocorrendo no Brasil. Quem assumiuesta tarefa crítica, de maneira bas-tante firme e ousada, foi uma linha-

Invierno a orillasdel Magdalena.

“La tala de árbolesde las riberas acabó

con la navegacióny multiplicó

las inundaciones”El Río Grande de la

Magdalena,E. Acevedo Latorre

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gem de intelectuais ilustrados, paraos quais o mundo natural era vistocomo uma riqueza objetiva quedeveria ser racionalmente utilizadae conservada.

Em 1789, por exemplo, Dome-nico Vandelli descreveu da seguin-te forma o caráter predatório daagricultura colonial brasileira (lem-brando que ele nunca esteve noBrasil, que conhecia apenas atravésdas observações de seus alunos):“vai-se estendendo a agriculturanas bordas dos rios no interior dopaís, mas isso com um método quecom o tempo será muito prejudici-al. Porque consiste em queimarantiqüíssimos bosques cujas madei-ras, pela facilidade de transporte pe-los rios, seriam muito úteis para aconstrução de navios, ou para a tin-turaria, ou para os marceneiros.Queimados estes bosques, semeiampor dois ou três anos, enquantodura a fertilidade produzida pelas

cinzas, a qual diminuída deixaminculto este terreno e queimamoutros bosques. E assim vão conti-nuando na destruição dos bosquesnas vizinhanças dos rios” (Vandelli,1990 [1789a]: 131). Em outro tex-to, publicado no mesmo ano, eleadicionou um outro elemento im-portante, que hoje talvez chamarí-amos de “perda de biodiversidade”:“entre as plantas das conquistasexistem muitas desconhecidas dosbotânicos, principalmente árvoresde muita utilidade, ou para a cons-trução de navios, casas e trastes, oupara a tinturaria. Porém no Brasilmuitas delas com o tempo se farãoraras e dificultoso o seu transpor-te” (Vandelli, 1990 [1789b]: 147).

Como se observa, os argumen-tos em favor da defesa das mataseram essencialmente pragmáticos.A queima indiscriminada das árvo-res estava inviabilizando o seu usoeconômico mais amplo, além de

abortar a continuidade da investi-gação científica sobre os seus usospotenciais. Vandelli começou a de-nunciar, por outro lado, a maneirapela qual esta conjugação de tec-nologias predatórias e relações soci-ais atrasadas, principalmente avigência do escravismo, estavam im-pedindo o real progresso da colônia:“o trabalho de toda a agricultura éencarregado aos escravos pretos,não havendo branco algum que sedigne ser lavrador, principal causaporque no Brasil nunca poderá tergrande aumento a agricultura”(Vandelli, 1990 [1789a]: 130).

Os melhoramentosda economia rústica

Com o retorno dos ex-alunosbrasileiros de Vandelli para diferen-tes regiões do país, a apresentaçãoliterária desta crítica ganhou umteor mais dramático, embebido da

Problemas de laerosión por la talade bosques en el ríoMagdalena. El RíoGrande de laMagdalena, E.Acevedo Latorre

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experiência concreta de reencon-tro com a rude realidade da terranatal. Este ponto merece ser ressal-tado. Os críticos da destruição flo-restal no final do Brasil colônia nãopodem ser entendidos apenas atra-vés das correntes teóricas por elesestudadas durante seus anos de for-mação universitária na Europa. Avivencia concreta da paisagem e daspráticas produtivas vigentes no Bra-sil, marcadas pelo constante e inten-so desflorestamento, propiciou umarica diversidade de experiências eoportunidades de elaboração críti-ca. Em todas as situações, porém,eles se consideravam portadores deum saber cientifico ilustrado, quetinha por missão racionalizar e mo-dernizar a economia brasileira. Apalavra “ignorância” vai aparecerconstantemente nos escritos destesautores, confrontando o saber dosilustrados com o tosco empirismodas práticas produtivas coloniais. Éimportante lembrar, neste sentido,que apesar do debate sobre a inde-pendência do Brasil ser ainda mar-ginal, ganhando mais força apenasna segunda década do século XIX,a tese de que o país precisava deuma dinâmica muito mais intensade progresso e autonomia, mantidaa união política com Portugal, eraconsensual na visão daquele grupo.A vigência da rotina destrutiva re-presentava um grande obstáculopara o avanço deste projeto.

Em outra parte da “Memória”já mencionada, por exemplo, VieiraCouto procurou argumentar que adestruição das matas estava impe-dindo o renascimento da minera-ção em sua capitania. O esperadodesenvolvimento da fundição deferro, que necessitava de madeirapara construção, carvão e lenha, es-tava tornando-se inviável pelo

distanciamento das reservas flores-tais disponíveis. O autor havia ob-servado “camadas de excelenteferro” que “jamais virão a ser úteisa ninguém pela distância da lenha”.Sua proposta emergencial, diantedeste quadro, era proibir a derru-bada da totalidade dos bosques nosarredores dos povoados e da meta-de dos que estivessem em lugaresdistantes (Couto, 1848 [1799]:320).

Escrevendo na mesma MinasGerais de 1799, José Gregório deMoraes Navarro, em seu “Discursosobre o Melhoramento da Econo-mia Rústica no Brasil”, chamavaatenção para outra grave conseqü-ência do desmatamento. Segundoo testemunho do autor, fazendas epovoações estavam sendo abando-nadas por conta da degradaçãoambiental (um tema ainda muitopouco estudado pela historiografiabrasileira). Vários dos assentamen-tos criados pelos colonizadores ha-viam-se transformado em “corposdesanimados”, já que os “lavrado-res circunvizinhos, que por meio daagricultura lhes forneciam os gêne-ros de primeira necessidade, depoisde reduzirem a cinza todas as árvo-res, depois de privarem a terra dasua mais vigorosa substância, a dei-xaram coberta de sapé e samam-baia, e abandonando as suas casascom todos os seus engenhos, ofi-cinas e abegoarias, se foram esta-belecer em novos terrenos”. Asolução para este problema, na vi-são de Navarro, passava por umarenovação tecnológica da econo-mia rural centrada em três medidas:a introdução do arado, para recu-perar o solo abandonado nos arre-dores das povoações e conter oavanço da fronteira na direção dasflorestas; a reforma das fornalhas,

para reduzir o desperdício de lenha;e a conservação das matas, com oestabelecimento de reservas flores-tais e o incentivo ao plantio de ár-vores (Navarro, 1799: 11).

Dez anos antes, escrevendo deIlhéus, na Bahia, Manuel Ferreirada Câmara Bittencourt e Sá falavade um país “pela maior parte aindacoberto de espessas matas, que seushabitantes procuram diariamentedestruir, só com a pequena utilida-de de uma até quatro plantações,sem contudo aproveitarem as pre-ciosas madeiras de construção, tin-turaria e machetaria que elascontêm”. Com a queima permanen-te das árvores, somado ao fato deque “ainda não consta que se te-nha plantado um só pé das neces-sárias à construção e à combustãodiária”, a perspectiva era que “emum dado tempo vir-se-ão a consu-mir todas as preciosas espécies demadeiras que possuímos”. O autordefendia a necessidade de uma in-tervenção política mais firme paraenfrentar a destruição de tantos re-cursos úteis e valiosos: “creio queinteressará muito ao estado expe-dir não ordens meramente, porquealgumas já as tem expedido, se bemque sem proveito, mas ministrosque vigiem e regulem o corte dasmadeiras indistintamente, obrigan-do os proprietários dos terrenosmarítimos a conservar ilesas as deconstrução. E também obrigar aplantá-las e reproduzi-las, para des-te modo terem um número deter-minado das ditas espécies” (Sá,1990 [1789]: 258-259)

Anos mais tarde, o governoportuguês tentou acatar este con-selho. Alguns personagens da elitepolítica metropolitana, especial-mente Rodrigo de Sousa Coutinho,

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ministro da Marinha e do Ultramarentre 1796 e 1801, compartilha-vam o debate ilustrado sobre a ne-cessidade modernizar as práticasprodutivas e evitar a destruição dasflorestas brasileiras. Em 1800, atra-vés de uma carta escrita para o pró-prio Ferreira da Câmara –quandoeste último viajou ao Brasil paracuidar dos negócios da sua famíliae, anos depois, assumir a posição deIntendente Geral das Minas e Dia-mantes em Minas Gerais e Serro doFrio– o ministro recomendou queseu protegido tivesse sempre pre-sente, como “princípio de eternaverdade”, o fato de que “Minas eBosques necessitam de ser reguladospor princípios científicos, em que seache calculada a sua utilidade ge-ral, e não abandonados aos interes-ses dos particulares que, nestes casos,e só neles, podem contrariar a pú-blica utilidade, formando uma no-tável exceção aos princípios daeconomia política” (Coutinho,

1800). Ou seja, a tese de AdamSmith, no sentido de que a promo-ção dos interesses particulares, pro-movia também o interesse coletivo–que ganhava força teórica e polí-tica na Europa–, possuía uma claraexceção no caso da extração dosrecursos minerais e florestais, quedeviam ser regulados pelo poderpúblico, em conformidade com nor-mas científicas que evitassem a suadestruição.

Entre 1797 e 1799, por inicia-tiva de Sousa Coutinho, a coroaportuguesa enviou cartas régiaspara os governadores de algumascapitanias brasileiras, estabelecen-do normas para o uso das florestaslitorâneas. Este tipo de iniciativanão era totalmente inédita. Desdeo século XVII, regimentos e deter-minações haviam sido enviados nosentido de regular a extração flo-restal e, principalmente, garantir osuprimento de maneiras nobres para

os usos do estado (gerando aexpressão “madeiras de lei”). A le-gislação promovida por SousaCoutinho, no entanto, possuía umaabrangência e grau de detalhamentobem mais profundo. Ela visava “to-mar todas as precauções para a con-servação das matas no estado doBrasil”, evitando que as mesmas “searruínem e destruam”. O alvo prin-cipal das cartas, assinadas pelaRainha, era “a indiscreta e desor-denada ambição dos habitantes,que com o pretexto das suas lavou-ras tem assolado e destruído preci-osas matas a ferro e fogo”. Asmedidas concretas a serem toma-das incluíam a determinação deconsiderar propriedade exclusivada coroa todas as matas e arvore-dos localizados ao longo da costamarítima ou nas margens dos riosnavegáveis que desembocassem nomar. Essas áreas não poderiam serdoadas como sesmarias, e aquelasque já o haviam sido deveriam ser

Paraleloal río Magdalenase abren “comunicacionesal Atlántico” a travésde la selva (el Carare,Santander). El Río Grandede la Magdalena,E. Acevedo Latorre

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retomadas pela coroa, indenizando-se os proprietários com terras nointerior. Além disso, desde o mo-mento da promulgação das cartas,os proprietários ficavam obrigadosa conservar as madeiras reais, de-vendo os “incendiários e destruido-res das matas” sofrer severas penas(Souza, 1934: 23)

Para garantir o cumprimentodestas medidas na região de Ilhéus,considerada estratégica pela quali-dade das suas matas e proximidadecom os estaleiros de Salvador,Sousa Coutinho designou um mem-bro proeminente da comunidade deintelectuais ilustrados luso-brasilei-ros, o jurista baiano Baltasar daSilva Lisboa, que foi nomeado“ouvidor e juiz conservador dasmatas da Comarca de Ilhéus”. Aochegar na região em 1797, comgrande disposição intelectual e po-lítica, ele procurou estabelecer áre-as de reserva florestal, fiscalizardesmatamentos e organizar de ma-neira mais cuidadosa as atividadesde extração direta de madeira parao estado português (os chamados“Cortes Reais”). Tais procedimen-tos lhe valeram uma dura oposiçãopor parte de agentes da economialocal, especialmente dos planta-dores de mandioca e cortadores demadeira. O governador da Bahia,Fernando José de Portugal, diantedas reclamações, inclusive por par-te de Câmaras Municipais, vacilouno apoio ao funcionário da coroa.O governador temia que as me-didas de conservação florestal pre-judicassem o abastecimento defarinha de mandioca em Salvador,gerando carestia e instabilidadepolítica. Silva Lisboa definiu a si-tuação como sendo de “incertezados meios de conservar as matas,querendo-se ao mesmo tempo que

se fizessem derrubadas e queimadaspara a plantação da mandioca”.

Ao argumentar contra os inte-resses locais, que queriam barrar oestabelecimento das medidas deproteção florestal, o juiz conserva-dor defendeu com eloqüência a pri-mazia do interesse público sobre osinteresses particulares. Segundoele, o estado possuía o direito, emnome do bem geral, de “firmar umaimpenetrável barreira à ambiçãoindiscreta dos colonos, que nãoqueriam cultivar sem destruir”. Estepoder derivava, inclusive, de anti-gas leis portuguesas, como o “Re-gimento do Monteiro-Mor” de1605, que estabeleciam o controleda coroa sobre os bosques a fim depreservar a fauna e a flora. Ele tam-bém deveria espelhar a experiên-cia dos outros países europeus,onde “os homens mais inteligentese os governos mais iluminados” es-tavam decretando a conservaçãodos bosques para garantir a segu-rança militar e política.

O eixo das críticas de Silva Lis-boa dirigia-se aos cortadores, quesempre lucraram com “as madeirasque tiravam das matas dos índios eparticulares” e que não aceitavamprivar-se “das vantagens que suaambição e interesses prometiam”.E também para os proprietários lo-cais, através da reflexão que se opaís continuasse aceitando a agri-cultura por eles promovida, ba-seada “na derrubada das matasgrossas”, ficaria para sempre “emestado análogo ao dos povos nôma-des” (Lisboa, 1800). Apesar da elo-qüência dos seus argumentos, noentanto, os esforços do magistradonão foram bem sucedidos. Com asaída de Sousa Coutinho do Minis-tério, em 1801, ele perdeu a sua

principal base de apoio político,tendo que reduzir radicalmente aintensidade das suas propostasconservacionistas.

A história da defesa das flores-tas no Brasil colonial, no entanto,não terminou com este episódio.Neste artigo mencionamos apenasum número limitado de personagense situações do final do século XVIII,que permitem vislumbrar a riquezado debate. Ao longo do século XIX,as vozes contrárias à destruição dasflorestas, por sua vez, continuarama se manifestar de múltiplas ma-neiras. Em um trabalho maiscompleto, no livro “Um Sopro deDestruição”, analisei a obra de cer-ca de 50 autores brasileiros que, dofinal do século XVIII ao final séculoXIX, no contexto da crise da ordemcolonial e da difícil construção deuma ordem pós-colonial, criticaramduramente o desflorestamento, aerosão dos solos, a degradação cli-mática, a extinção de espécies eoutros elementos que costumamosassociar à agenda ambiental con-temporânea (Pádua, 2002). Os es-critos destes autores brasileiros, quecertamente possuem equivalentesem diferentes países latino-america-nos, servem como documento paradiversos tipos de investigação his-tórica. Eles são importantes, porexemplo, como fonte de informaçãosobre a evolução dos problemasambientais concretos em diferentesregiões do país. No sentido maisamplo da história das idéias, no en-tanto, eles constituem importantematerial de análise para um melhorentendimento do lugar do Brasil, eda América Latina, na formação deuma sensibilidade crítica sobre adestruição ambiental, e mais espe-cificamente florestal, no mundomoderno.

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As constantes trocas de infor-mação entre os eruditos e as aca-demias de ciências da Europa e deoutras regiões, na dinâmica de for-mação de uma ciência com preten-sões universais, configuraram umlugar privilegiado para estes desen-volvimentos. O trabalho dos inte-lectuais que atuavam na periferiacolonial e pós-colonial, nestecontexto, adquiriu uma relevânciaconsiderável e, até mesmo, umapreeminência perceptiva (se acei-tarmos as teses de Grove).

É verdade que outros analistas,trabalhando com premissas diferen-tes das de Grove, têm argumentadoque as origens da crítica ambientalnão foram necessariamente coloni-ais, já que ela também vinha se de-senvolvendo na própria Europadesde o século XVII. A necessidadede conservar as florestas como es-toques de madeira para as necessi-dades das potencias européias,inclusive no plano bélico, e consta-tação do impacto destrutivo da açãohumana sobre alguns espaços com-plexos daquela região, especialmen-te a cadeia dos Alpes, vêm sendoapontados como momentos impor-tantes na formação dessa crítica(Glacken, 1967 e Freeman, 1994).

A questão essencial, no entan-to, além da polêmica algo sectáriasobre as origens coloniais ou euro-péias da critica à destruição am-biental –até porque as trocasintelectuais foram tão regulares queimpossibilitam o estabelecimentode uma fronteira tão definida entreambos os pólos– é a de a evoluçãodesta crítica, ao contrário do quedesejam alguns, não pode ser con-siderada como uma resposta exó-

gena, tardia e regressiva ao mundomoderno. Ao contrário, ela é umfruto deste mesmo mundo, uma re-sultante interna das suas dinâmicashistóricas planetárias, uma herdei-ra das suas revoluções científicas.A crítica ambiental desenvolveu-se, e de certa forma continua a sedesenvolver, como um questio-namento endógeno ao universo damodernidade ou, melhor dizendo,a alguns dos padrões possíveis noavanço deste universo.

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