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Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa ISCTE PELOS TEMPOS DO ESPAÇO DA CRÍTICA Vitor Sérgio Coelho Ferreira Orientador: Professor Alexandre Melo Dissertação para a obtenção do grau de Licenciatura realizada no âmbito do Seminário de Sociologia da Cultura ISCTE, Julho de 1995

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Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa

ISCTE

PELOS TEMPOS DO ESPAÇO DA CRÍTICA

Vitor Sérgio Coelho Ferreira

Orientador: Professor Alexandre Melo

Dissertação para a obtenção do grau de Licenciatura

realizada no âmbito do Seminário de Sociologia da Cultura

ISCTE, Julho de 1995

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À minha mãe, pela sua paciência.

Ao Metteo e à Inês, pelo tempo de que não pude privar da sua companhia nos seus

primeiros dias.

E a todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, me incentivaram e me apoiaram

nesta (longa) jornada.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO.................................................................................................... 4

I. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DE PARTIDA

1.1. O Universo da Arte como sistema de Acção Colectiva............................ 9

1.2. Do Conceito de «Campo» de Relações Sociais....................................... 35

1.3. Da Autonomia do Lugar da Crítica no Campo da Imprensa..................... 61

II. DA «PROTO-HISTÓRIA» DA PRÁTICA CRÍTICA........................................ 101

III. DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PRÁTICA CRÍTICA

3.1. O Iluminismo e a Autonomização dos Saberes-para-a-Arte.................... 119

3.2. A Ribalta do Crítico na Viragem para a «Modernidade»

e as suas Condições de Possibilidade.......................................................

124

3.3. Modalidades, Portagonistas e Sentidos da Prática Crítica......................... 140

3.4. O Crítico na Era da Reprodutibilidade e da Mercantilização Cultural....... 161

3.5. Condições de Produção e de Difusão do Discurso Crítico:

Do Espaço da Academia para o Espaço da Imprensa..............................

173

IV. DESENVOLVIMENTO PARADIGMÁTICO DA CRÍTICA:

UM PROCESSO PARA A AUTONOMIA

4.1. A Crítica Para-Objectivista.................................................................... 197

4.2. A Crítica Para-Subjectivista................................................................... 211

4.3. A Querela Barthes-Picard

ou a Grande Batalha entre Objectivistas e Subjectivistas..........................

242

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 269

BIBLIOGRAFIA...............................................................................................

ANEXOS..........................................................................................................

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INTRODUÇÃO

Ao debruçarmo-nos com a preocupação de um olhar sociológico sobre o

universo cultural ou, mais propriamente, sobre o vulgarmente designado "mundo das

artes e letras", é-nos dado a observar que, do ponto de vista analítico, são diversos e

interdependentes os elementos em contraste nele presentes: a saber, de uma forma

genérica, entre os mais visíveis vislumbram-se o artista-criador, com a sua obra própria,

assim como o seu público-consumidor. No entanto, podemos também verificar que no

contexto da actual conjuntura cultural, para além destas instâncias, um outro sector tem

vindo a ganhar peso e a consolidar-se como dimensão fundamental no âmbito dos

circuitos estabelecidos no interior daquele universo, o qual engloba todo um conjunto de

agentes sociais comummente designados - algo simplisticamente, já que desempenham

o mais variado tipo de funções e papeis sociais - de mediadores ou intermediários

culturais.

Com efeito, protagonistas como, por exemplo, editores, distribuidores,

galeristas, empresários, comissários, programadores, etc, assumem hoje um papel

fundamental no modo de estruturação e de funcionamento do universo cultural

contemporâneo - quer este se refira a um circuito de esfera alargada, quer se trate de um

circuito de esfera restrita -, na medida em que a sua entrada, ao interceptar a tradicional

relação estabelecida directamente entre o processo de produção e o processo de

consumo cultural, veio transformá-la e complexificá-la sobremaneira, inaugurando um

novo quadro institucional para a produção e valorização da arte e cultura

contemporâneas.

No contexto deste novo quadro institucional, não podemos esquecer a

importância que os orgãos de comunicação social vieram a adquirir. De facto, com a

expansão dos mass media e o crescimento da sua influência, autoridade e credibilidade

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no espaço público, os protagonistas mediáticos assumem actualmente um estatuto

central no processo de mediação cultural, nomeadamente através das suas actividades de

informação, divulgação e promoção por um lado, assim como da sua actividade crítica

por outro. Este estatuto é tanto mais importante quanto existem pistas que nos

testemunham o universo das artes e da cultura como um espaço cada vez mais

mediatizado, designadamente na última década, em Portugal, onde a atenção pública

consagrada aos artistas e aos temas culturais em geral aumentou consideravelmente,

passando de condição marginal a condição central.1

A crescente relevância mediática e interesse público dos temas culturais ou mais

propriamente artísticos durante a década de 80 no nosso país, pode ser explicada, no

dizer de Alexandre Melo, «como uma consequência de uma reorientação estetizante dos

investimentos emocionais e intelectuais que em décadas anteriores haviam sido

maioritariamente canalizados para o debate ideológico e a actividade política. Estas

transformações traduziram-se quer numa crescente atenção concedida pelos poderes

públicos à política cultural e à dimensão cultural da produção da imagem interna e

externa do Estado, quer numa espécie de diversificação artística dos meios de

comunicação social de massas onde as artes plásticas, tal como a moda ou a

arquitectura, foram conquistando posições num espaço que anteriormente era quase

monopolizado pela literatura.»2

Nestas circunstâncias, o crítico veio a tornar-se numa figura fulcral dentro da

teia de mediadores que hoje intervêm activamente no universo das artes e letras,

funcionando como um destacado interseptor ou "filtro" na relação estabelecida entre o

criador/obra e o seu público. A exposição pública a que o seu lugar social se encontra

sujeito enquanto participante do sistema mediático, se, por um lado, em muito

determinou o seu avultado peso consagrativo no panorâma cultural recente, por outro,

também não deixou de contribuír largamente para a construção da aura de contestação e

controvérsia que envolve esta figura, frequentemente polémica e mal-amada.

Note-se, todavia, que a escolha da figura do crítico como objecto de estudo da

presente dissertação não se encontra arreigada ao pressuposto de que este protagonista

detém um papel mais poderoso ou importante que qualquer outro intermediário presente

1 O que é demonstrado por Paquete de Oliveira, in Formas de "Censura Oculta" na Imprensa Escrita em Portugal no pós 25 de Abril, Lisboa, ISCTE, 1988, pp. 437-438 e 444. Quadros nº 1, 2 e 3 parcialmente reproduzidos em Anexo neste trabalho (Cf. Anexos). 2 MELO, Alexandre, "Obcessão e Circunstância", in Comunicação e Linguagens, nº 6/7, Junho de 1988, p. 204.

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no universo das artes e letras. Prende-se, sim, ao reconhecimento de que a análise

localizada desta prática cultural e dos seus respectivos agentes porventura nos ajudará a

compreender e a resolver alguns dos problemas que se têm posto à Sociologia da

Cultura em relação à dimensão simbólica do mundo das artes, onde a sua acção opera

uma eficácia e uma centralidade privilegiada.

A este interesse propriamente teórico, juntou-se a curiosidade pessoal despertada

pela aura de contestação e polémica tradicionalmente associada à imagem sobre esse

protagonista, assim como pela situação complexa em que o seu lugar se encontra,

emparedado entre os campos de produção e recepção cultural, onde simultaneamente

ocupa as cadeiras de "produtor" e de "espectador", e ainda o campo dos media, dentro

do qual a sua actividade é directamente enquadrada. Esse lugar ambivalente e algo

"desconfortável" por vezes, sugeriu-nos algumas ambiguidades, contradições e tensões

que, na nossa opinião, se demonstram passíveis de compreensão e interpretação

sociológica. Aceitando este desafio, decidimos então dedicar à actividade crítica uma

atenção específica, com o objectivo prioritário de apurar as componentes definidoras do

seu estatuto e os elementos condicionantes das suas diversas situações socio-culturais ao

longo da sua (ainda) curta história, quer na sua especificidade própria, quer na sua

relação de interdependência com as outras práticas e respectivos agentes culturais que se

cruzam no quotidiano do seu exercício.

Actualmente o quadro é o seguinte: o artista, por força do seu talento,

naturalmente cria; o crítico, em confronto com o objecto criado e por força dos seus

conhecimentos e da sua sensibilidade estética apurada, naturalmente assume perante

aquele o papel de juíz e de intérprete, sendo de si esperada a expressão pública do seu

juízo e comreensão; o público, quando interessado em matéria de cultura, naturalmente

mantém-se atento ao trabalho de ambos. Mas se a cena aqui representada por este trium

virato é de facto natural nos dias de hoje, tal nem sempre aconteceu desta forma. Ela só

aparece em determinado momento da história das artes, sendo resultado de um lento

processo ao longo do qual se foram reunindo as condições propícias não só à

proeminência da prática crítica no interior do campo artístico, como também à sua

própria constituição e consolidação enquanto campo estruturado.

Nesta perspectiva, de maneira a evitar deixarmo-nos prender pelos efeitos de

naturalização que a própria história produz, efeitos esses tão comodamente favoráveis à

legitimação da necessidade da presença de qualquer grupo no mundo social e à

dissimulação da arbitrariedade do poder efectivo que nele exerce, disposemo-nos, como

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primeira etapa de um projecto de investigação empírica e discussão teórica de ambição

bastante mais alargada, a percorrer e a reconstituir em passos largos a lógica do trabalho

histórico subjacente ao processo de institucionalização dessa figura tão contestada mas

simultaneamente tão procurada no campo artístico que é o crítico, procurando

identificar e compreender as condições sociais, culturais, económicas e políticas que

estiveram na génese e no desenvolvimento desse processo. Note-se, contudo, que não

pretenderemos aqui fazer uma "história da crítica", mas tão-somente dar conta de um

olhar sociológico sobre essa mesma memória já historicamente constituída.

Definido e justificado, em traços gerais, o objecto de estudo do presente

trabalho, tratemos então de esboçar um pequeno resumo do que irá ser o seu percurso.

Começaremos por apresentar os principais pressupostos teóricos de partida da nossa

abordagem, assim como os seus elementos conceptuais de enquadramento centrais.

Neste âmbito, daremos conta do universo artístico enquanto sistema de acção colectiva

- em que a par do criador surge toda uma série de agentes intermediários que, para além

de fazerem a "ponte" entre este protagonista e o seu respectivo público, também

interferem activamente no processo de produção e validação da arte e do artista

enquanto tal -, e localizaremos a figura do crítico e o seu respectivo contributo dentro

desse mesmo sistema.

Considerando que o nosso olhar sobre o espaço da crítica terá como principal

fonte de inspiração teórica a "teoria dos campos" de Pierre Bourdieu e que, por

consequência, a operacionalização do conceito de campo e daqueles que lhe estão

intrinsecamente relacionados será implícita e explicitamente constante no percurso de

todo este trabalho, dedicaremos ainda parte deste primeiro capítulo à apresentação dos

principais vectores conceptuais desse modelo teórico, cuidando de justificar a

pertinência da sua adopção ao espaço específico da crítica. Terminaremos este capítulo

com a análise da especificidade e da luta pela autodeterminação do espaço da crítica na

sua intersepção com o campo da imprensa escrita, reconhecendo ser por aqui que a sua

autonomia enquanto campo se vê mais ameaçada.

De seguida, explicitaremos então o contexto histórico em que se desenrolou o

longo processo de demarcação e emancipação do discurso crítico em relação a outras

práticas discursivas exercidas em torno das artes, restituindo as condições sociais,

culturais, económicas, institucionais e propriamente estéticas que estiveram na base da

proeminência da figura do intermediário cultural em geral e do crítico em particular no

universo das artes e letras, na sua busca por um lugar social e por um estatuto cultural

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específico. A partir daqui o nosso trabalho aparecerá bifurcado em três grandes partes:

na primeira, correspondente ao capítulo II, serão analisadas as condições socio-

históricas que precederam o surgimento da crítica na sua especificidade, tendo-o

possibilitado, sendo o capítulo III dedicado à análise das condições que proporcionaram

a sua consolidação enquanto disciplina autónoma, discurso específico e prática

especializada.

Este capítulo, por motivos que se prendem a uma preocupação de racionalização

analítica e de simplificação discursiva, perderá a lógica de organização eminentemente

cronológica até aí característica, e assumirá uma lógica, podemos dizer, factorial, na

medida em a nossa análise aparecerá aqui subdividida tendo em conta os diversos

factores que, reunidos, propiciaram a gradual institucionalização e a crescente

projecção, dominação e autonomização social da figura do crítico no campo de

produção cultural. Posteriormente, no capítulo VI, passaremos à explanação dos

diversos vectores e valores programáticos através dos quais a prática crítica veio a

reger-se na relação supostamente privilegiada que mantém com a obra de arte, tendo em

conta que esse desenvolvimento paradigmático traduz, como iremos ver, a luta

teoricamente empreendida pelo crítico no sentido da delimitação, conservação e

legitimação da autonomia do seu espaço e do seu estatuto de receptor privilegiado,

accionando simultaneamente estratégias de libertação e de independência da sua leitura

crítica em relação aos elementos culturais com que, inevitavelmente, lida no decorrer da

sua actuação, ou seja, o criador, a obra e o seu respectivo receptor.

Ao longo de todo este trabalho, verificar-se-á a introdução de algumas "caixas"

com informação empírica e comentário teórico que nos remeterão directamente para o

caso concreto da situação da crítica em Portugal, não só no passado como também no

presente, de modo a saciar, em parte, a curiosidade de alguns leitores mais interessados,

para quem se porá a questão "E hoje, em Portugal, como será?". Dizemos em parte

porque a resposta a esta questão particular será objecto de um trabalho posterior, já

projectado, o qual, dada a sua ambição temática e a amplitude da informação até agora

recolhida, não coube no tempo e no espaço disponível para a presente dissertação (já

largamente ultrapassado). A informação que aqui aparecerá sumariamente apresentada

num ponto de vista meramente ilustrativo e exemplificativo, será então, num futuro

próximo, conjuntamente com muita outra, metodologicamente sistematizada e

analiticamente dissecada, aprofundada e apresentada, em si e por si.. Mas, desde já fica

feita a promessa, de que o leitor não perderá com a demora.

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Finalmente, este trabalho terminará com o tecer de algumas breves

considerações em tom de síntese conclusiva sobre o processo que nele fomos

apresentando e discutindo, acentuando as suas principais linhas de força e aproveitando

para, desde logo, formular algumas questões e lançar algumas pistas sobre as actuais

condições e características estruturais deste lugar específico que é socialmente

reservado ao crítico de algum tempo a esta parte, questões, pistas e considerações essas

que se nos foram pondo ao longo do trajecto que, desde já, iremos percorrer através dos

tempos do espaço da crítica.

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I. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DE PARTIDA

1.1. O UNIVERSO DA ARTE COMO SISTEMA DE ACÇÃO

COLECTIVA

É relativamente fácil constatar que qualquer elemento da realidade material é

passível de ser transformado em obra de arte desde que um artista o assine e o assuma

como tal, fenómeno que foi visivelmente demonstrando pela arte contemporânea na sua

matríz dadaísta, nomeadamente com os ready mades de Duchamp e, mais recentemente,

quando imagens e objectos industrialmente produzidos e banalmente utilizados

começaram a aceder ao estatuto de objectos de arte, assumindo um carácter único e

extraordinário desde o momento em que foram submetidos à intervenção do artista, que

muitas vezes se reduz à inscrição da sua assinatura e de um título.

Diante de tal situação, são múltiplas as questões que se podem colocar do ponto

de vista sociológico: o que define a particularidade dos objectos de arte e os distingue

dos restantes objectos com que nos deparamos na nossa vivência quotidiana? O que é

que faz com que determinado artefacto seja considerado arte e não um simples utensílio

funcional ou de decoração? Como é que um simples urinol ou uma vulgar garrafeira se

tornam objectos passíveis de serem expostos num museu ou galeria? Por outro lado,

como é que se define o artista? Como se acede a este estatuto supostamente tão especial

e particular? Como é que se faz de um artista um criador, em oposição a um artífice ou a

um comum «pintor de domingo»? O que é que potencia a eficácia quase mágica da sua

assinatura, a qual multiplica várias vezes o valor estético, social e económico do objecto

em que aparece inscrito?

A abordagem destas e outras questões relacionadas com a arte e o artista tem-se

efectivamente revelado para a Sociologia um desafio particularmente interessante e

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aguerrido na sua tentativa de desestruturar, denunciar e explicar todo o sistema

integrado de mitos e esteriótipos que, de algum tempo a esta parte, veio proteger essas

entidades, pretensamente intocáveis na sua imaculada aura de singularidade e

essencialidade ontológicas.

Com efeito, desde a Renascença, e mais acentuadamente ainda a partir da

revolução cultural romântica3, o artista viu-se associado à imagem do ser excepcional,

do indivíduo em si especialmente dotado para as artes por via metafísica ou biológica,

criador total e soberano das suas obras, também estas em si portadoras de um valor e

sentido artístico universal e perene, constituindo testemunhos únicos de uma expressão

de beleza, inteligência e sensibilidade estética raras. Nesta óptica, a originalidade

estética, ao mesmo tempo que resultaria da pressuposta excepcionalidade do seu

criador, testefica-a também, fechando-se assim o círculo de legitimação numa

reciprocidade redutora e tautológica entre sujeito e objecto supostamente em si mesmos

artísticos: ele é artista porque cria obras de arte, sendo estas consideradas como tal

porque criadas por um artista.

Na base do fenómeno de ensimesmamento do objecto de arte e do artista como

realidades ontológicas está, pois, o exacerbamento de uma ideologia carismática da

criação que, ao fazer do criador e do seu respectivo talento o princípio primeiro e último

do valor e sentido estético das suas obras, subjectiva, intimiza, personaliza e naturaliza

ao extremo todos os constrangimentos e mecanismos de ordem social que o envolvem

no decorrer da sua carreira. O olhar de quem se interessa pelas temáticas artísticas foi,

deste modo, muitas vezes orientado na estrita direcção daquele que é apenas o produtor

do objecto artístico na sua materialidade, fazendo-se esquivar esse olhar da procura de

quem, de forma discreta mas concreta, também entra no processo metamórfico do valor

simbólico do objecto artístico, assim como no círculo de produção e de legitimação da

criador enquanto artista, aparecendo dissimulada a acção culturalmente consagrativa e

valorativa de todos os que o rodeiam.

No entanto, a intromissão da Sociologia no espaço das artes veio, desde cedo,

desmistificar e des-sacralizar o carácter a-social e essencialista a este associado,

determinando que é arte e artista o que e quem como tal for socialmente produzido e

reconhecido. Já Jan Mukarovsky, semiólogo e teórico da literatura, abordava nos anos

30 esta problemática redimensionando-a sociologicamente, postulando a existência de

3 Como adiante, no capítulo II, verêmos mais aprofundadamente.

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uma distinção efectiva entre o que denominou de obra-coisa ou artefacto material e o

objecto estético ou obra de arte, fazendo corresponder o artefacto ao que é

materialmente produzido e o objecto estético ao resultado da relação simbólica

estabelecida entre o sujeito-receptor e o artefacto material, ou seja, ao efeito ou reflexo

do(s) significado(s) correlativo(s) ao artefacto na consicência individual dos receptores.

Nas suas palavras, «o artefacto, sem mudanças possíveis na sua estrutura, é fonte de

significado que o leitor tem de constituír, o ponto de partida para todas as

concretizações da obra por parte dos seus receptores; a obra, na sua totalidade, não se

pode reduzir ao artefacto»4. Também Marcel Mauss, etnólogo francês, longe de postular

os objectos artísticos como intrinsecamente detentores de uma eficácia própria, atentava

nos anos 40 para o facto destes serem sempre definidos como tal por um determinado

grupo5.

Podemos pois aperceber-nos de como ambas as posições já dão conta do carácter

social e simbólico da arte, rompendo com as perspectivas ontológicas que

tradicionalmente dominavam a sua abordagem na época, perspectivas essas que

preconizavam o valor estético como um valor imanente à própria obra, como se de uma

"essência" se tratasse. Mukarovsky, pelo contrário, pressupõe que apenas o artefacto

material tem uma realidade ontológica, a qual é passível de ser esteticamente valorizada

e de, por consequência, se tornar artística quando simbolicamente concretizada no

receptor enquanto tal, pertencendo então o objecto estético a uma realidade

subjectivamente construída. Mauss irá mais longe na sua análise, apresentando tal

concretização já como dependente não apenas da subjectividade do receptor, mas de

todo um conjunto de agentes sociais que enquadra o objecto artístico, iniciando a sua

definição como uma realidade cultural socialmente construída.

A partir daqui, é posta em causa a categorização das obras de arte como objectos

privilegiados em si próprios, ontologicamente distinta dos objectos utilitários,

pressupondo-se que o que se proclama como artístico é sempre algo de não artístico que

é simbolica e esteticamente investido como artístico no acto de recepção. Tudo depende

do olhar perante o objecto e do que se encontra escondido por detrás desse olhar, sendo

o próprio observador que determina o modo segundo o qual o objecto é percebido.

Significa isto que, embora a obra de arte pareça admitir na origem um certo indivíduo

4 Cit. in COELHO, Os Universos da Crítica, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 393. 5 Ver DAMISCH, "Artes", Enciclopédia Einaudi, nº 3, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984, p. 12.

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como autor, o acto estético de que resulta não se conclui no acto de criação, mas na sua

fruição enquanto tal.

A própria percepção do objecto não se limita a um simples captar contemplativo,

tem também uma função activa, no sentido em que com ela acontece acontecem os

actos de juízo, de atribuição e de reconhecimento subjacentes à metamorfose do seu

valor simbólico. Donde a sua "vida artística" estará sempre dependente do facto de ser

olhado como artístico. E se é no olhar que vai a intenção estética, podemos então

concluir que será estético, isto é, passível de ser considerado arte, tudo aquilo para que,

em determinado momento e contexto social, alguém olhe e atribua uma intenção

estética, o que implica que tal objecto passe a ser olhado menos pela sua função e

utilidade do que pela sua forma e conteúdo.

Todavia, há que ter em conta que o olhar desse "alguém" não é nunca o olhar de

um "alguém qualquer", mas sempre de um "alguém cujo olhar sabe ver", ou seja, um

"alguém" cuja legitimidade social e cultural lhe permite accionar e promover o processo

de trans-substanciação simbólica do artefacto material em objecto estético ou artístico.

Quer isto dizer que se só no pólo da recepção da obra se decidirá acerca do seu estatuto

artístico, existem porém nesse mesmo pólo indivíduos que têm uma autoridade

legitimadora mais poderosa e, nessa medida, mais eficaz. A obra de arte só é passível de

existir como tal, ou seja, como objecto simbólico investido de sentido e de valor

estético, se como tal for apreendida e apreciada pelos actores dotados das disposições e

das competências estéticas tacitamente exigidas e reconhecidas no universo

propriamente artístico como legítimas para conhecê-la e reconhecê-la como tal. E que

actores são esses? Quem são os verdadeiros produtores do artista como criador e do

valor estético da sua obra?

Num grau de sofisticação, complexificação e aprofundamento conceptual

substancialmente acrescido, as ideias-chave avançadas pelos autores atrás citados foram

amplamente retomadas no recente desenvolvimento da abordagem sociológica do

fenómeno artístico, abrindo caminho ao enquandramento analítico deste enquanto

sistema de acção colectiva, isto é, como um espaço social que compreende o lugar e o

papel para diversos agentes que se inter-relacionam e trabalham com o mesmo fim -

produzir a ilusão da arte. Com figuras tão marcantes como Pierre Bourdieu e Howard

Becker na proa desse debate teórico, o sentido e o valor artístico vieram ser

definitivamente denunciados como fazendo parte de um amplo trabalho colectivo de

produção e legitimação social, onde intervêm activamente os múltiplos agentes que se

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movem no interior do campo artístico ou do mundo das artes, isto é, do universo social

específico que lhe confere o estatuto de candidato à apreciação estética.

Bourdieu apresenta-nos o processo de produção dos criadores e das obras ditas

artísticas ou, se se quiser, de aferir quem é artista ou quem não é, o que é arte ou o que

não o é, como fazendo parte de uma imensa empresa de alquimia social, na qual

colaboram, com a mesma convicção mas com lucros muito desiguais, todo o conjunto

de agentes que se movem e se relacionam no campo artístico, que nele têm interesses e

que dele e para ele vivem (em graus e modalidades bastante diferenciadas), entre os

quais a circulação e a troca de inúmeros actos de delegação de créditos de autoridade e

de reconhecimento mútuo de poder simbólico é constante: dos artistas entre si, com as

exposições de grupo ou os prefácios através dos quais os autores consagrados

consagram os mais jovens que os (re)consagram em retorno como mestres, entre os

artistas, os críticos e os agentes de comercialização das suas obras, trio que se consagra

reciprocamente; entre os artistas, os seus mecenas e o seu público, e assim por diante.

Segundo este autor, é no interior desta vasta rede de relações de troca, onde

circulam os actos de crédito através dos quais os agentes (a)firmam o seu próprio

crédito deixando-se creditar e creditando outros agentes da sua confiança, que o valor

do artista e da sua respectiva obra é produzido, ao mesmo tempo que, dada a natureza

diluída e camuflada deste regime de trocas, é produzida a crença no poder criador do

artista: «ce qui "fait les reputations" ce n'est pas, comme le croient naivement les

Rastignacs de province, telle ou telle personne "influente", telle ou telle instituition,

revue, hebdomadaire, académie, cénacle, marchand, éditeur, ce n'est même pas

l'ensemble de ce que l'on apelle parfois "les personnalités du monde des arts et des

lettres", c'est le champ de production comme systemme des relations objectives entre

ces agentes ou ces instituitons et lieu de lutes pour le monopole du pouvoir de

consécration où s'engendrent continûment la valeur des oeuvres e la croyance dans cette

valeur.»6

É a partir deste ponto de vista que Bourdieu se refere à arte como uma impostura

socialmente legítima, como um fetiche bem fundamentado na e pela lógica do campo

onde é produzida, sendo o princípio da eficácia de todos os actos de consagração e de

valorização do criador e das suas obras resultante das lutas incessantes e inumeráveis

que, visando a imposição de uma determinada visão do mundo das artes como a

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legítima, opõem a pluralidade de agentes e instituições em concorrência nesse mesmo

espaço, conflitos esses estabelecidos quer entre os que ocupam posições diferenciadas

na produção de bens da mesma espécie, quer entre aqueles cujos interesses estão

associados a bens culturais diferentes, actuando todos como adversários cúmplices. Este

fenómeno de cumplicidade na luta, aparentemente paradoxal do ponto de vista analítico,

forja-se na partilha tacitamente aceite em relação quer ao interesse no jogo que se

estabelece na e para a produção da arte e do artista, quer às regras desse jogo, quer ainda

à crença no valor social e cultural do próprio jogo.

Nesta perspectiva, é suposto a Sociologia das Artes tomar como objecto de

estudo não apenas os agentes da produção material das obras - em ruptura com uma

certa "história social das artes", que se limitava a analisar as condições sociais em que o

artista nascia e era formado, deixando assim intacto o essencial do modelo tradicional

de criação artista, ou seja, o artista como produtor exclusivo do valor e do sentido da sua

obra7 -, mas também todo o sistema integrado de instituições e agentes especializados

que o rodeiam e que com ele se relacionam pessoal ou mediaticamente, participando

directamente na produção e legitimação do seu estatuto e no estatuto artístico da sua

obra, quer em termos simbólicos, quer em termos de mercado.

A saber, trata-se do conjunto de agentes individuais e institucionais

profissionalmente responsáveis pela circulação e distribuição pública dos artefactos

(editores, programadores, comissários, conservadores de museus, empresários, júris,

salões, feiras e outros espaços de apresentação pública, etc), os agentes responsáveis

pela acção discursiva sobre esses mesmos objectos e os seus respectivos criadores

(jornalistas, críticos, historiadores, estetas e outros académicos), o conjunto de

instâncias políticas e administrativas com competência específica em matéria de artes

(Ministérios, Secretarias de Estado, Fundações, Autarquias, etc), o conjunto de

instâncias de formação artística (Academias, Universidades, Cooperativas e outro tipo

de escolas de arte), o conjunto de instâncias de enquadramento nuclear (grupos de pares,

círculos, associações, agremiações, etc), sem esquecer as instituições que responsáveis

pela inculcação inicial de disposições artísticas, a começar pela Família e pela Escola, e

os próprios públicos consumidores sistemáticos ou esporádicos.

6 BOURDIEU, "La Production de la croyance: contribuition à une economie des biens symboliques", in Actes de la recherche en Sciences Sociales, nº 13, Setembro de 1977, p. 7 (os itálicos são nossos). 7 Tradição histórica essa que tem o seu expoente máximo em Arnold Hauser (ver bibliografia).

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Tal como Bourdieu, também Becker tenta restituir na sua proposta teórica a

dimensão colectiva do trabalho artístico, utilizando para isso o conceito de mundo da

arte. Segundo este autor, a produção da arte é feita mediante um processo rotineiro de

cooperação que implica não apenas a acção dos criadores das obras na sua

materialidade, mas de toda a rede de agentes e instituições culturais que participam na

difusão e reconhecimento social desses mesmos trabalhos enquanto artísticos,

constituindo o núcleo de suportes sobre o qual é construída a reputação do seu criador

como artista. Esse trabalho de cooperação é organizado segundo determinadas

convenções consensualmente estabelecidas e partilhadas entre todos os participantes de

determinado mundo da arte, as quais servirão como critérios de referência na percepção

e avaliação cultural dos produtos nele candidatos ao estatuto artístico.

Para abreviar, nas suas palavras: «art worlds consist of all the people whose

activities are necessary to the production of the caracteristic works which that world,

and perhaps others as well, define art. Members of art worlds coordinate the activities

by which work is produced by referring to a body of convencional understantings

embodied in common practice and in frequently used artifacts. The same people oftem

cooperate repeatedly, even routinely, in similar ways to produce similar works, so that

we can think of an art world as an established network of cooperating links among

participantes. Works of art, from this point of view, are not the products of individual

markers, «artists» who possess a rare and special gift. They are, rather, joint products of

all the people who cooperate via an art wold's characteristic conventions to bring works

like that into existence. Artists are some subgroup of the world's participants who, by

common agreement, possess a special gift, therefore make a unique and indispensable

contribution to the work, and thereby make it art.»8

Podemos notar, no entanto, que a linguagem da solidariedade, da cooperação,

que encontramos associada à noção de mundo da arte em Becker contrasta bastante com

a linguagem bélica, combativa, subjacente ao conceito bourdiano de campo artístico.

Embora ambos os autores postulem a produção artística como sistema de acção

colectiva, rompendo de uma vez por todas com o enfeudamento ao mito romântico e

burguês do criador isolado e pondo em presença nesse sistema todo o rol de agentes e

instituições que também contribuem activamente na operação de transmutação

simbólica da obra-coisa em objecto artístico, o segundo conceito referido parece

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apresentar-se heuristicamente mais valioso e profícuo que o primeiro, pois se a noção de

mundo de arte proporciona a uma análise de natureza mais descritiva e enumerativa, a

de campo, entendida como espaço de lutas simbólicas, permite-nos a par dessa análise

dar igualmente conta da estrutura objectiva de relações de força existente entre agentes

e instituições culturais presentes no universo das artes, assim como da sua dinâmica de

funcionamento.

No entanto, com as suas respectivas divergências, ambas têm o mérito de

partilhar um potencial devastador na ruptura com as visões essencialistas e ontológicas

da arte e do artista que durante tantos séculos perduraram, tão sedutoras e convenientes

no âmbito da lógica inerente ao funcionamento do seu espaço social. Ao olharem para

este despojados dos preconceitos associados ao carácter sagrado e inacessível que

tradicionalmente o envolviam, recusaram-no como espaço de existência puramente ideal

(tendo, porém, reconhecido a sua autonomia relativa no interior do corpo social),

clarificando as condições sociais da produção da arte e do artista, denunciando os laços

de dependência e integração que tais instâncias mantêm com o mundo social, e

restituindo a sua dimensão de trabalho colectivo.

Mas se falar da arte e do criador como se não o fossem na realidade foi um bom

começo, remetendo-os para o domínio da crença, do mito, da ilusão, da impostura,

enquanto socialmente integrados e produzidos no interior de um determinado sistema de

condições e de relações, sempre datadas e contingentes, essa denúncia teve o "senão"

de, no seu desenvolvimento teórico, ter sido muitas vezes exarcebada. Com efeito, na

sua luta contra os princípios da denegação do social e do individualismo naturalista e

espontaneista profundamente enraizados no universo das artes, pretendendo resgatar a

todo o custo a dimensão de acção colectiva nele objectivamente presente, a Sociologia

das Artes acabou por cometer algum excesso de sociologismo, ao fazer diluir toda a

individualidade, subjectividade e capacidade inovadora intrínseca aos actos de vontade

do sujeito-criador num emaranhado sufocante de estruturas totalitárias e deterministas,

não se acanhando em remeter o papel dos seus atributos pessoais e subjectivamente

investidos, como o conhecido talento, para o terreno do mitológico, da mera crença

conveniente, sem sequer se preocupar em lhe conceder o benefício da dúvida acerca da

sua efectividade histórica.

8 BECKER, Art Worlds, Los Angeles, University of Califórnia Press, 1982, pp. 34-35 (os itálicos são nossos).

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Nesta perspectiva, foi recentemente colocada no âmbito desta disciplina a

discussão, de inegável pertinência, sobre até onde vai realmente a dependência e

contingência social da arte, aqui entendida como praxis socialmente situada mas

efectivamente criadora, cuidando de repôr a mediação das experiências e componentes

subjectivas e inventivas do artista na dinâmica social da arte, assim como,

simultaneamente, de relativizar o peso das condições e das relações objectivas em que

se insere. O eixo do olhar sobre o fenómeno artístico deslocou-se assim, mais uma vez,

no sentido de um retorno ao sujeito-criador, mas aqui abordado em moldes totalmente

diferentes dos tradicionalmente característicos deste tipo de abordagem mais

individualista.

De facto, após a euforia da denúncia, sente-se hoje nesta zona do conhecimento

sociológico um clima de calmaria e de discernimento propício à inauguração de uma

nova fase de pós-denúncia, caracterizada pelo facto de ser projecto de alguns entre a

Sociologia, por um lado, o de devolver a individualidade do artista sem cair no

exclusivismo extremista de um «individualismo espontaneísta e subjectivista», que

pressupõe a «incomensurabilidade dos criadores entre si» sendo cada um naturalmente

«devedor da sua própria subjectividade», isto ao mesmo tempo que, por outro, se tenta

ultrapassar a outra posição extremada que muitas vezes caracteriza a Sociologia das

Artes, ou seja, a de privilegar «um exclusivismo de tipo holista, estruturalista e

objectivista» que, correndo o perigo de uma totalização hegemónica do colectivo sobre

o indivíduo criador, não deixa compreender sociologicamente aquilo que talvez seja o

traço mais distinto deste personagem no espaço social em que se move, ou seja, a sua

singularidade social9.

Longe da sedução e aceitação incondicional das correntes tradicionais de

denúncia sociológica, o que se propõe nesta posição é, em última análise, a visão de

uma criatividade individual, todavia sempre socialmente situada e reclamada. Certo é

que existem condicionamentos sociais diversos junto do artista, facto que não pode ser

negado, já que a sua actividade criativa é sempre exercida dentro das fronteiras de um

dado espaço de possibilidades estruturalmente estabelecido em determinada conjuntura

e contexto cultural - espaço esse que compreende factores como a condição e o estatuto

socio-profissional do artista, as linhas de força dos modelos da tradição estética

dominante e da inovação vanguardista, o nível técnico e tecnológico atingindo no

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campo, os temas e problemas então em voga, os meios materiais de expressão

disponíveis e ao seu alcance, os meios de difusão e circulação facultados, o perfil dos

vários públicos interessados em coisas de cultura, entre muitos outros. Todos estes

factores, em conjunto, orientam o criador no modo como pensa, sente e actua no seu

domínio de actividade, sendo desta forma assegurada através da sua própria conduta

pessoal a performatividade das estruturas colectivas em que se vê inserido10.

Por outro lado, também sabemos que, de facto, o criador nunca se encontra

sozinho na produção de si e das suas obras como artísticas, ele não é o alfa e o ómega da

sua reputação, assim como do sentido e do valor estético dos artefactos que produz

materialmente, pois, como atrás ficou realçado, na afirmação do seu estatuto como

artista, tal como na afirmação do estatuto artístico da sua obra, interfere sempre uma

comunidade de agentes especializados que, socialmente investidos do poder simbólico

de nomeação e consagração artística e valorização estética, actuam em conjunto no

sentido de produzir a autoridade em que o criador se autoriza na realização da sua

condição de autor e na proclamação da sua obra como artística.

Mas se os artistas enfrentam e inserem-se num quadro de condições e de

relações particulares que afectam inevitavelmente os resultados do seu trabalho, não

devemos igualmente esquecer que, em simultâneo, na conjunção complexa de todas

essas condicionantes de ordem estrutural, conjuntural, contextual e institucional, é-lhes

sempre oferecida uma larga margem de escolha, de decisão e de inovação pessoal,

amplamente favorável à actualização dos seus actos de vontade criativa, à apresentação

da sua maneira pessoal de assimilar e interpretar esteticamente o mundo em que vive,

assim como de utilizar toda a herança cultural que lhe foi transmitida no passado e de

que dispõe no presente, no que essa compreende de incorporação - por via formal ou

informal - de recursos sensitivos, cognoscitivos e técnicos ao longo de toda a trajectória

social do artista.

Mesmo que, convenhamos, essa mesma maneira pessoal tenha sempre por

referência determinadas condições de existência e seja sempre regulada e codificada em

relação a estilos já socialmente conhecidos e consagrados que funcionam como matrizes

de orientação, ela tenderá a conter sempre componentes de criação individual, nas suas

dimensões de desvio e de alternativa estética, não significando pois, inevitavelmente,

9 CONDE, O Duplo Écran. 2.Artistas: Indivíduo. Ilusão Óptica e Contra-Ilusão (Provas Académicas), Lisboa, ISCTE, 1992, pp. 11-12. 10 Idem, pp. 18-19.

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conformidade com os modelos existentes e socialmente seguros. Tal hipótese adquire

ainda maior pertinência se tomarmos em linha de conta que uma das propriedades mais

características do campo artístico depois do século XIX é, justamente, o que Bourdieu

chamou de institucionalização da anomia11, propriedade essa que nos remete desde logo

para a figura do artista situado num quadro social de progressiva individualização, onde

é deixada uma ampla margem de liberdade, logo de interferência, à operacionalidade

das suas próprias disposições estéticas e éticas, sendo os actos de transgressão

intencional por ele perseguidos não apenas socialmente consentidos, como até

socialmente exigidos.

Com efeito, a par de todos os constrangimentos sociais a que o artista se vê

actualmente sujeito, um deles sobressai pelo seu peso, aqui sim, podemos dizer

determinístico: a sua própria auto-produção como indivíduo singular, processo que

engloba não apenas o investimento pessoal na originalidade estética do seu trabalho,

como também, frequentemente, o investimento na originalidade do seu estilo de vida

quotidiano e das características associadas à sua pessoa, recolhendo muitas vezes daí

dividendos simbólicos e de visibilidade social sobre si próprio e sobre a sua obra.

Tomando o desvio como norma e valor social fundamental no seu quotidiano artístico e

não artístico, o artista, com a ajuda imprescindível das instâncias sociais que o rodeiam

mais de perto e que constroem a sua reputação, tentam sempre fazer por gerir e

perspectivar personalisticamente a sua carreira, fazendo emergir e associar ao seu

retrato, no conjunto da sua vida e obra, a excentricidade, a extravagância, a

excepcionalidade justificativas da sua singularidade pessoal, socialmente reclamada e

creditada.

Assim sendo, o facto do artista muitas vezes querer aparentar-se como

totalmente desconectado de todo e qualquer tipo de imperativo material, cultural ou

social é, na verdade, impelido pelas próprias condições estruturais do campo em que se

insere, que lhe confere o estatuto de individualidade, promovendo-o a cidadão de

excepção, a sujeito insubstituível e inintermutável, dando-lhe por este meio acesso a

uma ampla margem de manobra na tradução estética dos seus acontecimentos

interiores, assim como na materialização das suas intenções transgressoras enquanto

autor face às características da produção dominante de uma dada conjuntura. É neste

sentido que Idalina Conde conceptualiza o campo de criação artística como uma

11 BOURDIEU, "Institucionalização da Anomia", in O Poder Simbólico, Lisboa, Difel, 1989, pp. 255-

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comunidade de individualidades, onde, numa «correlativa atmosfera de concorrência

interpares», cada um «está socialmente comprometido no projecto pessoal de não

interromper a busca, reciclagem e superação dos limites continuamente fixados por si

para si próprio», o que, inegavelmente, «há-de conduzir ao extremar das idiossincrasias

pessoais num grau compreensivelmente superior ao de outros meios sociais de raíz

colectivista»12.

Dentro deste contexto teórico, que lugar fica então reservado ao talento, esse

atributo individual que a lógica do campo artístico considera inestimável e

intransmissível, e cuja posse, com uma frequência e uma convicção que não podemos

ignorar, a sua população costuma invocar como base justificativa do sucesso de uma

carreira artística, ao mesmo tempo que, com uma não menor frequência e convicção, a

Sociologia teima em negar a sua efectividade, remetendo-o para o nível estritamente

ideológico da experiência subjectivamente vivida e racionalizada pelo artista?

Embora não se tenha aqui pretensões a desvendar todo o mistério que envolve

essa caixa negra que constitui o talento, nomeadamente no que ele supõe de natureza

específica, íntima e interiorizada do sujeito criador, também não se tem a veleidade de

negar o seu valor, sequer a sua existência, ou então correrer-se-á o risco de partir de

premissas tanto ou mais ideológicas do que aquelas que invocam a soberaneidade de tal

atributo, perdendo-se de vista uma das dimensões mais importantes do mundo artístico.

O facto é que num universo onde se encontra profundamente enraizado o culto da

individualidade carismática, sendo os talentos objectivamente esperados e estimulados,

e em que todo o tipo de tradição e normalização cede perante a inovação, todos os

recursos que consubstanciam a singularidade do sujeito na transposição da sua ideia

estética, como a sua imaginação, sensibilidade, habilidade e energia criativa, ao serem

socialmente exigidos no desempenho de uma actividade artística, não deixam de deter a

sua cota parte de intervenção na dinâmica de funcionamento do mundo das artes.

É neste sentido que podemos tomar as palavras de Idalina Conde, ao afirmar

que: «a totalização histórica procurando linhas estruturais de desenvolvimento não pode

dissolver a contingencialidade inerente a atributos intrínsecos ao indivíduo directamente

reclamados na actividade criativa, ou seja, o carácter acidental do talento, esse recurso

pessoal certamente devedor mas nunca inteiramente redutível ao capital de formação

279. 12 CONDE, O Duplo Écran. 2.Artistas..., op. cit., pp. 30-31 e 67.

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adquirida no curso da socialização artística partilhada com outros e que, sem dúvida nas

condições dadas, tem um inegável potencial de interferência histórica.»13

No entanto, como aliás a autora faz questão de frisar, é evidente que «esse

potencial de interferência não se deve a nenhuma "transcendência histórica" de

indivíduos particularmente dotados e descontextualizados»14, pois para o compreender,

ter-se-á de ter em conta as condições de acesso do artista ao estatuto de individualidade

com audibilidade e relevância colectiva. Esta posição não é, pois, tomada com a

ingenuidade impressionista que muitas vezes adquire junto do senso comum, quando a

importância das componentes subjectivas que informam a acção individual do criador é

sobreposta à autoridade das condições sociais objectivas em que ele se vê inserido.

Se bem que o carisma do sujeito, a sua convicção, vontade e força pessoal em se

impôr como artista, assim como o seu esquema de afirmação da vocação, isto é, aquilo

que a sua ideia artística deixa transparecer em termos de pesquisa, riqueza e novidade

estética, sejam factores substancialmente importantes no processo de entrada e

construção de uma reputação no campo artístico15, o peso dos mecanismos e contextos

sociais que o envolvem nesse processo é bastante elevado face à força de uma provável

vocação. O sucesso da sua obcessão depende, de facto, da circunstância que a rodeia16.

É esta, efectivamente, a realidade para que apontam enfaticamente os resultados dos

diversos estudos e análises de natureza sociológica empreendidos sobre o universo da

sua actividade.

Todavia, não se deverá antever a priori uma relação de incompatibilidade mas

antes uma relação de convergência analítica entre a lógica da regularidade sociológica e

a lógica da singularidade artística. Quer isto dizer que entender o sistema da arte como

sistema de acção colectiva não implica necessariamente fazê-lo operar como um sistema

totalitário, normalizador, pois a singularidade do próprio artista, transposta no

testemunho da originalidade das suas obras, é ela própria disponibilizada e exigida pelo

sistema, que cria condições estruturais para a sua emergência e visibilidade. Embora

sempre socialmente situada e condicionada por múltiplos factores, a criatividade é

sempre passível de acontecer, pelo que a Sociologia, ao pretender restituír as

13 Idem, p. 26. 14 Ibidem, p. 28. 15 Como pertinentemente aponta Raymonde Moulin numa entrevista recentemente concedida ao semanário Expresso, publicada no dia 10 de Dezembro de 1994, p. 117. 16 As expressões evidenciadas são da autoria de Alexandre Melo, aplicadas para denominar duas das principais formas de legitimação social do artista enquanto tal, in "Obcessão e Circunstância", op. cit.

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circunstâncias sociais em que a arte e o artista são objectivamente investidos e

produzidos como tal, não deverá nunca perder de vista o grau de relativa efectividade

dos atributos subjectivos que o criador mobiliza - enquanto sujeito também autor dos

seus actos e ideias - nesse processo, traduzidos na originalidade e relevância da sua obra

em determinada conjuntura cultural.

Por outro lado, ainda no âmbito do levantamento da interferência das

componentes subjectivas da acção do artista no processo de produção social da arte, há

que considerar também que a acção deste elemento não se limita apenas a produzir a

obra na sua materialidade, pois, como argumenta Teresa Cruz, a própria

intencionalidade que se encontra subjacente ao acto de fabricação de que é responsável

desempenha também um papel importante na travessia do seu estatuto e do estatuto dos

objectos que cria para o interior da instituição artística, na medida em que ao assinar e

intitular a sua obra, aponta e (a)credita primeiro ele próprio o valor do seu talento

enquanto autor e da sua ideia como artística, isto é, como singular e original. Na opinião

da autora, os actos de inscrição de uma assinatura e de um título num qualquer objecto

têm, desde logo, como efeito primário isolar e distinguir esse mesmo objecto no quadro

da existência material, fazendo aparecer a figura de um autor na sua origem (mesmo

quando a sua intervenção na superfície material da obra se vê reduzida a esses mesmos

actos), e enquadrando e/ou corrigindo a percepção que porventura normalmente

teríamos do artefacto, colocando a obra num contexto simbólico de partida que a

delimita de outros objectos tidos como comuns17.

Nesta perspectiva, os elementos nominalistas da obra que estão a cargo do seu

produtor em primeira mão, nas suas versões de assinatura e título, assumem um

importante valor performativo no processo de produção social da arte e do próprio

artista, fornecendo-lhes as condições de visibilidade mínimas como instâncias

singulares para que possam a partir daí reivindicar o seu estatuto artístico. Contudo,

como tem sido até aqui largamente discutido e como a autora citada não deixa de

assinalar, o artista, por mais que se queira fazer ele próprio, só consegue obter

reconhecimento e ressonância pública caso outra ordem de circunstâncias lhe seja

favorável.

Embora seja da sua responsabilidade dotar a obra de uma intencionalidade

artística e apresentá-la publicamente como tal, "obrigando" desde início os restantes

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agentes do campo artístico a reagir dentro do âmbito do juízo estético - juízo esse que

poderá sancionar ou não a pretensão artística revelada, ou pô-la publicamente em

discussão, o que já trás dividendos sociais e simbólicos acrescidos em termos de

visibilidade pública da sua obra e assinatura -, ele necessita sempre, depois, que em

torno de si se estabeleça um pacto aprovador, um consenso informal mais ou menos

generalizado entre os agentes especializados, ou seja, entre os agentes dotados das

disposições objectivamente exigidas no interior do universo artístico, no sentido de

fazer associar o nome "arte" ao seu trabalho e de "artista" à sua pessoa, construíndo

deste modo a sua reputação.

Temos é que ter sempre consciência desta relação entre intenção artística e o seu

reconhecimento, e não tomar apenas em consideração a contribuição exógena ao artista

na construção social da sua obra como arte e na autorização de que precisa para figurar

socialmente como autor: «(...) o título e a assinatura, da responsabilidade do autor, são

os primeiros agentes da sua exposição enquanto obra de arte, e sem essa função de

mostração não seria possível qualquer reconhecimento de um carácter artístico ou anti-

artístico. São eles que, antes mesmo do espaço do museu, expõem o objecto como obra,

lhe trazem visibilidade. O museu, a galeria, a exposição ou a feira de arte, espaços

institucionais de delimitação das práticas artísticas, são na verdade extensões de uma

função de mostração que começa no próprio "contorno aparente" da obra e se alarga em

círculos de implicações sociais e económicas aos campos marginais mas constitutivos

da arte, enquanto instituição. A mostração, a publicitação (o tornar do domínio público)

é um acto constitutivo da instituição arte, incontornável mesmo para a anti-arte, e a sua

realização começa com a inscrição da obra; com a força deíctica e delimitadora do

nome próprio, nos lugares do título e da assinatura.»18

De facto, o funcionamento do nome do autor no quadro da nominação artística,

ou seja, o efeito de griffe como lhe chama Bourdieu19, referindo-se ao fenómeno de

transformação do estatuto dos objectos produzidos, como que por feitiço ou por magia,

pela inscrição de uma assinatura, fazendo convergir a singularidade da pessoa com a

originalidade das obras, implica directamente não somente a auto-convicção subjectiva

da mão que a assina na sua qualidade artística, como também as indispensáveis

17 CRUZ, "A Obra de Arte. Entre dois nomes", in Comunicação e Linguagens, nº 3, Junho de 1986, pp. 117-141. 18 Idem, pp. 121-122 (os itálicos são nossos). 19 BOURDIEU, "La Production de la Croyance...", op. cit., p. 5.

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condições de hetero-produção e de reconhecimento social do valor cultural da assinatura

inscrita.

Quer isto dizer que a eficácia quase mágica da assinatura de um artista na

operação de transmutação da realidade simbólica dos objectos que fabrica, sendo

produto de um processo de transferência do capital simbólico por si acumulado ao longo

da sua carreira para esses mesmos objectos, se tem por princípio um trabalho

voluntarista e convicto de investimento em si próprio enquanto pessoa e autor singular

por parte do aspirante à condição de artista, mobilizando e desenvolvendo

prioritariamente para tal as suas próprias competências e recursos estéticos

personalísticos, esse trabalho necessida ser continuado pelo reconhecimento,

certificação e legitimação exterior do valor pessoal dos seus resultados, assim como

pela consequente autorização e estimulação social ao seu desenvolvimento e

aprofundamento.

Nesse trabalho colaboram colectivamente todos os agentes intermediários que,

individual ou institucionalmente, integram e constituem a malha topográfica do campo

artístico, repartindo-se organizadamente em corpos especializados que actuam nos

vários planos da socialização e formação específica, da distribuição e circulação no

mercado, da promoção e difusão mediática, do julgamento estético e legitimação

discursiva, em suma, da produção social de valor e sentido artístico. Mas se todas as

perspectivas até aqui apresentadas assinalam incessantemente, como vimos, a

importância fundamental da acção valorativa e consagrativa destes outros protagonistas

que circundam o artista na sua actividade criativa, também é certo que o

aprofundamento da análise das componentes, envolventes e consequências específicas

dessa mesma acção tem sido sistematicamente relegado para segundo plano.

Não quer isto dizer que alinhemos com aqueles que, colocando-se numa

perspectiva algo reducionista, pretendem reduzir a Sociologia das Artes a uma

sociologia do intermediário, considerando este conjunto de agentes como constituíndo o

seu objecto privilegiado, posição defendida, por exemplo, por um Antoine Hennion,

para quem «l'intermédiaire peut être consideré comme l'object central de la sociologie

de l'art»20. Tal não acontece pois, como ficou atrás demonstrado, o estudo da acção de

instâncias como os próprios criadores, a sua obra enquanto símbolo cultural e os seus

20 HENNION, "Une sociologie de l'intermédiaire: le cas du directeur artistique de variétés", in Sociologie du Travail, nº 4, 1983, p. 460.

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públicos/consumidores, são também fulcrais na constituíção de uma Sociologia das

Artes que se queira "total".

Todavia, a restituição analítica da acção particular dos intermediários impõem-se

actualmente como uma tarefa fundamental, pois se aqueles outros elementos têm sido

objecto de múltiplas e saturadas análises teóricas e investigações empíricas, já as

práticas mediadoras não têm tido senão algumas breves referências de constatação e

análise nesses mesmos estudos, raramente estando no princípio das preocupações

prioritárias a eles subjacentes como objecto de estudo particularizado, exaustivo e

sistemático, isto talvez devido à pluralidade característica das suas modalidades de

acção, assim como à discrição com que se impõem no sistema artístico, agindo nos seus

bastidores, encontrando-se por isso mais camuflada e protegida contra a objectivação.

Certo é que com a complexificação do sistema de valorização e consagração que

se deu a partir do fim do século passado e que continuou ao longo do nosso, o tecido de

intermediários culturais entre o criador e o seu público adensou-se e pulverizou-se, e o

peso dos seus respectivos lugares na divisão social do trabalho cultural tornou-se

predominante, passando a repousar sobre este conjunto de protagonistas o poder de

produzir quotidianamente a visão legítima sobre o universo cultural ou mais

propriamente artístico e, deste modo, de definir a própria doxa do campo em que

intervêm. Nestas circunstâncias, como bem observa Hennion, o intermediário irá operar

não apenas como um mero funcionário passivo que faz o interface entre dois mundos

conhecidos e previamente construídos - o da criação e o da recepção cultural -, como

frequentemente se quer fazer crêr, mas como interveniente activo no modo como esses

mundos funcionam e estruturam as suas relações recíprocas21. Pelo que a Sociologia das

Artes deve, pois, aventurar-se, sem medos nem rodeios, sobre o terreno específico dos

mediadores culturais.

E quando dizemos específico, quer-se dizer que a sua abordagem deverá passar

por uma análise particularizada das práticas que desempenham, quer em termos das

diferentes dimensões do sistema em que actuam, quer das diferentes modalidades de

actuação que accionam e dos seus respectivos efeitos. Segundo o modelo proposto por

Alexandre Melo, podemos distinguir analiticamente três dimensões de funcionamento

no sistema da arte contemporânea, sendo a sua manifestação interligada que

21 Idem, p. 462.

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precisamente constitui o sistema22: uma dimensão económica, em que a arte surge como

produto integrado no mercado e, por isso mesmo, obedecendo aos mecanismos de oferta

e procura subjacentes ao regime geral de trocas; uma dimensão simbólica, onde a arte

aparece como objecto de discurso cultural publicamente divulgado que a constitui «em

objecto social particular, com modalidades de presenção e protocolos de dignidade

específicos e com um processo de valorização especial a que corresponde um grau e um

tipo de consideração social diferentes do de qualquer outro conjunto de objectos»23; e

finalmente uma dimensão política, quando a arte é apropriada pelo mundo da política,

ou mais concretamente pelo Estado, seja por veredicto de consagração através da acção

de instituições públicas, seja através de medidas legislativas e económicas concernentes

ao mundo da arte (concessão de subsídios, prémios oficiais, bolsas, vantagens fiscais,

censura, etc).

Embora os vários agentes intermediários envolvidos neste sistema não se vejam

obrigados a integrar exclusivamente uma das dimensões apresentadas (já que podemos

encontrar empiricamente os mesmos agentes a trabalhar em diferentes dimensões),

contribuindo complementar e colectivamente na promoção dos objectos de arte a

objectos de excepção, a acção específica desenvolvida por cada um deles nesse sentido

poderá assumir contornos e funções características, assim como um peso preponderante,

numa delas mais do que noutras. Uns interessam-se prioritariamente pelo benefício

económico que a arte proporciona, regulando a sua oferta e incitando ao seu consumo,

inserindo-se assim directamente no processo económico de troca que a envolve; outros

trabalham sobre os benefícios propriamente políticos que da sua apropriação poderá

advir, enquanto signo de sofisticação cultural e de desenvolvimento nacional; outros

ainda trabalham mais directamente em benefício da sua imagem cultural, ou seja, do seu

sentido e valor propriamente estético.

É sob este ângulo de análise que desejamos aqui prolongar a reflexão sobre a

importância da acção do intermediário no mundo da arte e da produção cultural em

geral, elegendo para isso um dos agentes cuja acção maior visibilidade e protagonismo

público adquire no sistema de produção colectiva da arte, desenvolvendo-a

fundamentalmente no âmbito da sua dimensão simbólica. Falamos, obviamente, do

Crítico. Com efeito, embora a sua acção discursiva tenha como objectivo prioritário, na

sua génese, o de tentar cobrir a fissura que desde o século XIX se vem cavando entre o

22 MELO, O que é Arte, Lisboa, Difusão Cultural, 1994, pp. 13-31.

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campo da criação e o campo da recepção cultural, parece-nos evidente que as suas

funções sociais não se esgotam na transmissão de informações sobre o que de novo se

vai passando no domínio artístico, funcionando apenas como um simples discurso de

acompanhamento promocional das obras que nele se fabricam, nem na conversão destas

numa forma receptível, destinado a favorecer e a facilitar a sua apreensão, apreciação e

interpretação.

As suas funções objectivas estão, de facto, longe de se reduzirem às suas

intenções declaradas. Na verdade, o comentário crítico não somente estebelece a

intermediação entre as emoções e reflexões pessoais de determinado agente socio-

culturalmente creditado perante determinadas obras e o conjunto da sociedade, como,

simultânea e consequentemente, faz com que esta, nomeadamente algumas das suas

zonas particulares, como o Estado e o Mercado, passem a ter com essas mesmas obras

um modo de relacionamento específico. Nesta medida, as suas funções transcendem as

de um mero mecanismo de mediação cultural, traduzindo um momento fundamental na

produção simbólica da obra de arte enquanto tal, na medida em que opera sobre o

artefacto a que se refere uma injecção de sentido e de valor estético-cultural que o

promove a objecto de excepção, valor esse passível de ser transmutado e obter

equivalência em valor económico e social.

O papel destacado que o crítico assume na construção da especificidade

simbólica da arte, advém-lhe sobretudo das particularidades subjacentes ao seu lugar

social e às componentes próprias da sua acção discursiva. Primeiro, ainda que o prazer

estético seja, por princípio, acessível a todos, a figura do crítico, pelas competências que

lhe são socialmente reconhecidas e exigidas, tem o "privilégio" de fazer reunir em si a

faculdade de saber-sentir, de saber-racionalizar e de saber-dizer acerca desse mesmo

prazer, privilégio esse que vem a traduzir-se na sua institucionalização como produtor e

utilizador legítimo das categorias de percepção, classificação e apreciação propriamente

estéticas e, consequentemente, num considerável aumento da autoridade do seu discurso

sobre outros discursos culturais menos visíveis e mais informais no processo de

certificação do valor cultural dos objectos. Com efeito, é a convicção social na detenção

desse privilégio por parte do crítico que fá-lo receber do mundo das artes uma espécie

de mandato que o autoriza na procura de uma medida específica para o valor estético da

obra a que dedica a sua atenção, assim como das palavras e significações ajustadas ao

23 Idem, p. 19.

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universo das sensações privadas face à obra em causa, mandato esse legitimado na

medida das competências demonstradas e do prestígio social e cultural mobilizado ao

longo da sua trajectória profissional, capitais que investe e oferece como garantia do seu

veredicto a favor ou contra o artefacto a que se refere e o artista que lhe está na origem.

Por outro lado, o lugar privilegiado que o seu discurso detém, em termos de

visibilidade e protagonismo público, pelo facto de ser actualmente difundido através dos

meios de comunicação social, torna-o num dos principais protagonistas na definição do

que, em termos estéticos, irá ser pública e colectivamente relevante. É ele que primeiro

obtém a informação e que a faz passar na rede de comunicação estabelecida entre o

espaço das artes e o conjunto do espaço social, de tal modo que muitas vezes a sua

palavra avança previamente sobre o seu referente. Ou seja, muitas vezes ainda este não

se encontra disponível publicamente, e já circula sob a forma de signo discursivo. Deste

modo, sendo em muito responsável pela selecção e apresentação de determinados

eventos em detrimento de outros, o crítico actua no campo artístico como zona-filtro

institucionalizada, detendo o poder de abrir ou fechar os acessos à projecção pública de

determinadas alternativas estéticas, logo à possibilidade de acréscimo de valor

simbólico que daí poderá advir.

O privilégio que o discurso crítico adquire no espaço das artes e letras por via do

seu lugar destacado em termos de visibilidade e projecção social e cultural, funcionando

como um importante mecanismo institucionalizado de gatekeeping no acesso a esse

mesmo espaço e, simultaneamente, desde logo, como produtor de uma "mais valia"

simbólica sobre os objectos ou eventos que designa só pelo facto de os designar,

aparece bem patente no depoimento de António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas

no semanário Independente e ele próprio artista:

«...nem é com o crítico que o artista está preocupado, o artista está preocupado

é com a difusão da sua obra. Ele nem quer saber quem é o crítico, quer é saber se

aquilo sai, se não sai, no canal 2 da televisão, no canal 1, ou no Expresso, ou no Diário

de Notícias. O tamanho da notícia, isso é muito mais importante para o artista, assim

como o tipo de meio de comunicação que a divulga, do que propriamente a questão do

crítico. (...) A crítica hoje em dia faz parte dos media, quer dizer, faz parte do universo

da comunicação contemporânea, que é provavelmente a essência da sociedade

contemporânea. Hoje a realidade não existiria sem informação. (...)

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Portanto, hoje, a realidade não é visível nem audível a não ser através das redes

de comunicação. E as redes de comunicação multimediática são sempre e cada vez

mais redes de análise também, são redes de informação crítica. Logo que se decide

informar ou não informar sobre determinado assunto, e depois no modo como se

informa sobre o assunto, há sempre uma descrição qualitativa do objecto que é

informado. (...) informar nas sociedades contemporâneas é informar criticamente.

Informar e apreciar são aspectos que estão sempre ligados. Mas penso é que os canais

de informação hoje são diversificados. Do ponto de vista da divulgação comercial de

uma obra o importante é chegar a determinados canais informativos que, por si só,

significam mais-valia. Aparecer no telejornal, aparecer num determinado programa de

um determinado pivôt conhecido. O que eles vão dizer sobre o artista ou a sua obra é

importante, mas a simples presença nesse complexo informacional gera mais valia, mas

não gera contenção crítica.

Portanto, de um ponto de vista, o canal é essencial, mas já do ponto de vista de

uma legitimação mais especializada na produção cultural, é preciso chegar a outros

canais de informação (um é o lugar destinado à crítica). São já canais mais

especializados e por isso canais mais opinativos. Quer dizer que legitimam, por um

lado dando visibilidade, mas por outro também emitindo opinião. Por vezes a

visibilidade é grande e a opinião é negativa, e portanto o artista fica numa situação

mais contraditória, quer dizer, tem visibilidade mas, por outro lado, a visibilidade é

negativa, o que vai eventualmente lhe fechar a entrada em determinados museus, ou

galerias, ou mercados, mas que vai manter-se suficientemente visível para manter o seu

acesso a outros mercados. Há uma situação aí que não é unilateral, é complexa. (...)

Quer dizer, a própria obra de arte hoje quase que não existe sem metas-linguagens,

pois se não houver a meta-linguagem que permita a sua visibilidade para além da obra,

a obra eventualmente é inexistente, existe materialmente mas não existe

mediaticamente, não existe virtualmente, e hoje a realidade se não existir virtualmente

é como se não existisse. Portanto, a missão do crítico é contribuir para essa

virtualização da obra de arte.»

O poder do crítico, por ordem da sua acção selectiva e da visibilidade que o seu

lugar social concede a quem a partir dele é designado, é também destacado por Cristina

Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras, quando afirma que

«mesmo aqueles artistas que se contrapõem a que o crítico exerça a sua actividade,

normalmente o crítico tem que a exercer sempre, senão ele fica no anonimato. É claro

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que hoje em dia põe-se um problema que há muitos anos não se punha, que no século

XV e XVI não se punha, porque havia o mecenato e o artista fazia a obra para o Papa,

e era directamente com o Papa que ele tinha que se relacionar. Mas hoje em dia,

porque há um mercado, para todos os efeitos, pequeno mas há, tem que haver uma

maneira do artista chegar ao mercado. E chega ao mercado através de uma galeria,

por exemplo, mas também chega ao mercado porque aparece o nome no jornal na

rubrica de crítica de arte. E portanto o crítico é realmente importante.»

Mas a consciência da importância do lugar privilegiado do discurso crítico na

comunicação social e dos dividendos simbólicos que da referência procedente desse

lugar possam advir, aparece também presente nas intervenções de Julião Sarmento e de

Joaquim Leitão, dois consagrados criadores portugueses (respectivamente na área das

artes plásticas e do cinema), num programa televisivo promovido por Maria João Seixas

e dedicado ao tema da crítica24, onde o primeiro subvaloriza a acção do crítico

afirmando que «o artista continua a ser artista sem a presença do crítico», insuflando a

condição de dependência deste em relação ao que o artista produz ao atribuir-lhe o

estatuto de «rémura que anda sempre à volta do tubarão», não deixando porém de ter

em consideração que «o que é importante é a "referência" pública» que a sua acção

produz; isto enquanto o segundo se lamenta aos críticos também presentes nesse mesmo

programa (Alexandre Melo e Jorge Leitão Ramos, críticos de Artes Plásticas e de

Cinema no Jornal Expresso) não das más opiniões emitidas pelo jornal em que eles

intervêm acerca do seu último filme, mas da localização na página e da (parca)

dimensão do texto crítico que lhe foi dedicado, acusando-os de o preterirem em relação

a um par seu a quem deram nessa edição um lugar e uma atenção discursiva mais

destacada, questões gráficas que, em última instância, sabemos que não são tanto da

responsabilidade directa do crítico como dos próprios critérios de noticiabilidade e de

destaque do jornal.

Temos então que ao seleccionar e ao passar a informação sobre o acontecimento

ou objecto que tem por referente, o crítico está, desde logo, simultaneamente, a produzi-

lo na sua especificidade simbólica. Mas associado às propriedades particulares ao seu

lugar social, o discurso crítico também contém em si mesmo componentes específicas

que remetem directamente para a sua predominância na construção da dimensão

simbólica da arte. Na sua componente informativa, dando conta dos elementos factuais

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de apresentação do evento, objecto ou criador em causa, normalmente assimilados ao

vulgar lead noticioso nas questões a que respondem (quem faz ou apresenta o quê, onde

e quando), a prática crítica é desde logo produtora de visibilidade sobre o seu referente,

com os respectivos dividendos simbólicos que daí poderão advir-lhe. Na sua

componente contextualizadora ou de enquadramento, respeitante aos elementos de

categorização e classificação do referente em análise num domínio de regularidades

históricas e culturais (estilos, épocas, tendências, grupos...) captados através de

estratégias cognitivas de inclusão e exclusão, o discurso crítico produz o seu referente

na sua tipicidade.

Na sua componente judicativa, correspondente aos juízos de valor que nele são

formulados acerca da qualidade estética do referente em causa, o discurso crítica entra

directamente no processo de produção do seu valor cultural, produzindo-o na sua

singularidade. Finalmente, na sua componente interpretativa ou reflexiva, quando se

tenta desconstruír, compreender e reconstruír o significado do referente na intenção

declarada de promover as suas potenciais ordens de inteligibilidade e de facilitar a sua

apreensão e leitura (quer de uma forma mais conceptual, quer de uma forma mais

literária), a acção da crítica assume uma posição central no processo de produção de

sentido(s) que envolve a arte enquanto matéria significante25.

As diversas componentes do discurso crítico aqui identificadas remetem-nos

directamente para os diversos actos que consubstanciam a prática da crítica na sua

especificidade - e quando dizemos "especificidade" não queremos fazer ver esta prática

como tomando uma forma "singular", pois a própria noção de "prática social" deve ser

conceptualizada e operacionalizada tendo em conta a sua pluridimensionalidade, o que

implica considerar as diversas formas e conteúdos em que cada prática social específica

se desdobra e que a consubstancializam. Com efeito, também a prática da crítica,

enquanto prática socio-cultural específica e como qualquer outra prática social, se

desmultiplica em múltiplos actos, os quais, seguindo o esquema atrás proposto, se

podem resumir, de um ponto de vista analítico, em informar, contextualizar, avaliar e

interpretar/reflectir. Cada um destes actos tende, por sua vez, a ser diferentemente

valorizado e privilegiado (sem detrimento dos outros, note-se) nas estratégias

discursivas de cada crítico, o que faz com que essa prática adquirira diferentes

24 Programa Quem Fala Assim..., "Os críticos também se abatem?", televisionado no dia 15 de Junho de 1994.

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configurações, sendo a maior ou menor operacionalização de cada uma daquelas

componentes discursivas dependente quer do quadro de referência do crítico que com

elas opera e do que ele entende serem as principais funções sociais da sua actividade,

quer do espaço de possibilidades que lhe é dado no seu contexto de produção - o jornal -

em termos de tomadas de posição discursivas, tendo em conta a sua rotina produtiva e o

tipo de público que pretende atingir.

Nesta perspectiva, as entrevistas que realizamos junto de vários críticos, de

várias áreas culturais, em diversos tipos de publicações jornalísticas, permite-nos

observar que é junto dos jornais semanários, tipo de publicação hebdomadária com uma

maior longevidade de leitura, mais vocacionada para a cobertura da actualidade por via

do comentário que apenas por via da notícia, e com uma rotina produtiva menos intensa

que as publicações diárias, que encontramos uma maior disponibilidade para a

operacionalização discursiva de componentes reflexivas e interpretativas por parte do

crítico, fazendo quase sempre depender a sua tomada de posição judicativa de uma

análise o mais aprofundada e.exaustiva possível no tempo e no espaço concedidos:

«Ora, a crítica consiste precisamente em desenvolver e em ampliar aquilo que

está ali (no livro) latente, mas que continuaria latente se não fosse lido dessa maneira,

fazer com que aquilo produza sentido para além do sentido que pode ser lido

imediatamente. (...) Repare que quando eu acabei de definir a crítica, defini-a só

segundo um plano, que é o não judicativo, ou seja, a crítica como mera actividade

interpretativa e não judicativa. Estava-me a esquecer desse aspecto que também me

parece importante. A crítica, para além de ter esse aspecto de interpretação da obra e

de consegui-la fazer produzir sentido, deve também ter um carácter judicativo, de

julgamento de valor, que deve vir muitas vezes, julgo eu, na continuação do trabalho

anterior, isto é, não é anterior mas é posterior ao trabalho de interpretação. Entendo

que esse julgamento só deve ser feito, deve decorrer primeiro desse trabalho de

interpretação e de leitura. Isto significa que sou contra um tipo de crítica

impressionística, que se limita a dizer bem ou a dizer mal, e que corresponde a uma

certa estratégia jornalística muito bem definida, a que nós estamos muito habituados,

mas que não me parece ser a mais interessante.» (António Guerreiro, crítico de

literatura no Expresso)

25 As componentes intrínsecas à prática crítica aqui apresentadas seguem de perto a tipologia dos

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«Depois da percepção de determinado objecto artístico, há determinados

elementos que são susceptíveis de desencadearem uma opinião que é fundamentada em

preposições que são teóricas, artísticas, estéticas. Há um lado que é pessoal, que é

subjectivo, que interpreta esses elementos tendo em conta várias componentes que são

históricas, artísticas. São sobretudo opiniões que vêm de determinados conceitos que

não são limitados, obvidamente, mas que têm conclusão sobre as opções que por sua

vez estiveram na origem dessa obra. É precisamente no confronto dos juízos sobre

essas preposições que estiveram na origem da peça e filtradas pela pessoa que é

estudiosa dessa forma de arte, que poderá nascer uma opinião que é sustentada com

conhecimento, em princípio profundo, e que estará habilitada para interpretar o

significado dessa obra. Depois, a partir daí, podem existir análises, podem existir puros

comentários (...). Em termos ideais deverá ser um pouco mais do que isso, era aí que eu

gostava de chegar e ter a disponibilidade total para essa reflexão ainda mais

profunda.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras)

«Para mim, a crítica é sobretudo compreender o objecto da crítica, é tentar

perceber ou tentar explicitar racionalmente a minha compreensão do objecto da crítica.

Trata-se de compreender esse objecto e, através dessa compreensão, extrapolar a sua

lógica interna, extrapolar aquilo que será a evolução provável de um determinado

objecto a partir da identificação da sua lógica interna, e a partir dessa extrapolação

exercer então uma crítica, digamos, destrutiva, ou seja, uma crítica no sentido de ver,

de testar até que ponto essa lógica evolutiva é uma lógica interessante ou não é uma

lógica interessante. Portanto, digamos que tem três fases: a crítica é um processo de

identificação com o próprio objecto, numa primeira fase, como estratégia para entrar

dentro dele; depois de compreendê-lo, de conhecer a sua lógica interna; e depois

criticar o objecto a partir da evolução provável que ele irá ter em função dessa lógica

interna que lhe classificamos. Penso que é este o mecanismo que inconscientemente ou

de modo invisível actua quando eu escrevo sobre algum artista ou trabalho.» (António

Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente)

elementos do discurso crítico apresentado por MELO, O Que é Arte, op. cit., pp. 61-63.

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Nos jornais diários, por seu turno, vamos encontrar uma maior disponibilidade

para um tipo de prática crítica que privilegia fundamentalmente os actos de informar,

contextualizar e avaliar, o que, de resto, não será difícil de compreender, pois, se por um

lado são as componentes discursivas mais fáceis de operacionalizar tendo em conta o

ritmo produtivo bastante mais intenso e apertado que impera nas redacções deste tipo de

publicações em relação aos dos semanários, por outro, são os objectivos pressupostos

para a leitura da crítica por parte dos leitores destes jornais, ou seja, dado serem

publicações com uma longevidade de leitura bem menor que os semanários (a sua

actualidade perde o seu valor de uso no dia imediatamente a seguir), pressupõe-se que o

seu leitor os compra para estar o mais actualizado e informado possível sobre a

actualidade cultural, assim como para ser aconselhado e orientado sobre o que ler, ver

ou ouvir. Curioso é o facto de alguns críticos intervenientes neste tipo de

hebdomadários recusarem justamente o rótulo de "críticos", devido ao facto de

identificarem esta actividade com uma prática analítica que não podem (ou não querem)

desenvolver nas suas respectivas páginas, identificação essa derivada da sua

proveniência e formação académica, onde a crítica aprendida e exercida exortava as

componentes de análise teórica e de interpretação aprofundada em detrimento das

restantes:

«Eu só posso falar do ponto de vista do jornal, porque não faço crítica noutro

sítio. No Suplemento que se faz aqui de livros, nós temos de apresentar os livros que

sairam às pessoas, temos que lhes dar razões para as pessoas lerem aqueles livros, ou

para não os lêrem, se fôr caso disso. Por isso tem que se apresentar, regra geral, o

autor, até porque como há poucos autores portugueses, cada vez o mercado se socorre

mais de traduções. (...) é preciso apresentar o autor, é preciso enquandrar o livro

dentro do género a que pertence, dizer o que é aquilo, se é romance, se é um "thriller",

se é um livro de aventuras, se é o quê. A partir do género em que o livro é enquadrado,

é preciso explicar porque é que se acha que dentro desse género o livro é bem feito ou

mal feito. Eventualmente situar muito vagamente a história, se fôr daqueles romances

que é feito para contar uma história, não se vai contar a história às pessoas no jornal,

mas dizer-lhes mais ou menos o que é aquilo, apresentá-lo.» (Tereza Coelho, crítica de

literatura no Público)

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«Já lhe disse que não faço crítica. A crítica que faço não é crítica, razão pela

qual não se me coloca o problema de querer saber o que é a crítica. Para mim, a

crítica é a mediação entre os criadores - também não gosto da palavra criadores - que

fazem o teatro e aqueles que o vão ver. O crítico é um jornalista, é uma forma de ser

jornalista. Trata-se de uma especialização. O crítico é um jornalista especializado em

teatro. (...) Deste modo, a crítica é sempre uma especialização, uma profissão de

comunicação dentro de um determinado assunto. Para mim, ser crítico de teatro é ir

ver os espectáculos de teatro e, depois, escrever um texto em que diga às pessoas o que

é que há nessa peça. Não é aquele que vai ver uma peça de teatro e depois escreve no

jornal "gostei ou não gostei". Parece-me que o público quer isso. Mas eu não. Para

mim, trata-se de uma peça em que eu digo ao leitor-espectador o que está nela. Vou

mais longe se quiser, digo ao leitor o que é que a peça refere e procuro convencê-lo de

que deve ir ver essa peça. Em 5% dos casos digo ao leitor porque é que ele não deve ir

ver a peça de teatro. Mas é muito raro fazer isso. (...) Acho que a sua grande

função é informar. Se a informação é uma coisa boa, então informar sobre o teatro

através da crítica é uma coisa boa. Se o teatro é uma coisa boa, se a informação é uma

coisa boa, se comunicar é uma coisa boa, então a crítica tem uma função interessante.

É essencialmente isso, um problema de comunicação. Voltando um pouco à pergunta

anterior, há quem ache que o crítico deve apresentar novas teorias, novas propostas,

deve expôr em termos críticos o que dizia aos encenadores: "não devem fazer assim,

que a nova tendência é ir para aqui ou ir para ali". (...) Mas eu não estou muito virado

para aí. (...) Não tenho qualquer conselho a dar a nenhum encenador. Não tenho nada

de novo para dizer. Não tenho propostas a apresentar. Não tenho vontade em intervir

nos espectáculos deles. Esse tipo de crítica existe, gosta de intervir por esse lado.»

(Manuel João Gomes, crítico de teatro no Público)

«Eu não disse que sou crítica, eu faço recensões, que é uma coisa muito

diferente. A recensão para mim é uma coisa extremamente limitada, permite uma

vulgarização de ideias gerais, permite um resumo do livro, permite situá-lo, esclarecê-

lo minimamente, as pessoas saberem a que é que aquilo se refere, de onde é que vem,

eventualmente o que é que foi dito sobre ele se alguma coisa foi dita, tratando-se de um

clássico, etc. Portanto, é uma síntese vulgarizadora. Claro que estes elementos não

podem ser reunidos assim, isso não basta, depois tem que se saber escrever aquilo de

uma maneira... A crítica é uma coisa completamente diferente, o crítico estabelece os

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valores que sobre os que assenta os seus juízos, ou formula juízos que são em si valores

e justifica-os. Podem ser, por exemplo, valores que ele já tem que vêm da sua própria

obra, que ele estabeleceu já na criação dos seus próprios romances, ou que ele

estabeleceu nos livros que publicou sobre outros livros, que ele à partida tenha uma

obra que ele justifique o que ele diga, isso acho que é importante.(...) É uma

vulgarização sobre um certo número de informações e uma opinião limitada, dadas as

próprias limitações da recensão, sobre o valor de uma obra, no caso de uma obra que

não tenha sido já valorizada mil vezes. E uma pessoa que pegue num jornal tem mais

ou menos uma ideia quanto ao livro, tem as informações que eventualmente não terá

numa introdução. (...) A recensão literária é suposta ser uma espécie de informação,

uma espécie mais especializada de informação.» (Patrícia Cabral, crítica de literatura no

Diário de Notícias)

Mas o facto dos jornais semanários concederem uma maior disponibilidade para

a teorização e a reflexão analítica sobre os objectos da crítica que os diários, não faz

com que haja uma colagem directa nas clivagens existentes entre "críticos analíticos"-

"semanários" e "críticos jornalísticos"-"diários", pois o facto é que encontramos ambos

os tipos de críticos em ambos os tipos de publicações, provavelmente como estratégia

de alargamento de públicos (tendo em consideração que um dos objectivos prioritários

de todas as publicações jornalísticas será vender o máximo possível, há que não cultivar

demasiado a inclusão do comentário elaborado por parte do semanário) e de obtenção

de prestígio social e cultural (com a inclusão de discursos mais elaborados em jornais de

postura mais informativa que analítica, como os diários). Assim sendo, cultivar um

certo eclectismo quer de opções estéticas, quer de fórmulas de discurso crítico, trará

sempre vantagens ao jornal do ponto de vista comercial e cultural.

Pelo que o contexto de produção de discurso crítico não influencia mecânica e

deterministicamente as opções do crítico em termos dos actos mais valorizados no

exercício da sua prática e das componentes discursivas preponderantes no seu discurso.

O seu quadro de referência pessoal, enquanto matriz socialmente construída no decorrer

da sua trajectória de vida e na qual confluem uma série de factores não só contextuais

mas também estruturais, situacionais e até mesmo decisionais, é também orientadora da

sua prática e dos valores que nela se interpõem. E só nesta óptica podemos perceber os

seguintes depoimentos de críticos, tendo em conta o contexto de produção onde se

encontram situados:

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«Há, de algum modo, um papel de medianeiro (no discurso crítico), que começa

com a informação, ou seja, que começa por dizer que a exposição está aberta e que é

pintura e não é escultura, depois que a pintura é figurativa, que são grandes formatos,

que pinta pontes, ou coisa do género. Há uma dimensão informativa. Há uma dimensão

também valorativa, em termos daquilo que corresponde a satisfazer uma solicitação

imediata dos leitores que não pode ser totalmente e sempre frustrada, isto é, dizer se é

bom ou não, dizer se vale a pena ir ver ou não. Quer dizer, existe uma pressão efectiva

dos leitores e dos jornais para que isso seja compreensível. Tal como se dá estrêlas nos

filmes, ou coisa do género... temos grandes pruridos em relação a isso. E existem

outras dimensões possíveis de aprofundamento das obras, em termos já menos

informativos mas de elucidação de componentes criativas, de estratégias criativas, etc.

E aí as dimensões são muito diversificados.» Mas «a sua primeira utilidade é

informativa.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso)

A postura "informativa" de Alexandre Pomar num jornal de tradição de análise e

comentário como é o Expresso, é bem ilustrativa dos efeitos de trajectória que para ela

concorrem: não podemos esquecer que este homem é dos raros críticos actuais que veio

da ala do jornalismo propriamente dito, nomeadamente do jornalismo político, tendo

exercido durante longos anos essa actividade num jornal diário, o Diário de Notícias. Só

em 1985, por razões que considera "acidentais" e "pessoais", passou para o jornalismo

cultural nesse mesmo diário e, mais tarde, veio a desenvolver o que ele chama de

"jornalismo opinativo" no Expresso, onde actualmente cumpre as funções de

responsável pela secção de Exposições (tendo já sido editor de Cultura). Daí,

provavelmente, ele privilegiar na sua prática crítica a componente informativa, sem o

fazer, contudo, em desfavor das restantes. João António Dias, crítico literário no jornal

Independente, também ele valoriza bastante na sua prática as componentes informativa

e de enquadramento, assim como a acção judicativa, em detrimento da componente

reflexiva e analítica, apesar da sua situação pessoal reunir as condições mais favoráveis

ao desenvolvimento de uma prática crítica neste âmbito, dadas quer as suas

competências específicas em matéria de literatura (é licenciado em Línguas e

Literaturas Modernas), quer a disponibilidade que o seu jornal lhe dá em termos de

opções discursivas (exemplificada pela postura de outros críticos que também neste

jornal desenvolvem uma crítica de orientação reflexiva e analítica). Ele, tal como

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Patrícia Cabral e pelas mesmas razões, também não se identifica com a classificação da

sua actividade como sendo "crítica", sendo a sua opção pelo "comentário", como lhe

chama, uma decisão voluntária:

«Eu, aquilo que faço em termos de livros, é um comentário, faço um comentário.

Quer dizer, tento dar um maior número de informação possível, e dou a minha opinião

pessoal. E eu penso que um crítico tenta aprofundar mais, tenta fazer mais ligações,

conhecer as coisas, tenta ir mais fundo. E não é isso que eu acho que faça. Eu limito-

me a fazer um trabalho jornalístico, pronto. Limito-me a informar as pessoas de um

livro, dar o maior número de informações possível acerca do autor, e sobre o livro. Só

isso. (...) (Uma boa crítica...) No fundo, acaba por ser muito igual àquilo que eu faço,

mas com características diferentes, com outro tipo de referências, que se calhar não

tenho, ou não me apetece ter, ou não me apetece utilizar.» (João António Dias, crítico

de literatura no Independente)

Também no Jornal de Letras, publicação especializada em matéria cultural e

orientada para um público mais restrito que os restantes aqui considerados, vêmos

aparecer críticos de voluntariamente de orientação jornalística a previlegiarem na sua

acção discursiva as componentes associadas directamente a esse tipo de postura perante

a prática crítica, ou seja, o juízo de valor, a contextualização e a informação. Uns

também traduzindo o seu percurso de críticos em jornais diários já desaparecidos (como

é o caso de Júlio Conrado), outros assumindo uma atitude voluntarista no sentido de dar

informações, instrumentos e pistas de compreensão a um público como o português,

supostamente pouco sabedor em matéria artística (como é o caso de Cristina Azevedo

Tavares):

«(A crítica é...) Primeiro que tudo, emitir uma opinião sobre obra, que é o que

eu faço. Se me perguntásse se eu sou o crítico representante da classe dos críticos,

digo-lhe já que não. Eu faço crítica imediata, crítica jornalística, portanto não tem

muito a ver, mas tem alguma coisa, com a chamada crítica universitária, crítica de

investigação, crítica de aprofundamento. Eu faço o ponto entre a crítica universitária e

o público. Eles investigam e depois eu vou ver aquilo que eles investigaram e aquilo

que eles descobriram. Portanto, digamos que já é uma crítica de segunda escolha, a

minha.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras)

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«(...) aquilo que a crítica deve fazer é procurar instaurar alguma polémica,

procurar informar as pessoas, porque como eu lhe digo... se calhar não era bem essa a

função da crítica, era mais a polémica, a função de desafio, era mais realmente ser

excessiva, pelo sim ou pelo não. Mas na situação em que vivemos em Portugal, em que

as pessoas não estão minimamente informadas, eu penso que nós podemos informar e

com isso valorizar determinado tipo de arte ou menosprezar outra. (...) E o que eu

quero dizer com informação? Quer dizer não só em relação ao que o artista fez, ao que

ele está a fazer ou ao que ele poderá vir a fazer, mas também estabelecer relações entre

o que ele faz e o que há em Portugal, ou o que houve, ou estabelecer pontos de contacto

que ele tem com outros artistas, sem o condicionar, sem dizer "Olha, esta criatura pinta

como a Graça Morais". Isso é muito negativo. Mas podemos dizer que a figuração que

ele tem, tem a ver com. (...) Por outro lado, eu faço muito um bocadinho de história de

arte na minha crítica de arte, mini-história de arte: procuro explicar como certos

artistas apareceram, a que movimentos estão ligados, que relações é que têm com a

actualidade. Eu penso que isso é importante, não basta falar que aquela criatura pinta

com rosas ou azuis, mas também como é que ela se insere no contexto português. Mas

penso também, independente disto, que a crítica deve ter um papel de facto crítico, ou

seja, de juízo, é preciso ajuizar. Eu, como lhe disse há pouco, abstenho-me um pouco de

deitar abaixo as pessoas, de dizer "Olha, aquilo não presta!", porque de um modo geral

há artistas que nunca chegaram mais longe e que têm a sua franja no mercado, e não

vale a pena eu estar a dizer que eles não prestam, porque eles nunca prestarão de

facto. Não vai ser o meu juízo sobre eles que vai mudar alguma coisa.» (Cristina

Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras)

Mas a situação inversa às anteriormente apresentadas também aparece, isto é,

críticos sediados em tabloides diários, nomeadamente em tabloides de segundo plano

em termos culturais como o é a Capital - reflectindo deste modo, através de uma

indefinição em termos de estratégia editorial específica para as artes e a cultura em

geral, a própria condição marginal que reservam ao espaço cultural na sua estratégia

editorial geral -, amplamente preocupados em fazer da sua prática crítica uma análise e

uma reflexão aprofundada da obra ou evento sobre que se debruçam. É o caso de um

Francisco Perestrello que, associado com a sua função de crítico, tem a seu cargo a

orientação de um centro de estudos e de investigação sobre cinema - o CINEDOC -,

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assim como de um Carlos Vidal, crítico de artes plásticas e pintor (com uma licenciatura

feita em Pintura na FBAL), que faz congregar na sua prática crítica uma postura

analítica e compreensiva do objecto com uma postura militante e polémica, de defesa

declarada de determinadas opções estéticas em desfavor de outras, atitude esta já pouco

desenvolvida no espaço da crítica actual e que, por aparecer associada a uma linguagem

bélica de defesa e ataque, lhe valeu a sua saída dos dois jornais em que colaborou antes

da sua entrada na Capital - o Público e o Independente. De notar ainda é o facto de

ambos se "desidentificarem" com a linguagem e com o estilo editorial do jornal onde

presentemente trabalham por contingências de percurso, tendo a consciência de que o

seu tipo de crítica não será o mais adequado ao público que supostamente o lê:

«Para mim a crítica é o desmontar e remontar uma obra cinematográfica, ou

seja, a primeira função do crítico é fazer a análise da obra e no fim a sua síntese.

Portanto, conseguir que o leitor ou ouvinte da sua crítica fique com uma ideia de quais

são os elementos que compôem a obra e qual a qualidade desses elementos, como é que

eles se conjugam e como é que eles todos juntos dão lugar a uma obra mais ou menos

una, e a que ponto essa obra tem valor e porque é que tem esse valor. (...) a crítica é

muito mais do que dizer se é bom se é mau, tem é que fundamentar aquilo que afirma,

tem é que analisar cada um dos produtos, e a análise pode nem ser muito directamente

dizer bem ou dizer mal, mas sim um levantar dos problemas e dos elementos que a obra

contém, um descascar de toda a matéria contida no filme para que ele seja mais

facilmente analisável pela generalidade do público nos seus pontos positivos e nos seus

pontos positivos.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital)

«Há várias hipóteses. Penso que a crítica poderá reflectir com a obra, ter uma

certa autonomia em relação à obra, ou poderá ter uma outra função que é uma função

mais bélica, digamos assim, que é uma função de desmistificação. Desmistificação de

situações que são geradas em torno de falsos consensos, todo esse tipo de situação que

a crítica também pode funcionar como desmistificadora. Por outro lado, no quadro da

complexidade, a crítica também será sempre um pensamento paralelo à obra, mas

penso que terá de ter sempre em conta a obra. Não penso a crítica, de maneira

nenhuma, como uma forma de espremer a obra, de clarificá-la, de trocá-las por

moedas muito miúdas. Não penso que a crítica tenha a função de tornar a obra

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acessível ao grande público, não penso que seja essa a função da crítica.» (Carlos

Vidal, crítico de artes plásticas na Capital)

Ainda no âmbito da análise da valorização dos diversos actos e componentes que

constituem a prática e o discurso do crítico, os depoimentos atrás referenciados, para

além das tendências sugeridas, revelam-nos ainda uma outra suficientemente importante

para aqui a considerarmos: a diluição da componente judicativa, do acto de avaliar

esteticamente - outrora razão de ser do próprio discurso crítico - numa série de outras

componentes ou actos tanto ou mais valorizados que este. Efectivamente, apesar de

notarmos que a preocupação com a dimensão do juízo de valor se revela, de forma mais

ou menos explícita, transversal a todos os segmentos da crítica, a apreciação estética já

não aparece como missão principal do crítico ou, quando aparece como tal, encontra-se

sempre dependente de um trabalho prévio de análise e de contextualização estética, e já

não sob a forma de juízo categórico, em si e por si - "isto é bom porque gosto!" ou "isto

é mau porque não gosto" e pronto, discurso normalmente inflamado por uma

adjectivação profusa. É neste sentido que vão os seguintes testemunhos, que podemos

adicionar aos anteriores:

«(A crítica...) É um julgamento. É isso fundamentalmente. Julgar uma coisa,

situá-la num contexto, que é o contexto geral, que é o contexto da obra do artista. E em

função disso julgá-la. Para isso é preciso analisar, fazer aquelas operações normais.

Mas depois, no fim, é preciso fazer um julgamento. Não é um julgamento definitivo, é

sempre um julgamento relativo, porque o julgamento é feito por uma pessoa e não por

outra, e depois é feito num contexto que tem alterações sucessivas, constantes. É um

julgamento, é uma avaliação que tem que ser reavaliada muitas vezes. Não quer dizer

que seja para a mudar, mas deve ser reavaliada.» (João Pinharanda, crítico de artes

plásticas no Público)

«Evidentemente que o que se pede a um crítico é uma opinião. Um crítico é um

homem de opinião. E uma opinião implica saber articular ideias, ideias próprias tanto

quanto possível. Não é só olhar para uma pintura, implica estudar tudo o que possa ter

a ver com essa pintura, e a partir daí formular uma opinião. Dizer onde é que se pode

incluir essa pintura, não só a nível informativo como a nível formativo.» (Eurico

Gonçalves, crítico de artes plásticas no Diário de Notícias)

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«A crítica eu acho que é basicamente um juízo de valor entre um sujeito e um

objecto. Portanto, implica uma análise, a desconstrução do objecto através da

informação o mais sistemática e exaustiva possível que o sujeito tem sobre aquele meio,

aquela forma de expressão na qual se situa o objecto criticado. (...) E eu acho que ela

deve fornecer ao leitor uma opinião o mais fundamentada possível sobre aquilo de que

se está a falar. Deve-se desmontar o objecto e dissecar cada uma das suas

componentes, e depois dar uma visão global e conclusiva sobre os méritos ou as

deficiências desse objecto. E tentar apontar a especificidade desse filme, no que é que

esse filme é diferente dos outros, o que trás de novo, no que é que ele se demarca dos

outros, qual é o seu tímbre, tudo isso.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no

Independente)

A destronização do juízo de valor ou a sua reposição numa posição de

dependência de uma análise prévia do objecto, do tipo imanente ou contextualista, surge

num contexto profundamente marcado pela proliferação de agentes e de meios de

comunicação a veícularem discursos críticos, muitos deles bastante diferentes senão

mesmo contraditórios entre si, o que vem, de algum modo, desestabilizar a relação de

fidelidade entre o crítico e o seu público que sustenta e justifica a efectividade do juízo

em si mesmo e por si só. Com efeito, considerando que, tal como refere Alexandre

Melo, «o juízo de valor categórico só funciona, e nessa medida só se justifica, se houver

uma afinidade de base ou uma empatia automática entre crítico e público», ou seja, «é

preciso que o receptor reconheça a priori a legitimidade e a autoridade de quem a

enuncia», e considerando ainda que nos encontramos «numa época histórica em que os

"papas" do gosto e os "sábios" incontestados são cada vez mais raros», esta componente

deixa efectivamente de deter a importância que teve noutras épocas, «em que existiam

poucos críticos ou poucos meios de comunicação com um efectivo peso na opinião

pública.»26 Isto é, se, em meados do nosso século, um Gaspar Simões «podia fazer de

um livro um Lázaro impresso: levanta-te e vende-te. (...) Hoje, diz Eduardo Prado

Coelho, a televisão vale dez Gaspar Simões.»27

Por outro lado, numa época como a nossa em que os modelos normativos de arte

e de crítica e, consequentemente, os critérios fixos e supostamente universais (porque

26 Idem, p. 62.

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socialmente consensuais) de avaliação estética se eclipsaram e se "pessoalizaram", o

crítico deixou de se poder armar do papel de juíz, justamente porque o seu tribunal se

viu sem leis a aplicar, tendo esta situação também contribuído para a destronização do

juízo de valor como tarefa primordial da crítica, desviando-a para um percurso de

entendimento e de acompanhamento reflexivo, também ele criativo e pessoal (em

termos das "ideias" que operacionaliza na abordagem do objecto artístico), sobre as

novas (quando não também as antigas) proposições estéticas, mais preocupado em

interrogar e compreender as propostas de criação que em fixar-lhe normativa e

perentoriamente as formas e/ou os conteúdos.

Ora, certo é que a articulação dos vários elementos que enunciámos no discurso

crítico faz com que este comporte sempre um determinado grau de investimento

afectivo e/ou intelectual sobre os objectos que aborda, investimento esse que vem a

revesti-los de uma dimensão simbólica particular em relação aos objectos comuns da

experiência quotidiana. Nesta óptica, as características específicas do seu discurso,

combinadas com as particularidades associadas ao seu lugar social, fazem do crítico

uma peça central no processo de legitimação cultural quer no próprio interior do

universo artístico, quer ao nível da sociedade global, permitindo-lhe entrar de forma

discreta mas concreta no circuito de elaboração dos consensos informais em que

assentam os processos de certificação e valorização das obras, e de nomeação e

consagração dos respectivos autores.

Ao assegurar o testemunho impresso do reconhecimento do criador enquanto tal

num grau de difusão mais ou menos alargado, garantindo a quem o lê e com ele

contacta, pelo poder das competências de que é socialmente investido, a qualidade e o

sentido estético das obras apresentadas, o crítico não deixa, efectivamente, de exercer

através da sua acção uma pressão fundamental na dimensão simbólica do sistema das

artes, detendo um papel central na operação de produção social dos criadores e da arte

enquanto tal, através do qual determinados artistas e obras são nomeados e instituídas,

conhecidos e reconhecidos, aos seus olhos e aos de todos quantos os rodeiam, como

valores culturalmente legítimos, intervindo também directa e alargadamente na

estruturação da relação mantida entre o sistema das artes e o conjunto do sistema social.

27 Cit in CUNHA, Sílvia, "Onde estão os Críticos?", in Sete, 27 de Junho de 1991.

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No entanto, é necessário precisar que apesar da acção do crítico ser uma peça

fulcral no círculo de produção e de legitimação do autor e da sua respectiva obra como

valores artísticos, ele não detém por inteiro o monopólio do processo de nomeação, ou

seja, do acto de designação que faz existir aquilo que designa em conformidade com a

sua designação. Quer-se com isto dizer que não devemos conceptualizar o crítico como

elemento determinante naquele processo mas apenas como condicionante, já que nele

também contribuem, em modalidades e com autoridades diferentes, a acção de todos os

restantes agentes mediadores individual ou institucionalmente activos no campo

artístico, assim como a dos próprios públicos ao apropriarem-se material e/ou

simbolicamente das obras classificadas como artísticas, apropriação essa que, ao

implicar um processo de identificação subjectiva e de reconhecimento objectivo da obra

enquanto arte, não deixa de lhe conferir também uma significação especial, cujo valor

irá depender do "valor cultural" da própria posição do consumidor na estrutura social.

Por aqui ficam então demonstrados e discutidos, em traços gerais, os principais

pressupostos teóricos de partida deste trabalho, os quais não só justificam mais

aprofundamente a escolha do seu objecto de estudo, justificação já previamente

desenhada na nossa introdução, como também definem uma posição possível no interior

da Sociologia das Artes. Resumidamente, esses pressupostos consistem em considerar:

1) em contraponto à concepção romântica da arte como produto de fazedores

individuais, excepcionalmente dotados ou divinamente inspirados, que toda a acção

artística surge enquadrada num sistema de acção colectiva que a define como tal, onde

nesse sentido colaboram múltiplos agentes individuais e institucionais, em modalidades

e com graus de autoridade diferentes;

2) tentamos não resvalar, contudo, para posições teóricas demasiado extremistas,

totalitárias e deterministas, o que implica encarar o artista não como um sujeito

completamente livre e independente, cuja acção criativa é inalienável, nem tão pouco

como um agente reduzido a efeitos das estruturas sociais, económicas, institucionais e

políticas, mas como um protagonista cuja acção apresenta também alguma efectividade

na dinâmica de funcionamento do sistema das artes: se ele se encontra subordinado a

uma ordem mais ou menos institucionalizada, permanecendo integrado numa série de

condições que o afectam, assim como ligado a uma rede de relações onde mantém um

posto que lhe é destinado e que o autoriza na assumpção desse posto, ele não deixa

também, nas condições oferecidas, de ser sujeito-autor e produtor da sua própria obra

não apenas na sua materialidade mas também na sua dimensão simbólica característica,

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ao mobilizar e investir recursos subjectivos que se irão traduzir na relevância cultural da

sua obra, e ao accionar os primeiros gestos que, se bem que não delimitem

imediatamente o seu estatuto, pelo menos apontam para ele;

3) o retorno ao sujeito, enquanto autor, não implica necessariamente o abandono

da análise da acção dos que o rodeiam e que o nomeiam e o autorizam a agir como tal,

processo no qual a figura do mediador cultural desempenha um papel fundamental, não

só por assegurar e estruturar a relação entre o sistema das artes e a sociedade no seu

conjunto, mas também pelo facto da sua acção fazer parte integrante do círculo de

produção social da arte e do artista enquanto tal; o que importa é restituír e aprofundar o

âmbito da sua acção nas suas componentes, particularidades e efeitos específicos às suas

diferentes modalidades;

4) a nossa escolha recaíu sobre o crítico na medida em que o desempenho da sua

prática discursiva revela-se central, pelas características associadas ao seu lugar social e

pelas componentes específicas que contém, na construção social da excepcionalidade do

objecto de arte e da singularidade do artista, dotando estas instâncias de uma dimensão

simbólica particular.

Ao pretendermos apreender e explicar a historicidade da prática crítica na sua

especificidade, ou seja, o seu processo de construção e institucionalização enquanto

espaço social relativamente autónomo, com propriedades e particularidades que lhe são

próprias - isto sem esquecer, obviamente, que se trata de uma prática social e cultural

"emparedada" que intervém simultaneamente em vários espaços sociais, possuíndo um

lugar específico quer no espaço de produção artística, quer no espaço de recepção

cultural, quer ainda no espaço de difusão discursiva que constitui os mass media,

nomeadamente no jornalismo impresso, espaços sociais esses que não a deixam de

afectar na sua forma e sentido de actuação, assim como na sua eficácia simbólica -,

recorreremo-nos do conceito de campo de relações sociais tal como este é entendido

por Bourdieu.

Se a localização e caracterização da acção do crítico nos espaços sociais em que

se move com esse estatuto, fazendo a eles corresponder o conceito de campo, não se

apresenta muito problemática e discutível, justamente porque a utilização deste conceito

a esses mesmos espaços sociais já foi amplamente problematizada e discutida28, sendo a

28 Sobre o campo de produção cultural existe uma larga bibliografia, da qual destacamos os textos de Bourdieu "A institucionalização da anomia" e a "Génese histórica de uma estética pura" in O Poder Simbólico, op. cit., pp. 255-298, assim como "La Production de la Croyance...", op. cit., pp. 3-43; sobre o

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localização do lugar do crítico no âmbito da sua circunscrição pouco polémica, já a

hipótese de uma adequação entre a noção de campo e o espaço particular da prática

crítica, demanda a justificação da sua pertinência. Até que ponto o espaço específico da

crítica corresponderá realmente a um campo estruturado na acepção bourdiana do

termo? Em que medida devemos pensá-lo enquanto campo de relações sociais? A

resposta a tais perguntas impele, desde logo, a uma rápida apresentação dos traços que,

teoricamente, definem o conceito de campo segundo Bourdieu.

1.2. DO CONCEITO DE «CAMPO» DE RELAÇÕES SOCIAIS

Apesar de Pierre Bourdieu não ter ainda formalizado e apresentado

sistematicamente a sua "teoria dos campos", este autor, na sua vasta produção teórica,

tem vindo progressivamente a desenvolver e a utilizar esse conceito na análise de

diversos domínios de práticas sociais específicas, chegando deste modo à inferência de

um conjunto de argumentos teóricos e de grandes linhas de abordagem conceptual,

construídas com base nas regularidades que constatou empiricamente, conjunto esse

que, na nossa opinião, é passível de instrumentalizar com bastante utilidade no estudo

de fenómenos ou domínios sociais até agora pouco ou nunca por ele analisados.

Apesar de ser frequentemente alvo de múltiplas e, por vezes, violentas acusações

e críticas29, devido à dureza com que os conceitos são inter-relacionados em algumas

zonas específicas desse modelo teórico (nomeadamente no que concerne à questão das

homologias entre campos, e da adequação que apresenta entre as posições no campo e o

habitus dos seus respectivos ocupantes)30, o facto é que quando explorados com

pertinência e profundidade, tendo sempre em conta a realidade específica do espaço

espaço de recepção cultural propriamente dito, também podemos remeter para a obra de Bourdieu La Distinction - critique sociale du jugement, Paris, Minuit, 1980, assim como para o seu texto "Anatomie du goût", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 5, Outubro de 1976, pp. 18-43; sobre o campo dos media, ver Bourdieu, "L'Emprise du Journalisme", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 101/102, Março de 1994, pp. 3-9, e ainda Adriano Duarte Rodrigues, O Campo dos Media, Lisboa, Regra do Jogo, 1984. 29 Um exemplo ilustrativo da radicalidade contra a posição teórica de Bourdieu é patente no texto de Paulo Monteiro "Os usos das artes na era da diferenciação social: críticas e alternativas a Pierre Bourdieu", in Comunicação e Linguagens, nº 12-13, 1991. 30 "Dureza" essa que, justiça seja feita, tem vindo a ser bastante flexibilizada e relativizada pelo próprio autor ao longo do tempo, com a introdução de novos conceitos (como o de espaço dos possíveis associados à posição no campo) e com a discussão e o aprofundamento de "velhos" conceitos e da sua inter-relação (como o de habitus e da sua relação com a posição no campo).

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onde que são operacionalizados, esses conceitos oferecem uma riqueza heurística

bastante alargada e manobrável empiricamente.

As potencialidades heurísticas do modelo dos campos de Bourdieu serão tanto

mais vastas se, ao assumi-lo como paradigma de referência, não nos privarmos de com

ele cruzar outros contributos teóricos quando acharmos pertinente, num esforço de

alongamento e aprofundamento conceptual. É essa a nossa intenção ao importamos para

o âmbito deste trabalho instrumentos analíticos disponibilizados quer pela Sociologia da

Comunicação, quer pela própria Semiótica, os quais, numa tentativa de

interdisciplinaridade entre as perspectivas cultural e comunicativa, nos ajudarão a

responder de modo mais aprofundado às problemáticas da crítica como prática

discursiva integrada na dinâmica de funcionamento específica do campo dos media.

Assim sendo, o objectivo deste capítulo será, justamente, o de dar conta desse

conjunto de argumentos e vectores teóricos que, reunidos, têm vindo a fundamentar a

construção do conceito de campo, isto com vista à sua operacionalização no caso

concreto do domínio da prática crítica, assim como na sua localização nos espaços

sociais onde se insere. Sem pretensões de discutir em profundidade, pelo menos nesta

fase, os problemas propriamente teóricos desse conceito (que passam pela questão de

ser atravessado ou não por uma concepção demasiado estruturalista ou holista da análise

das práticas sociais e da relação indivíduo/sociedade), vejamos então o que Bourdieu

entende por campos de relações sociais, tratando tão-somente de apresentar as

propriedades regulares ou "leis gerais" que, na sua perspectiva, atravessam os campos

indiferentemente (se bem que em cada um possam tomar formas diferentes e

específicas), assim como de explicar a especificidade da aplicação deste conceito ao

espaço da prática crítica.

Nas suas palavras, os campos, na sua dimensão sincrónica, constituem-se como

«espaces structurés de positions (ou de postes) dont les propriétés dépendent de leur

position dans ces espaces et qui peuvent être analysées indépendamment des

caractéristiques de leurs occupants (en partie déterminées par elles)»31. Entende-se

assim como campo como um domínio estruturado de relações sociais, que compreende

uma topologia de lugares ou posições assimetricamente diferenciadas e diferenciadoras

(do ponto de vista das relações de poder entre elas estabelecidas) respectivamente

ocupadas por uma pluralidade de protagonistas que nele interagem e desenvolvem

31 BOURDIEU, Questions de Sociologie, Paris, Minuit, 1980, p.113.

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estratégias específicas no sentido de defender ou melhorar a sua posição específica,

sendo então essas acções objectivamente orientadas pelas propriedades inerentes às

diferentes posições de quem as desenvolve no interior dessa estrutura e não pelas

características intrínsecas aos referidos protagonistas.

Quer isto dizer que as propriedades objectivas subjacentes à posição adquirida

na estrutura do campo se irão reflectir no comportamento, interesses e estratégias

desenvolvidas pelo(s) agente(s) que a ocupa(m), condicionando o modo como aquele(s)

intervirá(ão) no campo e se relacionará(ão) com os restantes elementos do mesmo,

estabelecendo com eles nexos de cumplicidade, de conflito ou de coexistência pacífica

consoante as posições por eles ocupadas. É neste sentido que, segundo Bourdieu, o

espaço de posições tende a comandar o espaço de tomadas de posição32.

No entanto, cuidando de desmistificar e relativizar o determinismo linear que

desta relação pudesse porventura transparecer, o autor sublinha que «pour si grand que

soit l'effect de champ, il ne s'exerce jamais de façon mécanique et la relation entre les

positions et les prises de position (...) est toujours médiatisée par les dispositions des

agents»33 ou, o mesmo será dizer, pelos seus habitus. De extrema disponibilidade

teórica e operacionalização empírica, este conceito refere-se ao sistema de

pressuposições e de disposições estruturadas e estruturantes, ao conjunto de crenças e

referências, ao capital de técnicas e saberes específicos incorporado pelo sujeito, o qual

vai funcionar como matriz prática de orientação das suas escolhas, estratégias e

interesses próprios, permitindo-nos a captação da dialéctica entre a interiorização da

externalidade e a exteriorização da interioridade subjacente a toda a acção social.

E como se constitui internamente o habitus? Que tipo de efeitos o constroem e

nele habitam agregadamente? Primeiramente, há em Bourdieu uma relação entre

sistemas de disposições e sistemas de posições que começa por ser marcada pela

reciprocidade. Os habitus, enquanto sistemas de disposições, não se realizam

efectivamente senão em relação a uma determinada estrutura de posições socialmente

demarcadas, sendo sempre contaminados pelas propriedades objectivas do lugar que

ocupam na medida da interiorização que é efectuada pelos seus detentores;

simultaneamente, é através da externalização das disposições interiorizadas que se

32 BOURDIEU, "Le Champ Littéraire", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 89, Setembro de 1991, p.19. 33 Idem, p. 35.

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realizam as propriedades inscritas nas posições e que os seus ocupantes dão a perceber

que as ocupam.

É sob este ponto de vista que, para Bourdieu, os interesses específicos dos vários

agentes activos no campo, assim como as estratégias por eles accionadas face a esses

mesmos interesses, não são inevitavelmente produto de um cálculo cínico e utilitarista,

ou de uma procura consciente por parte desses agentes em relação aos lucros específicos

que delas poderão advir; são, pelo contrário, acções objectivamente orientadas (em

direcção a fins que podem não ser os subjectivamente afirmados), resultantes de uma

total ou parcial relação de ajustamento entre as propriedades da posição detida pelo

indivíduo na estrutura do campo e o habitus de que é portador. É neste sentido que o

autor afirma que «l' habitus, système de dispositions acquises par l' apprentissage

implicite ou explicite qui funcione comme un système de schèmes génerateurs, est

génerateur de stratégies qui peuvent être objectivement conformes aux intérêts objectifs

de leurs auteurs sans avoir expressément conçues à cette fin»34.

Todavia, a reciprocidade aqui preconizada na relação entre disposições e

posições não é de modo algum totalizadora, não implica total conformidade, pois existe

todo um processo de constituição do habitus que é prévio e/ou colateralmente

continuado ao seu ajustamento a determinada posição em determinado campo. Muito

embora seja de facto também devedor da estrutura e do funcionamento do campo em

que o indivíduo se insere e, simultaneamente, condição da sua organização e dinâmica,

responsabilizando-se, nessa medida, pela a articulação das práticas, valores e

representações dos agentes com a estrutura de posições objectivas em que se encontram

respectivamente inseridos, na constituíção interna do habitus confluem ainda todo um

conjunto de efeitos provenientes de factores institucionais, situacionais, conjunturais,

de trajectória social e profissional, de experiência subjectiva e de projecto individual,

que o livram de um entendimento linear e determinista como simples produto da

posição objectiva do seu interlocutor na estrutura do campo em que se inscreve35.

Deste modo, se tomarmos o habitus como um sistema de disposições

«conferidas na origem, adquiridas no trajecto e devedoras das interacções com os seus

outros mais próximos na actividade profissional assim como imputadas pelas

instituições por onde passa»36, tendo o cuidado de repôr, a par das suas dimensões

34 BOURDIEU, Questions de Sociologie, op. cit., pp. 119-120. 35 CONDE,O Duplo Écran. 2.Artistas..., op. cit., pp. 35-36. 36 Idem, p. 32.

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estruturais, as dimensões intencionais, reflexivas e contingentes da acção social que

gera e orienta, o espaço das tomadas de posição não fica assim inevitavelmente

confinado ao determinismo das posições de onde parte, sendo sempre mediado pelos

factores acidentais próprios da temporalidade conjuntural, da trajectória social e das

propriedades decisionais e intencionais do indivíduo.

Por outro lado, Bourdieu chama ainda a atenção para o facto de a cada posição

no campo corresponder um dado repertório de potenciais ou virtuais opções possíveis

que se oferecem como espaço de tomadas de posição em determinado momento e

contexto. A noção de espaço dos possíveis, como lhe chama, representando, no seu

dizer, «l'univers fini des libertés sous contraintes e des potencialités objectives, choses à

faire, problémes à résoudre, possibilités stylistiques ou thématiques à exploiter,

contradictions à dépasser, voire ruptures révolutionnaires à opérer»37, rompe assim de

uma só vez quer com a ideia da liberdade absoluta, exaltada pelos defensores da

espontaneidade individual total, quer com os determinismos reducionistas e

mecanicistas que o seu modelo poderia até aí pressupôr, dando lugar também à

alternativa (versus reprodução).

Corresponde, no fundo, à definição social do que é permitido a qualquer um e do

que ele se pode permitir a si mesmo como projecto e intenção, estabelecendo a sua

margem de liberdade na tentativa de ultrapassagem dessa mesma margem e

funcionando, deste modo, como princípio de orientação das aspirações transgressoras

socialmente consentidas. Irá ser então o espaço de tomadas de posição que os mais

audazes tentarão explorar e desenvolver até às últimas consequências, gerindo o

conjunto dos possíveis que corporizaram em condição, identidade e trajecto com o

conjunto dos possíveis consentido pelas propriedades objectivas dos seus meios de

pertença.

O espaço de tomadas de posição é assim conceptualizado sob a forma de uma

certa estrutura de possibilidades socialmente oferecidas, estrutura essa que comporta

sempre uma quota parte de indeterminação, ligada ao facto dos agentes, por mais

estritas que sejam as propriedades inscritas na sua posição, disporem sempre de uma

margem objectiva de liberdade, que eles aproveitam consoante as suas disposições

objectivas, interiorizadas ao longo da sua experiência social. O maior ou menor grau de

elasticidade do espaço dos possíveis concedido à acção social do indivíduo ou, o mesmo

37 BOURDIEU, "Le Champ Littéraire", op. cit., p. 36.

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será dizer, a margem de liberdade ou de direitos deixada à interferência das duas

disposições subjectivas num dado momento, irá variar substancialmente, segundo

Bourdieu, com a situação de autonomia do campo em que se move, com o grau de

institucionalização do lugar que lhe corresponde, assim como com a posição que ocupa

na estrutura de relações de força que constitui o campo, esta em grande parte

dependente do capital simbólico acumulado ao longo da sua trajectória, ou seja, o

capital comummente denominado de prestígio, reputação ou nome feito38.

Neste contexto, quebrando a partir daqui o suposto determinismo linear e

mecanicista que pudesse ser abusivamente lido da relação que constata entre espaço de

posições e espaço de tomadas de posição, o autor argumenta que cada tomada de

posição (seja ela de ordem temática, estilistica, ética, estética...) define-se

objectivamente não apenas por relação ao universo das tomadas de posição

correspondentes às diferentes posições, mas também por relação ao espaço dos

possíveis que se encontram indicados e sugeridos na própria posição, o qual irá ser

gerido conforme o sistema de disposições de quem agencia a tomada de posição e os

direitos que lhe são estatutariamente concedidos e reconhecidos no momento, na

situação e no contexto em que actua.

Temos então até aqui a noção de campo como um espaço de relações sociais

específico e delimitado, onde se entrecruzam e jogam interesses (individuais e/ou

colectivos) diferenciados, por vezes opostos, produto das diversas posições objectivas,

elas próprias em oposição, que constituem a estrutura do campo, e dos diversos habitus

que delas decorrem e que elas exigem. São esses interesses que vão informar as

diferentes estratégias ou tomadas de posição accionadas, com todos os poderes de que

dispõem, pela pluralidade de agentes e/ou instituições em confronto no campo,

estratégias essas escolhidas na base do espaço de possibilidades potencialmente

disponíveis na estrutura do campo como instrumentos e objectivos de luta, recaindo essa

escolha, obviamente, sobre as opções que lhes parecem mais em consonância com as

suas intenções e interesses específicos.

O campo torna-se assim num palco de lutas estratégicas e de concorrência feroz

em torno da imposição e legitimação de interesses objectivos específicos e distintos,

constituindo-se a sua estrutura como um estado de relações de força (de dominação e

de subordinação) entre os diversos agentes e/ou instituições que nele assumem posições

38 Idem, p. 43.

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assimetricamente diferenciadas do ponto de vista do poder simbólico que detêm para

imporem e legitimarem os seus interesses específicos - poder esse conceptualizado

como aquele que só é passível de ser exercido se fôr conhecido e reconhecido como

legítimo (e, como tal, ignorado como arbitrário) quer entre os que o exercem, quer entre

os que lhe estão sujeitos: nas palavras de Bourdieu, «o poder simbólico é, com efeito,

esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não

querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem»39.

A distribuição desigual e assimétrica do poder simbólico, fenómeno que está na

base da estruturação e da dinâmica de funcionamento de qualquer campo, comandando

os diversos interesses e as estratégias que os diferentes agentes e/ou instituições

accionam na luta que os opõe e cujo móbil é sempre o monopólio da autoridade na

definição de uma visão sobre o campo e o monopólio da violência legítima na sua

imposição sobre os restantes elementos do campo, resulta, por sua vez, da desigual e

assimétrica distribuição do capital específico que é exigido no seu interior - conjunto de

competências formais e emocionais, técnicas e sensitivas, saberes (dizer e fazer)

instituídos e constituídos no campo como legítimos e, como tal, nele requeridos.

Quer isto dizer que a localização dos diversos agentes e/ou instituições na

estrutura hierárquica do campo, assim como os seus interesses e as estratégias por eles

operacionalizadas neste, vão variar consoante o volume e a estrutura de capital

específico que esses mesmos agentes e/ou instituições conseguiram mobilizar ao longo

da sua trajectória social e das lutas em que participaram anteriormente, lutas essas

realizadas justamente em torno da permanência ou da transformação da estrutura de

distribuição de capital específico no campo, da imposição ou subversão do volume ou

espécie de capital requerido e definido como legítimo, bem como da legitimidade da

própria definição. Em suma, o objectivo das lutas simbólicas decorridas no campo

oscila sempre, no seu cerne, entre a conservação ou a revolução da estrutura de relações

de força que impera num dado momento.

Nesta perspectiva, consoante as posições assumidas dentro da estrutura de

relações de força que constitui o campo em determinado momento (posições essas

determinadas pelo maior ou menor volume de capital específico legítimo detido pelos

agentes que as ocupam), os seus protagonistas serão inclinados a operacionalizar

estratégias de conservação dessa mesma estrutura, visando a defesa e a manutenção da

39 BOURDIEU, O Poder Simbólico, op. cit., pp. 7-8.

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doxa (crenças e fundamentos firmados e confirmados como tradição do campo), isto no

caso daqueles que detêm um maior volume de capital específico legítimo, fundamento

da sua posição de dominação e de autoridade simbólica no campo; ou, pelo contrário,

tenderão a accionar estratégias de sucessão ou de subversão da estrutura do campo,

estas preconizadas pelos recém-chegados ou pelos que tentam a sua inserção no campo,

os quais, pelo facto de serem menos providos do capital específico legítimo que lhes é

exigido no campo, vão ocupar as suas posições dominadas.

As estratégias de conservação, essencialmente defensivas, visam sobretudo

conservar a posição de dominação simbólica ocupada e os princípios que a fundam,

fazendo perpetuar o status quo; aparecem por isso associadas ao silêncio, à descrição, à

reserva e ao discurso ortodoxo. As estratégias de sucessão, por seu turno, ainda que

tentando romper com o silêncio estabelecido pelos dominantes, pondo em questão a

aparência de que a sua autoridade é "natural", vão implicar determinados compromissos

com a permanência, com a continuidade: vão ser caracterizadas pela aceitação da

legitimidade da estrutura de distribuição de capital específico tal como está organizada,

assim como da legitimidade de quem a define, pela aceitação dos fundamentos oficiais e

institucionalizados de competência específica, pela subordinação aos paradigmas e

ideais vigentes, pela inovação limitada, prudente, no fundo, pela submissão à doxa do

campo. As estratégias de subversão, pelo contrário, implicam um risco muito maior, até

porque delas também se esperam "lucros" muito mais altos: com a sua adopção, tenta-se

a total reformulação dos princípios de legitimação da dominação no campo e, por

consequência, a própria reestruturação das relações de poder tal como nele estavam

estabelecidas; o seu objectivo principal é reverter a estrutura hierárquica do campo e

transformar os princípios que a fundam, desencadeando mecanismos que tendem para a

heresia, para a heterodoxia, afirmando-se como "ruptura crítica" perante a organização

institucionalizada do campo.

Este sentido de orientação, ou seja, a inclinação demonstrada pelos actores para

a audácia ou para a prudência nas escolhas estratégicas que fazem em termos de

tomadas de posição, dimensão fundamental dos seus habitus, torna-se, nesta óptica,

inseparável do seu sentido de localização na estrutura de relações de força, estando no

princípio da correspondência estreita que se observa entre posições e disposições, ou

seja, as características sociais dos lugares e as características sociais dos agentes que os

ocupam. Assim sendo, uns, os que ocupam os lugares dominantes ou que a eles

pretendem aceder sem grandes transformações na estrutura de distribuição de capital

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específico e nas suas bases de legitimidade - os dominantes e pretendentes -, apostam

no seguro e seguem o rumo da reprodução ou da inovação reconciliadora; os outros,

ocupantes das posições marginais na estrutura de relações de força subjacente ao campo

em que se movem - os dominados -, jogam no incerto e tomam o rumo da revolução. É

a este último grupo que, no fundo, cabe a iniciativa da luta, tentando quebrar a doxa do

campo, rompendo definitivamente com o silêncio e pondo em causa as evidências de

uma existência sem problemas por parte dos dominantes, levando estes a accionar

mecanismos estratégicos de defesa que sustentem a conservação da estrutura do campo

e, deste modo, o lugar privilegiado que ocupam no estado de relações de força que a

constituem.

Nesta perspectiva, o campo, enquanto sistema de relações sociais, vai ser

permanentemente atravessado pelo combate entre interesses e estratégias de

conservação e interesses e estratégias de sucessão e de subversão, todas elas gizadas em

direcção ao monopólio da legitimidade na definição do volume e estrutura do capital

específico, fundamento do poder simbólico e da autoridade detida no seu interior. Pelo

que a sua dimensão diacrónica irá constituir-se justamente na história dos constantes

combates travados entre aqueles que lutam para durar, cujos interesses estão ligados à

permanência e à sobrevivência, à continuidade e à reprodução, à conservação e à

ortodoxia, ou seja, os dominantes na hierarquia da distribuição do capital específico, e

aqueles que lutam para entrar e modificar, cujos interesses se associam à

descontinuidade e à ruptura, à transgressão e à heresia, isto é, os dominados nessa

mesma hierarquia.

Mas se uma das propriedades que atravessam todo e qualquer campo é, no dizer

de Bourdieu, o facto de ser sempre estruturado e de funcionar segundo a lógica da

distribuição e da detenção de capital específico, orientadora dos diversos interesses e

estratégias que nele se contrapõem e motor das lutas constantes que nele se desenrolam,

uma outra propriedade constatada por aquele autor é, justamente, o facto de no cerne de

todos aqueles antagonismos existir uma cumplicidade objectiva entre os vários agentes

e/ou instituições rivais, tornando-os adversários cúmplices. Esta cumplicidade passa

pelo acordo tácito que entre eles se estabelece no que se refere ao interesse na luta, ao

(re)conhecimento das leis ou princípios imanentes que a regulam, à crença no valor do

jogo, assim como no valor do que está em jogo e do que elegem como motivo de luta. É

essa cumplicidade, em última instância, que os leva a esquecer o quanto são desiguais as

"armas" utilizadas na luta, assim como as possibilidades de lhes aceder, (a)parecendo

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tais desigualdades como "naturais" aos olhos de quem as define e de quem a elas está

sujeito.

O facto da estrutura e do funcionamento de todos os campos tender a organizar-

se sempre segundo a mesma lógica, ou seja, segundo o volume e estrutura do capital

específico possuído pelos seus agentes activos, fazendo com que as oposições e lutas

que neles se geram - entre os mais ricos e os mais pobres (do ponto de vista do capital

específico detido), entre os mais velhos e os mais novos, entre os dominantes e os

dominados, entre os poderosos e os pretendentes, entre os sucessores e os hereges, etc -

aconteçam de forma semelhante em todos os campos, produz um curioso fenómeno de

inter-relação e de interpenetração entre campos, o qual Bourdieu denominou de efeito

de homologia dos campos. Com este princípio, o autor pretende dar conta do facto de

cada posição em determinado campo encontrar sempre a sua homóloga noutro campo

diferente, sendo o sistema geral de disposições e pressuposições, ou seja, o habitus

associado a ambas as posições e incorporado pelos agentes que as ocupam em ambos os

campos, de algum modo, semelhante, originando, consequentemente, interesses e

tomadas de posição estratégicas também elas semelhantes na sua génese (podendo

contudo corporizar-se em modalidades de acção diferentes), sem que estas correlações e

correspondências sejam conscientemente procuradas.

No entanto, é de notar que apesar de cada campo possuir características e

particularidades próprias, apesar de deter uma linguagem e um capital específico que

lhe é particular, apesar do seu modo de estruturação e de funcionamento se expressar,

aparentemente, de uma forma específica, nenhum campo pode ser considerado como

uma entidade inteiramente autónoma, como um compartimento-estanque (a não ser

analiticamente, e mesmo deste ponto de vista, um total fechamento de campo pode

tornar-se pouco produtivo heuristicamente). Com efeito, os campos cruzam-se, inter-

relacionam-se constantemente no tabuleiro social, como o demonstram os fenómenos

de intersepção que entre eles acontecem (como acontece entre o campo da arte e o

campo da crítica, este último sempre dependente dos objectos que no primeiro são

criados, ou entre o campo da crítica e o campo dos media, espaço onde o discurso

produzido no primeiro é mais amplamente divulgado), tal como os fenómenos de

sobreposição que também entre eles existem (patentes, por exemplo, no caso do campo

da pintura, o qual faz parte do campo da arte e este, por sua vez, do campo de produção

cultural).

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O facto de existirem fenómenos de inter-relação, de intersepção e de

sobreposição entre diversos campos, não invalida, porém, que cada um disponha da sua

própria autonomia relativa, a qual é passível de ser medida tendo em conta quer a

capacidade que tem de produzir os critérios que fundamentam a sua organização e a sua

hierarquização interna, quer a sua capacidade de definir as condições gerais ou

princípios de acesso aos lugares que tem disponíveis, quer ainda a sua capacidade de

demarcação e de auto-protecção face ao exterior. Em suma, as características

fundamentais que revelam e contrabalançam o grau de autonomia relativa de um dado

campo serão o nível de independência que demonstra possuír face aos contrangimentos

externos e, consequentemente, o poder de que dispõe na definição da sua própria doxa,

assim como na imposição exterior da sua lógica específica, ou seja, de se impôr

socialmente como instância legitima para criar, sancionar e reestabelecer as regras do

dizer e do agir próprios à sua respectiva esfera.

Por sua vez, para que o campo se constitua enquanto corpo de especialistas com

a legitimidade e autoridade publicamente reconhecida para ditar endógena e

exogenamente o seu sistema de normas e sanções específicas, necessitará de atingir um

nível suficiente de especialização num dado saber instrumental, o qual servirá aos

agentes implicados na sua constituição não apenas como instrumento de gestão nas suas

entradas e saídas, estabelecendo o seu grau de fechamento e de auto-protecção, como

também a ele recorrerão para mobilizar a força com que concorrem nas lutas de

demarcação que desenvolvem interna e externamente.

Perante este quadro de análise, como podemos conceptualizar o grau de

autonomia relativa de um suposto campo da prática crítica? Até que ponto podemos

abordar este espaço ou lugar social enquanto campo de relações sociais no sentido

bourdiano do termo? A resposta a estas questões implica desde logo a verificação do seu

grau de independência ou de subordinação face ao pólo da criação cultural e aos

constragimentos do seu mercado, ao pólo da recepção cultural e no interior da estrutura

organizativa dos mass media, ou seja, diante dos campos que com ele se interseptam e

se inter-relacionam mais directamente. Tendo em conta que tais questões serão ampla e

aprofundadamente retomadas num futuro trabalho, aquando da apresentação sistemática

dos resultados da investigação que até aqui já efectuámos, sendo ainda algumas delas

abordadas ao longo deste, a sua resposta aqui será breve, com o objectivo de apenas

justificar a pertinência da adopção do conceito de campo ao espaço da crítica na sua

especificidade.

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Vimos que um dos indicadores mais importantes do grau de autonomia relativa

de um campo social é o grau pelo qual os seus limites se encontram institucionalizados

numa fronteira protegida por direitos de entrada, sobre os quais existe um consenso

mínimo mais ou menos informal, sendo nessa medida mais ou menos explicitamente

codificados e institucionalizados em medidas de exclusão e integração. Um alto grau de

codificação na entrada do campo, que corresponde a uma institucionalização formal

e/ou oficial de tais medidas, vai a par de uma maior autonomia; a um grau de

codificação menor, onde a regra de entrada no jogo que se joga no campo faz ainda

parte do jogo, corresponde, pelo contrário, um grau de autonomização mais fraco.

O campo da crítica, nesta perspectiva, caracteriza-se na sua entrada por um grau

de codificação institucional relativamente fraco (como, de resto, os campos das artes e

do jornalismo, embora hoje o sejam cada vez menos, com a institucionalização e a

expansão dos cursos oficiais de artes e de comunicação social), sendo uma das suas

propriedades mais significativas a relativa permeabilidade das suas fronteiras em

virtude da diversidade de mecanismos no seu acesso. Fazendo parte fundamental desse

conjunto de direitos de entrada num campo a posse de um saber instrumental específico,

sendo o seu processo de autonomização acompanhado da elevação, reforço e

especialização das exigências em matéria de competências específicas requeridas, da

análise das características dos agentes que entrevistámos atesta-se, porém, que a entrada

no campo da crítica não exige, à partida, a posse de um título institucionalmente

reconhecido (se bem que, no caso dos recém- chegados ao campo, se note que todos

detêm uma formação universitária), ou sequer que, na posse desse título, ele seja

específico da área cultural em que o seu detentor intervém.

Não quer isto dizer que este seja um campo pouco exigente e extremamente

disponível na ocupação dos seus postos, pois a crítica sempre foi e é cada vez mais um

lugar específico ao qual o acesso é reservado a uma minoria, a uma certa intelligentsia

cultural. Tem é no seu processo de regulação da selecção e de fechamento um tipo de

exigências menos explícitas e não institucionalmente codificadas, as quais, em termos

de competências, pressupõem uma componente de saber especializado na área cultural

onde o crítico é suposto intervir - saber esse que, à referência teórica (que actualmente

não é só importada da Estética mas também de outras zonas do saber, como a História, a

Psicologia, a própria Sociologia, etc), é acumulada também a experiência prática com o

produto sobre o qual se debruça -, uma componente de saber-sentir o objecto, que

pressupõe um olhar e uma relação privilegiada, porque informada, sobre esse mesmo

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objecto, assim como uma componente de saber-fazer, associada aos requisitos

linguísticos e conceptuais necessários para passar à escrita os resultados dessa mesma

relação. A par deste tipo de competências, a penetração no espaço reservado à crítica

pressupõe ainda, como passaporte, a posse de um amplo capital de sociabilidades

especificamente ligadas aos meios artísticos e jornalísticos.

De facto, o direito de entrada no campo da crítica não passa, impreterivelmente,

pela detenção de um capital de formação específica academicamente atestado e

legitimado na área em que intervêm coomo críticos. Os capitais que se exigem à partida

no acesso ao lugar da crítica poderão ser acumulados autodidacticamente, de maneiras

diversas, subjectivamente geridos e valorizados. À questão «considera necessário o

crítico possuír algum tipo de formação académica relacionada com a área de actividade

artística em que intervém?», grande parte dos entrevistados concordaram na sua não

obrigatoriedade ou inevitabilidade, muito embora valorizem a utilidade da sua posse em

determinadas circunstâncias: desde que essa formação seja de "qualidade" e desde que o

crítico não se acomode à estreiteza do seu saber academicamente acumulado. É neste

sentido que podemos compreender as seguintes respostas à questão colocada:

«Necessário não será. Se formos a ver, em termos finais, é uma opinião sobre

um acontecimento, e se calhar à partida todas as pessoas serão críticas num momento

ou noutro. Agora, se estamos a falar de algo que em si não é tão simples como possa

parecer, algo que se reduz a duas horas ou ao momento em que se olha para uma coisa,

temos de ter a percepção de que o que está para trás pode ter sido anos, pode ter sido

uma vida inteira, pode ter sido pouco tempo. Neste caso, o conhecimento do que é que

preside a cada forma artística deverá fazer parte dos conhecimentos de um crítico

como uma forma de cultura, que não se deverá limitar também só ao que diz respeito

ao que ele aborda. Há ali uma confluência de uma série de conhecimentos, de

informações que, por sua vez, ele pesquisa para se documentar sobre o que vai criticar,

ou o que tem que criticar, que é feito eventualmente e nos casos em que fôr necessário

para cada situação, mas também implica a procura de uma informação que, embora

não sendo imediatamente necessária, faz parte da cultura de cada pessoa e da

formação que pretende ter ou não ter, e então aí faz as escolhas que considere mais

adequadas ao que pretende ser o seu trabalho.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no

Jornal de Letras)

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«Não forçosamente académica. Na minha opinião, um crítico, talvez seja um

exagero da minha parte, ele tem que conhecer profundamente a sua área, mas também

é importante que ele tenha uma cultura geral boa, porque senão ele tende a tornar-se

demasiado especialista. Ele tem que ser um especialista, mas ele também tem que ser

um generalista. Toda a obra de arte, mesmo aquela chamada a arte pura ou a arte pela

arte, ela faz parte de uma sociedade, e ele tem que perceber todos os sentidos ou pelo

menos a maior parte dos sentidos acessíveis a uma pessoa só. E é óbvio que ele tem que

ter uma cultura geral muito boa, para poder situar essa obra em, por exemplo,

determinadas correntes de sensibilidade, de mentalidade, filosóficas, históricas. Eu

acho que esse é o crítico ideal. Penso que foi o Voltaire que disse que um especialista é

uma pessoa que sabe cada vez mais sobre cada vez menos. E evidentemente isso é uma

coisa extremamente redutora. Agora, a prioridade é a sua área.» (Paulo Nogueira,

crítico de cinema no Independente)

«É útil, não é? Depende também da qualidade da formação académica. Se a

formação académica fôr muito má, como é em geral a formação académica em

Portugal no campo artístico, pode ser contraproducente. Se a formação académica fôr

boa é importante, se fôr má é contraproducente. A minha opinião é que terá de ser

discricional em função do caso concreto. Se me disser se a formação que é dada pela

Escola Superior de Belas Artes de Lisboa é importante para um crítico, eu digo-lhe já

que não, não é! Assim como não é para a formação do artista. Se me falar

eventualmente de outras escolas, direi que sim. Depende. O que é evidente é que o

crítico só pode fazer valer a sua acção se passar por um processo de aprendizagem

intenso, sistemático, e que não se pode localizar no tempo, é contínua. A aprendizagem

do crítico é contínua, é um processo contínuo, quando ele pára, morre. Nesse sentido, o

que é importante é a aprendizagem do crítico, não é a instituição que eventualmente

presta os cuidados de informação.» (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas

no Independente)

«De forma alguma. Eu começo a ter cada ver mais um "part-et-pris" em relação

às academias, porque a academia é um mundo fechado sobre si próprio que raramente

se abre sobre objectos que lhe são estranhos. Curiosamente, os melhores académicos

são académicos que exercem uma actividade fora da academia. Os melhores filósofos

são filósofos que fazem filosofia em jornais, em publicações. De forma alguma. O

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Truffaut era completamente analfabeto em termos curriculares, por exemplo, e foi um

dos melhores críticos. Acho que não é fundamental. No entanto, lá está, há qualquer

coisa que eu não consegui designar nunca senão como «espírito académico» - quando

dá para o torto é terrível -, mas uma pessoas só de andar ali entre aquelas paredes,

respirar aquele ar, organiza. Os autodidactas são menos organizados. O autodidacta

muito inteligente é obviamente melhor que um académico muito estúpido. Mas o

académico muito estúpido tem quase sempre uma forma quase espontânea e intuitiva de

organizar o seu pensamento, enquanto o autodidacta tende à dispersão. Há qualquer

coisa que se aprende. Isto é muito empírico, mas já percebi que as coisas funcionam um

bocado assim. Portanto, provavelmente a academia não é de rejeitar liminarmente.»

(José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público)

«Não. Eu tenho, mas não acho necessário. O Alexandre Melo não tem. A

formação faz-se fora da universidade. A que eu tenho não me serviu para muito. Se

fosse noutro país, se calhar acharia que sim, que faz muita falta, mas agora cá em

Portugal, acho que não faz muita falta. Teria feito falta se eu fosse historiador de arte.

Ou ter-me-ia feito falta, porque sempre aprendi alguma coisa nesses capítulos, que me

servem também agora, em certa medida. Mas não, não acho que seja evidente. A

formação académica geralmente é uma formação atrasada em relação à actualidade, e

ele tem é que se actualizar, e isso é nas bibliografias.» (João Pinharanda, crítico de artes

plásticas no Público)

«Se formação académica é no sentido de dominar um métier... Formação

académica no sentido de diploma... Eu tenho encontrado bons críticos diplomados e

tenho encontrado bons críticos autodidactas. Tenho encontrado bons artistas

diplomados, e tenho encontrado bons artistas autodidactas. Eu sou autodidacta como

artista e como crítico. O Almada Negreiros era um artista autodidacta. E eu costumo

dizer que o autodidacta percebe mais do que os outros, porque o que estuda por sua

própria conta e risco é sem ser para o canudo, enquanto que os outros só estudam para

o canudo. Há uma certa diferença entre o doutorado de carreira e o doutorado sem ser

de carreira, por conta própria. A formação académica... Eu não gosto muito do termo

académico porque pressupõe isso mesmo, pressupõe passar pela escola, enquanto que

se pode ter uma formação mais autodidáctica. Mas, de qualquer forma, é necessária

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uma formação intelectual seja ela qual fôr, seja feita onde fôr.» (Eurico Gonçalves,

crítico de artes plásticas no Diário de Notícias)

«Isso também é variável. Hoje em dia, de um modo geral, os críticos tem

formação académica porque tiraram cursos, determinado tipo de cursos, no meu tempo

isso não acontecia, escrevia-se muito mais espontaneamente. Eu tinha um curso

superior mas não tinha nada que ver com teatro, eu quando fiz teatro em Direito não

era por causa do Direito. Isso é variável. Agora quanto mais preparado, quanto maior

for a bagagem que tiver o crítico, e o crítico nunca está feito, está sempre a fazer-se,

evidente que a experiência conta muito, mas quando começa, mesmo assim ainda verde,

terá que ter um máximo de preparação como em qualquer outra profissão, ter o

máximo de bagagem para errar menos.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário

de Notícias)

«É uma ajuda, é evidente que a formação académica é sempre uma boa base,

mas em tudo na vida é possível obter os conhecimentos por via académica ou por via

da experiência, embora a via académica tenha a vantagem de dar uma boa base teórica

e é sempre conveniente ter uma boa base teórica para depois a prática ser

correctamente desenvolvida.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital)

«Isso aí é muito variável. Eu considero que a crítica de arte tem regras próprias

e tem uma metodologia. Um crítico pode provir de muitos campos do conhecimento,

pode provir da engenharia, pode provir da história de arte. Há um caso de um crítico

que é engenheiro por formação, que é o caso do Rui Mário Gonçalves, que exerceu

crítica, hoje já não tanto, hoje trabalha mais ao nível da história de arte. (...) O crítico

pode também ser auto-didacta. Um dos casos paradigmáticos de crítica de arte no

século XX, o Grindberg, era um crítico auto-didacta. Aí, a nível dos pré-requisitos é um

bocado difícil de situar. O crítico tem é que estar muito consciente de que a sua

actividade não é uma actividade empírica, refuto completamente a crítica

impressionista, no sentido de dizer "parece-me que isto é bom, parece-me que isto é

mau, não gosto disto". Esse tipo de crítica impressionista, refuto completamente.»

(Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital)

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Há, no entanto, uma área cultural em que a posse de um capital cultural sob a

forma institucionalizada, ou seja, um título, é bastante valorizada, tornando-se

obectivamente quase imprescindível na área da intervenção crítica. Falamos,

designadamente, na área da Literatura. Pelo menos, dos críticos de livros que

entrevistámos, se por um lado todos têm estudos universitários nesta área específica, por

outro, apenas um, João António Dias, do semanário Independente, subvalorizou a posse

dessa formação (que ele próprio detém). Os restantes, como podemos observar, insistem

bastante na sua valorização:

«Considera necessário um crítico possuir algum tipo de formação académica

relacionada com a área de actividade artística em que intervém? Ás vezes até nem

devia haver. Mas pronto, em princípio, em Portugal é extremanente difícil. Se as

pessoas não andarem na faculdade, com muita dificuldade vão chegar... Até por uma

questão de informação, que exterior às faculdades não existe. Mas em princípio até era

bom que não.» (João António Dias, crítico de literatura no Independente)

«Eu não falaria exactamente em formação académica. Muito sinceramente eu

acho que um certo tipo de crítica muito impressionista e autodidacta, salvo rarissimas

excepções é... A maneira como concebo a crítica passa pela aquisição de um saber que

geralmente só por via académica é que se adquire. Não estou com isto a querer atribuir

à Academia um lugar formal, o qual não reconheço. O que eu acho é que a crítica

pressupõe um saber que geralmente - e digo geralmente, pode não ser sempre - só se

adquire por formação académica, mesmo que seja para depois abandonar esse saber e

adquirir outro saber um pouco diferente. Mas, de qualquer das maneiras, para não cair

em determinado tipo de vícios de autodidactismo, que eu acho que são nefastos, seria

preferível passar por uma formação, que é aquela que geralmente é concedida pela

Academia.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso)

«Eu não acredito em auto-didactismos, portanto tem que haver, mesmo que isso

mais tarde seja uma coisa que 80% nós já esquecemos, de facto uma formação prévia.

Ou seja, eu acho que é importante, ao fazer crítica de livros, ter uma formação

universitária ou equivalente, específica, porque se não temos todos os riscos do auto-

didactismo, que são o deslumbramento, o estarmos a falar em coisas que não... (...) A

formação para mim é muito importante, principalmente numa altura em que muita

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gente é muito autodidacta a fazer tudo e que a cultura é feita à base do que se lê numa

revista ou que se lê num jornal, pior ainda, do que se ouviu no café, e as pessoas acham

que já têm toda a informação sobre o assunto e falam naquilo como se andassem toda a

vida a estudar aquilo.» (Tereza Coelho, crítica de literatura no Público)

«Evidentemente, isso é uma das melhores maneiras de legitimar a sua crítica. É

evidente que se eu tiver um mestrado ou um doutoramento, pelo menos aos olhos dos

outros, tenho mais legitimidade. Que isso modifique aquilo que eu penso, acho que isso

não vai modificar. Não é que modifique muito eu ter mais um diploma, menos um

diploma, mas a pessoa tem que estar sempre a dar provas, a provar que realmente tem

instrumentos e que os seus instrumentos estão a funcionar bem, se o motor não está

estragado. Eu nesse sentido acho que não sou como essas meninos da geração K que

acham que não se tem de dar provas. Eu acho que a pessoa tem que dar provas à

Academia, não é dar provas ao crítico do lado, é à Academia, submeter.se àquelas

coisas, mesmo quando tem que dizer coisas que não quer.» (Patrícia Cabral, crítica de

literatura no Diário de Notícias)

Neste contexto, embora não seja condição liminar de acesso ao campo da crítica

do ponto de vista objectivo, o facto é que a detenção de uma formação académica,

mesmo que não especializada na área de intervenção artística em que se actua, vai

constituindo objectivamente uma condição cada vez mais pretendida e valorizada, isto

nomeadamente se tomarmos em conta que, se por um lado todos os recém-chegados ao

campo tendem a detê-la e a utilizarem-na na sua forma conceptual e metodológica no

exercício da sua actividade, por outro, são os próprios críticos mais antigos a

constatarem essa tendência e a valorizarem a posse desse tipo de capital:

«Considera necessário um crítico possuir algum tipo de formação académica

relacionada com a área de actividade artística em que intervém? Isso penso que sim.

Eu posso falar à vontade, porque não tenho, mas penso que é útil haver uma base

científica para o trabalho crítico, pois penso que é um trabalho de responsabilidade.

Claro que tem que ser uma boa formação, em todos os campos é assim. Mas penso que

sim, penso que há vantagens. E penso que cá em Portugal se está a seguir um pouco

esse caminho. Lentamente, mas penso que vamos chegar lá. No seu caso pessoal... Não,

eu não tenho. Sou uma pessoa que aprende por si própria, sou aquilo a que se chama

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um autodidacta. Só aprendi a ver espetáculos, só que tive a sorte de ver muito bons

espetáculos, sobretudo lá fora. E o meu contacto com as pessoas, o meu trabalho com o

António Pedro, etc, o meu trabalho de bastidores, isso é a minha formação. Não tenho

outra. (...) Eu penso que houve uma mudança há alguns anos: primeiro uma mudança

em que apareceram, como eu disse, críticos com o mínimo de especialização, os jornais

confiaram as suas colunas de crítica a especialistas. Depois essa especialização

tornou-se mais concreta, e nessa segunda fase, que é aquela em que nós estamos

actualmente, verifica-se o aparecimento de críticos com uma formação universitária,

por exemplo no Expresso, vamos dar nomes aos bois, em que há uma outra linguagem,

há uma outra posição face ao objecto criticado, e que a mim me parece muito

interessante. Sou leitor ávido desse tipo de crítica, e portanto há aí uma mudança

qualitativa que me parece muito positiva. (...) Já essa mudança tinha sido importante a

meu ver, e esta última mudança foi talvez ainda mais importante, na medida em que se

deu um nível universitário - bem sei que estas coisas são muito relativas - a uma

actividade que era muitas vezes desprestigiada, aliás injustamente.» (Carlos Porto,

crítico de teatro no Jornal de Letras. Tem vindo a fazer crítica de teatro desde os anos

50)

«O que acontece é que a crítica hoje está especializada. Se fôr à Revista

Colóquio, quem é crítico literário é justamente os professores universitários. Hoje em

dia a universidade tomou conta da crítica. Eu sou secretário da Associação

Internacional dos Críticos Literários, e todos os nossos associados, maioritariamente,

são da área universitária. A crítica já é encarada como uma especialização, como uma

decorrência do próprio ensino da literatura. (...) E como caracteriza, em traços gerais,

o panorâma actual do universo da crítica? Neste momento há uma certa tendência

para que a crítica literária seja uma componente, uma decorrência da vida

universitária. Há alguns críticos, não muitos, dois ou três, que ainda fazem isto por

devoção, por amor. Sou eu, será o José do Carmo Francisco, será o Raúl Teixeira, do

Porto, será o Joaquim Ferreira, seremos assim uma meia dúzia de críticos que fazemos

crítica sem nenhuma preparação especial, a não ser a nossa experiência de vida e de

lermos muito, e de irmos acompanhado isto há trinta anos. Seremos assim uns seis ou

sete, mas somos uma espécie condenada à extinção, porque de facto é a crítica

universitária... Pelo menos numa fase, o universitário quando acaba o curso ou quando

está quase a acabar o curso, vai fazer crítica para se tornar notado e chamar a atenção

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para o seu nome. Depois, a própria carreira universitária encarrega-se de o afastar da

crítica, porque entretanto vêm as especializações, os mestrados, os doutoramentos, essa

coisa toda, e ele acaba por largar a crítica literária, são muito poucos os que

continuam. Portanto, acho que seremos uma meia dúzia deles por amor à literatura e

por amor à crítica, e depois o resto já são os universitários a fazerem a sua própria

carreira.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras. Faz crítica de livros

desde os anos 60)

Mas quer seja por via institucional, quer seja por via autodidáctica, o facto é que

o crítico, para assumir esse estatuto e ocupar o lugar social que hoje lhe é reservado,

mais do que um "gosto requintado", uma familiaridade pragmática com e/ou interesse

diletante pelo mundo das artes, como era outrora, tem que dar provas públicas da

detenção e acumulação de determinados tipos de saber incorporado que remetem para

vários tipos de competências exigidas: por um lado, um capital livresco de referências

teóricas, técnicas e historiográficas directamente relacionado com o campo de saber

específico à área cultural em que intervém, capital esse que poderá ainda alargar-se por

outras zonas do saber estético ou extra-estético.

Por outro lado, um capital acumulado de experiências estéticas práticas, que

pressupõe uma familiaridade, um interesse e um contacto sistemático e prévio ao

desempenho da actividade crítica com as obras produzidas na área cultural em que

intervém hoje criticamente, capital esse que muitas vezes começa por ser acumulado

desde bastante cedo, herdado por via familar ou por redes de sociabilidade mais

alargadas, como os amigos ou colegas de escola (dos 21 críticos entrevistados, 11

confessaram ter começado a interessar-se pela área cultural em que hoje são

protagonistas através de contactos familiares: cinco têm na sua ascendência familiares

que trabalhavam do lado da criação, quatro viram-se estimulados ao consumo cultural

sistemático em determinada área também por familiares próximos que já o exerciam

habitualmente, enquanto dois são descendentes de donos de estruturas directamente

ligadas à produção e visionamento de filmes; para os restantes, os primeiros contactos

com a área em que hoje intervêm como críticos fizeram-se através de um consumo cada

vez mais sistemático e habitual, de algumas experiências profissionais no meio artístico,

da escola ou Universidade, quer no âmbito de uma formação escolar específicamente

artística, quer no âmbito de uma formação extra-escolar ligada a actividades extra-

curriculares desenvolvidas no espaço escolar ).

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Uma disposição de sensibilidade para as artes e para todos os fenómenos

estéticos é também exigida ao crítico, sendo essa disposição traduzida quer na sua

capacidade de epidermicamente se emocionar perante a obra, de sentir o "arrepio"

(positivo ou negativo) que ela lhe poderá causar, quer na sua capacidade de discernir a

"fraude" da "honestidade" estética e ética numa dada obra e de intuír uma medida para o

seu valor, quer ainda na capacidade de perplexidade e de entusiasmo perante o novo,

sensação que traduz a sua atitude de disponibilidade para a inovação, de

"despreconceitualização". É ainda pedido ao crítico, não fosse a sua actividade um

trabalho discursivo, uma competência linguística e uma disposição para a escrita que

seja consubstanciada em valores de clareza e de racionalização discursiva de ideias,

para que a sua performance em termos de ponto de vista e de tomada de posição se

traduza em efeitos sedutores sobre o leitor. Vejamos então, agora nas palavras dos

nossos entrevistados, alguns exemplos bem ilustrativos das competências que acabámos

de enunciar como fazendo parte das condições de acesso ao lugar social da crítica:

«A leitura de uma obra, o ver um quadro, implica ter visto muitos quadros,

implica ter lido muitas obras (experiência prática). É preciso ter visto muitas obras, ter

lido muitos livros para conseguir não só nos pronunciarmos como julgarmos, julgar no

sentido de atribuir um valor. Aí, a competência tem a ver com qualquer coisa que se

acumula, que é da ordem da acumulação, e por outro saber que não é da ordem da

acumulação mas que é da ordem da intensidade, mais vertical, que é uma espécie de

intui... não é intuição... De facto a capacidade de ler e de relacionar não tem só a ver

com saberes anteriormente adquiridos. Uma pessoa pode ter montes de saberes,

acumulado montes de coisas, mas jamais conseguirá exercer esse saber de uma

maneira produtiva (disposição de sensibilidade). É preciso ter uma capacidade de

relacionação, de tornar esse saber produtivo na leitura de uma obra. Não estará a

falar aí da tal "sensibilidade" que muitos críticos acham-se detentores? Eu não sei se

é sensibilidade a palavra... eu tenho alguma resistência à palavra. Digamos que não se

trata só do saber, isto é, eu limitaria as coisas um pouco drástica e redutoramente se

dissesse que se tratava só de um saber. Uma obra é uma coisa que nos está

constantemente a lançar armadilhas. Imaginemos: nós temos determinado tipo de

critério de gosto, a obra pode ter uma capacidade de se situa ali num limiar em que nós

somos obrigados a perguntar-nos "gostamos? Não gostamos? Isto é bom? Isto não é

bom? Isto é fraudulento? Isto não é fraudulento?". Fraudulento no sentido de que não é

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exactamente aquilo que parece, desliza facilmente para um limiar que merece já

algumas dúvidas e que nos obriga a ter algumas suspeitas. Ora, é precisamente esta

capacidade de reconhecer, de se conseguir mover neste terreno um pouco movediço, em

que nós somos obrigados a estar sempre a interrogar as nossas próprias suspeitas, daí

é que advém provavelmente a capacidade do crítico. E sobretudo a capacidade mesmo

de saber ultrapassar as resistências que a obra pode oferecer imediatamente (postura

de abertura). Parece-me isso muito importante porque isso acontece com frequência, a

obra oferece resistências imediatas. É preciso saber distinguir de que ordem, de que

natureza são essas resistências, isto é, são resistências porque ela está abaixo do nosso

próprio gosto, do limiar que nós definimos como aquilo que gostamos ou não

gostamos? Ou pura e simplesmente porque não reconhecêmos imediatamente aquilo,

aquilo ultrapassa a nossa capacidade de entendimento imediato e leva-nos a suspeitar

obviamente. E leva-nos a que numa segunda leitura, numa terceira leitura, tenhamos

uma ideia clara para nós próprios.» (António Guerreiro, crítico de literatura no

Expresso)

«(...) é preciso, obviamente, saber-se alguma coisa das matérias que se

analisam, se observam, sobre as quais se fala e se produz discurso valorativo. Eu acho

que, efectivamente, nem todas as pessoas que exercem a crítica teatral, de cinema, de

televisão, literária, estão suficientemente apetrechadas segundo estes parâmetros que

eu estou aqui a definir. Mas na maioria sim. Agora, no que ao teatro diz respeito, como

é considerado que qualquer pessoa pode fazer crítica de teatro porque qualquer pessoa

pode ser artista de teatro, porque qualquer pessoa pode ser actor... Portanto, há aqui

uma falácia de base que depois condiciona tudo o resto. Eu não partilho dessa falácia.

Acho que nem toda a gente pode ser actor, que nem toda a gente pode ser crítico de

teatro, como nem toda a gente pode ser escritor, etc. - Falou-me de "saber". Que tipo

de competências traduzem esse "saber"? Uma competência: saber escrever, ser capaz,

ser competente linguisticamente. Isto que estou a dizer tem mais a ver com a

performance do que com a competence. Mas, apesar de tudo, a nossa performance vai

depender da nossa competência. Eu creio que é preciso saber escrever para saber

traduzir as ideias que se têm sobre o objecto. (...) Depois, ser sensível às coisas,

efectivamente, é quase uma competência. O ser sensível a significa estar aberto a. Estar

aberto a significa não ser preconceituoso excessivamente. É-se sempre preconceituoso,

e tem que se ser para se ter algum gosto, para se defender nas suas afinidades

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electivas. Não se pode ser é dogmático. (...) ser capaz de receber o objecto, volto ao

conselho o Osório Mateus, com alguma inocência. É uma qualidade, não sei se é uma

competência, mas sei que é uma qualidade.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no

Expresso)

«Escrever mais ou menos bem para ser percebido. Ter informação histórica,

curiosidade pelo que vai sendo a mutação de gostos, de formas, de processos e não sei

o quê. E alguma preocupação em fundamentar teoricamente aquilo que corre o risco de

ser do domínio do gosto. Ou seja, fazer suportar o discurso do gosto por uma

informação teórica e histórica.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no

Expresso)

«Desde saber a história da arte em geral e a história do teatro em especial, a

história do teatro universal e a história do teatro português, precisa de ter

conhecimentos de carácter histórico sólidos, precisa de ter conhecimentos a nível da

estética e da sociologia. (...) Portanto, exige uma vasta gama de conhecimentos a vários

níveis e de várias áreas. Por outro lado, tem que ter a qualidade de estar disponível sob

ponto de vista mental, moral, ético, ideológico, sob todos os pontos de vista. Estar

disponível para aceitar, discutir, criar uma polémica consigo próprio perante aquilo

que vê, perante os novos caminhos que o espetáculo aponta, ou os velhos caminhos que

trás, ou que segue. O crítico deve estar disponível num caso ou noutro, não deve

defender a vanguarda por ser a vanguarda, nem deve defender o tradicional por ser

tradicional, deve ser aberto a todas as linguagens possíveis, sem "part-et-prix". Por

outro lado, como já disse e insisto, deve saber escrever, deve aperfeiçoar a sua escrita,

que é o instrumento que ele tem para exprimir a sua opinião, o seu juízo. (...) Com isso

não quero desvalorizar a importância do aspecto "científico" da crítica. Mas quero

valorizar o papel da escrita, se quiser da escrita literária, que a crítica também deve

ser.» (Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de Letras)

«O que eu penso que é realmente fundamental é uma pessoa ter uma bagagem

sobre história de arte portuguesa, sobre história de arte internacional, sobre estética,

sobre filosofia, sobre sociologia, obviamente. No fundo, ter uma bagagem que lhe

permita elaborar um discurso, porque o problema aqui também é um problema de ser

capaz de elaborar um discurso. (...) é preciso dominar essa linguagem, tudo isso. Ora,

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quem não sabe isso, dificilmente consegue expressar aquilo que viu. Pode ler muito

bem o quadro, mas depois não consegue transmitir ao público aquilo que leu.»

(Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras)

«Bem, eu acho que fundamentalmente um crítico tem que ter sensibilidade, tem

que ler muito, sem extensas leituras não se consegue ser crítico. (...) E o que é isso de

ter sensibilidade? - Não quer dizer que eu seja adepto do intuicionismo, isso era o

Gaspar Simões. O Gaspar Simões achava que um indivíduo era bom ou mau por

intuição. Estava a ler um livro e depois ele intuia que aquilo era bom. Embora possa

também reconhecer que o Gaspar Simões poucas vezes se enganou, apesar dos

positivismos todos contra os quais ele combatia, nós hoje chegamos à conclusão que

para aí em 90% dos casos o Gaspar Simões acertou por intuição. Mas eu não sou

realmente adepto da intuição. Mas tem que ter realmente uma cartola de leituras

suficiente para agarrar num livro e perceber que estou em face de um escritor ou que

não estou. Se calhar sensibilidade não é a palavra correcta. Mas é um pouco esse

"feeling" que vem das muitas experiências de leitura.» (Júlio Conrado, crítico de

literatura no Jornal de Letras)

«Tem que ter cultura e sensibilidade. Sensibilidade eu acho que é sobretudo, no

caso da arte, uma capacidade muito grande de empatia, ou seja, ele tem que se

envolver muito profundamente com aquele objecto. Isto é um bocado paradoxal, porque

ao mesmo tempo que o crítico tem que se envolver muito, ele não pode de maneira

nenhuma renunciar à sua capacidade crítica, à sua racionalidade. (...) É muito

importante que ele sinta o objecto porque uma das componentes mais importantes da

arte é justamente o seu teor afectivo. Portanto, é um factor que o crítico não pode

escamotear de maneira nenhuma. Agora, por outro lado, ele tem que preservar a sua

racionalidade, quer dizer, como é que essa emoção foi moldada. Porque a arte é

sobretudo uma técnica e o crítico é um analista dessa técnica. (...) Um crítico de

cinema, para a sua formação, ele precisa não apenas ler sobre a história do cinema,

sobre a estética cinematográfica, sobre técnica cinematográfica, como precisa de ver

os filmes, obviamente. Assim como um crítico musical não pode ser um crítico se não

ouvir as músicas, por mais que ele se informe, leia, fizer pesquisa, etc.» (Paulo

Nogueira, crítico de cinema no Independente)

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«Escrever bem é importante, estava-me a esquecer dessa, escrever em bom

português, é fundamental e cada vez mais terrível, argumentar bem, ser o mais claro

possível, e ser o mais rigoroso possível. (...) Por outro lado, creio que nem toda a gente

que fala de cinema sabe o suficiente de cinema, até porque há a tendência para

negligenciar o factor cultural e sobrevalorizar o factor de opinião. Ou seja, as opiniões

valem pelo que valem e não pela informação cultural, no sentido de informação teórica,

de história do cinema. Acho que é fundamental conhecer-se a história do cinema, é

fundamental conhecer-se alguns trabalhos teóricos sobre cinema, para se falar

consequentemente e argumentar consequentemente sobre cinema. A qualidade da

argumentação, assim como a qualidade do filme, depende extraordinariamente disso, a

qualidade da argumentação depende muito, muito, muito do grau de cultura

cinematográfica de quem argumenta. O grau de cultura cinematográfica inclui ter visto

muitos filmes, e ter lido algumas coisas importantes que se escreveram sobre os

filmes.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público)

«Saber ler e escrever, que é uma coisa básica e que algumas pessoas não

sabem. Depois, ter uma coisa que eu não sei definir, que é ter sensibilidade. Há pessoas

que escrevem sobre arte sem verem, sem saberem ver, portanto é uma sensibilidade

específica, como é específica no caso do cinema, ou da literatura, ou outra. Nas artes

plásticas, muito especificamente, é preciso ter atenção à matéria, ao aspecto físico das

coisas. (...) Não se pode escrever sobre gravura se não se souber como é que a gravura

é feita, sem distinguir a ponta-seca da zinco-gravura, ou qualquer outra coisa. Senão

então as pessoas põem-se a falar sobre o tema, sobre o assunto, sobre não-sei-o-quê-e-

não-sei-que-mais, e não falam do que lá está. A obra de arte tem muito de pensamento,

tem muito de conceito, mas depois é também uma coisa física (competência técnica).»

(João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público)

«Capacidade de análise, conhecimento da língua portuguesa, que para mim é

importante para escrever, e sobretudo conhecimento da arte cinematográfica nas suas

várias componentes. Tem de conhecer tão a fundo quanto possível o cinema, quer

através dos tempos, quer através das suas diferentes matérias, das suas diferentes

componentes.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital)

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Ao conjunto de capitais e disposições apresentadas, estes de ordem propriamente

cultural, teremos ainda que acrescenter um outro requisito não menos importante que

aqueles, do ponto de vista estratégico, como condição de acesso ao espaço da crítica: a

posse de um determinado tipo de capital social, no sentido bourdiano do termo - ou

seja, como «ensemble des ressources actuelles ou potentielles qui sont liées à la

possession d'un reseau durable de relations plus ou moins institucionalisées

d'interconnaissance et d'interreconnaissance; ou, en d'autres termes, à l'appartenance à

un groupe, comme ensemble d'agents qui ne sont pas seulement dotés de propriétés

communes (susceptibles d'être perçues par l'observateur, par les autres ou par eux-

mêmes) mais sont aussi unis par des liaisons permanentes et utiles.»40

Com efeito, as possibilidades de acesso ao lugar social da crítica vêem-se

altamente dependentes e condicionadas pela mobilização, participação e rentabilização

de um amplo capital de relações simultaneamente próximas dos mundos da arte e do

jornalismo, sociabilidades essas que se foram constituíndo ao longo dos vários

percursos de vida nos nossos críticos entrevistados, imprimindo num dado momento um

novo sentido a esses percursos, legitimando e traduzindo em efeitos práticos as

competências culturais já previamente acumuladas das mais diversas formas

(acumulação essa que, maior parte das vezes, não tinha por objectivo a situação que

mais tarde se veio a concretizar, ou seja, ocupar o lugar da crítica):

«(Aceitar o convite de fazer crítica de teatro no Expresso...) Fazia sentido para

mim, era um percurso, era um ponto em que os meus percursos diferentes ganharam

um sentido diferente. Foi um momento da vida em que eu senti que as coisas diferentes

que eu tinha vindo a fazer ao longo de tanto anos, de repente tinham sido necessárias.

Elas não faziam sentido até determinado momento. Eu dizia "andei-me a dispersar pela

escola de teatro, pela licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, por tantas

experiências de vida que eu tive" e, de repente, tudo fazia um sentido, como

efectivamente se todas as minhas vivências tivessem acontecido para virem a culminar

numa actividade que necessita dessas vivências. Humanas, técnicas, profissionais,

literárias, escolares, enfim, tudo. Porque eu também fui professora do ensino

secundário, antes de ser professora aqui no Conservatório.» (Eugénia Vasques, crítica

de teatro no Expresso)

40 BOURDIEU, "Le Capital Social", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 31, Janeiro de

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A importância fundamental da participação em determinadas redes de relações

simultaneamente próximas do meio artístico e do meio jornalístico na conquista do

acesso ao lugar de crítico em determinadas instituições jornalísticas (nomeadamente as

que detêm uma maior projecção pública e, consequentemente, uma maior

"responsabilidade cultural", por quanto verificámos que alguns críticos, muito poucos,

no começo da sua carreira, começaram pela via da auto-proposta, mas aqui em jornais

regionais ou pouco prestigiados na área cultural), encontra-se bem patente na quase

unanimidade da "entrada por convite" como estratégia de recrutamento accionada pelos

vários orgãos de comunicação social em os nossos críticos entrevistados desempenham

a sua actividade.

«Como é que se processou o seu recrutamento nos vários orgãos de

comunicação social em que já trabalhou? Por convite feito por pessoas lá de dentro.

(...) Eu tinha estudado Literatura na Faculdade, aí algumas das pessoas com quem eu

convivia e que foram meus professores estavam também, alguns deles, ligados à crítica

literária em jornais, e convidaram-me se eu queria começar a escrever. Foi assim que

eu comecei. (...) O jornal não abre um concurso para decidir quem é que vem fazer esse

trabalho. Já me conhecem. E entra-se sempre porque provavelmente é-se amigo,

conhece-se alguém lá dentro, é-se convidado. Isto é, os jornais de facto não são abertos

a valores novos e à descoberta de valores novos. Nenhum jornal é aberto a essa espécie

de utopia que nós poderiamos pensar. Pode acontecer que alguém lá dentro seja aberto

à descoberta de valores novos e faça um esforço por isso. Agora o jornal, no seu

funcionamento mais geral, jamais é aberto à entrada de valores novos. O que procura é

um nome já conhecido, porque o jornal também vende o nome da pessoa que escreve.

Nesse caso, eu comecei a colaborar porque o jornal tinha necessidade de mais

colaboradores e eu conhecia pessoas lá dentro.» (António Guerreiro, crítico de

literatura no Expresso)

«No Expresso, fui para lá porque me convidaram, porque foram apreciadas

coisas que escrevi no Diário de Notícias. Foi aí que comecei a escrever coisas sobre

cultura e artes plásticas.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso)

1980, p. 2.

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«Tenho impressão que quase sempre por convites, porque conhecia alguém que

já estava no jornal e estava interessado em ter a minha colaboração. Acho que sim, que

foi sempre por isso.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso)

«Normalmente foi porque as pessoas que estão à frente desses orgãos de

comunicação pediram a alguém, normalmente artistas, para ver se conheciam alguém

que estivesse disponível para, e que estivesse interessado em escrever para, ou fazer um

programa para. Normalmente foi através de artistas. Foi sempre por convite, nunca fiz

concurso nenhum para entrar para qualquer semanário ou o que fosse. Ou eram os

redactores-chefes, ou eram os directores, ou coisa assim que pediam aos artistas, a

pintores. (...) E é um bocado assim. Evidentemente que é um circuito fechado e que a

admissão de outras pessoas é um bocadinho restritiva e cerceadora. Mas é um pouco

assim que funciona.» (Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de

Letras)

«Normalmente foram os amigos. De uma maneira geral, foi por convite. (...)

Surgem assim estas possiblidades de participar nas coisas sem ser rigorosamente por

um convite formal. No meu caso nem sequer houve convite, houve umas conversas, as

pessoas conheciam-se, o José Carlos Vasconcelos também já me conhecia dos tempos

do Diário de Lisboa, e portanto não eramos propriamente desconhecidos uns para os

outros.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras)

«Quando eu cá cheguei, obviamente não conhecia cá ninguém e através de uma

rapariga que estava no mesmo hotel do que eu, eu soube que havia sido criado um

jornal e eventualmente estavam a precisar de colaboradores. E eu fui me oferecer e

acabei por ficar. A partir daí já se estruturam relações no meio, relações de amizade e

fui sendo convidado. Fui convidado para o Jornal e depois quando o Independente foi

lançado, eu havia chegado a Portugal e alguns amigos meus participaram da fundação

do jornal e me convidaram.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente)

«Através da relação com pessoas. Conhece-se várias pessoas e as coisas surgem

assim.» (João António Dias, crítico de literatura no Independente)

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«Foram duas situações distintas: em todos os jornais em que eu colaborei antes

do Independente, a coisa nasceu por proposta directa minha. Isto foi a situação

genérica. Depois houve excepções: o Globo, onde eu dirigi o suplemento cultural

durante cinco semanas, depois acabou o jornal, e que fui convidado para fazer isso.

Depois, no Independente também fui convidado para escrever. (...) No caso do Globo,

foi uma coisa acidental. A pessoa que estava a dirigir esse jornal perguntou a uma

pessoa que por sua vez me conhecia, se conhecia alguém que pudesse escrever e

desenvolver o projecto. Essa pessoa amiga minha recomendou o meu nome. No caso do

Independente, foi uma situação similar: foram dois colaboradores do Independente que

eu conheci numa viagem episódica, conhecemo-nos aí, démo-nos bem, houve uma

relação boa, e a partir de certa altura um deles ventilou no Independente a hipótese de

eu escrever um texto. Por isso pediram-me o primeiro texto, depois o segundo, o

terceiro, e finalmente entrei num acordo de colaboração permanente com o jornal.»

(António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente)

«As coisas aconteceram assim por acaso. Eu tirei um curso de Filosofia, estava

a dar a dar aulas, estava farto de dar aulas e fui chamado para a Cinemateca. E foi por

causa da Cinemateca que comecei a ser crítico. O primeiro sítio onde eu estive foi no

Independente. Depois estive no Jornal, porque a editora da Cultura era uma ex-

namorada minha - porque as coisas funcionam de facto assim, em termos de relações

pessoais -, e depois eu estava farto do Jornal, tive um pequeno conflito, e no momento

em que estava a ter o conflito, fui convidado para o Público. E agora estou no Público

desde Outubro de 92. (...) Foi sempre por convite.» (José Navarro de Andrade, crítico

de cinema no Público)

«Processou-se como se processa tudo: por amizade, por relações pessoais. Foi

por convite. Sempre me convidaram para tudo.» (João Pinharanda, crítico de artes

plásticas no Público)

«Normalmente fui convidado por jornalistas de carreira, por jornalistas

profissionais, tipo chefes de redacção, que me conhecem, que conhecem o meu

trabalho. Há um dado momento em que o jornal precisa de um crítico de arte que

garanta uma certa regularidade de colaboração, o chamado colaborador permanente,

e é nessas alturas que se lembram de mim. Nestas circunstâncias já fui convidado para

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três ou quatro jornais. (...) São pessoas que me conhecem e que acompanham o meu

trabalho há muitos anos.» (Eurico Gonçalves, crítico de artes plásticas no Diário de

Notícias)

«Fui sempre convidado até hoje pelos vários lugares onde trabalhei como

crítico, foi sempre por convite, e é claro que se podia aceitava, se não podia não

aceitava, ou se me agradava aceitava. Foi sempre convite. Aconteceu assim, nunca

precisei de andar a bater à porta, e mesmo aquele período de um mês e tal, dois meses

que estive sem fazer crítica, um período curtíssimo num espaço de 35 anos, nunca me

passou pela cabeça ir bater à porta. Eu sei que era um momento de acalmia, de

reflexão, e realmente apareceu rapidamente o convite do Diário de Notícias.»

(Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias)

«Sempre por convite. Perguntam-me se eu estou interessado em escrever e eu

escrevo. De vez em quando, alguém conhecido que telefona, que me vê, que pergunta,

contacto aqui, contacto acolá, uma carta, qualquer coisa. Nunca por concurso

público.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital)

«Processa-se pelo contacto com outras pessoas já inseridas no meio, quer dizer,

há um trabalho que começa com alguma irregularidade que depois é notado. Foi

sempre por convite.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital)

É o conjunto dos requisitos socio-culturais atrás apresentados que permite, uma

vez adquiridos, operacionalizados e demonstrados em provas-testemunho discursivas,

aceder e utilizar os recursos do lugar social destinado ao crítico, requisitos esses que, em

última análise, não são exigidos nem ao criador dos produtos, nem ao jornalista cultural

que os divulga, nem ao leigo que os consome, nem ainda a qualquer outro intermediário

cultural responsável pela sua gestão, muito embora o facto destes protagonistas os

reunirem na sua pessoa lhes abra francas possibilidades de acesso a tal lugar social, que

não exige exclusividade total. Assim sendo, as estratégias de demarcação e de auto-

protecção que se jogam entre o espaço da crítica e o seu exterior mais próximo na luta

pela sua autonomia relativa, vão ter como referência privilegiada justamente a posse

deste tipo de competências específicas.

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No entanto, mesmo na posse de um conjunto de saberes instrumentais

específicos, que o ajudaram na luta pela demarcação do seu terreno particular ao longo

da sua história interna, a característica fundamental deste espaço social não deixa de ser

a sua inevitável dependência em relação aos campos com que se intercruza e que o

interseptam, dependência essa sentida e reconhecida no próprio campo como fazendo

parte da sua especificidade, tendo sido e continuando a ser, nesta medida, admitida,

gerida e combatida a partir do seu interior.

Interceptando-se com o campo de criação cultural, do qual depende directamente

na medida em que é dele que provém o material de trabalho dos seus protagonistas e, no

fundo, a sua razão de existir, o campo da crítica tem vindo, contudo, a autonomizar-se

progressivamente em relação àquele: por um lado, num plano propriamente social,

como iremos abordar no capítulo III deste trabalho, quer através da distinção de

competências, quer com o abandono dos valores da cumplicidade vivencial que

mantinham a prática crítica aplicada na defesa quase incondicional de um determinado

grupo de artistas com o qual convivia quotidianamente, valores esses que se viram

substituídos pelos do distanciamento crítico e seus afins, os quais preconizam a

independência total do crítico em relação ao artista ou grupo de artistas que está na

origem da obra sobre que se debruça, tomando hoje as cumplicidades que se geram

entre críticos e criadores mais uma dimensão intelectual que propriamente vivencial,

esta comprometedora do olhar "isento" e independente dos primeiros.

Por outro lado, num plano de postura teórica, quando as teorias da recepção

vieram destronar os paradigmas de raíz filológica e formalista como referências

dominantes no campo, proclamando o receptor como elemento fundamental no processo

de significação e valorização da obra, em detrimento do que consideraram ser a Tirania

do Autor ou Tirania da Obra subjacente aos paradigmas anteriores, que procuravam,

respectivamente, na intenção do autor ou nas características imanentes da obra a sua

suposta verdade em termos de sentido e de valor estético, reconhecendo e legitimando a

autoridade destas instâncias sobre o trabalho crítico. Deste modo, como verêmos mais

adiante, no capítulo IV deste trabalho, especialmente dedicado à explanação do

desenvolvimento paradigmático ocorrido no campo da crítica, já não irá ser o código

subjacente à acção estética do criador que dita e impera sobre o discurso da crítica, é a

própria crítica que define a sua legitimidade como instituição produtora dos códigos

legítimos, como lugar privilegiado para a produção de modelos de sentido e de valor

estético.

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Torna-se assim notório como estas novas posturas perante o modo de representar

e praticar a crítica, ao pressuporem novas formas de relação desta com o campo da

criação artística, assim como novas éticas de condução do olhar sobre a estética,

trouxeram ganhos acrescidos em termos da sua autonomia em relação àquele campo

concreto, cuidando de garantir a independência e a autoridade da prática crítica face às

intenções do criador e às características inerentes ao seu próprio trabalho, ao mesmo

tempo que consegue ampliar substancialmente o seu espaço de possibilidades de

tomadas de posição em matéria de interpretação e de valoração estética. A sua

capacidade em gerir os constrangimentos que lhe eram impostos por via do campo da

criação é assim consideravelmente aumentada, tal como o poder de que dispõe na

imposição exterior da sua própria doxa, ao impôr-se socialmente como instância

legítima para criar os programas de percepção e de avaliação do que é produzido no

campo da produção cultural.

A asserção da autoridade do receptor no processo de significação e valoração de

qualquer obra, em detrimento da intenção do autor e da obra-em-si-mesma, não foi

contudo tomada no campo da crítica, como iremos ver mais adiante, sem as devidas

precauções que lhe garantissem no espaço da recepção cultural um lugar específico e

privilegiado. Reivindicando-se das competências credíveis e apropriadas a uma

recepção estética "adequada", armando-se simultaneamente do poder da escrita, o

espaço da crítica demarca-se assim do campo da recepção cultural "comum" e fecha-se

enquanto corpo social dotado de uma autoridade própria, invocando para os seus

agentes o estatuto de experts, de observadores culturalmente privilegiados.

O crítico aparece então como "orientador" e "intérprete" junto do consumidor

cultural menos informado esteticamente, fazendo muitas vezes associar à sua actividade

uma espécie de vocação pedagógica, que vai a par com uma visão da prática crítica

como instância de utilidade pública. Se esta visão utilitária da crítica poderia ser

tomada, a priori, como signo da sua fraca autonomia, pressupondo-se a existência de

uma nivelação de atitudes e discursos entre crítico e consumidor cultural "comum", o

facto é que tal não acontece, na medida em que a expressão da sua vocação pedagógica

é sempre tentada de cima para baixo. Ou seja, o que se pretende é que o leitor chegue

ao crítico e não que o crítico chegue ao leitor.

Há, de facto, uma certa acção voluntarista de pedagogia por parte de grande

parte dos agentes da crítica que entrevistámos, acção essa que se traduz não apenas na

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intencionalidade pragmática de "orientar" o consumidor cultural "comum" na selecção

que faz de opções estéticas a experimentar, como também no sentido de procurar fazê-lo

compreender o produto cultural sob determinado ponto de vista, tentando explicar-lhe o

que para ele poderá não ser claro com o intuito de lhe tornar a obra mais acessível e

inteligível, de decifrar a rede de metáforas subjacente a qualquer obra (ela própria

semanticamente polivamente) de determinada modalidade.

Note-se, porém, que esta acção não é assumida pelo crítico de uma forma

tutorial e totalitária, já que a sua relação com o produto, tal como a do consumidor

"comum", é por ele encarada como uma relação sempre pessoal e subjectiva. Mais do

que armar-se do papel de juíz num tribunal sem leis, a expressão pedagógica da sua

prática assume-se como um ganho de lucidez e de competência intelectual e estética

junto do seu público, na medida em que tenta sempre abrir-lhe novas possibilidades de

sentido sobre a obra, proporcionado-lhe, simultaneamente, o enriquecimento da sua

capacidade crítica na fruição artística para além do acto de "gostar", através das

indicações e instrumentos práticos e teóricos que lhe concede para a apropriação

simbólica do objecto com que se defronta. Assume-se também como chamada de

atenção sobre a valorização estética da vida quotidiana, no sentido de abrir-lhe o olhar

novas áreas e novos factos estéticos. Sempre contra o amorfismo e a passividade

contemplativa mas, ao mesmo tempo, sempre com uma atitude um tanto ou quanto

etnocêntrica em relação à fruição e ao gosto estético do consumidor "comum".

«(uma boa crítica...) Deve mostrar, revelar, a paixão ou o desamor que o crítico

sentiu ao ver o espetáculo. Deve revelar, de modo mais ou menos claro, depende do

estilo do crítico, a sua particular formação, porque a crítica também ensina, mas não

deve ser obviamente didáctica no sentido mais imediatista e elementar.» (Eugénia

Vasques, crítica de teatro no Expresso)

«(...) eu acho que essa é a vocação pedagógica por excelência. Eu não sei se é

isso se as pessoas querem dizer, mas eu às vezes oiço ser invocada essa vocação

pedagógica da crítica em função da ideia de que a crítica serve para dizer "vá ver este

filme porque é muito bom" ou "não vá ver aquele porque é muito mau". Essa ideia de

que os críticos são uma espécie de pastores de almas, sendo as almas os espectadores,

sinceramente não me interessa muito, por uma razão muito simples: acho que o

indivíduo em sociedade deve ser alguém com vontade própria, com opções próprias e

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que exerce escolhas. A observação menos pertinente que eu já ouvi em relação a coisas

que escrevo é de alguém que me diz: "Epá, mas no fim não dizes se devo ir ver ou

não!". Quero lá saber! Quero lá saber no sentido em que espero que cada um não se

sinta como alguém que deve ser guiado, mas que faça as suas opções. Se calhar estou a

simplificar um bocadinho isto, estou a menosprezar o facto da crítica poder entrar

como um factor não digo decisivo mas com algum peso nessas decisões. É evidente que

sim, não estou a negar isso. Agora, não creio que a função pedagógica seja essa

orientação, que aliás como orientação me parece muito limitada. Acho que a função

pedagógica tem a ver com a tal dimensão de despertar apetências, despertar gostos, de

dar a ver que a relação com o cinema pode ser interessante, ou mesmo empolgante.

Acho que essa no fundo é que é a grande pedagogia.» (João Lopes, crítico de cinema no

Expresso)

«(a actividade crítica...) tem que ser muito pedagógica, e há muito por fazer.

(...) eu acho que há um papel que a crítica deve ter, e eu acho que tenho feito alguma

coisa para isso e todos nós fazemos, é que continua a haver muito pouca informação. E

as pessoas continuam a ligar muito pouco às artes plásticas. (...) Portanto, eu acho que

se os críticos puderem de algum modo ajudar a uma certa formação do gosto, que as

escolas infelizmente não dão... - como nós sabemos, as áreas humanísticas e artísticas

têm cada vez mais vindo a piorar em vez de melhorar no ensino primário e secundário,

tanto quanto eu sei. Eu penso que isso é também uma tarefa que uma pessoa que está

metida neste meio naturalmente faz. (...) No fundo, é tentar dentro do meu possível,

informar as pessoas. Por isso eu muitas vezes não me preocupo muito em dar as

informações de vanguarda, os artistas que estão mais na berra ou que são mais de

vanguarda, mas tenho mais a preocupação de informar e formar as pessoas para elas

depois poderem ver isso. É um bocado esse o meu objectivo. E acho que ainda há muito

por fazer nessa área.» (Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de

Letras)

«(a função da crítica é...) ajudar a descobrir, e de certa forma melhorar e

contribuir para que outras pessoas possam pensar também por si e não pelo que é dito,

e ter suporte de opinião. É inegável que a crítica pode ter um efeito pedagógico, no

sentido em que incentiva as pessoas para um confronto diferente diante de uma obra de

arte. À partida sugerem-lhes alguns caminhos e algumas tentativas de resposta que são

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sugestões pessoais, mas que pretendem ser o mais isentas e correctas possível. Mas em

termos finais, apresentam apenas indicadores que pretendem apenas ser tomados como

tal.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras)

«(as funções da crítica são...) Por um lado é esclarecer. Não é dizer às pessoas,

aliás o que eu às vezes faço e não sou só eu, toda a gente... O que interessa é dar

instrumentos às pessoas para quando forem ver os espetáculos se aperceberem porque

é interessante ou não é interessante, ajudá-las. Há pessoas que não precisam dessa

ajuda, mas há outras que vêem menos teatro, e esses instrumentos vão despertar neles o

interesse pelas coisas. Eu penso que há o mínimo de pedagogia na actividade crítica,

embora, por outro lado, a crítica seja uma actividade, não digo criadora, mas para-

criadora pelo menos.» (Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de letras)

«...na crítica jornalística é conveniente também um certo didactismo, não

esquemático, não redutor, de apresentação, um papel mais informativo, conjugado com

o juízo de valor, que é para o leitor saber onde pisa. Ou seja, ser apresentado a alguém

que ele nunca teve a oportunidade de conhecer.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no

Independente)

«Procuro ser sempre directo, didáctico e pedagógico. Até já me disseram isso,

há muitas pessoas que julgam que sou professor, porque explico muito e bem as

coisas.» (Manuel João Gomes, crítico de teatro no Público)

«Quais são as responsabilidades do crítico junto dos leitores? São muito

responsabilidades pedagógicas. Responsabilidades de orientação, de criação de gosto,

de avaliação das obras, de contextualização das obras do artista. (...) Eu à bocado

disse que a crítica devia ser pedagógica. Mas o crítico não tem que ter nenhum respeito

desse género pelo leitor. O leitor é que tem que aprender a ler e a utilizar a

argumentação do crítico. É uma das coisas mais irritantes que as pessoas dizem aos

críticos, é dizerem que não se percebe o que você escreve. Então vão aprender a lêr!

Leiam! Façam um curso qualquer! (...) É pedagógica mas não é primária. (...) a crítica

deve ser pedagógica mas não tem que descer.» (João Pinharanda, crítico de artes

plásticas no Público)

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«Eu acho que a função da crítica tem um nível didáctico-pedagógico, que é

partir do senso comum e haver uma elevação, quer dizer, não ficar apenas no plano do

senso comum e tentar elevar um pouco mais, desafiar o senso comum a pensar, se

possível com novas ideias. E a crítica pode provocar esse desafio, e não se contentar

com os chamados lugares comuns, aquelas ideias feitas que já toda a gente sabe. O

discurso crítico tem que ser inovador. E como é inovador, joga com novas ideias e leva

o leitor, de uma maneira muito didáctico-pedagógica, a perceber aquilo que ele já

percebia e a perceber aquilo que ele ainda não percebia e passa a perceber. Portanto,

há aqui um progresso, há aqui uma elevação, e eu acho que é um pouco isso.» (Eurico

Gonçalves, crítico de artes plásticas no Diário de Notícias)

«Tenho completamente essa vocação pedagógica a 100%. Pelo que me dizem...

Eu acho que tenho uma vocação pedagógica absolutamente insuportável, isso já vem de

família, ou se calhar é natural, nunca se sabe... Eu gosto imenso de explicar as coisas

às pessoas, às vezes antes de escrever tendia antes a explicar as coisas às pessoas às

mesas dos cafés, o que é um bocado aborrecido. (...) É aquela vontade que a gente tem

de mostrar à pessoa que talvez ela não tenha percebido a coisa como deveria ter

percebido, a gente não quer que a pessoa caia nesse erro. Há um certo grau de loucura

nisto! Há indiscutivelmente um lado pedagógico nisto.» (Patrícia Cabral, crítica de

literatura no Diário de Notícias)

«O crítico tem que cumprir a sua acção informativa e formativa. (...) Portanto,

conseguir que o leitor ou ouvinte da sua crítica fique com uma ideia de quais são os

elementos que compôem a obra e qual a qualidade desses elementos, como é que eles se

conjugam e como é que eles todos juntos dão lugar a uma obra mais ou menos una, e a

que ponto essa obra tem valor e porque é que tem esse valor.» (Francisco Perestrello,

crítico de cinema na Capital)

«(o crítico deve...) Ter uma acção pedagógica, portanto, ensinar o público

também a ser crítico. (...) porque somos criados desde pequenos de uma forma

pedagógica e autocrática, "faz isto, não faças aquilo", "gosta disto, não gostes

daquilo", que é muito mais fácil e mais cómodo, demora-nos muito menos tempo... "A

Lista de Schindler, cinco estrêlas, quatro estrêlas, este vamos, ganhou os óscares".

"Peça: olha, fulano tal diz muito, muito bem, aquele também diz, óptimo. Vai imensa

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gente, teve um lançamento óptimo!", o caso da Maldita Cocaína. De forma que o

crítico não deve falar nunca de cátedra. Penso que deve ser um bocado como o

professor não o sendo: acção pedagógica, não dar aulas de cátedra, criar uma

consciência crítica nas pessoas, eu acho que isso é importante. E uma consciência

opinativa, que as pessoas tenham nesta sociedade tão normativa, que as pessoas

possam ser críticas, possam julgar, possam ser abertas às novidades, possa chamá-las

contra tudo e contra todos a sua atenção para a coisa A, B, C ou D...» (Tito Lívio,

crítico de teatro na Capital)

A autonomia do espaço da crítica é, todavia, constantemente ameaçada

considerando as condições em que é actualmente produzida e divulgada, nomeadamente

em Portugal. Integrada sobretudo na estrutura organizativa dos meios de comunicação

social de tipo generalista, e na falta de uma imprensa especializada, com critérios de

noticiabilidade e de tratamento discursivo diferentes dos operacionalizados nos

primeiros, a prática crítica vê-se consideravelmente constrangida à submissão da lógica

que neles impera, orientada por valores do mercado de informação e, por consequência,

de procura do grande público, valores de algum modo periféricos à doxa tradicional do

espaço da crítica e comprometedores da sua inteira independência.

Com efeito, enquanto profissional membro da empresa mediática, o crítico não

escapa aos mecanismos de controlo organizacional empreendidos por parte desta, pelo

que os critérios subjacentes às várias etapas de produção do discurso crítico, que vão

desde a selecção dos acontecimentos a criticar, passando pelo formato e tratamento

discursivo a dar à matéria, até chegar à gestão dos próprios aspectos gráficos que

envolvem o discurso, vêem-se hoje contaminados pelos critérios intrínsecos à rotina

produtiva subjacente à lógica de funcionamento dos mass media em geral, pondo em

causa o poder de que o espaço específico da crítica dispõe na definição da sua própria

doxa, assim como na imposição exterior da sua lógica específica, ou seja, de se impôr

socialmente como instância legitima para criar, sancionar e reestabelecer as regras do

dizer e do agir próprios à sua respectiva esfera. Senão vejamos.

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1.3. DA AUTONOMIA DO LUGAR DA CRÍTICA NO CAMPO DA

IMPRENSA

De facto, a prática da crítica, embora detendo sempre um certo grau de

autonomia relativa conseguida através do accionamento de determinadas estratégias que

não deixaremos de referir mais à frente, tende hoje a aparecer cada vez mais integrada

no campo do jornalismo generalista, não deixando, por consequência, de ser

condicionada a nível das suas modalidades de exercício pela lógica de funcionamento e

pelos critérios, valores e normas que informam os procedimentos operativos e orientam

as rotinas produtivas nos diferentes orgãos de comunicação social, situação que leva

alguns críticos, nomeadamente aqueles que apostam numa vertente mais analítica no seu

discurso, a comizerarem-se com o estado do mercado de emprego da crítica em Portugal

e com a impossibilidade demonstrada no nosso país, por via do constante fracasso

editorial das várias tentativas feitas nesse sentido, de implementar um mercado de

revistas especializadas.

«Sente-se de algum modo incomodado pelo facto de exercer a crítica num

orgão de comunicação social? Incomodado não, mas sinto que não é o lugar suficiente

para eu poder exercer a actividade tal como outras coisas, outros prolongamentos da

minha actividade. Teria de ir buscar outros meios que não os jornais.» (António

Guerreiro, crítico de literatura no Expresso)

«Incomodado não me sinto nada. Posso é achar que é globalmente prejudicial

que a crítica em Portugal se exerça sempre nesse tipo de orgãos, e se é globalmente, é

também para mim. Permite pouco tempo de reflexão, de paragem para pensamento, de

reflexão, de estudo, etc.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público)

«Terá o crítico, para ser popular, de reduzir o seu exercício à publicidade

jornalística? O exercício da crítica em Portugal é confinado pelas dimensões do espaço

atribuído pelos jornais. Não existem revistas especializadas, nem circuitos de

divulgação internacional suficientemente interessados no produto da periferia. Se é

verdade que o impacto social do teatro é no nosso país quase nulo, o valor e o prestígio

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social da crítica de teatro reduz-se às dimensões de um utilitarismo inconsequente.»

(Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso41)

Esses condicionalismos de que falamos exercem-se, nomeadamente, a nível da

selecção das matérias ou acontecimentos culturais a criticar, a qual, nas condições

dadas, deve ir de acordo com os critérios de noticiabilidade definidos pelo orgão para o

qual trabalha (o que não deixa de afectar a sua autonomia na acção de filtragem de

acontecimentos, autores e/ou obras que efectua como destacado gatekeeper que é no

campo da arte), a nível do suporte material do seu discurso, referente às limitações que

lhe são impostas ao discurso em termos de espaço, a nível do tempo que a rotina

mediática lhe disponibiliza para desenvolver a sua argumentação crítica, também ele

limitado, a nível do código ou da linguagem utilizada, que se quer num jornal

generalista o mais clara e simples possível, e ainda a nível da própria gestão gráfica do

destaque que o crítico entenderia dar ao acontecimento que comenta, sobre o qual,

sendo ele frequentemente um mero colaborador que entrega no jornal os seus textos,

pouca influência terá (a não ser quando, associado ao seu estatuto de crítico, assume

posições de poder na hierarquia do contexto profissional-organizativo onde se encontra

inserido, como editor ou coordenador de secção, por exemplo, ou quando se encontra a

tempo inteiro no jornal com o estatuto de jornalista cultural, estando assim mais

próximo dos centros de decisão e de controle dessas questões).

São, pelo menos, estes os constrangimentos comuns e tendencialmente mais

assinalados pelo conjunto dos nossos entrevistados, por vezes num tom bastante

"sofrido", designadamente entre aqueles que reivindicam para a sua prática um estatuto

mais analítico e reflexivo que propriamente jornalístico, os quais tendem a valorizar em

maior grau o tempo de reflexão e de distância crítica, assim como o espaço para

aprofundamento analítico e a sua autonomia na escolha subjectiva dos eventos a criticar:

«Quais são os condicionalismos, limitações ou pressões a que, na sua opinião,

o crítico está sujeito pelo facto de trabalhar num orgão de comunicação social?

Pressão do tempo, um prazo reduzido, do estar em cima das obras, o ser determinado

41 Palavras retiradas da sua comunicação no 11º Congresso de Críticos de Teatro, "O Actor de um Discurso «Perverso»: o Crítico de Teatro", in O Teatro e a Interpretação do Real, Actas do 11º Congresso da Associação Internacional de Críticos de Teatro, Lisboa, Edições Colibri, 1992, p. 141.

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pela actualidade e por aquilo que faz a actualidade. Por isso é que eu à bocado estava

a falar dos factos, isto é, há qualquer coisa aqui que é paradoxal: o jornalista em si,

toda a sua matéria é a actualidade e só precisa de seleccionar o que é mais interessante

para o público, se este aspecto da actualidade se o outro. No caso do crítico ele é, por

um lado, determinado pela actualidade e toda a sua actividade tem a ver com

actualidade mas, por outro lado, toda a natureza do seu trabalho deve levá-lo a ter um

recuo em relação à actualidade. Porque a actualidade produz, obviamente, uma espécie

de cegueira, a cegueira do novo, a perca de critérios quando começamos a estar

sempre, sempre, sempre em cima da actualidade e não lhe tomamos um certo recuo. É

uma questão de tempo que limita evidentemente as coisas, e de espaço. Todos os

jornais são, por definição, lugares de espaço reduzido. Portanto, temos também

limitações de espaço. E há outras limitações também, que é a própria actividade do

crítico entrar em conflito com o acontecimento encarado do ponto de vista jornalístico.

Isto é, enquanto crítico eu posso dizer que não me interessa um livro do José

Saramago, só para dar um exemplo, e enquanto jornalista eu vejo-me na situação de

ser obrigado a encarar aquilo como um acontecimento literário, e enquanto

acontecimento vai determinar imediatamente a minha reacção. Enquanto crítico vou ter

de escrever sobre aquilo, ou fazer uma entrevista, ou qualquer coisa do género. E há

um critério que é meramente jornalístico que se está a intrometer abusivamente num

outro campo, regido por outros critérios, que são os meus critérios enquanto crítico.

Por isso é preciso arranjar um compromisso mais ou menos astucioso entre estas duas

coisas, e ter a consciência de quais são as regras do jogo.» (António Guerreiro, crítico

de literatura no Expresso)

«Coitado do crítico... O crítico para o jornal em que trabalha só tem

responsabilidades. Só tem! Tem a responsabilidade de entregar os artigos segundo as

dimensões propostas, a responsabilidade de entregar os artigos dentro das datas e das

horas propostas, a responsabilidade de manter a qualidade - se é isso que é suposto ter

- que o jornal para que escreve exige, se é que exige, quando exige. Só tem

responsabilidades. E as responsabilidades, dir-lhe-ia, são unilaterais. Dir-se-ia que o

crítico é que tem as responsabilidades todas e que efectivamente tem que obedecer aos

constrangimentos do jornal. Todos e quaisquer uns! Tentando, apesar de tudo, não

perder completamente a sua dignidade. (...) E as pressões do próprio jornal não são

claras. Podem ser implícitas, podem ser ínvias, podem ser indirectas, e quero crêr que

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são as pressões mais terríveis. Podem-se traduzir, por exemplo, em restrições de

espaço, podem-se traduzir em inviabilizações de trabalhos que a pessoa gostaria de

fazer, podem-se traduzir e traduzem-se muitas vezes na menorização da própria arte em

que o crítico trabalha, e isso não depende do crítico.» (Eugénia Vasques, crítica de

teatro no Expresso)

«Outro condicionalismo tem a ver com a necessidade de gestão do espaço. Se

calhar, às vezes quer a secção de cinema, quer outras secções do jornal, gostariam de

ter mais espaço para tratar determinados acontecimentos. Mas aí joga uma regra

universal, não apenas portuguesa mas universal no jornalismo: muitas vezes é preciso

saber adequar o projecto que se tem ao próprio espaço disponível. E para que não

restem equívocos, isto não tem nada a ver com censura interna, tem a ver com factores

muito realistas da vida dos jornais, isto é, por exemplo, um jornal tem um suplemento

como, por exemplo, o Cartaz do Expresso ou a Revista; o número de páginas desse

suplemento não é calculado porque o crítico de cinema não sei quantos diz "Epá, esta

semana preciso de dez páginas para fazer um dossier sobre aquele artigo, portanto os

outros que se amanhem, vejam lá!". E se houver um dos livros que precisa de dez

páginas também, e de artes plásticas? Não, o número de páginas existem nos jornais

em função de cálculos que decorrem da existência de uma determinada percentagem de

publicidade. Isto é uma prática normal em todos os jornais. (...) Eu pessoalmente devo

dizer que nunca senti isso como uma limitação, e desde que estejam salvaguardadas as

preocupações de fazer a cobertura daquilo que interessa cobrir, não me custa nada,

como se diz na gíria, "escrever a metro", sobretudo se esse metro, essa medida a que

chegámos, foi decidido de forma sensata em função de todos esses factores que entram

em jogo.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso)

«É mais difícil, por razões óbvias, fazer o ideal de crítica em termos das

publicações diárias ou semanais, até porque, a meu ver, para se estar preparado para

fazer a melhor crítica sobre um filme, não é certamente por se ver o filme uma vez, pois

a pessoa pode estar mais susceptível, ou pode no fundo ter uma avaliação do filme que

não é necessariamente a mesma. Não é raro que as pessoas mudem de opinião vendo o

filme mais do que uma vez ou pensando tempos depois. É todo esse espaço de tempo

que deveria ser prévio até se escrever uma crítica. (...) Eu acho que tendo o tempo

suficiente para uma pessoa ter uma ideia perfeitamente realizada o mais possível sobre

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o que é que é aquele filme, só então estamos preparados para emitir uma opinião ou

um parecer, uma análise muito mais sustentada do que muitas vezes acontece. E não é

raro dizerem-se incorrecções que são fruto dessa falta de tempo, em abordagens que se

vê que podiam ser mais profundas que o simples comentário.» (Paulo Portugal, crítico

de cinema no Jornal de Letras)

«Quer dizer, eu de uma maneira geral, obedecia aos critérios editoriais,

conheço a linha do jornal, a orientação do jornal, e procuro também não fugir desse

tipo de coisas. Mas quer no JL, quer no Diário Popular, tive sempre a maior liberdade

de fazer o que me apeteceu.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras)

«Exige aquelas coisa mesmo jornalísticas que é, eu como coordenador da

secção de cinema tenho que levar isso muito em consideração, a actualidade. Ou seja,

nós temos sempre um destaque que é o filme mais importante da semana, que é uma

crítica de uma página, e sempre que possível fazemos coincidir a publicação desse texto

com a estreia do filme. O critério de actualidade é muito importante no jornalismo por

razões óbvias. E estar a par do que vai sendo feito lá fora. (...) Quer dizer, há certas

restrições, como aquela que eu já apontei de não poder ver o filme mais de uma vez, e

eventualmente, se eu fosse escrever uma crítica num género de publicação diferente,

por exemplo numa revista como a Colóquio Letras, talvez não tivesse tanta a

preocupação como eu tenho de ser acessível. Se bem que eu ache que isso já faz parte

do meu estilo também, talvez acabá-se por escrever da mesma maneira, as talvez fosse

um pouco mais pedante, só isso. Eu acho que a restrições são só essas. Você tem que se

sujeitar à instantaneidade, e muitas vezes não se tem muito tempo para escrever. Não

se trata só de não poder ver o filme só uma vez, trata-se também de ter pouco tempo

para reflectir, para amadurecer a sua opinião sobre o filme. (...) É a limitação do

tempo, basicamente, e uma certa linguagem que tem que ser levada em conta, por mais

capaz que a pessoa seja de ter um tipo de escrita, evidentemente que nós estamos a

escrever para um veículo que é para ser lido por variadas pessoas.» (Paulo Nogueira,

crítico de cinema no Independente)

«O problema do jornal é não ter espaço. A minha adaptação, normalmente, é

cortar adjectivos, advérbios, o "e", coisas assim. O texto não perde nada do que tem e

do que quero que fique. Só corto o que é inútil. Não concebo o mínimo de censura ou de

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indicação. Não há nem nunca houve. (...) A crítica diária é completamente diferente da

crítica semanal, nesta eu juntava mais de um espectáculo, embora eu tenha conseguido

em certos números fazer o mesmo que hoje faço no Público. Por exemplo: vou ver um

espectáculo ao domingo, escrevo o texto na segunda de manhã e o texto sai na terça.»

(Manuel João Gomes, crítico de teatro no Público)

«A pressa é que é terrível. A pressa leva, por vezes, as pessoas a verem metade

do filme e deduzir o resto, verem o filme inteiro e ter de escrever logo a seguir e não se

informarem o suficiente, não estudarem o suficiente, não trabalharem o suficiente o seu

ponto de vista, não reflectirem, não amadurecerem suficientemente sobre os filmes, e às

vezes serem mais opinativos do que... A via da doxa e a via do logos, de ir mais para a

doxa do que para a do logos. Isso é o maior perigo. (...) Para já, características

técnicas: não exceder o número de caracteres que o editor nos pediu. É muito verdade,

é uma guerra constante. (...) Tentar argumentar em poucas linhas - porque são sempre

poucas linhas, são sempre de menos, o editor acha sempre que está a dar a mais, nós

achamos que são sempre de menos - é extremamente confuso. (...) É muito balizada a

escrita, tem muitos obstáculos, muitas objecções, sobretudo técnicas, o tipo de

linguagem que se usa, a quantidade de caracteres que tem que se usar porque a página

vai fechar, os prazos de entrega. (...) Nunca foi um problema de, de algum modo, me

terem cerceado a escrita ou tentado condicionar. (...) (mas) no fundo, todos os jornais

têm uma personalidade própria, e de certa maneira nós adaptamos a nossa escrita ao

jornal.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público)

«O tempo, basicamente. Aqui é o tempo. É evidente que eu poderia fazer

trabalhos muito melhores se tivesse tempo. Não sei se seriam muito melhores, mas

provavelmente muito mais articulados se tivesse mais tempo para os fazer. Aliás,

podemos ter essa noção se escrevermos um texto duas vezes. O segundo sai sempre

mais bem escrito. As ideias podem lá estar logo à primeira, mas a formação é melhor.

Aqui estamos a trabalhar com prazos muito apertados. Às vezes eu gostava de

trabalhar mais certas coisas, às vezes acabo de fazer um texto e acho que podia ter dito

mais coisas e que não tive tempo para...» (Tereza Coelho, crítica de literatura no

Público)

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«Eu tenho que cumprir datas. (...) Há sempre a da falta de espaço, passa pelos

economicismos também, e uma crítica não dá dinheiro ao jornal, mas um grande

anúncio pode ocupar quase uma página; é preferível para o jornal. Quer dizer que nós

estamos a passar uma fase em que o económico se sobrepõe muito ao cultural. (...) É

claro que, cá está, pelo tipo de jornal que é (diário), é uma crítica mais impressionista

do que uma crítica elaborada de outra maneira, que seria talvez um pouco diferente

para os semanários ou para uma revista literária, em que já pode ser de outro modo.

Eu procuro equilibrar os dois aspectos. Não quero ser o campeão pequeno de uma

absoluta simplicidade. É preciso também ir levantando questões e problemas, alguns

teóricos, e estar atento a eles e chamar a atenção, despertar as pessoas para eles, mas

a responsabilidade é de estar no jornal de uma maneira muito concreta em relação à

própria realidade do próprio jornal.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de

Notícias»

«Noutros tempos, já houve vários condicionalismos e pressões de vários níveis,

a níveis que podemos considerar ideológicos (refere-se às experiências que teve no

Público e no Independente). Actualmente poderá haver a outros mais formais, a nível

de espaço, não vou fazer um ensaio para quatro páginas por exemplo. E depois terá de

haver um acordo prévio de critérios. Se eu me proponho abordar questões que têm a

ver com arte actual, terei que seguir esses critérios, terei de cumprir esses critérios que

eu próprio prometi ao orgão em causa. (...) Cada jornal tem aquilo a que se pode

chamar um livro de estilo. No livro de estilo, suponhamos do Público, não caberiam

textos de desenvolvimento acima dos, no máximo dos máximos, 7000 caracteres. Eu na

Capital posso escrever textos de 15 000 caracteres. Esta matemática não tem a ver com

a qualidade, a pertinência e a legitimação dos textos. Mas pode ser necessário um

trabalho de desenvolvimento tal que o livro de estilo do jornal X não permite. E isso aí

é um bloqueio para a actividade crítica, faz com que o crítico tenha de cortar, cortar,

cortar, cortar, até que o texto fique completamente descaracterizado. A própria

estrutura das recensões normais em cada jornal, que são constituídas por quatro,

cinco, um por vezes, parágrafos, leva a um determinado tipo de escrita, quer dizer, a

interferência não está tanto na extensão, está também no tipo linguagem que cada

jornal quer ter como característica.» (Carlos Vidal, crítico de artes plástica na Capital)

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No que respeita à gestão dos aspectos gráficos que acompanham o texto crítico,

temos duas situações diferenciadas, como já tivemos a oportunidade de assinalar: uma,

em que o crítico acumula essa sua função a uma outra hierarquicamente responsável

dentro do jornal ou, pelo menos, é seu membro efectivo e por isso participativo na sua

concepção, o que lhe confere algum poder de decisão neste aspecto; outra, que é a mais

frequente, em que o crítico é um mero colaborador externo do jornal, não tendo, por

isso, nenhum poder de intervenção nesse âmbito:

«O jornalista, o crítico que está lá dentro, como eu, é alguém que pode ter uma

intervenção que implica a própria gestão da imagem, da maneira como aquilo vai

chegar ao público. E como eu coordeno a secção de cinema do Expresso, e como sou

um minhocas com as fotografias, com as imagens e com os arranjos das coisas,

procuro o mais possível não apenas coordenar no sentido de garantir a produção de

determinados textos, mas coordenar no sentido de fazer com que aquilo chegue ao

público com um arranjo visual e gráfico que reflicta também as próprias orientações

jornalísticas que prevaleceram. Isto é, se há determinado filme que merece uma caixa

deste tamanho e se há outro que merece uma caixa do dobro com uma entrevista, é

evidente que isso tem que se reflectir na própria maneira de gerir o espaço dado a cada

um desses filmes. Ou se há um comentário a propósito de uma tendência, de um filme

ou de um conjunto de filmes, é uma das dimensões interessantíssimas do jornalismo, é

perceber que a escrita propriamente dita não esgota, longe disso, a relação com o

leitor, e que há outros factores que é preciso ter em conta para que essa relação seja

interessante, seja extenuante.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso)

«Se se põe, por exemplo, um espetáculo em primeira página, não é o crítico que

decide. E quando o crítico considera um espetáculo magnífico, um espetáculo apesar de

tudo modesto mas que é fantástico, não vai para a primeira página mesmo que o crítico

quisesse. Mas outro espetáculo, até pouco interessante, considerado pouco importante

para o crítico, pode ir para primeira página, até com fotografia. Isso são coisas

tremendas, porque teve leitura e, no entanto, o crítico não teve qualquer papel na

construção dessa leitura. (...) o jornal é que vai muitas vezes fazer o título, que nem

sempre é o título que nós damos às peças. Fazer reduzir, cortanto o texto. Colocando-o

numa determinada página e não noutra. Dando-lhe destaque com ou sem fotografia. O

jornal é que cria isso, não o crítico. E como é que normalmente reage a essas

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interferências? Comecei por chorar violentamente, passei a gritar no jornal, e

finalmente passei a querer defender-me de sofrer. Tenho uma crise de fígado, fumo

mais nesse dia e depois esqueço-me, senão não conseguiria na semana seguinte

escrever o texto e entrar no jornal.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso)

Nesta perspectiva, podemos aperceber-nos que, sendo hoje o crítico um

importante agente massmediático, integrado num contexto profissional-organizativo

específico que é o jornal42, a sua cultura profissional (aqui definida como conjunto de

vectores e convenções éticas e estéticas de referência, de retóricas e de códigos

utilizados, de tácticas e atitudes, de valores e de modelos de comportamento relativos ao

modo de exercer a sua prática, assim como à sua forma de abordar os temas culturais e

artísticos) passa a estar sujeita e a integrar (com um maior ou menor grau de resistência)

todo um conjunto de pressupostos decorrentes das regras subjacentes à lógica de

funcionamento desse mesmo contexto, pressupostos esses associados a critérios

específicos de selecção, elaboração e de apresentação pública das matérias-primas que

aborda, os quais poderão mesmo entrar em contradição ou em conflito com os critérios

por ele partilhados (o que nos permite compreender a "incomodidade" que alguns

sentem e demonstram em trabalhar em orgãos deste tipo).

Com efeito, e no que respeita ao primeiro momento-charneira de produção do

discurso crítico, ou seja, a fase de selecção das matérias e/ou eventos passíveis de serem

debatidos criticamente, outrora, no tempo em que a crítica era sobretudo praticada

diletantemente entre os muros da Academia, os critérios operacionalizados pelo crítico

eram sobretudo definidos segundo o princípio do prazer, isto é, a escolha de

determinado evento, obra ou conjunto de obras a criticar era efectuada na medida da sua

sedução ou atracção sobre o crítico, instigando-o à resposta escrita, normalmente em

tom de elogio ou, quando estudioso, num tom supostamente inóquo, perante os

estímulos que lhe suscitava, numa urgência de comunicação e de partilha com os outros

da experiência estética sentida. Em suma, o crítico acabava por se ocupar apenas das

obras que, por princípio, encarnavam o seu próprio ideal de obra-prima, condenando as

restantes ao sobranceiro anátema do silêncio: escrevia prazerosamente sobre o que, por

42 Integração essa tanto maior quanto o facto de hoje em dia o crítico acumular muitas vezes essa sua função à de jornalista cultural, deixando deste modo o estatuto de colaborador externo e entrando nos quadros efectivos dos jornais, embora tendendo a assumir quase sempre as respectivas distinções entre as duas práticas e os respectivos discursos que delas decorrem.

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sua vez, lhe desse prazer aos sentidos, ou seja, que fizesse parte das suas afinidades

electivas.

Contudo, desde que a prática crítica deixou de estar vinculada aos muros da

Academia e passou a integrar-se activamente nos meios de comunicação social, a

postura diletante da "crítica por prazer" foi-se diluíndo, e ao princípio do prazer passou

a sobrepôr-se o princípio do dever, consubstanciado na pressão junto do crítico deste

falar também sobre aquilo de que não gosta, pois os critérios jornalísticos assim o

exigem quando o acontecimento em causa justifica o acompanhamento mediático.

Assim sendo, os critérios pelos quais a prática crítica, enquanto prática também ela

jornalística, se vê actualmente orientada, sendo invocada a operacionalizar durante o

processo de selecção de obras e/ou acontecimentos artísticos a destacar e a opinar

publicamente, traduzem os denominados critérios de relevância que definem a

noticiabilidade de qualquer acontecimento ou facto, ou seja, a sua "aptidão" ou

potencialidade para ser constituída como matéria de interesse público e, deste modo,

para ser tratada massmediaticamente (seja sob a forma de notícia, de reportagem, de

crítica ou de qualquer outro género jornalístico).43

É através deste conjunto de critérios, os quais, no fundo, vão corresponder ao

conjunto de requisitos exigidos dos acontecimentos para adquirirem uma existência

pública, que os membros dos diversos orgãos de informação e divulgação enfrentam

quotidianamente a tarefa de escolher e excluir, de entre um número imprevisível,

indefinido e infinito de factos que acontecem no mundo (nomeadamente de factos que

acontecem no universo das artes e letras), uma quantidade finita e tendencialmente

estável de matérias a abordar jornalisticamente, critérios esses subjectivamente

definidos e institucionalizados pelo próprio corpo jornalístico, e objectivamente

necessários pelas exigências que se impôem às suas rotinas produtivas (eficiência e

rapidez), encontrando-se assim profundamente enraizados na sua cultura profissional e

no processo de produção de informação.

É neste contexto que vêmos o crítico, ao pôr o seu trabalho ao serviço dos

media, também ele sujeito ao cumprimento de uma agenda que lhe é proposta e dos

critérios jornalísticos que presidem à sua construção, isto é, ao critério de actualidade,

mesmo que, por vezes, essa mesma "actualidade" não faça parte das suas afinidades

electivas, critério esse que aparece entrecruzado com uma série de outros critérios de

43 WOLF, Teorias da Comunicação, Lisboa, Presença, 1992, p. 167.

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relevância da noticiabilidade jornalística mais ou menos específicos ao jornal em que

trabalha e que também influem a sua escolha, os quais, como poderemos vêr nos

depoimentos que se seguem, derivam de um conjunto de pressupostos partilhados pelos

seus agentes relativos a várias dimensões do mundo das artes:

a) às características substantivas das matérias-primas noticiáveis, ou seja, à sua

"importância" (definida pelo carácter institucionalizado ou posição de destaque e

prestígio público dos indivíduos e das instituições envolvidas no acontecimento, pelo

impacto que este possa causar sobre o contexto em que se insere, ou ainda pela sua

significância quanto à evolução futura desse mesmo contexto), b) ao seu "interesse"

público (do ponto de vista da sua capacidade de captação da curiosidade dos seus

leitores, como, por exemplo, o insólito, seguindo o pressuposto segundo o qual são

noticiáveis, em primeiro lugar, os acontecimentos que constituem ou representam uma

infracção, um desvio, uma ruptura na rotina diária, ou ainda o peso no mercado cultural

da obra ou autor, peso esse muitas vezes definido através das próprias campanhas

publicitárias); c) ao público, ou seja, à imagem que o interlocutor detem em relação às

necessidades, exigências e gostos dos seus destinatários; d) e, finalmente, à

disponibilidade e acessibilidade do produto a críticar.

«Quais os critérios que normalmente utiliza da selecção de acontecimentos ou

objectos culturais a criticar? Não sou eu que utilizo. No fundo, eu fui treinada pelo

jornal para o critério de actualidade. Ou seja, há um critério de actualidade, assim

como há um critério de instituição. Por exemplo, não vou ver todos os espetáculos de

amadores. Depois, posso ir ver alguns espetáculos de amadores, que eu por intuição ou

por conhecimento prévio saiba que são interessantes para o percurso do actor A ou B,

do encenador A ou B. Sei lá, porque me falam que há uma criatura a descobrir

engraçada, ou um texto, ou uma proposta engraçada... "o que é que é isto?", por

curiosidade vou.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso)

«Pura e simplesmente o facto de acontecerem, e o reconhecimento de que

existem nesta coisa circuitos de certo modo institucionalizados. Quer dizer, não é a

mesma coisa expôr numa galeria de arte ou nas paredes de um bar e, portanto, como

não é humanamente possível ir a tudo e não há espaço nos jornais para tudo, há

critérios de selecção que têm a ver com a importância institucional de alguns circuitos

de divulgação. Uma vez que o jornal é nacional e que é o jornal mais importante,

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também se escreve, em princípio, sobre as instituições e as galerias mais importantes,

aquelas que pela sua actividade regular construiram um marco de solidez de

actividade. Embora também se tenha que ter em atenção a possibilidade de emergirem

casos interessantes em lugares desconhecidos, na medida do possível.» (Alexandre

Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso)

«É quase sempre o critério de actualidade, pela simples razão de que um jornal

como o Expresso existe antes do mais como um orgão que emana da própria

actualidade. Isso sem qualquer dúvida. Depois, digamos que há a actualidade e a

qualidade, quer dizer, há actualidades, há coisas que podem ser tornadas actualidade

pelo mercado, por exemplo, porque há um filme que tem uma campanha gigantesca. O

último filme do Steven Seagal teve uma campanha gigantesca, incluindo televisão, mas

não é a nossa actualidade. A Lista de Schindler teve uma campanha gigantesca: é a

nossa actualidade, tivesse ou não campanha. Isto para para explicar-lhe que há por um

lado uma lógica de ir em paralelo ao mercado, mas não há uma lógica de colagem ao

mercado. Não nos choca nada tratar com um grande desenvolvimento uma coisa que o

mercado promove com grande aparato, desde que isso, por razões que tenham a ver

com as nossas opções críticas, tenha a ver também com a nossa actualidade.» (João

Lopes, crítico de cinema no Expresso)

«Aquilo que pode acontecer, como eu já lhe disse, é pelo facto de estar ligada a

um orgão de comunicação ter forçosamente, por razões imperiosas de ordem

económicas, política ou ideológica, desse orgão estar fundamentado nalguma área, nós

termos obrigatoriamente de falar daquele artista. E isso eu acho muito chato. (...) E eu

realmente estou um pouco circunscrita a Lisboa, porque no Porto há sempre críticos de

arte que fazem as crónicas, e eu faço a zona de Lisboa e limítrofe. O que eu gostaria de

fazer era realmente aquilo que eu considero que tem mais importância, que é inovador,

ou que é um artista que não expõe há muito tempo, ou que é uma grande retrospectiva,

ou que é um artista estrangeiro que vem a Portugal agora, ou exposições colectivas que

marcam um determinado evento, esse tipo de coisas. Muitas vezes não posso fazer isso

por uma questão puramente logística. Porque não tenho tempo de ir ver a exposição,

porque não fica em Lisboa, fica não sei onde e eu já não tenho tempo de ir, etc.

Procuro depois ir cobrir. Mas de um modo geral, a minha perspectiva é essa. Também

às vezes procuro sítios mais próximos de onde eu me movimento, por uma questão de

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não perder muito tempo, pois como sabe andar aqui em Lisboa é um cataclismo

absoluto. (...) até por uma situação de geração, de amizades, de grupos, as pessoas

estão mais próximas deste, é mais fácil falar. Eu digo que também me acontece isso a

mim. E como nós temos um ritmo de trabalho muito intenso, às vezes torna-se mais fácil

falar daquilo que conhecemos, do que agora ir falar de um que não temos tempo,

porque o artigo tem que entrar na quinta-feira, porque a gráfica fecha na sexta.

Portanto, há essas pressões também, que muitas vezes as pessoas não sabem e quem faz

crítica de arte passa muito por isso.» (Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes

plásticas no Jornal de Letras)

«Há determinados filmes que quando chegam cá, nós já temos informação sobre

eles, e a partir daí nós fazemos uma hierarquia consoante, e nós críticos nos

penitenciamos por isso, o marketing muito intenso. Mas muitas vezes nós nos

demarcamos disso e vamos para outros filmes, que receberam determinados prémios,

ou de realizadores que já são importantes na história do cinema, têm uma obra

expressiva. Ou então filmes, simplesmente isso é pouco frequente, que são primeiras

obras mas que levantaram tanta celeuma ou tiveram críticas tão favoráveis que há uma

expectativa muito grande. (...) há um critério jornalístico de acompanhar as novidades,

a actualidade dos filmes, as estreias, os leitores se interessam por isso. Aparece um

filme e o leitor quer saber a sua opinião.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no

Independente)

«Escolhem-me. E o critério é só um, são os filmes que estreiam. É sempre a

actualidade. (...) É assim: o jornal tem a secretária de redacção que faz a recolha das

estreias. Em princípio, esses filmes já nos foram mostrados. Os filmes que entram, os

filmes que vão ter o destaque nesse fim de semana é entre os filmes que estreiam. Nos

filmes que estreiam, destaca-se aquele que, por uma razão ou outra, é consideradado

mais importante, ou por ser um cineasta que se considera importante, ou por ser um

filme mais importante em termos de público, ou seja, puxa-se essas coisas segundo um

critério de importância que vai variando. Ou por ser um filme português, apologia-se

bastante o facto de ser um filme português, nem que seja para dizer mal mas puxa-se. A

estreia de um filme português é um acontecimento. Tem um bocado a ver com o critério

de acontecimentos (insólitos). Estrear um filme de um iraniano é um acontecimento. Eu

por acaso gosto, mas mesmo que não gostasse, reconhecia que é um acontecimento, é

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considerado um dos grandes cineastas do mundo. Mesmo que não gostasse, que

remédio tinha eu de se não suspender o meu gosto pessoal e achar que havia critérios

objectivos para o puxar. A estreia do Jurassic Park obviamente que tem que ser um

acontecimento. A estreia de um filme português também. Normalmente é a ideia de

acontecimento quase jornalístico que está por detrás disto.» (José Navarro de Andrade,

crítico de cinema no Público)

«É o critério da importância, se bem que essa importância possa não ser a

minha. Ou seja, nas notas do Fim-de-Semana é um acontecimento com importância que

tem a ver com a importância real, absoluta do objecto, ou a importância relativa do

objecto. Quer dizer, importâncias parcelares. É o local onde isso se passa, é o artista.

Absoluta será a exposição em si, a obra. Depois, teremos outros factores que serão o

artista, o local, o periodo, a conjuntura em que ela acontece... Ou seja, uma exposição

muito má de um artista muito importante, uma exposição muito má num sítio muito

bom, tudo isso acho que dá dados, motivações para que se escreva. Nesse caso, para

avisar o leitor, ou... Para dizer assim: "Epá, o Centro Cultural de Belém vai fazer uma

exposição da Maluda?!". Lá vou eu voltar a dizer mal da Maluda!... "Como é que é

possível isso? Um sítio tão importante vai apresentar...". E então, na minha crítica, o

objectivo será esse. Ou então "Um artista tão importante, ou historicamente tão

relevante como o Sá Nogueira faz uma exposição tão fraquita?". (...) É mais o

acontecimento, a capacidade de mediatização do acontecimento. Ou a repercurssão

popular que é previsível que ele venha a ter ou que tenha. É fácil captar o leitor

fazendo um artigo sobre a exposição do Egipto, das antiguidades egípcias. E é um

acontecimento cientificamente muito importante. Sobre Angola... Quando diz que o

jornal interfere nas escolhas dos factos culturais, como é que reage a essa

interferência? Reajo mal porque é uma grande chatice! Não, às vezes sou eu próprio

que me adianto sobre essa interferência. Na maior parte dos casos sou eu. (...) É a tal

missão que é preciso cumprir. A parte negativa dessa missão, ou da missão de ser

jornalista, é a pessoa ter de cumprir um programa que é um programa que interessa ao

leitor, e não o programa que interessa ao escritor. Ou seja, eu obrigatoriamente tenho

que escrever um texto sobre a exposição do Neo-Manuelino que está no Palácio da

Ajuda, e não me interessa nada escrever sobre o assunto. (...) É isso que é para mim

aborrecido, é ter que escrever sobre coisas que eu à partida não estava vocacionado,

ter que ir ver uma exposição horrível e ter a seguir que ir escrever sobre ela, dizer mal.

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Só por que não se pode deixar de falar da exposição. É essa parte informativa.» (João

Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público)

Nestas circunstâncias, podemos verificar como a acção do crítico enquanto

mecanismo de gatekeeping, ou seja, como instância de selecção fundamental no jogo de

acesso/exclusão ao campo artístico, jogo esse em que se joga a própria noção social de

arte, não depende apenas da sua subjectividade e das suas afinidades electivas, ou seja,

não deverá ser entendido como resultado de uma mera preferência individual, na

medida em que aparece perturbada pela lógica do próprio contexto profissional-

organizativo em que se insere, que parece incidir eficazmente sobre as suas "escolhas".

Todavia, o processo de produção da crítica (e da informação em geral) não é apenas

orientado em função dos critérios de noticiabilidade nele operacionalizados, através dos

quais o orgão informativo controla e gere a quantidade e o tipo de acontecimentos

apssíveis de serem noticiados, mas também em função dos designados valores-notícia

vigentes em determinado contexto histórico-social.

Estes correspondem também a critérios de relevância operacionalizados no

decorrer do processo de produção jornalística, distinguido-se dos critérios de

noticiabilidade pelo facto de actuarem não sobre a fase de recolha e selecção de

acontecimentos "notáveis" e, como tal, noticiáveis, mas sobre a fase de preparação e

apresentação pública desses mesmos acontecimentos, funcionando como directrizes na

selecção dos seus elementos constitutivos a serem prioritariamente incluídos, realçados

e omitidos (conteúdo), assim como na forma como devem ser apresentados: tal como

referem Golding e Elliott, «os valores-notícia são, portanto, regras práticas que

abrangem um corpus de conhecimentos profissionais que, implicitamente, e, muitas

vezes, explicitamente, explicam e guiam os procedimentos operativos redactoriais. (...)

constituem referências, claras e disponíveis, (...) que podem ser utilizadas para facilitar

a complexa e rápida elaboração dos noticiários.»44

Nesta fase, porém, o crítico detém uma "margem de manobra", quer dizer, de

autonomia, substancialmente superior à que detinha na fase de selecção, nomeadamente

em relação à operacionalização dos critérios jornalísticos. Sendo pretendido do seu

discurso um comentário subjectivo, judicativo e reflexivo, e não uma notícia - esta

sujeita às exigências produtivas de objectividade/neutralidade jornalística e de descrição

44 Cit. in WOLF, op. cit., p. 174.

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que se pretende factual, para a qual existe regras de construção e elementos discursivos

de inclusão obrigatória -, o estatuto de crítico concede-lhe aqui uma liberdade de

expressão e uma autonomia nas tomadas de posição pessoais que normalmente não é

conferida ao estatuto de jornalista. Apesar de tudo, o lugar do crítico no jornalismo

prevê um direito à singularidade do agente enunciativo, ao seu narcisismo discursivo e à

sua ideossincrasia opinativa que não é vulgarmente concedido ao lugar do jornalista,

direito esse autorizado não apenas pelo próprio estatuto de crítico, mas também pela

protecção e validação conferida pela assinatura que acompanha esses textos.

É nesta óptica que os nossos entrevistados são unânimes em afirmar que o jornal

não interfere na fase de elaboração do discurso crítico ou, quando o faz, os

condicionalismos decorrentes da sua lógica de funcionamento apenas atingem as

componentes de informação e de enquandramento/contextualização (normalmente no

sentido de as incluír, principalmente junto dos críticos que mais as menosprezam na sua

prática discursiva), assim como a linguagem aplicada, no sentido de os lembrar que

estão a escrever para um orgão que pretende atingir um público mais ou menos

alargado. Ou seja, os constrangimentos que nesta fase da produção da crítica poderão

advir do facto desta aparecer integrada na estrutura organizativa dos media, verificam-se

fundamentalmente mais a nível da sua forma do que propriamente a nível do seu

conteúdo judicativo e reflexivo. E nem os críticos, pelo menos os que entrevistámos,

admitiriam outra situação.

Esse tipo de padrão de controle poderá ocorrer quer de um modo dialogal mas

hierarquicamente orientado, através de uma chamada de atenção posterior ou anterior à

edição do texto por parte do editor responsável pela área em que o crítico intervém, quer

através de alguns mecanismos burocráticos e reguladores inerentes à estrutura do

próprio jornal, como seja por via da acção dos "copy-desk" que, detendo a função de

ajustar o espaço disponível para o texto em causa naquela edição e de padronizar

algumas questões de estilo segundo as regras estipuladas pelo próprio jornal

(frequentemente consignadas no denominado "livro de estilo"), em última instância, na

impossibilidade de contactarem com o crítico no sentido de obterem a sua aprovação

para as modificações propostas (e a exigência de rapidez subjacente à rotina produtiva

jornalísticas por vezes não se compadece com este tipo de atitudes mais "diplomáticas"

e "democráticas"), detêm o poder de decidir quais os elementos a eliminar de um texto

mais longo e quais as substituições "clarificadoras" a fazer num texto de maior

densidade, assim como de substituír títulos quando estes também não cabem nas

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dimensões disponíveis ou, por vezes, quando são pouco apelativos, actos que muitas

vezes são intensamente vividos pelo crítico como atentatórios à sua liberdade e

autonomia discursiva.

Curioso é o facto das referências mais explícitas à intervenção do jornal na fase

de elaboração do produto-crítica provirem de agentes inseridos em jornais de referência

dominante, socialmente mais prestigiados no espaço das artes e da cultura. E tal

fenómeno não acontecerá por acaso: se, por um lado, são estes jornais que maior

disponibilidade concedem a uma crítica de postura analítica e reflexiva, recrutando os

seus críticos privilegiadamente junto das fileiras de intelectuais de competência

académica adquirida, simultaneamente, por imperativos que decorrem justamente dos

objectivos mercantilistas que presidem à lógica de qualquer jornal generalista, que será

chegar a uma faixa de público o mais alargada possível (que partilhe dos seus vectores

editoriais, evidentemente), não se compadecem com alguns "tiques" decorrentes do

habitus academicamente constituído desses mesmos críticos, como seja, por exemplo, a

utilização de uma linguagem por vezes hermética para o leitor mais leigo, ainda que

interessado. Também são esses mesmos críticos que, no mesmo sentido, mais "sofrem"

com as limitações básicas inerentes à lógica de funcionamento de qualquer jornal, como

sejam o espaço e o tempo, limitações essas que não deixam de gorar os seus objectivos

críticos de reflexão ponderada e de aprofundamento analítico e o mais possível

sustentado.

De notar ainda é o facto dessas advertências a que o crítico poderá ver-se sujeito

por parte do jornal, designadamente na pessoa do seu editor, tenderem a diminuír na

medida que ele vai incorporando as regras do jogo jornalístico e vai tendo consciência

do espaço de possibilidades estilísticas que é jornalisticamente concedido ao seu

estatuto no jornal concreto em que trabalha, processo esse que poderá assumir a forma

de uma adequação consciente pela via da "auto-censura"45, ou uma adequação por via

de uma socialização por osmose, que pressupõe uma acomodação e aceitação

inconsciente das regras do jogo. O seu espaço de tomadas de posição estilísticas

provavelmente também irá variar consoante o capital simbólico (ou capital de prestígio)

acumulado ao longo da sua trajectória de actividade pública e que irá capitalizar o poder

e o valor da sua assinatura num texto. Ou seja, a margem de manobra reservada à sua

idiossincrasia em termos de tomadas de posição estilísticas dependerá igualmente da

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posição que ocupa no próprio espaço da crítica, ganha em provas de eficácia simbólica

do seu discurso.

«E quanto aos elementos constitutivos do próprio evento, o jornal dá algum

tipo de indicação quanto ao que deverá incluir, realçar ou omitir no seu discurso

acerca desse mesmo evento? Não. (...) O que não significa que eu não note que ao

longo do meu percurso enquanto crítico não tenha feito pelo menos algumas inflexões

ou adaptações da linguagem. Evito um certo vocabulário muito técnico, sobretudo

quando esse vocabulário técnico é utilizado por comodidade. Evito de algum modo e

por vezes dou comigo a exercer alguma auto-censura. "Não vale a pena utilizar este

vocabulário técnico aqui neste momento, porque eu posso dizer as coisas sem utilizar

este vocabulário técnico." Mas na condição da utilização ou não desse vocabulário

técnico nesse contexto não perturbar de nenhum modo aquilo que eu quero dizer.

Porque quando se trata mesmo de eu sentir que deva utilizar esse vocabulário técnico,

pois utilizo, não sinto nenhum problema em relação a isso. De qualquer das maneiras,

de facto posso dizer que dentro de determinados limites me acomodei de algum modo,

tive alguma preocupação em que os artigos não fossem objectos estranhos dentro do

jornal onde publico. (...) Acho que me consegui adaptar às regras do jogo dentro de

determinados limites, isto é, sem eu transigir demasiado, mas obrigando as pessoas a

reconhecer que havia uma diferença qualquer. No início houve coisas que tiveram

problemas em ser publicadas precisamente porque não eram facilmente inteligíveis.»

(António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso)

«Uma única vez o editor da Cultura me disse "Olha que um fulano me disse que

o espetáculo era assim. Tens a certeza que queres escrever isto?". E eu disse "Tenho".

Digamos que assim claramente foi a única vez que aconteceu, no ínício. Agora, há

formas muito mais incidiosas de o fazer. (...) As críticas entram, e pode é haver censura

interna. E há! E como é que essa censura... - É feita sem eu saber. Eu só depois leio o

jornal. Eu, como os leitores, tenho as minhas surpresas. Cortes de texto, modificações

de palavras, modificações de sintaxe, há isso tudo. Não é sempre, mas acontece. (...)

Portanto, há essa onda que pode levar a que o «copy» corte texto, pode levar a que um

título seja transformado... E isso você não pode controlar. Eu não controlo! E a

45 Fala-se aqui de auto-censura quando um crítico ou um jornalista, prevendo cortes ou admoestações por

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hierarquia do jornal não se mete nisso. Infelizmente! Odeio que não se metam! (...) Eu

tenho muitos condicionalismos: de expressão (trabalho no jornal X e não no jornal Y),

portanto, há formas de dizer que são específicas para o suporte para o qual eu

trabalho. (...) Expressão essa, apesar de tudo, que tem os seus condicionalismos, de

espaço e de suporte. Porque eu não posso falar da mesma maneira num jornal do que

poderia falar numa revista mensal, ou bi-anual, ou semestral. Não tenho o espaço que

eu quero, eu sou limitada por um número de letras, por um número de caracteres, que

fazem com que eu já tenha interiorizada uma forma de texto. Portanto, as dimensões

condicionam a forma do texto, naturalmente, e a possibilidade de se analisar o objecto.

Os jornais condicionam a critica porque obrigam os críticos, pelo menos os críticos de

teatro, que têm menos espaço que os outros, a produzir textos impressionistas, e cada

vez mais impressionistas. Dizem que o público não percebe se nós analisarmos, não

está interessado em actividades de Faculdade de Letras. Mas a verdade é que o

impressionismo mais imediatista é aquilo que o suporte jornalístico acaba por produzir

e por obrigar a. (...) Eu já sou tão treinada, e já tenho sido tão treinada para a via

impressionista, que francamente eu já não tenho essa preocupação (de ser

compreendida ou não pelo público). Já é a interiorização de um tipo de discurso, o que

é terrível. Olhe, aqui está a rotinização. Realmente não tenho essa preocupação, já não

tenho. Considero, e talvez esteja errada, que já adoptei a fórmula capaz de, por um

lado não me provocar um desgosto total, e ao mesmo tempo ser acessível. E eu tenho

vindo a caminho da acessibilidade. Isso é que é curioso. Fui conduzida a isso pelas

constantes advertências do jornal, ou pelo do editor da Cultura. "Isto não é faculdade

de Letras! Isto não é Faculdade de Letras! Isto não é Faculdade de Letras!". Tantas

ouvi que efectivamente fui partindo cada vez mais para a elementaridade, para a coisa

fácil, para a coisa mais clara. (...) Como o meu caminho foi para isso... Se fosse a ler os

meus textos iniciais, onde eu tinha muito mais espaço, o jornal dedicava efectivamente

muito mais espaço ao teatro do que hoje, eu podia... Porque a dimensão é muito

importante para um raciocínio. Se você quer desenvolver um raciocínio, tem que ter um

certo espaço. Se não tem, você tem que dizer assim meia dúzia de larachas, mais ou

menos bem escritas, mais ou menos apaixonadas, mais ou menos fundamentadas, mais

ou menos informadas, mas são larachas! Eu como eu agora já estou na fase da laracha,

percebe...» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso)

parte das chefias, se coibe de escrever aquilo que acha que é susceptível de ser recusado.

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«Não interfere. É evidente que existem sempre mecanismos posteriores de

avaliação que podem funcionar como ajustadores de um discurso que se pode fechar

sobre si próprio. Num jornal que funcione bem, deve haver permanentemente uma

apreciação sobre aquilo que é publicado e, portanto, a possibilidade não de um

controle, mas de uma avaliação posterior. Parece-me indispensável que isso exista. E

como é que esses mecanismos se materializam? Em princípio há editores responsáveis,

ou deveria haver, que têm o poder e a obrigação de assegurar a legibilidade e a

qualidade dos materiais publicados. No caso do Expresso e concretamente das artes

plásticas, o editor é... Fui eu, e no caso das artes plásticas, continuo a ter

responsabilidades nesta área. E que tipo de modificações são normalmente

aconselhadas? Vamos lá a ver, modificações não costumam ocorrer na fase prévia de

publicação. Agora a minha posição é diferente, porque sou eu que tento, em relação a

outras pessoas, clarificar algumas coisas, no caso de considerar que os textos possam

ser pouco claros. E aí é normal estabelecer um contacto com a pessoa e dizer "Epá,

vais explicar isto aqui, se não não se percebe". É isso. (...) É inevitável, estando a

escrever num semanário de grande informação (modificar o "tom" da sua escrita).

Penso que há obviamente distinções do trabalho que se faz numa revista especializada

ou num trabalho académico. Embora no jornal onde eu escrevo, essas fronteiras sejam

muito pouco claras. Portanto, não penso que na generalidade das situações tenha uma

excessiva preocupação em estar a escrever para um público muito alargado.»

(Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso)

«Sim, até um certo ponto, isto é, precisamente quando temos essas reuniões

semanais, como penso que já ficou bem explícito por aquilo que eu disse, há uma coisa

que é sagrada, que é a tal relação de cada um com o filme. E portanto, é isso que se

espera dele, é isso que se deseja, é essa singularidade do seu discurso. Outra coisa é

analisarmos caso a caso o que é preciso explicar ou não para garantir determinadas

exigências do trabalho crítico. Isto é, quando se estreia um filme como A Realidade

Virtual, uma coisa que rapidamente se tornou óbvio da nossa discussão é que era

importante haver naquilo que se escrevesse uma informação minimamente consistente

sobre do que é que aquele filme é sintoma, qual é o "background" técnico e tecnológico

que está a ser transformado e que aquele filme reflecte pontualmente. Portanto, é este

tipo de questões que passam sempre pelas nossas discussões, como é evidente.

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Portanto, são mais os conteúdos informativos e menos os avaliativos e

interpretativos? Claro, exactamente. (...) A nível da linguagem, eu acho que aí há uma

resposta de princípio e depois há a resposta prática. A resposta de princípio é esta: se

um determinado crítico foi convidado para escrever num jornal, é porque o jornal lhe

reconhece certos valores e certas qualidades que o levam implicitamente a aceitar as

características do seu discurso. Portanto, isso para mim também é sagrado. Um crítico

da minha secção pode estar ao lado de um texto meu a dizer exactamente o contrário

daquilo que eu digo, mas eu quero que ele diga isso, porque o jornal também quer isso,

e essa diferença é salutar, é produtiva. Outra coisa, é a tal resposta prática, é face a um

texto chamar-se a atenção de quem escreveu, por exemplo, lá no meio... Vou dar um

exemplo tosco para simplificar: alguém que está a discutir o modo de composição das

imagens de um filme, e diz que, por exemplo, a janela 1.85 favorece um modo de

composição que se aproxima um pouco do cinema scope. Se calhar, convém chamar a

atenção da pessoa que cinema scope será um termo que ainda está na linguagem

corrente, mas dizer a janela 1.85 de facto é um termo tão específico do ponto de vista

técnico, que convém se calhar abrir um parentesis e explicar minimamente o que é isso.

Portanto, é evidente que nesse sentido há toda a abertura para uma intervenção face

aquilo que é produzido. Em relação às outras coisas que têm a ver com a singularidade

da pessoa que está a escrever, não, é para isso que o jornal a convidou, é isso que é o

seu valor específico enquanto crítico.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso)

«Nada. Raramente. Pode-se falar num "brieffing" prévio. Se por acaso um

acontecimento estiver próximo, o filme vai estar num determinado festival, ou

determinado realizador vem cá, pode haver aspectos que não ferem em nada a

estrutura da crítica. São como que elementos adicionais. (...) Uma coisa é nós termos a

consciência do lugar para onde estamos a escrever e consoante os orgãos de

comunicação... (...) por exemplo, poderá é haver um redactor ou um editor que é

responsável pelo texto, que pode fazer correcções de forma, mas não de conteúdo. De

qualquer forma, a minha experiência não tem passado muito por aí. Eu sei é que há

jornais onde existe essa componente que uniformiza de certa forma um discurso, e aí

talvez possa existir alguma pressão para orientar as várias opiniões para uma forma

que pertence ao jornal e que lhe dá a sua unidade. Agora, no meu caso isso não tem

existido.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras)

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«Não, nunca o fez. Aconteceu-me já, na altura em que escrevi os dois únicos

textos para o DN, eles cortarem-nas sem sequer me perguntarem. Não estou a dizer

com isto que não existe uma censura difusa interna e, sobretudo, uma autocensura.

Penso que existe e, até mesmo depois do período marcelista quando ainda havia

censura, esta não era tão castradora como a que existe presentemente. Sobretudo no

jornal diário que tem uma imagem, essas normas acabam por nos castrar a

imaginação. Trata-se duma opção que tem de ser feita desde o princípio, porque se

sabe que uma determinada linguagem não pode ser falada. Apesar de tudo, no Público

posso escrever "cu", "merda" ou "putas". Uso toda esta linguagem quando relacionada

com a peça. Ninguém toca nisso. Além disso, as coisas têm vindo a modificar-se, fala-se

de preservativos, de sexo, com mais à vontade do que há cinco anos. A intervenção do

editor é sempre técnica, nunca é ideológica e muito menos política.» (Manuel João

Gomes, crítico de teatro no Público)

«(...) Curiosamente, isso (o contexto) tem um reflexo na escrita. É uma escrita

completamente diferente da escrita que eu faço aqui (Cinemateca). Enquanto que aqui

é mais analítica, pelas circustâncias, ou seja, eu aqui escrevo para pessoas que vêm ver

um filme de certeza, no jornal é para convidar as pessoas a virem ver o filme, em

princípio. Os objectivos são claramente diferentes. O tipo de público que vem aqui à

cinemateca é, em princípio - digo em princípio porque abstenho-me de referir um facto

- um público que está interessado, um público minimanente cinéfilo. O que é exigido

num texto da Cinemateca é completamente diferente do que é exigido num texto de

jornal. Enquanto que o texto de jornal tem características jornalísticas - isto é uma

tautologia mesmo lapalissada -, tem características de linguagem que pretende não ir

ao maior denominador comum, mas pretende um raio de acção e exige um raio de

entendimento muito maior, na Cinemateca estarei muito mais à vontade, porque o

público será muito mais específico e exige mais dos textos que eu faço aqui.

Fundamentalmente, para mim, é a diferença que há entre um texto analítico, que são os

textos que eu faço aqui, e os textos críticos, no sentido europeu, não no sentido

americano, que são os textos que eu faço nos jornais. (...) E já aconteceu ter sido

publicado alguma coisa que não era rigorosamente aquilo que tinha escrito?

Acontece, já tive grandes chatices com isso, mas acho que há sempre um lado legítimo.

Isso é jornalismo. O que se combinou é que "telefonem-me, digam-me, que eu corto,

vou cortando". Às vezes não se consegue e têm de ser eles a cortar, às vezes cortam

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mal, outras vezes cortam bem. Mas faz parte das regras do jogo, não devem estar a

cortar por prazer, estão a cortar porque aquilo quando vai para a mesa de montagem

está grande demais, pronto. Acontece isso. Já tive algumas chatices no Fantasporto

porque alguém leu mal um artigo e pôs um título completamente contrário aquilo que

eu queria. Esses dissabores acho que fazem parte das regras do jogo.» (José Navarro

de Andrade, crítico de cinema no Público)

«(A alegação do Independente para a minha saída do jornal...) Era que tinha

escrito um texto agressivo, que comentava algumas "ideias" - entre aspas, porque eu

acho que o indivíduo não tem ideias -, do Alexandre Pomar no Expresso, sobre um

tema concreto, que era o tema da arte pública. E eu comentava de uma forma que até

nem era muito agressiva, a questão das considerações que o Alexandre tinha feito na

semana anterior no Expresso sobre arte pública. E depois o Miguel Esteves Cardoso

também transmitiu ao meu colega de página António Cerveira Pinto que não tinha

necessidade que eu escrevesse lá mais, que aquele tom de escrita não interessava. Mas

era um tom que nem era sequer o tom do próprio jornal, quando o próprio jornal por

vezes ultrapassaria o meu. (...) Anteriormente não acontecia dar a ler, fazer exame

prévio. Acontecia é que eu por vezes entregava os meus textos, os textos assinados por

mim, portanto da minha responsabilidade, e via que os textos depois eram bastante

alterados na publicação, já publicados. Era o que na imprensa americana se chama o

"editting", mas o "editting" tem limites, não se pode descaracterizar um texto. Não se

pode tirar parágrafos-chave para a compreensão da intenção do texto. Digamos que o

"editting" no Público era quase sempre abusivo e desrespeitoso para quem escrevia o

texto. E aí sentia a minha liberdade, a minha automia posta em causa enquanto crítico

sempre, porque emitia uma opinião e nunca sabia até que ponto é que ela ía ser depois

descaracterizada. E depois é muito complexo aparecer um texto assinado por mim, que

está a emitir uma opinião que não é a minha. Sentia-me bastante mal. Imaginemos que

eu usava uma palavra mais agressiva e se essa palavra era substiuída por outra, com

um sentido completamente diferente, se eu fazia uma crítica mais agressiva, e se um

texto aparecia como uma crítica complacente, moderada, sentir-me-ia bastante mal,

porque não teria nada a ver com a minha opinião. E isso aconteceu também no

Público, em relação, por exemplo, ao caso particular da Menez. Então nesse caso, o

"editting" não era só técnico, era também de substituição de "substância"? Exacto.»

(Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital)

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Casos como este, o de Carlos Vidal, decorrerá do que poderemos designar de

erro de recrutamento, ou seja, quando as expectativas que presidem à escolha de um

determinado crítico por parte de um determinado jornal, escolha essa que, na ausência

de um trabalho crítico anterior, aparece associada a uma competência que se tem e que

se julga que será desenvolvida de determinada maneira, não vão ser correspondidas na

prática. Com efeito, quando um orgão de comunicação social recruta para os seus

quadros um qualquer comentador, designadamente um crítico, ou até mesmo um

jornalista, vai tentar escolher entre aqueles cujo perfil lhe seja mais adequado, isto é,

que se espera que perfilhem e espelhem o mais fielmente possível na sua actividade

jornalística o espírito programático do jornal, que mais do que um determinado

conjunto de convicções que fundam uma determinada visão do mundo (designadamente

do mundo das artes e letras), compreende uma determinada forma de fazer ver o mundo

através do jornalismo, forma e conteúdo esses que tenderão, por sua vez, a corresponder

às convicções e expectativas do seu público potencial.46

É neste sentido que poderemos compreender as palavras de Jean-Jacques

Gautier, citadas por Bourdieu, quando diz que: «Un bom directeur du Figaro, qui s'est

lui-même choisit et a été choisit selon les mêmes mécanismes, choisit un critique

littéraire du Figaro parce qu' "il a le ton qui convient pour s'adresser aux lecteurs du

journal", parce que, sans l'avoir fait exprès, "il parle naturellement la langue (entendida

no seu sentido mais lato) du Figaro" et qu'il serait "le lecteur-type" de ce journal. "Si

demain, dans le Figaro, je me dets à parler le langage de la revue Les Temps Modernes,

par exemple, ou de Saintes Chapelles des Lettres, je ne serait plus ni compris, donc pas

écouté, parce que je m'appuierait sur un certein nombre de notions ou d'arguments dont

le lecteur se moque eperdûment."»47

Nesta perspectiva, a adequação ao "tom" proposto e previamente definido irá

constituír o princípio fundamental na selecção do crítico, princípio esse de algum modo

dissimulado pelo modo como estes agentes são recrutados - por convite -, convite esse

por sua vez efectuado a partir de uma rede de relações de sociabilidade que se

fundamenta em núcleos de afinidade electiva. Este fenómeno, que tende a fazer unir o

46 Queremos com isto dizer que o espírito programático de determinado orgão de imprensa não se reduz a uma linha doutrinária de pensamento unívoca e consoladora (até por razões mercantis), mas sobretudo um determinado estilo de fazer e de encarar o jornalismo, um determinado modo de abordar os acontecimentos. 47 Cit. in BOURDIEU, "La Production de la Croyance...", op. cit., p. 22.

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jornalista em geral ou o crítico em particular ao seu jornal e, através deste, ao seu

público, começando desde logo a ser tentado no momento da escolha dos colaboradores

de um jornal, constituí o primeiro padrão de controlo operado pelo jornal na sua

estratégia de gestão das diferenças legitimas, através do qual ao mesmo tempo que

procura evitar uma adesão marcada e demagógica a uma linha doutrinária unívoca, tenta

também gerir a relação entre o estilo pessoal do crítico e o estilo de jornalismo

programaticamente partilhado. Tal como nas palavras de Jean-Jacques Gautier acima

citadas, este fenómeno aparece também notoriamente representado nas respostas dos

nossos entrevistas às perguntas «porque acha que foi convidado para trabalhar no

jornal em que actualmente exerce a sua actividade crítica?» ou «porque aceitou

trabalhar nesse jornal?», das quais passaremos a transcrever as mais demonstrativas:

«Provavelmente porque o meu modo de fazer crítica fazia sentido na tradição

crítica que já existia dentro do Expresso, e que mesmo introduzindo factores pessoais

de diferença, essa diversificação era interessante para o próprio Expresso enquanto

jornal. (...) se um determinado crítico foi convidado para escrever num jornal, é porque

o jornal lhe reconhece certos valores e certas qualidades que o levam implicitamente a

aceitar as características do seu discurso.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso)

«(...) porque era reconhecido ao meu trabalho a qualidade que o jornal

reclamava para que se exercesse essa função. Muito embora também lhe possa dizer, as

qualidade reconhecidas pelo jornal, por qualquer jornal, sejam qualidades mínimas, e

nem sempre as que seriam mais interessantes. De facto não devêmos ter grande

complacência, nem grande admiração por esse funcionamento dos jornais. Aliás, o

próprio funcionamento dos jornais é mais um obstáculo a que a crítica seja de algum

modo insuficiente.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso)

«Porque tinha estabelecido uma assinatura e uma autoridade. Por outro lado,

também porque as pessoas que vieram para aqui já tinham trabalhado comigo noutros

sítios. Também convidaram a Tereza Coelho, o Alexandre Melo também foi falado, o

Seabra e tal... Portanto, eram pessoas que eu conhecia, que estavam dentro de um

espírito programático que era o do jornal.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas

no Público)

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«Porque faço parte das afinidades electivas da pessoa que me convidou, o

Torcato Sepúlveda, editor da Cultura. Com certeza acompanhava a minha crítica

literária no JL. Tínhamos muitos pontos comuns: falávamos das mesmas obras. Temos

um fundo comum. Ele estava interessado numa pessoa que escrevesse sobre certos

temas e assuntos, que pudesse dizer coisas que neste país mais ninguém sabe.» (Manuel

João Gomes, crítico de teatro no Público)

«Creio que era porque gostavam do meu trabalho no Jornal. Porque, de alguma

maneira, se identificavam comigo, cabia ali naquele jornal aquilo que eu fazia no

Jornal.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público)

«Identifico-me até bastante (com o jornal em que trabalho). Não me identifico

muito ideologicamente, mas identifico-me justamente com o espírito, com a

irreverência, com a inovação em termos de linguagem e em termos gráficos, e muito

com a irreverência do Independente, que eu acho que foi uma grande conquista do

jornalismo português. Não só a irreverência no sentido de gracejo, mas no sentido

também de um arejamento da linguagem que eu acho que era muito necessário. Eu

acho que o Independente trouxe uma certa modernidade à imprensa portuguesa que

não tinha. Tinha o Expresso, que era e ainda é um grande jornal, um jornal importante,

sério, mas um bocado institucional demais. Não institucional porque esteja ligado ao

governo, mas institucional no sentido de reflectir de uma forma demasiado estreita os

valores vigentes, os valores morais, estéticos, políticos. E o Independente estilhaçou

muito isso, é nesse sentido que eu me identifico, embora não seja tão conservador e

também não sou de direita como o jornal.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no

Independente)

«(...) porque é um jornal que eu gosto. Gosto porque tem a ver comigo. Não

completamente, claro que não estou cem por cento de acordo, eu acho que isso também

não é possível. Mas dentro dos jornais que existem, semanários sobretudo, gosto muito

do Independente. Identifico-me com o estilo de jornalismo que é feito. Irrevente,

provocador. Não estou de acordo com as posições todas do jornal, como é óbvio, nem

tenho que estar, porque ali há pessoas do mais variados quadradantes, são

completamente diferentes umas das outras em todos os aspectos. Mas na globalidade,

gosto do jornal.» (João António Dias, crítico de literatura no Independente)

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«Para já, o facto do Independente ser na altura, quando me convidaram para

colaborar, o jornal de longe mais interessante que havia no país. Portanto, aquele que

traduzia melhor, digamos assim, as novas gerações, quer na política, quer na cultura.

Ou seja, era um orgão de informação que queria corresponder a uma certa

sensibilidade mais viva e mais inconformista na sociedade portuguesa. Embora o

Independente tenha evidentemente uma marca politica de direita, se calhar até por isso

corresponde a uma época mais actual, quer dizer... Penso que o facto de ter uma marca

política de direita não faz do Independente um jornal conservador. Pelo contrário. Um

jornal conservador é o Expresso, ou o Diário de Notícias, ou o JL... Agora o

Independente é, sobretudo, um jornal inconformista, com um certo radicalismo

moralista, preocupado com as novas ideias, com as novas modas... E portanto digamos

que era o jornal mais avançado que havia em Portugal nessa altura, e continua a ser,

apesar dele próprio também tender para uma certa estabilização, institucionalização.

Mas a verdade é que ainda não surgiu nenhum outro jornal que tenha as mesmas

características de irreverência, etc. Portanto, eu penso que a minha colaboração com o

Independente se deve ao reconhecer no jornal essas qualidades.» (António Cerveira

Pinto, crítico de artes plásticas no Independente)

«É óbvio que qualquer jornal que tenha linhas ideológicas que não

correspondam a uma filosofia de vida que eu tenho, que passa pela política também, é

óbvio que eu não estaria bem inserido num jornal desses. Uma expressão popular: "não

daria a bota com a perdigota". E uma das coisas que nós não podemos podemos

abdicar é um certo sonho de mudança para melhor na vida e nos homens. Isto passa

por crenças muito fortes em determinados valores, de maneira que em certas

publicações em que eu nitidamente não iria escrever. Não se justificava que eu

escrevessa lá, o que não quer dizer que eu seja propagandista político, mas o modo

como eu me sinto no mundo, em tudo o que faço, tudo o que realizo, tudo o que escrevo,

há com certeza uma marca do homem que eu sou.» (Fernando Midões, crítico de teatro

no Diário de Notícias)

Nesta perspectiva, tal como podemos depreender das palavras acima transcritas,

é a partir do acordo social perfeito que se joga no momento do "convite" e da sua

aceitação entre a sensibilidade, gosto e estilo do crítico e o programa editorial do jornal

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que, por um lado, as dimensões formais e, sobretudo, substantivas das tomadas de

posição críticas (e dizemos "sobretudo" porque, sendo a dimensão que mais clara e

visivelmente reflecte a visão do mundo, nomeadamente do mundo das artes, pessoal e

subjectiva do crítico, e sobre a qual ele não abdica da sua total autonomia e liberdade, é

também aquela que, como vimos, os constragimentos jornalísticos são menos atrevidos

e sentidos) vão aparecer como "naturalmente" ajustadas à visão do mundo e espírito

programático característico do jornal em que se insere, ilibando-o de interferir nesse

âmbito, assim como, por outro lado, também ajustadas em relação às expectativas dos

leitores mais assíduos desse mesmo jornal e das suas crónicas críticas.

Com efeito, os diferentes discursos e julgamentos produzidos pela crítica não

obteriam o reconhecimento por parte do público a que se dirigem e, consequentemente,

a eficácia simbólica prevista e desejada pelo orgão de imprensa e pelo próprio crítico

sobre aquela instância se, à partida, entre o crítico, o jornal para onde escreve e os seus

respectivos leitores não existisse a priori um ajustamento no que respeita às suas visões

do mundo, designadamente do mundo das artes e letras, aos seus interesses e estratégias

neste, aos seus gostos e códigos de referência e de reverência, no fundo, aos esquemas

de disposições e pressuposições estéticas que integram e constituem os seus habitus.

Daí a prática da crítica variar substancialmente, quer em termos de forma, quer de

conteúdo, consoante o orgão de imprensa no qual são é desempenhada e, por sua vez,

segundo o tipo de público que este atinge ou pretende atingir.

Note-se, todavia, que esse ajustamento entre crítico e leitor não é demagógica,

intencional ou conscientemente procurado pelo crítico (embora ele o procure estabelecer

no momento em que pondera o convite de determinado jornal), sendo, pelo contrário,

resultante de uma correspondência estrutural tácita e objectivamente estabelecida entre

a mundividência daquele agente, do jornal para que trabalha e do seu respectivo

público, correspondência essa que lhe permite ser sincero nos seus veredictos e

interpretações, sentindo que os pronuncia em plena liberdade, livre de todo e qualquer

tipo de condicionalismos. Tudo se passa como um jogo de espelhos: no caso do sistema

de disposições do crítico corresponder ao sistema de disposições partilhado pelo orgão

de imprensa para onde escreve e, por esta via, coincidir com o habitus do público para o

qual se dirige e pelo qual é consumido, neste caso (ideal, convenhamos), o discurso

opinativo, avaliativo e interpretativo do crítico é passível de defender simultaneamente,

de forma sincera, livre e eficaz, os interesses ideológicos e estéticos do seu jornal e dos

seus respectivos leitores, isto porque está também, na realidade, a defender os seus

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próprios interesses contra os dos seus adversários mais próximos, ocupantes de posições

opostas à sua no campo da crítica.

É neste sentido que Bourdieu afirma, ainda com base nas palavras de Jean-

Jacques Gautier, que «les critiques ne servent si bien leur public que parce que

l'homologie entre leur position dans le champ intellectuel et la position de leur public

dans le champ de la classe dominante est fondement d'une connivence objective (...) qui

fait qu'ils ne défendent jamais aussi sincèrement, donc aussi efficacement, les intérêts

idéologiques de leur clientèle que lorsqu'ils défendent leurs propres intèrêts

d'intellectuels contre leurs adversaires spécifiques, les occupants de positions opposées

dans le champ de production. "Concrètement, le critique du Figaro ne juge jamais un

spetacle; il juge le jugement du critique du Nouvel Observateur qui est inscrit en lui

avant même que celui-ci ait à le formuler".»48

O que Bourdieu, no fundo, pressupõe, é a existência de um efeito de homologia

estrutural e funcional entre o campo da crítica, o campo dos orgãos de comunicação

social para os quais produz e pelos quais é divulgado o seu discurso, e o campo das

classes e fracções de classe (nomeadamente no espaço das fracções culturalmente

favorecidas, que será onde provavelmente se recrutará a maior parte da clientela do

discurso crítico), efeito esse que, dando conta analiticamente do ajustamento de

disposições e pressuposições que tende a existir entre posições homólogas em campos

diferenciados, permite fundamentar e explicar objectivamente a reciprocidade e

afinidade mútua de expectativas, interesses e estratégias que nas relações entre o crítico,

o orgão para onde trabalha e o seu respectivo público, tendem a estabelecer-se. Nesta

óptica, quanto mais perfeito fôr o reencontro entre a posição do crítico no espaço social

que lhe é específico, a posição do jornal para onde escreve no campo dos orgãos de

imprensa e a posição do público que o consome na estrutura social, melhor garantida

está, à partida, a liberdade e a sinceridade do crítico na produção do seu discurso, mais

adequadamente o leitor compreenderá e se sentirá identificado com as opiniões,

veredictos e interpretações nele expressas e, deste modo, mais rapidamente ele

reconhecerá a legitimidade do crítico produtor desse discurso, sendo muito mais

eficiente e eficaz, por via da cumplicidade que objectivamente entre eles se estabelece,

o poder de influência e de persuasão deste último sobre o primeiro.

48 Idem, p. 21.

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Ora, tomando esta hipótese como verdadeira, torna-se claro o facto da influência

que os críticos exercem efectivamente sobre as orientações subjectivas (actos de decisão

e de escolha, de opinião e de gosto) dos seus leitores não ser linear, mecânica e

determinista: na realidade, é o jogo de conssonâncias estruturais que objectivamente

acontecem entre o espaço de produção de julgamentos e discursos críticos, o espaço dos

orgãos de comunicação social por onde estes circulam e o espaço dos seus respectivos

receptores, que garante e fundamenta quer, por um lado, o reconhecimento e a

concordância destes últimos em relação à avaliação estética preconizada pelos primeiros

sobre as obras que destacam, quer, por outro lado, colocando-nos num plano

estritamente semiótico, o ajustamento entre "gramáticas de produção", ou seja, códigos

de leitura que vinculam os críticos na compreensão, interpretação e (des)codificação que

fazem da obra em causa, e "gramáticas de recepção", isto é, os códigos de leitura

utilizados pelos seus respectivos receptores, condição necessária, segundo Elísio Véron,

para que aconteça a circulação inteligível de qualquer enunciado discursivo ou não

discursivo, fenómeno que ele designa de semiose social.49

Esta condição é tanto ou mais necessária em relação à difusão dos enunciados

propriamente críticos, na medida em que o espaço de produção destes é hoje

profundamente marcado pela proliferação de um amplo espectro de discursos

diferenciados, reflectindo a diversidade de quadros paradigmáticos de referência que

nele são utilizados e propostos, assim como a clivagem de posições que nele se

manifesta - posições essas que, estando no princípio das diferenças objectivas que em

termos de convenções éticas e estéticas dividem os críticos, assim como dos diferentes

sistemas de categorias de percepção, apreciação e intepretação (no fundo, sistemas de

classificação) por eles aplicados, não deixam de os condicionar no que se refere à

pluralidade de possibilidades de leitura e de efeitos de sentido, como lhes chama Véron,

que qualquer obra lhes pode proporcionar e que eles podem, por sua vez, proporcionar

ao seu público.

Neste contexto, podemos aperceber-nos até que ponto a "escolha" de um crítico

por parte de um orgão de imprensa é um passo fundamental para que a eficácia

simbólica da sua acção discursiva se concretize sobre o público específico desse orgão:

efectivamente, caso algum deles se encontre objectivamente "deslocado" em relação ao

lugar social do outro, muito provavelmente o impacto das propostas apresentadas pelo

49 VÉRON, A Produção de Sentido, S.Paulo, Cultrix, s.d.

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crítico junto do público fiel do jornal para onde escreve ver-se-á votado ao fracasso e,

deste modo, o próprio jornal descredibilizado. Isto na medida em que a relação de

simbiose ética e estética que, a priori, garantiria um público ajustado ao discurso

produzido, encontra-se, à partida, posta em causa, daí resultando que as propostas

avaliativas e interpretativas apresentadas pelo crítico tendam a ser incompreendidas e/ou

mal recebidas pelo público que encontram, tornando-se motivo de escárnio, de riso ou,

na melhor das hipóteses, de ironia ou de indiferença por parte deste último.

Terá sido a progressiva consciencialização deste desajustamento ético e estético

por parte dos responsáveis dos jornais em que Carlos Vidal desenvolveu a sua

actividade crítica antes de passar para a Capital que, objectivamente, esteve na base do

seu afastamento sucessivo daqueles orgãos (se bem que o crítico não interprete da

mesma maneira e pessoalize bastante mais a questão). Aliás, a desarticulação entre o

modo (violento) deste crítico encarar a sua prática e o modo prescrito pelos jornais onde

a desenvolveu anteriormente, encontra-se bem visível no seu próprio testemunho acerca

deste percurso, quando contrapõe o seu tom e objectivos para a crítica ao tom e

objectivos desses jornais, nomeadamente do Público:

«Em 90, para sintetizar um pouco o trajecto que depois vem a ser acidentado a

partir do momento em que eu entro para o Público, antes do jornal sair eu já fazia

parte do corpo de críticos do jornal. Em 90 estou cerca de oito meses a trabalhar no

Público, desde que saiu em Março até à volta de Outubro/ Novembro, a fazer crítica

semanalmente. A experiência não foi de todo interessante, na medida em que era um

tipo de jornal, e ainda é um tipo de jornal, com pretensões mais institucionais e um

cariz de certa maneira cinzento na actividade da crítica, em que a crítica que se fez

nunca foi de grande dureza, embora houvesse mil e um motivos para se exercer a

actividade crítica com mais ou menor dureza, desde que houvesse um fundamento

substancial. Geraram-se alguns problemas, tive alguns textos nitidamente censurados -

era curioso porque ninguém assumia a responsabilidade - e depois acabei por sair do

jornal. Depois estive no Independente cerca de um ano também. Aí voltou a haver de

novo problemas (já anteriormente transcritos) (...) A solução da Capital resulta das

várias tentativas sucessivas de marginalização que foram sendo desenvolvidas ao longo

de um processo que tem a ver com questões pessoais, tem a ver com questões de

opinião, tem a ver com questões de auto-defesa de determinados grupos.» (Carlos

Vidal, crítico de artes plásticas na Capital)

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O nível de dependência que, como tivémos oportunidade de constatar, o espaço

da crítica demonstra possuír face aos constrangimentos impostos pelo campo do

jornalismo, acresce ainda devido ao facto de neste, actualmente em Portugal, repousar a

capacidade de gerir o acesso aos lugares que o espaço da crítica tem disponíveis. Num

cenário em que a edição de revistas especializadas e de ensaio é praticamente nulo, e

sem grandes perspectivas de se ver melhorado, o monopólio da gestão do acesso aos

lugares que topograficamente constituem o espaço da crítica, assim como a própria

definição, reconhecimento e legitimação do estatuto de crítico e dos nomes que o

preenchem, encontra-se quase totalmente consignado ao espaço da imprensa generalista

(com objectivos e critérios estéticos e críticos relativamente distintos, como vimos, dos

cultivados pelo espaço específico da crítica).

Embora a selecção inicial seja regulada, como vimos no capítulo anterior, pela

detenção de um determinado conjunto de competências específicas definidas e

reconhecidas no campo da crítica, esse processo de regulação está longe de ser

totalmente entregue nas mãos dos próprios críticos, sendo em muito da responsabilidade

do campo da imprensa e dos seus respectivos agentes50. Mesmo a selecção que é

aplicada pelas várias associações de críticos existentes acaba por ser baseada na

regulação previamente efectuada pelos jornais, pois tem como critério base a

regularidade com que o crítico pratica essa actividade publicamente (estando no nosso

país essa dimensão "pública" praticamente restringida ao jornalismo generalista). Por

outro lado, é ainda de notar que enquanto instituição de acolhimento praticamente

exclusiva do discurso crítico, os jornais, nomeadamente quem nestes dispõe de posições

de chefia, detêm também nas suas mãos o poder de aplicação de algumas das principais

sanções negativas (como a excomungação do campo, como vimos tentada no caso de

Carlos Vidal) e positivas (a legitimação, promoção e credibilização social do nome do

crítico) que fundamentam a organização e hierarquização interna do espaço da crítica, já

que as associações, dada a sua fraca visibilidade e actividade, se revelam totalmente

ineficazes nessas operações.

50 Que muitas vezes faz aceder ao estatuto de crítico, numa estratégia de racionalização dos seus próprios recursos humanos e materiais, jornalistas não detentores dessas mesmas competências, situação que alguns críticos mais ciosos do seu estatuto reprovam.

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O monopólio exclusivo detido pelos media no processo de legitimação social e

de construção da autoridade cultural do estatuto de crítico, que não encontra

concorrência nas instituições específicas do próprio mundo das artes e letras, na

Academia ou até mesmo nas próprias associações de críticos formadas, praticamente

inoperantes e deixadas à margem neste processo, encontra-se bem patente nos

depoimentos dos nossos entrevistados em relação à questão «em que se fundamenta a

legitimidade e a autoridade do crítico para publicamente manifestar as suas opiniões

e apreciações estéticas?»:

«Aí, a autoridade é conferida pelo facto de, num sistema de mercado, ser

reconhecido como tal pelos agentes empregadores.» (Alexandre Pomar, crítico de artes

plásticas no Expresso)

«Poderá perguntar-me de onde vem a legitimidade a um nível institucional? De

facto, de lado nenhum, pela simples razão que não existem organismos de formação de

críticos, como existem de engenheiros ou de arquitectos. Aí sim, e sem qualquer ironia,

acho que a legitimidade vem pelo menos em parte, também da história profissional

desse crítico, isto é, da legitimidade que lhe foi conferida ao longo dessa história pelos

próprios jornais em que escreveu.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso)

«(...) no caso de um crítico que se assume como tal, manifesta a sua crítica

dentro de uma publicação que lhe confere essa legitimidade. (...) O crítico é alguém que

dedica o seu tempo a estudar e a pensar esses acontecimentos artísticos, em pricípio

terá mais legitimidade para os formular. Não se baseia apenas numa opinião

momentânea e factual sobre um determinado acontecimento, como o público tem depois

de ver. Mas pessoas podem até nem ser críticas e terem a mesma preparação, podem

estudar, podem-se informar. Neste aspecto, podem ser críticas, só não poderão obter a

legutimidade de um orgão porque precisamente não o estão a utilizar.» (Paulo

Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras)

«A legitimidade é meramente circunstancial. É o facto de ter acesso a um meio

de comunicação social, e de facto, a partir daí tem essa vantagem relativamente a

outras pessoas, que se calhar até podiam dizer coisas mais interessante, até podiam ser

muito mais inteligentes. (...) é a autoridade de ter esse acesso a esse orgão de

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comunicação social e dar a sua opinião. É essa a sua autoridade.» (João António Dias,

crítico de literatura no Independente)

«A legitimidade de um crítico assenta em grande parte no facto de nos darem

um emprego. Assenta nos leitores que tem, e por conseguinte nos empregos que nos

dão, porque não há empregos de graça deste país. Garanto-lhe que no dia em que eu

deixa-se de ter essa legitimidade, punham-me na rua.» (Patrícia Cabral, crítica de

literatura no Diário de Notícias)

«Uma senhora que agora está na SIC, por exemplo, a Paula Moura Pinheiro,

escrevia crítica de arte. Mas aquilo não fazia sentido nenhum, ela não sabia escrever

aquilo. Quer dizer, ela não escrevia mal, tinha sensibilidade, mas não tinha formação

nenhuma, dizia os desvarios mais absolutos. De tal maneira que o Pomar (coordenador

da secção de artes plásticas no Expresso e também crítico de arte) lhe disse que ela não

podia continuar a escrever. Portanto, o que é que o legitima? Legitima-o a sua

autoridade. O que é que legitima o poder político? É o voto popular. Aqui não é o voto

popular, mas é o consenso redactorial, os editores e os leitores. É uma coisa assim,

inapanhável.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público)

No entanto, há que ter em conta que muitos dos que hoje assumem posições de

chefia na área cultural do campo mediático também exercem ou, pelo menos, já

exerceram a actividade crítica, pelo que a aplicação de tais sanções, sejam elas positivas

ou negativas, não fica assim totalmente por mãos alheias. Por outro lado, existem

também estratégias de resistência e de luta contra as directivas impostas pela lógica do

campo jornalístico ao campo da crítica, notoriamente observáveis nas estratégias de

demarcação operacionalizadas pelos seus agentes face aos jornalistas "comuns", aos

seus modelos e formatos de produção discursiva, aos valores e objectivos de que

partilham, assim como nos processos de negociação que, desenrolados entre críticos e

seus editores/coordenadores de página, concedem aos primeiros um espaço de

possibilidades de actuação no interior do jornal, com direitos a singularidades e

valorações, a escolhas e a tomadas de posição ideológicas, a que o jornalista

vulgarmente não acede.

É justamente na gestão desse espaço de possíveis jornalisticamente concedido,

em que o esoterismo da sua condição de especialista é negociado com o exoterismo da

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sua condição jornalística, que o crítico assume a especificidade da sua actuação no

interior do campo dos media, nunca deixando de combater em nome do seu estatuto

particular e dos princípios, valores e normas que lhe são inerentes contra os

constrangimentos que aquele lhe tenta impor. Há, de facto, todo um capital colectivo de

atitudes, representações e valores éticos que, ao estabelecer uma confiança dóxica na

sua própria legitimidade enquanto críticos, não se compadece com a lógica mediática,

por mais que esta os atente quotidianamente. Tal como refere Bourdieu a respeito dos

vários tipos de comentadores ou intelectuais-jornalistas, entre os quais podemos

posicionar o crítico, situados num lugar incerto entre o campo do jornalismo e o campo

intelectual mais especializado, estrategicamente «se servent de leur double appartenance

pour esquiver les exigences spécifiques des deux universes et pour importer en chacun

d'eux des pouvoirs plus ou moins bien acquis dans l'autre»51.

De facto, os nossos entrevistados, mesmo aqueles mais adeptos de uma "crítica

jornalística" e que não se sentem tão afontados pelos constrangimentos impostos pela

lógica de funcionamento mediática, ofereceram alguma resistência quanto à assumpção

do estatuto de jornalista, demarcando-se da cultura e da identidade profissional deste

com base em quatro pressupostos fundamentais: a) a relação do crítico com a matéria-

prima noticiável ou, neste caso, "criticável", pressupõe um investimento pessoal e

subjectivo que não é comummente concedido ao jornalista, que deverá supostamente

relacionar-se com o facto de um modo imparcial e de objectivo; b) essa relação traduz-

se, por sua vez, numa maior autonomia do crítico na fase de elaboração do seu texto,

que, se por um lado não está sujeita às regras convencionais de construção de um texto

jornalístico, podendo definir e desenvolver discursivamente um "estilo" próprio, por

outro, está partidariamente livre de tomar uma posição e de forçar uma interpretação

pessoal em relação ao facto junto do leitor, ao passo que se pressupõe que o jornalista

deverá abdicar na sua escrita qualquer componente de ordem subjectiva, seja ela de

ordem técnico-linguística, seja de ordem ideológica, deixando ao leitor a maior margem

de interpretação possível em relação ao facto considerado; c) pressupõe-se ainda que o

crítico detém competências mais específicas e especializadas que o jornalista; d) o nível

de integração e o próprio estatuto dentro do jornal também é utilizado como estratégia

de demarcação, pois enquanto se pressupõe que o jornalista se dedica a tempo inteiro a

51 BOURDIEU, "L' Emprise du Journalisme", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 101-

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essa actividade e se encontra «de facto» integrado no jornal, a actividade crítica poderá

ser acumulada a outro tipo de actividades profissionais, fazendo nornalmente parte das

listas de colaboração externa daquele orgão, com direitos e deveres distintos dos da

actividade jornalística.

«Pelo facto de trabalhar num jornal sente-se um jornalista? Não me sinto

jornalista por várias razões. Primeiro, não tenho o sentido da notícia, não fetichiso os

facto, nem fetichiso as notícias. Não sei muito bem o que é isso das notícias, tenho

dificuldade em redigir uma notícia. Parece-me sempre irrelevante, talvez também

devido ao campo em que trabalho, nunca sei muito bem aquilo que pode ser notícia ou

que não pode ser notícia. Portanto, desvalorizo aquilo que seria a primeira

preocupação ou tarefa do jornalista, que seria a de dar notícias. Nesse sentido, nem só

não faço como não sinto nenhum apetite para fazê-lo, nem tenho esse sentido

jornalístico que é o do tempo próprio para as coisas. (...) Por isso mesmo não me sinto

jornalista. Depois, em segundo lugar, tenho algumas preocupações, não sei se consigo

se não consigo, em relação precisamente à não utilização da linguagem jornalística.

(...) O crítico é suposto ter uma consciência muito maior em relação à própria

linguagem que utiliza, é suposto ter uma consciência crítica em relação à própria

linguagem, não apenas literária mas toda a linguagem que circula à sua volta e no

próprio interior do jornal. É suposto que o crítico desconfie dos factos, enquanto que o

jornalista deve pelo contrário estar atento a todos os factos. O crítico deve ter sempre

um olhar recuado em relação aos factos, desconfiar de todos os factos, suspeitar de

todos os factos, e interrogá-los primeiro, isto é, não apresentar os factos enquanto

factos, enquanto não tiver reflectido sobre eles.» (António Guerreiro, crítico de

literatura no Expresso)

«De maneira nenhuma. .(...) Eu gostaria de nunca ser confundida com uma

jornalista, porque são práticas diferentes, formações diferentes, objectivos diferentes.

(...) O jornalismo, para já, é uma profissão. A crítica não é uma profissão. O jornalista

é suposto trabalhar sobre acontecimentos, sobre actualidades, é suposto ter uma

técnica que aprendeu para escrever sobre as matérias que lhe competem. O crítico não

aprendeu a ser crítico, é suposto não ser pautado por critérios de actualidade, de

102, Março de 1994, p. 6.

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espetacularidade, de venda de papel, é suposto estar mais livre do que o jornalista

neste aspecto, e é suposto ser mais especializado que o jornalista, que é mais

generalista. (...) O crítico não tem a ver com informação de maneira tão alargada como

o jornalista, mas com informação mais sectorizada. Eu ao falar sobre um espetáculo

estou a informar sobre aquele espetáculo, mas não estou preocupada sobre quantas

informações tenho de dar, sobre como eu construo o meu texto, agora é o «lead», agora

é... Não. Sou mais livre.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso)

«O crítico necessariamente aborda as várias questões de uma forma opinativa e

pessoal, o que raramente acontece, ou não acontece com o que será uma notícia comum

do jornal, que é necessariamente objectiva e factual. Ali há uma interpretação da

realidade, embora em todos os jornais, todos os textos que são assinados têm

necessariamente um estilo pessoal, eventualmente até alguma opinião, ainda que

mitigada. Há sempre o necessário juízo. Mas a crítica é um campo específico dentro do

jornalismo, que é mais profundo, mais elaborado, e exige um tipo de conhecimento

dentro de uma determinada área que o jornalista poderá ter, mas este pega numa

realidade muito mais vasta. É uma especialização dentro do um núcleo geral e mais

vasto.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras)

«Apesar de tudo, mesmo que o crítico faça a chamada crítica jornalística, há

uma certa especialização da parte da crítica, que o jornalista pode eventualmente não

ter.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras)

«Não, não reivindico essa qualidade. (...) O crítico, por um lado, é menos

responsável porque é um mero colaborador do jornal, não é o criador do jornal.

Participa na criação como colaborador, que é diferente de ser protagonista. Mas, por

outro lado, tem a responsabilidade de ser um especialista. E curiosamente em Portugal,

na nossa comunicação social os jornalistas ganham muito mais que os colaboradores,

que são especialistas. Lá fora, em certos países do mundo que eu tenho conhecimento, é

ao contrário, quer dizer, o colaborador, o especialista, ganha muito mais, nem se

compara, que o jornalista.» (Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de Letras)

«Há essa distinção entre o crítico e o jornalista. (...) O crítico se reduz a emitir

um juízo de valor, a julgar determinado objecto cultural, enquanto que o jornalista

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cultural acompanha, relata e se ocupa das novidades culturais, ou seja, ele pode dar

notícias também, notícias no âmbito cultural. Um crítico não faz isso. Um crítico não

vai escrever "o Truffaut morreu ontem", quem faz isso é o jornalista cultural,

acompanha as novidades, realça determinadas coisas. É claro que num artigo, ele

emite também juízos de valor, mas ele está a lidar também com o concreto, com

novidades, com notícias, só que da área cultural.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema

no Independente)

«O jornalista, no fundo, é mais um comunicador de informação, ou seja, o

jornalista, em princípio, deve deixar, por definição, um grande espaço de interpretação

ao leitor, enquanto que o crítico, de certa maneira, força uma certa interpretação da

informação. É essa a grande diferença. Seja o crítico de política ou o crítico de arte, o

crítico força uma certa visão dos factos. O jornalista não deve forçar essa visão dos

factos, deve dar a conhecer os factos. Quer dizer, não deve censurar, também não deve

insistir ou dar visibilidade aos factos quando eles não merecem. No fundo, o jornalista

tem uma grande responsabilidade de medir a importância relativa dos factos que

devem ser dados a conhecer. Enquanto que o crítico força um ponto de vista sobre os

factos que já são conhecidos ou que se devem conhecer, tem mais essa missão.»

(António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente)

«Há mais coisas: normalmente os críticos não estão nos quadros do jornal, são

colaboradores o que, profissionalmente, os coloca à margem. Não têm as mesmas

defesas nem os mesmos direitos e são olhados como se fossem uma raça que está ali,

passa por acaso. Isso não acontece muito no Público. Desde o primeiro dia que os

críticos - quaisquer que sejam - foram postos à vontade, entram e saem, escrevem à

vontade, ocupam os computadores disponíveis. (...) Há uma pequena diferença em

relação ao jornalista. Alguns deles escrevem sobre os factos, sobre um espectáculo,

sem nunca os terem visto. Fazem-no através de um "press release". As companhias

mandam um "press release" para o jornal e o jornalista pode escrever. Às vezes faço

isso, sem ter visto o espectáculo. De certo modo, há uma diferença entre o crítico que

tem um cabeçalho no artigo a dizer crítica e o outro que não vê os espectáculos. A

partir do momento em que vejo os espectáculos, é-me difícil falar sobre eles sem

estabelecer certas normas e sem dar alguma coisa de mim, quer dizer sem me tornar

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parcial. Normalmente a crítica não é inofensiva. Tem sempre por detrás o

"background" daquele que escreve.» (Manuel João Gomes, crítico de teatro no Público)

«Há um lado de jornalismo na crítica, que é o lado de coerção material, ou seja,

há prazos de entrega, há caracteres que crescem e decrescem conforme o tamanho das

páginas que depende da publicidade, esse lado é puramente jornalístico. Crítico,

crítico, a actividade crítica em si, ou seja, a escrita, já não é tão jornalística como isso,

apesar de - lá está a tal diferença de tom - haver um lado de, não pedagógico mas,

tenho que ter em conta que estou a num orgão de comunicação que vai se lido por

pessoas que obrigatoriamente não viram o filme. Portanto, não posso partir do

princípio que viram o filme, o que condiciona a coisa, e isso é jornalismo. Ou seja, tem

que haver um lado de estar esclarecido e esclarecer a posição daquele que me lê. E isso

já posso considerar que é jornalismo.» (José navarro de Andrade, crítico de cinema no

Público)

«Não, não me sinto um jornalista. (...) O jornalista tem por obrigação não

emitir juízos de valor, isso é uma coisa deontológica. Tem que ouvir as partes, expôr

um raciocínio e explicar a situação. E o crítico não. O jornalista também tem a

necessidade, a obrigatoriedade de dar cobertura à globalidade dos acontecimentos, e o

crítico selecciona esses acontecimentos.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no

Público)

«O crítico é obrigado a um exercício de análise intelectual que é muito

concreto, e muitas vezes sobre coisas extremamente fugidías que o jornalista na sua

actividade normal não é tão obrigado a isso. A não ser quando faz um jornalisno de

opinião. Aí um jornalista de opinião tem muitas proximidades com o crítico, é alguém

que expõe claramente a opinião. Um simples repórter relata as coisas, estará longe da

figura do crítico, mas o jornalista de opinião está muito próximo da figura de um

crítico. O jornalista-analista, analista político por exemplo, pode ser só jornalista

político, mas se é jornalista e analista está muito próximo também do tipo de actividade

de raciocínio que o crítico utiliza.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de

Notícias)

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«(...) um jornalista normalmente é especializado, como diz o Baptista Bastos, em

cultura geral. Eu não sou um especialista em cultura geral, sou um especialista em

artes plásticas. E dentro das artes plásticas, nem todas. (...) Não, a crítica não é crítica

jornalística, não confundir crítica com jornalismo, não é fazer apenas da crítica uma

forma de jornalismo, cuidado com isso, porque o jornalismo tem essa tendência para

banalizar, para tornar acessível a comunicação e falar em termos tão corriqueiros que

não dá direito a ser profundo. Não, a crítica tem que ser profunda mas, ao mesmo

tempo, perceber o que é a comunicação no plano da cultura geral. E por isso fazer

crítica não é o mesmo que fazer poesia.» (Eurico Gonçalves, crítico de artes plásticas no

Diário de Notícias)

« (...) são duas coisas completamente distintas. Eu faço crítica de cinema, não

faço jornalismo. O jornalismo é uma profissão que envolve toda uma actividade em

torno da escrita. A crítica de cinema é uma forma de escrita que ocupa uma parcela

pequena na vida do cidadão. Eu escrevo cinco horas por semana, um jornalista escreve

oito horas por dia, se trabalhar normalmente, são quarenta horas semanais. O trabalho

de uma pessoa são quarenta horas semanais, um bocadinho mais em muitos casos. Se

eu escrever quatro, cinco horas por semana, isto não se pode considerar propriamente

uma actividade central. O jornalista tem como actividade central escrever.» (Francisco

Perestrello, crítico de cinema na Capital)

«Não, o jornalista terá que fazer uma investigação factual. Eu faço uma

investigação mais conceptual, mais ideológica. É uma investigação como crítico que

não está preocupada com as ocorrências da actualidade, não está preocupada com os

números da actualidade, não tem a actualidade como único critério. Posso recuar até

um filósofo do século XVI para legitimar uma opinião. O jornalista tem um método de

trabalho que é um método completamente diferente do crítico de arte.» (Carlos Vidal,

crítico de artes plásticas na Capital)

O jogo de negociações envolvido no processo produtivo de qualquer produto

jornalístico, dando conta da «circulação biunívoca de propostas e sugestões entre

editores e analistas em que a iniciativa de "fazer alguma coisa a propósito de alguém"

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pode partir e ser ou não aceite por uns ou por outros»52 - ressalvando o facto de ser

sempre, todavia, em última instância, o editor que detém a última palavra, ou seja, o

poder e o exercício da decisão sobre o que se publica, onde, quando e como (salvo no

caso de serem analistas superconsagrados, que poderão publicar praticamente tudo o

que quiserem, ainda que sempre dentro dos limites do razoável jornalístico), permite

também ao crítico resguardar alguma da sua autonomia relativa face à intrusão do modo

de pensar e de agir jornalístico na sua cultura profissional, conferindo-lhe alguma

capacidade de resistência e de afirmação. Com efeito, é no decorrer da interacção entre

os diversos críticos do jornal ou de um determinado crítico com o seu editor, que muitas

vezes este agente se vê ilibado do peso de alguns constrangimentos propriamente

jornalísticos sobre a sua actividade, reclamando sobre o evento que foi agendado para si

e justificando a sua troca, reclamando por mais espaço para determinado artigo porque

acha que o evento merece, reclamando a inclusão da cobertura de determinado evento

que não foi previsto e que é do seu interesse pessoal destacar e comentar, etc.

Tais processos de negociação são normalmente empreendidos inter-

individualmente, ou seja, entre o crítico e o próprio editor ou responsável de secção (isto

no caso de jornais de pequena dimensão organizativa), ou colectivamente, nas regulares

reuniões de distribuição de trabalho, onde normalmente são feitas as agendas e é

discutido o espaço e o enquandramento a conceder a determinado artigo sobre

determinado evento. Assim sendo, mais ou menos informal e tacitamente, nestes

espaços de gestão de conveniências o crítico vai reivindicando a sua autodeterminação

nas opções sobre o que escrever e no espaço que lhe é concedido, constrangimentos a

que frequentemente se vê submetido, procurando reestabelecer o princípio do prazer na

selecção dos eventos e/ou autores a criticar, princípio que também interessa ao jornal

conceder (já que uma avaliação pela positiva não desencadeará, a priori, tanta celeuma

como uma efectuada pela negativa, celeumas essas que incorrem sempre no risco de,

quando mal orientadas, descredibilizar o próprio jornal). Em suma, como os

depoimentos dos nossos entrevistados testemunham, é através do jogo de negociações

que se empreende ao longo de todo o processo de produção do produto-crítica, que se

tenta, o mais democraticamente possível, a articulação entre os interesses estruturais e

52 MELO, O que é Arte, op. cit., pp. 69-70. O conceito de negociação, quando adaptado e operacionalizado no estudo da produção de produtos jornalísticos, tem o inegável mérito de corrigir o que poderá parecer um excessivo determinismo de algumas abordagens teóricas e empíricas deste complexo processo.

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programáticos do jornal, as necessidades e os anseios do público que pretende atingir, e

as idiossincrasias cultivadas pelo crítico.

«O jornal para que trabalha, interfere de algum modo na fase de selecção dos

factos culturais sobre os quais se deve pronunciar criticamente? Sim, interfere.

Interfere tacitamente, segundo uma regra que é uma regra tácita mas que está

estabelecida e que eu tenho que perceber. Um jornal vive da actualidade, logo se eu

quiser escrever um artigo sobre o Ulisses do James Joyce eles dir-me-ão "Mas porquê

agora um artigo sobre Ulisses?". A não ser que haja algum facto relevante que torne

isso actual, de facto o jornal não aceitará isso. Aí é o critério da actualidade que faz

parte das próprias regras do jornal e isso interfere. Mas depois a actualidade não é

uma coisa que exista definida de uma vez por todas. Isso é a grande ilusão dos

jornalistas, é o não saberem reconhecer a própria selecção e a própria ideologia que

faz parte da selecção da actualidade. Entre a actualidade possível eu vou ter de

escolher algumas coisas. E aí vou ter de escolher muitas vezes - não direi que escolha

sempre em função dos critérios do jornal, mas tenho que saber lidar com as próprias

contigências que são os jornais. Isto é, sei que me parece muito mais importante um

livro de poemas do António Franco Alexandre do que um romance da Lídia Jorge, mas

eu sei que se a Lídia Jorge publicar um romance, o jornal será muito mais receptivo a

que eu faça uma entrevista e a que escreva sobre a Lidia Jorge do que estar a dedicar

muito espaço ao António Franco Alexandre, que provavelmente ninguém conhece, pelo

menos as pessoas um pouco fora da área dos livros ali dentro do jornal. Logo, eu tenho

que saber lidar com estas contingências. E logo a Lìdia Jorge terá sempre mais lugar

do que o António Franco Alexandre. Estes nomes são exemplos, meramente.» (António

Guerreiro, crítico de literatura no Expresso)

«São estes os critérios. Actualidade, profissionalismo, portanto instituições

existentes ou mesmo jovens que eu queira seguir. Depois há gostos. O jornal tem muita

gente a trabalhar lá dentro. Apesar de eu poder não escrever sobre o que não quero, o

contrário não é verdade, não posso escrever sobre tudo o que quero.» (Eugénia

Vasques, crítica de teatro no Expresso)

«O que me leva a escolher é, antes do mais, o regime de diálogo constante em

que nós funcionamos na secção de crítica de cinema. Reunimo-nos todas as semanas,

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somos quatro, e as decisões tomadas em relação ao que se vai fazer resultam

precisamente da avaliação da importância dos filmes em função, por um lado, da sua

própria importância em relação ao gosto que cada um de nós tem de escrever sobre os

filmes, ao empenhamento em defendê-lo, à importância histórica, à sua própria

raridade - estou a pensar, por exemplo, se for uma reposição que não é vista há muitos

anos, isso é um factor a ter em conta, que pode justificar, por exemplo, um texto de

enquadramento histórico a explicar de onde vem aquele filme. Portanto, mais uma vez

caso a caso, com factores que vão desde a história dos filmes até ao empenhamento

pessoal de cada um em tratar de determinado filme, as coisas são decididas e são

equilibradas em função disso. (...) Agora, é que não havendo obviamente unânimidades

de gosto, e ainda bem que não há, um dos valores que nós tentamos preservar é que

mesmo que determinado filme não seja muito querido da maioria das pessoas, se

houver alguém empenhado em defender esse filme, essa pessoa tem prioridade em

escrever sobre ele, e independentemente de depois haver ao lado um artigo de alguém

que não gosta do filme, porque às vezes pode ser interessante favorecer as exposição

pública dessas divergências, interessante do ponto de vista do meio jornalístico. Mas,

de facto, um factor que pesa sempre é, mais uma vez, o factor individual, isto é, haver

alguém que tem esse empenho em intervir, mesmo que os outros todos não se sintam

motivados por aquele filme em particular. (...) O empenho que cada um tenha em

escrever sobre determinado filme é sempre um factor essencial. Depois, não vou dizer

que é o único pela simples razão de que há que distribuir trabalho. E se por hipótese,

há uma pessoa que numa determinada semana tem muito trabalho concentrado, em que

há duas ou três estreias, se calhar faz sentido nessas situações arranjar um esquema

mais equilibrado de distribuição de trabalho. Aí as regras resultam do próprio

confronto semana a semana com aquilo que há a comentar, embora suponha por

hipótese que há duas estreias, e decidiu-se que o crítico A escreve sobre um dos filmes.

E sobre do outro filme ninguém gosta a não ser esse mesmo filme. Ele escreve também

sobre esse filme, independentemente dos outros nessa semana não terem textos críticos

sobre determinado filme que estreia. Há, de facto, uma tentativa de equilíbrio na

distribuição de trabalho, por razões práticas antes de mais, mas há também sempre a

preocupação de privilegiar esse ponto de vista empenhado de alguém que vai escrever

sobre determinado filme.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso e coordenador da

secção de cinema)

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«Em termos da selecção, é você que distribui os filmes pelos seu

colaboradores? Não, eu sou muito democrático. Normalmente eu indico, mas

muitíssimas vezes nós encontramo-nos e discutimos, "Ah! não, eu prefiro fazer aquele

outro, eu não estou muito a par desse ceneasta, ou detesto esse género e não me sinto à

vontade" e pronto. É por discussão.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no

Independente e coordenador da secção de cinema)

«As pessoas, à partida, já sabem mais ou menos os temas que me interessam, os

autores que me interessam, e as coisas correm assim naturalmente.» (João António

Dias, crítico de literatura no Independente)

«(No que respeita à selecção dos filmes a criticar...) Como somos três pessoas,

são escolhidos os filmes consoante as experiências de cada um, e normalmente as

pessoas preferem escolher os filmes que gostam mais de falar. (...) Normalmente passa-

se tudo na edição. Aliás, minto, no meu caso, normalmente sugiro os meus. Mas, se por

acaso, como são as pessoas que trabalham lá permanentemente já definiram mais ou

menos, eu escrevo sobre aquilo que foi agendado para mim. É um trabalho alternado

entre o que é uma encomenta e o que é uma sugestão, pode haver uma negociação,

pode haver um filme que escolheram para mim e eu contrapôr com outro que me

pareça mais interessante. Não há aí uma hierarquia muito vincada em termos de

decisão sobre o que se vai falar.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de

Letras)

«(...) quem designa sobre o que é que eu vou escrever é o jornal. É claro que a

coisa depois é negociada, estou a dar o lado formal, o lado duro disto. É negociado no

bom sentido, é conversado, "eu gostava muito..." e não sei que mais. Há uma técnica

que quase todos os jornais praticam que é quase sempre fala sobre o filme aquele que

gosta mais do filme. Também é escusado ser negativista. (...) o que acontece é assim: às

vezes fazem-se dossiers, ou seja, o Drácula quando estreou foi-se buscar o crítico de

literatura para falar do Drácula, o Mário Jorge veio com uma ideia que era a história

dos Dráculas no cinema, imaginando que podia haver um filme com uma parte musical

muito importante, o crítico de música falou disso. E aí geralmente sentamo-nos e

conversamos um bocado, isto é, não vou falar daquilo que o outro também vai falar.

Mas isso é extraordinariamente fácil de fazer. Às vezes há uma grande vontade de duas

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pessoas falarem sobre o filme, e se se descobrir espaço um faz a crítica e o outro - nós

até gozamos um bocado - faz o "side show". Arranjar uma coisa qualquer para se

poder falar do filme, para não haver "overlaping", para as pessoas não lerem o texto

duas vezes, escrito por pessoas diferentes e com maneiras diferentes. Aí conversamos

um bocado, mas é só por isso, para que tal não aconteça.» (José Navarro de Andrade,

crítico de cinema no Público)

«Quando eu não concordo (com a selecção) absolutamente, não faço, e digo que

não vale a pena fazer. Quando acho que não vale a pena fazer, coisas que eu acho que

não têm importância nenhuma, não faço. Não faço e digo para ninguém fazer. Ou então

mando alguém fazer, alguém que pode até não ser da área. Por exemplo, a Lisboa

Subterrânea, achava que era uma exposição muito importante, sabia que não era muito

boa, não me interessava nada fazer, e disse a alguém do Local para fazer, porque era

Lisboa. E fizeram, pronto. Portanto, canalizo o trabalho.» (João Pinharanda, crítico de

artes plásticas no Público)

«Para o suplemento, que tem doze páginas, eu selecciono os livros que achamos

mais interessantes para nós falarmos, e esses sabemos quais são. É evidente que entre

os "best sellers" há uns que são muito maus e há outros bem feitos enquanto "best

sellers". Entre os autores, há autores que são bons, há outros que não são bons. Há

uma escolha prévia de tudo o que chega aqui ao jornal. Os editores mandam para cá os

livros, há uma escolha prévia para tudo aquilo que vai entrar no suplemento. Depois,

esses livros são distribuidos às várias pessoas que escrevem para esse suplemento, e eu

escolho aqueles que me interessam mais, como é óbvio, os autores que me interessam

mais, que eu gosto mais. (...) É claro que acontece muitas vezes não haver ninguém

para escrever sobre um livro que é importante que alguém escreva, e acaba por parar a

mim porque eu estou cá. Mas esforço-me sempre por... Eu acho que é mais saudável as

pessoas escreverem sobre as coisas que gostam do que estarem a escrever sobre coisas

que não se interessam.» (Tereza Coelho, crítica de literatura no Público)

Diante do cenário traçado, apesar do espaço da crítica se apresentar na situação

constante de uma autonomia ameaçada, sendo, nas condições de produção que lhe são

dadas hoje e em Portugal, bastante sensível à interferência de constrangimentos externos

e à contaminação da sua doxa pelas lógicas subjacentes aos campos que o interseptam,

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sente-se nele uma capacidade de gestão desses mesmos constrangimentos e de

demarcação de um território próprio bastante demonstrativa da vontade de preservação

e até de alargamento da sua autonomia enquanto corpo social específico e especializado.

Essa vontade pode ser tanto mais notada quando, ultimamente, temos vindo a assistir a

várias tentativas empreendidas por parte de alguns elementos da comunidade crítica no

sentido de dotar o seu espaço específico de elementos institucionais que lhes assegurem

a regulação do acesso à actividade e o reconhecimento da sua legitimidade a partir do

interior do seu próprio campo: o caso mais flagrante é o da criação de associações de

críticos interligadas a associações internacionais já existentes, embora também se fale

da formulação de um código deontológico próprio e da credibilização institucional de

competências específicas.

Carlos Porto, membro fundador do movimento associativo da crítica em

Portugal, conta-nos em traços muito gerais a história desse movimento, os seus

objectivos básicos, as suas actividades fundamentais e as suas dificuldades de acção:

«Fiz parte da fundação da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro. Isto começou

antes do 25 de Abril, na tentativa de formar uma Associação Portuguesa de Críticos de

todas as áreas. A associação estaria dividida em secções - secção se críticos de teatro,

de cinema, etc -, e isto foi uma luta antes do 25 de Abril que não se conseguiu. Depois

do 25 de Abril então formou-se essa tal associação portuguesa de críticos, em que

havia sectores autónomos de crítica de cinema, artes plásticas, teatro, televisão... O

que se verificou ao fim de algum tempo foi que só os críticos de teatro é que se reuniam,

era a única secção que tinha uma existência. A de cinema começou por ter, mas depois

abandonou. A única secção que tinha existência era a de teatro. (...) Tendo nós chegado

à conclusão que a nossa área funcionava e as outras áreas não funcionavam, então

resolvêmos acabar com a outra associação e fazer a Associação de Críticos de Teatro

(iniciativa que acabou por ser seguida nas outras áreas da crítica). Assumi eu a

direcção, infelizmente para mim, desde essa altura, desde setente e tal. E quais é que

eram os objectivos a que se propunham no início dessa associação? Por um lado, era

a defesa dos próprios críticos junto dos orgãos de comunicação em que eles

trabalhavam. Chamar a atenção para a necessidade desses orgãos de comunicação

apoiarem o trabalho através de espaço, através de condições financeiras melhores do

que aquelas que tinham. E por outro lado, defender o exercício da actividade perante

os próprios grupos, dar prestígio à função de crítico até que os grupos

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compreendessem que ser crítico não é propriamente andar aí às beatas. Por outro lado,

era defender o teatro, a actividade teatral propriamente dita. Mas tivémos muitas

dificuldades. Uma coisa são as nossas ideias, e outra coisa são concretizá-las. Nós

queríamos fazer alguma coisa a nível de criação de orgãos, de uma revista ou de um

jornal, que nos permitísse, por um lado apoiar o teatro, divulgar o teatro, por outro

lado divulgar o nosso próprio trabalho. Mas nunca conseguimos, essas coisas exigem

muito dinheiro e uma associação nunca tem muitos membros. Nós ao princípio

pensávamos que haveria apoios, mas verificámos que não haviam. Portanto, digamos

que a associação tem tido como actividades a atribuição de prémios, a organização do

congresso internacional de críticos de teatro, que aliás foi um êxito, veio cá gente de

todo o mundo, e os países que vieram cá consideraram que o nosso congresso foi um

dos melhores que se fizeram na história da associação.» (Carlos Porto, crítico de teatro

no Jornal de Letras e Presidente da secção portuguesa da Associação de Críticos de

Teatro)

Embora Carlos Porto se refira aqui exclusivamente à associação de críticos de

teatro, as características que ele apresenta são, de um modo geral, comuns às demais

associações existentes para as artes plásticas, literatura e cinema. Nascidas com o

objectivo prioritário de discutir, defender, dignificar e projectar nacional e

internacionalmente não apenas a própria actividade crítica, como a actividade realizada

na área cultural em que esta intervém, sempre com o intuito da criação de orgãos de

difusão especializados para a circulação "livre" do seu discurso ("livre" na medida em

que não se veriam sujeitos aos critérios jornalísticos e aos objectivos comerciais da

imprensa generalista), o surgimento do movimento associativo na crítica corresponde,

objectivamente, à tentativa de demarcar e fechar o seu território específico em relação

às pressões exteriores sobre o qual recaiem, chamando para si o poder institucional de

lhe conferir o acesso e de auto-legitimar a acção crítica.

Tal tentativa viu-se, no entanto, por uma série de factores estruturais e

contextuais, gorada. De facto, actualmente, a sua inoperância institucional, a sua parca

visibilidade social e a sua descredibilização por parte das novas gerações de críticos,

legitimadas como tal pela imprensa e orientadas por valores mais individualistas que

associativos, são factores que, inter-relacionados, contribuem para o fracasso do

movimento associativo da crítica em Portugal em relação aos seus grandes objectivos.

Apesar de 14 dos nossos 21 entrevistados pertencerem efectivamente a este tipo de

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associações nas suas várias áreas culturais, eles não sentem qualquer tipo de pudor em

diminuir o seu valor e a sua ineficácia institucional (excepto os críticos da área do

cinema, cuja associação foi fundada apenas há dois anos atrás e que, em rogôr, ainda

valorizam positivamente a importância da sua acção), como nos ilustram os seguintes

depoimentos:

«É membro de alguma associação de crítico? Não. Espere aí, por acaso eu

acho que fazia parte. Não sei porque razão nem porque meios, às vezes era chamado

para determinadas actividades que tinham a ver com isso da Associação Internacional

de Críticos Literários. Que eu não sei exactamente quais são os seus estatutos, nem sei

neste momento quem são os seus representantes, nem sei muito bem que actividades é

que exerce geralmente, nem sei como é que funciona a nível internacional. Portanto,

está a ver que só quando essa associação me pedia para fazer coisas como, por

exemplo, um balanço literário, considerava-me membro dessa associação e fazia-me

pagar uma quota e tudo. Mas formalmente, não pertenço a nenhuma associação. E em

que medida considera essas associações importantes? Associações de Críticos, não

temos notícia em Portugal de que alguma tivesse sido importante, ou que tivesse

exercido alguma influência onde quer que seja. Do ponto de vista da experiência e da

tradição, e mesmo do estado de coisas e do modo como nós vivêmos a literatura, uma

associação de críticos não serve para nada. Repare que nem tem um orgão para

comunicar com o exterior. Se tivesse, ainda podíamos dizer que o jornal ou a revista ou

o que fosse teria algum interesse.» (António Guerreiro, crítico de literatura no

Expresso)

«Filiei-me porque sou uma pessoa de uma grande boa vontade, e não posso

esconder que tenho uma utopia, a utopia do diálogo. E acreditei que fazendo parte de

uma associação eu poderia: um, dialogar com os outros críticos de um modo

profissional actuante, dois, poderia efectivamente fazer alguma coisa por melhorar a

crítica em Portugal. Não me pergunte exactamente como, mas eu pensei que sim, que

era possível. Mas não, não é possível. Então, é simplesmente por pudor que eu continuo

a ser filiada na associação de críticos, para não parecer uma mercenária em relação

aos outros. É uma questão de solidariedade. Não é que esteja a fazer nada, ou que faça

nada. Mas o facto só de pagar a quota tranquiliza-me a consciência nalgum ponto.»

(Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso)

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«Sou, mas é uma associação que está morta, da qual eu já estou para me

despedir à muito tempo. Só que sou preguiçoso. Já tenho dito tão mal dela que não se

justifica que continue. Fui porque me convidaram. Convidaram-me porque havia a

promessa de uma renovação da AICA, com gente nova. E nessa altura entrou bastante

gente. Entrei eu, o António Rodrigues, o Manuel Graça Dias, entrou uma data de gente.

Era nessa altura presidente a Sílvia Chicó. Isso foi para aí em 86... E a partir daí

acabou.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público)

Para além da criação de corpos associativos, a constituição de um código

deontológico específico para a actividade crítica, assim como a regulamentação e

delimitação das suas competências também são projectos apresentados e discutidos em

alguns foruns promovidos pela comunidade crítica: a constituição de um código

deontológico para o crítico foi proposto pelo romancista e crítico de literatura Mário de

Carvalho, aquando da Feira do Livro do Porto em Junho de 199353. João Garção

Borges, durante a 3º Semana do Cinema Europeu, iniciativa do Cineclube do Porto em

Novembro de 1993, também bradou, por sua vez, «a bandeira da profissionalização dos

críticos de cinema, lamentando que muitos daqueles que vêm escrevendo nos jornais e

revistas o façam sem qualquer "credencial" para essa tarefa»54. Já Eugénia Vasques, na

sua comunicação ao 11º Congresso promovido pela Associação Internacional de

Críticos de Teatro, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian em Setembro de

1990, chamava a atenção para a importância da promoção destas duas acções: «Nem

criadores, nem promotores, os actores da crítica de teatro (...) perguntam-se, do

interior da solidão da sua tarefa, para que serve o seu esforço. Ou será nosso mister

ser o permanente bode expiatório das dificuldades inerentes ao acto de criação?

Actividade sem delimitações nem código deontológico, a crítica de teatro debate-se no

interior da sua própria perversão.»55

A questão da importância da credencialização da actividade crítica para a sua

não apropriação abusiva por parte de agentes menos competentes, foi também alvo de

uma comunicação feita por um crítico de teatro americano nesse mesmo Congresso,

demonstrando que a valorização de tal problema não é específica do português:

53 Isto segundo uma notícia do Público, saída na edição de 9 de Junho de 1993. 54 Palavras retiradas também de uma outra notícia do Público de 3 de Dezembro de 1993. 55 Cit. in O Teatro e a Interpretação do Real, op. cit., p. 141.

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«Remember that when you say "critic" in the United States, you are talking most often

about a journalistic critic, one who writes usually for a newspaper and whose primary

function is the criticism of actual productions which readers will consider seeing.

Traditions of academic criticism are far less understood in America than elsewhere in

the world. Our consumer-oriented population sees critics primarily as useful social

directors - guides to which productions are worth seeing and which ones are to be

avoided.

Over the same 40 years that it took to develop our vast net work of regional

theatres, our newspaper editors found themselves scrambling for critics. Professional

journalism schools showed little interest in developing the extensive training needed to

turn non-arts journalists into knowledgeable arts critics. Indeed, it's immediately

evident that a good critic's most important credential - experience in the art - cannot be

provide by a journalism degree. The editors themselves were left untrained in who to

hire as critics. So sometimes they askeed for volunteers from the news-reporting staff.

Sometimes they pressed a sports writer into service. Sometimes a crime reporter.

Eventualy, many of those sports writers and crime reporters found themselves covering

more theatre than sports or crime - and they indeed up with "Theatre Critic" under their

names in the paper.

Today, there are no standards of training for an American theatre critic. There

are no minimun criteria of knowledge or experience in the art. Do you now our old

American saying, "Everybody can be president?" In truth, every boy has much better

chance of being a theatre critic. And so has every girl. The result is, then, that much

of now major, continent-wide dramaturgy of American regional theatre is being

interpreted to its regional audience by so-called critics who have very few qualifications

for such work. Many of these reviewers are very powerful. (...)

Then often are charges from the theatre community of inadequate criticism in

the United States. And when those charges are made, the American section of IATC can

say nothing inreturn. That is because we are not credential-in body. To become a

member of our organization, you heve only to prove that you are writing critiques for a

news medium. You do not have to produce any credentials that say you have the

expertise to be a critic. Obviously, then, the continued growth of our now-maturing

nations dramartugy is in danger of being limited by our critical community's

immaturity. The blind (critic) can lead the blind (audience member) only so far. Clearly,

this can not go on. (...)

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None of these complex, subtle and demanding forms of theatre can be

appreciated by an audience dependent on untrained, unqualified reviewers. And so on,

in the American section, we have instituted a new committee to study this problem and

to determine whether it is possible and desirable to make the American Theatre Critics

Association, as we call our section, an organization of proven critics. We want to know

if we can create actual standards and, if so, how we can enforce them.»56

Acerca desta questão específica, tal como acerca da proposta de organizar um

código deontológico específico para a actividade crítica, os nossos críticos entrevistados

mostram-se bastante reticentes, uns por oposição, outros por desinteresse: apenas cinco

demonstraram-se a favor da credenciação institucional da actividade crítica, enquanto

14 mostraram-se manifestamente contra, invocando a sua inviabilidade prática, a sua

não necessidade no contexto específico português por haverem mecanismos de

legitimação substitutos e eficientes ou dada a condição amadorística em que é exercida,

e/ou o facto de tais propostas traduzirem um "espírito corporativo" que poderá vir a

comprometer a sua liberdade de acção individual. O mesmo acontece em relação à

formulação de um código deontológico, onde, aos argumentos já mencionados, são

adicionados o facto de código deontológico dos jornalistas ser suficiente: apenas cinco

críticos são a favor, enquanto 15 manifestaram-se contra a sua formulação institucional,

apesar de reconhecerem que existe (e deverá existir) um corpo de regras deontológicas

que são mais de ordem implícita que explícita mas, apesar de tudo, aplicáveis e

aplicadas subtilmente.

«Considera importante credenciar legalmente a profissão de crítico, ou seja,

regulamentar juridicamente as competências exigidas à profissão de crítico? Nunca

tinha pensado nisso, principalmente do ponto de vista jurídico. Por acaso nunca tinha

ouvido falar nisso, mas se isso fosse regulamentado no sentido de se exigir um

currículo específico antes da pessoa..., isso achava muito bem. Agora qualquer um se

põe a escrever nos jornais e a dar opiniões! Sou absolutamente contra isso! Porque

acho que de facto é uma coisa que exige responsabilidades. Regulamentada no sentido

de censurada, isso de maneira nenhuma.» (Tereza Coelho, crítica de literatura no

Público)

56 ANDERSON, Porter, "Amerian theatre most critical limitation: critics", in O Teatro e a

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«Eu julgo que sim, acho que devia haver por exemplo uma carteira profissional,

que é uma coisa que não existe. Acontece que as coisas até hoje sempre se passaram

um tanto amadoristicamente, digamos que os críticos são amadores profissionais. Isso

dependerá evidentemente, suponho eu, do maior peso ou do maior desenvolvimento que

a crítica possa vir a ter. Agora, estar credenciado, acho que sim, que seria útil, até do

ponto de vista prático.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias)

«Não, seria impossível. Do mesmo modo que seria impossível ditar qualquer

espécie de regras normativas em relação às quais um indivíduo pode ser designado de

artista ou de não artista. Exactamente pela mesma razão. Trata-se de um campo que

não pode estar sujeito a essa normatividade do direito positivo.» (António Guerreiro,

crítico de literatura no Expresso)

«Considero impossível. Considero que a actividade se desenvolve num mercado

livre, e tal como os artistas são artistas e como tal são reconhecidos, por parte da

crítica o mecanismo é o mesmo.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no

Expresso)

«No caso português acho que não. Todos nós somos mais ou menos amadores,

fazemos isto por amor à arte. Os próprios críticos universitários fazem crítica como

decorrência da sua actividade principal, mas não creio que se deva profissionalizar a

crítica, embora o Gaspar Simões acho que era um crítico profissional. Mas pelo menos

em Portugal, no estado em que as coisas estão, talvez lá fora faça sentido, quando os

críticos são altamente pagos para emitirem opiniões nos jornais, podem ser

profissionais. Aí acho que sim, toda a profissão tem que ter a sua regulamentação.

Agora no caso da crítica portuguesa, eu acho que não vejo assim de momento qualquer

vantagem.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras)

«Não me parece importante de momento. O crítico em Portugal trabalha hoje

como "free lancer", não há umas regras rígidas estabelecidadas, mas a própria

imprensa se encarrega de ir limitanto a actividade a pessoas capazes de dizer alguma

Interpretação do Real, op. cit., pp. 19-20.

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coisa de útil. Em certos casos, há quem não diga coisas úteis e que se limite a escrever

umas coisas por aí fora, mas depois compete ao público seleccionar o que lê e o que

não lê.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital)

«Não, porque isso ía criar uma corporação e a gente já está farta de

corporações. Isso impedir-me-ia, por exemplo, um dia que me apetecesse, de escrever

sobre literatura, porque eu não a tinha na minha caderneta de crítico. Não acho nada

correcto. Acho que deve haver associações de críticos, como há mas não funcionam em

Portugal. Acho que a pessoa deve perceber que pertence a um grupo, e que esse grupo

tem deveres e direitos. A esse nível sim. Mas o credenciar para exercer, acho negativo.»

(João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público)

«Considera importante haver uma ética profissional legalmente

regulamentada que oriente a actividade do crítico ou acha que a ética deste deverá

estar vinculada às suas decisões pessoais? Eu acho que uma pessoa que exerce crítica

deve ser suficientemente responsável para saber o que é que é condenável do ponto de

vista ético e o que não é condenável do ponto de vista ético. Mas provavelmente, como

há muitas pessoas que se calhar não sabem, se calhar era bom que isso estivesse

regulamentado. Mas nunca tinha pensado nisso. Mas, de qualquer maneira, acho que a

pessoa deve ter princípios éticos, de facto. E isso não é uma coisa que se adquire, é

uma coisa de formação, é uma coisa mais ou menos imanente a partir de certa altura. E

quem não tem um comportamento ético normalmente, não o vai arranjar assim. E

provavelmente não o terá nunca, provavelmente para essas pessoas era importante que

isso estivesse regulamentado.» (Tereza Coelho, crítica de Literatura no Público)

«Eu não acharia mal que houvesse uma ética, um código deontológico. Era

contra a credenciação, mas acho que devia haver um código deontológico do crítico.

Porque isso impediria algumas desonestidades que há para aí.» (João Pinharanda,

crítico de artes plásticas no Público)

«Podemos falar da existência de um código deontológico. Não seria nada de

rejeitar, mas o código deontológico só poderia ter princípios de ordem muito geral,

senão poderíamos cair num excesso em que o crítico estivesse espartilhado, sem

liberdade criativa, sem imaginação quase. Cada ser é um ser diferente e quando as

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coisas são espartilhos muito apertados não se produz bem, não se respira bem, de

maneira que é muito importante o modo de ser de cada um, julgar realmente com uma

série de princípios que no fundo situem os críticos como criticados.» (Fernando

Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias)

«Não é possível regulamentar a actividade do crítico. Parece muito mais salutar

que haja em todo o momento bons crítico e maus críticos. Criticos que são

reconhecidos como sérios e críticos que dão escândalo. Mas isso tudo se julgará na

crítica dos críticos, enfim. Porque apesar de tudo, um crítico escreve semanalmente e é

semanalmente sujeito às críticas dos leitores, do público, do mundo da arte, e portanto

ele não beneficia de nenhuma impunidade nunca. Pelo contrário, ele vê-se

permanentemente sujeito à crítica, que vai desde a situação mais directa e mais

imediata que é pura e simplesmente ser agredido por um artista que achou que ele

escreveu uma coisa que não devia escrever, à dificuldade física de entrar em algumas

galerias. Pode ocorrer com algumas pessoas. Quer dizer, há mecanismos de ajuste de

contas desse tipo na rua, na prática, semanalmente.» (Alexandre Pomar, crítico de artes

plásticas no Expresso)

«Eu acho que deve haver princípios, mas princípios que sejam naturais. Eu

acho que não é necessário existir uma regulamentação do que se deve ou não se deve

fazer. Pelo menos até agora a crítica funciona assim, e a meu ver funciona bem, não é

necessária qualquer regulamentação. Positivar uma coisa que já existe, não acho que

seja necessário. Estes princípios são a formulação de uma opinião e de uma análise de

uma forma pessoal e despida de quaisquer intervenções que não sejam de cinema e

pessoais, como resultado de uma reflexão.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal

de Letras)

«Eu acho que as coisas muito regulamentadas normalmente dão bota, porque

procura-se regulamentar para disciplinar, e quando se disciplina pode-se entrar no

abuso de poder. E depois não se fazem as coisas porque está regulamentado, uma coisa

que era para harmonizar e não para impôr. Neste momento, no estado actual da crítica

literária em Portugal, não vejo necessidade de haver regulamentação desse tipo.»

(Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras)

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«Vamos ser muito pragmáticos: ainda não se pôs o problema em relação aos

críticos, portanto ela não existe, portanto não é precisa neste momento. Eu acho que os

códigos deontológicos na actividade crítica são perfeitamente «common sence», quer

dizer, são aqueles que eu estive a dizer. E eu não estive a descobrir a pólvora, são

coisas tão evidentemente óbvias. E topa-se logo quando um artigo é plagiado, quando

ele começa a inventar cenas que não estão no filme quer dizer que ele não o viu,

quando se sabe que o A dá-se muito mal com o B e aquilo já não está a falar do filme,

está a falar de quem o fez, como dizem os americanos "it's personnal!", isso percebe-se

logo. E isso qualquer pessoa percebe, sente que há ali um mau estar qualquer. Como é

que é? É proibir os críticos de darem-se com os relizadores? É proibir os críticos que

se dão mal com os realizadores de escreverem sobre os realizadores? É de senso

comum. Pode ser que surjam problemas. No caso da crítica de cinema ainda não

surgiu.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público)

«Não, penso que isso já está regulado através da legislação para a

comunicação social em geral, e como tal já está sujeito à ética e à legislação existente

para a comunicação social. O crítico é um comunicador social, como tal deve estar

sujeito às regras explicitas e implícitas dos comunicadores sociais em geral, não deve

estar sujeito a mais nenhuma regra especial. Evidentemente que depois está é sujeito

permanentemente à confrontação disciplinar, ou seja, aquilo que ele diz é avaliado

pelos outros, pelos seus pares. Portanto, há uma avaliação inter-pares, mas já no

âmbito de uma discussão pública, que permite eventualmente distinguir um bom crítico

de um mau crítico. Mas em termos de normas de conduta, acho que aquelas que regem

os comunicadores sociais em geral devem servir também para o crítico de arte. (...) Eu

acho que deve haver dois tipos de regulamentação: deve haver uma regulamentação

geral, uma regulamentação sobre "opinion-makers", sobre a comunicação social em

geral, nomeadamente que acautele as situações de «lobbie» e as situações de «insite

traiding», ou seja, a utilização de uma posição privilegiada para beneficiar A, B ou C.

Mas isso tem que ser uma regulamentação geral, que diga respeito a todos os

comunicadores públicos, a que os críticos de arte também se deviam submeter. Depois,

deverá haver regras intrínsecas, regras não explicitas mas intrínsecas.» (António

Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente)

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Mas apesar de bastante contestadas dentro da própria comunidade de críticos (na

medida em que o crítico, através das afinidades electivas que objectivamente o ligam ao

meio de comunicação em que desenvolve a sua prática, assim como das liberdades que

estatutaria ou negociadamente este último lhe concede no seu processo de produção

discursiva, ainda vai conseguindo gerir a seu bom sabor a sua actividade dentro do

contexto jornalístico), estas propostas, só pelo facto de existirem, são sintomáticas de

uma vontade de autodeterminação do seu espaço próprio.

Nesta perspectiva, pelo que temos vindo a analisar e a reflectir até aqui,

constatamos que embora marcado por múltiplas intersepções com outros campos, o

espaço da crítica não se dilui por inteiro entre eles, e é aí, nessa sua especificidade, que

reside a pertinência e a potencialidade heurística da aplicação do conceito de campo a

esse mesmo espaço social. Apesar da sua sobrevivência ser determinada pela

dependência que mantém com o espaço da criação cultural (que lhe fornece o referente),

com o espaço da recepção cultural (a quem se dirige prioritariamente) e com o campo

dos media (através do qual é difundido o produto discursivo que formula), a partir dele

existe um esforço constante de demarcação e de auto-protecção com a finalidade de

manter a autonomia relativa das suas fronteiras e do que entre elas existe: um espaço de

relações sociais estabelecidas na base de uma doxa própria, em termos de interesses,

valores e práticas específicas, estruturalmente segmentado, hierarquizado e conflitual

como qualquer outro campo de relações sociais, gerido por um corpo de agentes sociais

dotados de uma legitimidade relativamente soberana em razão das competências

específicas que lhes são socialmente exigidas e reconhecidas, corpo esse que age como

actor social colectivo sempre que a sua legitimidade se encontra em jogo57.

E como decorreu o processo histórico de delimitação e estruturação do campo da

crítica enquanto corpo social de especialistas em matérias estéticas, socialmente

conhecidos e reconhecidos como tal por oposição aos leigos? Em que moldes aconteceu

o processo de autonomização deste espaço particular? Que condições estiveram na base

da disponibilidade para o surgimento do lugar da crítica no universo das artes e letras,

assim como da comunicação social? Que factores lançaram o crítico para a ribalta dos

processos de mediação e produção cultural? Num esforço de contextualização histórica

57 Como aconteceu aquando do conhecido «Caso Guerreiro», que moveu toda a comunidade crítica em Portugal quando a sua legitimidade foi posta em causa por um determinado grupo de leitores; para mais

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do lugar específico socialmente concedido à prática crítica, é justamente o conjunto

destas questões que iremos abordar de seguida.

II. DA «PROTO-HISTÓRIA» DA PRÁTICA CRÍTICA

No dizer de Giúlio Carlo Argan, «as obras artísticas foram sempre objecto de

juízos de valor e consideradas como componentes de um património cultural que exigia

atenções particulares da sociedade e dos seus orgãos representativos», tendo-se

desenvolvido em seu redor, desde a Antiguidade Clássica, «uma vasta literatura de

carácter diversificado: cronístico ou memorialístico, teórico e preceitual, histórico-

biográfico, erudito e filológico, interpretativo ou de comentário.»58 Com efeito, apesar

dos testemunhos da sua presença serem bastante esporádicos e segmentados nessa época

remota, podemos situar os antepassados da prática crítica entre a produção discursiva

que já entre os antigos gregos e romanos acontecia em matéria de artes, isto, claro está,

se aceitarmos a noção de crítica no seu sentido mais restrito e tradicional, ou seja,

enquanto formulação de juízos de valor. Estes apareciam implicitamente formulados

nos diversos Tratados e outros escritos que proliferavam entre a cultura greco-romana

nos domínios quer da pintura e da escultura, quer das letras, quer ainda da música, onde

nos aparecem nomes tão sonantes como os de Platão, Aristóteles ou Pitágoras.

O conteúdo crítico contido no interior desses tratados encontra-se associado ao

conjunto de conselhos e de preceitos técnicos e temáticos que orientavam cada um

pormenores sobre este caso, ver a sua análise no nosso anterior trabalho Dimensões Sociais da Prática Crítica, Lisboa, ISCTE, 1993, pp. 59-73. 58 ARGAN, Arte e Crítica de Arte, Lisboa, Editorial Estampa, 1988, p. 127.

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daqueles domínios de actividade, conjunto esse que convergia para um princípio

comum: o de que toda a arte, fosse ela expressão escrita, pictórica ou escultórica,

deveria ter como função primordial a de representar o mais fielmente possível a

Natureza, cuja beleza pressupunha-se de ordem trascendental na medida em que

reproduzia, ainda que de forma imperfeita, a Beleza superiormente ideal. Qualquer

actividade artística teria então como principal objectivo tentar aproximar-se o mais

possível à Verdade através da imitação dos objectos, da realidade, a qual seria, por sua

vez, a reprodução imperfeita das formas ideais, da Perfeição.

Da operacionalização deste princípio básico, que articula a noção arquetípica de

Belo (como essência da arte) com a noção de Mimésis (como materialização imperfeita

da essência, e imperfeita porque se as artes imitavam os objectos, os quais, por seu

turno, imitavam as formas ideais, as primeiras encontravam-se duas vezes mais

distantes do verdadeiro conhecimento, eram apenas uma "imitação da imitação"),

resultou a valorização da habilidade técnica para imitar como critério de avaliação das

obras criadas. Sob o signo da cultura grega, a arte seria então sobretudo tekhné. Nesta

perspectiva, os juízos de valor contidos nos referidos tratados tomavam essencialmente

a forma de juízos normativos e doutrinários, surgidos da confrontação das normas

prescritas com as obras conhecidas. O pensamento crítico incluso nesses tratados

manifestava-se então através da função de averiguar se a "regra" de arte se materializava

ou não em determinada obra, assim como de determinar o maior ou menor grau de

perfeição técnica do artista na materialização da "regra".

Esta atitude normativa face à arte, vamos ainda encontrá-la bastante enraizada

junto da cultura dos antigos romanos, se bem que o pensamento destes no domínio das

artes vá um pouco mais longe que o dos gregos. Isto porque se os diálogos promovidos

pelos gregos sobre as noções de Belo e de Mimésis eram mantidos mais ao serviço da

própria filosofia do que das artes em geral - que eram grande parte das vezes utilizadas

apenas como ponto de partida exemplificativo de pressupostos filosóficos, sendo até

depreciada pela sua condição de "imitação da imitação" -, entre os romanos, pelo

contrário, tais debates passaram a decorrer mais com o propósito de elucidar acerca da

própria arte do que da filosofia. Um dos reflexos mais notórios desse movimento de

rotação nos interesses básicos dos discursos e discussões em torno dos temas artísticos

de uma dimensão filosófica para uma dimensão que já se aproxima da Estética, é o

surgimento da figura do conhecedor de arte, a qual aparece apresentada por Luciano e

Calistrato nos seguintes termos:

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«Uma obra de arte exige um espectador inteligente, para quem o prazer dos

olhos não baste para formular um juízo e que saiba também raciocinar sobre aquilo

que vê. Um conhecedor é um daqueles homens que, com um delicado sentido artístico,

sabe descobrir nas obras de arte todas as belezas que encerram e que, na sua

apreciação, não excluem o raciocínio». As palavras de Luciano quando se prenuncia

acerca de um quadro de Zênxis, são também ilustrativas do perfil dessa nova figura:

«não sou suficientemente conhecedor para poder pronunciar-me sobre as belezas deste

quadro: se o artista soube reunir as diferentes partes que constituem uma pintura

perfeita, como a correcção do desenho, a verdade da cor, o efeito do relevo e das

sombras, a exactidão das proporções e a harmonia geral, cabe aos pintores e àqueles

que professam conhecer as regras da arte fazer o seu elogio.»59

Para além de já darem conta de um processo de delegação de autoridade em

matéria de arte para um determinado grupo social, constituíndo-o como seu mandatário

em nome da detenção de uma competência específica - uma sensibilidade delicada e o

conhecimento das regras de arte -, estes testemunhos também revelam a manutenção do

princípio grego de fidelidade ao real na sua representação como principal critério de

avaliação pictórica. Todavia, muito embora o valor da perfeição técnica da mimése fosse

ainda dominante entre os antigos romanos, as vozes de alguns conhecedores já se

levantavam na tentativa de a esse valor sobreporem o da faculdade de invenção, fazendo

acentuar e valorizar no seu juízo o desvio à "regra da arte" por obra do génio criador.60

A paixão cultivada durante a Antiguidade Clássica pelo diálogo e a escrita sobre

as artes, resultando numa restrita mas importante produção discursiva acerca desta

temática, veio contudo a tornar-se bastante contida quando chegamos à Idade Média,

período caracterizado no plano socio-cultural pelo facto de qualquer actividade humana

ser exercida em função da Divina Providência. A prática artística, tal como todas as

outras práticas correntes na altura, não deixou assim de ser inevitavelmente

condicionada por esse clima de devoção solene e austera que se fazia sentir. Por

sujeição à Divindade e indiferença perante o indivíduo, o pensamento medieval reduziu

a arte, nas suas mais diversas formas de expressão estética a um mero instrumento

59 Cit. in VENTURI, História da Crítica de Arte, Lisboa, Edições 70, 1984, p. 69 e 53.

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anómimo de exaltação religiosa, atribuindo-lhe as funções de celebração, ilustração,

persuasão e educação moral, sempre subordinadas aos textos sagrados. Pelo que falar-se

de criatividade do artista nestas circunstâncias significaria, com certeza, correr o risco

de ser transformado em cinzas como herético em relação aos dogmas da Santa Madre

Igreja, pois Criador havia só um.

Tal atmosfera de religiosidade inflamada levou à substituição no pensamento

estético medieval, nomeadamente no domínio da pintura e da escultura, do tradicional

princípio da imitação pelo princípio da emanação, ainda que continuando a ser

valorizado o traço figurativo. Quer isto dizer, como assinala Lionello Venturi, que

considerar-se-ia o objecto material belo na medida em que se subordinasse e

participasse do pensamento divino, sendo então permitido à arte transcender a natureza

apenas enquanto esse afastamente decorresse em direcção à Providência.61 Tudo o resto

seria profano e obra do Diabo, por isso desprovido de qualquer valor artístico. Deste

modo, o valor artístico do objecto, para além de manter-se intimamente associado às

prescrições técnicas tradicionais, passa igualmente a estar vinculado ao dogma geral da

Igreja e às suas prescrições morais, para que os seus objectivos de ensinamento e

celebração religiosa fossem adequadamente cumpridos. Neste contexto, a discussão e

a produção discursiva que se fazia em torno das artes durante toda a Idade Média, para

além de escassa, desenrolou-se predominantemente sobre a égide de questões teológicas

e doutrinárias, sendo deixada ao cuidado de religiosos cujo papel seria o de vigiar

constantemente a produção artística e verificar se esta estaria conforme os trâmites

ditados pela Igreja, confundindo-se assim juízo estético com juízo moral. Pelo que, para

além de alguns esboços de uma estética mistificada, alguns tratados de óptica, alguns

reportórios iconográficos com indicação de exemplares a copiar e alguns documentos

que incluíam prescrições técnicas, o período medieval nada mais nos oferece que possa

constituir por si uma teoria de crítica de arte.

No entanto, ao entrarmos no Renascimento, momento-charneira de

transformações lentas mas persistentes em todos os domínios da sociedade, deparamo-

nos com um amplo recrudescimento do interesse pelas artes e pela produção discursiva

sobre as mesmas. A situação que envolve a actividade artística até aqui começa

efectivamente a alterar-se a partir dos finais do século XIV, nomeadamente em

60 A opinião de Plínio em relação a Timante é, a este propósito, bastante ilustrativa, quando refere que «ele é o único artista cujas obras sugerem sempre mais do que aquilo que está pintado e, embora a arte seja uma súmula, o génio vai para além da própria arte», cit. in VENTURI, op. cit., p. 49.

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Florença, onde timidamente surgem os primeiros sinais da emergência de uma cultura

renascentista: no domínio do conhecimento, desperta a curiosidade pelos mecanismos

da lógica da ciência e da razão; no domínio dos valores, o ideal humanista e

antropocêntrico insurge-se contra o ideal de humildade e subserviência religiosa; no

domínio social, irrompe a consciência do indivíduo dentro do colectivo; no domínio

económico, despontam as primeiras formas de um futuro mercado capitalista em

oposição ao regime de trocas directas; no domínio político, a noção de cidadania

começa a querer impôr-se e anuncia-se a progressiva perca de poder da Igreja neste

domínio.

É nesta óptica que muitos historiadores fazem corresponder o Renascimento ao

tempo mítico das origens da arte e da crítica moderna, na medida em que, de facto, é

durante este período que encontramos a congregarem-se as condições culturais, sociais,

materiais e políticas que propiciaram o início da autonomia do campo artístico por via

da sua intelectualização, dimensão que lhe era totalmente ausente até esse momento.

Importa pois compreender como essas condições se reflectiram no âmbito da actividade

artística e ver que, mais do que ao nascimento do artista, é o artista na sua qualidade de

intelectual que nos é dado a assistir na Renascença, parto esse sempre acompanhado e

amparado de perto por uma intensa produção teórica e discursiva, em que a intenção e o

conteúdo crítico era implicitamente visível.

O facto de em Florença, pelo início do século XV, os artistas terem exigido que

os diferenciassem dos simples artesãos, constitui aqui uma etapa decisiva. A

reivindicação dessa diferenciação assentou basicamente na apresentação de uma nova

definição de arte, que pressupunha o resultado desta actividade não apenas como

produto manual, mas sobretudo como produto do espírito. Na base da união da

actividade artística a uma consciência teórica está o facto de, nos alvores do

Renascimento, se ter iniciado o processo de delimitação e autonomização relativa de um

campo intelectual, o qual se reforçou significativamente ao longo de todo este período e

se consolidou, mais tarde, durante o Romantismo. Tal processo foi extensível ao âmbito

da actividade artística, na medida em que abriu caminho ao alargamento e expansão da

discussão teórica e produção discursiva em matéria de arte, sob a forma de tratados,

comentários, elogios, biografias e outros escritos. Mas se a liberalização das artes

61 Idem, p. 61.

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ocorrida durante todo o Renascimento concedeu um amplo espaço à produção de

discurso, também a própria produção de discursiva contribuiu em larga escala e

reciprocamente para concretização eficaz e duradoura dessa liberalização, constituindo

uma das suas condições fundadoras.

O campo de acção da prática discursiva foi sendo gradualmente assumido por

essa personagem cuja proeminência o Renascimento teve a responsabilidade e privilégio

de proporcionar, o intelectual humanista, figura que, por uma série de factores e graças

às suas competências específicas (era normalmente dos únicos letrados na Corte),

começa a ganhar bastante audibilidade e visibilidade no mundo das artes e letras,

alcançando também, por consequência, poder consagrativo e valorativo junto dos

agentes que outrora nesse mundo se moviam e sobre o que nele era produzido.

Dedicando-se à escrita das primeiras páginas de teoria de arte propriamente dita,

os humanistas apresentaram-se então ao mundo como a primeira casta de intelectuais a

reclamar privilégios sobre a propriedade teórica, avaliativa e interpretativa das obras

produzidas enquanto arte. Nessas páginas argumentavam que para acederem a tal

estatuto, as peças produzidas deveriam não apenas ser raras e cada uma igual a si

própria, mas também, e sobretudo, possuídas de ideia, noção que pressupõe a

intelectualização da prática artística e que, por esta via, prepara e sustém o processo de

autonomização social dessa mesma prática, dotando-a de uma dimensão eminentemente

cerebral e teórica que lhe permite deixar de ser somente considerada pela sua dimensão

pragmática, de mester. A arte deveria dar a pensar e não apenas dar a ver, começando

então lentamente a apelar e a dirigir-se mais à compreensão do que à mera sensação.

Já nos seus Commentari, Lorenzo Ghiberti (1378-1455) argumentava que a

escultura e a pintura materializavam não apenas acto, mas também raciocínio. Os

tratados que se lhe seguiram, como os de Piero della Francesca (1410-1492), de Leon

Battista Alberti (1404-1472) ou de Leonardo da Vinci (1452-1519), paradigmas

fundamentais no enquadramento da arte do século XVI, incorrem igualmente em

reflexões cujo objectivo fundamental radicava na defesa da arte como prática intelectual

e racionalmente inspirada, legitimando discursivamente o seu desejo de colocar o artista

em posição de proximidade com os que, dali em diante, queria fazer reconhecer como

seus iguais - não mais os artesãos e os aprendizes, mas os eruditos, os filósofos, os

matemáticos, numa palavra, os intelectuais da altura. Com esse fim, eliminaram da sua

prática discursiva todo o tipo de preceituário meramente técnico e temático

característico dos tratados clássicos e medievais, e trataram de através dela pôr em

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contacto íntimo a racionalidade da prática científica com o talento da prática artística,

fazendo-se valer para isso do princípio da perspectiva geométrica.

Com efeito, tal como assinala Nathalie Heinich, numa época em que o

racionalismo despontava em grande força e onde a noção de Belas Artes ainda não se

encontrava constituída, a ciência, e muito em particular a matemática, pelo seu carácter

de racionalidade e de intelectualidade, permitia o enobrecimento das actividades que a

empregavam e de quem as exercia. Neste sentido, a adopção da teoria da perspectiva na

prática pictórica, unindo a condição de matemático à de pintor, apresentava-se para este

último como a estratégia mais eficaz na luta pela liberalização e promoção do seu

estatuto.62

Pelo facto da geometria constituir, na altura, o método indicado para representar

as coisas tal como são na realidade, sempre norteado por princípios de ordem

matemática que supostamente permitiriam representar com o máximo de rigor a

disposição e proporção das coisas no espaço, a sua aplicação por parte do artista fazia

reconhecer o valor intelectual das suas obras, na medida em que se tornava garantia de

que o que nelas aparecesse representado corresponderia à verdade. O signo pictórico ou

escultórico era coagulado ao seu referente, e a ilusão da tridimensionalidade perspéctica

confundia-se com a ilusão da verdade empírica, na medida em que se acreditava que a

prática artística deveria respeitar e traduzir o mais fielmente possível o objecto

retratado.

Os séculos XV e XVI tornam-se assim berço de uma concepção racionalista e

objectivista da arte, concepção essa que permite o regresso do interesse do artista pela

natureza, assim como o ressurgimento do princípio de fidelidade à realidade prescrito

pelos gregos. Este, todavia, já não é encarado com a ingenuidade empírica com que o

haviam considerado os artistas e os teóricos na Antiguidade Clássica, já que a

representação do rela não pressupunha apenas simples mimésis, mas a assumpção de um

ponto de vista individual controlado pela aplicação de regras que se presumiam

"cientificamente" inspiradas. Isto é, concebida como ciência do espaço, a arte e quem a

executa reclamava simultaneamente a sua independência face a esse mesmo espaço,

aparente paradoxo que se encontra notavelmente resolvido na posição de um Alberti:

62 HEINICH, "La Perspective Académique. Peinture et tradition letrée: la réference aux mathématiques dans les théories de l'art au 17º siècle", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 49, Setembro de 1983, pp. 48-70.

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«Antes de mais, na superfície sobre a qual vou pintar desenho um rectângulo do

tamanho que quiser, que é para mim como uma janela aberta, através do qual vejo o

tema que escolhi; depois decido o tamanho que vou atribuir às figuras humanas que

vou representar (...). Estabeleço então um ponto no interior do rectângulo onde mais

me convier e, uma vez que ocupa o espaço onde se cruzam todos os raios, chamar-lhe-

ei centro (ponto de fuga). A posição mais adequada para situar este centro é aquela em

que a sua distância à base do rectângulo não seja tão grande que crie a ilusão de que o

homem a representar no quadro pareça estar no mesmo plano. Após situar o centro,

traço rectas a partir dele até às divisões da base do rectângulo. Estas mostram-me de

que modo os eixos sucessivos se alteram visualmente até uma distância quase

infinita.»63

Nestas circunstâncias, a arte vai-se demitindo das suas funções de culto,

instrução e moralização, para assumir o papel de instrumento de conhecimento, cujo

objectivo seria a representação científica, fiel e rigorosa da natureza física e humana.

Através desta imbrincação entre atitude científica e atitude artística, permitida pela

insuficiente separação de saberes decorrente do fraco grau de autonomia relativa que

ainda caracterizava a relação entre campo artístico e campo científico no Renascimento,

a arte foi enfim reconhecida como um dos ramos do labor intelectual, constituíndo-se

como actividade cognitiva e como construção do espírito humano que participa em rigôr

e em saber do próprio conhecimento das ciências e da filosofia.

Deste modo, deixa daí para a frente de ser apanágio de habilidosos com talento

para a imitação para passar a ser atributo dos cultores da busca sobre o mundo e sobre o

homem, facto que se encontra bem patente na vida e na obra de alguns dos mais

notáveis desse período, como um Piero, um Alberti, ou um Leonardo. Acumulando a

tripla condição de cientista, filósofo e artista, que muitas vezes ainda se desmultiplicava

por várias áreas quer do domínio científico, como a engenharia, a medicina ou a

geografia, quer do domínio artístico, como a pintura, a escultura, a arquitectura, a

música e as letras, estes homens perfilam o estatuto de artista na época: um sábio que

domina não apenas a técnica, mas também o conhecimento letrado da natureza e do

homem disponível na altura, elevando a condição de artista à dignidade social e cultural

da do cientista e/ou do filósofo.

63 Cit. in BOORSTIN, Os Criadores. Uma História dos Herois da Imaginação, Lisboa, Círculo de

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Mas para se compreender mais a fundo o processo de racionalização e de

intelectualização em curso no universo das artes durante o Renascimento, importa situá-

lo no âmbito de um processo socio-cultural mais amplo, que diz respeito à progressiva

secularização que aconteceu a partir daquela altura. Apesar da Renascença não ter sido

propriamente anti-religiosa, o facto é que foi justamente nesse período que despontou e

se desenvolveu a perspectiva antropocêntrica, responsável pela substituição de Deus

pelo Homem como centro dinâmico do Universo e como medida de todas as coisas,

estimulando a relativização do valor religioso num quadro de valores mais pluralista,

sem com isso providenciar o seu óbito.

Quando integrada e praticada no mundo das artes e letras, a atitude humanista

que aquela perspectiva pressupõe fez, de um só golpe, substituir Deus quer pela

natureza como finalidade da arte, quer pelo intelecto humano como origem da arte.

Nesta medida, na concepção do humanismo renascentista nem a obra de arte emana do

Espírito Divino, nem o artista deve subserviência às prerrogativas dogmáticas impostas

pela Santa Madre Igreja. Pelo contrário, é ele próprio que quase é elevado à condição de

deus, na medida em que passa não só a retratar mas também a fazer conhecer a

realidade segundo princípios racionalmente criados e controlados. É neste contexto de

laicização progressiva que a actividade artística, ainda que não totalmente evacuada de

dimensões que remetem para a religião, passa a assumir para si própria e perante os

outros a meta do conhecimento científico, com uma origem puramente intelectual.

Simultaneamente, o artista começa a ser encarado como sacerdote e a sua obra como

revelação, inaugurando-se o que se pode designar de religião laica da arte.

Temos então, em pleno século XVI, o artista a emergir da obscuridade a que

tinha sido votado ao longo de toda a Idade Média, adquirindo a sua autonomia em

relação ao simples artesão por via da intelectualização e racionalização da sua prática, a

cargo dessa figura de múltiplos papeis que é o intelectual-humanista. Com efeito, como

vimos até aqui, ao dotar a prática artística de uma consciência teórica que lhe era

ausente até aqui, a acção deste último permitiu criar uma verdadeira fronteira simbólica

entre arte e ofício, entre produção artística e (re)produção artesanal, fazendo ascender

culturalmente ao estatuto de artes liberais as actividades plásticas que antes haviam sido

consideradas como mecânicas e proporcionando a separação definitiva entre o artesão

Leitores, 1993, p.365.

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apenas fazedor e o artista também pensante, personagens que anteriormente

caminhavam lado a lado.

Este movimento de promoção simbólica das artes plásticas, veio a traduzir-se

numa profunda transformação da coerência socio-cultural que anteriormente definia o

domínio cultural. Se outrora existia uma relação de harmonia, correspondência e

integração entre o domínio das artes e o domínio da cultura popular, com as alterações

ocorridas no Renascimento tal harmonia entrou em crise e acabou por desfazer-se,

rompendo-se a coerência social e simbólica que os unificava. Em grande parte devido à

interferência da figura do intelectual-humanista no empreendimento da sua acção

teórico-discursiva, o campo das artes não só iniciou o seu processo de delimitação e

autonomização relativa, como as práticas nele desenvolvidas sofreram um amplo

movimento de transladação da esfera da pequena tradição para a esfera da grande

tradição, passando a ser integradas no domínio da cultura cultivada em detrimento da

cultura popular, com tudo o que daí decorreu em termos de privilégios materiais e

sociais.64

Para além da promoção e ascensão socio-simbólica da prática artística, o

processo de intelectualização e de racionalização encabeçado pelos intelectuais-

humanistas renascentistas também não deixou de produzir os seus efeitos sobre o

próprio modo de estruturação e de funcionamento do campo de exercício dessa prática,

vindo a operar uma profunda transformação nas suas condições de produção e de

organização, assim como no modo como nele estavam tradicionalmente estabelecidas as

relações entre produtores e consumidores de arte.

Começando por este último aspecto, podemos notar que esse processo acarretou

uma importante ruptura na relação directa que anteriormente se estabelecia entre a

produção e o consumo artístico: se num primeiro momento os elementos desta última

dimensão, pela condição social e poder aquisitivo que detinham (eram sobretudo nobres

e altos funcionários do clero), estavam em posição de exercer directamente a sua

influência sobre a produção, chegando mesmo a decidir sobre o esquema composicional

e as cores das obras que encomendavam, num segundo momento, ao serem restringidas

as condições de descodificação e de avaliação artísticas a um círculo de "espíritos

eleitos", a uma rede de "pessoas de cultura", o poder impositivo que aquelas camadas

sociais detinham junto do artista foi esmorecendo e passou a ser mediado pelo poder

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cultural dos intelectuais-humanistas, aos quais atribuíram a função de orientar o seu

gosto pessoal e as suas encomendas.

Ao proclamarem que a obra de arte consubstancializava não apenas mão mas

sobretudo ideia, estes assumiram-se efectivamente como conhecedores privilegiados da

linguagem adequada à sua descodificação e avaliação, reivindicando para si a

responsabilidade do seu entendimento e juízo de valor, responsabilidade que lhes foi

socialmente reconhecida e mandatada. É neste sentido que Maria de Lurdes Lima dos

Santos nos diz que, designadamente no domínio da pintura, «o conhecedor lá estava

para assegurar uma boa conjunção entre o poder, a riqueza e o saber. Ele era o mediador

e o garante de um gosto cultivado regido por um conhecimento especializado,

pressupondo, como então se dizia, a "finesse d'esprit" e a inteligência dos princípios da

pintura.»65

Nesta perspectiva, verifica-se que o processo de intelectualização do espaço

artístico trouxe consigo um processo de depuração a nível social, na medida em que

implicou um duplo movimento de exclusão e restrição social dos actos de julgar

valorativamente e interpretar esteticamente as obras de arte: exclusão de determinadas

camadas sociais da Igreja e da Aristocracia em detrimento da restrição a um

agrupamento social particular - os intelectuais. Não significa isto que a proeminência de

uma instância intelectual no mundo das artes o tenha livrado de pressões e interferências

de instâncias de tipo económicas, políticas ou religiosas, pois apesar de ter aumentado o

grau de indepedência do artista na execução do seu trabalho, tais condicionantes

externas continuaram a fazer-se sentir. O que sucede é que se antes elas actuavam

directamente, agora a sua intervenção passa a fazer-se sob a orientação do intelectual-

humanista.

Houve como que um processo de confiscação da consagração por parte desta

personagem aos nobres e à Igreja, pois se na ausência de um campo intelectual, eram as

instâncias que detinham o poder económico, religioso e/ou político que ditavam os

valores culturais e estabeleciam os critérios de legitimidade que lhes eram subjacentes,

depois daquele se ter dotado das suas próprias instituições e agentes especializados,

dispositivos e mecanismos, normas e preceitos, lógicas e valores, constituíndo o seu

64 Ver SANTOS, "Questionamento à volta de três noções (a grande cultura, cultura popular e cultura de massas)", in Análise Social, Vol. XXIV (101-102), 1988, pp. 694-698. 65 Idem, p. 700.

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próprio sistema de legitimidade, foi impôr a sua mediação a todas as pressões externas

que se faziam sentir sobre o campo artístico, ao qual se extendeu.

Mas para além de ter interceptado as tradicionais relações estabelecidas entre

produtores e consumidores de arte, a acção do intelectual-humanista também se reflectiu

em termos de divisão social e simbólica do trabalho artístico. Ao dotar a prática artística

de uma consciência teórica e intelectual, fez impôr uma nítida dicotomia entre o

momento da concepção da obra, dominado pelo engenho do artista, e o seu momento de

execução, que embora possa a vir a ser da responsabilidade da mão do artista, admite a

colaboração e intervenção directa de outras mãos sob a sua orientação, como as dos

seus aprendizes66. É no cerne desta dicotomia que, nas palavras de Teresa Cruz, «a mão

transforma-se gradualmente na parte menos nobre do trabalho do artista, a habilidade

num dote insuficiente, o esforço num aspecto indesejável. As energias dispendidas na

criação são sobretudo energias intelectuais e não físicas. Como dizia já Leonardo, a arte

é "cosa mentale". (...) A glória do pintor é inversamente proporcional às gotas de suor

(que lhe não devem escorrer da fronte).»67

A valorização de um saber técnico-intelectual em detrimento de um saber

técnico-prático que tal dicotomia pressupôs, permitiu ao artista plástico seiscentista a

sua progressiva saída da oficina e das organizações corporativas e comunais que

tradicionalmente integrava, com a sua consequente fuga gradual aos constrangimentos

imperativos que essas formas de organização lhe impunham, ao supervisionarem a vida

e o trabalho dos seus membros, as suas convicções religiosas, as suas formas de

aprendizagem e os seus contratos com os patronos. Ele passa então, pontualmente, a

trabalhar por sua própria conta e risco, lutando contra as amarras em que a tutela

senhorial e eclesiástica o enleavam directamente, e a instalar-se em pequenos núcleos

informais de sociabilidade erudita e cortesanesca, onde se debatiam calorosamente

temas de carácter filosófico-humanista, como todos os relativos às artes e letras, assim

como à ciência.

É neste contexto que florescem na Itália, durante a segunda metade do século

XVI, as primeiras Academias, fenómeno que depressa se generalizou em toda a Europa

66 A dicotomia concepção-execução veio também a observar-se mais tarde, em pleno século XVIII, noutras áreas artísticas que não as plásticas, em termos de divisão social do trabalho cultural: na área da música, colocou em planos diferentes o compositor inspirado e o intérprete virtuoso, no teatro fez separar as funções do metteur-em-scéne, hoje o cenógrafo, das do actor, na dança fez aparecer o coreógrafo distinto do bailarino. 67 CRUZ, "A Obra de Arte. Entre dois nomes.", op. cit., p. 113.

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Ocidental.68 Embora inicialmente fossem de fôro privado, tomando a forma de

pequenos círculos eruditos, de clubes ou de salões mundanos e não de aparelhos de

formação escolar no sentido de propiciar um treino sistemático e estandardizado de

competências específicas, como vieram posteriormente a tornar-se, estes organismos

constituíram a plataforma de partida para a inauguração primeiras escolas de arte

oficiais. Já em meados do século XVII, aquando do seu reconhecimento oficial em

França e na Itália (medida que foi seguida, posteriormente, em toda a Europa), algumas

das principais e mais actuantes academias vieram a adquirir um estatuto público,

constituíndo-se como o ambiente institucional privilegiado para a produção, reprodução

e celebração de modelos culturais e propriamente artísticos.

Entregando-se plenamente à transmissão das competências específicas

(fundando escolas) e à produção e comunicação interna dos conhecimentos em matéria

artística e literária (através das conferências que promovia), esses organismos e os

agentes que os integravam monopolizaram para si o poder de intervenção intelectual

nestas áreas, e institucionalizaram de uma vez por todas a distância que nelas se vinha a

expandir desde longa data entre a linguagem formal das "gentes cultas" e o senso

comum dos "leigos". Assim sendo, são eles que, daí para diante, vão estabelecer as

regras e arbitrar o jogo que se desenrola nos diversos domínios de actividade artística e

literária, confirmando-os e celebrando-os na sua especificidade.

Não obstante essa especificidade que vieram a conquistar para cada um dos

vários domínios culturais enumerados, as academias, na sua origem, caracterizavam-se

por um grau de especialização muito frágil, nelas imperando uma atitude marcadamente

diletante e enciclopedista. No seu interior o interesse dividia-se entre temas literários,

científicos e propriamente artísticos, na tentativa de alargar o debate cultural em torno

da redescoberta da cultura grega em todos os seus domínios, debate tão caro ao primeiro

movimento de academistas. Foi neste ambiente profundamente marcado quer pela

autoridade paradigmática do modelo estético e literário da Antiga Grécia, quer pelo

despontar do racionalismo científico, que ressurgiram as discussões em torno da noção

de Belo (arquétipo da tradição clássica que pretendiam recuperar e re-elevar) e do

princípio de fidelidade à realidade através da adopção da regra perspéctica. Buscava-se

68 Sobre as academias ver HEINICH, "Arts et Sciences à l' Âge Classique. Profissions et instituitions culturelles", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 66/67, Março de 1987, pp. 47-52; e CONDE, O Duplo Écran. 1. Fundações e Legados, Lisboa, ISCTE, 1992, p. 18.

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a Beleza, estabelecida pelas proporções fixas da harmonia geométrica, doutrina que nos

remete para uma concepção de arte como forma de conhecimento do real.

Tal concepção recebeu um acolhimento bastante favorável junto da primeira

geração de teóricos humanistas frequentadores das academias, na medida em que, como

vimos atrás, ao mesmo tempo que satisfazia os seus desejos de racionalidade,

assegurava-lhes uma caução intelectual na produção e fruição artísticas, bastante

necessária para efeitos da sua liberalização. No entanto, logo que a sua necessidade

estratégica no terreno movediço em que se moviam as artes plásticas nessa altura foi

superada, ela viu-se progressivamente abandonada. Na base do movimento de

contestação em relação à doxa que aquela concepção alicerçava, esteve esse notável do

Renascimento que foi o Divino Miguel Ângelo (1475-1564), tendo sido continuado e

largamente desenvolvido pela segunda geração de academistas que vieram a

fundamentar a tradição Maneirista.

Em prejuízo da referência mais "objectivista" que ela fornecia à actividade

artística, estes reivindicavam-lhe uma referência mais subjectivista e intimista, na

tentativa de lhe proporcionar um modelo de produção, de fruição e de avaliação

propriamente estético e, deste modo, avançar mais um passo no seu processo de

autonomização. Tal como afirma Idalina Conde, se «os Tratados de Leon Battista

Alberti e de Leonardo da Vinci, por exemplo, representam uma atitude codificadora e

consagradora do ofício menor em profissão nobre que faz recurso a essa sobreposição

de saberes onde a perspectiva científica se funde com a perspectiva artística», na

«evolução seguinte os tratados e escritos de arte incluíam cada vez mais os argumentos

sobre a autonomia própria arte», contrapondo o génio, a imaginação, a fantasia à

perspectiva científica.69

De facto, apesar de ter sido ao longo de todo o século XV até meados do século

XVI que se reuniram as condições fundadoras que prepararam a criação de um estatuto

e de um lugar social particular para o artista, até aí ele não detinha ainda a consciência

de uma total autonomia da sua prática, pois o objectivo que assumia e que lhe atribuíam

era, do seu modo peculiar, fazer "ciência". Mas se no âmbito da estética renascentista a

liberdade de criação do artista se encontrava ainda circunscrita à importância do

conhecimento sobre a natureza, como era pressuposto no cerebralismo científico de um

69 CONDE, O Duplo Écran. 2. Artistas..., op. cit., p. 29.

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Leonardo ou de um Alberti, com o andar dos tempos, as propostas afirmadas pelo jovem

Miguel Ângelo começaram a vingar e a arte começou a reivindicar-se do estatuto de

belle invenzione, comandada apenas pelo furor interior do artista, ou seja, pelo seu

sentimento e/ou estado de agitação emocional.

Tal processo teve a sua sequência mais fulgurante sob a égide do Maneirismo

(só ultrapassada pela exaltação romântica vivida no século XIX), esse curto espaço de

tempo em que o campo das artes se viu profundamente marcado pelo acrescer de

tendências estéticas diversas, consequência da tentativa por parte dos seus actores de

desenvolverem estilos ou maneiras próprias. A explosão de criatividade daí decorrente

fez acentuar em larga escala os sintomas renascentistas que já permitiam dar conta da

existência de uma disponibilidade social na atribuição ao artista de um cada vez maior

grau de liberdade e de soberaneidade no desenvolvimento da sua actividade. É,

portanto, no contexto da tradição maneirista que finalmente assistiremos ao nascimento

desse heroi da imaginação que é o Criador70, nova condição de artista que surge em

contraposição à do artista-artesão clássico e medieval assim como à do artista-sábio

renascentista, e que pressupõe e exige da sua parte as qualidades de excepcionalidade e

genialidade.

Como profetas do eu soberano que o artista virá a reivindicar com mais força

aquando do Romantismo, os maneiristas já se reclamavam efectivamente de

competências de tipo personalístico, interiores ao próprio sujeito-criador, que passa a

partir de então a ser investido por todos os que o rodeiam de uma certa distintividade e

particularismo enquanto pessoa. Deste modo, para além do estatuto de indivíduo, o

artista passa também a assumir o estatuto de individualidade, «uma individualidade por

ele conquistada ao mesmo tempo que socialmente consentida e solicitada»71. O lugar

social que para ele foi anteriormente disponibilizado passa a requerer da sua parte já não

o conhecimento das regras estabelecidas que lhe permitem representar o real na sua

suposta verdade, mas a singularidade da sua maneira, da sua expressão artística,

legitimada pela ideologia da naturalização do talento, que pressupõe a natureza

congénita desta propriedade por via divina ou biológica. É nestas circunstâncias que o

artista tende a converter-se em ser socialmente insubstituível e o seu lugar social a ser

intransmissível.

70 BOORSTIN, Os Criadores...,op. cit., 1993. 71 CONDE, O Duplo Écran. 1. Fundações e Legados, op. cit., pp. 5-6.

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A reverência pelo artista embuído de uma inspiração singular consubstancia-se

notoriamente na acentuada transformação que vai acontecendo nos centros de interesse

dos comanditários públicos (a Igreja ou a Corte) ou particulares (membros da nobreza

ou alta burguesia) nos contratos de encomenda que lhe fazem das obras. Deixando de

lhe pedir apenas mestria, perícia ou habilidade técnica na concretização dos temas,

figuras e cores que escolhiam e que lhe impunham, passaram também frequentemente a

solicitar-lhe originalidade, inspiração, inovação, aumentando-lhes substancialmente o

espaço dos possíveis que detinham em termos de tomadas de posição estéticas e

criativas, isto porque, tal como refere Idalina Conde, «mais precioso que o "azul

marinho" vai-se tornando a composição e expressão» do artista, só garantida pela mão

geniosamente conduzida de alguns72. Da situação em que o artista segue as ordens do

patrono, passa-se assim lentamente à situação em que o patrono aguarda pacientemente

as criações do artista.

Outra das evidências que anuncia o processo de singularização social do artista

nesta altura é a banalização da prática da assinatura das obras. Se outrora a arte era

concebida como uma forma de devoção a Deus, pelo que esta devia-lhe ser humilde, por

isso anonimamente, dedicada, já em pleno Renascimento o artista começava a assinar

orgulhosamente a sua obra, orgulho profundamente empolado durante o Maneirismo, na

medida em que o reconhecimento social e cultural da sua maneira pessoal passou a

efectivar-se através da sua existência nominal enquanto criador. Podemos notar, nesta

perspectiva, que o acto de nascimento do criador é rigorosamente simultâneo à aparição

de uma noção de filiação das obras, pois se o artista, enquanto artesão, era remetido ao

anonimato, no seu estatuto de criador ele é sobretudo um nome, essa forma de

identidade cultural particularmente privilegiada no campo artístico, já que constitui um

traço de distintividade e de singularidade pessoal imprescindível no património

simbólico acumulado pelo artista. Assumindo nominalmente, e portanto autoralmente, a

paternidade da sua obra, esta terá tantas mais probabilidades de valorização quanto mais

consagrada fôr a assinatura do seu pai-criador.

A reivindicação e aceitação do artista como indivíduo singular, fundada na

tomada de consciência social e na convicção subjectiva de que é dotado de uma vocação

rara e inata, inalienável pela erudição, surge na sequência do processo de secularização

e de incorporação dos princípios do humanismo renascentista nas esfera das artes e

72 Idem, p.20.

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letras. Ao possibilitar a gradual recolocação dos destinos da ordem terrena nas mãos do

Homem, libertando-o progressivamente do controlo exercido em nome do Pai

característico da Idade Média, esse processo faz de facto irromper uma dinâmica de

individualização social que, como assinala Idalina Conde, longe de irromper trans-

socialmente, surge e irradia de forma lenta justamente entre os círculos que englobam a

aristocracia tradicional, a alta burguesia emergente e os meios artístico-literários, ou

seja, entre as categorias mais intelectualizadas na época73.

Mas para além da proeminência dos valores individualistas, outros factores

contribuiram de forma eficaz para o despontar do sentimento social da singularidade do

artista por esta altura. Por um lado, não podemos esquecer que foi durante o século XVI

que se iniciou, ainda insipientemente, a formação do sistema de produção capitalista,

fenómeno que não deixou de exercer uma certa pressão para a individualização,

nomeadamente no campo artístico. Com a invenção do jogo de mercado e a introdução

dos princípios da livre-concorrência também nesse campo específico, a lógica e o

funcionamento das relações de venda nele estabelecidas vieram a permutar-se

gradualmente: em vez de ser a procura a comandar directamente a oferta, como

acontecia anteriormente com os tradicionais contratos de encomenda, o artista começou

progressivamente a produzir independentemente e por contra própria, fora das

corporações e das confrarias, com o propósito principal de vender a sua obra, tentando

ele próprio controlar pelas suas mãos a procura da sua oferta (se bem que,

convenhamos, o artista tivesse de integrar sempre na sua produção, para que se

vendêsse, determinados elementos adaptados aos gostos de determinados segmentos do

mercado).

Com a transformação das condições de trabalho do artista e com o início do

processo de mercantilização da sua produção, foi possível para a arte tornar-se não

apenas objecto de uso - como objecto de decoração ou de instrução para a Igreja, ou

ainda de conhecimento para a ciência -, mas também objecto de troca, mercadoria

passível de ser integrada no jogo livre do mercado, criando-se assim as condições

económicas favoráveis ao estabelecimento do artista como individualidade, já que para

vender mais e adquirir maior valor, a obra do artista deveria ser o mais possível igual a

si própria. O valor da obra no mercado tornou-se então, nestes primeiros tempos,

extremamente ligado à noção de autenticidade, noção que nos sugere a originalidade e

73 Ibidem, p.9.

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raridade da sua obra e nos reenvia para a existência nominal do artista como criador. O

seu estatuto de individualidade é simbolicamente transferido para a obra que produz,

que é autenticada pela sua assinatura.

Não alheio a este fenómeno está ainda o facto de ter sido durante esta época que

emerge uma nova categoria social - a burguesia - enquanto classe para si, na acepção

marxista do termo, formada por um conjunto de banqueiros e mercadores dotados de um

substancial poder aquisitivo e com a necessidade de demonstrar simbolicamente esse

poder às restantes categorias existentes, na tentativa de demarcar o seu lugar no espaço

social. Neste contexto, tal como assinala Idalina Conde, a arte e a cultura em geral «são

directamente convocadas a participar nas lutas pelo poder e o seu desenvolvimento está

ligado à função simbolicamente relevante que cumprem como epígrafe pública do

poder, ajudando na marcação de territórios e imputação de grandeza dos senhores»74.

Ora, uma das estratégias de enobrecimento accionadas por essa nova classe com a

finalidade de mais rapidamente se aproximar da civilidade cortesanesca foi, justamente,

a de investir parte do seu capital económico em obras consideradas artísticas e/ou na

protecção mecenática a artistas, nomeadamente àqueles que fossem o mais iguais a si

próprios possível, ampliando e diversificando consideravelmente a sua procura.75

Pelas circunstâncias históricas que o proporcionaram e o rodearam, o

Maneirismo torna-se assim num dos momentos áureos do lento processo de criação

social dos criadores que havia tido o seu período de incubação no Renascimento, com

um Alberti a proclamar a importância do ponto de vista individual do pintor ao

considerá-lo como uma janela aberta através da qual visualiza o que pinta, e com um

Leonardo a prescrever que «o pintor deve estar só. (...) Se eu estiver sozinho, sou eu

próprio, mas, se acompanhado, nem que seja por um só companheiro, sou apenas

metade de mim.»76

Mas se efectivamente a arte era ainda vivida por estes homens em constante

coordenação com a linguagem das ciências, numa tentativa de recriar fielmente o

mundo a partir das formas e sensações que ele oferece, com Miguel Ângelo e os

maneiristas aquela actividade emancipa-se totalmente do domínio científico e vai tentar

encontrar os seus misteriosos recursos no espaço íntimo e pessoal de quem a pratica.

74 Ibidem, p. 27. 75 Foi a partir desta altura que começaram a surgir as primeiras grandes colecções particulares de arte entre famílias burguesas abastadas, como a dos Médici por exemplo, prática cultural essa conspicuamente investida. 76 Cit. in BOORSTIN, Os Criadores..., op. cit., pp. 366 e 370-371.

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Numa época em que a pintura e a escultura já haviam ultrapassado totalmente a

barreira das artes mecânicas e ganho o estatuto de artes liberais, a referência à ciência

tornava-se dispensável na luta para assegurar esse mesmo estatuto. Aliás, como faz

notar Nathalie Heinich, a dependência do princípio da perspectiva geométrica foi a

partir de então assumida como social e culturalmente disqualificante, na medida em que

ao mesmo tempo que passou a ser considerado como princípio de subserviência da

imaginação do artista à estrita observância de regras matemáticas, incentivava a

pretensão de não praticantes em legislar em matéria de artes, ameaçando assim o

movimento de autonomização que se vinha a desenvolver lentamente sobre este

domínio.77

Por outro lado, com os homens de ciência a começarem a definir e a tentar

estabelecer o método experimental como única abordagem objectiva da natureza -

tendência que veio a ser encabeçada por Galileu Galilei (1564-1642) e a atingir o seu

auge por volta de 1680 na célebre querela entre Antigos e Modernos, conflito que

ocasionou a posterior cisão entre as academias de ciências e as academias propriamente

artísticas e literárias -, a doutrina da arte como conhecimento mais próximo da natureza

foi inevitavelmente perdendo terreno, até se tornar mesmo desadequada neste domínio.

Redefiniram-se fronteiras entre as actividades e as linguagens ditas culturais e

científicas e a especialização impôs-se. Enquanto a ciência se tornava cada vez mais

expressão objectiva do mundo exterior através de conceitos, a arte, por sua vez,

convertia-se em acto nobre de expressão subjectiva, expressão estética de sentimentos e

emoções interiores do indivíduo.

Foi neste contexto que progrediu no domínio das artes, como atrás constatámos,

um amplo movimento de reacção anti-perspéctica, em nome da emoção, da sensação,

da inspiração e da capacidade de invenção e de criação do artista, o que, no plano

cultural, se traduziu no acrescer do valor estético do lado da "fantasia" relativamente à

"imitação", enquanto que no plano social, constituíu manifestamente uma estratégia de

defesa e alargamento da autonomia do campo artístico. Passando a obedecer não a

regras geométricas e objectivas, mas sobretudo à expressão subjectiva do artista, a

representação do mundo exterior ou até transcendental empreendida pela arte ultrapassa

o princípio de fidelidade à natureza a que se encontrava ancorada, vendo-se assim cada

vez mais voltada sobre si própria.

77 HEINICH, "La Perspective Académique...", op. cit., pp. 61-65.

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Despoja-se de todas as suas finalidades não artísticas e valores utilitários, de

decoração das igrejas, de instrução moral e religiosa, e inclusivé de meio cognoscitivo

do real, com um valor meramente descritivo e informativo, quase documental, para

pretender assumir um valor puramente simbólico, alicerçado na expressão do artista. De

conhecimento-sobre-o-mundo propõe-se passar a comportamento-perante-o-mundo, de

retrato da realidade propõe-se transformar em reacção expressiva face à realidade. Já

não quer limitar-se a reproduzir a realidade, mas transforma-se ela própria cada vez

mais em realidade. A arte começa-se então a fazer a partir da arte para alcançar ainda a

arte. É a génese do princípio da arte pela arte a querer impôr-se, ou seja, da ilusão do

artista a trabalhar isoladamente e para si próprio na sua torre de marfim, intocado e

intocável por propósitos que não os artísticos, representação de algum modo

responsável pelo surgimento do mito, ainda hoje bastante arreigado socialmente, de que

existe uma separação de facto entre o mundo dos artistas e o conjunto da sociedade,

sendo essa suposta separação interpretada (por todos, artistas e não artistas) em termos

de exclusão social.78

Tendência difundida nesta altura, embora sem consequências relevantes no

movimento emancipatório que se desenrolava, foi a tentativa empreendida por parte da

Igreja em fazer ressurgir a concepção moralista da arte como forma privilegiada de

aproximação e culto ao Divino, como forma de cativar e educar os fieis segundo os seus

preceitos. Esta tentativa desesperada de conservar o monopólio na definição da

legitimidade cultural que rapidamente lhe ía fugindo das mãos, aparece enquadrada num

contexto profundamente marcado pelo movimento de Contra-Reforma encabeçado pelo

Catolicismo, e sucede na sequência das normas culturais prescritas pelo Concílio de

Trento (1542-1563). Tentando obrigar as artes à obediência de determinados princípios

de autoridade e, deste modo, controlar os possíveis efeitos perversos e socialmente

desestabilizadores decorrentes do movimento de libertação e autonomização que

percorria esse domínio na altura, a Igreja preocupou-se em "moralizá-la", sugerindo que

as liberdades temáticas e poéticas que se íam desenvolvendo a nível das obras

78 Esse mito foi levado de tal maneira até às últimas consequências pelos movimentos românticos e pós-românticos, que de certa forma concorreu para uma real e efectiva marginalização do artista dentro do espaço social, fenómeno que não deixa de assumir um certo carácer voluntário por parte do criador, uma certa auto-marginalização. Nessas condições, apesar de simbolicamente dignificante e, a priori, esteticamente vantagoso, tal processo produziu também, em última análise, alguns efeitos perversos, nomeadamente a nível das suas condições materiais de existência, principalmente dos artistas menos consagrados e com menos visibilidade social. A pobreza e o sofrimento, características associadas ao modo de vida dos artistas românticos, ainda que por eles reivindicadas e subjectivamente investidas como culturalmente nobres, são sobretudo produto das suas precárias condições objectivas de existência.

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produzidas não incorressem em "erros" que, pecaminosamente, fossem contra os seus

dogmas ou de alguma forma os comprometessem.

Mas longe íam os tempos em que a Igreja, enquanto principal patrono dos

artistas, conseguia exercer sobre estes um controle apertado. A procura da arte

diversificava-se e a missão da estabelecer critérios de legitimidade cultural e de, através

destes, definir o valor artístico das obras cabia cada vez mais aos intelectuais que,

cultivando valores de índole humanista, se encontravam pouco sensibilizados para as

preocupações puritanistas da Igreja. Por isso estas pouco ou nada se reflectiram nos

empreendimentos discursivos que, na época, eram desenvolvidos sobre a arte. Os

humanistas encontravam-se sobretudo concentrados em fundamentar a arte enquanto

atitude expressiva do artista perante o mundo, amparando de perto a sua progressiva

conquista de liberdade e motivando-o a auxiliar-se das suas próprias qualidades

subjectivas em detrimento da exclusiva aplicação de regras matemáticas e geométricas

no exercício da sua prática, concorrendo decisivamente, através da sua acção discursiva

e das novas modalidades com que esta se impunha, na legitimação da lógica da

singularidade e da individualidade emergente no campo artístico.

Com efeito, justamente porque muitos dos intelectuais responsáveis pela escrita

em matéria de artes acumulavam simultaneamente a condição de artistas ou viviam em

comunhão próxima com estes, faziam acreditar e reconhecer como natural essa lógica,

reproduzindo de forma mais ou menos sofisticada ou complexa nas linhas e entrelinhas

dos seus discursos e nos seus argumentos apologéticos, os princípios fundadores em que

tal lógica se alicerçava, ou seja, o princípio da operância do dom, o princípio da

insubstitualidade dos "verdadeiros" criadores e o princípio da intransmissibilidade do

seu lugar social.

Um dos principais tipos de discurso que mais contribuiu na legitimação dessa

lógica e que se desenvolveu exactamente durante o Maneirismo foi o discurso

biográfico.79 O relato das Vidas, que até então era só possível para patronos ilustres,

herois e figuras sagradas ou míticas, passa de facto também a ser largamente produzido

sobre artistas, revelando que quando estes deixaram de ser meros artífices, as suas vidas

tornaram-se alvo de curiosidade e de interesse público, e por isso dignas de crónica

escrita. Com o objectivo de definir e descrever as trajectórias e as personalidades dos

artistas seleccionados, a par do modo como estas se reflectem na sua maneira pessoal, o

79 Ver CONDE, O Duplo Écran. 1. Fundações e Legados, op. cit., pp. 71-99.

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discurso biográfico converte-se então num instrumento primordial na construção do

artista em individualidade singular, permitindo distinguir aquele eu do colectivo que o

tende a encobrir.

Já no século XV encontramos esta prática desenvolvida por Lorenzo Ghiberti

(1378-1455), nas suas Vite degli artisti, onde ele apresenta a vida e a obra daqueles que

conhece e que mais admira como pintores e escultores do século XIV. Mas este tipo de

discurso só proliferou realmente na segunda metade do século XVI, com o nome de

Giorgio Vasari (1511-1574) a coroá-lo. Discípulo e amigo de Miguel Ângelo, ao

qual dedicou um extenso relato da sua vida e obra em tom elogioso no final da sua

preciosa colectânea Vida dos mais excelentes pintores, escultores e arquitectos

italianos, publicada pela primeira vez em 1550, foi este homem que pela primeira vez

nos apresentou discursivamente a fórmula do artista moderno como eu soberano.

Nos seus argumentos, as virtudes do geometrismo e da regra perspéctica são

substituídas pelas virtudes impalpáveis e misteriosas do génio-criador, esse indivíduo

de excepção que não se limita a deter a capacidade de assimilar e reproduzir as regras da

arte graças ao trabalho e ao estudo, mas que inventa, fantasia, cria graças ao talento de

que é dotado, inflectindo a estratégia de liberalização das artes de uma perspectiva

cientifista, que exacerbava o intelectualismo estético, para uma perspectiva mais

poética, mais literária, que exaltava a expressividade artística. Esta inflexão de valores é

fielmente seguida e reproduzida pela segunda geração de intelectuais academistas, que

cessam de vez, a partir de finais do século XVII, de ocupar os seus escritos com a

problemática da perspectiva.

Tomando plena consciência da metodologia e da linguagem da arte como

distinta das da ciência, o humanista refugia-se então na apreciação da obra pelo prazer

sensível e deleite intelectual que essa lhe proporciona, estando aqui a "intelectualidade"

da arte já não relacionada com o seu suposto carácter racional e científico, mas com o

seu carácter expressivo e genial. É justamente com esta tomada de consciência que a

inteligentsia se segmenta e que o intelectual de ciência, discípulo da experiência

objectiva e empírica, e o intelectual da arte, agora adepto da experiência subjectiva e

intimista, figuras que anteriormente obedeciam ao mesmo tipo de controles

matematizados, se separam, divórcio que disponibiliza o espaço de manobra necessário

para a entrada em cena da figura do crítico no palco das artes. Esse divórcio

consubstancializa-se institucionalmente na separação oficial entre as academias em que

prevalece o interesse pelas matérias propriamente científicas, e aquelas em que

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prevalece o interesse pelas artes e letras, interesse esse que, muitas vezes, também toma

a forma de uma abordagem estética e crítica supostamente científica.80

No cerne destas instituições - com o intelectual da arte a reivindicar para si o

privilégio da detenção do "bom gosto", de um saber específico às artes e de uma

sensibilidade estética apurada, competências que vêm orientar o seu julgamento de valor

contra o exame preciso da técnica e da regra perspéctica -, a averiguação do carácter

artístico da obra produzida deixa de se basear numa atitude matematizada, e passa a ter

como referência uma cultura livresca, que incentiva uma atitude diletante, estetizante

e/ou historicista. O juízo de valor deixa de ser ponderado mediante a conformidade

geométrica com o real, ou seja, a "objectividade" da obra, e torna-se fundamentalmente

juízo histórico e de gosto (que se supõe "requintado" e informado e, por isso,

privilegiado), formulado sobre uma contextualização estética sincrónica e/ou diacrónica

da originalidade e inovação da expressão do seu criador.

A actividade discursiva começa então, em finais do século XVII, a literaturizar-

se, proliferando a par das biografias dos artistas, testemunhos escritos das reacções

emocionais e das experiências estéticas partilhadas pelos conhecedores e entendidos em

arte face a determinadas obras e/ou artistas seus contemporâneos ou antepassados. Mais

do que tratados que pretendem ditar leis e estabelecer princípios normativos, esses

comentários consistem em testemunhos discursivos que contêm opiniões especulativas

e/ou discussões estéticas baseadas numa perspectiva subjectiva, histórica e/ou filosófica

das artes, fornecendo assim o modelo para uma fruição artística que permite gozar,

avaliar e interpretar a obra apenas enquanto arte, ou seja, enquanto concretização do

furor de um génio-criador, e já não enquanto ensinamento moral, acto devocional ou

configuração representativa e matematicamente orientada de coisas ou acontecimentos.

Perfila-se assim um tipo específico de literatura sobre arte que cada vez mais se

aproxima da Crítica como forma de discurso especializado tal como o conhecêmos hoje,

sem contudo ainda a materializar plenamente como tal. Esta só vem realmente a emergir

enquanto modalidade particular de actividade discursiva, disciplina teórica autónoma e

prática profissional especializada, numa época relativamente recente, nas vésperas da

Idade Moderna e do seio da cultura característica das sociedades capitalistas. Até aí

apareceu efectivamente sempre diluída e subsumida nas várias formas de acção

80 É neste ambiente que surge pela mão de Colbert a Academia Real de Belas Artes de França em 1648, à que vem juntar-se cerca de vinte anos mais tarde a Academia Real de Belas Artes de Paris em Roma,

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discursiva que foram sendo disponibilizadas ao longo do tempo em matéria de artes e

letras, e que eram apanágio dos intelectuais-humanistas academistas nascidos da

Renascença. E assim se conservou até meados do século XVIII, altura em que o próprio

saber teórico específico às artes se segmentou e em que, por essa via, se passou a

escrever História de Arte em vez de vidas de artistas, em que a Estética surgiu como

área especializada do conhecimento filosófico dedicada às questões artísticas, e em que

a apreciação e interpretação das obras apresentadas como arte ficou a cargo dessa

disciplina autónoma a que se convencionou chamar de Crítica.

III. DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PRÁTICA CRÍTICA

3.1. O ILUMINISMO E A AUTOMIZAÇÃO DOS SABERES-PARA-A-

ARTE

Situámos no ponto anterior os antepassados da prática crítica em épocas remotas

da Antiguidade Clássica e do Renascimento, onde aparecia implicitamente contida na

acção discursiva e intelectualizante de personagens como o conhecedor de arte e o

intelectual-humanista, proto-exemplares da figura moderna do crítico, sem ainda,

contudo, a assumirem na sua especificidade. Com efeito, os vários tipos de literatura

sobre artes que até aí eram produzidos incorporavam em si mesmos, de uma maneira ou

de outra, intenções e conteúdos de ordem crítica, patentes no tom de enaltecimento ou

de depreciação com que eram tratados os artistas tomados como objecto de discurso,

instituições oficiais que, separadas das suas homólogas Academias de Ciências, nasceram com o

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assim como nas descrições, juízos de valor e considerações estéticas e técnicas

formuladas em torno das suas respectivas obras. A própria selecção dos artistas e obras

sobre quem ou que dissertar já pressupõe um juízo crítico por parte do comentador.

Mas se desde a Antiguidade Clássica as oportunidades de fazer crítica se

encontravam circunscritas a formas discursivas como os Tratados, as Vidas ou os

Comentários, o século XVIII proporcionou a emergência e o desenvolvimento de um

discurso propriamente crítico, relativamente autonomizado de outras formas do saber e

do escrever sobre artes que vieram também a reclamar a sua independência disciplinar

por essa altura. O surgimento da crítica enquanto disciplina autónoma, discurso

específico e prática especializada, decorreu no contexto de um processo de

fragmentação e racionalização dos saberes próprios do campo das artes, processo esse

que engendrou neste espaço a organização de corpus discursivos e disciplinares

distintos, institucionalizados, legitimados e difundidos separadamente segundo

princípios metodológicos e objectivos teórico-práticos diferentes.

É de facto em meados do século XVIII que, pela primeira vez, a História de Arte

é concebida de modo realmente independente das vidas dos artistas (que começam a

partir daqui o seu trajecto declinante), ganhando rapidamente direitos de pesquisa e de

saber erudito, mais iconográfico e iconológico do que propriamente biográfico, sobre as

obras de artistas do passado. No domínio da Filosofia, é reconhecida a autonomia e a

particularidade da prática artística, sendo criada no seu interior uma área especializada

na sua discussão, a Estética, fundamentalmente preocupada em reflectir sobre o

conceito de arte em si, na sua essência, e de justificar a sua suposta realidade

ontológica.

E, finalmente, o simples comentário fez-se substituir pela Crítica que, tendo

recorrido aos vários tipos de numenclaturas técnicas e teóricas disponíveis sobre arte,

entre as quais as produzidas nas áreas disciplinares precedentes, dotou-se de

instrumentos conceptuais e metodológicos próprios que lhe fundamentaram e

proporcionaram o crescente monopólio da legitimidade na definição das categorias e

critérios subjacentes à apreciação, classificação e interpretação dos bens simbólicos que,

no insapiente mercado da época, eram apresentados como artísticos. Em contraste com a

Estética, coube-lhe reflectir sobre a experiência da obra concreta e não sobre uma

suposta idealidade da noção de arte. Simultaneamente, distanciava-se da História de

propósito de oferecer aos artistas o meio apropriado de "former le goût et la manière".

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Arte na medida em que tendia a debruçar-se fundamentalmente (mas não

inevitavelmente) sobre a produção artística que lhe era actual, aventurando-se à

avaliação e compreensão imediata da obra acabada de sair das mãos do artista.

Ora, o processo de institucionalização da prática crítica no campo das artes,

processo que concorreu significativamente para a consolidação do movimento de

delimitação e autonomização que progredia nesse campo, tendo tido a sua génese em

Inglaterra, depressa se estendeu a toda a Europa, com principal incidência na França e

na Alemanha, resultado da necessidade premente de proteger os diversos (e

florescentes) mercados artísticos locais da invasão dos falsos, das cópias e dos refugos

provenientes, na sua maioria, de Itália81. Essa preocupação proteccionista verificou-se,

nomeadamente, num domínio cultural cujo mercado cedo atingiu proporções de vulto,

ou seja, no domínio da pintura, no qual, tal como afirma Maria de Lurdes Lima dos

Santos, «a destrinça entre autores prestigiados e autores desconhecidos ou anónimos,

entre originais e cópias, apareceu já na segunda metade do século XVIII como

preocupação dominante nos catálogos de vendas para os coleccionadores»82. Tornava-

se, pois, necessária a constituição de um corpo de especialistas dotados de um saber

específico capaz de reconhecer a autenticidade e a qualidade das obras que íam sendo

publicamente apresentadas como artísticas.

Mas a proeminência de uma prática crítica especializada em meados do século

XVIII, também se encontra intimamente associada ao próprio enquadramento cultural

que lhe serviu de pano-de-fundo, profundamente marcado quer pela expansão dos

valores individualistas e, por esta via, da preocupação com a propriedade privada

(nomeadamente com a propriedade artística), quer pelo Iluminismo Setecentista, cujo

programa cultivava com acérrimo empenho a crença no perfeito e ilimitado poder da

Razão. Esta fé incondicional na razão como única via para a "liberalização do Homem"

foi, em grande parte, resultante da progressiva consolidação e generalização da ciência

experimental que havia emergido no século anterior, depois de solucionados os

principais problemas com que se defrontava.

Transferida para o espaço da intelectualidade que rodeava as artes e letras, tal fé

consubstancializou-se na ambição de criar uma "comunidade de razão iluminada" contra

a arbitrariedade despótica da mera opinião aristocrática e diletante que tendia a imperar

anteriormente entre os comentaristas. Deste modo, enfatizando a razão como

81 ARGAN, Arte e Crítica de Arte, op. cit., p. 133.

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fundamento da crítica de arte e tentando que esta se assumisse como zona de saber

isento, estabelecendo para isso protocolos com outras zonas do saber sobre artes que se

pressupunham racionalmente controlados (como as recém nascidas Estética e História

de Arte), a cultura iluminista inadvertidamente encorajou a convicção de que nenhum

leigo seria qualificado para chegar a um julgamento e a uma interpretação válida sobre

obra de arte, fazendo então nascer a figura do crítico e institucionalizando o dissídio

entre aqueles que entendem a arte e aqueles que não a entendem.

Por outro lado, recusando qualquer tipo de dogmatismo, o programa iluminista

para as artes e letras negava perentoriamente o valor das teorias de tradição

renascentista baseadas na noção de Belo clássico, assim como, por consequência, a

autoridade paradigmática do modelo estético da antiga Grécia. A obra de arte passou

então a ser definitivamente apreciada e valorizada, dentro daquelas "comunidades

iluminadas", já não em função da sua conformidade em relação às regras de um ideal

formal dado, mas a partir da sua originalidade e autenticidade, indicadores da sua

qualidade, cuja presença ou ausência seria deduzida racional e objectivamente a partir

do contexto em que a obra em causa foi produzida ou da personalidade que a produziu.

O que equivale a dizer que os conceitos de originalidade e autenticidade

tomaram definifivamente o lugar da noção de Beleza na definição do valor e qualidade

artística de qualquer bem cultural (permanecendo ainda hoje como conceitos operatórios

fundamentais na prática e no discurso crítico), verificando-se a presença dessas

características numa obra de arte através da sua análise comparativa, sincrónica e

diacrónica, com outras suas congéneres, ou seja, inserindo-a na situação da produção

artística que a precede e que a rodeia. O juízo crítico deixou então de se apoiar num

ideal de beleza para passar a fundamentar-se num critério histórico de verdade-

falsidade, baseado na inserção da obra na coerência estética de uma trajectória

individual e/ou de uma conjuntura artística.

Já Dubos (1670-1742) nas suas Reflexões Críticas sobre a poesia e a pintura, e

Diderot (1713-1784) na sua Encyclopédie, insistiam bastante na necessidade da arte e da

literatura comunicarem o impulso e a expressão do génio, em detrimento da

conformidade a arquétipos desactualizados, procedendo à avaliação das obras

produzidas nesses domínios tendo em conta os critérios estebelecidos no

desenvolvimento da sua própria história interna. E se a arte era uma questão de

82 SANTOS, "Questionamento à volta de três noções...", op.cit., p. 700.

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sentimento, sendo avaliada em relação a trâmites propriamente artísticos, enfatizavam

também que somente àqueles que a conheciam na sua dimensão histórica e que,

simultaneamente, possuíssem uma sensibilidade estética apurada, um "bom-gosto"

requintado e um "bom-senso" razoável, cabia o exercício de julgá-la e compreendê-la,

ou seja, apenas os dotados de determinadas competências culturais e capacidades

intelectuais e sensitivas específicas estariam em condições de desempenhar a actividade

crítica.

O exercício desta encontrava-se circunscrito ao espaço das academias, que desde

o século XVII constituíam o principal espaço de incentivo às pesquisas e discussões

sobre artes e literatura, fazendo editar sob a sua alçada, nomeadamente as mais

prestigiadas e activas, biografias, tratados ou comentários sobre a produção artística ou

literária contemporânea ou do passado. Todavia, em meados do século XVIII, a crítica,

ainda dentro do espaço académico, foi encontrar as suas oportunidades de difusão

concretas sob a forma quer de monografias ou de ensaios sobre um determinado

conjunto de obras ou da produção de certo grupo de artistas associado a esse espaço

específico, quer de prefácios de catálogos ou de anuários das exposições de arte que

nessa altura começaram a ser organizadas dentro do espaço académico, quer ainda de

crónicas ou de "prestações de conta" nos poucos periódicos também editados nesse

mesmo espaço.

A par das instâncias formais de legitimação e consagração das artes e letras do

tipo das academias, como as de Belas Artes e as Arcádias (específicas da literatura),

onde se privilegiava a investigação pura ou aplicada, orientada para estudos mais sérios

e mais profundos desenvolvidos a nível filosófico, historiográfico ou analítico,

popularam durante o século XVIII outro tipo de instâncias mais informais, em que a

tónica mundana e lúdica imperava, mas onde também se organizavam frequentemente

sessões de crítica e de auto-crítica. Destas destaca-se o caso dos Salões, reuniões de

carácter privado ou semi-público, promovidas quer por sociedades culturais e

estabelecimentos de ensino paralelos ou afins às academias, quer por mecenas

particulares, onde para além da prática de diversas actividades artísticas (como recitais

de poesia e de música, pequenas mostras ou mesmo exposições de arte, etc), se faziam

também palestras e sessões de esclarecimento e de debate com intenções didáctico-

civilizadoras, onde a acção discursiva do crítico, aqui ainda muito ao estilo diletante e

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especulativo, tinha lugar de destaque83. Muitas destas instâncias detinham também

publicações próprias, onde faziam publicar os discursos enunciados nessas palestras,

assim como outras crónicas críticas sobre eventos do mundo das artes e letras em

geral84.

É então no âmbito da multiplicação destes espaços e das oportunidades

discursivas que eles possibilitaram que a prática crítica se encontrou na sua

especificidade, emergindo a figura do crítico no sentido especializado do termo. Já não

se trata de inserir juízos e opiniões entre as biografias dos artistas ou nas entrelinhas dos

escritos sobre normas e princípios de arte, mas de escrever unicamente com o fim de

emitir uma opinião que se pretendia esclarecida sobre um determinado conjunto de

obras de um ou vários artistas. Aliás, doravante as biografia e os tratados vão perder

rapidamente o seu lugar privilegiado como instrumento discursivo de consagração e até

como via de conhecimento estético em detrimento do discurso crítico, que irá a partir

daqui ser assumido como principal modalidade discursiva de imputação de grandeza e

de valor à obra e ao seu respectivo criador.

Nesta perspectiva, podemos observar que é de facto no século XVIII que se vão

preparar as condições para a afirmação definitiva da autonomia do campo artístico

ocorrida no século seguinte, assim como para a emergência do crítico como agente

especializado e central no seu interior: por um lado, prevê a necessidade da existência

de instâncias discursivas especializadas como suporte da autonomia intelectual do

campo das artes e letras, e vai institucionalizar academicamente, sob a forma de

disciplinas e discursos independentes, vários saberes específicos às práticas expressivas

do Homem - a História da Arte, a Estética e a Crítica; por outro lado, faz crescer as

possibilidades de difusão destes saberes através da promoção de conferências e de

palestras sobre artes e letras, assim como da edição acrescida de publicações

especializadas em temas artísticos e literários.

Para além de dotar-se de instâncias de produção discursivas especializadas e das

suas respectivas condições de difusão, é também durante o período setecentista que o

83 Ver SANTOS, Os Intelectuais Portugueses em Oitocentos, Lisboa, ISCTE, 1985, pp. 598-644. 84 Note-se que o Salão que, em 1763, foi fundado sob a égide da Academia de Belas Artes de Paris, pouco tem a ver com aqueles salões informais que populavam no período setecentista. Trata-se de uma grande exposição de arte contemporânea organizada regularmente por aquela instituição, por isso com um carácter oficializado e formal, que tinha por objectivo principal tentar equilibrar a relação entre a oferta e a procura de bens artísticos contemporâneos e assim estabelecer uma nova relação entre os artistas e o público, já longe dos tradicionais contratos de encomenda. Também este salão era acompanhado de sessões críticas sobre as obras e os artistas expostos, as primeiras das quais estiveram a cargo de Diderot, isto até 1781. Por isso muitas vezes este escritor é considerado o primeiro crítico de arte moderno.

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universo das artes e letras se apretecha das condições propriamente institucionais e

materiais que propiciaram a consolidação do seu processo de autonomização em

Oitocentos, ao fazer crescer o âmbito e a vivacidade da acção das Academias - que se

responsabilizam oficialmente pela introdução formal dos candidatos a artistas nos

discursos técnicos, filosóficos e históricos específicos às suas respectivas àreas de

actividade, e que tomam a seu cargo a definição de critérios de legitimidade cultural e o

desempenho legítimo das práticas judicativa e interpretativa sobre artes e letras -, e ao

expandir a instituição de exibição pública das obras com a inauguração dos seus

próprios Salões periódicos, demarcando assim espaços oficializados para a produção e

reprodução de práticas e valores estéticos, assim como para a consagração de nomes de

artistas.85 São estes os legados do século XVIII para o Romantismo, altura em que este

processo de autonomização se radicaliza e em que, consequentemente, a figura do

crítico é catapulcada para o primeiro plano do panorâma cultural e artístico.

Com efeito, se o século XVIII pode gabar-se de ter visto nascer a crítica como

prática discursiva especializada e relativamente autónoma, distinta de outras zonas do

saber e de outras formas de discurso próprias às artes e letras, foi somente durante o

século XIX, com principal incidência na sua segunda metade, que o crítico emerge

como personagem central e assume um lugar de destaque no campo artístico,

nomeadamente na sua qualidade de profissional de comunicação, tal como o

conhecêmos hoje, vendo o poder de intervenção da sua acção, nas suas vertentes de

descoberta, de legitimação e de consagração artística, largamente dilatado em relação ao

século precedente. E compreende-se que assim tivesse acontecido, pois só a partir dessa

altura se reunem as condições de possibilidade propícias e necessárias para que tal

aconteça.

85 Ressalvêmos, no entanto, o caso específico de Portugal no contexto geral deste processo, mais intenso nos países artisticamente centrais e paradigmáticos. Na falta de um mercado e de um mecenato sistemático para as artes, de uma Academia oficial que só viria a constituír-se tardiamente em 1836, de contactos frequentes e uma informação actualizada com os principais centros de irradiação cultural, a situação de incultura estética revelava-se a característica geral mais marcante do nosso país até aqui, sentida tanto no plano do consumo quanto da produção. Neste contexto, a impraticabilidade de uma cultura de discussão e de investigação estética, histórica e crítica é estruturalmente justificada e justificável. Machado de Castro, a partir de 1780, é o primeiro a escrever teórica e criticamente sobre arte em Portugal, ainda no intuito de promover e dignificar as Belas-Artes, ao jeito dos intelectuais-humanistas renascentistas, esforçando-se «por sublinhar o carácter nobre da sua arte. Leonardo da Vinci já fizera semelhante diligência trezentos anos antes, mas em Portugal não houvera academias para entreter a dignificação do artista (que aqui havia continuado ligado aos ofícios), e Machado, excepcionalmente feito cavaleiro de Cristo pela sua estátua equestre, mas ferido por ver muito mais louvado o fundidor dela, encontrava-se ainda na necessidade de insistir no argumento - e de novo o faria, em 1818, ao reeditar o "Discurso sobre as Utilidades do Desenho" proferido em 87, na aula de desenho da Casa Pia.» In FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, vol. I, Lisboa, Bertrand, 1966, pp. 84-85.

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Entre essas condições podemos destacar: a autonomia irrevogável do estatuto

social e cultural do artista pela mão do movimento romântico que, ao fazer exacerbar o

culto da arte e do artista, vai providenciar quer a mutação radical da morfologia dos

objectos artísticos - que em finais do século XIX vão abandonar decididamente a

representação figurativa entrando numa espiral de pesquisa interna e abstractizante -,

quer, por consequência, a transformação do próprio ambiente institucional de existência

da actividade artística, com o recuo da dominação da Academia em detrimento do

Mercado e dos seus respectivos agentes reguladores como sistema de valorização e

consagração cultural; a estruturação definitiva de uma nova organização económica e

social, com a plena assumpção do capitalismo como modelo de produção e de troca em

todos os domínios, com a ampliação crescente (em termos quantitativos e de poder) das

fracções de uma burguesia comercial e industrial que vêm engrossar a clientela profana

das artes, e com o estabelecimento de novos valores socio-culturais, como a Liberdade,

a Fraternidade e a Igualdade, proclamados pela Revolução Francesa; e ainda a expansão

acelerada da imprensa escrita que, ao começar a ser também produzida segundo os

moldes de qualquer empresa capitalista, vai alargar amplamente o seu leque temático,

incluindo sempre rubricas de âmbito cultural, entre as quais se conta a crítica, que perde

assim o seu vínculo privilegiado à Academia encontrando um novo e alargado espaço

de produção e de difusão. Mas vejamos mais pormenorizadamente como cada um destes

factores, na sua articulação recíproca, veio a contribuir para a projecção e

autonomização do lugar da crítica no universo das artes.

3.2. A RIBALTA DO CRÍTICO NA VIRAGEM PARA A

"MODERNIDADE"

E AS SUAS CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE

Como já tivemos oportunidade de demonstrar, à medida que o processo de

autonomização do campo artístico foi avançando desde o Renascimento, a noção de que

o essencial do processo de produção artística recaía sobre o sujeito que criava foi-se

enraizando profundamente a nível social, expurgando-se assim o peso de todos

condicionalismos sociais, políticos, culturais, religiosos e materiais que sempre

condicionaram o "livre" exercício da actividade artística. Afirmando-se longe de

qualquer tipo de convenções ou determinações, a arte foi sendo entendida como

expressão de uma personalidade genial que sublima todos os seus impulsos, sentimentos

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e desejos, toda a vertigem do seu imaginário e da sua sensibilidade, para o objecto que

fabrica. A concepção da produção artística passou então gradualmente de acto de

conhecimento a acto de criação, acontecimento envolto numa aura de mistério e

misticismo, sendo concebido mais como resultado de determinado estado de espírito ou

momento de inspiração do que como trabalho técnico propriamente dito. Paralelamente,

o criador, poeta ou artista, veio progressivamente a reclamar-se e a ser reconhecido

como individualidade singular, enquanto dotado de um talento artístico raro, divina ou

biologicamente doado.

Chegados ao Romantismo esta situação agudiza-se, e vêmos acentuar-se

intensamente a noção carismática e individualista do artista, assim como o seu estatuto

supostamente livre de qualquer amarra económica, social e propriamente estética,

consolidando-se neste contexto os movimentos de ascensão cultural do lugar social do

artista e o de autonomização relativa do campo onde ele se integra que se vinham a

desenvolver desde o Renascimento. Manifestando-se contra qualquer espécie de

constrangimento exterior ou compulsão normativa na arte, e incitando o artista a uma

atitude de rebeldia face às formas convencionais e ortodoxas de fazê-la e de entendê-la,

o programa cultural romântico veio proclamar de uma vez por todas a independência

daquela figura como génio-criador, como eu soberano, em nome da sua liberdade de

expressão interior e do direito à sua própria idiossincrasia.

Produziu-se então sobre o artista uma indomável ilusão de liberdade, narcísica e

orgulhosamente regozijada, sensação essa tanto mais sentida quanto ele se colocasse

contra a sociedade e as convenções sociais e culturais que esta lhe impunha. Essa

sensação de liberdade, que pressupunha a concretização da sua plenitude através de uma

suposta separação entre a sociedade e o artista (em termos de práticas e valores sociais e

propriamente estéticos), consubstancializou-se na institucionalização da ética do desvio

como norma no campo das artes e letras, fazendo vulgarizar a ideia de que a actividade

artística, longe de ser a mera concretização de prescrições técnicas ou temáticas, está

sempre associada à violação de um tabú, surge como resultado da profanação dos

cânones presentes e antecedentes, apelando a uma estética de contínua mudança e

inovação. Esse apelo, na prática, fez assumir na formalização estética da obra de muitos

artistas aspectos extravagantes e transgressores em relação à dos artistas

academicamente consagrados que, ainda arreigados à tradição clássica da representação

do real (a paisagem, o retrato, a natureza-morta, eram temas pictóricos ainda

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dominantes na academia), tentavam derradeiramente modelar a contemporaneidade da

sua produção sobre critérios e valores do passado.

Mas a ética do desvio como norma não era materializada apenas no domínio

morfológico da obra dos criadores românticos, sendo também transposta para o domínio

social, onde o ideal romântico cultivava a imagem do artista super-dotado, todavia

sempre maldito, fazendo da boémia, do sofrimento e da pobreza o seu modo de vida.

Esta imagem desfavorecida e miserabilista do criador, encontra no domínio das artes

plásticas o artista na condição de pária, e no domínio da literatura o estatuto de poeta

como vate. O facto é que tal imagem correspondia frequentemente à realidade, na

medida em que o artista, nomeadamente aquele que voluntariamente não se encontrava

instalado nos circuitos dominantes da arte (que passavam inevitavelmente pela

Academia), na luta pela sua liberdade total e pela revalorização estética e lúdica do seu

próprio estilo de vida, fazia do desinteresse material, do desregramento e do excesso o

seu modo de estar na sociedade, invocando orgulhosamente a penúria, o sacrifício e a

farra como indicadores do seu estatuto supostamente livre de quaisquer algemas

económicas ou sociais.

Neste contexto, os princípios da arte pela arte, da pureza do interesse

desinteressado na arte e do desvio como norma artística (e também como norma de

vida), foram constituindo a tríade de base do património ético que orientava a prática

criativa de um considerável caudal de criadores em meados do século XIX. Por outro

lado, o património estético que lhes era comum integrou de vez a plena consciência da

arte como manifestação do sentimento subjectivo e de valores individuais, como

domínio de criação e jamais de representação, independentes de qualquer função extra-

artística, assim como de qualquer preconceito de beleza sublime, ideal ou objectiva.

Na afirmação da irredutibilidade do seu projecto criador, o artista romântico

começa então a empreender modificações estéticas na morfologia dos objectos que

produzia que, com o tempo, se foram radicalizando. Procurando fugir não apenas aos

modos convencionais de tratar formalmente os temas escolhidos, como às próprias

temáticas tradicionalmente dominantes na Academia, a arte romântica vê-se cada vez

mais afastada do naturalismo realista que a caracterizava até aqui, voltando-se cada vez

mais para si própria, processo que culminará nos movimentos vanguardistas que

irrompem na viragem para o nosso século. Se anteriormente o artista se propunha a

representar objectos ou grandes cenas da humanidade, religiosas, históricas ou míticas,

sendo a qualidade figurativa das suas obras uma necessidade da época que o

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contextualizava - necessitavam nesses tempos de ter um valor descritivo e literário

próprio para instruir e moralizar o povo -, o pensamento estético romântico rompe

definitivamente com essa concepção, supondo a arte como forma superior de expressão

de sentimentos e estados de emoção pessoais e subjectivos, apelando, por esta via, ao

primado da originalidade.86

A partir de 1840, a descoberta da fotografia veio reforçar na consciência do

artista a convicção de que a arte deveria ser investigação estética puramente expressiva

e subjectiva, pelo que ela daí para a frente se irá revestir de um aspecto formalmente

mais elaborado, com uma aparência mais de obra de criação do que de representação de

uma cena, o que, por sua vez, nos reenvia mais à personalidade do artista e à sua

reacção subjectiva face ao mundo exterior do que ao mero retrato deste último. O ponto

de fractura fundamental relativamente à tradição formal do realismo naturalista dar-se-á

pela mão do movimento impressionista, o qual, como verdadeiro percursor da arte

moderna, irá preparar o terreno para a evolução posterior ao propôr traduzir na tela o

momento subjectivo e fugidío da visão do real, a impressão, e já não a descrição

integral da realidade.

Embora o seu traço traduzisse ainda uma preocupação na relação criador-

natureza, não fugindo totalmente à figuração, o objectivo do impressionista já não era o

decalque mecânico do real, a competição inútil entre o olho e a objectiva fotográfica

(que havia surgido com sucesso). O que ele pretendia revelar era a reacção

despreconceituosa, incondicionada, autêntica, do sujeito em contacto directo com a

realidade, dando-a a vêr como representação refractada pela sensibilidade, através do

olho subjectivo do artista, o que já pressupunha um percurso interior da sensação visual.

86 Mais uma vez, será necessário ressalvar aqui a especificidade do caso português. Dada a insuficiência ao nível das suas condições de produção, difusão e consumo cultural, associada à sua condição periférica e insular no panorâma artístico europeu, na prática, o romantismo português, nas palavras de José-Augusto França, «ainda jogava com o realismo em dosagem incerta», apesar de discursivamente já se exigir "sujeito" mais do que "objecto". Dizia António Eanes na revista Artes e Letras, criticando um dos primeiros salões da Sociedade Promotora de Belas-Artes (anos 60 do século XIX) que de «algumas telas que a vista se prendia com agrado (...) raro se destacaria (...) uma ideia que penetrasse no cérebro do visitante. Havia quadros que eram como janelas abertas para o campo, mas por essas janelas não se avistava o espírito do artista. Via-se objecto mas não o sujeito.» (cit. in FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., vol. I, p. 435.) Na base de um relatório dessa mesma Sociedade, escrito em 64, França dá-nos uma panorâmica geral do estado cultural português no decorrer do seu Romantismo: segundo ele, «a arte estava decadente, não desabrochavam novas vocações, a ninguém sorria a carreira das artes, escassos eram os meios de aperfeiçoamento dos artistas, que produziam pouco num meio em que a crítica era inexistente, em que faltavam os compradores e as exposições...» (Idem, p. 468) Neste contexto, os artistas portugueses «não se abalançavam, ou por falta de meios ou por cálculo comercial, a mais do que umas pequenas paisagens, a umas flores, a uma figurazita cujo preço não horrorizasse o comprador», dizia-nos um crítico do jornal "OOcidente" em 87. (cit. in FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, Vol. II, Lisboa, Bertrand, 1990, p. 83.)

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Mas se no impressionismo ainda encontramos uma certa aparência figurativa nas obras,

ainda que recriada pelo sujeito numa espécie de realismo expressivo, a transformação

morfológica levada a cabo por acção das vanguardas do final do século é notoriamente

mais radical. Tal como refere Argan, «o facto que separa nitidamente, com um autêntico

salto qualitativo, a arte do nosso século de toda a arte do passado, pelo menos na área da

cultura ocidental, é a passagem do carácter figurativo ao não figurativo, ou como é

corrente dizer-se, à abstracção»87.

De facto, a partir de finais do século XIX, começamos a assistir a um rápido

abandono da cultura da figuração, associada à natureza e à afirmação pictórica da

realidade, e à emergência de uma arte puramente abstracta, ou seja, que procura

traduzir formalmente estados subjectivos independentes das sensações visuais, da

experiência com o exterior: diz-nos Kadinsky que «não é a sensação visual recebida do

mundo exterior mas a "vontade interior do sujeito" que determina a forma artística»88.

Nesta perspectiva, as atitudes das correntes estéticas que surgiram posteriormente ao

impressionismo, como sejam o fauvismo, o dadaísmo, o cubismo, o expressionismo, o

surrealismo, o construtivismo ou o minimalismo, fazendo desaparecer o referente

empírico da arte, conseguiram destruir completamente os valores pictóricos da

representação, entendidos como submissão à Academia e associados à cristalização

comodista dos modelos, libertando totalmente o artista da sujeição ao real.

Para além disso, alguns dos movimentos pós-impressionistas também

pretenderam destruir completamente os meios técnicos de expressão artística até então

vigentes, chegando a eliminar o cavalete, a tela e o pincel em detrimento de outros

suportes materiais e utensílios até então estranhos à pintura. A própria tinta e a técnica a

ela associada foi em muitos substituída pela integração de detritos urbanos e/ou outros

"objectos encontrados", cuja disposição era possível através de técnicas inovadoras

como, por exemplo, a collage. Contra a visão aurática e preciosa da arte, algumas

manifestações mais radicais prescidiram mesmo de uma expressão plástica executada

87 ARGAN, Arte e Crítica de Arte, op. cit., p. 105. 88 É justamente quando este pintor produz a primeira aguarela "abstracta", em 1910-1911, que tem sido geralmente fixado o momento de passagem decisiva do figurativo ao não figurativo, embora já antes essas tendências "abstractizantes" se fizessem sentir com intensidade nos trabalhos de inúmeros movimentos estéticos que se íam constituindo. Essa ruptura foi levada ainda mais longe pelo cubismo que, renunciando totalmente a qualquer semelhança com as "formas naturais", propôs-se pesquisar uma linguagem formal puramente abstracta, que deixa completamente de ter um real exterior por referente. Para Apollinaire, mentor deste movimento, "o cubismo é a arte de pintar totalidades novas com elementos emprestados não à realidade da visão, mas à realidade da concepção" (cit. in CRUZ, A Obra de Arte...,

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pela mão do criador. Quando Duchamp expõe em 1913 o seu primeiro e desconcertante

ready-made, La Roue de Bicyclette (uma bicicleta), e depois em 1916, a Fontaine (um

urinol), no Salão dos Independentes em Nova York, objectos de uso quotidiano apenas

acompanhados de uma nominação e de uma assinatura, o seu objectivo fundamental era

assinalar que é o contexto físico (o museu, a galeria, o salão) e/ou discursivo (a começar

na assinatura e no título e a acabar na crítica) que envolve o objecto que o faz tornar-se

obra de arte. Neste jogo, a intervenção do artista é minimal, ele limita-se a escolher e a

exibir o objecto, intitulando-o e assinando-o, e já não transformando-o pela sua mão89.

Contemporaneamente, algumas manifestações artísticas dispensaram não apenas

uma expressão plástica composta pelo artista, como também o próprio suporte material.

Falamos, nomeadamente, do Conceptualismo, corrente que desapossa a obra da sua

materialidade, reduzindo ao máximo o trabalho manual do artista. Aqui a arte já não é

afirmada com base numa operação física, mas como puro conceito, ultrapassando-se a

ideia da arte como objecto concreto: o que conta é a ideia artística e não a sua

metamorfose em obra. Em alguns casos, a arte conceptual substitui a expressão plástica

pela expressão verbal, a aparência pelo discurso, o fazer pelo dizer, dizendo-se o que

fazer e como fazer sem, contudo, se passar à sua concretização. Deste modo, o

conceptualismo reclama um máximo de solicitação mental (quer da parte do criador,

quer da parte do receptor) com um mínimo de solicitação manual e visual. A arte não é

senão conceito, colocando-se decididamente fora do espaço e do tempo. É a verdadeira

"arte pura" para uns, é a agonia da arte para outros, pois chega ao cúmulo da sua

ausência.

Considerando o cenário aqui rapidamente traçado com base em alguns exemplos

em termos de transformações na morfologia dos objectos pictóricos desde o século XIX

até à contemporaneidade, podemos notar que a arte foi desenvolvendo-se no sentido da

complexidade e da pluralidade, adensando-se os seus conteúdos e multiplicando-se as

intenções que lhes eram subjacentes. A demarcação relativamente ao "modelo

op. cit, p.132). Os elementos pictóricos surgem assim no cubismo reduzidos a "puros" elementos de espaço e de cor: quadrados, rectângulos, triângulos, construções a-perspécticas, etc. 89 Esta estratégia é retomada mais tarde pela Pop Art, designadamente por Andy Warhol, que se apropria de objectos não só pertencentes ao contexto da vida quotidiana, mas sobretudo investidos de significados simbólicos emblemáticos da mentalidade da sociedade de consumo e dos media: garrafas de Coca-Cola, fotografias de super-stars, embalagens de sopa Campbells, a bandeira americana, etc, produtos que reproduz até ao infinito. Com esse material, o artista não se propõe criar, no sentido romântico do termo, mas contestar esteicamente o sistema da sociedade de consumo através da utilização dos seus próprios mecanismos, tornando-os evidentes. É nesta perspectiva que Warhol faz um compromisso directo com a

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naturalista" foi orientar a pesquisa artística no sentido de determinar já não categorias

meramente formais, mas sobretudo campos semânticos. Os elementos pictóricos deixam

de traduzir formas representativas do "espaço real" para assumirem o papel de signos,

para constituírem um código, um veículo de comunicação a nível conceptual.

E note-se que os significados e os valores desses códigos já não são dados nem

convencionados a priori por qualquer instituição monopolizadora, mas são, pelo

contrário, definidos nos seus próprios contextos de produção, o que trás como

consequência directa a extensão ilimitada do campo semântico da arte, que surge como

que individualizado: é cada artista ou grupo de artistas, com o seu programa pessoal,

que tenta determinar o significado da sua obra. Deste modo, a subjectivação da norma

em matéria de artes, que prescreve que a obra de cada personalidade seja julgada

segundo a lei que adoptou para si própria, passou a prevalecer como valor e critério de

referência judicativa: as "regras" nestes domínios passaram a ser auto-estabelecidas e

consumadas na produção de quem as faz, e o seu valor passou a radicar já não no

conformismo de quem as aceita e as reproduz fielmente, mas na singularidade e

originalidade de que se revestem na sua origem. O criador torna-se definitivamente

insubstituível e o seu estatuto inintermutável, na medida em que os que outrora seriam

nobres e hábeis percursores, doravante passarão a ser meros imitadores, nada mais que

epígonos.

A "babel" estética que daqui decorre, desde o Romantismo até à actualidade,

revela-nos a experiência de um processo de entropia artística. Quer isto dizer que o

processo de radicalização dos traços morfológicos na arte moderna e contemporânea,

transportando consigo as qualidades associadas à "pureza abstracta", tendem a dar a

esse domínio uma autonomia total, deixando bem para trás todas as suas tradicionais

referências exógenas. É um movimento de autonomização que decorre em espiral, com

a arte a tornar-se cada vez mais num sistema fechado sobre si próprio e auto-

referenciado, depurado de todas as suas condicionantes extra-picturais.

Este processo de depuração formal da arte teve como consequência, na sua

génese com os premonitórios artistas românticos e mais tarde com as insubordinadas

vanguardas modernistas, marginalizar socialmente o artista (nomeadamente aquele que

cultivava uma atitude estética mais rebelde) quer em relação às suas tradicionais

produção capitalista, fazendo a arte aderir às técnicas de reprodução mecânica e serial que anteriormente haviam sido contrárias aos seus princípios.

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instituições de acolhimento, protecção e consagração, quer em relação ao seu público

tradicionalmente interessado em matéria de arte. Com efeito, as reivindicações

românticas de liberdade criativa vieram chocar com as imposições académicas de uma

concepção estética dogmática e dominante, tida como a única verdadeira e legítima.

Situação bastante delicada tendo em conta que era a Academia que até aí monopolizava

oficialmente todos os meios de produção, difusão e consagração artística, detendo a

capacidade efectiva de gerir a carreira dos artistas, estabelecendo os preços das suas

obras e responsabilizando-se pelas suas respectivas encomendas, assim como a

legitimidade de se pronunciar sobre o que seria a "verdadeira" arte, actuando como

único juíz legitimador e consagratório no interior do campo artístico.

O modelo estético associado à Academia correspondia à expressão institucional

de um sistema coerente, mas restrito e restritivo, de regras de produção e de critérios de

legitimação estética (entre as quais prevaleciam ainda os princípios da cultura

figurativa), cuja aprendizagem e aplicação conduziam directamente à aquisição do

estatuto de artista. Nestas circunstâncias, as instâncias de difusão que visavam dar

visibilidade ao corpo de produção artística aceite como tal pela Academia, ou seja, os

salões oficiais, excluíam pelo seu veredicto um conjunto heterogéneo e cada vez mais

volumoso de intenções artísticas, não reconhecendo o estatuto de arte a nenhuma forma

de expressão que se afastasse dos seus cânones. Deste modo, com o advento do

Romantismo e da "arte moderna" que é produzida sob a sua inspiração, os problemas

dos artistas não reconhecidos oficialmente tornaram-se cada vez mais prementes, com

grupos de independentes a levantarem a sua voz por condições institucionais menos

centralizadoras e menos autoritárias, e a colocarem-se esteticamente em oposição aos

académicos com iniciativas artísticas particulares e inovadoras.

Esta atmosfera de intensa efervescência cultural fez nascer consigo, na viragem

do século, um novo (sub)campo no interior do campo artístico, onde passaram a

subsistir as vanguardas mais radicais em oposição ao espaço da "arte oficial", no qual se

produzia até aí a definição dominante do que era considerado arte90. Em profundo

contraste com a homogeneidade de posições estéticas e éticas verificada entre os

ocupantes das posições deste último, o campo das vanguardas caracterizava-se pela

particularidade de nele coexistirem paralelamente uma multiplicidade de círculos

electivos descentralizados, constituídos em estreitas e reduzidas redes de relações

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apoiadas em referências e afinidades electivas semelhantes entre si (e diversas das dos

restantes círculos circundantes) que, por sua vez, orientavam as suas respectivas

estratégias de recrutamento e de fechamento.

O facto dos artistas aparecerem fraccionados em pequenos grupos

independentes, como verdadeiras tribos desenraizadas, veio dar ainda mais veemência à

imagem sagrada do artista "em exílio", vivendo à margem num mundo inconsequente,

desconectado de todo e qualquer imperativo material e/ou social, tomando o desvio

como norma de arte e de vida, sempre na esperança que num futuro longínquo o seu

valor presente lhe fosse reconhecido. Note-se, contudo, que marginal não era

inevitavelmente sinónimo de solitário. A sobrevivência do artista vanguardista via-se

bastante dependente da sua integração num determinado grupo que o identificava, o

reconhecia e o protegia como tal, grupo esse que comungava de um nome (que

geralmente o próprio artista não detinha no início da sua carreira) auto-proclamado e

codificado num programa ou manifesto, instrumentos discursivos que orientavam a

produção criativa dos seus membros e a diferenciavam publicamente da dos seus grupos

vizinhos.

Nesta perspectiva, embora seja junto destes grupos que encontramos maior

entusiasmo no culto da imagem carismática e romântica do artista sofrido e isolado, tal

não passava disso mesmo, de uma imagem esteriotipada e cultivada insistentemente,

pois o facto é que a visibilidade social do artista independente estava sempre

dependente do seu compromisso com determinado grupo, o que vem objectivamente

contrariar o valor do isolamento. A proeminância e a singularidade de um dos artistas

desses grupos só acontecia quando determinadas instâncias faziam associar ao seu

retrato, no conjunto da sua vida e obra, a excentricidade, a extravagância e a

excepcionalidade justificativas do mito romântico do artista, mecanismo que o criador

compreendeu perfeitamente, tentado dar matéria a esse tratamento exclusivo.91

90 VERGER, Annie, "Le Champ des Avant-Gardes", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 88, Junho de 1991, p. 3. 91 Em Portugal, por exemplo, vêmos constituírem-se no início do nosso século, o grupo dos "modernistas" que, manifestando algumas afinidades tardias com o impressionismo francês (grande parte dos seus membros estudou em França), inaugurou a Exposição Livre de 1911 no salão Bobone e, mais tarde, expôs nos vários Salões dos Modernistas no Porto, grupo de onde se destacou a figura de Manuel Bentes, através das suas polémicas públicas enquanto porta-voz defensor do grupo; vêmos contituír-se também, um pouco mais tarde, o grupo dos "futuristas", adeptos incondicionais do projecto de Marinetti, donde se destacaram individualmente várias figuras, como um Santa-Rita, um Almada ou um Amadeo. Mas a sua estratégia de radicalização estética era, de facto, sempre projectada e sustentada grupalmente.

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A partição em termos de disposições éticas e estéticas internas ao campo das

vanguardas era, todavia, espraiada na coesão que as unia contra a academia e a

hegemonia que esta instituição detinha no acesso e fechamento do espaço artístico. Tal

como refere Idalina Conde, apesar da estrutura interna do espaço acupado por estes

movimentos de ponta exprimir um policentrismo de referências estéticas e éticas e um

desdobramento eclético das suas posições de poder em séries paralelas, mais do que

assimétricas, a sua congruência e solidariedade endógena era sustentada pelo interesse

comum no regicídio academista: nas palavras da autora, «cada um com direito à sua

expressão, mas todos comprometidos na auto-defesa e luta contra o "establichement".»92

O processo de dissidência estética encabeçado por estes movimentos que,

orientados pelo primado da originalidade e da liberdade, tentavam a todo o custo

subverter os cânones académicos em nome da soberaneidade da sua singularidade

artística e libertar-se dos incómodos institucionais que a restringiam, viu-se intimamente

associado ao desenvolvimento gradual de novos e complexos mecanismos de difusão,

legitimação e consagração alternativos (e posteriormente substitutos) ao reconhecimento

"oficial" da Academia. As galerias particulares e os salões privados promovidos pelas

várias associações de artistas que se íam constituíndo proliferaram aceleradamente,

disputando a situação de monopólio dos salões academistas ao proporem-se como

espaços de exposição e de escoamento alternativos para aqueles artistas cuja obra

ignorava os cânones oficiais. Simultaneamente,

os indicadores de prestígio fornecidos pela instituição académica, tais como diplomas,

prémios e outros títulos ou distinções honoríficas, começaram a ser preteridos em favor

da acção discursiva e laudatória do crítico.

Abre-se assim um mercado artístico paralelo e independente, apoiado e

protegido por alguns marchands, galeristas e críticos marginais à Academia, em

alternativa ao mercado "oficial", cujos mecanismos e instâncias de produção, de difusão

e de consagração, perante o crescimento imparável de artistas rebeldes, se revelavam

92 CONDE, Idalina, O Duplo Écran. 2. Artistas..., op. cit., p. 70. Senão atentemos às palavras de Manuel Bentes, na sua resposta ao crítico Higino de Mendonça, do jornal "Novidades", que havia tratado com virulência a Exposição Livre de 1911 em que tinha participado: «Existe em Portugal um sem-número de ignorantes em coisas de arte que inventa os maiores desacertos; e com os miolos vazios de toda a compreensão artística (...) escrevem coisas, chamam-lhe críticas e espetam-nas nos jornais".» Aproveitando o ensejo, o pintor tenta, em tom de manifesto, esclarecer o público e explicar a arte que ele e os colegas de Paris querem realizar: «Queremos ser livres! Fugimos aos dogmas do ensino, às imposições dos mestres e, quando possível, às influências das escolas, porque crêmos que os artistas têm uma só escola - a Natureza; um dogma único - o Amor. (...) A arte não tem sistemas, tem emoções.» (cit. in FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XX, Lisboa, Bertrand, 1991, pp. 29-30.)

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cada vez mais impotentes na gestão monopolizada do domínio artístico.93 Foram

efectivamente estes "orgãos privados" que, paralelamente aos salões tradicionais e aos

julgamentos produzidos no âmbito académico, se encarregaram das funções básicas que

estas instâncias cumpriam, ou seja, o reconhecimento do talento e do valor, assim como

a garantia de uma remuneração para o cada vez mais vasto conjunto de artistas que se

queriam independentes e cuja obra, pelas suas características, não tinha lugar dentro dos

circuitos oficiais de exibição e legitimação.

A saturação destes mesmos circuitos pela sua incapacidade (e preconceito) em

absorver o produto final dos grupos de artistas dissidentes que se constituíam e em

93 Esta é a opinião de Anne Cauquelin, para quem a palavra de ordem "contra a academia" continha muito da constatação da impotência desta instituição em continuar a gerir o domínio da arte: o sistema académico em França oferecia apenas uma escola, a de Belas Artes, e um só Salão, o de Paris, pelo que não soube desenvolver e cultivar os diversos mercados que potencialmente existiam entre um público de compradores que se alargava, assim como, correlativamente, encorajar a identificação das individualidades artísticas que apareciam com os seus respectivos mercados (in A Arte Contemporânea, Res-Editora, Porto, 1993, p.27). Isto mesmo quando tenta desesperadamente colmatar a pressão exercida pelo número cada vez maior de artistas não admitidos ou excluídos das manifestações académicas, ao organizar em 1863 o célebre Salão dos Recusados, espaço marginal ao Salão oficial onde os independentes supostamente teriam a oportunidade de expôr e vender as suas obras. Tarde de mais, pois estes já haviam encontrado um espaço de legitimação e de difusão artística mais dinâmico e funcional que o da Academia e do seu Salão anual. Diante deste fracasso, em 1881 o Estado francês abandona oficialmente a organização do Grande Salão, e o poder da Academia no espaço das artes vê-se cada vez mais reduzido. A tentativa de abrir um mercado paralelo ao da Academia foi também tentada em Portugal, a começar com a fundação, no início dos anos 60 do séc. XIX, da Sociedade Promotora das Belas-Artes, cujo objectivo central seria o de alargar a protecção oficial da Academia Nacional, com as suas irregularíssimas exposições trienais, e de estimular o comércio de artes em Portugal, como pode ser lido nos seus estatutos: «excitar a emulação entre os artistas portugueses, propagar o conhecimento e facilitar a venda das suas obras, por meio de exposições públicas anuais; e protegê-los com a aquisição de objectos de arte expostos.» (cit. in FRANÇA, A Arte em Portugal no século XIX, op. cit., Vol. I, p. 431). Aliada a esta acção de dinamização, quis também a Promotora responsabilizar-se pelo desenvolvimento da crítica de arte em Portugal, que se estendia então pelas colunas dos jornais. Não conseguindo realizar o seu projecto inicial de editar uma revista própria especializada em Belas-Artes (nem os cursos nocturnos, nem as conferências que projectara então realizar), foi dar o seu apoio, a partir de 71, à revista "Artes e Letras", originarando, pelas sua manifestações e empenhamento, o florescimento de uma crítica de "noticiaristas de jornais". Os projectos de alargamento do mercado de artes foram também apropriados pelo "Grémio Artístico" (surgido em 90 na tentativa de estabilizar o "Grupo do Leão" - grupo de artistas frequentadores do café Leão de Ouro - que crescera e dispersara-se), que estabeleceu como seus fins «promover a cultura das artes plásticas em todas as suas manifestações e defender os interesses da arte nacional», através da organização de salões anuais, com prémios de medalhas, da manutenção uma exposição permanente, da construção uma biblioteca e de promover aulas de estudo artístico, alargando assim o âmbito da acção da Promotora, definido trinta anos atrás (in FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., Vol. II, p. 84). Esta agremiação, por sua vez, fundiu-se mais tarde com a Promotora e deu origem à Sociedade Nacional de Belas Artes, instituída em Março de 1901 com os mesmo fins. A par desta e tentando esgrimir contra o seu centralismo (que se viu substituír o centralismo da tradicional Academia oficial), popularam alguns outros salões informalmente organizados por alguns grupos de artistas marginais a esta instituição.

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equilibrar a décalage que deste modo se verificava entre a oferta e a procura artística,

traduzir-se-á, na viragem do século, no recuo da dominação da Academia sobre a vida

artística, perdendo o monopólio que detinha na definição e difusão da obra de arte

legítima e na consagração do seu criador. A transmissão de poderes faz-se em direcção

a todo um conjunto de agentes mediadores que passam a intervir tanto no lançamento e

distribuição dos produtos artísticos, como na sua própria concepção e recepção, a partir

daqui responsáveis pela definição do valor cultural e económico da obra de arte, pela

produção do seu sentido e pela consagração do seu autor.

Descobre-se então uma nova situação institucional para a arte moderna,

transformação essa que é descrita e analisada por Bourdieu como um processo de

institucionalização da anomia. Para este autor, com esta «espécie de bancarrota do

banco central do capital simbólico em matéria de arte» que constituía a Academia, «o

universo de produtores de obras de arte, deixando de funcionar como aparelho

hierarquizado controlado por um corpo, institui-se pouco a pouco como campo de

concorrência pelo monopólio da legitimidade artística: ninguém pode, para o futuro,

arvorar-se em detentor absoluto do nomos, mesmo que todos tenham pretensões a tal

título. A constituição de um campo é, no verdadeiro sentido, uma institucionalização da

anomia. Revolução de grande alcance que, pelo menos na ordem da arte se vai fazendo,

elimina qualquer referência a uma autoridade suprema, capaz de resolver em última

instância: o monoteísmo do nomoteta central cede o lugar à pluralidade dos cultos

concorrentes dos múltiplos deuses incertos»94.

De facto, pluralidade e complexidade são as principais características impressas

no campo artístico no final de Oitocentos, decorrentes não só do florescente crescimento

de intenções artísticas distintas levadas a cabo pelos vários grupos de artistas

independentes que surgiram, como também do considerável aumento de instituições e

grupos profissionais intermediários implicados na sua produção, circulação,

conservação e consagração artística, como ainda da diferenciação correlativa das

funções e operações que cada um desses mediadores tende a assegurar. O espaço

intermediário entre o criador e o fruidor povoa-se de um grande conjunto de

protagonistas "particulares", e os meios de produção de valor e de sentido sobre as obras

de arte, assim como de legitimação e consagração dos seus criadores, até aí

monopolizados pelas instâncias oficiais, tornam-se nessa época objecto essencial de luta

94 BOURDIEU, O Poder Simbólico, op. cit., pp. 277-279.

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entre esses novos protagonistas, com cada um deles a tentar impôr aos outros a

redefinição dos papeis e competências que lhes fosse mais favorável e conveniente.

Temos então o esquema a complicar-se em relação à época anterior, na medida

em que a gama de actores e instituições participantes na selecção e na homologação das

obras e dos seus respectivos criadores é a partir daí cada vez mais numerosa,

fragmentada e complexamente relacionada, situação que nos seus traços gerais se

prolonga até à actualidade, onde encontramos uma cada vez mais acentuada

pulverização e valorização das funções mediadoras no universo cultural. O novo sistema

institucional inaugurado põe em lugar de destaque a figura do marchand e/ou do

galerista independente, conhecedor especialista em arte contemporânea que, cumprindo

a importante função de promoção económica desta, veio evitar ao pintor os

inconvenientes simbólicos da auto-negociação dos seus trabalhos, assim como, muitas

vezes, resolver a falta de fundos e de estímulos económicos para a sua produção.

Concomitantemente, tanto os artistas como os comerciantes de arte estavam igualmente

interessados em alguém que divulgasse, traduzisse e valorizasse esteticamente as suas

obras junto do público, o qual, na maioria dos casos com satisfação, procurava e

aceitava de bom grado orientações para mais depressa seleccionar e melhor

compreender a arte que se ía produzindo, nem sempre fácil e imediatamente entendida.

Com efeito, se até meados do século XIX a produção artística em geral veiculava

mensagens facilmente inteligíveis no interior do corpo social, devido ao seu conteúdo

descritivo e à sua forma figurativa, com os movimentos românticos e vanguardistas a

eliminarem definitivamente os vínculos com a representação natural dos objectos e a

estabelecerem novas relações pictóricas entre elementos abstracta e livremente criados,

num gradual processo de entropia estética, já atrás sinteticamente descrito, a arte

começa a desenvolver-se no sentido de sofisticadas experiências já não reconhecíveis

como tal, de forma evidente e directa, no património cultural do cidadão comum,

dissociando-se dos gestos e mentalidades dominantes. O sentido da obra vai-se tornando

num "bem" escasso e o seu valor incompreendido. Situação complicada esta, se

considerarmos que ao abolir o conteúdo figurativo do objecto de arte e ao aderir a novos

meios técnicos e materiais de expressão artística, o criador afastava-se não apenas da

instituição que tradicionalmente geria a sua carreira e que lhe garantia a segurança de

que precisava, mas também do quadro cultural de referência de um público interessado

em coisas de arte que se extendia cada vez mais e que, em alternativa à Academia,

potencialmente o iria compensar da segurança perdida, enquanto seu consumidor,

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público esse, todavia, que se encontrava acomodado ao modelo estético dominante do

naturalismo realista.

É nesse duplo afastamento que é deixada uma larga margem de manobra à

acção dos intermediários culturais, nomeadamente do crítico, que veio a desempenhar a

função primordial de elo de ligação do mundo das artes com os reduzidos (mas em

expansão) segmentos sociais que por elas se interessavam, (re)unindo público e artista,

levando o primeiro a contactar com o trabalho do segundo, tentando fazer compreender

o seu valor e o seu sentido, passos essenciais à sua posterior aquisição. Acompanhando

de perto a actividade dos novos grupos de artistas que se constituíam, ou até mesmo

integrando esses mesmos grupos e participando na concepção dos seus manifestos, nele

é delegada a função de mandatário público do grupo, autorizado pelo próprio grupo a

expressar e a difundir publicamente os seus temas e intencionalidades programáticas, os

quais muitas vezes ajuda a definir.

Funcionando frequentemente como seu elemento de agregação, não só pelo

facto de lhes encontrar uma denominação comum e um sistema de pensamento

caucionador da sua programática de acção, fornecendo assim um meio de se

demarcarem num espaço de concorrência cada vez mais aguerrida, como também pelo

facto de muitas vezes ser ele próprio a fazer agrupar o grupo em torno da sua pessoa e

do seu projecto de criação, nele figurando como elemento central e fusionista, o crítico

vem assumir então no seio dos movimentos vanguaristas o papel de porta-voz

mandatado de agir discursivamente em nome do grupo de que é cúmplice e com o qual

convive de perto, não só intelectual como vivencialmente, e sobre o qual vai construir a

sua própria reputação como crítico.

O círculo é então perfeito: se por um lado, o grupo só existe objectiva e

publicamente por delegação a um porta-voz que fala em seu nome, por outro, o nome do

seu respectivo porta-voz é feito em consonância directa com o nome que faz para o

próprio grupo. Num círculo de legitimação e de consagração recíproca, formavam-se

assim frequentemente pares, ou até muitas vezes trios que se sustentavam e se

protegiam entre si: artistas com os seus críticos e os seus marchands específicos,

marchands com os seus críticos e os seus artistas, personagens que se acotovelavam

constante e voluntariamente numa estreita união entre laços de amizade e afinidades

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estéticas e intelectuais. E é de realçar que esta situação não é particular às Belas-Artes,

pois percorre todos os domínios artísticos e literários na época95.

Desta forma, o poder de celebração e de institucionalização do crítico no interior

do campo artístico aumenta consideravelmente a partir do final de Oitocentos, na

medida em que a sua acção discursiva se torna indispensável quer como aliada da acção

criativa do artista e da acção comercial dos agentes propriamente económicos que

pretendem introduzir a sua obra no mercado, quer como auxiliar e orientador do seu

potencial público comprador e/ou contemplador, ficando aquele agente directa e

manifestamente incubido da produção de sentido e de valor estético sobre o que é

fabricado e comercializado no mundo artístico. Nesta perspectiva, vemos o crítico a

tomar foros de personagem principal na cena artística dos finais do século passado não

só em consequência das transformações institucionais que a revolução cultural

romântica desencadeou, mas também, posicionando-nos num nível de análise mais

amplo, nas próprias condições socio-económicas que as possibilitaram, com a

estruturação definitiva de uma nova organização económica e social.

De facto, o processo de libertação que o artista moderno entendeu prosseguir

face ao centralismo e autoritarismo do sistema académico não decorreu efectivamente

apenas em virtude da difusão dos ideais românticos da liberdade e da originalidade

estética, mas encontrou-se igualmente associado às condições de liberalismo económico

criadas no seio da sociedade global durante essa altura, paralelas ao crescimento e

enriquecimento de uma classe burguesa, condições essas que estiveram objectivamente

na base da disponibilidade para a difusão de tais valores. Ainda que relativamente longe

da generalização da mercadoria cultural e do interesse em relação ao chamado "grande

público", já desde meados do século XVIII se vinha a assistir a um crescimento

contínuo do mercado artístico, consubstanciado quer no constante aumento da produção

neste domínio, quer no alargamento do seu público potencialmente interessado,

95 É neste contexto profundamente caracterizado pela promiscuidade manifesta ao nível das relações que se teciam entre os diversos agentes do campo artístico na viragem do século, a qual dotava a vida cultural dessa época de um espírito militante e revolucionário já difícil de encontrar nos nossos dias, que encontramos as razões históricas que justificam a tradicional acusação feita ao crítico de integrar verdadeiras "capelinhas", utilizada quando se quer pôr em causa determinada argumentação sua. Numa atmosfera, como a actual, em que constantemente se apela ao ascetismo e à independência entre prática crítica e relações interpessoais com os diversos agentes culturais, essa acusação implica a ideia de que as finalidades subjacentes à argumentação do crítico acusado não são de ordem estética mas apenas de ordem pessoal, visando interesses que extrapolam o desenvolvimento da pesquisa estética em si.

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composto predominantemente pelas fracções de uma burguesia comercial e industrial

que se ía constituindo.

No entanto, em meados do século XIX o processo de penetração do capital na

produção, circulação e consumo cultural começa a acelerar, proporcionando o

desenvolvimento de uma nova racionalidade económica no domínio artístico. As obras

de arte tornam-se cada vez mais valor economicamente cotado, bem de consumo

susceptível de investimento de capital com perspectivas de valorização ou de

desvalorização, e a produção artística começa deste modo a ser tratada como bem

económico ou mercadoria, sujeita às leis gerais da economia de mercado: ao invés do

artista trabalhar para atender a uma procura previamente estabelecida, constituída em

grande parte por membros ou instituições do Estado ou da Igreja, ele passa a trabalhar

directamente para o mercado, onde a relação de encomenda-execução transforma-se

decididamente em relação de oferta e de procura.96

O processo de mercantilização do bem cultural não aparece desconexado da

mudança ocorrida no quadro de valores dominantes e na própria estrutura social da

época, que faz nascer um novo e alargado público admirador e comprador de arte entre

a burguesia que, com o avanço do modo de produção capitalista, ficava a deter um forte

capital económico e rapidamente ascendia a posições social e politicamente dominantes,

procurando investir conspicuamente na cultura. Por outro lado, os valores

democratizantes e igualitários preconizados pela Revolução Francesa também se

repercutiram a esse nível do domínio cultural e artístico, incentivando uma certa

tendência para a nivelação cultural que foi progressivamente proporcionar o

alargamento do público e o acesso deste a determinados bens e serviços culturais que,

anteriormente, lhes eram socialmente restringidos. É a génese da conhecida

96 PINHO, Diva Benevides, A Arte como Investimento. A Dimensão Económica da Arte, São Paulo, Nobel-Edusp, 1989, p.43. Note-se, todavia, que nestes primeiros tempos do alargamento do mercado de artes, os investimentos dirigiram-se prioritariamente para a arte mais tradicional, dita "clássica" ou figurativa, pois os vários segmentos de consumidores potencialmente interessados nesse mesmo investimento ainda se encontravam pouco sensibilizados para uma arte mais heterodoxa. Em Portugal, designadamente, nem mesmo essa arte mais tradicional encontrava escoamento fácil, como refere José-Augusto França: «vítimas passivas ou activas, pacientes ou exasperadas, resignadas ou protestando, os artistas portugueses do romantismo, agrupados embora no "salon" da Promotora cujo sucesso rapidamente se deteriorou, sofreram a indiferença do ambiente - a "criminosa indiferença do público português e principalmente das classes mais abastadas ou mais ilustradas por tudo o que diz respeito às artes imitativas"...», indignava-se assim um dos nossos "noticiaristas de artes" em 79. (in FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., Vol. I, p. 464.)

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Democratização Cultural, expressão que rapidamente se popularizou, não sem polémica

e alguma contradição, junto do mundo intelectual e político da época.97

Nesta perspectiva, depois da era da Academia como tipo de organização social

para a arte, inaugurada em pleno Renascimento paralelamente e em oposição à era da

Corporação, com a chegada à segunda metade do século XIX vemos iniciar-se ainda

insapientemente a era do Mercado, com os salões e as galerias privadas a substituírem-

se aos salões oficiais como espaços de comercialização, com uma difusão restrita a

querer ser substituída por um consumo mais extensivo, e com a transição da situação na

qual a Academia passivamente servia o gosto dos seus patronos, reflectindo o

favoritismo destes, para a situação em o artista produzia para um mercado que se

constituía livremente, embora sempre diminuto.

Todavia, tal como assinala Maria de Lurdes Lima dos Santos, «se, por altura da

revolução cultural romântica, o dito alargamento representava um factor de

emancipação para o autor-criador, solto, enfim, dos laços de dependência para com o

patrono, cedo esse público constituiria uma nova sujeição, tanto mais humilhante quanto

lhe aparecia como uma massa anónima albergando gente ignorante, social e

culturalmente pouco qualificada»98. De facto, este novo público surgia para o artista

romântico, intransigente em relação à liberdade da sua criatividade recentemente

conquistada, como um potencial novo foco de contingência que poderia vir a

comprometer a visão demiúrgica construída em torno da sua imagem social e na qual

ele próprio investia, assim como pôr em questão a sua fervorosa crença no princípio da

arte pela arte, desinteressada de qualquer interesse que não fosse o interesse

propriamente artístico.

Pretendendo-se o Heroi único e solitátio da Arte, qual demiúrgo criando a obra

de uma vez por todas, livre e independente de todas e quaisquer instâncias, este novo

artista, euforicamente autónomo, proclamava a irredutibilidade do seu projecto criador

não só contra os cânones estéticos da Academia que estrangulavam a sua criatividade,

como também indiferente aos valores culturais dominantes no gosto do público e contra

a indiferença do público, contra o público, nomeadamente esse público burguês e

incompetente, de vesgo olhar comercial e atitude ostentatória, com arreigado desprezo

97 Os homens do romantismo entendiam a necessidade democrática da prática e da compreensão artística tal como os anteriores, em situação cultural diversa, haviam entendido a sua necessidade aristocrática. De notar, contudo, que apesar de não ser inteiramente vã, os princípios da Democratização Cultural não significaram de modo algum, na prática, a total eliminação da desigual distribuição de haveres e saberes culturais.

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pelo ideal da arte pela arte. A arte não académica tornava-se então não apenas anti-

popular como impopular, passando então, paradoxalmente, a estar em discordância com

os interesses e quadros de referência culturais dominantes do público e, ao mesmo

tempo, a depender cada vez mais desse mesmo público, seu potencial sustentáculo

enquanto comprador.

É neste contexto, profundamente marcado pela substituição de uma fruição

estética imediata e "afectiva" para uma outra que se que propõe produzir um "prazer

inteligente" e reflexivo, que a hostilidade ou indiferença entre artista e público mais

conservador em relação à arte moderna emerge. No momento em que esta começa a

opôr-se conscientemente à natureza e a renunciar a uma aparência figurativa, numa

atitude de insubordinação face às convenções académicas relativas aos temas e meios de

expressão para os tratar e possuída por uma "vontade de estilo" pessoal, o vocabulário

aparentemente universal das formas e cores começa a ultrapassar a capacidade de

compreensão imediata de um vasto público a priori interessado na sua apropriação,

público esse que, na melhor das hipóteses, quando não a renuncia, espera sobre ela

esclarecimentos e explicações. Os sistemas de signos não-naturalistas introduzidos pela

pintura dita "abstracta" tornam-se dificilmente acessíveis ou até mesmo ininteligíveis

para o observador comum, e note-se que não é só o profano que não consegue penetrar

no mundo estranho e fantástico das imagens não figurativas, pois também para os

numerosos espectadores cultivados cujo gosto havia sido formado pela frequência dos

tradicionais salões, estas obras aparecem-lhes desprovidas de sentido e de valor, porque

privadas de saber, nomeadamente de saber fazer. "Isto também eu fazia!", começa-se a

ouvir dizer frequentemente.

A incomunicabilidade da criação em geral e a sua demarcação relativamente às

experiências e aos interesses da sociedade, decorrente da revolta no plano formal que

caracterizou a viragem das artes para a modernidade, constitui, para Lucien Goldman, o

problema central da cultura desde o modernismo até à contemporaneidade. Nas suas

palavras, «quase toda a arte contemporânea é uma arte de recusa que se interroga sobre

a existência do homem no mundo moderno e que é obrigada, por isso, a situar-se num

nível abstracto, isto é, a deixar de falar baseada na história de um indivíduo ou até num

acontecimento vivido (...). Isto conduz-nos ao problema da compreensão da literatura e

da arte contemporânea pelo público. Como transmitir a significação de uma arte cuja

98 SANTOS, "Questionamento à volta de três noções...", op.cit., p. 700.

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linguagem se situa cada vez menos ao nível da percepção imediata, numa sociedade em

que o mesmo processo que obriga escritores a falarem desse modo impede o público,

salvos casos excepcionais e um esforço particular, de os compreender e de transpôr o

imediatamente perceptível? Eis o problema.»99

Desde que se começou a pôr tal problema, a tentativa da sua resolução passou,

em grande parte, pela atribuição ao crítico da tarefa de colmatar a falta de

inteligibilidade imediata da obra de arte, o que é notório se considerarmos a inflação

discursiva que em termos críticos aconteceu na viragem do século XIX para o século

XX, e que continuou a crescer no decorrer deste último. Daí Tom Wolf observar que a

«nossa época não é a idade de ouro dos pintores, mas das revistas e dos textos sobre

pintura», chegando mesmo a ironizar a situação ao dizer que «a arte moderna tornou-se

inteiramente literária: as pinturas e outras obras só existem para ilustrar o texto.»100

Embora não sejamos tão radicais como a preposição anterior, não podemos deixar de

constatar que, de facto, a depuração e auto-referenciação da arte e a inflação do discurso

crítico foram processos que caminharam em paralelo, sustentando-se reciprocamente.

Numa época em que a arte se tentava desprender do comodismo da Academia e

dos seus mecanismos de legitimação simbólica e de difusão pública, ficando, por

consequência, à mercê de uma clientela burguesa que, em vão, tenta compreendê-la, foi

o crítico que veio de facto assegurar publicamente o papel de mediador simbólico entre

a esfera da criação e a esfera da fruição e consumo artístico, tentando alargar o

entendimento da nova arte que se ía fazendo e aplanar o caminho dos novos factos

visuais junto do seu público. Propondo-se seguir a par e passo os acontecimentos

apresentados publicamente como artísticos, com a intenção declarada de avaliá-los na

sua dimensão estética e de esclarecer os seus significados, funcionando deste modo

como orientadora dos interesses e escolhas estéticas dos públicos para que escrevia,

tentando simultaneamente tornar-lhes as obras mais acessíveis e inteligíveis, a prática

crítica tende assim a ocupar um lugar significativo na relação que se estabelece entre o

mundo da arte e os parcos segmentos do espaço social que para ela olham com

curiosidade.

Esse dispositivo de mediação discursiva era tanto mais necessário quanto, numa

época em que a Democratização Cultural constituía palavra de ordem, fruto dos valores

99 GOLDMANN, A Criação Cultural na Sociedade Moderna - Para uma Sociologia da Totalidade, Lisboa, Editorial Presença, 1976, pp. 71-72. 100 cit. in PINHO, A Arte como Investimento..., op. cit., p. 69.

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igualitários proclamados pela Revolução Francesa, se pretendia que a arte e os restantes

produtos de cultura fossem acessíveis (senão material, pelo menos simbolicamente) a

toda a sociedade. Advogando a inadmissibilidade de que a fruição e compreensão da

arte estivesse reservada apenas a um círculo restrito e privilegiado de conhecedores, a

crítica aparece então arvorada de uma missão formativa e civilizadora, quase tutorial,

assumindo o estatuto de actividade ao serviço do consumidor, a quem ofereceria uma

interpretação e avaliação "justa", adequada ou até mesmo científica, das obras artísticas,

lançando uma ponte sobre o vazio que se criava entre o artista e o público.

Lopes de Mendonça definia assim, em 1849, a função social da crítica: «o seu

papel é aconselhar o talento e revelá-lo ao público - ao público que num país tão pouco

dado às letras, nem sempre é bom juíz dos esforços conscenciosos do poeta.»101 A

função social civilizadora e formativa da crítica vem, aliás, a par da própria função

social que era apontada aos jornais na época, onde o crítico começava a trabalhar: tal

como refere Maria de Lurdes Lima dos Santos «o jornalismo aparecia ao intelectual de

Oitocentos como um instrumento privilegiado para compensar as carências de uma

escolaridade insuficiente ou irregular, permitindo uma distribuição democratizante de

conhecimentos (...). Esperava-se que os jornais possibilitassem o alargamento da

instrução ao maior número possível de leitores e deste modo exercessem uma função

civilizadora, indispensável à promoção social dos cidadãos e ao progresso do país.»102

Esta dimensão de vocação pedagógica, como vimos atrás, no final do capítulo

1.2., ainda se encontra bastante arreigada entre a crítica que actualmente se faz em

Portugal, nomeadamente tendo em conta as próprias características morfológicas da

produção e condições de recepção da arte contemporânea desde que se iniciou o seu

processo de entropia e de radicalização estética. Senão vejamos as palavras de Cerveira

Pinto, crítico de artes plásticas no Independente, acerca desta questão específica: «Hegel

dizia que a morte da arte vinha de facto de ela estar condenada à compreensão, do

facto de estar condenada a ser apreendida por um conceito. E, de certa maneira, as

vanguardas do século XX têm tentado contrariar essa entropia através de estratégias

de incompreensão, tentando transformar a arte em algo que resista permanentemente à

compreensão como forma de uma certa maneira contrariar a sentença hegeliana, o fim

da arte. Isso faz com que a arte contemporânea, em particular as artes de vanguarda,

101 Cit. in SANTOS, Intelectuais Portugueses na Primeira Metade de Oitocentos, op cit., p. 306.

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se tenham caracterizado basicamente por uma permanente distorção formal que conduz

a uma incompreensibilidade e a uma incompreensão do próprio objecto artístico. E é

nessa incompreensão que a arte do século XX, de certa maneira provocatoriamente,

gerou um contexto novo de recepção estética. Uma espécie de recepção estética

perversa, ou seja, é uma recepção estética que se verifica exactamente na estupefacção

do receptor, no facto dele ser confrontado com um mundo, com uma barreira de

incompreensão, de incompreensibilidade. É nesse sentido que os críticos, ou os estetas,

ou os teóricos da arte, procuram fazer ou estão condenados a fazer a descodificação

dessas obras de arte.»

E note-se que tal fenómeno, como já referimos, não foi exclusivo das artes

plásticas. Também José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público, encontra as

razões históricas para o fenómeno de inflação crítica que constata ter existido, nos

últimos anos, na sua àrea de intervenção crítica, como decorrente do processo de

entropia que igualmente ocorreu na criação cinematográfica, deixando o seu público

adepto, face a este novo cinema, desprovido de instrumentos conceptuais para a sua

inteligibilidade imediata: «Acho que houve uma altura em que o trabalho crítico foi

hiper-valorizado, (...) (porque) a ideia de opinião começou a ganhar um peso enorme,

porque por alguma razão arranjou um mercado. (...) provavelmente, porque as obras

cinematográficas perderam um contacto emocional imediato, que não é imediatista,

com o público, e começaram a ser obras que sobretudo se movimentavam no plano da

cultura, havia a necessidade do grande interpretador, ou seja, alguém que dê acesso,

"que me esclareça a que é que no fundo se refere aquele plano. Parece-me que ele se

refere a algumas coisas mas ainda não sei bem o quê". Portanto, há uma elaboração da

linguagem cinematográfica, em que ela se começa a referenciar à própria história do

cinema, desloca-se da própria realidade quotidiana para outra realidade que é a

realidade cultural, para as referências. (...) Donde os discursos sobre esses discursos

começarem a ser muito, por um lado, mais fáceis, por outro lado, mais necessários, e

por outro lado, mais prolixos, ou seja, começaram a haver mais discursos sobre isso,

porque as próprias obras proporcionavam. Começou a haver uma vontade de

confrontar o discurso sobre o discurso do cinema, vários discursos, vários pontos de

vista.»

102 Idem, pp. 329-330.

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Deste modo, a contaminação da "pureza", da singularidade e da liberdade

exigida ao seu projecto criador pelas necessidades e interesses de um público "não

ilustrado" foi um fantasma afastado da consciência do artista em muito através da acção

do crítico. Efectivamente, para que a burguesia estivesse em condições de absorver a

produção artística fabricada e distribuída no mercado independente que se consolidava,

era necessário que ela fosse esteticamente cultivada e se mantivesse informada do que ía

sendo produzido no domínio artístico, tentando que se delineasse na opinião pública um

movimento em favor da margem crescente de artistas recusados pelo sistema

académico. Tais tarefas vão ser tomadas a cargo do crítico, personagem que se até aí se

limitava a acompanhar com os seus comentários a obra de tal artista ou conjunto de

artista, oferecendo-lhe a sua caução intelectual, a partir daí vai ser o elo indispensável

ao seu lançamento, promoção, interpretação e consagração simbólica na esfera social.

Oferecendo a segurança de uma interpretação e de uma avaliação legítima

porque erudita, ele tirava o leigo burguês da sua inconfortável e supostamente precária

posição de produtor de sentido e de valor, remetendo-o para a posição mais fácil de

consumidor. O crítico veio então vingar e proteger o artista, colocando o próprio

público, filisteu, na situação de excluído de qualquer processo de apreciação e

interpretação competente da obra de arte. Quando um dado segmento do público ousava

afirmar - "Mas isto não é arte!..." -, logo em seguida interpunha-se um crítico que,

trocando-lhe as voltas, afirmava e argumentava veementemente o contrário,

conseguindo muitas vezes convencê-lo ou, pelo menos, deixá-lo na dúvida da sua

incompetência. Por outro lado, também é de notar que a imagem do crítico como pessoa

cultivada e de sensibilidade apurada constituía a imagem de alguém que a burguesia

admirava e confiava quando, ao querer dotar-se da "boa educação" e das "boas

maneiras" características da aristocracia, procurava familiarizar-se com o seu "bom-

gosto" e com as "coisas de cultura". Não esqueçamos que o acesso tanto material como

simbólico a estas, até há bem pouco tempo, se encontrava restrito aos meios

aristocráticos, religiosos e intelectuais, acesso cuja entrada o público burguês forçou via

aquisição e ostentação de riquezas culturais, mais como sinal de boa vontade cultural e

de êxito social que de à-vontade cultural.

No entanto, ainda que a sua função manifesta tenha sido, desde a sua génese, a

de proporcionar ao consumidor uma mais fácil acessibilidade e inteligibilidade da arte,

tal muitas vezes não acontecia desta forma linear em determinadas circunstâncias. E não

acontecia designadamente com a crítica mais próxima e mais afecta ao campo das

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vanguardas, no interior do qual o crítico deixava objectivamente de ser um delegado do

público, encarregado de orientar os seus gostos e de balizar opiniões espontâneas que

sempre era de "bom tom" darem-se durante as conversas nos teatros, cafés, tertúlias,

academias e outros salões mundanos, para tornar-se cúmplice directo do criador não no

sentido de tornar a sua arte mais acessível ao público em geral mas, pelo contrário, de

impôr a esta instância o valor da sua inacessibilidade. Nestas circunstâncias, a prática

crítica tendia a converter-se, na realidade, em actividade ao serviço do criador. Mas

expliquêmos mais detalhadamente esta posição.

3.3. MODALIDADES, PROTAGONISTAS E SENTIDOS DA PRÁTICA

CRÍTICA

Enquanto decorria a era da Academia, sendo a actividade artística concebida

como regida por um conjunto de preceitos, a única avaliação possível das obras que dela

resultavam seria a verificação da conformidade da prática a esse sistema, isto não

apenas porque os membros dessa instituição estavam convictos de que só reproduzindo

tais preceitos é que as obras seriam verdadeiramente artísticas, mas também porque, a

um nível mais latente, o poder queria que também a arte estivesse obrigada à obediência

de determinados princípios de autoridade que não o comprometessem. O valor estético

dos objectos de arte via-se assim aqui definido pela sua conformidade aos princípios

estabelecidos por aquela instituição, pressupondo-se ainda a satisfação de uma

normalidade academista que atendia objectivamente aos gostos conservadores da classe

dominante e reflectia o favoritismo dos detentores do poder.

Neste contexto de ditadura estética, em que dominava a rigidez normativa do

estreito universo simbólico da Academia, a acção dos críticos, ainda bastante limitada

aos debates que se faziam no âmbito dos seus salões e às publicações por esse espaço

eram promovidas, consistia basicamente em constatar se as regras que contextualizavam

a feitura das obras estavam nelas patentes de forma suficientemente clara, dando a sua

caução literária e intelectual àquelas que se apresentassem segundo os cânones dessa

instituição. Em termos de forma, a prática crítica mantinham-se aqui ainda muito perto

da tradição já traçada pela segunda geração de intelectuais academistas do século XVII

e posteriormente consolidada pelos mais notáveis críticos dos salões setecentistas, como

Stendhal e Diderot, tradição essa que solicitava à crítica a mera resposta pessoal ao

objecto de arte, discursivamente tratada num tom em que prevalecia a descrição literária

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sempre temperada por um certo grau de eloquência, que seria maior ou menor consoante

a expressividade sentida na obra pelo crítico.

Não se aventurando muito a avançar premissas teóricas de ordem estética, este

estilo de crítica adaptava-se perfeitamente ao tipo de obras que privilegiava, pois tendo

como base fundamental o princípio ut pictura poësis, que postulava a possibilidade de

traduzir a representação pictórica em discurso literário, limitava-se a proceder a uma

descrição textual do tema figurado, procurando na escolha das palavras e na articulação

das frases reproduzir com a mesma intensidade expressiva a perfeição do traço e a

beleza das cores, quase poetisando diante das obras. Era uma crítica ainda

marcadamente diletante, em que a eloquência mascarava a superficialidade analítica que

lhe era subjacente, decorrente da limitada preparação teórica de muitos críticos em

termos estéticos e historiográficos.

A tal situação não é alheio o facto de, neste âmbito, a prática crítica ser quase

sempre exercida por homens de letras, escritores, poetas, mesmo folhetinistas, que

transportavam a atitude romântica que detinham na àrea de criação, nomeadamente da

criação literária, para a àrea do exercício da crítica. Faltando-lhe muitas vezes uma

informação histórica e estética suficientemente aprofundada e sistematizada, ao mesmo

tempo que ignorava o absolutismo da Ciência que confortava um certo tipo de prática

crítica que se vinha a desenvolver gradualmente em alguns círculos académicos mais

restritos que os seus salões, o crítico-poeta romântico envereda assim pela via

"impressionista", fazendo passar a crítica, a par da produção artística, do terreno do

consenso razoável para o terreno da intuição individual, limitando-se a transcrever em

palavras a sua própria reacção à obra num tom laudatório ou censurante.

Baudelaire (1821-1867), por exemplo, enquanto crítico insurgia-se sem rodeios

contra aquele criticismo que, marcadamente influenciado pela corrente positivista

dominante no contexto científico da época, proclamava a necessidade do exercício

objectivo da prática crítica, exigindo dos seus respectivos agentes uma posição de

neutralidade nas formulações discursivas, apreciações e interpretações estéticas que

fizessem. Em detrimento desta atitude perante a prática crítica, ele afirmava a

"imaginação", a "sensibilidade", a "inteligência" e o "entusiasmo" como condições

essenciais ao seu correcto desempenho, elevando-a à altura de um acto de criação, tal

como a própria poesia. Nas suas palavras:

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«Je crois sincèrement que la meilleure critique est celle qui est amusante et

poétique: non pas celle-ci, froide et algébrique, qui sous prétexte de tout expliquer, n' a

ni haine ni amour et se dépouille volontairement de toute espéce de tempérament; mais

- un beau tableau étant la nature réfléchie par un artiste - celle qui sera ce tableau

réflechi par un esprit intelligent et sensible. Ainsi le meilleur compte rendu d' un

tableau pourra être un sonnett ou une élégie. Mais ce genre de critique est destiné aux

recueils de poésie e aux lecteurs poétiques. Quand à la critique proprement dite, j'

espère que les philosophes comprendront ce que je vais dire: pour être juste, c'est-à-

dire pour avoir sa raison d' être, la critique doit être partiale, passiounée, politique,

c'est-à-dire fait à un point de vue exclusif, mais au point de vue que ouvre le plus d'

horizons.»103

Temos então a afirmação de uma crítica subjectiva por excelência, sempre

parcial, apaixonada, política e exclusiva, sujeita ao erro e reivindicando justamente o

direito de errar, tendo sempre como objectivo abrir os horizontes da obra, ou seja, as

suas possibilidades de sentido. Nesta perspectiva, em total contraste e ruptura com a

crítica de inspiração positivista que se desenvolvia na altura em alguns meios

académicos que se orientavam para a pesquisa "pura" e profunda sobre as artes e a

literatura, que considerava fria e algébrica, Baudelaire propunha uma crítica cujo

objectivo seria a passagem à escrita da impressão intuitiva que a obra produz no sujeito

crítico, que se quer sobretudo inteligente e sensível.

Victor Burguin interpreta esta opção de crítica como sintoma da consolidação da

confiança burguesa na sua hegemonia política e ideológica. Citando Raymond

Williams, ele concorda que «the notion that response was judgement depend, of course,

on the social confience of a class an later a profission.»104 Com efeito, partindo

geralmente do espaço social da burguesia como "filho", o crítico que optava por

verbalizar sua resposta "espontânea" perante o objecto de arte estava, decerto, em

melhores condições para ser compreendido e aceite por aqueles que, provenientes do

mesmo meio social e cultural de origem que o seu, alargavam as fileiras do público

interessado em matéria artística, convencendo-o rapidamente da credibilidade das suas

opiniões sem que para isso necessitá-se tecer profundas e complexas argumentações

103 Cit. in MESNIL, Michel, "La critique et Thésée", in Corps Écrits: La Critique Aujourd' hui, Paris, nº23, Setembro de 1987, p. 146.

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para justificá-las. Era sobretudo a sua sensibilidade que, em contacto com a obra e

passada à escrita, vibrava em perfeita sintonia com outras sensibilidades similarmente

expostas ao mesmo objecto.

Desprovidos do capital teórico que ía sendo acumulado em algumas zonas

académicas que se dedicavam exclusivamente à investigação "pura" e à crítica "séria"

sobre artes e literatura, esta mais de carácter filosófico e/ou historiográfico e quase

sempre distanciada da produção artística contemporânea, o crítico-poeta romântico e o

seu público mais fiel refugiavam-se de facto na afirmação da sensibilidade, em

contraposição à racionalidade científica, como base primordial para uma relação

privilegiada com objecto de arte. Quando essa sensibilidade era tomada como mais

apurada e associada ao dom da palavra, como acontecia no caso do poeta ou do homem

de letras em geral, a verbalização da sua relação com o objecto de arte assumia

privilegiadamente o estatuto de discurso crítico, embora muitas vezes este se

confundisse com discurso propriamente literário.

A mera erudição literária e incompetência estética dos literatos que, numa

atitude de amadorismo esclarecido, comummente associavam à sua actividade criadora

no âmbito da literatura o exercício da crítica (e frequentemente não apenas a crítica de

arte, mas também de outras àreas culturais), aparece bem expressa nas páginas que José-

Augusto França dedicou à análise da situação da crítica de arte em Portugal no período

oitocentista: diz França acerca de Garrett, das primeiras excepções no nosso país a

escrever criticamente sobre pintores vivos, que «mais sensível do que culto, fora do

domínio literário não tinha orientação profunda. Nesse seu exemplo, de resto, se poderia

determinar o estado genérico das relações dos escritores românticos com as belas-artes.»

Os próprios colaboradores da Revista de Belas-Artes nascida em 57 tinham noção da

sua falta de capital estético, quando afirmavam que «precisavam de desculpa e de

benevolência (...) porque se atreviam a assuntos da máxima transcendência, não só

porque não tinha dirigido para aí os seus estudos especiais mais ainda pela escassez para

não dizer falta absoluta de quaisquer fontes, por piores que elas fossem, onde pudessem

colher esclarecimentos e dados para tratar das boas artes portuguesas». Este exame de

104 Cit. in BURGIN, The End of Art Theory. Criticism and Postmodernity, London, Macmillan, 1992, p. 151.

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consciência, comenta Augusto França, traduz a situação real que conhecemos desse

período do romantismo em Portugal e pode bem servir como seu comentário.105

Também Ramalho Ortigão, em 76, revelava tal situação, lamentando as suas

consequências perversas a nível do campo artístico nacional: «o mal de que os pintores

padecem não provém deles (...) provém da sociedade que eles representam». No seio

desta, «o público era, em toda a questão de arte de uma ignorância ilimitada,

assombrosa» - e como poderia esta «sociedade incolor» não ser «rebelde à pintura»? O

resumo brutal da situação era que «não tínhamos escola, não tínhamos galerias e não

tínhamos público», atribuindo grande parte da responsabilidade dessa conjuntura, «aos

nossos homens mais eminentes nas ciências e nas letras», que tinham, «na crítica de

arte, uma incompetência que compungia». Tal como refere França, «neste passo,

Ramalho criticava os Andrade Corvo, os Luciano Cordeiro, os Latino Coelho - e até ele

próprio, em certa medida... E justamente o fazia, aos vários níveis em que vimos

desenhar-se a crítica e a história da arte em Portugal, obra de curiosos, em revistas e

magazines mal orientados, desde os alvores do romantismo (...).»106 Ainda acerca deste

personagem, Ramalho Ortigão, o autor continua justificando essa sua posição: «se se

situava ao nível de um cronista, não deixava, porém, de ser situável para além do

comentário jornalístico que outros faziam mais assiduamente, mas com menos ideias

gerais e menor estruturação/reflexão estética. A crítica de arte era para ele "o mais

proeminente e o mais complexo emprego em que sse pode exercer a capacidade de um

escritor" - e ele próprio dizia não ser crítico mas "apenas um simples e modesto artista

da crítica, comunicador de impressões pessoais", para quem os estudos de arte

constituíam, "talvez, o objecto principal das (suas) curiosidades".»107 Enfim, talvez um

dilentante mais consciencioso...

Pesando os efeitos da existente relação entre críticos-literatos e as Belas-Artes,

França conclui que «a situação da crítica de arte, no seu exercício por gente de outra

ocupação literária, mostra-nos, sem dúvida, certas relações entre a arte e a literatura,

desde Garrett e Rebelo da Silva a Latino Coelho - mas, no fundo, a ligação foi parca e

duvidosa»108, isto na medida em que se, por um lado, a atenção que davam a esta àrea

de criação era mínima em relação, por exemplo, á própria literatura ou ao teatro, por

outro, essa mesma relação não se tradiziu de modo algum num incremento da dinâmica

105 FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit, Vol. I p. 391. 106 Idem, p. 464. 107 FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., Vol. II, p. 100.

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de funcionamento do campo artístico português, quer na sua dimensão de produção,

quer na de consumo. As águas por aqui continuaram praticamente estagnadas...

A frequente associação entre artistas e escritores que acontecia no ambiente

cultural oitocentista, mais uma vez demonstrando a extrema promiscuidade que, como

vimos atrás, caracterizava as relações entre os diferentes agentes culturais nessa época,

fazia parte, nas palavras de Maria de Lurdes Lima dos Santos, de uma política de apoio

mútuo que permitia a uns e a outros recolher reciprocamente alguns dividendos

simbólicos: no caso dos escritores, esses dividendos eram auferidos através da

aproximação propiciadora de acesso a um saber próprio da aristocracia cultivada; no

caso dos artistas, estes receberiam uma caução discursiva e intelectualizante para as

suas obras por parte de quem melhor representava a "arte de bem escrever e

argumentar". E note-se que o quase monopólio dos lugares da crítica por parte de

homens de letras não era particular ao caso das Belas Artes, pois também acontecia no

domínio do teatro e, embora com menor frequência, no domínio da música.109

Se bem que possamos encontrar as raízes mais profundas dessa associação junto

do clima academista característico do século XVII, onde o intelectual e o artista, muitas

vezes reunidos na mesma pessoa, se moviam livremente quer em termos de criação,

quer em termos de comentário, entre os mais diversos domínios criativos, foi apenas

aquando da revolução cultural romântica que ela emergiu de forma sistemática. Daqui

não estará decerto desligado o facto dessa revolução, apesar de depressa se ter alargado

a todos os domínios de criação artística, ter sido iniciada no domínio das letras,

encabeçada pelo movimento Sturn end Drang, o que veio não só a pôr em lugar de

destaque o poeta-escritor no panorâma cultural da época, como a suscitar uma enorme

proximidade e solidariedade entre esse personagem e os artistas em geral, que o

mandataram, enquanto dotado do dom da palavra, de enunciar, explicar e discutir a sua

produção.

Foi neste contexto que se pressupôs a existência de uma afinidade estrutural

entre a arte e a literatura, representada pelo princípio ut pictura poësis, afinidade essa

que se estenderia desde os seus conteúdos e temas, passíveis de serem transpostos

108 FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., Vol. I, p. 404. 109 Ver SANTOS, Os Intelectuais Portugueses em Oitocentos, op. cit, p. 388. No caso português, por exemplo, temos os nomes de Garrett, Rodrigo Paganino, Herculano, Castilho, Mendes Leal e Rebelo da Silva a colaborarem frequentemente em diversos jornais especificamente artísticos e teatrais, ocorrendo

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discursivamente, até à correspondência entre a perfeição do traço e o tímbre da cor e o

som da palavra, de maneira a exprimir verbalmente o mesmo registo de intensidade

expressiva atribuído à obra. Estabeleceu-se então a crença de que qualquer obra de arte

expressaria, do seu modo particular, uma poética, passível de ser transcrita

literariamente. E se assim acontecia, quem melhor que o homem de letras, romancista

ou poeta, para clarificar e transpôr em palavras a poética intrínseca à obra? Delineia-se

assim uma crítica das poéticas que, longe de teorizar do ponto de vista propriamente

estético e analítico a obra de determinado autor, partindo daí para a atribuição do seu

valor artístico, avaliava sobretudo o esforço criativo e expressivo nela contido através

da verificação das suas "possibilidades poéticas", ou seja, das suas capacidades, em

termos formais e de conteúdo, de suscitar discurso paraliterário ou até mesmo literário.

Este tipo de crítica, promovendo a descrição e o elogio poético à beleza e

perfeição do traço, adequava-se perfeitamente quer aos interesses de uma estética

académica, não só não pondo em causa como até caucionando os cânones naturalistas

que essa instituição prescrevia, quer às necessidades culturais do público não iniciado

em matéria de artes que se estendia cada vez mais e que facilmente se impressionava

com a eloquência impressa na argumentação do crítico. Este, por sua vez, era facilmente

compreendido pelas acrescidas fileiras de curiosos e amadores de arte, que admiravam o

seu dom de palavra, cumprindo assim da melhor maneira a missão civilizadora a que

propunha como actividade ao serviço do consumidor.

Quando saímos da era da Academia, em que reinava um modelo monolítico de

valores estéticos, e entramos gradualmente na era do Mercado, em que pluralidade e

complexidade passam a ser características marcantes no campo da arte, vemos

notoriamente o crítico a deixar de ser um mero intermediário passivo que se contentava

em arbitrar a conformidade ou não aos cânones académicos e em caucionar

literariamente o ideal de beleza que estes precreviam, para passar a assumir neste campo

um papel cada vez mais activo, com uma intervenção importante e poderosa nas lutas

pela legitimidade artística. Mas o facto da Academia ter perdido grande parte do poder

legitimador que detinha no campo artístico não implicou que a "arte académica" tenha

desaparecido de uma vez por todas. Por outro lado, o facto desta nova estrela, o crítico,

subir ao firmamento do universo da arte também não fez revolucionar de uma só vez a

maneira de julgar esteticamente. Assim sendo, a existência de uma multiplicidade de

também de quando em quando publicarem crónicas e artigos críticos sobre artes plásticas e/ou questões estéticas de ordem genérica em jornais especializados em literatura.

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grupos independentes de artistas em oposição aos oficiais e aos seus seguidores,

obrigou-o a escolher o seu campo de actuação. Ele vai ser a favor ou contra os

movimentos oposicionais? Vai inscrever-se ou não como agente activo no mercado

independente? Consoante se integre num ou noutro caso, as suas propostas judicativas e

interpretativas e o próprio estilo em que as propõe vão ser necessariamente diferentes.

Efectivamente, muitos críticos, apesar da sua acção discursiva já não se

encontrar obrigatoriamente enquadrada dentro dos muros da instituição académica e dos

salões promovidos sob a sua alçada, mantiveram-se mais ou menos próximos dos

valores já reconhecidos anteriormente, promovendo insistentemente os mesmos temas,

os mesmos meios de expressão artística e a mesma hierarquia querida à Academia.

Acomodados ao realismo naturalista que havia imperado até aí, continuaram a alimentar

o preconceito contra as novas tendências da arte que se desenvolviam sob os seus olhos,

e a reproduzir o estilo de crítica literarizante a que estavam habituados a praticar. Este,

por sua vez, ao ser admirado e facilmente apreendido por um vasto público, ajustava-se

aos interesses logísticos e mercantis do espaço da imprensa quotidiana e generalista,

onde o crítico conquistava lugar em detrimento da Academia e das suas publicações

restritas.

A tradição do lugar da crítica ser ocupado por homens da criação literária

continuou mesmo quando começaram a surgir os primeiros grupos de artistas

independentes e quando ambos, crítico e artista, decidiram entrar no jogo livre do

mercado110. No entanto, no seio destes grupos, nomeadamente daqueles que se seguiram

ao movimento impressionista, o estilo crítico da descrição literária e da transposição das

poéticas foi cedendo ao tom teorizador e à apreciação da forma plástica propriamente

dita, com o crítico, agora já não o literato mas o próprio pintor e/ou o ensaísta, a entrar

no detalhe estético e analítico da obra. Aqui a crítica deixou então de ser apenas uma

prática de acompanhamento discursivo da obra para se tornar numa tentativa de teorizar

conceptualmente as novas e peculiares formas plásticas que surgiam em crescendo,

assumindo um tom mais analítico e ensaístico do que propriamente poético ou

descritivo.

110 Basta recordar, entre outros exemplos, a acção de Mallarmé e de Emile Zola em prole do movimento impressionista; a acção de Apollinaire enquanto companheiro e porta-voz dos fauvre e dos cubistas, chegando mesmo a prever e a anunciar antecipadamente o surrealismo; a acção de Marinetti ao conduzir discursivamente a polémica em torno dos futuristas, tornando-se dirigente deste movimento e responsável pela sua política; e a acção de Bréton e de Cocteau ao consubstancializarem teoricamente a propostas estéticas saídas da corrente surrealista.

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Como é notório, esta modificação na forma de praticar a crítica foi a par do

processo de autonomia da forma pictórica enquanto tal, para o estabelecimento do qual

também concorreu decisivamente. Argumentando no sentido de constatar a pintura

como facto criativo autónomo do real, sem referência a qualquer sujeito empírico, a

crítica encaminhou-se ela mesma para a exploração da análise interna da obra,

contribuindo para fixar-lhe os elementos como picturalidade pura. O discurso da crítica

vê-se assim desviado da literatura para a análise propriamente plástica, preocupando-se

sobretudo em fornecer uma argumentação que não apenas "preenchesse"

semanticamente a forma pictórica, cada vez mais afastada das suas referências exógenas

e de uma possibilidade de sentido imediato, como a justificasse conceptualmente na sua

intenção artística.

Nesta perspectiva, o processo de entropia artística enveredado pelas vanguardas

foi acompanhado e sustentado por um processo de entropia da própria crítica, que se

autonomizou das suas tradicionais referências literárias por via da assumpção de um

discurso no qual passaram a dominar as referências propriamente estéticas. Tendo em

conta que o processo de entropia artística não foi exclusivo do domínio das artes

plásticas, tendo decorrido mais ou menos simultaneamente em todas as áreas artísticas

como tal consagradas nessa altura, a prática crítica que as acompanhava de perto

também não deixou de ser atingida por esse processo, daqui decorrendo a sua

desmultiplicação e especialização consoante as várias àreas artísticas em que actuava.

Tal especialização passou pela produção e reprodução de uma linguagem cada

vez mais sofisticada e "abstracta", que traduzia o domínio de todo um conhecimento

histórico e teórico específico a cada àrea artística em que a prática crítica intervinha. A

produção e o manuseamento dessa linguagem veio tornar o crítico num verdadeiro

especialista independente, autónomo quer do campo de criação, em relação ao qual se

apresentou assim ilibado de ter qualquer tipo de preparação prática enquanto criador

para legitimamente emitir uma opinião como crítico, quer do campo de consumo ou

recepção não-especializada, aos olhos de quem passou da condição de literato eloquente

e sensível, dotado do dom da palavra, para a condição de especialista que sabe do que

fala, dotado do conceito, ou seja, do conhecimento específico da área em que intervém.

Quer isto dizer que a produção e a utilização de um vocabulário eminentemente

analítico, que integrava todo um conjunto de termos filosóficos e científicos ao lado de

outros tantos criados pelo próprio crítico em função da sua intenção de profundidade

interpretativa e explicativa, em detrimento da costumada linguagem literária, veio a

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participar directamente no jogo de usurpação do terreno da crítica ao criador e do seu

respectivo silenciamento discursivo, nomeadamente ao literato, ajudando

simultaneamente na demarcação do crítico face ao receptor "comum". Por via desta

estratégia, o lugar da crítica tornou-se assim num espaço cada vez mais autónomo e

independente, com requisitos específicos em termos de competências teóricas e

históricas, mais que sensitivas e elocubrativas, exigidas à sua ocupação, muito embora

os agentes que o viessem a ocupar pudessem acumular outras actividades de âmbito

cultural nas restantes dimensões do campo artístico.

A especialização e o consequente ganho de autonomização do espaço da crítica,

nas suas várias áreas de intervenção cultural, por via da criação e apropriação (de outras

disciplinas já existentes) de um vocabulário conceptual e da sua operacionalização sobre

a produção artística contemporânea, tendo demarcado o exercício crítico do exercício

literário, o crítico do literato ou do artista diletante e "bem-falante", é um fenómeno que

nos aparece testemunhado em algumas das proposições lançadas pelos nossos

entrevistados:

«De facto, a crítica como actividade autónoma, autónoma no mesmo sentido em

que podemos falar da autonomização da arte, é qualquer coisa recente e que só se dá

neste século. Portanto, a crítica reconhecida como campo de especialização, como um

campo de saber, por vezes um saber quase positivista, advém do facto de correntes da

teoria literária neste século terem fornecido determinado número de mecanismos

conceptuais para se fazer crítica, o que tornou a crítica numa actividade especializada,

e tornou o crítico independente do próprio escritor. Isto é, o escritor detém um tipo de

saber, o crítico detém outro tipo de saber. Um manipula e trabalha com um material, o

outro trabalha com outro material diferente, muito embora o material com que o crítico

trabalha - os conceitos, os códigos, etc - são leis deduzidas a partir das obras, do

estudo das obras. A partir do momento em que o crítico passou a ter uma linguagem

autónoma - que caiu obviamente em exageros, porque por vezes autonomizou-se

demasiado e quase perdeu-se de vista aquilo que era a obra original -, deixou de ter

sentido dizer que o crítico é um artista falhado.» (António Guerreiro, crítico de

literatura no Expresso)

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«Sei que há muitos críticos de arte que têm formações completamente diferentes

daquilo que exercem, mas a maioria deles são de facto pessoas formadas em Belas-

Artes. Vou lhe dar um exemplo: o Eurico Gonçalves, o Fernando de Azevedo, a Sílvia

Chicó, estou-lhe a falar só de alguns. Depois há pessoas que não sendo propriamente

da área de pintura ou de escultura, são historiadores da arte, o José Augusto França, o

Rui Mário Gonçalves, o João Pinharanda, toda essa gente. São pessoas que não sendo

propriamente artistas, estão dentro de uma área que trata esses pontos. Devo-lhe dizer

que apesar de tudo, um indivíduo sendo pintor ou escultor, tem uma certa vantagem

sobre o crítico de arte que vem de uma formação eminentemente teórica, porque sabe

fazer as coisas. (...) De qualquer maneira, exceptuando pessoas muito excepcionais, as

pessoas que vinham da formação de pintura faltava-lhes, não lhes falta agora,

formação teórica que completasse essa área puramente técnica. (...) O que eu penso

que é realmente fundamental é uma pessoa ter uma bagagem sobre história de arte

portuguesa, sobre história de arte internacional, sobre estética, sobre filosofia, sobre

sociologia, obviamente. No fundo, ter uma bagagem que lhe permita elaborar um

discurso, porque o problema aqui também é um problema de ser capaz de elaborar um

discurso. (...) E realmente um objecto material põe-nos problemas muito complicados

de explicitar. Como é que eu vou explicar que aquele quadro formalmente está bem

equilibrado? Porque tem um peso, porque tem uma distribuição lumínica de uma certa

maneira, mas é preciso saber esses termos todos, é preciso dominar essa linguagem,

tudo isso. Ora, quem não sabe isso, dificilmente consegue expressar aquilo que viu.

Pode ler muito bem o quadro, mas depois não consegue transmitir ao público aquilo

que leu. E aí fica uma coisa que não é uma leitura visual. (...) Porque se nós somos

demasiado criativos, fazemos como fazia o Diderot, que começava a olhar para o

quadro e a contar a históra do passarinho e da menina que estava lá representado. E

então acabou a crítica e passou a haver um texto muito bonito do Diderot. (...) Porque

realmente há um discurso e há um conjunto de aparelhos operatórios que permitem

trabalhar.» (Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras)

É nesta óptica, onde o talento analítico se sobrepõe ao talento criativo e

estilístico para a ocupação do lugar do crítico e em que o acesso a este pressupõe a

posse de determinadas competências teóricas especializadas, que os nossos

entrevistados unanimemente rejeitam as premissas, normalmente avançadas pelo pólo

da criação, de que "o crítico é um artista frustrado", ou de que ele "não deve falar sobre

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o que nunca praticou". No entanto, o crítico no estatuto de especialista independente

foi, em Portugal, relativamente tardio por comparação aos principais centros de

produção artística internacionais. Segundo o testemunho de Júlio Conrado, as

reivindicações de especialização analítica na área da crítica de literatura, somente

começaram a acentuar-se em fins da década de 60, princípios da década de 70, quando

pela mão de Jorge de Sena, Melo e Castro e, com maior enfase, Eduardo Prado Coelho,

se começou a praticar uma crítica em moldes universitários, intimamente relacionados

com o paradigma estruturalista proposto por Barthes e com outros paradigmas

importados das diências sociais e linguísticas (semiótica, psicanálise, sociologia, etc),

em algumas revistas especializadas da altura.111

Na área das artes plásticas, foi também somente depois dos anos 50 que a crítica

se começou a fazer já não por literatos diletantes e jornalistas cosmopolitas, mas por

artistas com alguma formação estética teórica e, já nos anos 60, por especialistas de

competência teórica adquirida e reconhecida institucionalmente. Segundo José-Augusto

França, «a crítica de arte em Portugal, pelos anos 50 fora, iria, de resto, evoluindo. Por

um lado, ela continuava a cargo de jornalistas de boa vontade, como (e eram os

principais, por prática já antiga) Luís Teixeira no "Diário de Notícias" (e depois Artur

Maciel), Artur Portela no "Diário de Lisboa" e Julião Quintinha na "República",

"repórteres de arte", como acusara um jornal especializado, em 47 (mais concretamente

o "Horizonte", em que se lê, anonimamente, que "em Portugal somente existem

repórteres de arte - pessoas que vão às exposições fazer relatos, às vezes literários").

Mas, por outro lado, já íam-se encontrando nomes mais ou menos alheios aos quadros

profissionais dos quotidianos, como Celestino Gomes (médico, escritor e desenhador),

aos fim dos anos 40, e depois, desde cerca de 51, no início de uma carreira que seria

especialmente persistente, o arquitecto e pintor Mario de Oliveira, no "Diário Popular";

Matos Sequeira e Leitão de Barros n' "O Século", Fernando Pamplona (e mais tarde o

poeta Fernando Guedes) no "Diário da Manhã" e ao microfone da Emissora Nacional,

Roberto Nobre (que há muito desistira da prática artística) n'"O Primeiro de Janeiro" -

aos quais se deve acrescentar Selles Paes no semanário monárquico "O Debate", antes

111 Embora tal situação, convenhamos, já tivesse antecedentes, pois, como Júlio Conrado refere, já em 1938, no jornal "Sol Nascente", João Pedro Andrade reinvindicava a especialização na ocupação dos lugares da crítica. Nas palavras deste último: «A crítica faz-se de conhecimento e de comparação. (...) Não é ao poeta, ao romancista, ao dramaturgo, mas ao crítico que deve pedir-se crítica... E seria sumamente interessante que o crítico, especializando-se, renunciasse a outro género literário que não fosse o ensaio, e que o literato, seguindo irresistível vocação, desistisse de exercer toda e qualquer actividade crítica.» Cit. in CONRADO, Olhar a Escrita, Lisboa, Vega, s.d., p. 40.

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de assumir lugares no "Diário Ilustrado" (desde 1956) e no "Panorama" (fins de 50). O

pintor Lima de Freitas estaria ainda no activo no semanário "Átomo" desde 51, e o

pintor José Júlio manteria pelouro no semanário "Ler", em 52-53. Critérios diferentes de

modernidade, com maior ou menor eclectismo, presidiam às suas críticas de exposições.

Uma maioria de artistas constitui então os quadros da crítica; à falta de críticos de arte

e perante eruditos "incapazes duma sensação pura, duma receptividade sem

preconceitos", os artistas vêem-se obrigados a desdobrar-se em críticos, afirmava Diogo

de Macedo em 45, e a sua declaração era cada vez mais verdadeira. (...)

No "Horizonte" publicou, como vimos, os seus primeiros artigos de crítica de

arte J.-A. França, que seria colaborador de "KWY" e de "Colóquio". De formação

literária (publicara algumas obras e fizera crítica literária e cinematográfica), o seu

interesse pela pintura manifestou-se em 46, após primeiras e então raras viagens a

Espanha e Paris; frequentes viagens pela Europa e ás Américas forneceram-lhe

informação para um trabalho que foi aprofundado, até se instalar em Paris, de 59 a 63,

como bolseiro do Governo francês, a estudar sociologia da arte com P. Francastel e a

praticar regularmente, na revista "Art Aujourd'hui", crítica de exposições - o que, nas

condições culturais da vida artística nacional, não pudera fazer em publicações

portuguesas. Ligado ao movimento surrealista em 47, teve papel polémico contra os

neo-realistas e de novo, nos anos 50, ao defender a arte abstracta, cujo primeiro salão

nacional organizou, na única galeria de arte existente em Lisboa e que ele próprio

dirigia. (...) A sua acção de ensaísta, crítico, conferencista e de organizador de

exposições e debates marcou em alguma medida os anos 50 (...). Ao termo desses anos,

outros críticos mais jovens, então surgidos, deram colaboração e continuidade à acção

deste autor - particularmente Fernando Pernes, Rui Mário Gonçalves (que, estudante de

Ciências, começou cedo, cerca de 58, uma notável actividade pedagógica no quadro de

associações escolares universitárias) e, mais brevemente, embora com assinalável

capacidade de especulação intelectual, Alfredo Margarido. Todos eles seriam bolseiros

da Fundação Gulbenkian para seguirem os cursos de P. Francastel que J.-A. França

frequentava em Paris, e os dois primeiros (...) beeficiaram, entre 62 e 65, do Prémio de

Crítica de Arte instituído pela mesma fundação e suspenso depois.»112

112 FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XX, op. cit., pp. 470-475.

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O fenómeno de especialização da crítica trouxe consigo, porém, alguns efeitos

perversos. Ao dotar-se de uma nomenclatura cada vez mais especializada, a crítica vai

muitas vezes cair na tentação de tornar os seus discursos tão herméticos e enigmáticos

como a própria obra em causa para o público não iniciado nos mistérios da arte moderna

e no discurso estético, saindo daqui frustrado o objectivo liberalizante a que se propunha

aprioristicamente, ou seja, a de funcionar como espaço de entendimento artístico

alargado, objectivo tão simpático aos valores de democratização cultural que se

enraizavam desde Oitocentos. O estatuto manifesto da crítica enquanto actividade ao

serviço do consumidor viu-se então, no âmbito das vanguardas, objectivamente

invertido, mostrando-se uma prática bastante mais útil ao criador, na legitimação e

caução intelectual da sua obra, do que propriamente ao fruidor dos valores artísticos,

nomeadamente ao fruidor mais leigo e/ou ao mais conservador.

Ao rejeitar uma atitude meramente contemplativa perante a obra, em que o

crítico, armado de uma cultura eminentemente literária, se punha na estrita posição de

lector, a crítica vanguardista abandona efectivamente a tradicional postura diletante e

vem, pelo contrário, tomar a forma de uma crítica militante e activa em termos de

produção de sentido, integrando os próprios grupos e participando activamente na

concepção dos seus diferendos, com a intenção não apenas de os explicar e divulgar,

mas sobretudo de estimular, codificar, sustentar e desenvolver teoricamente as

possibilidades picturais que lhes eram latentes. A sua atitude torna-se, neste contexto,

eminentemente política, de tendência, plenamente integrada no violento combate

ideológico que se travava contra o conservadorismo burguês que dominava quer entre as

tradicionais instituições artísticas, quer entre grandes faixas do público interessado em

questões artísticas. É nestas condições que a figura do crítico começa a aparecer em

primeiro plano nas múltiplas polémicas e querelas que se desenvolviam no interior do

campo artístico, cultivando no seu habitus uma extrema disponibilidade para o

antagonismo belicista.

Batendo-se contra a ortodoxia dominante e propondo-se ajudar a projectar a arte

sempre em frente, para além da tradição académica, o crítico perfila-se assim no campo

das vanguardas fundamentalmente como um agente de inovação, dedicando-se mais à

enunciação e à conceptualização das novas propostas artísticas do que propriamente ao

seu esclarecimento directo e claro. A eficácia da sua acção de legitimação e de

estimulação estética em relação a essas novas propostas exigia da sua argumentação o

máximo de aprofundamento teórico, demonstrativo da própria profundidade e

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complexidade sugerida pelas obras. Por outro lado, só demonstrando a capacidade de

dominar analiticamente essa profundidade e complexidade é que a sua acção adquiria a

credibilidade e a legitimidade necessárias à sua eficácia simbólica no universo cultural,

pelo que o hermetismo da sua gíria cada vez mais especializada também funcionava

como estratégia de demarcação do espaço da crítica face ao cada vez maior número de

agentes culturais que se moviam no campo artístico.

A utilização de uma linguagem conceptual funcionava para os críticos não só

como instrumento prático de combate na luta que travavam pelo monopólio do poder

legítimo da avaliação e interpretação estética com os agentes exteriores ao seu próprio

campo, que se via cada vez mais autónomo como campo privilegiado na produção de

sentido e de valor estético sobre as obras ditas artísticas, como também na luta que

estabeleciam entre si próprios pela imposição da definição dominante de arte,

permitindo a definição do seu próprio ponto de vista e a sua demarcação face aos pontos

de vista dos seus pares adversários. Com efeito, o crítico que trabalhava no âmbito dos

movimentos vanguardistas não se limitava a ter que sustentar convictamente um grupo

oposicional em conflito aberto com os oficiais, num sistema de duas vozes opostas;

tinha também que produzir e caucionar a demarcação do "seu" grupo específico face aos

seus congéneres vanguardistas, jogo sobre o qual ele próprio jogava a sua reputação e o

seu poder de consagração como crítico. Ora, grande parte dessa reputação dependia

efectivamente do grau de densidade e complexidade teórica e estética que conseguia

fazer imprimir às obras do grupo que defendia, assim como do grau de aceitabilidade e

de plausibilidade das categorias de percepção, classificação, apreciação e interpretação

que articulava no discorrer da sua argumentação.

No contexto do modernismo artístico português, não vale a pena termos

qualquer espécie de ilusão quanto ao papel de inovação e conceptualização da crítica. É

praticamente inexistente uma crítica vanguardista tal como a temos apresentado até

aqui. «Obra de gente sem a menor preparação estética, nem uma mínima prática visual»,

desde o seu início em meados de Oitocentos até meados do nosso século, interveio

sempre «com a costumada indulgência e riqueza de adjectivos», perfilhando quase

unanimemente de valores decadentistas em relação aos vários movimentos

vanguardistas que timidamente se foram desenhando no nosso espaço nacional, situação

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que França designa de atemporalidade conservadora de valores sempre oitocentistas113.

No fim do seu estudo, José Augusto França conclui que «ao longo destes cinquenta anos

que o nosso inquérito cobriu (1911-1961), se verificou sempre uma oposição vigilante,

larvar ou declarada, a tudo quanto fosse "moderno". Agindo em nome de uma tradição

que a própria cultura oitocentista justificava mal, já em 1911 os artistas "livres" se viam

atacados, e os "humoristas" depois, e os "modernistas" do Porto; Amadeo era agredido

na rua e os futuristas tratados de paranoicos; (...) os neo-realistas e os surrealistas eram

vistos como "inimigos declarados da Pátria" uns, "fora da nossa sensibilidade e da nossa

cultura ocidental" os outros, e contra Azevedo, Lemos e Vespeira apelava-se para a

Polícia em 1952 como em 16, contra Amadeo; dos abstractos, achava-se que não

falavam à sensibilidade nem ao entendimento; (...) e, ainda em 1966, se denunciava a

clique judia dos modernistas, num catálogo do Museu de Arte Contemporânea...»114

Com efeito, os críticos instalados nos jornais e revistas de grande público foram

sempre servidores dos detractores dos valores modernistas e geralmente tomavam

partido contra as inovações, troçando delas. «Geralmente isto sucede, explica França,

por um imediato desajuste cronológico, num anacronismo que as dificuldades da

informação no século XIX explicam, mesmo depois de o caminho de ferro estabelecer

ligação fácil com Paris, centro irradiante da cultura estética do ocidente, em melhor

relação com a mentalidade portuguesa.»115 Os adjectivos "bizarro", "desacertos",

"mamarrachos", "exageros", "extravagâncias", "anarquismo" e outros tanto ou mais

depreciativos foram os mais utilizados no acompanhamento crítico dos principais

momentos da modernidade portuguesa: a Exposição Livre de 1911, os vários Salões de

Humorístas e de Modernistas que decorreram até aos anos 20, o Salão dos

Independentes em 1930, a Exposição do Grupo dos Surrealistas em 40.

Somente este último evento gozou de algum apoio crítico concreto, quer ao nível

da crítica exercida na imprensa generalista («tudo dependendo da camaradagem do

jornalista e muito do prestígio pessoal de António Pedro», no dizer de França), quer ao

nível de uma imprensa especializada (nomeadamente através de alguns artigos de Jorge

de Sena na Seara Nova), quer ainda ao nível do próprio manifesto, com a publicação de

quatro "Cadernos Surrealistas": o "Protopoema da Serra de Arga", de António Pedro,

um "Balanço de Actividades Surrealistas em Portugal", de J. A. França, "A Ampola

113 FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., Vol. I, p. 434, e A Arte em Portugal no século XX, op. cit., p. 522. 114 FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XX, op. cit., p. 521.

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Miraculosa", romance gráfico em treze imagens seleccionadas em livros e revistas

ilustradas, e o próprio catálogo da exposição, com declarações pessoais dos

participantes que resumem as razões de terem aderido ou assumido as responsabilidades

do movimento surrealista.116 Este grupo teve o privilégio, podemos assim dizer, de

encontrar em José-Augusto França o seu porta-voz e teorizador fundamental em

algumas revistas especializadas da altura, acreditando que «o único acontecimento

artístico (e tanta outra coisa mais) em Portugal nestes últimos cinco anos foi o aparecer

de um movimento surrealista» (escrevia ele em 51 na "Seara Nova", A Nova Pintura em

Portugal).117

Situação realmente privilegiada a deste grupo, tendo em conta que na ausência

de um porta-voz, as diversas revistas especializadas que se propunham servir de

manifesto e de estímulo aos grupos de artistas mais iconoclastas que apareceram no

início do século em Portugal (como a Orfheu no início do século, a Contemporânea em

15, a Centauro em 16, a Portugal Futurista em 17 e outras que daí para a frente se

tentaram), normalmente organizadas por artistas desses mesmos grupos, que não

encontravam na imprensa generalista voz impressa, resultaram sempre em tentativas

efémeras e fracassadas nos seus objectivos fundamentais, dada a pouca sensibilidade do

público português às suas causas. O imaginário naturalista pequeno burguês dominava e

a galhofa era geral, na imprensa portuguesa, contra estas novas revistas e a "arte

bizarra" que promoviam. E assim continuou a situação (da) crítica ao longo das décadas

de 30 e 40: no dizer do autor que temos vindo a citar, «a crítica de arte estava então,

como nos anos 20, sujeita à simpatia de quatro ou cinco jornalistas camaradas dos

"modernos": Artur Portela, Luís Teixeira, Vítor Falcão, Augusto Pinto, o próprio

António Ferro, no "Diário de Lisboa" ou no "Diário de Notícias". Mas por todo o lado

os inimigos espreitavam: na "Ilustração", o próprio director queria fazer ajoelhar os

"novos" diante dos quadros de Veloso Salgado: "Peçam perdão das ofensas feitas ao

mestre!» ou, falando da A. Saúde, proclamava: "Ainda há pintores em Portugal!". Na

"Civilização", em 31, como n'"O Século Ilustrado", em 40, publicavam-se ainda

gostosamente anedotas soezes contra o futurismo e ataques contra "Picasso e os seus

mamarrachos".»118

115 FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., Vol. II p. 360. 116 FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XX, op. cit., p. 388. 117 Idem, p. 399.

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Actualmente, a crítica conserva ainda um lugar importante no debate estético e

na promoção pública das diversas correntes e criadores artísticos. Apto a produzir

sistemas de pensamento e a incentivar, caucionar ou até mesmo traçar programáticas de

acção estética, o crítico ainda contribui em larga escala no desenvolvimento das suas

possibilidades estéticas e no seu êxito ou fracasso no interior do campo artístico. No

entanto, apesar de ainda hoje ela continuar a estabelecer elos de cumplicidade com

determinadas comunidades ou movimentos artísticos, verifica-se que essa cumplicidade

tende cada vez mais a perder a sua dimensão vivencial e a restringir-se à sua dimensão

intelectual, num esforço de constante distinção entre relações de amizade e afinidades

estéticas, esforço esse deliberado e intencionalmente mantido com o propósito de tentar

preservar uma maior isenção e independência por parte do crítico no exercício da sua

actividade.

O facto do campo artístico, nomeadamente no que se refere aos seus segmentos

de ponta, ter vindo gradualmente a perder a lógica fusionista característica dos

movimentos que o caracterizavam no início do século, teve nessa transformação a sua

quota parte de responsabilidade. Depois da II Guerra Mundial, paralelamente à extensão

do mercado cultural em geral e do mercado de artes em particular, as novas vanguardas

vieram de facto a sentir um acolhimento social sem par ao longo da sua curta história,

deixando de precisar de recorrer ao belicismo e à militância que a sua precedente

situação à margem lhes exigia como condição de sobrevivência. Com o seu "inimigo"

comum completamente derrotado e com as novas condições de mercado em que se

viram totalmente inseridas a reclamarem dos seus agentes uma cada vez maior

singularização estética, a lógica gregarista e a atitude política que anteriormente

presidiam à sua acção artística vieram a apresentar-se-lhes como estratégias de

afirmação já desadequadas e contraproducentes.

A coesão das ditas pós-vanguardas e/ou transvanguardas vai aparecer agora

baseada já não na defesa militante de um manifesto estético contra tudo o que possa

parecer ortodoxo, ocasionando uma atmosfera beligerante colorida pela amizade

intensa, mas tão somente num esquema de cumplicidades subjectivas e oportunas que,

numa fase inicial, enquanto as opções estéticas de alguns dos seus membros não se

individualizam claramente adquirindo personalidades próprias e um lugar destacado no

circuito de comercialização, vão estar na base do desenvolvimento de algumas

118 Ibidem, p. 211.

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estratégias comuns, reduzidas a algumas iniciativas colectivas de carácter institucional,

galerístico ou mass mediático, incorrendo posteriormente em percursos individuais.

É nestas condições que a prática crítica, de um modo geral, se reafirma

basicamente como actividade ao serviço do consumidor, consciencializando-se de que

será mais útil a este como instância orientadora das suas práticas culturais e formadora

da sua opinião e competência estética, do que como vector de estimulação e guia de

inspiração para o artista, cujas mais altas realizações serão resultado já não de um

manifesto estético comum mas de um programa de pesquisa individualmente

conduzido. Deste modo, embora muitas vezes o crítico continue a ser entre

observadores e participantes activos no campo artístico o mais próximo do criador e o

seu mais directo "conselheiro", com quem ele pode eventualmente discutir a orientação

do seu trabalho, a sua actividade passa a estar direccionado mais para o seu público (que

é o público do jornal para que escreve) que para o próprio artista. Ele deixa de ser

mandatário de um grupo, pois a noção de grupo também já aparece diluída no campo

das artes, e passa a ser mandatário dele próprio, do seu ponto de vista individual,

frequentemente tido para o artista como representativo do ponto de vista de um

segmento de opinião pública, e por isso para ele importante como barómetro

demonstrativo dos vários tipos de recepção à sua obra.

Dadas as actuais condições de produção do discurso crítico, quase sempre em

jornais, num tempo cronologicamente posterior ao da criação, fora do contexto

grupalista e militante que se vivia anteriormente, coexistente com outros mecanismos

tanto ou mais eficientes que ela própria na legitimação e difusão dos objectos e

correntes artísticas, e sem pretensões em se assumir como conselheiro de talentos e

definidor de programáticas de acção, de facto encontramos hoje a crítica a definir-se

novamente mais como prática ao serviço do receptor do que como prática ao serviço de

determinado grupo de artistas ou corrente estética. O maior valor de uso desta prática

junto do consumidor do que junto do pólo da criação cultural é reconhecido e cultivado

pelos próprios críticos, ao admitirem praticamente em unanimidade ser o consumidor

cultural o seu interlocutor privilegiado, como nos ilustram os seguintes depoimentos,

bem representativos dos outros tantos recolhidos:

«Considera a crítica como uma actividade mais ao serviço do criador ou mais

ao serviço do consumidor cultural? Em relação à experiência que eu tenho com os

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criadores, acho que a crítica é mais útil ao leitor que ao criador, tem sido, porque os

criadores têm geralmente uma atitude muito emocional com as críticas. Ou uma adesão

quando acham que a crítica é positiva, ou uma rejeição quando ela é negativa. É mais

útil a um crítico estar a falar com o artista numa conversa no atelier, ou num jantar ou

coisa assim, e aí pôr-lhe questões, discordar, contradizê-lo, do que feita a exposição ir

escrever um texto em que faça uma crítica, que eventualmente possa ser tomada em

consideração, mas que cria numa parte significativa das vezes situações de

desconforto.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público)

«...no fundo, estou muito mais preocupado em manter essa empatia com o leitor

do que com os artistas. Quer dizer, eu quando escrevo é para as pessoas que vão ler,

não estou a escrever para os artistas. Isso secundariamente sim, evidentemente. Mas

quando escrevo nunca penso no artista, penso na obra que estou a comentar e penso no

receptor daquele texto, ou seja, no leitor. E é com o leitor que eu estou a falar, nunca

estou a escrever para os artistas, nem estou a falar com os artistas. E isso é

eventualmente diferente dos que alguns outros farão, não sei...» (António Cerveira

Pinto, crítico de artes plásticas no Independente)

«...o lugar que se ocupa é ocupado em publicações, no meu caso, que se

destinam à população em geral. Portanto, a relação mais forte que eu penso que se

estabelece é com os leitores em geral. Embora saiba que fundamentalmente quem lê é o

reduzidíssimo universo das galerias, dos outros críticos e dos artistas.» (Alexandre

Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso)

«...é mais ao serviço do consumidor, porque é muito difícil para um artista

realizar um auto-crítica a partir de uma crítica. É que, como já disse alguém, ninguém

aprecia tanto uma crítica destrutiva como quem a faz. A pessoa que é criticada reage

geralmente, claro no caso de uma crítica desfavorável, muito mal. E eu compreendo,

porque aquilo tem uma importância afectiva tão grande, ou seja, está ali o seu ego

exposto em praça pública, e muito raramente o artista realiza essa auto-crítica a partir

de uma crítica. Enquanto que o público, que não tem nada a ver com isso, que quer é

uma indicação, reage com muito menos dramatismo.» (Paulo Nogueira, crítico de

cinema no Independente)

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«Mais ao serviço do consumidor, obviamente. Sem dúvida nenhuma. Eu não

trabalho para o criador. Quem me paga é o editor do jornal, é o director de um jornal,

que quer vender um jornal, quer vender segundo um padrão de qualidade que é ele que

estabelece, como é óbvio, e quem compra não é o criador, são os consumidores.

Portanto, é sempre virado para os consumidores. Nem sequer é para fazer a ponte, é

sempre virado para os consumidores.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no

Público)

Esta posição de diálogo prioritário com o público (entidade que, para o crítico, é

demasiado abstracta para que possa vir a comprometer a sua acção discursiva) em

detrimento de uma postura de defesa militante de determinada corrente ou grupo,

mesmo em relação aos críticos que hoje assumem posturas vanguardistas, encontra-se

relacionada não só com a diluição das tendências grupalistas no campo artístico, mas

também com os próprios valores éticos que integram e constituem o ethos do crítico

contemporâneo, e que atravessam as relações que este mantém com o pólo da criação

cultural (e isto não só na área das artes plásticas, mas em todas as áreas de intervenção

crítica). Pautada por valores de "isenção" e de "rigôr" crítico, valores esses que não se

vêem hoje conotados os tradicionais valores académicos da "objectividade" ou

"neutralidade" mas que pressupõem uma postura de "independência crítica", de

"fidelidade à obra" e não aos pressupostos do autor, de "ecletismo e disponibilidade

estética", de "honestidade e sinceridade intelectual", a prática crítica tende a estabelecer

actualmente as suas cumplicidades com o pólo da criação mais a nível intelectual do que

vivencial. Isto é, consciente de que não pode prescindir das suas afinidades electivas no

momento em que exerce a sua acção interpretativa e judicativa, o crítico tenta geri-las

de modo a que, por um lado, não se confundam (não só exteriormente mas até por ele

próprio) com afectividades de ordem pessoal e, por outro, que elas não se tornem

demasiado estreitas, cultivando a capacidade de estar sempre aberto a entender o novo.

Nesta perspectiva, evitando qualquer risco de contaminação afectiva e pessoal,

vêmos alguns críticos a desenvolverem uma estratégia de distanciamento pessoal em

relação aos artistas, rejeitando tanto quanto possível a partilha vivencial e a proximidade

física com estes, distanciamento esse que pressupõe traduzir-se em ganhos de

independência e de isenção crítica. Aqueles que rejeitam esta estratégia, voluntária

(muitas vezes partindo do pressuposto de que o conhecimento pessoal do artista poderá

alargar os parâmetros de compreensão da sua obra) ou involuntariamente (porque

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desenvolvem outras actividades que exigem o permanente contacto com os criadores),

fazem-no adoptando uma postura de disponibilidade e eclectismo estético não militante,

de abertura vivencial a todos os quadrantes artísticos possíveis, cuidando de não se

verem comprometidos e vinculados a determinados grupos e, assumindo o risco da sua

posição potencialmente mais vulnerável a interferências pessoais, tentam então

desenvolver contra isso uma atitude de vigilância crítica constante em relação à sua

própria postura.

De isolar aqui será o caso de Carlos Vidal, o único a assumir-se frontalmente

como crítico de tendência, de defesa militante, postura que, dado o contexto ideológico

da crítica actual, lhe tem acarretado alguns dissabores ao longo da sua trajectória. Mas

mesmo este reivindica para a sua prática o valor da afinidade intelectual em desfavor da

vivência afectiva com os artistas que defende. O que está em causa será sempre, assim,

a independência da sua própria opinião crítica, a preservação da sua autonomia

intelectual, disposições que, em última instância, não se compadecem com possíveis

afectividades previamente desenvolvidas, como poderemos vêr pelas experiências de

alguns dos nossos entrevistados:

«...a responsabilidade (do crítico junto do criador...) é a recusa da

arbitrariedade opinativa, do exercício puro e simples do gosto próprio, e a

responsabilidade de ter permanentemente perante as obras vontade de as entender, à

partida estar disponível para entendê-las. Mantém contactos regulares estáveis com

um círculo mais ou menos definido de artistas? Sim, é possível dizer isso. (...) E como

é que caracterizaria esse círculo de artístas? Eu pessoalmente tenho dificuldade em

caracterizar, porque ele não é marcado por uma afinidade geracional, por uma lógica

de grupo. É flutuante e variável, com artistas de gerações e idades muito diferentes. (...)

Conheço de facto muitos artistas, mas não escrevo de facto só sobre esses. E

principalmente quando consigo escapar-me desse tipo de regra, isto é, quando consigo

interessar-me por uma obra de que não faço ideia de quem seja, de que não conheço as

pessoas, gosto muito, porque é a hipótese de provar que a pessoa está completamente

disponível e que fulano tal, que não conhece e não faz a ideia de quem seja, com quem

não mantém relações pessoais, se interessa pela obra. Isso acontece muitas vezes, e até

muitas vezes acontece-me quase mais para provar a mim próprio que existe uma

disponibilidade, que a pessoa não acompanha, não se interessa mais por determinadas

obras porque conhece estreitamente os artistas. (...) É evidente que há grupos, não se

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pode negar a existência deles e a vulnerabilidade das pessoas perante o facto de haver

melhor relacionamento com uns grupos do que com outros. Tudo depende da posição

que cada um individualmente toma perante esse tipo de redes, e o cuidado que tem por

se deixar prender por um desses grupos ou a pretensão que tem de poder circular por

vários. Pessoalmente procuro circular por vários grupos, e ter reservas, ou estar

alerta, quando um determinado grupo, que pode assentar numa certa conjugação,

concordância de interesses, de gostos e de estratégias de afirmação de artistas, se

transforma também em poder. E aí é preciso estar alerta em relação a isso e cortar

algumas pontes.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso)

«Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos

definidos de artistas? Sim. Há uma série de artistas neste momento com quem eu me

relaciono, na medida em que sou... A minha relação com outros artistas é uma relação

de artista para artista. Não são relações de amizade, são relações de afinidade estética,

de afinidade crítica e de afinidade estética. Não me relaciono com eles como crítico.

Com outros relaciono-me por questões de amizade, que não têm a ver com afinidade

estética. Dou-me com vários artistas com os quais não tenho uma afinidade estética

mas tenho afinidades de amizade. E outros com afinidades estéticas. O que significa

que há uma quantidade de artistas sobre os quais me pronuncio positivamente ou

negativamente, e com os quais não tenho relações nenhumas. De que forma é que o

facto de conhecer os artistas de cujos objectos critica se reflecte na sua crítica? (...) A

minha actividade de crítica é uma actividade que, ao contrário da actividade de outros

críticos, está ligada às minhas próprias preocupações artísticas. Portanto, não sou um

observador isento, se é que existe esse observador. Sou um observador que está

comprometido, não com pessoas, ao contrário de alguns críticos que têm sobretudo

vínculos pessoais; os meus vínculos são de ordem intelectual e de ordem estética, o que

explica o facto de eu ter tido os meus vínculos pessoais a passarem por várias fases. Já

tive relações pessoais muito estreitas com alguns artistas e algumas pessoas com quem

eu hoje não tenho, com quem posso estar hoje de relações virtualmente mais frias e

distanciadas. Esse distanciamento ou essas oscilações nas relações pessoais têm a ver

exactamente com o facto de eu não manter vínculos pessoais com ninguém. Os meus

vínculos em termos de escrita são de ordem estética, de ordem crítica. É claro que

tenho relações pessoais; o que quero dizer é que muitas vezes as relações pessoais se

deterioram devido exactamente àquilo que eu considero ser a independência dos meus

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juízos escritos, que às vezes leva a pôr contra, a ser crítico em relação a amigos muito

próximos. (...) Outra questão ética para mim fundamental é que a escrita do crítico

deve ser uma escrita essencialmente virada para o objecto de arte e não para o

produtor. Deve ser uma crítica essencialmente procupada com a mensagem, com o

objecto, com a obra, e não com o autor. O crítico deve manter uma distância tão

grande quanto possível dos produtores, dos autores. E se não a consegue manter

intelectualmente, então mantenha-a fisicamente, para depois manter essa distância

intelectualmente. Ou seja, eu admito que se possa ter uma proximidade física com um

determinado autor se se tiver autonomia intelectual, ou seja, capacidade de escrever

um texto que é criticamente destrutivo em relação a uma obra, apesar dessa obra ser

produzida por um autor de quem o crítico eventualmente está próximo. Se o crítico é

capaz de fazer isso, se o crítico é capaz de arriscar, no fundo, uma certa deteoriação

das relações de amizade motivada por uma exigência crítica, então o crítico poderá

manter essa proximidade. Se sabe que não resiste a esse tipo de tensão, então a melhor

solução é manter um afastamento dos artistas como dos galeristas. Nos EUA isso é

quase um tabu, os críticos respeitados não se dão com os artistas nem com os

galeristas. Têm o seu próprio mundo, aproximam-se às obras sem interferências. Há

uma grande preocupação em que o crítico consiga escrever sem a pressão quer dos

"dealers", quer dos próprios autores. É preciso ter esse cuidado, são questões

casuísticas, tem que se ver caso a caso, não há uma regra geral. A regra geral penso

que é aquela que eu disse há pouco. E no seu caso, acha que consegue resolver essa

tensão? Eu acho que tenho conseguido, novamente em prejuízo das tais amizades.»

(António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente)

«Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido

de artistas? Sim. (...) E como é que caracteriza esse círculo de artistas? Esteticamente

é difícil, porque são de tendências diversas. (...) eu defini-los-ia não esteticamente mas

em termos cronológicos. Mas, por exemplo, aqueles dois de que eu falei que morreram,

o Dacosta com setenta e tal anos e o outro com cinquenta e tal, eu mantinha um

contacto de amigo, e não sequer cerimonioso, principalmente com o Bravo. (...) E de

que forma é que isso afecta o seu trabalho enquanto crítico? (...) Eu nunca ponho a

questão da relação pessoal com o artista em relação à obra. Posso gostar muito dele e

achar que o trabalho dele não é muito bom, e achar que o indivíduo é execrável e que o

seu trabalho é muito bom. (...) Por um lado, eu não sou um crítico de tendência,

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portanto essas capelinhas funcionam de uma maneira alargada, são menos capelinhas,

são menos fechadas, é mais uma catedral.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas

no Público)

«Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido

de artistas? Sim. Tomo os contactos de duas formas: de artista com artista e de crítico

para artista. Há uma partilha de posições sobre a função da arte na sociedade. Essa

partilha de posições é não tanto estratégica quanto conceptual. É natural que os

artistas se reúnam e que revelem as suas posições em conjunto. Como crítico, funciono

também como um enunciador dos pressupostos mais característicos desse "grupo".

Todos nós enunciamos as nossas posições. Mas eu assumo-me como crítico de

tendência. (...) E de que forma isso se reflecte nas suas críticas? A nível da relação

pessoal, não se reflecte de maneira nenhuma. A nível da relação com o pensamento

desses artistas reflecte-se, porque eu quando faço a crítica tenho em conta o

pensamento desses artistas, o pensamento teórico e conceptual desses artistas. A nível

pessoal não se reflecte. Não faço crítica por amizade, de maneira nenhuma. O

conhecimento do artista interessa-me mais ao nível conceptual.» (Carlos Vidal, crítico

de artes plásticas na Capital)

«Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido

de escritores? Não. Conheço muita gente, mas não há ninguém, ou quase ninguém que

pertença ao círculo dos meus amigos mais próximos. Muito embora os que conheça,

almoce ou jante com eles, uma relação muito regular não tenho com ninguém. (...) Eu

sei, por exemplo, que não devo passar da obra para o autor, isto é, sei que não devo

aproveitar-me da obra para criticar o autor, em vez de criticar a obra estar a criticar o

autor. (...) devemos distinguir duas coisas que às vezes são feitas quase

simultaneamente, e que nalguns críticos tendem a confundir-se, ou a actividade

jornalística propicía essa confusão, que é a literatura e a vida literária. Uma coisa é a

literatura, outra coisa é a vida literária. E nós podemos correr o risco de estar a passar

facilmente da literatura para a vida literária. Isto é, em lugar de estarmos a julgar a

obra estamos a julgar atitudes, estamos a julgar determinado tipo de maneira de se

comportar, a própria representação que os escritores dão de si próprios, as coisas que

dizem, etc. (...) o que deve funcionar acima de tudo, ou seja, se há uma ética, se há um

ethos do crítico, esse ethos tem a ver com o respeito pela sua própria opinião. Portanto,

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desde o momento em que ele não entre em contradição com os seus mais profundos

valores, com aquilo que pensa efectivamente, isto é, quando não se aliena, quando

sente que não está a alienar-se em direcção a outro objectivo qualquer que não seja o

da sua opinião, tudo é possível, dizer mal disto ou dizer mal daquilo. Parece-me

relativamente honesto e indiferente se de facto a pessoa pensa realmente assim, se não

está a alienar-se naquele momento, a alienar-se no sentido de dizer "eu faço isto para

cumprir isto ou para fazer um favor", ou qualquer coisa do género.» (António

Guerreiro, crítico de literatura no Expresso)

«Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido

de escritores? Sim. (...) Como caracterizaria esse círculo de escritores? São dos mais

variados quadrantes. Não temos nenhuma, eu pelo menos não tenho, nenhum núcleo de

amigos daquilo a que se poderia chamar uma tertúlia, ou um grupo que eventualmente

daí pudesse partir uma corrente. Não, eu conheço e sou amigo de escritores dos mais

diferentes naipes ideológicos e estou muito bem assim. (...) E de que forma isso se

reflecte nas suas críticas? Não tem reflexos evidentes, visto que o facto de eu conhecer

as pessoas não quer dizer que eu tenha com elas intimidade, ao ponto de ter que dizer

bem do que o amigo escreve. Já tem acontecido, inclusivamente, o caso agora do Rui

Nunes, sou amigo dele, mas uma crítica que eu escrevi sobre ele há umas semanas,

aquilo não tem nada de elogio. E como não tem nada de elogio, ele telefonou-me a

dizer que estava profundamente ofendido comigo, portanto já vê que eu prezo um

bocado a minha independência crítica, mesmo em relação aos amigos. (...) Então

pensa que o facto do crítico manter relações de amizado ou contactos regulares com

os artistas de cujos trabalhos critica pode de algum modo comprometer o resultado do

seu trabalho? Potencialmente esse é um perigo que existe. Eu tentei estar sempre acima

desse tipo de situações com alguns amargos de boca, com alguns incovenientes.» (Júlio

Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras)

«Quer dizer que não conhece normalmente as pessoas de cujas obras crítica?

Conheço. Aliás, conheço quase todas. O meio não é grande. Conheço quase todas mas

não tenho contactos regulares com elas. Falamo-nos, algumas são simpáticas, outras

não são simpáticas, algumas gostam de mim, outras não gostam, eu também gosto de

uns e não gosto de outros, mas não são contactos muito estreitos. E de que forma é que

isso se reflecte nas suas críticas? Eu não quero que isso se reflicta. Aliás, por isso é

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que eu não quero ter mais contactos do que estes com essas pessoas. Acho que para o

leitor deve ser absolutamente indiferente eu conhecer a pessoa ou não a conhecer. Se

não estamos ali numa conversa de amigos que não interessa a ninguém.» (Tereza

Coelho, crítica de literatura no Público)

«Considero que a primeira obrigatoriedade que eu tenho é ser honesta comigo

própria. A partir daqui, pauto consoante as minhas digestões, as minhas más

disposições, os meus cansaços, as minhas afinidades electivas, as minhas afectividades,

não tanto possível afectividades pessoais. Tento depois construir os meus textos com

base nos estímulos que o espetáculo me deu. Mas para mim, o que eu efectivamente

considero ser a grande responsabilidade, é não ser tanto quanto possível parcial, no

sentido de... É-se sempre parcial, mas não se ser parcial no sentido de "eu só gosto

disto e não gosto daquilo", "eu não gosto destes e só gosto daqueles". Tentar

efectivamente, apesar de não se poder prescindir das nossas afinidades electivas,

assumir um olhar tanto quanto possível receptivo, inocente, como diz o Osório Mateus.

Dizia-me o Osório Mateus muitas vezes: "Sê inocente! Sê inocente!". Mantém

contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido de artistas? De

maneira nenhuma! De maneira nenhuma! E é uma preocupação sua... De não manter!

Não é uma preocupação de não manter, é uma preocupação de não ter! Não é de

manter, é de não ter! Por causa da sua actividade crítica? Exacto. E isso é para mim

fonte de sofrimento, porque não posso ter amigos, quase em geral não posso ter

amigos. A minha vida gira em torno do teatro: na escola e à noite, quando vou ver os

espetáculos. E não posso relacionar-me com ninguém, a não ser fora do teatro. Como

não tenho muito tempo, não tenho muito tempo para cultivar amizades fora do teatro,

noutras áreas. Esta actividade exige uma espécie de ascetismo, que muitas vezes

pergunto a mim própria se vale a pena, se o teatro merece esta forma de vida que a

gente tem de ter, que eu tenho de ter, pelo menos. (...) Portanto, quando olho para os

artistas, eu prefiro olhar não para as pessoas, mas para a produção dessas pessoas.

Porque normalmente quando olhamos para as pessoas temos grandes desgostos. Eu

estou a referir-me mais uma vez ao teatro. É preferível, para se admirar um artista de

teatro, não se conhecer a pessoa que está por detrás. Ignorar-se totalmente a pessoa

que lá está, porque o desajuste pode ser tão grande, a relação com o apelo dessa

pessoa ou, pelo contrário, a repulsa que essa pessoa pode causar, pode prejudicar o

nosso olhar sobre o artista. Portanto, também aprendi à custa da experiência que

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mantermo-nos afastados do convívio dos artistas é salutar para quem tem que produzir

discurso judicativo e valorizador.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso)

«Mantém contactos regulares com um círculo mais ou menos definido de

artistas? Não muito. Eu, com a intenção de escapar um bocadinho a essa rede,

mantenho uma certa distância, uma distância que não tem nada de pessoal, tento

manter uma certa distância dos artistas. Não consigo totalmente, há pessoas com quem

eu me dou bem. Pronto, sou obrigado a manter certos contactos. Tenho que tê-los e não

fujo a eles. Mas, de uma maneira geral, em termos genéricos, procuro que haja uma

certa distanciação. (...) Há o perigo, ao qual eu não escapo, e ninguém escapa, da rede

em que nos movêmos. Somos críticos, damo-nos com criticados, não podemos deixar de

ter relações, mesmo que sejam superficiais, com as pessoas. Por outro lado, há um

outro aspecto, que é a possibilidade do crítico exercer também a actividade criativa

pela qual vai ser julgado, e haver aí uma certa promiscuídade entre crítico e criador.

Tudo isso tem que ser muito bem balizado, porque há sempre perigos de

subjectividades. Eu penso que é inevitável, ninguém é santo para conseguir esquecer

em absoluto relações que se têm, que podem ser de vária ordem, de amizade, de

camaradagem política, ou outra coisa assim. O que se tem de fazer é evitar tanto

quanto possível ter isso em conta, penso que cada crítico tem a obrigação de não ser

contaminado por coisas desse tipo, de não se deixar apanhar por essa rede. A rede

existe, nós sabemos que existe, não pode deixar de existir, e o crítico tem que saber que

ela existe, tem que ter consciência disso, mas tentar, tanto quanto possível não se

deixar apanhar pela rede. E eu penso que com isso, no teatro português, não há

problema.» (Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de Letras)

«Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido

de artistas? Eu dou-me muito com a gente do teatro por modo de ser, sou um pouco

noctívago, encontro-me com eles muitas vezes na noite, e porque trabalho na própria

televisão. E de que forma isso se reflecte nas suas críticas? Eu acho que não se

reflecte e tenho que evitar que se reflicta. (...) Eu quando escrevo não posso pensar se

simpatizo mais ou menos com uma pessoa, se sou mais ou menos amigo dela. Tenho é

de escrever o mais objectivamente possível. É claro que não há só objectividade, mas o

mais objectivamente possível sobre alguém e sobre o trabalho, independentemante de

eu conhecer essa pessoa ou não. (...) a crítica, principalmente num meio que ainda é

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muito pequeno, pois a partir de determinada altura quase que nos conhecemos todos e

isto é quase como a água dos capuchos, é a mesma que circula, tem que ter uma

preocupação de não temer contaminações. Em 35 anos criei as melhores amizades que

tenho no teatro, muitas vezes trabalho com eles como homem da televisão, não tenho

que fugir das minhas opiniões, tenho é que no momento do exercício da crítica estar a

ser crítico independentamente de ser amigo ou não de A, B ou C. O crítico para já tem

de ser isento. Pode errar ou ser discutivel o que disse, não pode é ser desonesto, não

pode é ser parcial, estar a favor de uns contra outros e entrar muitas vezes em guerras

e esquemas que existem mesmo com profissionais, tomar partido por uns ou por outros.

Não. Ele tem de exercer o seu magistério crítico acima de qualquer suspeita, tem de ser

de uma isenção muito grande. Só assim é que é credível.» (Fernando Midões, crítico de

teatro no Diário de Notícias)

«Posso responder-lhe que não tento favorecer de maneira nenhuma o

conhecimento com os cineastas apenas porque vou criticar os seus filmes. Conheço ou

não conheço conforme as condições propiciam isso, sejam condições de trabalho ou

pessoais, sejam acidentais, mas isso não intervém minimamente como factor do meu

próprio trabalho. Não é porque vou escrever isto ou aquilo que acho que deve conhecer

fulano ou fulano. (...) Aliás penso que é claro pois sublinhei tanto e valorizei tanto o

aspecto individual da actuação crítica...» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso)

«Mas é importante que, pelo menos a nível consciente, o crítico seja isento e

não se deixe influenciar muito pelo prestígio ou falta de prestígio do artista, pela fama

ou pela falta de fama, nem por relações sociais, nem por relações ideológicas, tudo

isso. Eu acho que essas são as responsabilidades do crítico perante o artista. Se ele

conseguir se preservar diante desses factores, se ele conseguir se manter alheio a essas

turbulências todas, ele pode dizer o que quiser. (...) Aí entra um pouco aquilo de que já

estivemos a falar das relações pessoais. Nós somos todos humanos e as pessoas

acabam por ser condicionadas por isso. Não querem ferir susceptibilidades, sobretudo

num meio pequeno como é o mercado de artes português, tanto em termos de agentes

como em termos de consumidores, as pessoas conhecem-se muito, conhecem-se

pessoalmente, vêem-se. Então às vezes há um excesso de escrúpulos em não ferir

susceptibilidades. Isso para não dizer casos mais graves em que pode haver mesmo

interesses comuns, interesses económicos, interesses sentimentais ou interesses

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ideológicos. Por exemplo, um crítico vai falar de um artista que é de uma área

ideológica idêntica à sua, talvez ele não seja tão rigoroso como se fosse falar de um

artista de uma área ideológica oposta à sua. Não estou dizendo que isso aconteça

frequentemente, mas é uma potencialidade concreta.» (Paulo Nogueira, crítico de

cinema no Independente)

«Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido

de realizadores? Que remédio, eu trabalho na Cinemateca! Eles estão sempre aqui a

passar. Não com um círculo. Conheco-os. (...) Confesso que os cineastas da minha

geração, da minha idade, atraem-me porque partilho qualquer coisa de comum com

eles. Mas não faço isso em nome de recusar os outros, como é evidente, não posso.

Portanto, são afinidades provavelmente mais electivas do que concretas. Mas não os

privilegio, não penso que os possa privilegiar na minha actividade enquanto crítico.

Provavelmente tenho mais esperanças, mais desejos, invisto mais no trabalho deles por

essa questão puramente emocional e emotiva, quase afectiva. Mas não é organizado,

não é um grupo.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público)

Nesta perspectiva, a posição do crítico inverte-se efectivamente em relação à que

detinha junto das primeiras vanguardas do início do século: ele deixa de ser o

representante do artista e do seu grupo junto do público, para passar a ser o

representante do público junto do artista, nomeadamente de um público que se supõe

especializado. Simultaneamente, enquanto especialista em matéria de arte, vai

encarregar-se da tarefa de orientar o consumidor mais desatento e menos informado

esteticamente, fornecendo-lhe modelos de uma fruição artística "adequada" que lhe

permita gozar a obra de arte enquanto tal, no sentido de prepará-lo para manejar esses

objectos, de os ler, de saboreá-los, apreciá-los e comentá-los "como convém", tratando

que ele não se desvie nem não se perca por percursos de sentido e de valor "menos

aconselháveis" ou "mais pobres" do ponto de vista artístico.119

Assim sendo, podemos verificar que a prática artística tende realmente a adquirir

na actualidade um maior valor de uso junto do consumidor do que junto do criador,

119 É nesta óptica que Roman Ingarden, destacado teórico e crítico literário da década de 60, entende a crítica como máquina da formação de concretizações adequadas, impedindo que as concretizações subjectivas da obra no consumidor "comum" desfigurem, ocultem ou ponham em causa a identidade artística que ela detém por atribuição e reconhecimento no interior do campo artístico. Ver COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., p.400.

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embora continue a ter para este último uma importância fundamental, pois, como refere

Martin Esslin bastante ilucidativamente, «if the poets are the unacknowledged

legislators of the world, the critics are the electoral college that puts them into

power.»120 Tal forma de encarar a crítica está também, em boa parte, associada à

progressiva diluição da noção romântica da arte ideal e pura e da imagem do artista

solitário que trabalha sozinho para a sua própria satisfação pessoal e apenas em função

do seu estado de espírito ou momentos de inspiração, mitos substituídos pela assumpção

da profissionalidade da prática artística, num contexto em que a penetração da lógica

capitalista no campo das artes e letras é uma realidade que vai sendo cada vez mais

incontestável e incontornável e, por isso, aceite.

3.4. O CRÍTICO NA ERA DA REPRODUTIBILIDADE

E DA MERCANTILIZAÇÃO CULTURAL

Com efeito, se até meados do nosso século a produção e a circulação cultural

haviam sido caracterizadas pelo seu carácter artesanal e restrito, depois, com o avanço

global das tecnologias de reprodução e de difusão e dos princípios de produção para o

mercado capitalista, fenómenos que não deixaram de se extender ao campo cultural e

artístico, a sua organização começou também a tomar moldes industriais e alargados,

com os conhecidos efeitos de estandartização em relação aos quais muitos críticos e

outros intelectuais da época bradavam mil malefícios. Este processo teve as suas origens

mais remotas, como já tivémos oportunidade de apontar, em finais do século passado,

quando a expansão do aparelho produtivo e a aceleração do processo de penetração do

capital na produção, circulação e consumo cultural, consequências do desenvolvimento

do processo de industrialização e de mercantilização capitalista, veio a proporcionar a

capacidade de reprodutibilidade e a introdução de uma nova (e bastante contestada)

racionalidade económica no domínio cultural e artístico, começando a organizar-se

também aqui a produção em série.

Muito provavelmente foi na produção do impresso que as novas exigências

intrínsecas a este novo modo de produção mais cedo e mais claramente se fizeram

120 ESSLIN, "A Search for a Subjective Truth", in HERNADI, What is Criticism, Bloomington, Indiana University Press, 1981, p. 208.

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sentir, sendo o livro o primeiro objecto cultural afectado pela produção em série.121 Mas

também é por esta altura que o teatro começa a organizar-se segundo moldes

empresariais, e que o cinema e a fotografia começam a dar os primeiros passos. As

próprias artes plásticas, com o recuo da Academia, começam a ver a sua produção

orientada para o sistema de mercado, o que de certo modo vai começar a obrigar o

artista também ele a produzir serialmente, pois se numa exposição para venda era

necessário um grande número de peças, o seu marchand ou galerista vai tentar

convencê-lo a produzir em quantidade e, muitas vezes, a produzir um certo número de

variações sobre um mesmo tema ou num mesmo estilo, quando verifica que estes têm

sucesso no mercado.

Desenvolvem-se então as denominadas indústrias culturais, as quais se referem

a bens ou serviços culturais que são produzidos, reproduzidos e difundidos segundo

critérios comerciais e industriais, ou seja, que são objecto de uma produção em série,

destinada ao mercado e orientada por estratégias de natureza prioritariamente

económica, visando a sua maior rentabilidade. O fenómeno de mercantilização e difusão

cultural alargada não foi, contudo, pacificamente recebido nos campos intelectual e

artístico, neles repercurtindo-se em múltiplos efeitos conflituais e divisionistas num

constante jogo de tensões que daí para a frente se estabelece entre a esfera de

produção/consumo cultural restrito e a esfera de produção/consumo cultural alargado,

com os agentes da primeira a procurarem manter a distinção e os agentes do segundo a

procurarem aceder-lhe.

No decurso destas lutas entre valores elitizantes e democratizantes, decorrentes

do facto de todas as esferas de produção cultural se terem vindo progressivamente a

submeter às exigências de rentabilidade capitalista (embora sob diferentes modalidades)

e, consequentemente, se terem confrontado com novos sistemas de organização e de

distribuição cultural, aconteceu uma inevitável reavaliação dos princípios que

orientavam a hierarquia da legitimidade que caracterizava a produção cultural na época,

ou seja, alterou-se a lógica dos mecanismos valorativos das obras artísticas. A

121 É efectivamente em meados do século XIX que aparecem as primeiras campanhas de difusão deste bem, acompanhadas de campanhas alargadas de alfabetização. É também por esta altura que se editam as primeiras colecções de "clássicos" (que, note-se, não integravam apenas textos de autores clássicos, mas também alguns romances ditos "de cordel") e que são publicados nas páginas de muitos jornais da época os conhecidos "folhetins" (são, aliás, os folhetinistas os primeiros "criadores-profissionais", estado actual da condição social do artista), género de produção literária que se vulgariza no fim do século XIX e que, dando avultados ganhos aos editores e aos próprios autores, era depreciativamente classificado pelos críticos como "literatura comercial".

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hierarquia da legitimidade cultural e artística passou a ser atravessada por um modelo

polarizado, baseado na oposição entre uma produção orientada para um público

alargado, com a finalidade de obter lucros financeiros - a "arte burguesa" ou "arte

comercial" - , e uma produção orientada para um público restrito, na qual o autor-

criador reivindicava um pretenso domínio exclusivo sobre a sua respectiva produção - a

"arte pura".

No caso da esfera de produção cultural alargada, passaram a funcionar as lógicas

económicas comuns, ou seja, foi o princípio da reprodutibilidade que se impôs; por

outro lado, no caso da esfera de produção cultural restrita, estaríamos, à primeira vista,

perante a inversão destas lógicas economicistas, sendo o reconhecimento do valor e da

legitimidade da obra, neste outro pólo, traduzido no princípio da denegação da

economia - concepção caracterizada pela ética do desinteresse em relação ao

económico, que recusa e condena o "comercial" no campo artístico, e por um processo

de sublimação do económico para o estético, considerando que o valor da obra de arte é

intrínseco a ela própria -, assim como no princípio da raridade - concepção que valoriza

determinado bem cultural pelo seu carácter único, raro, escasso, autêntico e pereno,

desvalorizando-o quando se multiplica.

Entre estes dois pólos recairam fortes suspeitas de incompatibilidade, tendendo a

fazer-se separar a Arte da Indústria Cultural: a primeira passou a ser associada ao modo

de criação artesanal (no sentido de manual), às formas culturais clássicas e ao produto

de tipo único ou pouco reprodutível, sendo-lhe conferido um sentido que é o da maior

criatividade e independência; a segunda, por seu turno, passou a ser associada ao modo

de criação integrado no processo de reprodução industrial e ao produto serial, sendo-lhe

conferido um sentido que é o da menor autonomia do criador, sujeito à pressão dos

critérios industriais e comerciais. Enraíza-se assim uma forte contradição entre trabalho

artístico e trabalho industrial: a contradição da subordinação servil, da negação da

autonomia e da criatividade em que este último coloca os criadores, versus o mito do

artista livre e independente, intocável e imaculado, à margem de qualquer amarra social

e da própria especulação económica.

Nestas circunstâncias, estabelecendo a raridade como princípio básico onde se

firma a legitimidade da "verdadeira" obra de arte, a dita cultura de massa passou a ser

avaliada pela negativa, como aquela a que não era aplicável o referido princípio. Em

relação a ela, os adeptos da cultura dita cultivada demarcaram-se ostensivamente,

adoptando um comportamento de rejeição etnocentrista face ao suposto "gosto vulgar"

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que representava, por oposição ao "gosto cultivado". Os próprios mediadores que

emergiam a partir da entrada das formas culturais clássicas na esfera do mercado, por

muito que aderissem aos valores da democracia cultural122, teciam amargas

recriminações à potencial sujeição dos criadores ao "gosto fácil do grande público",

ganhando proeminência como agentes indispensáveis na preservação de tal oposição.

Isto porque era justamente desta oposição e do que ela implicava que a sua acção

ganhava relevo, tornando-se por isso cúmplices directos daquele que se pretendia

criador puro na vontade de ruptura e de liberdade que o animava para afirmação do seu

projecto de radicalidade alternativa em termos estéticos e éticos.

Social e institucionalmente "desprotegido", como vimos atrás, o artista-criador

encontrava-se realmente à mercê dos vários intermediários culturais que, também eles

necessitados de afirmar a necessidade da sua acção, o rodeavam cada vez mais de perto.

Mas o objectivo da acção destes últimos não era, de facto, tanto o de corrigir mas o de

compensar as dificuldades que, geradas do lado da criação, propiciavam o seu

afastamento em relação ao pólo da recepção, já que era justamente da existência dessas

dificuldades que decorria a necessidade da sua própria acção. Para se auto-consagrar

como agente imprescindível, o mediador cultural não só não tentava corrigir como até

fazia reproduzir e acentuar as dificuldades que supostamente apenas ele saberia

resolver.

Foi o que os agentes propriamente económicos, como o marchand e o galerista,

realizaram: ao assumirem a responsabilidade da gestão económica das carreiras

artísticas, incentivaram e fizeram reproduzir a ética do desinteresse comercial do artista

sobre as obras que produz, criando para si próprios o espaço necessário para tirarem

economicamente partido da originalidade estética atribuída ao trabalho do artista. Foi

também o que aconteceu no caso do crítico que, embora sempre confirmando e

cultivando publicamente a imagem do artista em "exílio" como condição necessária à

irredutibilidade do seu projecto criador, procurou não só aproximar-se mas também,

frequentemente, emiscuir-se num grupo particular de artistas (quando não era ele

próprio que constituía esses grupos, funcionando como elemento de agregação) e

participar activamente na sua "política", colaborando, por um lado, na elaboração e

122 Esta adesão era vislumbrada neste pólo sempre "de baixo para cima" e não "de cima para baixo", ou seja, não seria o artista que se sujeitaria ao gosto do público, mas sim o público que deveria esforçar-se por perceber o trabalho do artista, esforço esse sempre apoiado pela acção missionária e civilizadora do intermediário cultural, designadamente do crítico.

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valorização dos seus programas e manifestos e, por outro, iniciando e conduzindo

publicamente as suas polémicas.

E enquanto se propunha a ajudar os artistas a enunciar e a esclarecer os seus

projectos criativos, incitava-os a levar a sua pesquisa até ao máximo nível de

originalidade e, por sua vez, de incomunicabilidade, apelando à crescente

complexificação, depuração e auto-referenciação da sua produção, fomentando assim a

necessidade pública da sua presença, quer como porta-voz em relação ao grupo, quer

como intérprete-tradutor das obras produzidas no âmbito desse grupo junto do público.

É neste sentido que podemos entender as palavras de Maria de Lurdes Lima dos Santos

quando refere que «o culto da raridade da obra e do mito do criador singular - culto que

sustentava a legitimidade cultural - tem contado entre os seus sacerdotes com a referida

figura do crítico-conhecedor. "Culto" e "sacerdote" forjaram-se e desenvolveram-se

precisamente em situações que punham em causa tanto a raridade da obra como a

singularidade do autor (situações de expansão de mercados e alargamento da

difusão).»123

Deste modo, o crítico moderno acabou efectivamente por conduzir uma política

de ruptura em relação às realidades, na sua opinião, alienantes, proporcionadas pela

democracia cultural e pela capacidade de reprodutibilidade que a alicerçava.

Fundamentando a sua prática sob o princípio da raridade e da autenticidade das obras

que se apresentam como artísticas e, neste sentido, assumindo a criação artística como

singularidade e autenticidade, considerando a repetição banalidade e falsidade, a sua

posição pautou-se pela recusa, pela revolta, pelo incessante protesto contra a cultura de

massa, indiferenciadora e indiferenciada. E sendo a repetição algo que se vislumbrava

inevitável no processo de produção e difusão de bens e serviços culturais, consequência

da sua crescente orientação para o mercado, daqui resultaria, pensavam alguns críticos e

outros intelectuais da época, que a arte estaria condenada à perda de autenticidade, à

degradação cultural, em suma, à sua catástrofe final.

Até meados do nosso século, altura em que se compreendeu que a autenticidade

e singularidade da obra não dependia inevitavelmente da sua raridade material e que era

uma categoria socialmente construída, essa concepção subsistiu profundamente

enraizada quer no campo das artes e letras, quer no próprio campo intelectual. Ainda

123 SANTOS, "Reprodutibilidade/Raridade: o jogo dos contrários na produção cultural", in A Sociologia e a Sociedade Portuguesa na Viragem do Século, Lisboa, Actas do I Congresso Português de Sociologia, Vol. II, Edições Fragmentos, 1988, p.700.

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nos anos 30, como sublinha Idalina Conde, Walter Benjamin «proclamava a perda dos

valores de culto das obras nos valores de exibição mercantil, quando os artefactos

culturais entram na era da reprodutibilidade. Também Adorno repugnava a vulgaridade

do consumo de massas e da indústria cultural.»124 No entanto, depois da II Guerra

Mundial, o quadro culturalmente dicotómico atrás esboçado complexifica-se bastante e

noção pessimista acerca do futuro da arte começa a diluir-se progressivamente.

A necessidade de produzir em grande quantidade para obter lucros e de,

simultaneamente, evitar a saturação do mercado e vencer a concorrência, requeriam,

entre outras coisas, eficácia na organização do ciclo de fabricação cultural e capacidade

de inovar, diversificar e seleccionar neste domínio. Daí ter sucedido, após os anos 50, a

preocupação no processo de produção cultural, mesmo que alargado, em tentar-se evitar

ao máximo os efeitos de estandartização, sendo nesta fase, como faz notar Maria de

Lurdes Lima dos Santos, «que o jogo das duas lógicas contrárias

(reprodutibilidade/raridade) se afirma de tal modo que, na reprodutibilidade, o que hoje

interessa é a diferença.»125 Desta maneira, o fenómeno de penetração do capitalismo no

campo cultural e artístico passou a ser susceptível de ser entendido como um factor

dinâmico de inovação, e não apenas de estandartização repetitiva. Contudo, para alguns,

designadamente os que não perceberam o alcance desta transformação ou que

simplesmente a ignoraram, tal fenómeno continuou a corresponder à caminhada para a

catástrofe cultural e artística. Para outros, pelo contrário, significou um grande avanço

no processo de democratização cultural: uns e outros, no dizer de Umberto Eco,

representam os Apocalípticos e os Integrados.126

Hoje, de facto, a visão apocalíptica sobre a evolução artística, assim como a

perspectiva de uma indústria cultural entendida como um processo uniforme, serial,

ilimitado e alienante, em contraponto à criação artística, singular, original e autêntica, já

não nos serve nem faz qualquer sentido. Tal como afirma Idalina Conde, «no alvor da

década de 90 (...), os artistas conhecem um acolhimento sem par e a cultura entra

tranquilamente na produção em série e no mercado»127. Paquete de Oliveira também

124 CONDE, SANTOS e OLIVEIRA, "Arte e Media: Cultura ou Indústria", in Sociologia - Problemas e Práticas, nº 8, 1990, p.170. 125 SANTOS, "Reprodutibilidade/Raridade...", op. cit., p.369. 126 ECO, Umberto, Apocalípticos e Integrados, Lisboa, Difel, 1964/91. 127 CONDE, SANTOS e OLIVEIRA, "Arte e Media: Cultura ou Indústria", op. cit., p.171.

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sublinha numa epígrafe de um texto seu, que «não valem os Eufemismos. Hoje, tudo se

«vende». Vende-se o Livro, o Disco, a Pintura, vendem-se as ideias.»128

Com efeito, se a actual aproximação entre arte, indústria e mercado não é

passiva, ela aparece cada vez mais como um fenómeno inevitável. Todas as formas

culturais e artísticas actualmente querem-se vendáveis, e vendem-se cada vez mais de

forma multiplicada. A indústria do livro substituiu a cópia e difundiu largamente este

objecto. O disco e a rádio, complemento dos concertos (que também se "serializam"),

vieram fazer reproduzir largamente todo o tipo de música. A reprodução gráfica das

obras pictóricas, com a ajuda das técnicas da litografia e da serigrafia, indicíam

visivelmente também neste domínio uma estratégia de direccionamento para o mercado,

tornando-as susceptíveis de serem classificadas como bens reprodutíveis em grau

reduzido, racionalizadas pela tiragem, e possibilitando-lhes um mais fácil acesso. Outras

formas culturais clássicas, como a ópera ou o teatro, recorrem igualmente a canais

tradicionais de difusão e circulação alargada, como a televisão, reclamando por mais

público.

Neste contexto, com a acelerada penetração do capital em todos os domínios da

esfera cultural e artística, o quadro de correspondência linearmente estabelecido entre

formas culturais clássicas/criação artística/raridade e indústrias

culturais/estandartização/reprodutibilidade tendeu a tornar-se equívoco. A relação das

indústrias culturais com as formas culturais clássicas passa a não caracterizar-se

inevitavelmente pela incompatibilidade, contaminação ou perversão destas últimas pelas

primeiras, pois a participação do grande capital e a consequente exigência de

rentabilidade inerente à lógica do mercado capitalista e da produção serial já não incide

apenas sobre os produtos culturais a priori de grande reprodutibilidade, mas também

sobre os produtos culturais supostamente únicos ou susceptíveis a reduzida

reprodutibilidade.

Ora, a crescente orientação para o mercado quer da tradicional grande cultura,

quer da vulgarmente denominada cultura de massa, ao produzir uma certa aproximação

e intercomunicabilidade entre as diferentes formas culturais que outrora haviam

coexistido separadamente, veio traduzir-se em profundas transformações e

reierarquizações no vasto e complexo sistema de produção e difusão cultural dos nossos

dias, assim como, consequentemente, numa acentuada porosidade e meabilidade dos

128 Idem, p.167.

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mecanismos e princípios de valorização implicados no actual processo de

mercantilização cultural (sem que tal signifique, contudo, que a tensão entre mercados

dominantes e dominados, ou entre estratégias de afirmação e estratégias de distinção,

tenha deixado de existir).

Por um lado, verificamos a ocorrência de profundas transformações a nível da

divisão social do trabalho cultural, consubstancializadas na profissionalização e

especialização dos agentes criadores e na tendência para a integração descomplexada da

produção destes num amplo processo de trabalho colectivo, integração essa que vai

implicar a valorização da acção dos agentes mediadores. Devido à presença do grande

capital, o processo de criação vem decompôr-se, adequando-se à especialização de

funções que uma organização racionalizada economicamente reclama, e a imagem do

artista isolado vê-se cada vez mais ausente da cena artista.

Assistiu-se assim à divisão racional de tarefas culturais em especialidades, bem

como à profissionalização do agente criador (hoje com o estatuto de artista-

profissional), patente no recente desenvolvimento de formas associativas a nível

nacional e internacional (associações e sindicatos de escritores, artistas plásticos,

compositores, críticos de diversas áreas, etc), visando a defesa e a dignificação das

respectivas profissões, o que constitui um bom indicador da preocupação daqueles

relativamente à sua posição no mercado de trabalho. Tais alterações na divisão social do

trabalho cultural e artístico conduziram efectivamente ao esbatimento da figura do

criador singular e independente, com a correlativa valorização dos agentes mediadores

que intervêm tanto no lançamento e distribuição dos produtos culturais e artísticos,

como na sua própria concepção e recepção, interferindo quer na definição no valor

estético e económico da obra, quer na produção do seu sentido social.

Por outro lado, a constante interacção entre os universos económico e artístico

que se observa hoje em dia, combinando a promoção da arte através da sua

mercantilização com a promoção da mercadoria através do seu valor estético, fez com

que nos actuais mecanismos de valorização da obra de arte, o princípio conhecido por

denegação do económico comece a perder o peso que detinha, ao mesmo tempo que o

produto cultural industrial vem tornar-se, ele próprio, susceptível de investimento

simbólico e apreciação distintiva. Quanto ao princípio da raridade e da autenticidade,

este, todavia, não perdeu de todo o seu valor operativo. Para que seja inteligível, exige

sim que se tenham em conta quer os novos moldes em que se processa a assimilação

estética e em que tal princípio é considerado, quer os instrumentos e os elementos de

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que se socorrem as indústrias culturais na valorização e singularização dos seus

produtos e que concorrem para a aproximação do valor destes ao das formas culturais

clássicas.

Primeiro, há que considerar que o princípio da raridade não é hoje adoptado

tanto em relação à vertente material da obra, mas em relação à sua vertente

propriamente conceptual, o que implica a rotação da direcção sua operacionalização da

obra em si para o sujeito que está na sua concepção. Ou seja, a autenticidade da obra de

arte está na ideia que ela consubstancia, resultante do talento do seu progenitor, e por

mais que essa ideia seja materialmente multiplicada a sua potencial autenticidade e

originalidade não são passíveis de serem destruídas.

Quanto aos instrumentos específicos no campo cultural e artístico a que as

indústrias culturais podem recorrer para valorizar simbolicamente os seus bens,

distinguindo-os da ou na série e assegurando o seu estatuto de criação dentro da

multiplicação, referimo-nos a toda a gama de técnicas de promoção comercial e de

marketing que actualmente existem, desde o best-seller ou o star-system até ao sistema

de assinaturas, instrumentos esses que, dada a sua sofisticação, permitem estabelecer,

num mesmo tempo, uma relação individualizada e individualizadora entre o consumidor

e a produção cultural através de um circuito de difusão de massa, e conferir ao tipo de

bens reproduzíveis a autenticidade e a raridade definidora, em princípio, da cultura

legítima, contribuindo assim para a reprodução do mito do artista-criador, fazendo crêr

que tal escritor tem várias edições esgotadas ou tal actor é "cabeça de cartaz" devido à

raridade do seu talento e à sua originalidade.

No que se refere aos seus elementos estabilizadores, entre estes situa-se a acção

dos mediadores culturais, entendidos como agentes que concorrem para a realização do

valor e do sentido dos bens culturais a que estão associados na sua intervenção. O

discurso crítico é, designadamente, uma peça fundamental na preservação do valor da

criação artística, demarcando e instaurando a diferença da obra da ou na série, quer

através da visibilidade social que lhe concede, quer por via das suas componentes

discursivas singularizadoras, ao estipular uma medida para o seu valor estético, assim

como várias possibilidades de sentido para além do que é manifesto. É nestas

circunstâncias que este tipo de discurso aparece hoje associado não apenas às formas

culturais clássicas mas também a múltiplos domínios culturais já legitimados ou em vias

de legitimação artística, caracterizados pela produção industrial e, por isso, fundados

sobre o princípio da reprodutibilidade, tais como o cinema, a fotografia, o design ou a

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moda, concorrendo também desta forma na ruptura com a barreira da oposição

produção/consumo restrito e produção/consumo alargado, assim como no curto-circuitar

os clássicos critérios de definição da legitimidade cultural.

Recorrendo aos diversos instrumentos e elementos que acabámos de focar, os

quais demonstram apenas algumas das combinatórias entre série e novidade que a

indústria cultural ensaia para impedir a saturação do mercado e para promover

simbolicamente os bens que produz, diz-nos Maria de Lurdes Lima dos Santos que «o

objecto de série tende presentemente a ganhar qualidades técnicas e estéticas, a

diversidade instala-se e cria a ilusão da raridade através do sistema das pequenas

diferenças sobre-multiplicadas.»129 É justamente neste jogo entre duas lógicas

aparentemente contrárias - a da reprodutibilidade capitalista e a da raridade da obra -,

que o que actualmente é considerado como criação artística é passível de se encontrar

inserido num processo de produção industrial, sendo por isso reproduzível, e,

simultaneamente, continuar a ser valorizado segundo o princípio da raridade.

No entanto, não podemos esquecer que se estas estratégias de valorização

começaram por ser adoptadas na esfera da cultura dita de série, elas não deixam de ser

presentemente utilizadas na promoção simbólica das formas culturais tradicionalmente

localizadas na esfera de produção restrita, devido ao facto destas formas, por via da

penetração acelerada do capitalismo na produção, circulação e consumo artístico,

aparecerem também hoje cada vez mais associadas ao processo de reprodução alargada,

numa situação de dependência objectiva face ao mercado. Criam-se assim novas formas

culturais e artísticas, sendo as clássicas redefinidas, apresentadas e divulgadas de outras

maneiras que não as tradicionais.

Por detrás da intensificação do movimento de penetração da lógica capitalista na

esfera cultural, bem como, por consequência, da diluição da clássica polarização entre

esfera de produção/ consumo restrito e esfera de produção/consumo alargado, estão

algumas transformações que, a nível estrutural, se têm vindo a fazer sentir na nossa

sociedade, as quais não podemos deixar de referir, ainda que somente de passagem.

Uma dessas transformações diz respeito ao processo de libertação do tempo de trabalho

que progressivamente temos vindo a assistir, processo esse que possibilitou o aumento

do tempo de lazer e, por sua vez, a procura deste como tempo de investimento cultural e

de promoção social, ou seja, como tempo simbólica e conspicuamente investido,

129 SANTOS, "Reprodutibilidade/Raridade...", op. cit., p.371.

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permitindo a aposta económica numa "cultura do lazer". Por outro lado, as inovações

tecnológicas que a um ritmo alucinante se têm vindo a desenvolver, tiveram também

importantes efeitos quer na diminuição do tempo de trabalho, quer nas alterações que

aconteceram ao nível da produção, difusão e consumo cultural e artístico,

proporcionando um alargamento e diversificação das audiências e dos seus modelos de

recepção e consumo, bem como uma inflação da oferta em termos de bens e serviços

culturais e artísticos.

Não podemos igualmente alhear desta questão a importância das mudanças que

têm vindo a acontecer no meio intelectual, ligadas à inflação dos cursos e dos títulos

escolares (relacionados com actividades culturais e artísticas ou não), assim como,

consequentemente, de uma população em contacto com a cultura legítima e em

melhores condições culturais para legitimar outras formas culturais, factores esses que,

reunidos, levaram a um considerável aumento da dimensão e da diversidade dos

potenciais públicos que utilizam esses mesmos bens e serviços culturais e artísticos. É,

todavia, de notar que este fenómeno de expansão cultural por via da implementação de

uma política de democratização escolar, não foi inevitavelmente sinónimo de um

aumento da competência estética dos novos públicos que daí poderão surgir, pois

poderá revelar apenas um aumento da sua familiaridade com o mundo das artes sem que

isto signifique um aumento de proximidade, assim como um aumento do

reconhecimento, sem que tal signifique, por sua vez, um aumento de conhecimento

estético.

Ainda neste âmbito, há que que sublinhar as transformações que têm vindo a

suceder na actual estrutura social, nomeadamente com a emergência e expansão de uma

nova classe média ou de uma nova pequena burguesia intelectual, da qual surge uma

nova categoria de produtores, intermediários e consumidores culturais e artísticos. Com

efeito, na tentativa de delimitar fronteiras e de definir a sua posição específica na

estrutura social, esta nova categoria social vai investir avultadamente, sob diferentes

modalidades, na arte e na cultura, integrando-as e dando-lhes um lugar de destaque no

seu estilo de vida. Torna-se assim notório que este processo social vai também

proporcionar a constituição de novas audiências e de novos relacionamentos no campo

cultural e artístico, relacionamentos esses que nem sempre são pacíficos

(nomeadamente entre os agentes que tradicionalmente actuavam nesse campo e os seus

novos agentes, entre os quais as lutas pelo monopólio da definição legítima do que é ou

não é arte vão ser constantes e acentuadas).

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Por último, é ainda de salientar a acção de um outro processo que, associado aos

anteriores (e de algum modo deles consequente), começou agora a esboçar-se

socialmente. Falamos, designadamente, da progressiva estetização do quotidiano que

tem vindo a acontecer, processo esse que exprime a crescente valorização de visões e

vivências estetizantes do quotidiano, isto é, o alargamento da preocupação com a

dimensão estética na nossa vida de todos os dias, consubstancializada quer nos

constantes apelos que hoje se fazem ouvir em relação aos cuidados que se devem ter

com o corpo, com a moda, com a decoração, no fundo, com a imagem que queremos dar

de nós próprios aos outros com quem nos cruzamos, quer ainda no facto das estratégias

de diferenciação e promoção social de todos os produtos com que lidamos

quotidianamente assentarem cada vez mais em elementos de natureza estética.

Tal como refere Paulo Monteiro, «se hoje se comenta tanto (e tanto se critica) a

fortíssima presença do espetáculo na política, na economia ou no desporto, é porque

houve uma estetização difusa da sociedade, que faz viver as artes numa nova e, a meu

ver, fascinante impureza: não houve a tão anunciada morte da arte mas sim a morte da

estética (Peter Burgin) oitocentista e vanguardista, que concebia uma relação de

recolhimento com uma arte do recolhimento. Hoje, quando a estética entra em

cumplicidade com a campanha de um Presidente da República ou com uma pasta de

dentes, a disseminação da arte no quotidiano abala, dentro das próprias artes

tradicionalmente definidas, a dicotomia entre alta cultura e cultura de massas, e cria um

exército de pequenos criadores a trabalharem em pequenas criações.»130

Ao incentivar o acto criativo no quotidiano (quando o indivíduo, por exemplo,

se produz para sair) e para o quotidiano (quando o criador produz bens mais ou menos

funcionais para serem utilizados - como uma peça de vestuário ou de mobiliário - ou

vistos - como os graffiti ou as intervenções urbanas - quotidianamente), este processo

tende efectivamente a estimular o esbatimento, a aproximação, a diluição das fronteiras

fictícias entre a arte e a vida, promovendo uma ruptura com a institucionalização da

actividade artística tal como era romanticamente concebida. Por outro lado, é também

de notar o facto de hoje em dia assistirmos frequentemente à utilização e recriação

inovadora, por parte de artistas associados, em princípio, a circuitos de produção

restrita, de técnicas, materiais e/ou elementos banais e estandartizados que inundam o

nosso quotidiano, utilização e recriação essa que faz deslizar os bens reprodutíveis do

130 MONTEIRO, in O Teatro e a Interpretação do Real, op. cit, p. 105.

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seu contexto habitual para contextos diferentes, concorrendo para a percepção destes

como também passíveis de criação e de avaliação artística.131

Ora, todas estas transformações estruturais e de vivência quotidiana vieram

efectivamente desenvolver-se a par e passo com o alargamento do próprio campo

cultural e artístico, contribuindo para a diluição das velhas hierarquias de legitimidade

nele estabeleciadas, para a legitimação de novas esferas de produção e consumo, para a

inflação e heterogeneização dos bens e serviços culturais disponíveis e para o

adensamento e reestruturação da tradicional composição de consumidores culturais. No

contexto deste movimento de expansão, democratização e intensificação cultural, a

prática crítica não só voltou a redefinir-se como actividade sobretudo ao serviço do

público interessado em matérias culturais, como o seu processo de institucionalização

veio a consolidar-se definitivamente, passando a sua presença a ser constantemente

reclamada no universo cultural.

De facto, o fenómeno de explosão na vida cultural que, quer sob a forma de

produção, quer sob a forma de circulação, quer ainda sob a forma de consumo, veio a

acontecer desde a II Guerra Mundial, com os seus consequentes efeitos de

democratização relativa do campo artístico e de dilatação dos seus limites internos, em

muito contribuiu para fazer acentuar a necessidade da acção reguladora, legitimadora e

orientadora do crítico. Com o visível direccionamento da produção cultural para o

mercado, a tentação do criador em orientar a sua estratégia criativa segundo a

experiência daquele, incorrendo na repetição ou na imitação de motivos, temas, estilos,

no fundo, de receitas bem sucedidas, deixando para trás a inovação que lhe é

socialmente exigida, foi uma hipótese que se pôs com maior veemência. Crendo-se que

a proximidade e o conhecimento que o crítico tem do campo em que intervém lhe

permite identificar o plágio e o engano, o epigonismo e a mentira, pede-se-lhe então

que, com a perspicácia e saber de que se reivindica e de que é investido, vigie e

denuncie tais situações em que a qualidade cultural é duvidosa e que poderão passar

131 Isto na medida em que tal estratégia proporciona a criação de novas estruturas imaginativas quer por parte da produção, quer por parte da recepção, já que implica todo um trabalho de descontextualização e recontextualização do elemento/técnica/material utilizado por parte do produtor, trabalho esse que vai modificar a mensagem ou o conteúdo simbólico atribuído ao elemento/técnica/material na sua situação "normal", exigindo do receptor, por sua vez, todo um trabalho de desestruturação e reestruturação dos códigos de interpretação e de valorização desse mesmo elemento/técnica/material, obrigando-o a procurar novos recursos para a sua descodificação. É, no fundo, uma maneira de tornar novo o que já não é novo, representando o já visto de modo novo.

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despercebidas aos olhos do leigo, funcionando assim como elemento de regulação e

classificação cultural e artística.

É nesta perspectiva que podemos compreender as palavras de António

Guerreiro, crítico de literatura no Expresso, quando diz que «o crítico será aquele que,

precisamente, conseguirá distinguir onde é que está o lugar comum daquilo que não é

lugar comum.» Ou as de Eurico Gonçalves, crítico de artes plásticas no Diário de

Notícias, para quem a crítica deve «dizer se de facto essa pintura tem uma marca de

autenticidade, se revela uma pureza que é altamente respeitável, ou se, pelo contrário,

tenta enganar, tenta passar por ser não sendo, entra no domínio do artifício.» Ou ainda

as de Dámaso Alonso, ao assumir como uma das principais tarefas da crítica a de

distinguir a obra autência da obra simulada e deste modo eliminar da circulação

artística os falsos valores.132 Aliás, se tivermos em consideração que a própria origem

etimológica da palavra crítica é derivada da expressão crinein - cujo significado se

prende justamente ao acto de fazer passar por um crivo, de fazer separar o trigo do joio

-, logo verificamos como a esta prática discursiva, desde a sua génese e

institucionalização social, ao pressupôr um acto de selecção e de classificação cultural,

filtrando apenas um número relativo de trabalhos entre aqueles, inumeráveis, que têm na

sua base uma intenção criativa, notando-lhes defeitos e qualidades, limites e virtudes,

aferindo da sua originalidade/singularidade ou vulgaridade, toma para si o papel de

mecanismo de controlo e regulação do acesso ao campo artístico, permitindo o

posicionamento dos artefactos que lhe pretendem aceder na hierarquia da produção

cultural.

Por outro lado, em condições de concorrência tão aguerrida com uma oferta

cultural cada vez mais avultada e diversificada, a acção publicamente legitimadora do

crítico aparece como uma benesse promocional e consagrativa fundamental para o

criador, ao permitir-lhe a si e à sua obra um destaque público credível, alargado e

singularizado, constituíndo assim uma das principais etapas da construção da sua

reputação social e cultural por que terá de passar. E perante esta amálgama provocada

pela cada vez maior dispersão e pluralidade de manifestações culturais colocadas à

disposição do consumidor, urge fazer ressaltar, distinguir, hierarquizar, seleccionar o

132 Cit. in COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., p. 415.

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que comprar, o quer ver, o que ouvir. É nestas circunstâncias que também o público,

disperso mas curioso, irá procurar cada vez mais a crítica, solicitando-lhe uma acção

fundamentalmente orientadora, informativa e judicativa, quanto mais simplificada

melhor, como é patente na conhecida fórmula das estrelinhas, hoje empregue já não

apenas na área do cinema, onde nasceu, tendo-se disseminadado igualmente por outras

artes do espetáculo.133

E é neste contexto de dilatação, reprodutibilidade e mercantilização cultural

intensa que a componente de informação na crítica, nomeadamente da crítica que é feita

ao nível da imprensa escrita, começa a ser estímulada e valorizada como elemento

fundamental a ser integrado na estratégia discursiva traçada pelo crítico, sem o ser em

detrimento das restantes. Chamar a atenção para a existência de, dar visibilidade a,

informar para além de apreciar e interpretar, foram funções que passaram a ser bastante

pretendidas da crítica quer por parte do leitor, quer por parte do criador, quer ainda por

parte dos meios por onde é privilegiadamente divulgada, ou seja, os jornais, funções

essas cuja importância o próprio crítico, com maior ou menor grau de resistência,

legitimou e acarretou. Senão vejamos:

«Quais considera serem as principais funções da crítica no contexto do actual

universo cultural ou artístico? A primeira utilidade é informativa. Quer dizer, hoje que

os consumos culturais estão instituídos como fazendo parte da vida corrente das

pessoas, lá reservam uma percentagem X da área da cultura, que obviamente não é

grandemente separável da área dos tempos livres... Um dos primeiros sentidos daquilo

que se faz é o informativo e é, de algum modo, a orientação dos tempos livres; e depois,

em segundo lugar, dos gostos; e em terceiro lugar, da própria produção, na medida em

que obviamente vai tendo consequências sobre o funcionamento das galerias, sobre o

mercado, e eventualmente sobre os próprios artistas, na medida em que se tem um

poder efectivo neste sector.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso)

133 A classificação dos bens culturais por estrelinhas deriva da integração do princípio da racionalidade numérica moderna universal no domínio cultural, tipo de racionalidade essa que passa pela institucionalização quantitativa do valor. Este tipo de classificação funciona basicamente como instrumento de consulta, exponenciando a dimensão judicativa da prática crítica em detrimento da sua dimensão reflexiva e interpretativa. Tentando relativizar a tirania da suposta objectividade subjacente a este sistema, ele integra, num gesto democrático, vários «déspotas», cujas opiniões expressas quantitativamente se podem verificar comparativamente.

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«...é evidente que a crítica também não existe como coisa imponderável. Existe

em contextos precisos, existe em jornais, que funcionam num mercado, e portanto quem

faz crítica não se pode abstrair disso. Eu diría portanto que a crítica, até porque surge

a maior parte das vezes associada a um trabalho mais de características jornalísticas

de informação sobre, pode desempenhar uma função de informação, de roteiro e

finalmente de apelo à relação específica do espectador com os filmes. Em termos

genéricos, eu diria que se a crítica conseguir cultivar a apetência e o gosto pelo

cinema, acho que está a cumprir uma boa função.» (João Lopes, crítico de cinema no

Expresso)

«Primeiro que tudo, dar a saber que os livros e os autores existem. Apesar dos

media produzirem aquelas sínteses, a pessoa fica sempre com o desejo de saber mais

qualquer coisa sobre aquilo, e creio que a crítica preenche essa função.» (Júlio

Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras)

«Os jornais sentem uma grande necessidade de ter uma crítica, ou por uma

questão de prestígio - também mas em menor escala -, ou por uma questão de

complementar a sua informação, ou seja, há um lado de informação que é

proporcionado pelos jornais que é a crítica. No fundo, há um mercado de exibição que

precisa de ser "anunciado", ou seja, as pessoas precisam de saber o que é que existe. O

mercado precisa de se dar a conhecer, e as pessoas precisam de saber o que é que há, o

que é que eu vou ver hoje. Se eu não tiver ninguém que me informe sobre o que é que eu

vou ver hoje, eu não sei o que é que vou ver hoje. O boca a boca em algumas cidades já

foi. A oferta é muita, portanto as pessoas vão procurar o jornal para ver o que é que

existe. Ora, essa informação escusa de ser passiva, pode ser activa. O crítico pode

fazer o «ranking» dos filmes, mas as pessoas querem saber um bocado mais.

Inclusivamente, para não ir para questões de gosto nem de opções estéticas, nem éticas

nem nada, as pessoas querem saber numa crítica quem são os realizadores, quem são

os actores, qualquer coisa sobre isso, qual é a história do filme, e não sei que mais.

Não acho que o crítico deva fazer só isso, não sei se também deve fazer isso,

provavelmente sim.» (José Navaro de Andrade, crítico de cinema no Público)

3.5. CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E DE DIFUSÃO DO DISCURSO

CRÍTICO: DO ESPAÇO DA ACADEMIA PARA O ESPAÇO DA IMPRENSA

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Ainda no âmbito do movimento de proeminência e institucionalização da figura

do crítico no campo cultural e artístico que temos vindo neste trabalho a descrever e a

interpretar, é igualmente de destacar a importância que a expansão dos mass media teve

no seu desenvolvimento. Com o florescimento crescente da imprensa escrita a partir de

meados do século passado, o discurso crítico encontrou um vasto campo de acolhimento

que o vem retirar de entre os muros da Academia e do Salão, espaços privados e

restritos a que estava circunscrito, transferindo-o directamente para o âmbito de um

espaço público e alargado. Ora, este movimento de transladação da Academia para os

media, como é evidente, ao fazer expandir substancialmente as possibilidades de

difusão deste tipo de discurso, veio proporcionar ao crítico uma enorme visibilidade

social e cultural que lhe ampliou consideravelmente as capacidades de protagonização

no campo cultural e artístico.

A integração da prática crítica no campo jornalístico poderá ser vista como

consequência quer da transformação das condições socio-económicas e institucionais

que na segunda metade de Oitocentos caracterizaram o mundo das artes, quer da

reestruturação que no próprio campo da imprensa aconteceu também por essa altura.

Com efeito, como já tivémos oportunidade de referir, a produção cultural intensificou-

se, as instâncias e circuitos de difusão, legitimação e consagração tradicionais

revelaram-se impotentes e preconceituosas diante deste fenómeno, e o grau de

aceitabilidade e de comunicabilidade imediata entre esta nova produção e o seu público

consumidor potencial (que se alargava) baixou, tendo-se a crítica desenvolvido como

resposta a estas novas circunstâncias, passando desde então a determinar de forma

decisiva o espaço de existência da arte. Simultaneamente, assistimos à liberalização

da imprensa em relação ao controle oficial, com a sua organização segundo os moldes

industrais da produção capitalista e os princípios da livre concorrência e da oferta e da

procura, processo esse associado à melhoria das vias de comunicação, ao alargamento

da instrução pública, ao crescimento das cidades e aos progressos da técnica tipográfica,

nomeadamente à invenção da rotativa, que irá possibilitar não só um aumento

considerável das tiragens, como a sua mais rápida reprodução.134 Passando a funcionar

sob a lógica do mercado capitalista em detrimento da lógica político-ideológica (dentro

da qual o jornal funcionava basicamente como instrumento de combate e de

134 CRATO, A Imprensa, Lisboa, Editorial Presença, 1989, pp. 31-38.

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propaganda), assim como em moldes industriais de produção, perdendo o seu carácter

limitado e propangandístico, a imprensa deixa então de tratar unicamente os

acontecimentos que interessavam directamente à classe política e preocupou-se em

alargar a sua abordagem a novos temas e conteúdos, procurando através da apresentação

de um produto diversificado chegar a novas e cada vez mais vastas faixas de público.

Assim sendo, apercebendo-se do crescente paradoxo que se fundava no mundo

das artes entre disponibilidade social e dificuldade cultural, rapidamente surge no

contexto jornalístico um interesse notório pelo tratamento dos acontecimentos e temas

associados àquele universo, patente quer na sua inclusão nos diversos periódicos

generalistas que fervilhavam, quer na emergência de múltiplos jornais e revistas

especializadas em assuntos culturais e artísticos. Em Portugal, nomeadamente,

encontramos por essa altura uma proliferação de jornais de recreio e instrução, tipo de

«publicações de divulgação cultural que, embora acentuando nuns casos o factor

instrução e noutros o factor recreio, se preocupavam, regra geral, em proclamar a sua

missão civilizadora», e que se dirigiam prioritariamente a um público heterogénio, pelo

que detinham um carácter híbrido, «acentuado pela mistura de textos didácticos

dirigidos a um público não cultivado e de produções para um público restrito de

intelectuais.»135 Por outro lado, encontramos também uma imprensa cultural

especializada a expandir-se, esta ainda normalmente ligada a sociedades académicas e

dirigida a públicos mais específicos e cultivados.136

A crítica vai aparecer intimamente associada a ambos os tipos de imprensa,

embora praticada sob moldes diferentes na medida em que se predispunha a cumprir

funções distintas, sendo no primeiro dominada por intenções mais pedagógicas,

divulgativas e/ou de polémica, optando sobretudo pela fórmula da revista de

acontecimentos, isto é, o registo e comentário selectivo das obras ou eventos que

sucediam na actualidade, cumprindo predominantemente uma função de lançamento em

135 SANTOS, Os Intelectuais Portugueses em Oitocentos, op. cit, pp. 332 e 335. 136 As áreas de criação cultural privilegiadas no âmbito deste movimento de expansão dos lugares de difusão do discurso crítico, quer ao nível da imprensa generalista, quer ao nível da imprensa especializada, foram, no contexto português, a literatura e em muito também o teatro, sendo mínima a atenção neles dedidada às Belas-Artes, situação que se prolongou até aos anos 60 do nosso século. As várias tentativas de implementação de revistas especializadas específicas dessa área de criação cultural resultaram, na sua maior parte, em redundantes fracassos e/ou em experiências efémeras. No dizer de José-Augusto França, «a indiferença do público previa a impraticabilidade de fazer vingar uma revista destas em Portugal», situação que a persistência de muitos editores diletantes de arte, em vão, tentou ultrapassar. In A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., vol II, p. 113.

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termos que Maria de Lurdes Lima dos Santos designa de publicidade nobre137, enquanto

que entre o segundo tipo de imprensa prevaleciam preocupações mais de ordem

reflexiva, analítica e historicista. Aqui, a crítica apresentava-se muitas vezes sob a

forma de discurso biográfico, onde a narrativa detalhada das vidas dos artistas, passados

ou presentes, aparecia mesclada de uma intenção panegírica e de uma orientação

filológica, a qual, como verêmos mais à frente, muito em voga no contexto académico

da altura, caracterizava-se pela procura do sentido e do valor estético, em suma, a

relevância da obra de determinado artista no contexto social, cultural e/ou psicológico

da sua produção, contexto esse justificador e determinador da intenção estética e/ou

ética que a ela subjaz.

O espaço da imprensa veio, deste modo, dar lugar ao discurso crítico quer como

estratégia para chamar mais público-leitor, permitindo a cobertura dos eventos culturais

dentro da generalidade dos eventos mediaticamente tratáveis, quer como estratégia de

credibilização intelectual do próprio jornalismo, ao possibilitar a entrada neste a

notáveis das artes e letras. Para os críticos, por sua vez, a entrada no mundo do

jornalismo apresentava-se não só como uma alternativa ao meio restrito das publicações

académicas (que muitas vezes se reduzia aos catálogos e anuários das exposições, às

publicações das comunicações dos salões, e a uma ou outra publicação especializada

mais ou menos esporádica), como também lhe reconheciam um poderoso meio através

do qual podiam exercer a tal função social civilizadora e formativa que tanto

valorizavam e de que se reivindicavam.

Por outro lado, o jornal também aparecia ao crítico como dotado de um estatuto

privilegiado na medida em que lhe abria amplamente o espaço de possibilidades

discursivas em relação à Academia138, ao permitir-lhe certas tomadas de posição a favor

dos movimentos artísticos que se lhe opunham, assim como certas estratégias

discursivas pouco toleradas no interior daquela instituição, como a polémica violenta

muitas vezes praticada com recurso à «grosseria». De facto, no contexto jornalístico

mais facilmente se poderia produzir discursos e consensos em circunstâncias de

escândalo e de guerra aberta, já que tais circunstâncias, não esquecendo que o jornal

passava agora a assumir o estatuto de mercadoria, propiciavam melhores resultados na

sua venda.

137 SANTOS, Os Intelectuais Portugueses em Oitocentos, op. cit, p. 301.

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A colaboração por parte do crítico no espaço da imprensa ainda o atraía na

medida em que ele reconhecia nesta, pelo benefício que lhe concedia de um elevado

número de leitores, um eficáz instrumento quer para construír a sua própria reputação

pública, ou seja, para fazer valorizar social e culturalmente o seu nome de um modo

relativamente fácil e rápido, quer para firmar ou arruinar as reputações dos seus pares,

consoante pertencessem ao seu grupo de amigos ou inimigos, ou seja, consoante

partilhassem das suas afinidades electivas ou não. O facto da actividade crítica ser

geralmente acumulada ao exercício de criação, reforçava bastante a tendência daquela

apoiar cegamente os criadores com quem o crítico coincidisse nas suas disposições

estéticas e éticas, normalmente integrados, como já tivemos oportunidade de constatar,

nos seus quadros de interacção nucleares139, ou seja, os seus amigos mais próximos,

com os quais partilhava uma trajectória artística idêntica, e com os quais

frequentemente se reunia nos seus ateliers ou nos cafés costumeiros para discutir e

trocar opiniões sobre as obras produzidas, num regime de cumplicidade intelectual e

vivencial que, como vimos atrás, caracterizava o campo das artes na viragem do século.

Daqui resultava no contexto da crítica jornalística, como faz notar Maria de

Lurdes Lima dos Santos, uma crítica de camarilha, cujos elementos reciprocamente se

protegiam em redes de cumplicidade estética que se confundiam muitas vezes com o

compadrio, fundando informalmente sociedades de elogio mútuo que se fechavam a ver

qualquer coisa «de notável ou sequer de esperançoso, além dos horizontes desse mundo

criado pelos hábitos de conveniência ou pelos laços de amizade.»140 Com a gradual

desestruturação da tendência grupalista no mundo artístico, e com a crescente ocupação

dos lugares da crítica na esfera mediática por intelectuais não-criadores, possuidores de

uma cultura académica profundamente marcada pelo valor da distância e da

independência crítica, essa atitude foi todavia esmorecendo no desempenho da

actividade crítica.

138 Acerca das restrições discursivas e estéticas operadas pela Academia, sabe-se, por exemplo, que Zola não pôde continuar o seu Salon de defesa à pintura formalmente inovadora de Manet, devido à indignação do seu público ouvinte, bastante acomodado ao realismo academista. 139 O conceito de quadros de interacção nucleares aplica-se aqui à «cadeia estruturada de relações interpessoais e respectivas referências artísticas cuja organização obedece à forma de grupos e círculos», os quais se interconectam «numa malha de interdependências interagindo mutuamente por afinidade ou contrapozição electiva segundo uma lógica de interesses que extravaza em muitos aspectos o plano propriamente artístico e estético», cit. in CONDE, O Duplo Écran. 2. Artistas...", op. cit., p. 60. 140 Palavras de Andrade Ferreira, in SANTOS, in Os Intelectuais Portugueses em Oitocentos, op. cit, pp.301-302.

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A atracção do lugar da crítica como espaço privilegiado para o desenvolvimento

de um rápido processo de construção social de uma reputação pública do nome de quem

lhe acede, explica, em parte, o fenómeno tipicamente oitocentista que aconteceu em

Portugal (e não só) na relação entre o lugar da crítica e os lugares políticos. Utilizando o

primeiro como plataforma de lançamento público do seu nome, acumulando daí

dividentos simbólicos de visibilidade e prestígio social sobre a sua pessoa, muitos dos

críticos portugueses mais reputados vieram, mais tarde, na sua trajectória de vida, a

tomar cargos políticos de importância no Estado da nação portuguesa. Conta-nos José-

Augusto França acerca deste fenómeno que «Vieira (Custódio José) era um político

(como político seria Jaime Moniz), e curiosamente outros políticos verêmos

aproximarem-se do campo das artes, como críticos. É esse um fenómeno do

romantismo, em que vêmos caber, em exemplo quase normativo, Thiers - qua aos vinte

anos era crítico de arte e aos setenta presidente da República... Já vimos, de resto, o caso

de L. A. Mouzinho de Albuquerque, e activas personalidade políticas foram também

Garrett, o cardeal Saraiva, Rebelo da Silva e Mendes Leal que encontrámos no

alvorecer do romantismo artístico, senhores de posições assaz dúbias esteticamente - ou

Pinheiro Chagas que, em 66, afirmava que "nas belas-artes e nas belas-letras é a

eloquência o primeiro dos merecimentos", sendo da pintura a "eloquência das cores".

Andrade Corvo, Latino Coelho, António Eanes, todos eles futuros ministros, dedicaram-

se durante este período à crítica de arte ou à reflexão estética, e o mesmo fez, com maior

intensidade até, um Luciano Cordeiro que em outros domínios se ilustrou. (...) Importa

ainda ver que quase todos estes escritores, jornalistas e dramaturgos se ocuparam de

problemas de crítica e de estética na sua juventude apenas; a maturidade levou-os para

outros interesses, em que a política podia ganhar lugar pimacial. Entretém polémico de

juventude, falho de formação séria, o seu papel na cultura artística nacional foi pequeno,

e as queixa que mais ou menos todos eles fizeram, do desinteresse do público e da

Nação, mal lhes escondiam a incompetência. Afinal, tal desinteresse era, ao mesmo

tempo, causa e consequência da sua acção crítica, numa espécie de círculo vicioso cuja

solução se não via.»141

Se doravante a imprensa escrita permaneceu ligada à visibilidade e ressonância

dos eventos e movimentos culturais em geral, no contexto da recente intensificação da

141 FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., Vol. I, pp. 400-403.

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vida cultural nas suas vertentes de produção, circulação e consumo, a disponibilidade

dos media para a tematização dos eventos culturais veio a alargar-se bastante mais,

adquirindo um espaço de centralidade cada vez maior na sua agenda. Tomando

consciência da importância da sua presença e valor social e, por sua vez, da

possibilidade da sua comercialização e lucro em termos de cobertura jornalística,

sentindo que tais assuntos se tornavam suficientemente significativos e relevantes para

justificarem um tratamento mediático na medida em que íam ao encontro do interesse

de um público cada vez mais vasto, verifica-se desde há um par de décadas a esta parte

nos diversos orgão de informação, nomeadamente de informação escrita, um amplo

processo de redefinição e ampliação dos seus critérios de noticiabilidade e dos seus

valores notícia em relação a uma área que, anteriormente, não constituía notícia como

nos nossos dias.

Esse processo traduziu-se, mais uma vez, quer na expansão dos jornais e revistas

especificamente dedicados a temas culturais e artísticos, quer na exigência patente a

nível de todos os orgãos de informação escrita generalista da organização de uma

cobertura jornalística especificamente cultural e mais alargada, sob a forma de separatas

e sectores temáticos especializados, o que constitui um indicador significativo de que

aqueles temas e acontecimentos estão entre os mais importantes critérios de

noticiabilidade hoje em vigôr, constituíndo um valor-notícia fundamental. Nestes

dossiers, a notícia "cultural", o fait-divers, a reportagem, a entrevista e o parecer crítico

passaram frequentemente a acotovelar-se, muitas vezes confundindo-se ou sobrepondo-

se numa mesma peça, nomeadamente quando, numa estratégia de racionalização de

recursos humanos e económicos, o jornal faz coincidir na mesma pessoa as actividades

de jornalista cultural, essa nova figura que surge no âmbito de todo este processo, com

as de crítico.142

A constatação do recente processo de inflação de discurso crítico sobre a

produção cultural aparece ilucidativamente desenvolvida e explicada no testemunho de

José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público: «Repare, o que se criou foi, em

torno da produção, um peso - e não faço nenhum juízo de valor sobre isso - de

142 Muito embora estas duas actividades remetam para funções jornalísticas e estratégias discursivas diferentes, estando a primeira mais associada a um tipo de jornalismo de carácter eminentemente informativo e factual, cujo papel será transmitir "fielmente" os acontecimentos culturais, enquanto a segunda supõe o comentário opinativo, judicativo, interpretativo, estabelecido em moldes pessoais, sobre esses mesmos acontecimentos.

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produção sobre a produção, de analítica, de crítica, desde a universidade até aos

jornais, que tem subido exponencialmente nos últimos trinta anos, vinte anos,

sobretudo. É engraçado porque é em tudo. Os analistas políticos é uma coisa que era

impensável há vinte anos, ou se era político, ou se era votante. Neste momento é tão

forte e tão sólida em termos de quantidade, e não só, a produção crítica sobre a

produção artística, quanto a própria produção artística. (...) A ideia de opinião

começou a ganhar um peso enorme, porque por alguma razão arranjou um mercado.

(...) Há uma indústria da crítica. Por alguma razão os críticos existem em todos os

jornais. É uma indústria dentro do jornalismo, pode-se dizer bem ou mal, mas existe.

Como eu disse, o meu público é o meu editor, e se o editor me paga é porque acha que

lhe faz falta. Mesmo que não goste de mim, pelo menos tem lá um tipo a escrever

aquelas coisas. Porque se não interessasse a ninguém, nem que fosse por um questão

de prestígio só, pura e simplesmente, com a crise que existe, nem sequer se gastava

dinheiro com estes fulanos que andam aqui a escrever umas coisas sobre as obras de

arte. Por isso, existe uma indústria da crítica. E em Portugal é ainda larvar, não

existem praticamente revistas da especialidade. Em França existem quatro ou cinco

revistas de cinema, no mínimo, não sei quantas de artes plásticas, não sei quantas de

literatura, em Portugal é tudo em jornais, portanto ainda não tem o peso que tem

noutros sítios. Mas mesmo assim, já tem algum peso.»

Deste modo, com a entrada no campo mediático, o qual passa a constituír para o

crítico o seu mercado de trabalho privilegiado, acaba o seu longo período de

indeterminação profissional, e vêmo-lo então a assumir o estatuto social não apenas de

especialista em matéria de artes, mas também a sua actual condição de profissional da

comunicação, com os consequentes benefícios simbólicos e de intervenção que daí

advêm para o seu lugar social, enquanto participante fundamental na construção de uma

opinião pública. A emergência e o redimensionamento da actividade crítica como

profissão veio a ser acompanhada, mais recentemente, de várias tentativas no sentido de

desenvolver estratégias de legitimação e de regulamentação social, como a organização

efectiva de associações profissionais de críticos e de, no seu interior, se elaborarem

códigos deontológicos próprios, assim como de se regulamentarem e "credenciarem" as

competências básicas necessárias ao desempenho da profissão de crítico, tentativas

essas já atrás analisadas, no final do ponto 1.3 do nosso trabalho.

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O acolhimento da prática crítica preconizado pelo espaço da imprensa

desembocou no que se veio a tornar uma das principais linhas de clivagem

características da configuração do seu domínio específico enquanto prática cultural

particular, clivagem essa assente na cisão entre os seus diferentes lugares de produção

(e, consequentemente, de recepção). Como principais lugares de produção de discurso

crítico passámos a ter, por um lado, a comunidade académica ou universitária,

considerando aí a diversidade das suas inserções disciplinares, e, por outro, a

comunidade jornalística, onde a figura do crítico passou a associar muitas vezes este

seu estatuto ao de jornalista, com tudo o que isso implica de constrangimentos na sua

rotina produtiva. Por vezes também acontecia o inverso, ou seja, um jornalista, com

gosto pelas coisas de cultura e um grau mais ou menos acentuado de formação

específica em determinada àrea artística, vinha a obter o estatuto de crítico dentro do

orgão de imprensa para o qual previamente trabalhava. Esta situação é, contudo,

actualmente mais rara, por razões que se prendem com as competências específicas

requeridas para o desempenho credível da actividade crítica e para que o discurso dela

resultante tenha o impacto público e a eficácia simbólica esperada e desejada.

A cada um desses diferentes lugares de produção de discurso crítico

corresponderiam, por sua vez, lugares de recepção também eles distintos, ou seja,

dirigir-se-iam e atingiriam públicos diversos, facto a que não é alheia a influência que o

próprio veículo de comunicação utilizado na difusão dos respectivos discursos tem na

configuração dos públicos atingidos, isto para além, como é evidente, da diferença que

existe quanto às próprias características específicas dos discursos produzidos em ambos

os lugares. Com efeito, a crítica jornalística, ao ser difundida sobretudo nos orgãos de

imprensa generalistas e ao pretender cumprir uma função formativa e informativa,

utilizando, por isso mesmo, as técnicas jornalísticas do tratamento genérico da

informação, pretenderia dirigir-se a um amplo espectro de públicos (do ponto de vista

cultural e social), isto ao passo que a crítica universitária, situada no outro extremo da

escala de especialização, ao circular através de orgãos de imprensa especializados e ao

procurar exercer uma função teórica de pesquisa e formulação científica ou «para-

científica» sobre os artefactos estéticos, o seu consumo tende a restringir-se aos próprios

meios académicos, aos quais, aliás, se destina prioritariamente. O que nos leva a supôr

que aqui, a prática crítica aponta para uma troca cultural realizada em círculos restritos,

ao passo que na imprensa, a troca cultural tenderá a realizar-se em círculos bastante

mais abrangentes ou alargados.

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Esta clivagem corresponde à justaposição que, segundo Mary Pratt, acontece

entre o «reviewing» ou a crítica jornalística, praticada nos orgãos de imprensa

quotidiana, e o «criticism» ou crítica universitária que, consoante as suas inscrições

disciplinares, produz reflexões ensaísticas mais alargadas, de inspiração e abordagem

teórica variável, encontrando o seu suporte de difusão sob a forma de livro, ou sobre a

forma de artigo aprofundado em revistas especializadas.143 Tal clivagem não constituíu,

todavia, realidade efectiva no contexto da crítica portuguesa desde a sua génese, já que a

Universidade, de facto, raras vezes foi no nosso país lugar de produção de discurso

crítico, sendo que, por outro lado, as revistas especializadas criadas com tal intuito,

pautaram-se normalmente pela sua vida curta, pouca relevância detendo no

funcionamento do universo das artes e letras. «Ensino de generalidades», no dizer de

José-Augusto França, a formação na área da história, da filosofia e da teoria das artes e

da literatura concedida na Universidade, consistia até há bem pouco tempo em algumas

disciplinas «soltas e anexas», «presas a esquemas oitocentistas de pensamento e

metodologia», «que nenhum diploma específico garantia e nenhum doutoramento

jamais consagraria».144 Neste contexto, a incursão estética e crítica de inserção

académica nunca foi, naturalmente, cultivada em Portugal até recentemente, por altura

dos anos 60-70.

Hoje, com interesses estéticos bem mais desenvolvidos e concedendo uma base

de conhecimento bastante mais sólida e actualizada favorável à prossecução de uma

crítica de matriz académica, a Universidade não encontra, porém, mecanismos, circuitos

e suportes preparados para a difusão desses mesmos discursos, continuando a crítica

portuguesa praticamente restringida ao espaço concedido pelos jornais mais ou menos

generalistas. Daí a comunidade crítica em geral, mais acentuadamente entre os críticos

da ala mais academista - ou seja, que partilham de uma ética associada à valorização das

componentes analíticas e reflexivas no seu discurso, assim como ao aprofundamento e

maturação intelectual da sua relação com o objecto criticado -, lamentar o que

consideram ser uma situação de insuficiência a nível das estruturas de difusão que lhes

permitem uma crítica mais especializada e aprofundada, de natureza académica.

143 PRATT, in "Art Without Critics and Critics Without Readers or Pantagruel Versus The Incridible Hulk", HERNADI, op. cit., pp. 177-178. 144 FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XX, op. cit., p. 463.

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Reconhecendo que a imprensa generalista não é o lugar mais apropriado para a

produção e difusão desse tipo de crítica, devido às pressões e constrangimentos

decorrentes da sua lógica de funcionamento (tempo, espaço e actualidade), assim como

ao campo alargado de recepção que pretende sempre satisfazer (que o faz apelar à

simplicidade discursiva), o crítico de ethos universitário que, na falta de alternativas, se

vê coagido à sua integração, tenta então desenvolver no exercício da sua prática um

compromisso de hibridez entre o que considera ser o seu ideal de crítica e o ideal

expectante pelo jornal que serve, incorporando no seu discurso e na abordagem que faz

do objecto criticado, a par das suas próprias opções, determinado tipo de critérios e

elementos próprios da abordagem e da linguagem jornalística, de modo a que esse

mesmo discurso tenda o menos possível a parecer um objecto "estranho" dentro da

estrutura discursiva do jornal.

Neste contexto, a clivagem existente entre uma forma de intervenção crítica de

referência universitária ou académica e outra de matriz jornalística esbate-se no que diz

respeito à cisão que pressupõe quanto aos seus lugares de produção (que, na realidade,

praticamente se resume ao espaço da imprensa), diluíndo-se entre o espaço de

possibilidades estilísticas que cada um dos hebdomadários existentes concede ao

discurso crítico em geral ou a um crítico em particular (embora também tivessemos

verificado que são os jornais semanários, em detrimento dos diários, que maior espaço

de possibilidades concede às tomadas de posição de academismo híbrido). Daí que,

embora mais complexa a nível da sua aferição, essa clivagem tenda realmente hoje a

estruturar-se no espaço da crítica portuguesa (como aliás os testemunhos dos nossos

críticos manifestam), tanto mais que, como vimos no início deste trabalho, as

competências formais exigidas ao acesso ao lugar do crítico são cada vez mais

valorizadas. Traduz-se, porém, não numa segmentação a nível dos lugares de produção,

mas na distância entre as éticas que orientam o olhar e o escrever sobre a estética, ou

seja, por outras palavras, o "academismo" ou o "jornalismo" na crítica não dependerá se

ela é feita nos jornais ou nas revistas especializadas ou académicas (que não existem),

depende da perspectiva que se valoriza, da referência que se utiliza, do tom que se

pretende.

«Como é que caracteriza em traços gerais o panorâma actual do universo da

crítica? Insuficiente, manifestamente insuficiente, por várias ordens de razões: primeiro

porque não há lugar onde as pessoas escrevam. (...) De facto, em Portugal não existe

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quase revistas especializadas ou não especializadas de literatura, de arte também, ou

de música ainda menos, isto não é só exclusivo da literatura, é também exclusivo das

outras artes. Portanto, não há lugares para publicar, não aparecem pessoas para

treinar, para fazer crítica. E entra-se numa espécie de ciclo de onde é difícil sair. E não

há lugares em Portugal para publicar porquê? Porque não há uma tradição literária e

artística muito forte, que faça com que os jornais tenham as secções para responder

aos gostos do público. Isto é, se não se lê, porque é que os jornais hão-de ocupar cinco

páginas com crítica literária? Se aquilo não tem leitores, se os jornais sonham que a

literatura não tem leitores, então não vamos dar lugar a que haja muita crítica

literária. Portanto, há aqui uma intervenção de uma série de factores que faz com que a

crítica literária seja manifestamente insuficiente. (...) De qualquer forma, quase todos

os jornais em Portugal têm uma coluna de crítica literária... Repare que a maior parte

desses jornais que têm umas páginas dedicadas à literatura, não sei em muitos casos se

eu consideraria crítica literária. É mais divulgação de livros, que é uma coisa

diferente, do que propriamente crítica literária. Muito embora isso seja por vezes

apoiado por exercícios de julgamento de valor, mas o trabalho que está lá por detrás a

gente percebe que não é propriramente crítica literária, é uma espécie de gosto pessoal

que é plasmado ali, por vezes quase de uma maneira obscena, porque uma pessoa que

pura e simplesmente se limita a dizer qual é o seu gosto, é de facto um poder

descricionário um pouco insuportável, despudorado. É preciso que faça um percurso

qualquer e que mostre esse percurso ao leitor para que esse juízo tenha algum sentido,

porque se não, não tem nenhum sentido. (...) Talvez Portugal seja um dos únicos países

onde um certo tipo de crítica aparentemente menos consumível num jornal, aparece em

jornais. Nós podemos pensar que isso é muito bom, que devemos estar todos muito

satisfeitos, porque somos de tal modo cultos que até nos grandes orgãos de

comunicação social os universitários, as pessoas que detêm um determinado saber,

fazem crítica para toda a gente, e o público vai ler as críticas dos universitários e vai

até regular-se pelos seus gostos. Podíamos pensar que isto seria assim muito bom.

Todavia, isto é um sintoma de uma coisa muito má. Os universitários provavelmente

fazem críticas nos jornais porque não têm revistas especializadas, os universitários

fazem crítica nos jornais porque os jornais não encontram pessoas para fazer crítica,

ou seja, um certo tipo de crítica que não corresponde ao crítico que fez um percurso

académico, quase não existe. E isso é uma fraqueza, é uma coisa que nós devemos

olhar como qualquer coisa que está em falta e não que está em excesso. (...) Mas, de

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facto, nós podíamos imaginar que o que seria saudável, o que seria interessante, é que

as duas coisas entrassem em concorrência, até para ver de que modo é que um certo

tipo de crítica mais imediata, vocacionada mais para um certo tipo de impressionismo,

como é que entrava em competição, como é que concorria em termos de atribuição de

determinadado tipo de valores, como é que entrava em competição com a universidade,

que se baseia num critério pretensamente mais fundado, no estudo mais longo, na

investigação, etc.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso)

«O universo da crítica não é, decerto, homogéneo. Como acha que esse

universo aparece segmentado? Aparece segmentado precisamente como a gente tem

estado aqui a dizer. Uma crítica para um jornal e uma crítica de natureza universitária.

São duas coisas perfeitamente distintas. Depois há o tal cruzamento, as pessoas que

escrevem um bocadinho estilo jornalista e um bocadinho estilo universitário. Depois há

os outros que escrevem de uma maneira jornalística. E pronto, é isto. Está segmentada

nesse eixo. Depois haverá divisões mais pequenas, mas isso já tem um bocado a ver

com o estilo pessoal de cada um. (...) (os críticos universitários têm...) aqueles vícios,

com aquelas grandes chatices da crítica universitária. Por exemplo, no caso do António

Guerreiro, para citar um nome que eu gosto muito, ele eu acho que é um crítico

literário. Ele assume uma espécie de compromisso entre uma crítica universitária e

uma crítica jornalística. Mas acaba por ser tudo muito igual, porque ele, sem querer,

ele acaba por cair num determinado tipo de vícios universitários. Mas pronto, ele é um

crítico literário. E que vícios são esses? É um certo jargão universitário, um

determinado tipo de linguagem, um determinado tipo de referências que as pessoas

insistem em manter, de que se calhar não são capazes de se abstrair. É isso. (...) Acaba

por ser uma grande chatice para o leitor. O jornal não é o lugar próprio para esse tipo

de crítica, mas se as pessoas escrevem dessa maneira e se as aceitam a escrever assim,

pronto, tudo bem. As pessoas têm é depois a liberdade de ler ou não ler. Eu

pessoalmente não gosto nada de ler, não tenho paciência nenhuma, não é o sítio para

esse tipo de textos. Mas se as pessoas escrevem dessa maneira e são publicadas, tudo

bem.» (João António Dias, crítico de literatura no Independente)

«Seria de esperar que a crítica académica pudesse desenvolver um trabalho de

investigação mais em profundidade e com uma maior perspectiva histórica, com uma

maior densidade de análise, que funcionasse como uma outra metade de uma crítica

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mais baseada na diligência jornalística. Na actual configuração quer da circulação

universitária, quer da circulação jornalística, não me parece que isso ocorra. E penso

que no sector da arte contemporânea não se passará exactamente o mesmo naquilo que

diz respeito aos periodos históricos dos séculos XV e XVI, etc. Naquilo que diz respeito

ao século XX, a crítica universitária não tem dado grande conta do recado. E acha que

existe em Portugal uma crítica universitária? Existe na medida em que alguns dos

críticos que exercem nos jornais ou nas revistas, são figuras do meio universitário. Por

outro lado, existem produções nessa área no suporte de algumas exposições que

assentam em investigações de maior fôlego. Algumas pessoas da crítica universitária

são mais facilmente solicitadas para suportar, por exemplo, o discurso do texto das

retrospectivas ou coisas do género. Mas a distinção é muito pouco clara, (...) as

fronteiras são muito difíceis de estabelecer. (...) A produção de publicações

universitárias nesta área não existe. É também no terreno das publicações de tipo

jornalístico de rítmo mais lento que surgem os textos de origem universitária.»

(Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso)

«Alguns críticos sugerem existir um divórcio entre duas supostas formas de

intervenção crítica: uma académica e uma jornalística. Bem, a crítica académica não

se exprime hoje em dia praticamente nos jornais. Aliás, acho que não há nenhuma

crítica académica, em Portugal pelo menos. Nos EUA sim, existe uma crítica

universitária da arte, nos sentido de uma tradição universitária da crítica de arte forte,

de história da arte, que se exprime através de canais próprios que são as revistas

universitárias, e que têm espaço e contexto para aparecerem de uma determinada

forma, um determinado grau de aprofundamento, uma determinada perspectiva de

enfoque, etc. E aqui em Portugal isso não existe, não existe crítica académica pura e

simplesmente. Depois há crítica jornalística... Portanto, há um jornalismo que fala de

arte, depois há crítica mais ou menos jornalística, ou mais ou menos crítica. Mas

pronto, essa dicotomia de que estava a falar não existe em Portugal, não há crítica

académica. (...) várias formatações da escrita são importantes, são contributos

diversificados, contribuem para uma maior riqueza do discurso sobre a arte. E também

dão origem a opções. Enquanto que em Portugal não há essas opções - uma pessoa

para ler sobre arte contemporânea tem que ler os jornais - , o mesmo já não acontecerá

na América, onde os jornais será onde se escreverá mais superficialmente sobre arte

contemporânea. Para se saber mais sobre arte contemporânea, tem-se as revistas

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especializadas de grande difusão, e depois tem-se as revistas de pouca difusão que são

as académicas. Em Portugal não se tem essas opções, está-se numa situação pobre.»

(António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente)

«Como caracteriza, em traços gerais, o panorâma actual do universo da

crítica? A crítica em Portugal tem um aspecto negativo contínuo, que é o de se exercer

em jornais, eventualmente em revistas de arte, mas isso já eram outros motivos que a

prejudicavam. O facto de se exercer em jornais, diária ou semanalmente, eventualmente

mensalmente, diminui o seu poder de aprofundamento e de análise. Ou seja, é uma

crítica demasiado feita ao correr das coisas e superficial, que não teoriza. Não é

desculpa para os críticos, porque os próprios que criticam isso mais directamente,

aliás, que me criticam a mim e ao Alexandre Melo, ou ao Pomar, que é o Cerviera

Pinto e tal, também não cria crítica nenhuma, quer dizer, recolhe uns artigos de vez em

quando nos jornais, e escreve umas banalidades. Não acho que isso seja essencial num

país que não tem sequer tradição filosófica. Essencial seria, mas não acho que seja

esquisito. Porque num país que não tem a tradição de pensar filosoficamente,

esteticamente, teoricamente, e agora de repente começassem a aparecer teóricos... Era

bom que de facto aparecessem, que não fossem aqueles que se propõem ser os

teóricos... Mas isso será um aspecto negativo em termos da história da crítica.» (João

Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público)

«Eu acho que é fraco, devido ao facto de não existirem em Portugal publicações

especializadas na área do cinema... (...) Quando eu digo que não há imprensa

especializada, é que não há a vitalidade correspondente a isso, isto é, em França há os

Caihers du Cinema e há a Primière, e não vou defender uma contra a outra, mas o que

vou defender é que existe de facto um mercado com uma dinâmica própria que permite

também a existência desta diversidade. E só dei dois exemplos e poderia dar mais vinte,

se calhar. Ora bem, no mercado português isto não existe. E não existe por mil e uma

razões, a começar pela pequenez do próprio mercado. (...) Portanto, de facto é

extremamente difícil num mercado tão pequeno encontrar um "modus vivendi" para

esse tipo de coisas. Ora, eu penso que isso limita necessariamente a própria qualidade

do trabalho crítico, porque limita a diversificação de que eu falava há bocado. Quer

isto dizer que a crítica existe sobretudo como um espaço específico dos jornais. (...)

Alguns críticos sugerem existir um divórcio entre duas supostas formas de

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intervenção crítica: uma jornalística e uma académica. Concorda com a existência

desta clivagem? Até certo ponto concordo. E isso liga-se um bocado com a questão de

que nós falámos há bocado, da não existência de publicações especializadas num

contexto como o nosso. Eu acho que qualquer um dessas aproximações crítica tem o

seu valor próprio e nenhuma delas exclui a outra. Acho que às vezes, no nosso

contexto, é difícil encontrar um equilíbrio, uma maneira certa de abordar um filme,

precisamente porque está concentrado no espaço jornalístico quase toda a espécie de

crítica. Por isso acho que os problemas que podem advir dessa oposição não têm tanto

a ver com o que se escreve, tem mais a ver com as limitações do próprio contexto em

que se escreve.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso)

«O universo da crítica não é, decerto, homogéneo. Como acha que esse

universo aparece segmentado? Eu acho que há desde o crítico mais sério, mais

conhecedor, que vê o cinema pelo cinema, sente a paixão e há uma forma sugestiva de

procurar o cinema, através de outros filmes. É um discurso simplificado mas não

simplista, com um modo filosófico de falar do cinema, e por aí vamos por um lado mais

puramente crítico de falar do cinema, mais cinéfilo, mais cinematográfico. Até aquilo

que eu chamaria os comentários, que se aproximam um bocado daquilo que é a opinião

de um público, que não é muito sustentada pela informação técnica do cinema. Há um

paleta grande de crítico. (...) Alguns críticos sugerem existir um divórcio entre duas

supostas formas de intervenção crítica: uma jornalística e uma académica. Concorda

com a existência desta clivagem? No nosso caso, acho um pouco difícil falar-se em

clivagem, porque não há ou já se perdeu a tradição de um discurso de crítica

jornalística e de uma crítica mais interessada, normalmente em revistas, que tem uma

atitude mais profunda e mais indicada a um público cinéfilo, a um público mais

específico, mais conhecedor, onde esse "hermetismo" de que se fala teria mais razão de

existir, pela força das circunstâncias. Como hoje a crítica é essencialmente feita em

jornais, adoptou-se quase que um estilo híbrido entre o que seria uma crítica de

revistas, especializada e técnica, e uma crítica de jornal, que seria muito mais

informativa, seria um comentário, digamos assim. Aí esbate-se um bocado essa

clivagem, embora haja a crítica ou o comentário mais tipicamente jornalístico em

determinados jornais, e uma outra crítica mais crítica noutros jornais. (...) Eu acho que

é pena não existir uma força editorial suficiente para que se fomente determinado tipo

de crítica mais académica, mas isso talvez dentro de algum tempo, depois de

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ultrapassar uma certa guerra mediática e editorial que não promove em nenhum lado a

crítica académica, antes pelo contrário, talvez aí se possa enquadrar o que seria uma

componente crítica de uma forma geral mais sincera e mais valiosa para todas as

pessoas. Para já, parece-me um bocadinho difícil que isso possa existir. Há um ou

outro caso pontual, mas nada mais do que isso.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no

Jornal de Letras)

«Alguns críticos sugerem existir um divórcio entre duas supostas formas de

intervenção crítica: uma jornalística e uma académica. Concorda com a existência

desta clivagem? Sim. Por exemplo, a crítica jornalística tem aquelas limitações,

aqueles condicionalismos que eu já.apontei. Mas por outro lado, talvez ela tenha

também mais frescura por causa disso. Ou seja, ela é mais autêntica, na medida em que

ela exprimde a coisa num estado mais efervescênte, na medida em que a nossa

impressão, a sensação que o filme nos inspirou ainda está efervescênte, é muito recente.

Esse é um aspecto positivo. Mas um negativo é o facto de nos escaparem coisas que nós

devíamos falar. Enquanto que a crítica académica tem a vantagem de permitir uma

reflexão mais aturada, mas também pode ter a desvantagem de ser mais fria, menos

espontânea. Não há canais para que os críticos académicos se exprimam, não há

canais académicos, ou seja, não há revistas periódicas de cinema, ainda dependem dos

jornais, que acaba por ser o canal. Mas, de certa forma, acaba por não ser um

academismo puro porque eles também são condicionados por esses princípios que eles

também são obrigados a seguir, uma vez que trabalham num jornal, de actualidade, de

premência, etc. Agora, onde continua a existir academismo é na perspectiva e no tom.»

(Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente)

«Num orgão especializado, eu poderia fazer análises por um lado mais extensas,

mais profundas, mais especializadas, do objecto criticado. No jornal genérico, ou

político, ou seja o que fôr, implica uma certa não especialização do texto. Além de que

o espaço também conta muito. Nestas coisas não se pode fazer milagres, não de pode

pode escrever numa página o que se pode escrever em dez. (...) há críticos que

escrevem em diários, há críticos que escrevem em semanários, há críticos que escrevem

em revistas especializadas, não em Portugal em que nem sequer há revistas

especializadas, nós temos muito essa dificuldade. O crítico português tem dificuldade

em poder levar mais longe as suas análises, porque não é num jornal diário ou

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semanário que o pode fazer. Isso é um "handycap" da nossa crítica de teatro e de

cinema.» (Carlos porto, crítico de teatro no Jornal de Letras)

«Alguns críticos sugerem existir um divórcio entre duas supostas formas de

intervenção crítica: uma jornalística e uma académica. Concorda com a existência

desta clivagem? Em absoluto não existe mas há. A minha critica, por exemplo, é mais

impressionística pelas razões de tanta coisa que eu disse e pelo próprio jornal, do que

uma crítica da Eugénia Vasques. Passa pelo modo de ser das pessoas, mas passa muito

pelo jornal em que escreve também. Esse muro parece-me um exagero mas é claro que

há uma crítica mais académica, mais intelectualizada e uma mais impressionística, com

todos os perigos que a crítica impressionística possa ter. Não pode ser excessivamente

ligeira, não pode dizer só banalidades, só frases feitas. A crítica, mesmo quando é

impressionística, tem que ir mais fundo. E como lhe digo, estou a dar um curso, por

exemplo, de história de teatro, se vou falar do teatro grego, vou aprofundar mais

possível o teatro grego, é claro que se vou fazer uma crítica a uma peça grega, ponho

uma frazesinha ou duas para relembrar qualquer coisa, qualquer aspecto relacionado

com o teatro grego, mas não vou ali fazer uma teoria ou um ensaio sobre teatro grego.

Não é isso que me é pedido ali.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de

Notícias)

E que factores informam a clivagem que passou a existir entre crítica académica

ou universitária e crítica jornalística a partir do final do século passado? Um deles

prende-se com o problema da especialização e da própria formação específica do crítico

na área cultural em que actua, aspecto em relação ao qual é manifesto o desacordo entre

críticos académicos e críticos jornalísticos. Efectivamente, para os jornalistas, e ao

contrário dos académicos, essa especialização e formação específica não seria

absolutamente indispensável e necessária, ou melhor, não seria o requisito mais

importante para o desempenho público da prática crítica. Sendo principalmente literatos

e/ou diletantes a exercê-la no contexto jornalístico, as dimensões da competência

comunicacional e das qualificações sensitivas e de "gosto" assumiam uma posição de

destaque no conjunto dos requisitos valorizados pelo crítico jornalista, nomeadamente

em detrimento das competências formais, estas imprescindíveis na concepção de uma

crítica académica.

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A par da questão da formação, um outro factor actuante na clivagem existente

entre crítica universitária e crítica jornalística diz respeito ao fenómeno de dualidade de

éticas que a ela se encontra subjacente, ou seja, à confrontação entre um habitus

científico ou para-científico que se funda no comprometimento dos seus agentes com a

investigação "pura" e a carreira académica, e um habitus jornalístico, manifesto na

preocupação quer em cobrir a actualidade dos eventos culturais e artísticos, quer em

desenvolver a sensibilidade e competência estética do seu público leitor, quer ainda de

intervir directa ou indirectamente nos acesos debates em torno da definição da noção de

arte e nas lutas pela afirmação de determinados grupos artísticos.

Com efeito, o habitus associado à crítica universitária até meados do nosso

século encontrava-se intimamente relacionado com um modelo de crítica mais reflexiva,

de intenção hermenêutica, sujeito a um corpus academicamente definido de princípios e

regras teóricas e metodológicas, visando debater as obras de determinados criadores o

mais profundamente possível e com o máximo de rigôr, isenção e neutralidade, em

busca da verdade do seu valor e do sentido artístico. Nesta medida, cultivavam o valor

da distância crítica - valor esse que alicerçava a suposta objectividade das suas

apreciações e interpretações estéticas -, isto quer de um ponto de vista sincrónico, ou

seja, face aos seus próprios valores e gostos pessoais, vivendo o mito positivista do

carácter a-social da investigação e do conhecimento científico, quer de um ponto de

vista diacrónico, isto é, face às próprias obras e respectivos criadores no tempo,

debruçando-se mais sobre os "clássicos" do que propriamente sobre os seus

contemporâneos.

Demarcando-se cada vez mais do que aparentava ser a sua tarefa primordial até

aí, ou seja, o juízo sobre o valor de determinada obra enquanto obra de arte, a crítica que

permaneceu instalada no espaço académico veio a adoptar uma forma mais

interpretativa e compreensiva que judicativa, mais preocupada em descobrir e revelar o

sentido que determinar o valor estético, relegando este último aspecto para segundo

plano. Deste modo, os académicos praticavam sobretudo uma crítica de carácter

historicista e interpretativo, fundamentada na reconstrução histórica da vida e obra de

várias personagens artísticas e respectivos contextos de produção, com a preocupação

manifesta de recuperar o significado latente na intenção primeira do criador no seu

momento original de criação, significado esse que supunham perene, universal e

intrínsecos à obra resultante.

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A crítica jornalística, por seu turno, em parte devido aos constrangimentos

inerentes ao seu contexto profissional de produção e, de outra parte, em virtude da

própria preparação e formação dos agentes que a praticavam (que, como vimos, eram

sobretudo jornalistas diletantes e criadores, principalmente da área da literatura)

preconizava um modelo de crítica mais interventiva, com claras intenções didácticas e

pedagógicas, divulgadoras, informativas e orientadoras, preocupando-se

fundamentalmente, a priori, em captar e aproximar a arte de um espectro cada vez mais

alargado de receptores, assim como em promover ou despromover culturalmente a obra

dos seus pares criadores, pelo que tomava um modelo manifestamente mais judicativo

que analítico.145 Por outro lado, enquanto profissional da comunicação, teriam de

responder permanentemente às solicitações de actualidade que os critérios jornalísticos

de noticiabilidade lhe exigem, assim como de realizar a sua actividade em tempos

limitados e num espaço reduzido, pelo que promoviam sobretudo uma crítica da

contemporaneidade artística, sempre sujeita a limitações em termos de espaço e de

tempo (dimensões preciosas e reduzidas na lógica produtiva associada ao campo da

imprensa) e, desta feita, ao tratamento genérico e superficial da matéria-prima a que

dedicavam o seu discurso.146

Nesta sequência, torna-se evidente o distanciamento significativo entre as éticas

inerentes a cada um destes modelos de crítica, estando na base do jogo de defesa e

ataque constantemente empreendido entre aqueles que as partilham. Os críticos

academistas apontavam a crítica jornalística como superficial, reactiva e apressada,

dando conta de simples impressões subjectivas, pouco rigorosas e sobretudo avaliativas,

baseadas em meros critérios de gosto pessoal. Em contraposição, preconizavam uma

crítica exercida em profundidade, com preocupações mais interpretativas do que

145 Polarização de certo modo equívoca, na medida em que mesmo a crítica que se queira de todo analítica e impessoal, não deixa de deter uma componente judicativa, pois, aproveitando as palavras de Alexandre Melo, «não é preciso multiplicar adjectivos (prática bem frequentemente entre a crítica jornalística na altura) para manifestar o que se pensa de uma obra, porque o próprio facto de ela ser tomada como objecto de análise ou a dimensão e o grau de ambição dessa análise são indicadores suficientes de um juízo de valor implícito» (in O que é Arte, op. cit., p. 63). Acerca da problemática avaliação/interpretação na crítica, também Mary Pratt refere que ainda hoje, «when reviewing is justaposed to academic criticism, the first observation is usually that the former's business is evaluation and latter's interpretation or analysis», fazendo no entanto notar a inedaquação de tal distinção na medida em que se refere «only to the function that superficially motivates the discourse in each case. Both kinds of criticism do both things» (in "Art Without Critics and Critics Without Readers...", op. cit., p. 181). 146 Inconvenientes e limitações que são, de facto, ainda hoje reconhecidos pelos nossos entrevistados quando confrontados com o inventário das vantagens e desvantagens de exercer a prática crítica num contexto da imprensa generalista em comparação com o seu exercício num contexto de produção discursiva especializada.

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judicativas, sem subvenções a constrangimentos de ordem editorial, tomando a distância

no tempo e no espaço como precauções contra a macularidade da objectividade das suas

reflexões. Por outro lado, também acusavam os seus pares jornalistas de enveredarem na

sua actividade por uma via promocional e directamente implicada, onde dominariam

interesses de ordem pessoal ou grupal, assim como, devido à sua condição de

assalariado no espaço da imprensa, de se vêrem coagidos a esforçarem-se por nivelarem

e adequarem as suas opções críticas e discursivas em favor de um suposto "leitor-

médio" (que corresponderia à "média" calculada da "generalidade do público"),

privilegiando no seu aparelho de leitura e de avaliação o ponto de vista desse leitor e

"baixando" ao seu nível de linguagem e de abordagem estética, comprometendo desta

forma o livre-arbítrio, a neutralidade e a isenção que reclamavam para a sua prática.

Como já tivemos oportunidade de constatar neste trabalho, as relações que

tendem a estabelecer-se entre o pólo da criação e o pólo da crítica são hoje mediadas por

um determinado sistema de valores de natureza ética que já não se compadece com a

interferência de interesses de ordem pessoal ou grupal no decorrer da actividade crítica

(fundamentados em cumplicidades que extravazam a sua dimensão estética para

radicarem em compadrios de ordem vivencial e afectiva), pelo que tal acusação, feita a

um nível tão generalizante, tende no contexto da crítica contemporânea a tornar-se

desadequada e a perder o seu valor de uso estratégico. No que respeita, por sua vez, à

acusação de compatibilização e nivelação ideológica e discursiva em relação ao sistema

de disposições estéticas e linguísticas de um suposto "leitor-médio" na prática da crítica

jornalística, também esta tende a tornar-se equívoca, nomeadamente se tomarmos em

consideração os depoimentos dos nossos entrevistados acerca desta questão específica.

Apesar de actualmente existir uma acentuada tendência para a prática da crítica,

no seu contexto jornalístico de produção, ser socialmente representada como acção ao

serviço do consumidor, orientada para objectivos pedagógicos e de orientação

discricionária, a instância "público" (tomada na pluralidade de perfis e configurações

sociais e culturais em que é estruturada, assim como na complexidade e polifonia de

situações de recepção que a caracterizam) não parece de facto constituír-lhe uma

referência inibidora dos resultados discursivos, interpretativos e avaliativos. Aliás, não

raras vezes ela é criticada quer pelas suas instâncias de recepção, quer por muitos dos

seus próprios protagonistas, justamente pelo facto de não se preocupar em fazer-se

entender junto da "generalidade" do público, resvalando para hermetismos linguísticos e

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conceptuais cujos sentidos não serão genericamente partilhados pela pluralidade dos

leitores do meio de comunicação onde escrevem.

Tal acontece na medida em que o crítico, empreendendo o seu jogo de

demarcação face ao consumidor cultural "comum" na tradução linguística das suas

competências especializadas, tende a posicionar-se num patamar cultural que supõe ser

superior ao do seu potencial público mais generalizado, do qual entende que não deverá

prescindir em favor deste último e em desfavor da independência da sua acção

apreciativa e interpretativa, assim como em desfavor da profundidade que a própria obra

lhe suscita: o crítico deverá procurar que o leitor "suba" ao seu entendimento, não

pressupõe ser ele a "descer" a esse patamar. Por outro lado, também pressupõe ser o

leitor a procurar as suas afinidades entre os diversos segmentos da opinião crítica, a

orientar-se intersubjectivamente nos seus processos de identificação com a crítica, e não

o contrário, o que, sucedendo, comprometeria a sua sinceridade e honestidade

intelectual, valores que lhe são tão caros.

Mas a interferência de um suposto leitor-médio no processo de produção de

discurso crítico também se vê inviabilizado, logo à partida, invocam os seus

protagonistas, pelo total desconhecimento que demonstram possuír sobre o perfil

sociográfico e cultural do público específico do seu jornal ou do seu público mais "fiel",

pressupondo, em última instância, que o seu discurso não será lido senão por

determinadas categorias culturalmente privilegiadas de consumidores do orgão de

comunicação para que escreve, e não por um público mais generalizado. Na ausência

destas informações objectivas, quando arriscam a construção do perfil do que supõem

ser o seu leitor ideal, fazem-no projectando a imagem reflectida de si próprios, como um

jogo de espelhos, onde a contra-ilusão pretende objectivamente fundamentar o não-

comprometimento da autonomia da sua acção discursiva. Igual a si próprio, como sua

alma-gémea, o crítico exterioriza o perfil difuso desse leitor imaginário como

partilhando das suas afinidades estéticas electivas, da sua visão do mundo (da arte e não

só), do seu nível de língua, do seu conhecimento anterior quanto à matéria retratada, das

suas próprias exigências e objectivos em relação à crítica. Fantasiando e prevendo um

ideal de coincidência entre gramática de produção e gramática de reconhecimento do

discurso, no sentido veroniano dos termos, ou entre sistemas de disposições éticas e

estéticas, no sentido bourdiano, a referência "público" tende a não constituír, de facto,

um factor directo de perturbação no trabalho do crítico, uma fonte de restrição à sua

autonomia e independência discursiva, apreciativa e interpretativa.

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Essa margem de idealidade tende, todavia, a ser gerida pelo próprio jornal

através dos vários padrões de controle de que dispõe (que passam, como já vimos, pelo

momento do recrutamento, pela advertência por parte do editor e/ou pelos processos de

negociação que acontecem entre este e os críticos), gestão essa através da qual o jornal

tenta ajustar o seu esquema de pressupostos e de percepções esteriotipadas quanto à

composição, gostos e necessidades do público que pretende atingir ao esquema de

pressupostos e percepções partilhado pelo crítico, encontro que, ao ser tentado, sendo

imprescindível para o decorrer eficiente da rotina produtiva e para uma maior eficácia

no impacto público do discurso, não deixa de condicionar o modo como este será

formulado e apresentado. Daí a contatação nos nossos depoimentos de que a principal

fonte de estruturação de expectativas, orientações, critérios e procedimentos produtivos

da prática crítica em geral e, como tal, o seu principal factor de perturbação, tenda a

incidir não sobre o público na imagem esteriotipada que dêle têm os seus protagonistas,

mas sobre o contexto profissional-organizativo onde estes se encontram inseridos, ou

seja, o grupo constituído pelos seus colegas de trabalho e superiores hierárquicos, que

directa e diariamente se relacionam intersubjectivamente.147 E é a partir desta trama de

acções e representações que, muito provavelmente, a configuração social e cultural do

público que ambos (crítico e jornal) esperam encontrar não se afasta muito da

configuração do público que realmente consome o seu discurso, o entende e o legitima.

«Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto

"leitor-normal" ou "leitor-médio"? Não. Eu acho que o crítico imagina para si

próprio, isto é, estabelece uma espécie de leitor tipo ou leitor ideal da sua obra crítica,

que é modelado pela sua própria maneira de conceber a crítica, de conceber a arte, de

conceber o mundo, etc. Portanto, eu julgo que toda a gente concebe um leitor ideal,

mas sobretudo é bom que isso seja um leitor ideal e não seja um leitor real, mesmo que

seja colectivo, porque isso seria uma limitação, seria uma limitação bastante grande e

isso tornaria... (...) Isto é, não me interessa aquilo que as pessoas pensam sobre a

crítica que eu faço, interessa-me aquilo que três ou quatro pessoas que eu conheço

pensam, porque sei que essas três ou quatro pessoas correspodem a um universo que é

aquele onde eu me quero ver reconhecido. (...) E conseguiria traçar o perfil desse seu

suposto leitor-ideal? É difícil eu dizer isso,... (...) Primeiro, eu penso num leitor de

147 O que, do mesmo modo, foi constatado para o caso do jornalista generalista nos vários estudos

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formação universitária (...), que corresponde a um leitor que tem um grau de saber

relativamente elevado, que funciona dentro do mesmo universo de referências que eu

funciono. Portanto, não se trata pura e simplesmente do grau de saber, trata-se do

universo de referências onde eu funciono. Trata-se primeiro dessa comunidade de

universo de referências. Depois uma comunidade de gosto também, que de algum modo

se identifique comigo dentro de determinados parâmetros, não quer dizer que seja um

decalque, de modo nenhum, mas que eu consiga dialogar com essa pessoa em termos

de gosto. E essencialmente é isso. (...) Um jornal é um meio de comunicação social de

carácter generalista, o mais generalista possível. Enquanto que eu entendo a minha

actividade já como uma actividade especializada, e não só especializada mas destinada

a pessoas que, de algum modo, já têm um certo grau de especialização.» (António

Guerreiro, crítico de literatura no Expresso)

«Eu não sei qual é o ponto de vista do leitor... Porque eu para conhecer o ponto

de vista de um leitor, ou para conhecer o perfil psicológico e cultural dos meus leitores,

eu tinha que saber quem são. Eu não sei quem me lê. E não tenho meios de aferir isso.

(...) Então decidi criar eu própria o meu público-alvo. Então o meu público-alvo é:

primeiro, os artistas que fizeram o trabalho; segundo, o público interessado. Não

escrevo para multidões. Não me interessa escrever para o povo. Eu escrevo para quem

se interessa. Quem quiser ler, lê, quem não quiser, não lê. Considero que isto me dá

uma capacidade de escolha também do meu público virtual. Que não sei quem é. (...)

Aquele a quem eu me pretendo dirigir é a um público interessado, a um público restrito

que eventualmente goste da minha maneira de escrever, que eventualmente goste da

minha atitude ética, e que a consiga descortinar, que a consiga descodificar, que se

identifique um bocadinho comigo. É como eu faço com as outras críticas das outras

artes. Eu procuro afinidades com a escrita do crítico. (...) E o facto de supostamente

dirigir-se a esse público faz modificar o tom da sua crítica? Não, não! Defendo

fanaticamente a liberdade discursiva do crítico. Infelizmente o próprio jornal me

condiciona.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso)

«Acha que o crítico deve integrar no seu discurso o ponto de vista de um

suposto leitor-nornal ou leitor-médio? Deve fazer um esforço por ser entendido por...

apresentados por WOLF, Teorias da Comunicação, op. cit., pp. 161-162.

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não sei se por o leitor-médio. Provavelmente pelo leitor que também faz um esforço por

entender aquilo que são forçosamente linguagens, de certo modo, especializadas. Não é

possível estar sempre a começar da primeira classe. Não sei muito bem que é o leitor-

médio, não existe... Em princípio, acho que deve ser entendido pelo leitor que se

esforça por entender. A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas

críticas? Dirijo-me ao público em geral, sabendo que só sou lido por um público

específico. Esse público específico é um público altamente minoritário, que mantém

uma relação relativamente regular com esta mesma área. Isto porque não é possível

começar do princípio todas as semanas, e se se fala de um determinado pintor ou

artista, na maior parte dos casos, pressupõe-se que ele tem uma obra relativamente

conhecida, quer dizer, não se começa por dizer que já fez quarenta exposições, que já

fez uma retrospectiva. É preciso a todo o momento avaliar o que é suposto que as

pessoas já saibam sobre um mesmo tipo. Se o pintor é cubista, não se pode explicar o

cubismo. Supõe-se que essa linguagem especializada, a partir de um determinado grau,

seja já conhecida.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso)

«O leitor médio é de facto uma abstracção que nos pode ajudar a pensar

algumas coisas, mas que na prática não existe, porque justamente é uma média de

coisas completamente diferenciadas. Eu aí podia responder-lhe com algum, não é

desencanto, mas sem qualquer mania das grandezas. Isto é, penso que a área crítica

não é uma das áreas maioritariamente lidas dos jornais. E penso que o leitor que vai

procurar as críticas de cinema é um leitor bastante específico, com uma leitura muito

orientada. (...) Portanto, penso que quem procura a crítica de cinema é alguém que tem

já à partida uma relação mais ou menos regular com o próprio mercado de cinema.

Isto é, uma pessoa que vai uma vez por ano ao cinema, não acredito sinceramente que

seja alguém que procure regularmente ler as críticas de cinema, não vale a pena

alimentar ilusões em relação a isso. (...) É aquela franja de espectadores que tem uma

relação sistemática com o mundo do cinema, que vê muitos filmes, e procura muita

informação sobre o mundo do cinema, que se calhar é um consumidor de publicações

especializadas sobre cinema, e que digamos que é o público que foi redescoberto pela

própria distribuição em tempos recentes. (...) O facto de supostamente atingir esse

público faz modificar o "tom" da sua crítica? Não. Nunca pensei muito nisso, e o facto

de nunca ter pensado acho que é significativo que não.» (João Lopes, crítico de cinema

no Expresso)

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«Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto

leitor "normal" ou o leitor "médio"? Tal como eu a entendo, acho que antes disso

deverá dar a sua opinião subjectiva sobre o que viu. (...) A que tipo de público se

pretende dirigir quando faz as suas críticas? Em primeiro lugar, a um público que

goste de cinema e que esteja minimamente presente no cinema que passa cá.

Obviamente que isso também tem a ver com o público que lê o jornal onde escrevo. E se

escrevo para sítios diferentes, tenho que ter em consideração públicos diferentes. No

caso do JL, como não há qualquer linha para esse jornal, ele deixa-me completamente

em liberdade, até se comenta a diversidade de estilos, não há qualquer compromisso

entre a edição. (...) O que eu não escrevo é para o cidadão comum que quer ir ver o

filme e vai ler um texto para saber qual é o filme melhor. (...) Agora, o público também

irá seleccionar consoante o que está habituado a ler num jornal ou noutro. A crítica

também, a meu ver, motiva um certo acompanhamento, até para que se perceba melhor,

para que as pessoas possam dali tirar algum proveito, e até uma opinião em relação

aos críticos e se reverem ou não, e tirarem a sua própria conclusão perante aquilo que

lêem e o que vêem, antes ou depois de cada uma delas. (...) Como é que imagina o seu

leitor? Imagino um leitor se calhar não tão jovem como eu desejava, mas um leitor

atento e exigente. É um público bastante atento e bastante culto. E o facto de

supostamente atingir esse público faz modificar o "tom" da sua crítica? Não, quer

dizer, o lado do público nunca está afastado da minha componente crítica. No entanto,

o meu lado pessoal prevalece, senão não teria sentido a minha crítica. Não me afecta

muito, tento ser lido por um público de um nível cultural acima da média, e o que eu

acho que faço está dentro do âmbito do jornal de uma forma ou de outra. Sobretudo,

acho que procuro que esteja dentro daquilo que eu pretento que seja a crítica sobre um

determinado filme. E normalmente é.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de

Letras)

«Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto

leitor-normal ou leitor-médio? Não, isso penso que não. O crítico deve ter uma posição

independente tanto em relação ao criador, como em relação ao leitor, espectador ou

não. Porque há esses dois aspectos, o leitor que é só leitor e o leitor que é espectador,

foi ou vai ser. Portanto, penso que o crítico deve-se manter independente em relação a

um e a outro. A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas?

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Tenho de me dirigir ao público do jornal para que escrevo. Não há mais nada a fazer.

(...) Eu sei que estou a dirigir-me a um jornal, neste caso a um jornal literário, que tem

os seus discípulos. Portanto, sei que posso usar determinada linguagem para esse

público, a qual eu aliás não uso. Portanto, o meu comportamento, o meu discurso, tem

a ver com aquilo que eu conheço do público do próprio jornal. (...) O facto de

supostamente atingir esse público faz modificar o tom da sua crítica? Não. Apesar de

eu querer chegar ao público, há uma certa indepedência, há um certo alheamento.»

(Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de Letras)

«Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto

leitor "normal" ou leitor "médio"? Identificar-me com o leitor, penso que isso é muito

difícil e digo-lhe sinceramente, nunca pensei nisso. A que tipo de público se pretende

dirigir quando faz as suas críticas? Para ser sincera, primeiro tenho que pensar em

que sítio é que eu estou a escrever. Se eu estou a escrever no JL, que nós sabemos que,

apesar de tudo, é uma elite que o lê, não temos a menor dúvida, mas sabemos que

dentro dessa elite há pessoas que não são propriamente interessadas em artes plásticas,

estão mais interessadas no campo da literatura. Portanto, o que eu procuro é informar

e também aprofundar um bocadinho as questões. Ou seja, tento não ser muito simplista,

isto é, também depende muito do pintor ou do escritor sobre o qual se fala, depende

muito do que é que nós estamos a referir. Mas, de um modo geral, também procuro

aprofundar sempre um pouco as questões.» (Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes

plásticas no Jornal de Letras)

«(o leitor...) Procura na crítica uma coincidência das suas próprias leituras e

das conclusões a que chega com as conclusões do crítico. Muitas vezes faço isso em

relação ao cinema, que é o mais fácil. (...) Há uma espécie de cortejo do leitor com o

parecer do crítico. O objecto de leitura é o mesmo, mas depois o leitor procura achar

pontos de divergência ou de convergência com o crítico. Acha que o crítico deve fazer

um esforço para se identificar com um suposto leitor "normal" ou o leitor "médio"?

O princípio é que o leitor é que deve sempre subir à cultura, não é a cultura descer ao

leitor, o leitor é que tem que se esforçar por tentar perceber o que é que as luminárias

dizem. (...) É evidente que como eu faço crítica jornalística, tenho que ter essa

preocupação, tenho que escrever coisas que imagine que as pessoas podem perceber,

podem ler. Também para mim é importante ser lido. (...) A que tipo de público se

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pretende dirigir quando faz as suas críticas? Eu não posso ignorar neste momento o

público que lê o JL. (...) O facto de supostamente atingir esse público faz modificar o

tom da sua crítica? A escrita torna-se biológica. E eu, a certa altura, já não estou

preocupado em apurar o meu estilo, aquilo já sai assim. Já não vale a pena apurar o

estilo, porque ele já é inerente à minha respiração.» (Júlio Conrado, crítico de literatura

no Jornal de Letras)

«Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto

leitor "normal" ou o leitor "médio"? Não, acho que não. Para já, no meu caso, eu não

identifico muito bem qual é o meu público, não o conheço muito bem. Sei que tenho um

público mas não o conheço. Imagino que é um público que tem alguma capacidadede

leitura, porque os meus textos nem sempre são muito fáceis, ou são um bocado mais

complicados, às vezes. (...) A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as

suas críticas? Eu não penso no público quando escrevo. Ou por outra, penso numa

bissectriz, penso numa zona intermédia entre um público geral que não seu quem é, e

um público especializado que eu sei quem é, que são os artistas e os conhecedores da

arte contemporânea. (...) sei lá, os críticos, de uma forma mais geral, algum público

mais especializado, e os próprios artistas. Portanto, é para eles que eu escrevo. Mas,

por outro lado, como uma pessoa está a escrever num jornal tem que escrever também

para outra gente, e aí é que eu escrevo para uma zona intermédia entre um público

ingénuo, que eu não consigo descrever, e um público especializado. (...) Deve ser uma

minoria muito escassa do público do meu jornal que lê as minhas crónicas. E o facto de

supostamente atingir esse público faz modificar o tom da sua crítica? Não,

exactamente porque eu procuro essa zona intermédia. Porque eu procuro essa zona

intermédia não posso fazer uma crítica de tipo meramente descritivo, que poderia ser

mais acessível a um público mais vasto. (...) Ou seja, sei que não posso escrever para

uma audiência que eu não tenho e fazer uma escrita de B, A, BA, quando apesar de

tudo sei que tenho uma audiência que está capacitada a entender um discurso mais

elaborado.» (António Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente)

«É difícil eu vir a saber, alguma vez, quem é o meu leitor. Muitas vezes até me

esqueço que há determinados leitores para o meu texto. Por vezes, só depois de estar

impresso é que percebo: "não devia ter escrito aquilo porque vai dar problemas com

um determinado leitor". Isso às vezes é perigoso. Mas identificar-me como o leitor não

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me coloca problemas porque não sei quem ele é. Procuro dar ao discurso determinadas

características de maneira a que ele seja lido por um determinado leitor. (...) Ao fazer

aquilo, pensei num leitor especial, especializado num determinado tema, não num leitor

abstracto. Isso estimula o leitor a ir ver o espectáculo. Consegue traçar-me um perfil

desse leitor imaginário? Acho que é o leitor que vai ao teatro, que está habituado ao

teatro e tem uma cultura teatral. (...) Eu faço os possíveis para que o público do meu

jornal seja capaz de ler aquelas críticas. Não me iludo muito quando sei que o jornal é

lido pelos quadros médios e altos das empresas. Não me iludo com a sua cultura. Sei

que, muitas vezes, eles têm uma cultura deveras pobre. Acha que o crítico deve ter a

preocupação de se fazer entender junto da generalidade do público? Sim. É isso que

eu tento, embora saiba que a generalidade do meu público não é propriamente "outro".

É um público que acho que tem a obrigação de saber mais. Portanto, quando faço uma

dissertação sobre um texto, sobre o autor do texto, sei que deve estar nas possibilidades

de entendimento da maior parte dos leitores.» (Manuel João Gomes, crítico de teatro no

Público)

«Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto

leitor "normal" ou o leitor "médio"? Isso não existe. Ou seja, eu não conheço, pelo

menos em Portugal, não existe o leitor-padrão. Como eu disse, o meu patrão é quem me

paga, portanto, no fundo, é para ele que eu escrevo. Se eu o desagradar muito, em

princípio ele terá a sensibilidade para perceber que estanto a desagradar a ele, estarei

a desagradar a muita gente e ele vai correr comigo. É muito difícil detectar, sobretudo

numa sociedade com tão poucas estatísticas e com tão poucos estudos sociológicos

sobre esse campo, o que é o leitor médio. No fundo, há uma minoria de espectadores.

Toda a gente dizia que o cinema europeu não pegava em Portugal, e há um distribuidor

aí que começou a mostrar filmes europeus e tem imenso êxito. Não existe tal coisa. Eu

creio que tenho um público, agora não consigo definir qual é o meu público.» (José

Navaro de Andrade, crítico de cinema no Público)

«A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas? A um

público específico no sentido em que são pessoas passíveis de se interessarem por

livros. Eu parto do princípio que as pessoas que me vão ler são pessoas que lêem

livros. Tirando isso, não me dirijo a ninguém em especial, se calhar dirijo-me a mim

própria. Eu acho que não podemos estar a pensar que nos vamos dirigir a não sei

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quantas pessoas, porque isso é absolutamente inibidor. Não há o leitor ideal. Eu parto

é desse princípio, de que estou a escrever para pessoas que se interessam por livros,

caso contrário, não liam. Acho que não penso mais nada, a não ser aquelas coisas, que

aquilo seja legível. E o facto de supostamente atingir esse público faz mudar o tom da

sua crítica? Que aquilo seja legível. Que as pessoas compreendam exactamente aquilo

que eu quero dizer. E se tenho fórmulas mais rebuscadas ou coisas que eventualmente

tenha muitos sentidos possíveis e nenhum que se sopreponha aos outros, tiro-as. Eu sou

muito contra estarmos a ser muito rebuscados e acho que isso em jornais, em limite, é

uma coisa que se torna ridícula. Acha que o crítico deve fazer um esforço para se

identificar com o ponto de vista de um suposto leitor-normal ou leitor-médio? Eu não

sei o que é o leitor-médio, mas quando escrevo tenho que escrever do ponto de vista do

leitor, porque quem me vai ler é o leitor. Ou seja, eu estou escrever do meu ponto de

vista, porque isso do leitor médio é um bocado uma ficção. Mas estou a escrever do

meu ponto de vista como leitora para pessoas que também são leitoras, e estamos nesse

momento a pôr o autor entre parentesis.» (Tereza Coelho, crítica de literatura no

Público)

«A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas? Eu

nunca penso nisso. (...) Já que tenho que escrever, é para pôr no papel aquilo que eu

penso do assunto. Eu não penso no leitor quando estou a escrever. Ou penso num leitor

do meu nível. (...) Eu acho que são os indivíduos que frequentam as galerias, ou seja,

tanto podem ser estudantes do ensino superior artístico, como coleccionadores, como

profissões liberais cultivadas não sei porquê naquele gosto, e são também

coleccionadores não tão regulares, tipo classe média-alta. São o tipo de pessoas que

vão às galerias, basicamente é esse. (...) Portanto, tem a ver com os indivíduos que

fazem o circuito das galerias sobre as quais eu escrevo regularmente com interesse,

com atenção interessada e positiva. Não é da galeria Y Grego ou do Shopping Center

não-sei-da-onde.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público)

«Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com um suposto

leitor «normal» ou o leitor «médio»? Não necessariamente. A que tipo de público se

pretende dirigir quando faz as suas críticas? Escrevo para o espectador interessado, o

chamado cinéfilo, mas não de crítico para crítico, mas de crítico para cinéfilo. E acha

que tem um público fiel? Sim, isso sei que tenho. Considero que é o cinéfilo médio. Em

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geral, não sou um crítico estimado pelo cinéfilo de alto gabarito, quer dizer, pelo

estudioso de cinema a fundo, mas sim pelo cinéfilo médio, pelo espectador comum que

gosta de cinema. Pelo menos são aqueles que se me dirigem e que discutem opiniões

que eu tenho. O facto de supostamente atingir esse público faz modificar o tom da sua

crítica? Não, modificar não faz porque eu tenho uma determinada maneira de escrever,

e exprimo as minhas ideias da maneira que sei e da maneira que com os anos fui

construindo.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital)

A ideia de profanação e/ou contaminação do discurso do crítico jornalista quer

pela sua ligação a determinados grupos ou correntes artísticas, quer pela presença

ausente de um suposto "leitor-médio", advém do facto da concepção estética dos

críticos de pendor academista tender a ser dominada por uma visão ontológica ou

essencialista da própria arte: para estes últimos, a meta final da sua prática deveria ser

fazer ressurgir e reapresentar publicamente o sentido supostamente intrínseco da obra

sobre que se debruçavam, tarefa que exige o tal "distanciamento crítico" de que

falámos. Tal atitude de recusa de contactos com o exterior, que nos remete para a

conhecida ética da visibilidade pura partilhada por muitos teóricos da estética, traduz a

procura de auto-valorização e de autonomização de um domínio intelectual específico

que se quer constituír e manter irredutível como campo, através da prática da crítica

pela crítica e da promoção da arte pela arte, vendo a outra crítica, a crítica que se

vende, que é comercializada no espaço da imprensa, como que corrompida em virtude

da sua função utilitária, apresentando-se sujeita a todo o tipo de pressões e

constrangimentos sociais pelo facto desse mesmo espaço se integrar nas leis do mercado

capitalista e de, por esta via, pretensamente servir os interesses do leitor ou de

determinados círculos electivos de criação.

Ora, esta última posição remete-nos directamente para outra acusação apontada

pelos críticos universitários à crítica jornalística: a de que esta surge corrompida por

uma suposta visão comercial e consumista da arte, desrespeitando-a na sua "essência"

na medida em que põe a sua fruição ao nível da "simples" actividade de lazer, servindo

os interesses comerciais e sendo conivente com os mercanismos de mercado presentes

no seu campo de produção. Acerca desta questão, que detém ainda alguma actualidade,

Mary Pratt prenuncia-se nos seguintes termos:

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«(...) reviewing is up to ears in what academic criticism resolutely tries to turn

its back on, namely commercialism and the treatment of art as a commodity. The

standard stance for present day reviewers is that of the consumer reporter, assisting the

potencial customer in deciding which works to spend time and money on. The focal

point of the review is the recommendation to the consumer, the body of the text standing

ostensibly as explanation and defense of the recommendation. The commercial ideal is

for works of art to be consumed one after another like potato chips, to become obsolete

as soon as a single exposure has taken place. This is the way they are dealt with

revieiwng (...). Their relationship to the entertainment industry, which usually produces

both the works under review and those doing the reviewing, puts reviewers under

pressure to approach art primarily as diversion or escape (...). For this (académicos) is

the label that communicates to us all that that art which is part of daily, unspecialized

social experience is not art or culture at all, is beneath criticism, beneath

interpretation, beneath taking seriously. Ironically, to the extend that academic

criticism implies or even disseminates such a view, it supports the very commercial

interests it elsewhere undertakes to resist.» Perante de tais acusações, a autora não as

vai contrariar ou desmentir, tentando, contudo, relativiza-las e retirar-lhes o conteúdo

pejorativo que lhes é incutido. Na sua opinião «it is a mistake to think of reviewing as

purely a device of consumerism. It performs cultural tasks that are central to criticism.

Reviewing plays an important role in the critical process of working out community

consensus of judgment and interpretation of art. (...) A preoccupation with

entertainment value obviously does not preclude serious consideration of art.

Entertainment and leisure are serious matters (...). And precisely because of its

presence in the midst of marketplace, reviewing does mediate directly between

producers and receivers of mass art, forming a privileged and consequential line of

communication from the latter to the former (...).»148

Tais acusações da crítica académica à crítica jornalística prendem-se, como é

evidente, ao facto de entre a primeira prevalecer um olhar fascinado sobre a obra de

arte, produto de uma visão romântica e aurática da arte que pressupõe os princípios da

sua imaculada idealidade, assim como, consequentemente, da denegação da economia

neste domínio, pelo que os percursores desse tipo de crítica se debruçaram quase

148 PRATT, "Art Without Critics and Critics Without Readers...", op. cit., pp. 181 - 182, 186.

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exclusivamente sobre as formas culturais clássicas ou formas tradicionalmente legítimas

(que são as que se encontram socialmente institucionalizadas como "verdadeiramente"

artísticas, associadas a um modelo de produção cultural onde aqueles princípios estão

ainda bastante arreigados, embora tendam hoje cada vez mais a perder a sua força) em

detrimento dos produtos provenientes das indústrias culturais, geralmente classificados

sob a designação de "cultura de massas" ou "arte comercial", estes depreciativamente

considerados em termos estéticos e, como tal, deixados ao cuidado da crítica

jornalística: «infact, they are almost entirelly excluded from the concerns of academic

criticism, though their critical consideration is deemed appropriate in limited context of

reviewing.»149

Os críticos jornalistas, por seu turno, vão apontar a crítica académica, nos seus

princípios éticos e estéticos, como pretenciosa, fria e algébrica (nas palavras que atrás

citámos de Baudelaire), assim como elitista e restritiva, preconizando, por seu turno, o

princípio da democracia cultural e a necessidade de congregar esforços no sentido de

estender a arte e a própria crítica para fora das elites intelectuais a que tradicionalmente

aparecem associadas. Nas palavras de Mary Pratt:

«The particulary striking aspect of the academic context, however, is that the

strategy for insulating elite art and criticism from commodification has tended to

isolated them from about averything else that goes on outside the university, and thus

tended to foster a view of "culture" as something existing apart from social life. When

elite culture is the only culture recognized by criticism, the scape from commercialism

leads only to an equaly impoverisched isolationism. (...) This is not of course to say that

critics should abandon Pantagruel and learn to love the Incredible Hulk; it is to say

only that elite art should not and need not be the unique focus of academic criticism. It

is a matter of increasing the critic's roles, not of eliminating any of them.»150

149 Idem, p. 178. Desta situação, é porém de excluir o caso concreto do cinema, o qual, com a recente reestruturação da instituição académica e dos campos intelectual e artístico em geral - acontecida a partir dos princípios da década de 70, tendo vindo a flexibilizar e a diluir as fronteiras de legitimidade tradicionalmente traçadas entre os diversos produtos culturais e, como tal, a pôr em causa a "distribuição dos recursos críticos" tal como estava anteriormente organizada -, veio a ser seu particular beneficiário (tal como acontece hoje com a fotografia e até mesmo com as várias do design), dispondo a partir daí da atenção de uma boa parte de críticos académicos mais liberais. 150 Ibidem, pp. 184-185.

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Nesta perspectiva, podemos notar que a cisão entre crítica universitária e crítica

jornalística, sendo uma das mais acentuadas expressões das clivagens gerais existentes

no campo da crítica desde a sua génese, encontra-se igualmente relacionada com o

carácter central ou periférico da localização desses lugares de produção de discurso

crítico no campo que lhe é específico. Efectivamente, desde que o espaço das artes se

foi liberalizando em relação à instituição académica e que, simultaneamente, a prática

crítica veio a encontrar um espaço de desenvolvimento e divulgação regular junto da

imprensa, a crítica de vocação mais hermenêutica (historiográfica e/ou ensaística), tendo

em conta o grau de visibilidade e impacto público alcançado por ambas, foi-se

periferizando social e culturalmente em relação à primeira, a qual veio assumir uma

localização central com o desenvolvimento e expansão crescente e acentuada dos media

(assim como das temáticas culturais e artísticas no seu interior) na nossa sociedade.

A actual situação periférica da crítica académica face ao reviewing encontra-se

bem retratada no testemunho de Mary Pratt que passamos a citar: «something we

academic critics perhaps more keenly feel, is that most of the criticism produced goes

virtually unread.» Esta peculiaridade, segundo a autora uma das mais importantes no

contexto da crítica contemporânea, «referers, of course, to the vast critical production

taking place in colleges and universities. Quantitatively speaking, most criticism by far

is now produced by professors of literature and addressed to other professors of

literature. Moreover, as critics of the profession relentlessly point out, the production of

criticism within the close circle has far outstripped the capacity to absorv what is

published. Thus, if professors of literature form a relatively small potencial audience

for criticism, the actual audience for any given critical piece is likely to be downright

minuscule.»151

No decurso do movimento de periferização social da crítica académica, os seus

praticantes começaram a dirigir grande parte da sua preocupação reflexiva para a

correcção e fundamentação analítica da coerência das suas perspectivas teóricas e

metodológicas de abordagem estética, assim como para a consubstanciação conceptual

da especificidade da actividade crítica - temáticas que os críticos jornalísticos raramente

abordavam, absorvidos pelas polémicas propriamente estéticas que se viviam na

151 Ibidem, pp. 178-179.

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actualidade, com a proliferação de novos movimentos de artistas e de eventos culturais a

criticar. Deste modo, como refere Zolkiewsky, os primeiros acabaram por começar a ser

socialmente considerados já não apenas como críticos, mas sobretudo como teóricos

e/ou investigadores especialistas na análise literária e artística, ficando aquele estatuto

comummente associado ao espaço de produção e difusão jornalística (especializada ou

generalista), pelo qual mais recentemente começaram também a ser chamados a dar o

seu contributo discursivo e opinativo.152

Tendo em consideração que o desenvolvimento paradigmático preconizado

pelos críticos académicos em torno da sua própria prática e da relação que esta deverá

manter com os objectos de arte - no sentido de pensar as funções sociais e teóricas da

crítica, assim como o seu método de abordagem particular dos fenómenos estéticos - é

bastante ilustrativa da luta empreendida pela afirmação e defesa da autonomia do seu

estatuto e da sua respectiva legitimidade discursiva e opinativa - nomeadamente em

relação a instâncias de que está directamente dependente no desempenho da sua

actividade, como sejam o criador, a obra sobre que se propõe reflectir e o seu receptor -,

decidimos dar-lhe uma atenção especial neste trabalho.

Por outro lado, a forma como privilegia (ou não) cada um destes elementos na

sua estratégia de abordagem crítica e na relação que mantém com a obra sobre que

reflecte, vai também fazer-nos descobrir uma outra clivagem fundamental que atravessa

igualmente o campo da prática crítica desde a sua génese, ou seja, a que separa críticos

de habitus objectivista e críticos de habitus subjectivista. Se bem que essa cisão

coincidisse totalmente, no seu início, com a que dividia críticos académicos e críticos

jornalistas, depressa se revelou transversal àquela, nomeadamente quando os valores da

objectividade e da verdade crítica começaram a ser postos em causa dentro do próprio

espaço académico, assim como quando agentes do interior deste começaram a ser

importados para o espaço da imprensa. Senão vejamos.

152 ZOLKIEWSKY, "Crítica", in Enciclopédia Enaudi, nº 17, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da

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IV. DESENVOLVIMENTO PARADIGMÁTICO DA

CRÍTICA:

UM PROCESSO PARA A AUTONOMIA

4.1. A CRÍTICA PARA-OBJECTIVISTA

Apesar da diversidade que caracteriza actualmente o campo da crítica quanto à

sua produção teórica, Eduardo Prado Coelho considera poderem-se agrupar as várias

teorias da crítica que vieram a desenvolver-se ao longo do tempo em três grandes

conjuntos paradigmáticos: o paradigma filológico, o paradigma comunicacional e o

paradigma metapsicológico153. A construção deste esquema triático é alicerçada em

função de dois eixos fundamentais, a partir dos quais o autor diferencia o conjunto de

vectores assumidos por cada um destes paradigmas: o primeiro eixo corresponde ao

elemento privilegiado pela teoria crítica no conjunto de elementos intervenientes no

processo de comunicação estética, ou seja, o emissor-autor, a obra-mensagem ou o

receptor-leitor; o segundo eixo encontra-se associado ao postulado da teoria crítica no

que se refere à coincidência ou não coincidência entre verdade crítica e sentido da obra.

Nesta perspectiva, passemos então a explicitar os pressupostos partilhados por cada um

destes conjuntos paradigmáticos.

O paradigma filológico constituiu a referência dominante para a prática e

investigação crítica exercida nas Academias oficiais, que vieram depois a assumir o

estatuto de escolas superiores e/ou de Universidades, até meados do nosso século.

Profundamente marcado por uma ética positivista em relação à arte, visava como

objectivo básico e prioritário para a crítica a reconstituição, fixação e reapresentação

Moeda, 1989, pp. 260-294. 153 COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit, pp. 15-17. Estes três paradigmas correspondem, respectivamente, às noções classificatórias da prática crítica propostas por Roland Barthes, ou seja, a Crítica Universitária Clássica ou Tradicional, a Crítica Nem-Nem e a Crítica Ideológica ou Nova

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objectiva do sentido da obra - aqui entendida como expressão estética das percepções e

emoções, pensamentos e sentimentos subjectivos de determinada individualidade face

ao mundo que a rodeia, face à realidade que a envolve, que ela apreende e tenta traduzir

artísticamente. Na base desse objectivo estava o pressuposto de que no interior de

qualquer obra viveria uma verdade, a qual corresponderia ao seu significado último,

único e essencial (no sentido em que constitui a sua "essência" significativa). O crítico

seria então convidado a empreender a tarefa de atingir essa mesma "verdade", de

apreender o sentido literal da obra, restituindo-o e reapresentando-a objectivamente no

seu discurso, despojando-a do seu brilho metafórico e protegendo-a da errância de

sentido a que esse brilho poderia induzir.

A coincidência entre verdade e sentido pressuposta pela filologia oitocentista

encontra-se, por sua vez, garantida no seu dispositivo teórico através do reconhecimento

da autoridade do autor na determinação prévia do simbolismo do artefacto estético por

ele criado. Recusando a posição de conformidade por que a prática crítica se regia até aí

em relação a um ideal formal de Beleza importado da cultura estética grega, a crítica de

ethos filológico afirmava a necessidade de uma interpretação e avaliação estética que

saísse das categorias imutáveis e que tivesse em conta a personalidade dos artistas

enquanto historicamente participantes da sua própria época. Isto é, conceptualizando a

obra de arte como resultado de um dado comportamento estético, só a partir do estudo

do seu contexto de criação e através do conhecimento diacrónico e sincrónico das várias

formas de comportamento artístico que a precederam e a circundam, é que seria

permitido ao crítico aferir que uma dada obra é "autêntica" e "verdadeiramente"

artística. Deste modo, a qualidade estética já não é aqui reconhecida a partir de modelos

arquetípicos, mas deduzida no decorrer do processo criativo e expressivo do artista,

através da análise da originalidade, coerência e unidade estilística e expressiva da sua

obra contextualizada no tempo. Cultivava assim o valor da autenticidade em desfavor

da conformidade às regras e convenções associadas à tradicional ideia de Belo.

Nesta óptica, o sentido-feito-verdade preconizado no paradigma filológico seria

supostamente conseguido através da recuperação do ponto de vista do autor, seria

pretensamente atingido através da reconstituição da mensagem segundo da intenção do

emissor, interveniente da comunicação estética aqui privilegiado como fundamento da

interpretação crítica. O significado e valor da obra de arte eram então explicados na sua

Crítica, classificação apresentada nas suas obras Mitologias, Lisboa, Círculo dos Leitores, 1957/87, e Crítica e Verdade, Lisboa, Edições 70, 1966/87.

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articulação com um dado contexto cultural, no espaço e no tempo, contexto esse em que

seria formulada a intencionalidade pragmática e programática do artista, núcleo em que

converge o valor e o significado último da obra. Assim sendo, a inteligibilidade do

discurso estético dependeria, em última instância, de algo que lhe é anterior e que o

determina: a intenção do autor, ponto de chegada da compreensão e interpretação

crítica "objectiva" de qualquer obra. O autor torna-se aqui a única e verdadeira origem

ou fonte do sentido literal intrínseco à sua obra, torna-se proprietário do direito de

atribuição de significado à sua criação e, consequentemente, única garantia segura da

chegada àquele, meta da prática crítica.

Esta postura perante o exercício da crítica detém ainda uma certa herança

proveniente da cultura artística e crítica romântica, na medida em que obriga o crítico a

reconhecer no artista o génio, detentor único da verdade sobre a sua obra e,

simultaneamente, a auto-reconhecer-se como simples agente mediador, devedor do

próprio pensamento original do criador. Aqui, fazer crítica supunha querer aceder ao

universo da genialidade do artista, àquela dimensão inefável da sua obra, acesso esse

sempre conduzido pela mão do artista nos testemunhos que havia deixado sobre a suas

próprias intenções estéticas.

Tal tendência para admitir o criador como depositário e definidor último do

sentido verdadeiro, literal e perene da sua obra, vai pressupor a existência de uma

conexão directa entre o signo estético e o universo de referência de quem o utiliza: daí a

interrogação do crítico de ethos filológico sobre a cultura do autor, sobre o seu processo

formativo, a sua vida, a sua época, a situação social e cultural que o rodeia, a sua

personalidade e biografia, as convicções e ideias de que partilha, os seus estados

psicológicos no momento de criação da obra em causa, em suma, sobre toda a

contemporaneidade que delimita a construção da sua individualidade e da

especificidade da sua linguagem estética, onde devem ser procurados os vestígios da

"intenção" subjacente ao objecto criado. Desta forma, a autenticidade da obra e a

singularidade da intenção do seu respectivo autor são aqui situados na sua relação com o

seu contexto de produção passado e presente, enquandrando e reassociando o que é

próprio de cada artista, em termos de caracerísticas únicas e inovações, na globalidade

da história das artes e letras.154

154 Hippolyte Taine (1828-1892), percursor da corrente filológica na área das artes e literatura e em grande parte inspirado no positivismo de Comte, ao procurar explicar as obras como reflexo das instituições, das preferências, do modo de vida, da escola e da família a que os artistas pertencem, em

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As pretensões científicas inerentes ao paradigma filológico, decorrentes da

transferência da ética positivista para o campo da crítica, vão implicar uma metodologia

de trabalho em que predominam os valores do preciso, do exacto, do autêntico, do fiel,

pressupondo a preservação do significado original, a pureza da origem, ao remeter a

"verdade" da obra de arte para a "intenção" do autor. Tentando abster-se de intervir nos

problemas da arte contemporânea (por razões de imparcialidade crítica e, em grande

parte, convencidos de que aquela se encontrava em decadência em relação à arte do

passado), os críticos de ethos filológico procuravam através da reconstrução histórico-

cultural da vida e da época do seu criador, tarefa executada com base na decomposição

e análise aprofundada de documentos e outras fontes originais155, anular os efeitos do

distanciamento da obra na história e eliminar o obscurantismo que essa distância

provocaria sobre o seu significado literal, uno e perene, transformando a experiência e a

percepção particular do crítico em relação ao objecto em leitura trans-histórica, criando

assim as condições propícias à expansão da ideologia da intemporalidade da Arte.

Pretendendo, com obstinação positivista, o rigôr científico na relação com o

texto escrito ou pictórico, o comportamento filológico cultivava também o valor da

neutralidade ou isenção pelo apagamento pessoal do crítico como agente interventivo

no processo de produção de sentido estético. A presença deste no processo de

conhecimento que desenvolve deveria ser necessariamente anulada, de modo a afastar

impiedosamente o erro na sua interpretação por forma a que o resultado final desse

processo fosse completamente des-apaixonado e des-afectado. Pretendia-se assim um

modelo de crítica anestesiado em relação a todo e qualquer tipo de contaminação

suma, com o meio social em que vivem, foi de tal modo determinista que, nas suas posições, aqueles perdiam toda a sua autonomia e liberdade criativa. Contribuiu, no entanto, para a inauguração da compreensão da relação entre a arte e a vida social. Para um bom resumo sobre o pensamento estético e crítico de Taine, ver "Taine: o lago imóvel e a partilha das águas", in COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., pp. 239-266. Taine teve, em Portugal, Ramalho Ortigão como dilecto discípulo, que o considerava então como «mestre na crítica de arte», declarando em 1876 que «a arte era um produto directo do meio social», demarcando-se assim do idealismo, que também nessa época tomava fôlego, e que considerava ser a «peste da arte». Teófilo Braga segue-o nas ideias com a públicação, em França, do ensaio "Constituition de l' Esthétique Positive". Também António Arroyo (1856-1934), na sua obra sobre "Soares dos Reis e Teixeira Lopes" (1899), vai partilhar da ideia da intenção do autor como garantia da indepenência crítica, já que, como ele diz, «colocando-se no ponto de vista sentimental em que (o artista concebeu a obra), não partiria de sistemas estéticos pessais, a maior parte das vezes alheios ao próprio artista». O tempo e o lugar em que a mensagem artística cristalizou fixam a sua exteriorização - e assim «acção exterior», ou seja conteúdo e forma, «acham-se fixadas a um tempo e indissoluvelmente ligadas.» Cit. in FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., vol. I, p. 439, vol. II, p. 98 e p. 109. 155 Como é patente na posição de Lionello Venturi, representante, nos anos 30, desta forma de crítica na área das Belas Artes, para quem «o pensamento do próprio artista sobre a sua arte, sempre que possamos conhecê-lo, é, naturalmente, o documento mais precioso. (...) Do mesmo modo, o pensamento dos

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subjectiva, assumindo a aparência de leitura trans-ideológica e universal. A tentativa de

apreensão objectiva do objecto estético e a consequente perseguição constante de toda e

qualquer ambiguidade (que contradiga a coerência supostamente existente entre o texto

e a "intenção do autor", origem e garantia da interpretação correcta) empreendida pela

crítica de tradição filológica, foi resultar no pressuposto de que é possível,

metadiscursivamente, encontrar um ideal de coincidência entre significado e

significante, entre "espírito" e sua materialização na letra/palavra. É neste sentido que

Prado Coelho afirma que «a filologia é (virilmente) a vontade de possuir

(filologicamente) a palavra exacta, garantindo a sua fidelidade.»156

Com efeito, se o objectivo da crítica de carácter filológico seria o de fixar e

imobilizar a literalidade dos signos estéticos, fossem eles de ordem discursiva ou não

discursiva, no que eles significam em si, era necessário que a sua própria escrita

transparecesse um modelo de neutralidade e de isenção: deveria então pautar-se pela

clareza, pelo rigôr, pela apatia, pela passividade. A linguagem nela empregue era

considerada apenas enquanto instrumento de transmissão, devendo ser sobretudo

técnica e funcional, despida de qualquer efeito ou uso metafórico. Ao brilho da obra

deveria sobrepôr-se a so(m)briedade do discurso metaliterário. Deste modo, o ofício da

crítica nos circuitos académicos definia-se cada vez mais como uma especialização

técnica e trabalho científico, distinguindo-se da crítica associada à imprensa generalista

ou de instrução cultural executada por literatos, poetas e outros criadores e diletantes.

Os pressupostos básicos perfilhados por esta corrente da filologia vêem-se hoje

praticamente abandonados no contexto da crítica portuguesa (e não só, como

continuaremos a vêr). Longe da pretensão à obtenção do estatuto de Ciência, no sentido

positivista do termo, e reivindicando a autonomia da sua acção interpretativa e

judicativa em relação ao pensamento do autor sobre a sua obra, assim como a sua

legitimidade enquanto receptor privilegiado, porque especializado, os nossos críticos

entrevistados demarcam-se acerrimamente em relação à premissa central desta corrente,

que faz corresponder ao objectivo e fundamento legitimador fundamental da prática

crítica a recuperação da intenção do autor na realização na sua obra. Por um lado,

porque essa intenção poderá não ser conhecida nem haver meios de a conhecer, o que

contemporâneos de um artista, eles mesmos artistas ou não, dos seus discípulos e continuadores, fornece à crítica documentos preciosos», in História da Crítica de Arte, op. cit., p. 13 (os itálicos são nossos). 156 COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit, p. 222.

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levará a suposições que são desnecessárias do ponto de vista crítico. Por outro lado,

porque o autor não tem o poder de controlar todos os efeitos de sentido que a sua obra,

semanticamente polifónica, poderá desencadear. E ainda porque entre a intenção e a

realização supõe-se haver uma larga distância e não obrigatoriamente uma coincidência.

Pelo que, para os nossos entrevistados, a relação de fidelidade da crítica deve ser

sempre estabelecida com a obra e não com os elementos que a envolvem, sendo ela que,

em última instância, autoriza as suas enunciações discursivas. Quanto muito, o

conhecimento da intenção do autor e das circunstâncias que a rodearam e a

condicionaram, poderá eventualmente ser admitido como um dos suportes, entre outros,

a considerar no processo crítico de análise e judicação, podendo ser utilizado como um

dos parâmetro de avaliação da obra, na medida em que tal situação permitirá uma

confrontação entre intenção e resultado final, assim como compreender esse mesmo

resultado final dentro do quadro das suas prováveis limitações externas e condicionantes

estruturais e subjectivas. Esse conhecimento poderá também ser utilizável como

elemento coadjuvante na compreensão de determinadas componentes da obra, assim

como na sua contextualização geral, nomeadamente se o percurso do seu autor fôr

menos conhecido publicamente. Mas nunca por nunca o crítico contemporâneo toma a

tarefa da recuperação da intenção do autor como tarefa prioritária da sua actividade,

sequer como fundamento de legitimidade da sua própria leitura do objecto.

«Na sua opinião, o crítico deve preocupar-se em integrar o ponto de vista do

criador sobre a sua obra na crítica que dela faz? Não, porque a intenção do autor

ninguém a conhece, a não ser o próprio autor. Qualquer crítica se deve desviar de

qualquer espécie de processo de intenções. Deve evitar tentar entrar nesse campo que

são as intenções do autor, ou porque as intenções não são conhecidas, ou porque elas

são irrelevantes. Porque, de facto, uma das características da obra de arte é o poder

escapar, e se não fôr assim não será uma obra de arte, será uma obra qualquer de

carácter pragmático, tem uma utilidade tem uma funcionalidade, aí sim, a intenção tem

relevo deve ser um critério a ter em conta, mas no caso da arte a intenção é irrelevante,

é um critério que não devemos ter em conta. Ou porque não sabemos, ou porque é da

própria natureza da obra ultrapassar todas as intenções do autor. (...) Isto é, o autor

não pode prever tudo aquilo que nós podemos ler na sua obra, ou que podemos ver, é

impossível que ele possa prever isso. Por maior que seja a sua capacidade de previsão,

por maior que seja a sua capacidade de refexão acerca do seu próprio trabalho, ele

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não pode prever tudo. E nesse sentido, qualquer crítica que fosse baseada nesse critério

das intenções seria sempre uma crítica bastante pobre.» (António Guerreiro, crítico de

literatura no Expresso)

«Não. Não e sim, quer dizer, o crítico leu o livro, é um leitor. Depois, a partir do

livro que leu faz o comentário. O ponto de vista do criador é o que está, em princípio,

no livro, e tem que perceber à maneira dele, e depois a partir daí faz o comentário.»

(João António Dias, crítico de literatura no Independente)

«Essa pode ser uma das componentes da actividade crítica, mas não me parece

que isso seja suficiente. (...) criar é inventar, de algum modo, e nem sempre os autores

se expõem como seres humanos que são, metem-se na pele daqueles personagens,

personagens que eles gostariam de ter sido, ou personagens que lhes são periféricas

mas que eles conhecem bem... Não me parece que isso seja fundamental. Podemos é

chegar através de qualquer ficção à conclusão que determinado autor pensa desta ou

daquela maneira. Agora, recolher o perfil psicológico do autor só pelo... não creio que

isso seja função da crítica literária. A gente, eu pelo menos, atendo mais ao livro,

atendo mais às personagens do livro, ao contexto, à história, tudo isso, do que

propriamente estar a pensar se determinado autor escreveu daquela maneira e poderia

ter escrito de outra só porque na sua vida particular as coisas não se passam bem

assim mas assado.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras)

«Não forçosamente. Como eu lhe estava a dizer, é sempre um tiro no vazio. Se

você faz o tipo de crítica que eu faço, que é tentar encontrar a lógica interna de uma

obra, evidentemente que eu tenho que tentar perceber o que o autor quis fazer. Posso

estar errada. Eventualmente passa por tentar conhecer a vida do autor, não

forçosamente, eventualmente. Depende. Se eu estiver a falar da Recherche e estivermos

a falar da metáfora central do livro, eu não preciso de saber que Proust era

homosexual para perceber o que ele quis fazer, para explicar a imagem da inversão,

que é como se dizia na altura homosexualidade, para perceber essa metáfora. É

evidente que me pode ser útil saber que ele levou muitos anos a viver nesse mundo, que

não era nenhum snob, etc, etc, para o perceber.» (Patrícia Cabral, crítica de literatura

no Diário de Notícias)

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«De maneira nenhuma. Isso era negar mesmo a teoria da recepção. O crítico é

um receptor. O crítico é um intérprete. O crítico é um hermenêuta como qualquer

outro. Logo, deve assumir com a liberdade de que fôr capaz e que fôr construindo com

a sua experiência, deve ser livre de não ter em linha de conta a intenção autoral. Não

interessa a intenção autoral. Interessa é o resultado, aquele resultado entre o horizonte

da obra e o meu horizonte. Pronto.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso)

«Eu julgo que isso é variável. Evidente que quando (...) nós já escrevemos há

muitos anos o perfil de um determinado criador, muitas vezes já não é preciso estar a

explicar, porque já se falou tantas vezes nesse aspecto, pode-se fazer uma referência ou

outra, duas ou três frases, dois ou três adjectivos, e não andar sempre a explicar todo o

percurso e o perfil do criador de quem já se falou muito. (...) e nessa altura já não é

preciso "gastar" espaço com coisas que já são sabidas, e nesse caso interessa focar

essencialmente naquele espectáculo o que em si que será mais diferente ou menos

diferente dos anteriores, focar mais o objecto artístico do que proprimente o modo de o

fazer. Quando não é esse o caso, principalmente quando são criadores que estão a

aparecer, a emergir, que ainda não têm uma caminhada, eu julgo que aí deve haver os

dois apectos, o enfoque sobre o objecto artístico em si e a tentativa de explicação ou de

entender o que pretende, quais são os parâmetros em que se movimenta o criador, qual

será a sua filosofia sobre o espectáculo, tentar entender isso, como isso se virá a provar

ou não com a continuidade do seu caminho, mas aí é um aspecto de análise muito

interessante. (...) Eu procuro descobrir isso através dos espectáculos, para mim é muito

mais interessante, muito mais desafiador. Eu julgo que o espectáculo e o criador tem de

se explicar por si próprio.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias)

«A minha relação com o filme não pode partir disso, tem que partir daquilo que

eu encontro lá. Isto para dizer que a tal relação singular que eu estabeleço com o filme

tem, apesar de tudo, modos de validade, e esses modos de validade, sendo obviamente

discutíveis, sempre discutíveis, jogam-se na relação directa com elementos específicos

que estão no filme e não com aquilo que poderia estar ou com aquilo que foram as

intenções do autor. Aliás, devo dizer-lhe que um dos factores para mim praticamente

irrelevantes na relação com o filme são as intenções do seu autor. Acho que pode ser

muito interessante ouvir e ler as ideias que cada cineasta tem sobre o seu filme, mas

não quer dizer que isso seja necessariamente um guia esclarecedor, porque uma das

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coisas que se aprende a fazer crítica é que há sempre uma diferença, quanto mais não

seja de grau, entre as intenções de quem filma e o próprio filme. O objecto filme é algo

que se libertou do seu criador. Portanto, é nessa base que estabelecemos uma relação

com o filme.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso)

«O ponto de vista do criador é o ponto de vista da obra, e portanto é esse ponto

de vista que eu vou analisar e criticar. Só que as intenções, para além do Inferno estar

cheio delas, são muitas por cada obra. Ou seja, o que faz de um filme um filme

interessante é o facto dele ser polifacetado, apesar de ter um ponto de vista. Este ponto

de vista é suficientemente rico para ser polifacetado. Eu posso pegar no Vale Abraão

do ponto de vista da Ema, do ponto de vista do Rio. Eu, ou falo de tudo, se tiver tempo,

se vir tudo, ou posso pegar numa parte desse cristal e ver o filme todo a partir daí. A

questão é tentar nunca falar de coisas que objectivamente não estão lá. Agora, pode é

estar lá muita coisa e eu só pegar numa ou duas, e eu construir o discurso a partir

dessas, ou tentar ir a todas e tentar perceber a unidade do filme, depois há muitas

maneiras de abordar um filme. Mas parte-se sempre do filme e daquilo que ele tem.»

(José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público)

«Não. Esse é o ponto de partida do criador, e o do crítico pode ser coincidente

ou pode não ser. Há um exemplo por cá em que as críticas foram completamente contra

a intenção, ou perceberam a intenção do criador mas que não a tiveram em

consideração: no "Chaplin", a intenção do realizador foi essa, os críticos perceberam

mas rejeitaram a sua intenção. E há inúmeros exemplos em que a crítica critica

precisamente o trabalho do próprio realizador, não tem que ser necessariamente

coincidente. Aliás, é essa também uma das responsabilidades, será a isenção do crítico

em avaliar determinado filme. Há que ter em conta a intenção, mas não quer dizer que

ela presida à sua crítica.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras)

«Em atender, sim. Eu não me parece que a crítica seja, embora em muitos casos

historicamente foi isso e também foi importante que tenha sido, a amplificação do

discurso de suporte do próprio criador, da atitude do próprio criador. Há algumas

pessoas que o fazem por sistema, que procuram esse tipo de proximidade e de papel.

Não é pessoalmente aquilo que me interessa. Em última análise, o discurso do criador

sobre a sua obra pode ser ou pode não ser um elemento adicional importante para...

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Mas todas as obras são justificadas por discursos, explícitos, ou implícitos, por parte

dos criadores, e isso não lhes acrescenta rigorosamente nada. Toda a gente tem as suas

teorias e justificações, em última análise. As práticas esquizofrénicas mais completas

são suportadas por discursos verbalizados, e nada as permite classificar como arte por

mais que seja essa a intenção do próprio.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas

no Expresso)

«Depende. Mas eu acho que isso é importante, isso é um dos elementos de

avaliação de qualquer obra. É saber "o que é que um indivíduo pretende atingir com

isto?" Até porque de boas intenções está o Inferno cheio. E há uma parte significativa

de obras cujo programa é interessante, e cujo resultado final é decepcionante. Há uma

diferença muito grande entre isso. E aliás, na actualidade, com um tipo de arte

conceptual ou neo-conceptual que se faz, isso é cada vez mais evidente. Como o

projecto da obra é fundamental para a definição da obra, uma parte significativa das

obras tem um projecto sustentável e um resultado visual lamentável. É mais difícil até

ser artista nessas circunstâncias, quando tem que se ter um programa.» (João

Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público)

«Eu gosto mais de olhar para a parte mais autêntica do artista, que é aquilo que

ele faz, do que para o que ele diz ou o que ele pretende dizer em relação ao que faz, que

muitas vezes não coincide. Mas de qualquer maneira vale a pena ouvir, nem que seja

um disparate, mas vale a pena ouvir para ver até que ponto há convergência entre o

que ele faz e aquilo que ele julga que pensa. Pode até não saber pensar, isso é

complicado. E está sempre há espera que sejam os outros a pensar sobre aquilo que ele

faz. Há casos desses. Mas é importante no plano humano, perceber quem é a pessoa

que está ali, que tipo de formação é que ela teve, em que meio é que ela se move, qual é

o seu gosto dominante, o que é que a motiva, o que é que a inspira, o que é que está no

amâgo da sua arte... Esses estados mais humanos, mais ligados à vida da própria

pessoa, acho que podem ajudar a compreender a sua maneira de ser e de pintar.»

(Eurico Gonçalves, crítico de artes plásticas no Diário de Notícias)

«Deve, o crítico tem que ter uma relação com o criador, directa ou indirecta.

Terá que ter uma relação com o criador. O crítico não obedece é aos pressupostos do

criador. O criador enuncia pressupostos, o crítico revê esses pressupostos e tenta

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analisar até que ponto esses pressupostos foram ou não cumpridos. Agora, o facto de

meramente eles serem cumpridos, também não legitima a obra de arte. O crítico

analisa os pressupostos enunciados pelo próprio autor, se esses pressupostos estão

cumpridos na obra isso não significa que a obra seja automaticamente e só por essa

razão uma grande obra de arte. Há outros factores.» (Carlos Vidal, crítico de artes

plásticas na Capital)

Constatamos então, no contexto da crítica académica na viragem para o nosso

século, a existência de um paradigma filológico que visava sobretudo a fixação de um

sentido literal para a obra sobre que se debruçava, imobilizado em termos de "verdade",

o qual seria recuperado de algo que lhe é anterior e que o determina, ou seja, a "intenção

do autor". Assim sendo, neste paradigma o objecto aparece como um falso emissor na

transmissão de sentido, incubindo-se o crítico de reconduzi-lo ao verdadeiro emissor,

aquele que o criou. Os pressupostos desta vertente da corrente filológica oitocentista,

designada por Prado Coelho de vertente historicista157, foram todavia contraditos por

algumas outras correntes da crítica que emergiram no início do século, as quais, se se

avizinhavam da primeira nos seus objectivos prioritários, dela divergiam nos seus

métodos de abordagem da obra. Repegando nos pressupostos básicos da estética idelista

alemã, que considerava a abordagem crítica do objecto estético em si e por si, sem

comiseração pela intenção do autor a ele subjacente, perpretaram com fundamento nesta

base teórica uma série de violentos ataques à crítica de orientação filológica tradicional.

Correntes surgidas no interior do campo da crítica nos anos 20, nomeadamente

na área da crítica literária, como a Nova Crítica Americana ou "New Criticism" e, mais

tarde, nos anos 40, os Formalistas Russos, protagonizam o que Prado Coelho denomina

de vertente formalista do paradigma filológico, em contraposição à sua vertente

historicista. O autor insiste em integrá-las no âmbito do paradigma filológico, na medida

em que os seus dispositivos teóricos mantêm ainda o teorema da convergência entre

verdade e sentido, continuando a pressupor convictamente que o significado de

qualquer obra é uno e inalterável, intemporal (trans-histórico) e universal (trans-

ideológico)158. Na concepção destes, como faz notar Catherine Belsey, o texto significa

157 COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit, p. 15. 158 COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 16.

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o que sempre significou, é um exemplo individual e concreto de uma verdade eterna e

universalmente inteligível, apesar de complexa.159

Mas se entre a vertente historicista e a vertente formalista do paradigma

filológico existia uma situação de convergência quanto ao ideal de coincidência entre

verdade e sentido, a divergência entre estas instalava-se no que diz respeito à sua

garantia. Em ruptura com a tradição de estudar a obra de arte em função de uma verdade

que lhe era anterior, os críticos formalistas argumentavam que a procura da "intenção do

autor" não serviria como garantia da chegada ao seu significado último, proclamando a

necessidade de criticar a obra em si mesma por si mesma. Os seus elementos extra-

estéticos, como o ponto de vista do autor, o seu tempo e espaço de criação, eram aqui

tidos como irrevelantes, pressupondo-se ser no interior da própria obra, nas suas

propriedades morfologicamente intrínsecas, e não fora dela, na contemporaneidade ou

biografia do seu autor, que resideria a sua "verdade", o seu sentido literal e original,

pelo que definem ser a mensagem, ou seja, a própria obra enquanto estrutura formal

significante, o interveniente da comunicação estética a ser privilegiado como

fundamento do juízo crítico e da reconstituição de sentido. Daí o culto destas correntes,

nomeadamente na área da literatura, pela prosódia, pela métrica, pela pontuação ou, na

área da pintura, pelas técnicas de análise iconográfica, ou seja, por todos os métodos de

análise meticulosa (de preferência quantitativos) que conduzam à interpretação

imanente e supostamente objectiva da obra em si mesma.

Transposta para a área da crítica de arte, esta vertente paradigmática

desembocou no que ficou comumente conhecido como crítica da visibilidade pura,

ganhando foros de saber iconográfico e iconológico. Em reacção à metodologia crítica

precedente, devotada ao levantamento da vida do autor, da sua personalidade, dos seus

valores morais e intelectuais e do contexto histórico e sociológico da sua formação

cultural com vista à reconstituição da sua intenção estética, os visualistas puros

enfatizavam a estrutura interna da obra como base do processo de conhecimento

objectivo sobre a obra de arte, considerando a forma em si como plenamente reveladora

da sua significação última, independente da sua temática expositiva ou narrativa.

Criticando vivamente as teorias miméticas/realistas da arte, propunham esta como puro

fenómeno visual, cuja função consistiria em saldar a experiência que se tem do mundo

com um saber técnico e uma expressão/estilo próprio que visa recriá-lo subjectivamente

159 BELSEY, A Prática Crítica, Lisboa, Edições 70, 1982, p. 27.

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e não apenas reflecti-lo.160 Assim sendo, longe de ser constrangida pela realidade, a arte

deveria ela mesma construír novas realidades, novas formas detentoras de uma

semântica própria, pelo que seria através do desmembramento e análise destas, e não

através da relação criador - objecto - mundo em que ambos estão situados, que se

chegaria à unidade de significação da obra em causa.

Curiosa é a polémica que, em Portugal, se verificou entre dois intelectuais nos

anos 20 no âmbito destas questões paradigmáticas, sintomática da chegada das

premissas historicistas e formalistas a um país onde que a reflexão e a pesquisa crítica e

estética não se encontrava desenvolvida, e em que a atenção universitária sobre as artes

sempre havia sido até aí escassa. Não dedicados à crónica de actualidade que se fazia

vulgarmente, José de Figueiredo, nascido em 72 e responsável pelo Museu de Arte

Antiga a partir de 1911, e Virgílio Correia, nascido em 88 e professor de História de

Arte em Coimbra, a partir de 21, definiram duas posições pessoais perante o fenómeno

artístico que traduziam o antagonismo que então se vivia entre uma crítica de directriz

historicista e uma crítica formalista, de discussão estilística e estética, entrando em

polémica em 1924. Conta-nos Augusto França que «foi Grão Vasco quem serviu de

rastilho à mencionada polémica, a propósito de um livro de Virgílio Correia então

publicado; ela esboçara-se já, a pretexto de uma obra anterior de Correia, sobre Sequeira

- e as críticas de Figueiredo num e noutro caso foram propositadamente ferozes, como

ferozes foram as respostas. Cada um dos contendores tinha a sua revista: "Lusitânia" e

"Terra Portuguesa" - mais brilhante a primeira, do lado de Figueiredo, com grandes

nomes a assegurar-lhe a colaboração; mais modesta e provinciana a segunda, logo

transparecendo as características do espírito de uma e de outra nas respectivas

apresentações gráficas.

À "ausência de visão e de sensibilidade", à "incapacidade absoluta em matéria de

artes plásticas", de que o acusava Figueiredo, respondia Correia dizendo: "Não faço

história da arte por impressão, mas por documentação, não sou um 'expert', mas um

pesquisador." Um "rato de biblioteca" - resumia brutalmente Figueiredo... Para este, o

método para identificação das obra de arte era "um só, ou seja a análise da obra a

estudar", e acrescentava: "O documento é sempre unicamente um subsídio; descobrir

160 Não esqueçamos que estamos, nessa altura, em pleno processo de entropia artística, com a arte a definir-se como "puro" mundo visual em oposição ao tradicional realismo clássico que havia dominado até aí.

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um documento não transforma o encontrador em crítico e historiador de arte." José de

Figueiredo tinha uma confiança ilimitada nos seus próprios dons críticos; Virgílio

Correia nos documentos dos arquivos. O primeiro desconfiava da informação destes

(...); o segundo depositava neles uma fé de arqueólogo. (...) Dentro do quadro de certa

irresponsabilidade do pensamento histórico (e crítico) português de então, a polémica

seria inevitável.»161

Inevitável já não o seria hoje, pois se voltasse a acontecer polémica idêntica, o

tão vulgarmente constatado anacronismo do espaço cultural e intelectual português ver-

se-ia largamente dilatado, merecendo soluções rápidas e imediatas. Mas efectivamente,

tal como acontece em relação às premissas da corrente historicista do paradigma

filológico, os críticos da nossa actual praça demonstram-se pouco adeptos dos valores

preconizados pela crítica de orientação formalista. Apesar de manterem uma relação de

fidelidade constante à obra sobre a qual se propõem debruçar, não a assumem como

uma instância totalitária sobre o processo de produção crítica, na medida em que não a

conceptualizam como dotada de uma "verdade" perene e objectiva que urge restituír,

mas como um artefacto intrinsecamente aberto à leitura plural de significados.

Pelo que não será objectivo da crítica calar a obra, circunscrevendo-a à estreiteza

de um suposto núcleo de sentido único, mas torna-la falante, no sentido da abertura das

suas possibilidades de significado latentes ou manifestas. Por outro lado, os nossos

críticos nem sequer privilegiam na sua análise as suas compenentes formais em

detrimento de outras. A relação de fidelidade que mantêm com a obra pressupõe o valor

do respeito pela sua unidade, pela sua integridade, pela sua globalidade, pela sua

complementaridade, pela indissociabilidade existente entre as suas mais variadas

componentes de ordem formal, material, técnica, temática e outras. E é tendo em conta

todas estas componentes que irão aferir da sua coerência interna, dos seus sentidos e do

seu valor enquanto objecto de arte. E note-se que a posição aqui é unanimemente

partilhada entre todos.

«Quando pretende criticar uma obra, tem em conta apenas a sua forma ou

também o seu conteúdo? Essa distinção pura e simplesmente não existe. Um dos

princípios fundamentais que fazem parte da minha convicção mais funda, um critério

básico de crítica tal como eu a exerço, é o de que a distinção entre forma e conteúdo

161 FRANÇA, A Arte em Portugal no Século XIX, op. cit., vol. II, pp. 344-345.

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pura e simplesmente não existe. Existe uma forma no conteúdo, uma substância na

forma, a forma não é separável do conteúdo.» (António Guerreiro, crítico de literatura

no Expresso)

«Eu não penso que a obra de arte seja forma e conteúdo, a obra de arte é una.

Portanto, eu quando falo de uma obra de arte, procuro justamente entende-la na sua

unidade, no seu conjunto. Porque muitas vezes o chamado conteúdo não é nada se não

houver a expressão técnica que permite que ele venha até nós. E como a grande parte

da arte moderna, contemporânea, nem sequer é uma obra de uma linguagem figurativa,

em que realmente há um conteúdo que se expressa, uma grande parte da arte

contemporânea é expressionista, é abstracta, tem outras funções completamente

diferentes, e isso torna-se completamente impossível. O que eu procuro entender é a

unidade, aquela obra que está ali vale por si, tem uma expressão técnica e pode ter uma

figuração ou pode não ter uma figuração, e tento compreendê-la no seu conjunto. E

nunca separo conteúdo e forma, é um princípio básico que eu tenho.» (Cristina

Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras)

«Eu tento analisar a obra na sua globalidade. Se houve sinais de que a obra

serve sobre o ponto de vista do discurso ideológico, discurso filosófico, discurso social,

tenho que analisar todos esses aspectos da obra. E depois tenho que tentar ver em que

medida esses aspectos, em que esses elementos estão bem realizados, estão bem

executados. E é todo esse jogo de elementos que vai permitir que eu próprio faça a

análise do que nele está, do que me parece a mim, correcto, me parece funcionar,

porque muitas vezes as coisas só voam quando não funcionam, e aí tem que se dar uma

volta.» (Carlos Porto, crítico de teatro no Jornal de Letras)

«Eu considero que a forma e o conteúdo se devem corresponder. É amputar

uma obra, olhar para ela só pela forma ou só pelo conteúdo. É esse conjunto forma-

conteúdo que forma a obra de arte, e portanto o ideal é quando a forma e o conteúdo

têm uma correspondência muito forte a grande nível de qualidade, então estamos

perante normalmente os grandes acontecimentos artísticos. Era capaz de dizer bem de

uma obra que do ponto de vista estético acha-se que estava muito bem conseguida

mas cujo seu conteúdo ideológico não lhe agradasse? Ah! Isso já se verificou muitas

vezes comigo. Eu posso e devo dizer precisamente isso, que me agrada espantosamente

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todo o lado teatral, todo o ponto de vista estético do espectáculo, espantosamente bem

feito. E depois, pelo contrário, atenção que isto é perigoso, não vamos ficar só pelos

olhos, a ideia que veicula, com a qual eu estou em desacordo por isto e isto e isto. Tem

é que se ser muito claro e depois as outras pessoas podem ou não concordar.

Evidentemente, se eu for ver um espectáculo espantosamente bem feito, bem iluminado,

bem dançado, bem contado, que no fundo faça a apologia da prostituição ou do

racismo, eu não posso nem devo ficar só a olhar para o lado estético e pode ser

realmente encantador. E então o que veicula? Que valores estão por trás a veicular? É

muito bonito e que infelicidade estar ao serviço de coisa tão negativa, como é o

racismo, a prostituição ou a droga.» (Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de

Notícias)

«... é necessário ter em conta todos esses factores estéticos e a ideia, estão

intimamente ligados. É uma ideia de que o realizador partiu e que a função do crítico

será avaliar e ajuizar de forma pessoal o resultado dessa ligação. (...) Se o

"background" ideológico não justifica minimamente um certo maneirismo técnico, é um

filme mau, isso é nitidamente um risco. Por exemplo, o Noites Bravas, eu acho que tem

boas soluções a nível técnico, mas a ideia que está por detrás, quanto a mim, não

justifica, não enriquece. Depende de quem o avalia, toca em sensibilidades diferentes.

Mas, nesse caso, eu não achei que fosse um resultado coeso em relação à forma e ao

seu conteúdo.» (Paulo Portugal, crítico de cinema no Jornal de Letras)

A indissociabilidade prescrita pelos nossos críticos entre forma e conteúdo

chama-nos a atenção para uma questão essencial que os críticos formalistas ignoraram,

provavelmente por estarem mais preocupados em restituír sentidos que em atribuír

juízos de valor. Essa questão prende-se exactamente com esta última dimensão do

trabalho crítico que, se de um ponto de vista formalista poderia basear-se num trabalho

de avaliação limitado às componentes propriamente estéticas e formais da obra, na

crítica actual, porém, como nos é dado ver nos depoimentos atrás transcritos, esse

mesmo trabalho pressupõe a interferência de outros níveis de valor, de valores éticos e

político-ideológicos. Com efeito, é difícil ao crítico contemporâneo gerir uma política

do significante estético sem recorrer simultaneamente a uma política do seu significado,

ou seja, traçar fronteiras entre o valor propriamente estético e o valor ético-político de

qualquer obra. Já Mukarovsky notava que o processo de valorização estética de

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qualquer objecto é sempre refractada pelas normas e valores extra-estéticos (religiosos,

políticos, ideológicos, etc) de que é investido esse mesmo bem e que ele incorpora.

Na sua perspectiva, o objecto estético, tanto na sua componente temática como

na sua componente técnica ou formal, apresenta não só valores e normas estéticas, mas

também todo um conjunto de normas e valores extra-estéticos, os quais encontram a sua

resolução/concretização no espaço dos agentes que o envolvem: nas suas palavras, «as

componentes materiais do artefacto artístico e o modo como são utilizadas enquanto

recursos formais, têm o papel de meros condutores de energia representada pelos

valores extra-estéticos».162 Neste sentido, será sempre em função da confrontação que

se estabelece entre os quadros de referência, ou seja, os sistemas de normas e valores

(estéticos e extra-estéticos) partilhados pelos agentes que envolvem o objecto estético, e

o sistema de normas e valores (estéticos e extra-estéticos) que nele (objecto)

reconhecem, que acontece o processo de valorização estética da obra. Assim, continua o

autor, «se nos perguntarmos neste momento onde ficou o valor estético, veremos que se

diluiu nos diversos valores extra-estéticos, e não representa mais nada do que a

denominação global da integridade dinâmica das relações mútuas de valores.»163

Donde o valor estético atribuído ao objecto não resulte apenas dessa sua

dimensão, enquanto concretização de normas e valores especificamente estéticos, como

se pressupunha fazer crêr uma crítica formalista, mas é sempre contingente do sistema

de normas e valores extra-estéticos que o objecto incorpora por atribuição (e não por

essência). Daí que os juízos de valor estético produzidos pela crítica não se

fundamentem apenas na dimensão estética que reconhecem à obra, mas também na sua

dimensão ético-política e ideológica, como se encontra bem patente nos argumentos dos

nossos entrevistados.

Ao tomar a atitude de perscrutar o objecto nas suas propriedade endógenas em

vez de privilegiar fontes que lhe são exteriores - processo a que Prado Coelho chama de

ensimesmamento da obra164 -, as correntes formalistas vieram silenciar o autor enquanto

instância legítima na definição do sentido estético da obra que concebeu. Trata-se de um

exílio que vem alicerçar a autoridade, o domínio do crítico sobre o objecto que o suscita,

162 Cit. in COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., p. 389. 163 Idem. 164 Ibidem, p. 347.

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podendo, em última instância, levá-lo a supôr-se ele próprio autor165. «Porque - diz-nos

Prado Coelho - exilado o próprio autor, o lugar fica vazio.»166 E, deste modo, expulso o

autor da relação privilegiada que mantinha com a obra no que concerne à sua

inteligibilidade, mais um largo passo é concretizado no sentido da autonomização,

independência e auto-legitimação do espaço da prática crítica como espaço privilegiado

de interpretação e de avaliação estética.

Mais longe neste processo de autonomização foram, todavia, os críticos adeptos

de uma estética da recepção, inaugurada nos alvores da década de 60, os quais,

rejeitando de igual modo a figura do autor como garantia de significado, fizeram

substituír a obra pelo receptor como nova autoridade na determinação do sentido e da

relevância da obra de arte. Isto na medida em que, se por um lado, a ala formalista

pressupunha ainda um tipo de crítico que soubesse renegar-se a si próprio enquanto

indivíduo e subordinar-se totalmente ao objecto, supostamente assegurando desta forma

a objectividade do seu discurso, por outro, a crítica da recepção veio argumentar e

reivindicar a interferência do próprio leitor no decorrer do processo crítico, com a sua

consequente e inevitável parcela de subjectividade inerente ao seu olhar sobre a obra.

Fazendo caír por terra o mito da pureza do olhar crítico, a sua liberdade vai ganhando ao

constrangimento provocado pela própria obra.

Através da atitude de ensimesmamento da obra, os críticos formalistas mais

tardios demarcavam-se quer face à posição filológica convencional, que invocava o

autor e a sua intenção prévia como garantia do significado literal da obra, quer em

relação aos dispositivos teóricos mais inovadores e heréticos que foram surgindo a partir

dos anos 60, os quais vieram pôr o receptor na posição de elemento privilegiado no

processo de comunicação estética. A rejeição firme de ambas as possibilidades,

considerando o processo de interpretação crítica da obra como independente tanto das

suas origens passadas quanto dos seus efeitos presentes, assim como a sua afirmação

como objecto totalmente fechado que encerra em si próprio uma verdade perene, um

sentido único que lhe é imanente, passível de ser restituído e especificado por recurso à

análise das suas propriedades endógenas, aparecem desenhadas com particular nitidez

165 Tal irá acontecer, como verêmos mais à frente, com o modelo de crítica proposto por Roland Barthes, onde é espraiada a diferença, até aqui pressuposta, entre literatura e metaliteratura ou crítica. 166 COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., pp. 163-164.

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nas posições teóricas assumidas já nos anos 70 por William Winsatt e por Roger

Fowler.

Nas palavras do primeiro, «agora, interrogamo-nos não acerca das origens, não

acerca dos efeitos, mas acerca da obra, tanto quanto ela pode ser considerada por si

própria um corpo de significado. Nem as qualidades do espírito do autor nem os efeitos

do poema no espírito do leitor deverão ser confundidas com a qualidade moral do

significado expresso pelo próprio poema.»167 Na opinião do segundo, «o poema é

independente das intenções do autor e das suas experiências, assim como das respostas

dos leitores, porque estas são variáveis, irresponsáveis, indescerníveis,

desmonstravelmente erróneas, etc, enquanto o poema permanece estável. Não podemos

situá-lo na mente do autor no momento da criação, por ser inacessível e poder alterar-

se no acto da transcrição; isto é, esse estado mental pode ser mais um resultado do que

a causa do poema. Também não podemos admitir que o poema resida na experiência

adquirida pelo leitor individual quando o lê, pois isto aquivaleria a dizer que havia

tantos poemas como ocasiões de leitura, quando sabemos perfeitamente que só existe

um. Se este não é subjectivo, em nenhuma destas formas, tem de ser objectivo; um

objecto com características definidas, independentes das características do poeta e do

leitor.»168

Com efeito, já em plena década de 60, a insistência dos formalistas na análise da

estrutura morfológica da obra como garantia da coincidência entre verdade e sentido

surgia como inadequada e era acusada de ortodoxia. Nessa conjuntura particular, o

espaço da crítica académica encontrava-se em profunda ebulição, marcada pelos

frequentes, violentos e impiedosos ataques ao positivismo obstinado da tradição

filológica, caracterizados pelo questionamento do ideal partilhado naquela tradição de

uma interpretação exaustiva e descritiva da obra e/ou da vida do autor na tentativa de

nela suprimir qualquer possível ambiguidade e de atingir a sua literalidade. A ruptura

em relação ao paradigma filológico, nas suas duas vertentes, como paradigma de

referência da prática crítica, verificou-se em torno da discussão sobre os múltiplos

processos de abertura da obra, discussão essa que se fez em duas frentes distintas.

Uma protagonizada por um grupo de críticos que, na esteira de um Ingarden,

vieram reconhecer a pluralidade de leituras de uma obra e a subjectividade inerente à

167 Cit. in BELSEY, A Prática Crítica, op. cit., p. 26.

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sua actividade, tentando, todavia, encontrar mecanismos que as restrinjam e a

neutralizem, continuando ainda marcadamente preocupados com a cientificidade e

objectividade do seu trabalho - posição essa que conduz ao florescimento de um novo

paradigma de referência para a prática crítica, designado por Prado Coelho como

paradigma comunicacional; outra protagonizada por um conjunto de críticos mais

radicais que, elegendo como figura de proa do seu movimento o nome de Roland

Barthes, vieram afirmar sem rodeios nem remorsos a infinitude de leituras de qualquer

texto e a criatividade inerente à sua tarefa - posição que se traduz num outro paradigma

que Prado Coelho apelida de paradigma metapsicológico. Vejamos então mais

explicitamente o que distingue estes dois paradigmas que emergiram no campo da

crítica por altura dos anos 60, como alternativa à tradição filológica.

4.2. A CRÍTICA PARA-SUBJECTIVISTA

Na concepção de Eduardo Prado Coelho, o paradigma comunicacional define-

se, por um lado, pelo facto de privilegiar o receptor como fundamento do juízo crítico

entre as várias instâncias intervenientes no processo de comunicação estética e, por

outro, pelo facto de expressar pela primeira vez um sintoma de vacilação no que se

refere ao ideal de coincidência entre verdade e sentido, entendendo a "verdade" da obra

como resultante de um fenómeno de intersubjectividade entre o quadro de referência do

receptor e o quadro de referência para que remete a própria obra. O interesse pelo papel

do leitor no processo de comunicação estética, nomeadamente na área da literatura,

começa a ser efectivamente um fenómeno relevante nos primeiros anos da década de 60.

Rejeitando o que consideravam ser a Tirania do Autor ou da própria Obra subjacente

aos paradigmas de ordem filológica, uma série de teorias da crítica vieram, nessa altura,

reclamar a substituição daqueles elementos pelo leitor como fonte de autoridade no

processo de significação da obra, proclamando a importância da participação do

receptor no processo de produção de sentido.

Se dentro da ideologia filológica tradicional parecia evidente ser o criador

individual a origem do significado do seu objecto, isto é, ser o emissor a determinar o

sentido da sua mensagem, no paradigma comunicacional esta lógica aparece invertida e

contradita: considerando o receptor como principal elemento participante no processo

168 Cit. in COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 352.

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de significação da obra, o seu sentido é, neste paradigma, apresentado como produto de

uma inter-relação estabelecida entre o próprio discurso da obra e os seus receptores.

Nesta óptica, o significado passa a ser entendido não como uma essência fixa e imóvel,

intemporal e universal, inerente ao objecto ou dependente da intenção de quem o criou,

mas sobretudo como acontecimento na consciência do receptor, como resultado de uma

circulação entre sociedade, receptor e objecto. No fundo, como realidade (socialmente)

construída pelos leitores no processo de apropriação simbólica.

Nesta sequência, podemos aperceber-nos de que a obra tende a ser aqui

considerada já não como uma realidade totalmente constituída, fechada e una, como um

objecto de fruição e de análise passiva, mas como um espaço de convergência de uma

multiplicidade de realidades, dependentes do conjunto de disposições e pressuposições

que representa o universo de referência do receptor. Conceptualizada deste modo, a obra

já não se encontra restrita a uma única leitura, harmoniosa e autoritária, mas adquire a

capacidade de aludir a realidades que não se extinguem apenas naquela que representa,

a sistemas de valores que não apenas aquele em que ela própria surgiu. Em vez de ser

meramente tratada como reflexo expressivo e singular da experiência subjectiva do

criador no mundo em que vive (experiência essa reduzida a uma ideologia homogénea e

coerente, e integrada numa época tida como uma unidade sem falhas), a obra aqui surge

como realidade susceptível de ser multiplicada, tendendo a ser assumido o seu carácter

polissémico e identificar-se a sua pluralidade significativa.

Quer isto dizer que na concepção das teorias críticas inscritas no paradigma

comunicacional, qualquer objecto estético vai ser passível de possuír vários níveis de

significação, sendo, como tal, susceptível de produzir múltiplos efeitos de sentido e de

suscitar uma série de possibilicades de leitura, encontrando-se sempre aberto a

determinado número de interpretações. Distingue-se assim o sentido literal da obra,

símbolo da pretensão e arrogância positivista do projecto filológico, dos seus sentidos

estéticos, os quais, por sua vez, se desdobram em sentidos históricos, ou seja, que

dependem dos valores e normas social e culturalmente institucionalizadas em

determinado periodo histórico, e em sentidos morais, estes dependentes do próprio

quadro de referência, em termos de disposições intelectuais e estéticas, partilhado pelo

receptor. Temos então a obra-em-si-mesma a começar a abrir fissuras, a desdobrar-se, a

deslocar-se no sentido da sua abertura.

Nesta perspectiva, a asserção do papel do leitor no processo de produção de

sentido(s) sobre a obra trouxe consigo consequências profundas ao nível do ideal de

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coincidência entre verdade e sentido postulado no paradigma filológico: se o significado

já não reside na intenção do autor nem no objecto-em-si-mesmo mas fora dele, no seu

receptor, sendo liberto no processo de fruição estética por este accionado, não fará

sentido, a priori, afirmar a existência de uma "verdade" literal, única e universal,

intrínseca à própria obra, passível de ser encontrada na sua forma ou no seu contexto de

fabricação. Deixa-se então de acreditar aqui no valor da "verdade" enquanto sentido

susceptível de ser fixado e imobilizado como único e perene, passando a "verdade" a ser

entendida como fenómeno de intersubjectividade, ou seja, como produto da relação

entre a própria obra e o seu leitor, relação essa sempre mediada por um horizonte de

normas e valores éticos e estéticos.

E se o sentido é produzido pelo próprio leitor na relação que se estabelece entre

o seu quadro de referência e a obra-em-si-mesma, não podendo nunca haver, em última

instância, processo de interpretação e avaliação estética que não implique um momento

de subjectividade, deixa de fazer sentido a classificação dos resultados do trabalho

crítico em termos de "verdadeiro" e "falso". Isto é, assumindo que qualquer processo de

interpretação empreendido não poderá nunca esgotar a potencial pluralidade da

significação do objecto, mas apenas isolar aspectos do seu significado que são

inteligíveis e válidos para determinados receptores em determinado contexto (espacio-

temporal e/ou socio-cultural), a prática crítica de ethos comunicacional deixa de

operacionalizar critérios de verdade-falsidade no processo de conhecimento que

desenvolve sobre a obra, passando a pôr o seu enfase na adequação ou inadequação das

várias possibilidades de leitura do texto por relação a determinados "critérios culturais"

de referência.

É neste sentido que Umberto Eco nos diz que o crítico: «sabe que com o variar

do periodo histórico, ou do público, também a fisionomia da obra de arte poderá mudar,

adquirindo o objecto um novo sentido. Mas o seu dever é, também, o de assumir para si

uma responsabilidade: comparar ao periodo histórico, ao âmbito cultural em que

trabalha, o fenómeno obra de arte, decidir conferir-lhe um certo sentido, para elaborar,

com base nele, as suas definições, as suas verificações, as suas análises, as aus

reconstruções. (...) O crítico (...) deve assumir para si uma tarefa: partindo de uma

noção o mais articulada possível do periodo histórico em que vive, procurar definir a

função do produto em referência aos valores que assumiu como parâmetro.»169

169 ECO, Apocalípticos e Integrados, op. cit., pp. 201-202 (os itálicos são nossos).

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Podemos, pois, nesta óptica, observar a crescente descoincidência entre verdade

e sentido que acontece no âmbito do paradigma comunicacional: se na concepção do

paradigma filológico, a crítica equivaleria a um trabalho de restituição de sentido, aqui

começa a ser entendida com um trabalho de atribuição de sentido, ocupando-se da gama

de leituras possíveis sobre um dado objecto estético; onde os primeiros procuravam o

reencontro entre verdade e sentido, os segundos pretendem uma construção das

verdades dos sentidos (e note-se que já estamos no plural). O sentido começa então a

descolar da verdade. Momento de vacilação, sem dúvida, ainda que a objectividade

continue a ser uma preocupação constante.

A asserção do papel do leitor no processo de comunicação estética torna-se

assim num ponto de viragem paradigmática fundamental no campo da crítica,

envolvendo, como aponta Prado Coelho, um duplo movimento de rotação da obra, quer

no sentido da sua alteridade, ou seja, projectando-a na direcção do Outro, dos seus

receptores, retirando o seu olhar da dependência do seu emissor ou das suas próprias

características formais onde se encontrava agrilhoado; quer, por consequência, no

sentido da sua posteridade, desvinculando-a de um passado que a subordinava e

estendendo-a na direcção de um futuro que a fractura.170 A obra aparece já não como

entidade estagnada, reunindo-se as condições para que subsista activa e prolifere no

espaço-do-depois-da-obra.

Mas apesar da assumpção da importância do papel do receptor ter fornecido uma

base teórica potencialmente inovadora e activadora do desenvolvimento de uma prática

crítica radicalmente distinta da que era praticada sob o signo da filologia, tal

radicalidade não foi levada totalmente avante pelos críticos de referência

comunicacional. Isto porque o interesse demonstrado pela vertente da recepção vai

acabar por não ser, neste paradigma, sinónimo de inteira liberdade por parte do crítico

na atribuição de sentido a uma obra: evitando compremeter-se demasiado no campo da

subjectividade que a sua própria argumentação teórica abre sobre a relação que mantém

com a obra de arte, com receio de que a objectividade pretendida dos seus juízos e

comentários - aqui ainda entendida como garantia da sua autoridade simbólica e do

privilégio que a sua leitura detém sobre as demais - seja posta em causa, os críticos de

referência comunicacional foram tentar encontrar mecanismos que assegurassem essa

mesma objectividade, contradizendo e combatendo o pressuposto, no fundo por eles

170 COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 293.

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próprios iniciado, de que a pluralidade de receptores de uma obra implica

necessariamente a produção de uma pluralidade ilimitada de sentidos sobre essa mesma

obra.

O reconhecimento da interferência do receptor no processo de interpretação e

avaliação do estético veio, de facto, consciencializar o campo da crítica académica de

que a obra de arte só encontra razão de ser, só existe realmente enquanto tal, quando

mantém uma relação mais ou menos estável com o, ou melhor, com um determinado

público que lhe reconheça esse mesmo estatuto. Com o desenvolvimento do paradigma

comunicacional começa-se a admitir finalmente a ideia de que a obra somente se realiza

totalmente como arte através da sua recepção pública, só se concretiza efectivamente

como tal através da intervenção do seu receptor: tal como refere Prado Coelho, «a obra

está dependente do crítico na medida em que só neste se realiza plenamente - só nele

atinge o seu verdadeiro destino: dir-se-ia que ainda não há obra de arte antes que se

realize a transferência do pensamento criador para o pensamento leitor. O poema espera

pelo seu crítico. Se o crítico não surge, o poema fica suspenso. E, por outro lado, o

crítico fica com a obra criticada à sua mercê. Ela entrega-se-lhe em absoluto. Passa a

existir nele.»171 Note-se, no entanto, que nem todo aquele que se apropria

simbolicamente da obra passou a ser indiferentemente considerado, no âmbito deste

paradigma, como um "verdadeiro" receptor, como um leitor suficientemente competente

e atento para que a sua acção crítica se revele credível no processo de interpretação e

avaliação estética.

É na sequência desta convicção, demonstrativa da vontade de afirmação e de

preservação do monopólio de autoridade conquistado até aí pelo campo da crítica na

produção de apreciações e de significações estéticas legítimas, que se começa a realizar,

em termos analíticos, a discussão em torno do(s) estatuto(s) de leitor/receptor, a partir

da qual é sugerida a distinção entre leitor empírico, aquele que frui prazerosamente as

obras de arte, e um suposto leitor ideal, segundo Didier Coste e Dámaso Alonso, leitor

competente, segundo Michel Riffaterre, leitor bem preparado, de Norton Frye, leitor

subentendido, de Iser, ou aquele que reúne as condições para cumprir a função-

destinatário, segundo Francesco Orlando, conceitos estes que vão encontrar a sua

concretização empírica na figura do crítico, presumindo-se e argumentando-se que esta

personagem personifica o mais aproximadamente possível o "verdadeiro" leitor que o

171 Idem, p. 468.

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texto literário solicita no decorrer da sua leitura, na medida em que junto dela as

qualidades e qualificações exigidas para assumir credivelmente o estatuto de leitor

aparecem superlativadas.

Na base da separação entre a primeira figura desenhada e as segundas encontra-

se, efectivamente, o pressuposto de que a recepção efectuada por estas últimas,

personificadas na pessoa do crítico, aparecerá «defendida por mecanismos que a

pretendem preservar dos vícios e fragilidades das demais leituras empíricas.»172 O que

equivale a dizer que as leituras concretizadas pelo crítico apresentar-se-ão, à partida,

asseguradas por determinados mecanismos que, quando operacionalizados, as protegem

do risco de uma sempre potencial contaminação pela subjectividade daquele,

proporcionando a redução do conteúdo subjectivo das suas reacções à obra,

despersonalizando-as e garantindo, na medida do possível, a objectividade, a isenção e o

rigôr das suas apreciações e interpretações estéticas. Tais mecanismos referem-se, no

seu essencial, às categorias cognitivas que informam a prática crítica na abordagem da

obra, categorias essas que, segundo os críticos de referência comunicacional, na medida

em que são conceptualmente construídas na base de uma lógica de inteligibilidade e

racionalidade científica, em contraponto a uma lógica de adesão emocional meramente

táctil e reactiva, se encontram em ruptura com as utilizadas pelo receptor "comum" no

exercício da fruição estética.

Com a operacionalização da linguagem dos conceitos, que aqui supostamente

materializa o ideal de coincidência entre significante e significado ao nível do

metadiscurso, pretende-se então simultaneamente controlar a margem de liberdade do

receptor, neste caso do crítico, no processo de atribuição de significados que acciona no

exercício da sua prática, assim como penetrar objectivamente na teia metafórica que

constitui obra e neutralizar o risco da contaminação subjectiva sobre o discurso crítico.

O conceito torna-se assim na última garantia de estabilidade e da ainda desejada

objectividade do processo de interpretação e de significação empreendido pela crítica,

criando a ilusão de fechar a obra na tentativa, derradeira e desesperada, de amarrá-la

ainda a um eixo de verdade.

E, deste modo, na medida em que é sempre mediado por uma parafernália de

instrumentos conceptuais que supostamente o objectivam, protegendo-o contra os

efeitos da reacção impressionística perante a obra que constantemente o atentam, o

172 Ibidem, p. 162.

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olhar do crítico demarca-se qualitativa e assimetricamente na série dos restantes olhares

"comuns" sobre o objecto de arte. Por via da sua formação teórica e metodológica, que

o vem qualificar e prevenir contra a indesejável errância de sentido, assume-se como o

detentor privilegiado dos instrumentos e das categorias legítimas de apropriação

simbólica da obra, afirmando a soberania das suas apreciações, avaliações e

interpretações estéticas sobre os restantes protagonistas presentes no universo das artes

e letras. Fazendo do receptor a nova figura de autoridade no processo de significação do

objecto estético, cuida-se assim de fundamentar e continuar a impôr o privilégio da

leitura do crítico sobre as dos demais receptores empíricos, fazendo perpetuar sem

riscos o poder da crítica sobre o prazer da fruição.

Com efeito, informada pela noção de competência crítica - enquanto

conhecimento do sistema de regras teóricas e metodológicas que informam a prática

crítica no sentido de objectivar os seus resultados -, constroi-se e legitima-se

teoricamente, com a caução do poder intelectual que é conferido por via da sua inserção

e discussão no âmbito académico, a clivagem existente entre crítico e receptor cultural

"comum", clivagem, de resto, já historicamente institucionalizada na prática, pois, tal

como refere Richard Ohmann, e como já ficou para trás demonstrado neste trabalho,

«from the seventeenth century on, the reader assumed a position like that of a consumer,

and some readers were able to claim authority as judges. The very idea of judgement

implies a division into groups of people: those qualified by taste, sensibility or

cultivation (later by formal training) to judged, and those disqualified by youth,

ignorance, barbarism or dullness.»173

A necessidade de reconhecer e de legitimar teoricamente essa clivagem no

âmbito do paradigma comunicacional surgiu em virtude dos próprios pressupostos de

que as teorias a este vinculadas partem para o desenvolvimento da actividade crítica. O

postulado da participação do receptor no processo de construção do sentido da obra, do

qual resulta o entendimento desta como realidade susceptível de assumir um estatuto

polissémico na medida em que a sua "verdade" é construída na base de um fenómeno de

intersubjectividade entre sujeito/objecto, tornava-se efectivamente bastante

incomodativa em relação ao estatuto privilegiado da crítica em termos de dominação

simbólica do estético, comprometendo a legitimidade da sua acção face à leitura

173 OHMANN, "The Social Relations of Criticism", in HERNARDI, What is Criticism, op. cit., p. 190.

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efectuada pelo receptor "comum", legitimidade essa anteriormente fundamentada no

ideal de coincidência entre verdade e sentido pressuposto no discurso crítico.174

Assim, ainda que o impressionismo fosse tolerado no interior do paradigma

comunicacional, chegando a ser considerado como imprescindível na medida em que

«só ele dá a sensação de energia e da beleza das obras», seria necessário que a sua acção

fosse, ao mesmo tempo, constantemente policiada, vigiada, sendo a sua influência no

comentário crítico combatida e/ou legalizada de certa forma: nas palavras de Prado

Coelho, «saibamos, retendo-o, distingui-lo, avaliá-lo, controlá-lo, limitá-lo; eis as quatro

condições do seu emprego. Tomemos todas as "precauções" para que sentir se torne

apenas um meio legítimo de saber.»175 Em sintonia com este autor, está também o

crítico literário e teórico da literatura D.H.Rawlinson, para quem «an inexperienced

reader, when first asked to say what he thinks of a poem, will, if he has read it cursorily,

usually fall into mere assertion - I like this, this appeals to me, and so on. But we

haven't really read a poem until we know what we like about it more fully than this.

Reflecting on a poem, deciding just where we stand in relation to it, and finding the

right language to express ourselves about it, are essencial parts of reading the poem.»176

Ora, o que temos em ambas as posições é justamente a distinção qualitativa entre os

actos de sentir-gostar e os actos de saber-reflectir, distinção essa que, introduzindo a

noção da existência de diferentes níveis de abordagem de qualquer obra, funda a

credibilidade e autoridade da recepção do crítico sobre a do receptor cultural "comum".

Também convicto de que a abordagem da obra de arte por parte do crítico é de

qualidade diferente da utilizada pelo receptor cultural comum, Melo e Castro, ele

próprio poeta, teórico e crítico literário, propos-se decompôr e hierarquizar

esquematicamente o que para ele constituem os "vários níveis de abordagem da obra".

174 A posição teórica de Ingarden é um dos exemplos mais flagrantes deste tipo de posicionamento perante a crítica: depois de afirmar que o sentido da obra apenas se manifesta e concretiza no leitor durante o acto de leitura, vê o risco do subjectivismo e recua. Procura então recuperar o que entende ser o "terreno perdido" da crítica recorrendo ao princípio da idealidade do conceito. A partir daqui, começa por distinguir entre as concretizações da obra e as suas vivências de apreensão, das quais as primeiras partem mas não se reduzindo a elas. Depois vai considerar a existência de concretizações adequadas e de concretizações inadequadas, aquelas que em vez de revelarem a "essência" da obra, o seu "núcleo duro" de significação, a ocultam ou desfiguram de tal modo que a obra apresentada após o processo de interpretação passa a ser outra. E aqui entra, finalmente, o papel do crítico que, com a introdução da sua parafernália de instrumentos conceptuais, vai funcionar como máquina reguladora da formação de concretizações adequadas. Para um bom resumo da posição de Ingarden perante a crítica, ver "Ingarden: o apelo da indeterminação e o medo do subjectivismo", in COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., pp. 395-407. 175 Idem, p. 279 (os itálicos são nossos). 176 RAWLINSON, The Practice of Criticism, Cambridge University Press, 1968, p. 4.

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Na sua opinião: «se esta adesão emocional é a base justificativa do exercício da

actividade crítica, ou seja, da aplicação de um raciocínio organizado à obra de arte que

nos impressionou, a crítica, por seu lado, não pode limitar-se a registar essa adesão

emocional entregando-se a justificações apologéticas de carácter primário. De facto,

após o tempo de escolha emocional, há que fazer um raciocínio de carácter

metodológico. (...) Mas para que isto seja possível é necessário que o crítico após a sua

adesão emocional coloque a sua própria subjectividade entre parêntesis e se dedique ao

estudo rigoroso do objecto que tão fortemente o impressionou, servindo-se tanto quanto

possível de métodos e ferramentas não baseadas na sua própria subjectividade (quer

dizer independentes da percepção do indivíduo). A esta operação poderemos chamar

"redução crítica experimental".»177

A partir destas premissas, elabora o seguinte esquema composto pelo que

considera serem os diversos "graus de abordagem da obra": a) simples leitura emocional

reactiva (de rejeição ou de adesão); b) elaboração de um discurso impressionista

explanando essa reacção e a sua justificação (dogmática ou inquisitiva) colocando (ou

não) o problema do valor, mas numa base subjectiva; c) abordagem analítica da obra

por meios exteriores não específicos e não literários (história, mitologia, biografia,

estética, sociologia, ideologia, economia, psicologia, psicanálise, estatística,

informática, dialéctica, marxismo, estruturalismo, cibernética, etc); d) análises por

meios específicos ligados à língua ou à linguagem: gramática (fonética, morfologia,

sintaxe), semântica, linguística, fonologia, estilística, gráfica, semiologia; e) pesquisa e

caracterização da especificidade literária, baseada numa fundamentação teórica com

apelo à teoria da Literatura e à Poética. Os níveis a) e b) correspondem, no seu entender,

à fase pré-crítica; os níveis c) e d) à fase crítica; e finalmente o nível e) corresponde à

fase meta-crítica.

Efectivamente, como aliás já tivémos oportunidade de referir, o facto dos

críticos se reconhecerem e de serem socialmente reconhecidos como possuídores do

capital estético academicamente institucionalizado, sob a forma de instrumentos

conceptuais que detêm uma base supostamente científica ou para-científica, vem

fundamentar o princípio segundo o qual a apropriação simbólica que realizam do

objecto estético é pautada pela operacionalização de uma lógica de inteligibilidade e

177 CASTRO, Essa Crítica Louca, Lisboa, Moraes Editores, 1981, pp.13-16 (os itálicos são nossos).

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racionalidade estética que lhes permite romper com o discurso de senso-comum e

ultrapassar e "mero" acto de gostar e/ou sentir, chegando ao acto de reflectir e/ou saber.

A experiência ou fruição estética desenvolvida pelo receptor "comum", por sua vez, na

medida em que, a priori, não é informada por essas competências específicas formais,

tenderá a ficar subordinada a uma lógica de adesão e apreensão estética de ordem

emocional e meramente táctil, baseada em critérios subjectivos de gosto pessoal, pelo

que todas a apreciações, avaliações e interpretações que dela resultantes tenderão a ser

assumidas no campo da crítica como impressionistas, falaciosas, superficiais e, como

tal, destituídas de credibilidade e autoridade estética legítima.

A dualidade assimétrica das lógicas que informam a apropriação simbólica da

obra de arte por parte do crítico e do leitor ou consumidor cultural "comum",

consubstancializada na distinção operada entre os actos de sentir- gostar, associados a

objectivos de ludicidade e de procura de prazer táctil na fruição estética, e os actos de

saber-reflectir, estes mais associados a motivações de ordem cognitiva, encontra-se bem

patente nos testemunhos recolhidos junto dos nossos críticos entrevistados quando estes

nos falam do modo como estruturam a relação que têm com as obras que criticam, assim

como supõem que o receptor cultural "comum" estrutura essa mesma relação:

«O que é que busca na obra a que se propõe criticar? Não sei o que é que

busco. Não busco certamente prazer, no sentido em que se fala muitas vezes de prazer

de ler, etc. Pelo contrário, até me provoca alguma irritação uma certa ideologia

hedonista da literatura, da arte, da crítica, etc. O que eu procuro é que a obra me faça

reflectir, me obrigue a um exercício de interpretação, de decifração, de projecção de

conteúdos, de saberes sobre ela, que está para além daquilo que ela possa

imediatamente fornecer, isto é, há aí um valor de opacidade da obra que eu acho muito

importante. Procuro muito mais... Não sei muito bem o que a palavra significa, mas em

relação à arte fala-se muito em sensibilidade, emoção, essas coisas todas. Mais do que

isso, eu procuro uma certa inteligência. Essa suposta qualidade da emoção, de

sensibilidade, sem a inteligência, parece-me a mim, nem sei se existe sem inteligência,

mas supondo que existe, não significa grande coisa nem me provoca grande atracção.

E na sua opinião, existe alguma diferença qualitativa na relação que se estabelece

entre o crítico e a obra e a relação que se estabelece entre o "leitor comum" e essa

mesma obra? Sim. Uma obra tem vários níveis de leitura. Se nós lermos sem estarmos

obrigados a escrever sobre aquilo, podemos fazer uma leitura despreocupada, e não

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estamos obrigados a uma atenção e a uma concentração que nos obriga o facto de

sabermos que vamos escrever sobre ela. E isso tem determinações ao nível da leitura.

(...) Isso é muito comum, não é só próprio do crítico, só que o crítico tem que estar mais

alerta em relação a isso. O trabalho universitário, por exemplo, é feito com base

precisamente nesse tipo de relação: aquilo de que se gosta verdadeiramente não é da

obra, é do nosso próprio trabalho que é feito sobre a obra. Aliás, o gostar da obra, do

ponto de vista universitário, é entendido como um excedente, qualquer coisa que até

vem perturbar o trabalho. O gostar ali não está em causa, o que está em causa é o

gostar do nosso próprio gostar. É uma espécie de desejo melancólico, que já não se

exerce sobre um objecto mas sobre o amor em si.» (António Guerreiro, crítico de

literatura no Expresso)

«É complicado porque eu não sei que tipo de relação o leitor comum irá

estabelecer depois com aquela obra. Agora, é sempre muito diferente, eu tenho uma

relação diferente com os livros sobre os quais eu vou escrever e os livros sobre os quais

eu não vou escrever. Os livros sobre os quais vou escrever são livros que eu leio duas

vezes, são livros que eu anoto, mesmo que não me interesse nada aquilo que estou a

anotar, são livros a que eu procuro estar atenta, ver mais coisas. Os livros que leio por

prazer, esqueço-me da maior parte das coisas depois, e se quiser escrever sobre eles,

tenho de os voltar a ler. E provavelmente é isso que acontece com o leitor.» (Tereza

Coelho, crítica de literatura no Público)

«Eu não busco na obra a que me proponho criticar o mesmo que o leitor comum

que vai ler essa obra. Esse é que vai buscar qualquer coisa. Eu limito-me a fazer uma

trabalho, a executar esse trabalho, e a levar em consideração nesse trabalho um

determinado número de linhas de força: se o texto está bem organizado, vejo questões

estilísticas, de psicanálise do texto... Vou à ciência do texto, digamos assim, e procuro

de uma maneira muito suave, se não entrávamos na tal especialização universitária,

que não é aqui o caso, dar uma ideia ao leitor do que é que a obra é. (...) É natural que

sim, que haja uma certa diferença qualitativa a favor do crítico, já que ele é um

indivíduo, como no meu caso, que anda a ler coisas há trinta anos, isso dá-me um

"background" que é difícil o chamado leitor comum ter. Portanto, eu aí posso estar em

vantagem em relação a ele. Não quer dizer que ele não emita uma opinião igualmente

válida ou eventualmente melhor sobre o mesmo livro, utilizando a sua prerrogativa de

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leitor. Agora, o que eu acho é que o que eu tenho de recursos, chego a um determinado

ponto que aí talvez esteja em vantagem, talvez, admito que posso estar errado, só

porque eu tenho um cabedal de leituras que ele não tem.» (Júlio Conrado, crítico de

literatura no Jornal de Letras)

«Sim. É a diferença da responsabilidade. Eu quando vou ver um filme, como

não tenho que escrever sobre ele, só vou para fruir. E quando saí do cinema, consoante

o impacto que o filme teve sobre mim, eu posso acabar ali, não pensar mais no assunto.

No teatro não. Por muito que eu tenha saído desgostada com o que vi, eu vou ter de

arranjar mecanismos para, se achar necessário, não ser completamente destrutiva, etc

e tal. Há efectivamente uma forma de fruição diferente, para já, e há uma

responsabilidade diferente. Eu acabei de ver a obra não posso ir para os copos! Não,

não posso! Eu tenho que começar já a raciocinar sobre o assunto, começar a trabalhar

intelectualmente sobre o assunto. Como não tenho muito tempo para escrever, tenho de

aproveitar todo aquele tempo para andar em silêncio, fazer o que tenho a fazer a

pensar. Sou obrigada a pensar sobre, um espectador comum não. (...) Daí que eu dizer

que não nos devíamos deixar submergir, a pessoa tem que voltar ao espetáculo, a vê-lo.

Acontece-me perder-me no espetáculo, deixar-me ir. Não pode ser! Eu tenho que me

deixar ir com o corpo, com a epiderme, e tenho que estar sempre atenta para onde é

que me estão a levar. Então em teatro isso é muito possível, pode ser isso tudo ao

mesmo tempo, pode ser fascinante, apaixonante. Depois custa mais é a racionalizar.

Temos que esquecer o envolvimento emocional, afectivo, as lágrimas ou os risos e

começar a racionalizar sobre. É muito engraçado, em teatro é muito engraçado.»

(Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso)

«Eu vou a um espetáculo como um espectador comum, onde vou divertir-me ou

emocionar-me como qualquer espectador, até porque gosto de teatro e penso que o

crítico deve de gostar de teatro. Mas, por outro lado, tenho de ter uma outra atitude, a

todo o momento do espetáculo tenho que estar a refectir sobre aquilo que estou a ver,

sob o ponto de vista não apenas dos sinais que estão a ser transmitidos pelo espetáculo,

mas também sobre o ponto de vista estético, ideológico, técnico, sou obrigado a

reflectir constantemente durante o espetáculo. Portanto tenho de ter as duas atitudes:

por um lado tenho que ter uma atitude disponível do espectador, que reage pela

sensibilidade ao espetáculo, mas por outro lado tenho que estar disponível também

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para fazer a análise correspondente, nas suas várias componentes. (...) eu pessoalmente

sou um apaixonado, mas há que controlar um bocadinho. Quer dizer, pode-se ser ao

mesmo tempo apaixonado e exercer um certo controle, de maneira a que a paixão não

nos cegue. Eu pessoalmente defendo uma relação apaixonada com o objecto, mas tendo

em atenção a necessidade de reflectir sobre ele, e a reflexão já implica o controle da

paixão. Há que implicar as duas coisas. Pelo menos é o que eu procuro fazer. (...) Tem

que ser mais rica a leitura, por estas duas atitudes do crítico como, por um lado,

espectador normal e, por outro lado, espectador "anormal". Por isso é evidente que a

relação do crítico é mais rica, tem outro tipo de disponibilidade.» (Carlos Porto, crítico

de teatro no Jornal de Letras)

«Primeiro coloco-me como espectador, portanto o que eu desejo quando vou

para um espectáculo é ir mais virgem possível para ser o mais possível agarrado por

ele, e sem qualquer preconceito prévio, para me entregar ao espectáculo, fruir o

espectáculo, porque sou também um espectador. E depois automaticamente, isto já é

quase um automatismo, eu estou também a distanciar-me, porque estou a ter que

reflectir no próprio momento do espectáculo. Mas isso não tem regras fixas.»

(Fernando Midões, crítico de teatro no Diário de Notícias)

«Ele (o crítico) tem que manter as duas relações. Ele tem que se envolver com a

obra emocionalmente, mas também tem que manter a sua racionalidade, porque se ele

não se envolver com a obra, ele vai estar a negligenciar um aspecto muito importante

de uma obra de arte, que é o seu espírito, que é a sua natureza emocional, a sua

natureza afectiva. Agora, se por outro lado ele renunciar à sua racionalidade, ele deixa

de ser um crítico, transforma-se num espectador comum. (...) O crítico tem a sua

formação específica. Nesse sentido, a relação dele, pelo menos teoricamente, pelo

menos desejavelmente, com o seu objecto é mais rica, é mais profunda, é mais intensa.

O espectador não tem a preocupação do crítico, por assim dizer, técnica, formal. O

espectador muitas vezes é seduzido pela sua emoção, pela emoção que o filme

desencadeia ou inspira nele, enquanto que o crítico deve sentir essa emoção mas

também deve preservar a sua racionalidade para ver o suporte dessa emoção, para

analisar, para reconhecer, para depois definir e apontar o suporte dessa emoção. É

como se estivéssemos a esgrimir dois hemisférios do cérebro.» (Paulo Nogueira, crítico

de cinema no Independente)

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«Sim, digamos que o espectador comum tem um olhar mais espontâneo sobre a

arte, porque é esporádico. (...) Normalmente, este grupo (os críticos) distingue-se do

receptor ocasional, do público ocasional, que é normalmente um público mais ingénuo,

que tem uma recepção ingénua da obra de arte, que tem aspectos negativos mas

também tem aspectos positivos: os negativos é evidentemente por vezes perder

determinados aspectos mais recônditos ou complexos da própria obra de arte,

nomeadamente que dizem respeito aos contextos da obra, positivos porque tem um

frescura na recepção que por vezes o crítico já não tem. De facto, o crítico tem uma

certa tendência para a miupía, para a vista cansada. Os críticos têm uma grande

tendência para a vista cansada... Vêem outras coisas, cristalizam outras coisas, são

obrigados a conceptualizar frequentemente as suas emoções e essa conceptualização

trás, normalmente, como consequência negativa para o crítico aquilo que podemos

chamar de "vista cansada", uma miupía progressiva em relação à novidade, às coisas

novas que vão aparecendo. O que não acontece com o público ingénuo, porque é um

público mais distraído mas com uma vista menos cansada.» (António Cerveira Pinto,

crítico de artes plásticas no Independente)

«Existe, existe diferenças. Primeiro porque o crítico tem responsabilidades

profissionais que o espectador comum não tem, é logo a partir daí. O espectador

comum funcionará mais ao nível dos factores externos, de impressão. O crítico não é

impressionista, o espectador pode dar-se ao luxo de ser impressionista, pode dar-se ao

luxo da mera fruição da obra. O crítico não pode ficar ao nível da fruição, o crítico tem

que ficar ao nível da fruição e da construção, da construção do discurso. O crítico não

existe se não formular um discurso metodologicamente crítico, metodologicamente

autónomo, identificável como discurso crítico.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas

na Capital)

A argumentação associada aos dispositivos teóricos de inspiração

comunicacional permite-nos assim vislumbrar claramente dos nexos subtís por onde o

poder intervém no espaço da recepção cultural. Tendo em conta o cenário traçado, não

será difícil apercebermo-nos de que a clivagem que a partir dela é produzida entre as

diferentes lógicas que presidem à abordagem de qualquer objecto estético, da qual

resulta a demarcação entre leitor competente, personificado na figura do crítico, e leitor

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incompetente, associado ao leitor empírico "comum", funciona neste paradigma como

estratégia de demarcação, restrição e de dominação do espaço da crítica em relação ao

espaço geral da recepção cultural (que, por breves instantes, permaneceu aberto e

liberto), representando, no fundo, uma escala de poder hierarquicamente organizada que

traduz o modo autoritário como o campo da crítica pretende exercer o domínio

privilegiado no que respeita aos actos de apreciar, avaliar e interpretar esteticamente.

Trata-se, pois, de mais uma etapa fundamental no processo de usurpação

empreendido em termos teóricos, com a caução intelectual da sua inserção académica,

do poder simbólico no que respeita às funções de produção de valor e de sentido

estético sobre os artefactos criados no universo das artes e letras. Ou, por outras

palavras, corresponde a mais uma batalha vencida na luta pela conquista do monopólio

da autoridade legítima na produção de modelos de sentido e valor estético que o espaço

da crítica tem vindo a reivindicar desde a sua fundação e ao longo da sua consolidação

como campo relativamente autónomo.

De facto, se num primeiro momento o poder simbólico do olhar do crítico sobre

o artefacto cultural repousava na domesticação do que seria o resultado da "natureza

criativa" do autor, daquilo que nele flui irracionalmente da sua inspiração e talento e que

consubstancializa a sua intenção criativa no momento de fabricação da obra, amarrando-

a a um eixo de "verdade" que supostamente só ele saberia recuperar, momento a que se

segue o silenciamento desse mesmo autor circunscrevendo essa mesma "verdade" ao

espaço da obra-em-si-mesma, diante da qual o crítico se deveria subjugar e assumir uma

posição neutral, neste último momento, correspondente à afirmação da participação do

receptor na construção da "verdade" da obra, cabe ao crítico expressar o inexprimível da

intuição do leitor sobre a obra178, ou seja, racionalizar o que num qualquer receptor

empírico "comum" se traduzirá em mera sensação de prazer ou desprazer estético.

Assim sendo, depois de desapossado o autor da relação privilegiada que

mantinha com a sua criação em termos da inteligibilidade que lhe era dada, no interior

do paradigma comunicacional a prática crítica liberta-se não apenas da relação

totalizadora de sujeição absoluta às componentes morfológicas da obra que a crítica de

orientação formalista preconizava - isto ao entender a sua leitura como fenómeno de

intersubjectividade entre receptor e discurso da obra -, como simultaneamente opera um

imenso trabalho de depuração no próprio espaço da recepção cultural, postulando que o

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direito de se pronunciar publicamente acerca de um determinado artefacto estético é

apenas concedido e deve ser apenas assumido por aqueles que detêm a autoridade

legitima, pelas competências específicas que a legitimam, para o exercer, ou seja, os

críticos.

Deste modo, descolando-se da referência primordial que mantinha com as

instâncias directamente associadas ao pólo da criação cultural (mais concretamente o

autor e a sua respectiva obra) enquanto garantias da legitimidade do seu discurso e, ao

mesmo tempo, excluíndo por via das competências os ditos receptores culturais

"comuns" de qualquer tipo de avaliação e interpretação estética competente, a crítica

começa a transformar-se em discurso fechado sobre si próprio, auto-fundamentado-se

na sua própria legitimidade como instituição produtora dos códigos e critérios estéticos

legítimos e consolidando a sua posição hegemónica enquanto grande "máquina" de

fabrico de modelos de sentido face aos pólos da criação e do consumo cultural. É, no

limite, um verdadeiro campo, na acepção bourdiana do termo, que se define.

No entanto, pelo que nos é dado a observar, o modelo comunicacional da prática

crítica apresenta ainda, sob alguns aspectos, características intimamente associadas ao

paradigma filológico, apesar de dissimuladas por uma argumentação mais sofisticada e

complexa. Se num primeiro momento a sua atitude parecia abrir a obra a todas as

possibilidades de sentido empreendidas pelo espaço de recepção, num segundo

momento, esforçando-se por não perder o domínio privilegiado que os seus veredictos

detêm no âmbito deste, tentam ainda, desesperadamente, desenvolver certos artifícios

teóricos no intuito de sustentar o mito da crítica como prática de "re-criação" ou "re-

edição" discursiva da "criação original", ou seja, como discurso objectivo-em-si-mesmo.

Com efeito, os mecanismos (de defesa) que a partir do seu espaço de reflexão e

de actuação foram propostos, e que equivalem, como vimos, a esforços teóricos no

sentido de não perder o domínio simbólico que a crítica obtinha no espaço judicativo e

interpretativo do leitor-receptor cultural, traduzem ainda a tentativa (última) de

controlar a crítica no quadro de uma racionalidade que se quer científica, de fazer

conciliar a inevitável subjectividade decorrente da participação da recepção no processo

crítico-interpretativo com a tão desejada (porque útil em termos de poder simbólico)

objectividade pretendida para os seus resultados, conciliação essa supostamente

conseguida por recurso à utilização da linguagem conceptual por parte do crítico. Mas

178 Palavras de Dámaso Alonso, cit. in COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 415 (os itálicos

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como, tal como lucidamente afirma Costa Lima, «nunca haverá tamanha transparência

no conceito que ele termine por coincidir com o seu objecto»179, nenhuma crítica poderá

arvorar-se como única, última e definitiva. Por mais que se queira combater e controlar

a componente subjectiva da acção receptiva na sua relação com a obra, mesmo quando

empreendida pelo dito leitor competente, a rede de significados dela decorrentes

surgirão sempre incertos, provisórios e incompletos, sendo o fechamento da obra uma

mera ilusão pretenciosa.

Nesta perspectiva, ainda que o espaço legítimo de possibilidades de atribuição

de sentido sobre o objecto estético se veja consideravelmente dilatado no âmbito desta

corrente em relação às anteriores, libertando a prática da amarra que a sustinha à

descoberta de um sentido-feito-verdade, o campo interpretativo do receptor não aparece

ainda aqui assumido como realmente ilimitado, ou seja, ainda não é afirmado

convictamente o estatuto estrutural e infinitamente polissémico de qualquer obra, pois,

como refere Umberto Eco, «não se pretende afirmar que uma obra contenha tudo o que

eventualmente poderia introduzir-se nela.»180 Pretende-se, isso sim, afirmar que na

prática é impossível fixar esses limites, pelo que todas as tentativas desenvolvidas no

sentido de amarrar o sentido estético a um eixo de verdade não resultam senão em

meros simulacros de verdade, em verdadeiros dogmas críticos que se pretendem como

padrões que não o são. Daí a assumpção, esta realmente revolucionária no campo da

prática crítica em relação à sua tradição filológica enraizada, de que o domínio do

sentido do texto nunca será totalizável. Uma análise de sentido é sempre uma tentativa

parcial de detecção e de restituição de alguns - entre outros possíveis - níveis de sentido.

A sua concretização implica necessariamente a perda, o extravio, a não consideração de

algumas das possíveis leituras de sentido.

E na impossibilidade de que o todo se diga, todo o dizer deixa sempre um resto

que lhe irá escapar, resultante do excedente de sentido em relação à "verdade": porque a

"verdade" nunca se diz toda, sendo a língua sempre curta para isso, nas palavras de

Prado Coelho, «qualquer definição da essência deixa um resto, e o resto tende a

aparecer como essencial. Este será o drama da crítica. Digamos que o resto surge como

lugar de resistência onde o texto se ergue contra as redes da razão»181. O que equivale a

são nossos). 179 cit. in COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 165. 180 cit. in COELHO, idem, p. 355. 181 COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 432. É esse drama também identificado por Melo e Castro que, no seu dizer, deixa essa crítica louca, op. cit.

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dizer, no fundo, que é no resto, enquanto lugar da individualidade irredutível, que a

Arte reside. Assim sendo, continuando a sustentar o mito da fascinação pela Arte e pelo

segredo que ela supostamente encerra, a ideologia do resto torna-se, na concepção do

paradigma comunicacional, garantia da permanência e da legitimidade do trabalho

crítico.

A Nova Crítica Francesa ou "Nouvelle Critique", corrente que prefigura o outro

extremo do ponto de viragem paradigmática que aconteceu no campo da crítica durantes

as décadas de 60 - 70 (esta em direcção ao que Prado Coelho designa de paradigma

metapsicológico), ainda que partilhando de alguns pressupostos básicos do paradigma

comunicacional, vai tomar uma atitude bastante mais radical e inovadora que este no

que respeita à sua posição teórica e à sua actuação pragmática no domínio da prática

crítica, atacando vivamente os dogmas da filologia clássica e a posição conciliadora,

ambígua e indecisa da crítica de referência comunicacional. Na opinião de Roland

Barthes, figura fundadora desta nova corrente e responsável pela definição dos seus

pilares fundamentais: «cada época pode efectivamente julgar que detém o sentido

canónico da obra, mas basta alargar um pouco a história para que este sentido singular

se transforme em sentido plural e a obra fechada numa obra aberta. (...) A variedade

dos sentidos (...) designa não uma tendência da sociedade para o erro, mas uma

disposição da obra para a abertura; a obra contém simultaneamente vários sentidos,

pela sua estrutura e não por um defeito daqueles que a lêem. É nisto que ela é simbólica:

o símbolo não é a imagem, é a própria pluralidade dos sentidos.»182

Como podemos verificar, a obra aparece aqui plenamente afirmada como

entidade intrinsecamente plural e polifónica, assim como, por consequência, infinita e

indefinidamente receptiva e polissémica, totalmente aberta. Assim sendo, o significado

do objecto estético ou de qualquer outro conjunto significante, não pode nunca ser

considerado como um fenómeno circunscrito, redutível à descrição que dele possa ser

feita ou à compreensão que dele possa ter o observador, mesmo que especializado. As

matérias significantes constituem sempre uma múltipla e desmultiplicada rede de

significados, pelo que ninguém, nunca, poderá afirmar ter esgotado o seu conteúdo ou

fixado a sua forma. Atestada a diversidade de sentidos própria a qualquer obra,

182 BARTHES, Crítica e Verdade, op. cit, pp. 49-50 (os itálicos são nossos).

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pressupõe-se então a variedade ilimitada das leituras que uma mesma obra pode

inspirar.

Ora, na impossibilidade de se estabelecer um significado fixo e uno, um sentido-

feito-verdade para a obra, a prática crítica fica aqui sujeita à errância infinita de sentido.

Crítica e sentido nunca estagnam: enquanto a primeira continuar activa (e produtiva),

não se acomodando preguiçosamente a uma suposta literalidade ou essencialidade da

obra, o segundo proliferará constantemente, encontrar-se-à sempre em renovação. Daí

que, segundo Barthes, não seja possível a constituição de uma crítica enquanto ciência,

pelo menos tal como esta era tradicionalmente projectada pela crítica académica

convencional: «torna-se possível uma certa ciência da literatura. O seu objecto (se ela

vier a existir um dia) não poderá ser o de impôr à obra um sentido, em nome do qual ela

se arrogaria o direito de rejeitar os outros sentidos (...): o que a interessará serão as

variações de sentido engendradas e, por assim dizer, engendráveis, pelas obras. (...) ela

não dará, ou sequer descobrirá, um sentido, mas descreverá de acordo com que lógica os

sentidos são gerados, de uma maneira que possa ser aceite pela lógica simbólica dos

homens.»183

Na base desta posição teórica está o princípio da arbitrariedade do signo

linguístico (e da sua consequente metaforicidade intrínseca) ou, como lhe chama

Barthes, o princípio da língua plural: «a linguagem simbólica à qual pertencem as obras

literárias (assim como qualquer obra de arte) é, por estrutura, uma língua plural, cujo

código se organiza de tal modo que qualquer fala (qualquer obra) por ela gerada possui

sentidos múltiplos.»184 Com a assumpção deste princípio, pretende-se fundamentalmente

dar conta do fenómeno de polivalência simbólica da linguagem, quer a de intenção

estética, quer a do próprio metadiscurso crítico, rejeitando-se, simultaneamente, a ilusão

da sua transparência e neutralidade, ou seja, o mito da inseparabilidade entre significado

e significante. Assumir a pluralidade simbólica e a natureza instável do signo linguístico

equivale a reconhecer que entre aqueles dois elementos não existe um vínculo directo e

necessário, sendo a sua relação sempre arbitrária. Deste modo, o objectivo primeiro

daquele princípio vai ser o de evitar a Tirania da Lucidez, isto é, «a impressão de que o

que se está a dizer tem de ser verdadeiro porque é óbvio, claro e familiar.»185

183 Idem, p. 56 e 61 (os itálicos são nossos). 184 Idem, p. 53 (os itálicos são nossos). 185 BELSEY, A Prática Crítica, op. cit., p.14.

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Com efeito, a linguagem não é nunca transparente e neutra, nem existe uma mais

transparente e neutra que outra, como se pretendia fazer crêr tanto no paradigma

filológico, como no paradigma comunicacional (aqui com a introdução do princípio da

idealidade do conceito). O uso da linguagem aparece sempre associado a um espaço

preciso de comunicação (não apenas material mas também social, cultural e histórico), a

um modo de vida e de representar a vida. Por isso as mesmas palavras adquirem

significados diversos quando integradas, operacionalizadas e lidas em diferentes

contextos e situações. O que equivale a dizer que a ideologia, enquanto totalidade dos

modos segundo os quais as pessoas vivem e representam para si mesmas as suas

relações com as suas condições de existência, está sempre inscrita no discurso, no

sentido em que não é um elemento dele separado, que lhe seja independente. Língua e

ideologia são noções que sempre se participam mutuamente: a língua participa

necessariamente da ideologia na medida em que é o meio da sua construção e condição

da sua expressão; é através da língua que a ideologia se tece materialmente e se

concretiza. E a ideologia inscreve-se inevitavelmente na língua na medida em que todo

o signo é político, a sua conotação não é "natural" mas arbitrária, fruto de uma

convenção histórica, social, cultural e ideologicamente situada. É neste sentido que o

princípio da arbitrariedade do signo, pressuposto pela linguística pós-saussuriana,

aponta para o facto da linguagem ser uma questão de convenção, um fenómeno social

resultante de uma inteligibilidade inter-individual e histórico-culturalmente

determinada. Quer isto dizer que o significado de qualquer conjunto significante é uma

construção social e que o sistema ou matriz de significação aplicado está intimamente

ligada ao próprio contexto social de que parte, que o produz e reproduz. Não há, assim,

na linguagem nenhum sistema universal que produza univocamente proposições que

correspondam a factos, mas tão-somente práticas que pressupõem e efectivam a sua

articulação com as circunstâncias, a situação e a acção no âmbito das quais ela é

utilizada. Daí que a noção de língua, qualquer que ela seja, entendida como mero

instrumento de transmissão de significados que existem independentemente dela

própria, isto é, como nomenclatura transparente e neutra, seja para Barthes

manifestamente insustentável. Na opinião deste, a ideologia está sempre presente nas

práticas de significação quaisquer que elas sejam (discursos, mitos, críticas, etc), está

subjacente a todas as apresentações e re(a)presentações do modo como são as "coisas",

de como se percepciona a realidade.

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Levado às últimas consequências, o princípio da arbitrariedade do signo atinge a

própria idealidade pressuposta pelos críticos de orientação comunicacional para o

conceito, também ele signo linguístico, chamando a atenção para o facto de não

existirem conceitos adquiridos, pré-existentes, transparentes e totalmente isentos, mas

sim conceitos variáveis e contingentes. Nas palavras de Barthes, «importa insistir

bastante no carácter aberto do conceito; não se trata, de forma nenhuma, de uma

essência abstracta, purificada; é uma condensação informe, instável, nebulosa, cuja

unidade e coerência estão ligadas sobretudo à função.»186

Ora, fazendo aqui um breve parêntesis na explicitação da posição teórica de

Barthes em relação à prática crítica, parece-nos oportuno aproveitar esta "deixa" para

reflectirmos um pouco mais sobre a função do "conceito" no domínio da crítica. Se

tivermos em conta a sua função em termos sociológicos, sem dúvida que grande parte

das noções conceptuais que os críticos empregam na definição do valor e do sentido de

qualquer obra de arte, funcionam no fundo como "armas" ou instrumentos práticos de

combate quer na luta que estabelecem com os agentes exteriores ao seu próprio campo

pelo monopólio do poder legítimo de avaliação e interpretação estética, ou seja,

reivindicando o direito de serem os únicos juízes ou os juízes privilegiados da produção

artística, quer na luta que estabelecem entre si próprios pela imposição da definição

dominante de arte, permitindo a definição do seu próprio ponto de vista e a sua

demarcação face aos pontos de vista dos seus adversários.

Estes instrumentos práticos de classificação não apenas estética mas também

social, vão sendo mais ou menos sábia e progressivamente transfigurados em categorias

conceptuais e/ou técnicas por via das dissecações, dissertações e discussões

intermináveis que sobre elas são empreendidas pela crítica académica (seja ela literária,

pictórica, musical ou de qualquer outro tipo), trabalhos esses que lhes conferem, graças

à amnésia da génese, ou seja "o esquecimento activo que a história produz", um estatuto

de perenidade e de plena objectividade.187

Efectivamente, as categorias de classificação, apreciação, avaliação e

interpretação das obras de arte permanecem sempre marcadas, mesmo no uso que delas

fazem os profissionais deste ramo, por um grau de extrema indeterminação, incerteza e

flexibilidade. Na opinião de Bourdieu, isto acontece ne medida em que a sua maior

186 BARTHES, Mitologias, op. cit., p. 219 (os itálicos são nossos).

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parte, para além de estarem inscritas na língua comum e de serem utilizadas fora da

esfera propriamente estética e/ou artística, a utilização que se faz dessas categorias e os

sentidos que se lhes conferem dependem bastante dos pontos de vista individuais,

histórica e socialmente situados, dos seus utilizadores, muitas vezes perfeitamente

irreconciliáveis.188 Quer isto dizer que se os sentidos e valor simbólico atribuídos a

determinado conceito estético podem divergir no tempo (temos o exemplo do célebre

"conceito" de Beleza), em última instância podem igualmente divergir consoante a

posição do crítico no espaço social que lhe é específico.

Por outras palavras, críticos que ocupam posições opostas no campo em que se

inserem podem dar sentidos e valores totalmente contrários às categorias vulgarmente

utilizadas para caracterizar as obras de arte. Se, por exemplo, categorias como

"autenticidade", "sinceridade", "espontaneidade", "intensidade", "genialidade" e outras

associadas ao "realismo expressivo" da intenção do autor adquirem um sentido e um

valor bastante positivo para os críticos filológicos de referência historicista, o mesmo já

não acontece com os críticos filológicos de referência formalista, para quem aquelas

categorias são despropositadas como fundamento do juízo crítico, substituindo-as por

outras como "integridade", "unidade", "maturidade" ou "subtileza", estas relacionadas

com as propriedades do próprio texto e não do seu autor.189

Nesta perspectiva, apesar das categorias de apreciação e percepção estéticas

subjacentes às diversas formas de classificação artística (géneros, épocas, estilos, etc),

muitas vezes divergentes ou até mesmo antagónicas, sejam formuladas em nome de

uma pretensão à universalidade, ao juízo absoluto, e apresentadas como transcendentais

em relação ao próprio sujeito, por isso puras e objectivas, certo é que elas são

indiscutivelmente relativas e arbitrárias, duplamente condicionadas a nível social:

associadas a um universo social e cultural situado e datado, ou seja, historicamente

condicionadas, a sua utilização em determinada tomada de posição é também marcada

pela própria posição social dos seus utilizadores no campo que lhes é específico, é

também orientada pelos interesses, estratégias e pelo conjunto de opções estéticas e

éticas que constitui o sistema de disposições e pressuposições, ou seja, o habitus

associado a essa mesma posição.

187 BOURDIEU, O Poder Simbólico, op. cit., p. 284. 188 Idem, p. 291. 189 BELSEY, A Prática Crítica, op. cit., p. 24.

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Assim sendo, embora se possa continuar sempre a discutir a propósito da arte,

dos seus valores e dos seus sentidos, certo é também que a comunicação nestas matérias

se realiza sempre com um elevado grau de equívoco. Em suma, tal como refere

Bourdieu, «se há uma verdade é que a verdade está em jogo nas lutas (...). A ciência

nada mais pode fazer senão tentar estabelecer a verdade dessas lutas pela verdade,

apreender a lógica objectiva segundo a qual se determinam as coisas em jogo e os

campos, as estratégias e as vitórias, produzir representações e instrumentos de

pensamento que, com desiguais probabilidades de êxito, aspiram à universalidade, às

condições sociais da sua produção e da sua utilização, quer dizer, à estrutura histórica

do campo em que se geram e funcionam.»190

Ora, retomando novamente a explicitação da posição de Barthes em relação à

prática crítica, podemos notar que com a rejeição da idealidade e da literalidade do

conceito e a consequente consideração deste na série de todos os outros signos

linguísticos, o que a nova crítica barthesiana reivindica é uma outra forma de crítica

capaz de se tonar cúmplice da literatura, seguindo-a até ao extremo no seu intuíto e na

sua forma. Nas palavras do autor: «se a crítica nova tem uma realidade, ela está aí:

não na unidade dos seus métodos, menos ainda no snobismo que, segundo se diz

comodamente, a apoia, mas na solidão do acto crítico, agora afirmado, longe dos alibis

da ciência ou das instituições, como um acto de escrita plena. (...) Assistimos,

indiscutivelmente, a uma transformação da fala discursiva, a mesma que aproxima o

crítico do escritor: entramos numa crise geral do comentário (...). Esta crise é,

efectivamente, inevitável, a partir do momento em que se descobre - ou redescobre - a

natureza simbólica da linguagem ou, se se preferir, a natureza linguística do signo. (...)

A crítica não é uma tradução mas uma perífrase. (...) o crítico não pode senão

continuar as metáforas da obra, nunca reduzí-las.»191

O discurso crítico, ultrapassando o plano do conceito e passando para o plano da

metáfora, é deste modo assumido ele próprio como forma de literatura. Opondo-se clara

e radicalmente à tradição proveniente da filologia de, face a determinado objecto

estético, apresentar-se e reconhecer-se como gesto neutro e espaço sem qualidades, a

nova crítica assume a riqueza da subjectividade do crítico e da sua prática como algo

intrínsecamente criativo. Pretendendo continuar a metaforizar o texto criticado, a nova

190 BOURDIEU, O Poder Simbólico, op. cit., pp. 293-294.

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crítica visa fazer coincidir o sujeito-criador e o sujeito-crítico, proclamando de vez a

Morte do Autor como sujeito absoluto na literatura e na arte em geral, ou seja,

libertando de uma vez por todas a obra da autoridade de uma presença que lhe precede e

que lhe confere significado. Tal objectivo já era preconizado no século XIX por

Baudelaire, para quem o dever do crítico seria «o de encontrar para o poema um

equivalente que revalize com este em poesia.»192

É no seguimento desta exigência baudelairiana que a nova crítica se afasta

definitivamente das posições teóricas assumidas pelos paradigmas que a precedem:

enquanto os críticos nestes radicados procuravam ainda penetrar objectivamente na rede

de metáforas que constitui a obra de modo a conceptualizá-la na sua lógica interna, o

"novo crítico", pelo contrário, pretende participar activamente nessa teia metafórica,

prolongando no seu próprio discurso a metaforicidade do texto original. Ou seja, onde

uns procuram estancar o jogo da metáfora, os outros pretendem continuá-lo. Nesta

sequência, enquanto o paradigma comunicacional tenta interromper, no incessante vai-

vem estabelecido entre obra e metadiscurso, toda a hipótese de continuidade entre

experiência estética e prática crítica, a nova crítica barthesiana vem, pelo contrário,

proclamar a continuação da criação literária por parte da crítica. Donde, enquanto no

paradigma comunicacional a arte residia no resto que resiste ao trabalho crítico, na nova

crítica, ou no paradigma metapsicológico que ela prefigura, a crítica torna-se ela

própria arte, e o crítico rival do autor.

A questão da criatividade na prática crítica, assim como a assumpção do

resultado discursivo desta como produto em competição com a literatura, são noções

que, apesar de ainda se encontrarem envoltas numa aura de polémica, nos aparecem

actualmente enraizadas em alguns segmentos do campo da crítica. Senão atentemos nos

discursos de alguns dos seus protagonistas: para Martin Esslin, crítico literário,

«criticism of painting is discourse about painting; literary criticism is discourse about

discourse and is thus itself a branch of literature. It cannot be a science, but certainly

should be art.»193 Micheal McCanles, igualmente crítico literário, vai estar em sintoni

com a opinião do anterior, ao afirmar que a «demarcation between literature and

literary criticism becames rather fluid, a boundary that is honored only in the act of

191 BARTHES, Crítica e Verdade, op. cit., p. 46, 48 e 70 (os itálicos são nossos). 192 cit. in COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 468. 193 ESSLIN, "A Search for Subjective True", in HERNADI, What is Criticism, op. cit., p. 210.

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breacbing it. The interpretative text thus becames the extension - one out of several

possible - of the metaphorical text itself.»194 Também Jean-Marie Dunoyer, crítico de

artes plásticas, põe enfase na questão da transmutação da metaliteratura em literatura

propriamente dita, ao apontar-nos a sua prática como um trabalho «assez séduisant, qui

peut paraître assez vain, de re-création verbale, essai de transposition conçue à la

manière des gravures dites d'interpretations qui reproduisent librement une "toile de

maître" et offrent du même coup une nouvelle oeuvre originale.»195

Embora não tão peremptórios como os anteriores (lembrêmo-nos das condições

em que a crítica é produzida em Portugal...), também grande parte dos nossos críticos

entrevistados, deixando para trás os valores da objectividade e da verdade crítica,

demonstram partilhar do valor criativo e literário da sua prática e do seu discurso, uns

mais do que outros todavia. Todos eles consideram haver (e dever haver) espaço para a

sua própria criatividade na crítica, uns associando-o ao esforço literário que

empreendem na elaboração e apresentação do seu discurso, na sua performance no

sentido de desenvolver um estilo pessoal de escrita e de argumentação que convença o

leitor do seu ponto de vista (dimensão que, como iremos vêr mais à frente, é bastante

valorizada na crítica pós-barthesiana), outros conotando-o com a originalidade das

ideias e das redes de relações significativas que fazem associar à obra que analisam, no

sentido de torná-la estética e semanticamente produtiva. A crítica chega à possibilidade

de ser tomada como discurso de ficção, como poesia, como prática discursiva de

acompanhamento estético paralelo à obra, esta, em última instância, considerada como

pretexto para uma imagética discursiva que não se propõe como espelho do referente,

mas como projecção sobre o referente.

Há, porém, por parte de alguns, simultaneamente, a constatação da existência de

um certo "perigo" na abertura infinita do espaço das possibilidade criativas do crítico no

exercício da sua prática que deve ser (auto) controlado, perigo esse associado à situação

do crítico se deixar levar pelo fascínio da invenção e da sua escrita, de incorrer no

discurso pelo discurso, desprendendo-se do referente que esteve na base desse texto,

que o justifica, o define e o legitima a priori enquanto crítica, ou seja, a obra. Não é que

o estatuto do crítico o condene a ser um eterno voyer ou parasita do lado da criação, um

mero intermediário passivo como os tradicionais paradigmas da crítica levavam a supôr.

194 McCANLES, "Criticism is the (Dis)closure of Meaning", idem, p. 275.

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Pondo-se numa posição que poderemos fazer associar a algumas das premissas

invocadas pelos paradigmas de orientação comunicacional, pressupõem sempre uma

autonomia relativa da crítica perante o seu referente, uma certa distância face à própria

obra sobre a qual discursa, espaço esse livre para as tomadas de posição criativas e

subjectivas do crítico. Todavia, de modo a reduzir a sua margem de arbitrariedade, é

necessário sim que esse discurso tome sempre como ponto de partida a própria obra, e a

respeite na sua imanência e integridade ao longo do percurso analítico e reflexivo que

para ela traça, é necessário é que esse discurso não pretenda à partida "ofuscá-la" e

remetê-la para segundo plano (ressalvando a situação potencial de, mais tarde ou mais

cedo, as matérias criticadas "desaparecerem" enquanto que alguns dos discursos que as

circundaram podem continuar a dar motivos de meditação).

É nesta óptica que, ainda que reconheçam e defendam a existência de

componentes criativas, literárias e subjectivas nos resultados discursivos da sua prática,

alguns dos nossos críticos se inibam de os pôr à partida ao mesmo nível da literatura,

pressupondo que esta forma de escrita não supõe a existência dessa relação subsidiária

que a crítica tem com um referente primeiro - que, note-se, não é compreendida como

uma sujeição ou limitação, como uma relação prévia de dominação ou de total

dependência, já que esse objecto é ele próprio plural, mas uma relação de

intersubjectividade sempre. Para que criatividade não se veja confundida com invenção,

e para que os valores da subjectividade e da originalidade se cruzem e se comprometam

com o valor do rigor crítico.

«Que espaço que reserva para a criatividade na crítica? É preciso alguma

precaução em relação a essa criatividade. (...) porque acho que a obra não deve ser

pretexto para estar a exercer a minha criatividade. Eu só fico satisfeito quando essa

criatividade nunca perde de vista a própria obra, quando é autorizada por ela. Uma

criatividade que é pura e simplesmente regulada, condicionada por aquilo que a obra

me permite, sem que eu perca qualidades como o rigôr ou um certo valor de

adequação. Acredita que a crítica se pode tornar ela própria uma forma de literatura?

Se quer que lhe diga, em casos raros... A crítica por definição tem o seu lado de

criatividade. Eu não ousaria propriamente assimila-la a uma forma de literatura. Há

casos onde de facto isso acontece. Há grandes obras de crítica, obras ensaísticas, que

195 DUNOYER, "Pour une Critique d'Art Dissidente", in Corps Écrits..., op. cit., p. 120.

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são tão interessantes do ponto de vista artístico como as obras sobre que se exercem.

Mas isso só pode ser analisado caso a caso, depende da própria competência e do

próprio talento das pessoa que a exercem e não podemos dar uma definição

generalizada e dizer que a crítica tout cour é uma espécie literária. Mas sob certas

circunstâncias pode tornar-se.» (António Guerreiro, crítico de literatura no Expresso)

«Em muitos casos sim (pode tornar-se literatura...). Como você não me pode

dizer quais são os limites da literatura... Assim como não se pode dizer quais são os

limites da arte. Porque não o género crítico? (...) Nunca no acto da crítica, no momento

cronológico em que a crítica é lida, e que está a ser lida em relação a um determinado

a objecto que foi criado recentemente ou não recentemente mas, enfim, que está à

disposição de eventuais fruidores, não é nesse momento que a crítica é objecto

literário. Ela sê-lo-á com o passar do tempo, quando o tempo passar por ela e disser

"isto ficou como objecto literário". E portanto, nós nunca sabemos. Não é porque o

Eduardo Prado Coelho escreve sobre livros de uma determinada maneira, ou porque

publica as suas críticas em livros, ou que o Miguel Esteves Cardoso..., que isso é

obrigatoriamente literatura. O tempo vai dizer se aquilo é literatura. Só o tempo.»

(Eugénia Vasques, crítica de teatro no Expresso)

«Penso que sim, que alguma crítica é uma forma de escrita e é, portanto, uma

forma de literatura. Inevitavelmente. Eventualmente até pode ser uma forma de ficção,

até pode-se chegar à dimensão da ficção. Alguma poesia é crítica e alguma crítica é

poesia. É o caso das Metamorfoses de Jorge de Sena, por exemplo. Eu penso que não

há barreiras e que pode ser literatura. Nalguns casos é literatice.» (Alexandre Pomar,

crítico de artes plásticas no Expresso)

«(o espaço reservado para a criatividade é...) Todo, acho eu, porque

necessariamente estou a ser criativo na relação que tenho com o filme. Isto não tem

nada a ver com aquela ideia feita de que o crítico é uma espécie de criador ao mesmo

nível do cineasta, não é isso, mas de facto inevitavelmente estou a ser criativo, porque

não estou a transcrever nada, não estou a ser neutro, estou a reinventar para a escrita

a tal relação que ficou com o filme. E isso implica criatividade, implica como todas as

formas de criatividade lidar com a informação, recriar a informação, e se possível, isso

depende do talento de cada um, conferir-lhe um arranjo final que seja coerente e de

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algum modo sedutor para quem o lê. (...) Como a relação com o filme pode ter

componentes passionais, acho que a crítica também pode ter componentes literárias. E

mais uma vez não estou a tentar colocar a crítica em nenhum pedestal, estou apenas a

partir do princípio de que a literatura é também a utilização da palavra escrita para

além dos seus usos correntes, isto é, não se escreve um livro ou uma crítica como um

relatório de contas de uma empresa, não é a mesma coisa. A crítica a um filme também

não é a sua sinopse. A esse salto qualitativo eu posso admitir que isso implique

componentes de natureza literária, é evidente.» (João Lopes, crítico de cinema no

Expresso)

«Já é (forma de literatura). Se lermos o Eduardo Lourenço, estamos a ler textos

magníficos, textos num estilo luminoso, e simultaneamente de crítica literária. Todos

aqueles textos que ele tem de crítica ao neo-realismo, tudo aquilo é luminosíssimo, é

quase uma espécie de poesia em prosa. E o Eduardo Prado Coelho nos Diários, aquela

maneira de ele pôr as questões do ponto de vista crítico, há ali muita criação, uma

espécie de ficção, digamos assim.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de

Letras)

«Eu suponho reservar muito espaço (à criatividade na crítica). Agora, essa

criatividade não deve de maneira nenhuma ofuscar o objecto. O crítico não se pode

esquecer de que ele está a ser um intermediário, não é ele o assunto. Com essa

ressalva, eu acho que a criatividade tem que ser total, porque a criatividade implica a

minha opinião, sensibilidade, intuição, originalidade, conhecimento, e é isso que faz

uma crítica boa. (...) Eu acho que sim. Isso não é muito comum, mas há grandes

talentos de crítica que se lê as críticas deles como o exercício da arte de bem escrever,

de bem pensar, de bem analisar, de bem sentir, tudo isso. Por isso a crítica nesses

casos especiais, pode ser lida quase em si, porque a personalidade do crítico é uma

personalidade fascinante, porque ele tem um talento estilístico muito grande, nesse

caso sim.» (Paulo Nogueira, crítico de cinema no Independente)

«No meu caso, a criatividade tem a ver com o prazer que tenho em escrever.

Gosto de escrever bem, com cuidado, com os termos devidos, com o chamado "bom

português". Isso nunca dispenso. Há um trabalho de "rendas e bordados" que gosto de

fazer, nunca tentar impôr teorias ou pontos de vista que podem ser originais mas que

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não vêm a propósito. (...) Parece que é, há casos em que é uma forma de literatura. À

partida, é já uma literatura ensaísta, mas é mais que isso. A literatura está um pouco no

sentimento que eu ponho nas coisas.» (Manuel João Gomes, crítico de teatro no

Público)

«Não literatura, mas um género literário. Eu não sei se pode, é! Por isso, em

certa altura, quando eu falava daqueles textos do JL, eram textos de crítica, mas textos

que eram literariamente trabalhados ao pormenor mais ínfimo, nas vírgulas, nos

pontos. Eram textos que eu não sei se a qualidade literária deles era muito boa, mas

onde as frases valiam não pelo seu discorrer literal, mas por elas próprias, valiam

como uma coisa global. Não se conseguia separar no texto a forma do conteúdo, e

aquele texto da obra. Porque era uma altura em que tanto eu como o Alexandre Melo

escrevíamos, por um lado em conjunto a maior parte das vezes, e por outro lado em

coincidência com a obra. Não era crítica de tendência, mas era em coincidência com a

obra e com os artistas.» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público)

«A criatividade é a descoberta conduzida através da articulação de ideias,

descobrir algo de original, algo de inovador. (...) E aí o crítico, como o artista,

descobre coisas novas e portanto está a ser inovador. E já estabeleci várias relações

que mais ninguém fez em Portugal, que é por exemplo entre certos aspectos da pintura

escrita ocidental e o Oriente. (...) Eu estou a trabalhar num plano que quanto a mim é

inovador, e em que põe novas maneiras de ver a arte. (...) Pode tornar-se numa forma

de literatura. Há críticos que são excelentes escritores. É uma literatura mas uma

literatura de investigação, uma literatura de ideias, não é um romance. É como que um

ensaio filosófico, só que neste caso será um ensaio que pode até ter conteúdos

filosóficos, esteticos, sociológicos, etc, numa relação com a crítica. Sim, pode ser

perfeitamente, pelo menos aspira a encontrar uma certa forma literária, um certo estilo

para que a influência das ideias seja maior.» (Eurico Gonçalves, crítico de artes

plásticas no Diário de Notícias)

«A criatividade é a maneira como se escreve. Está-se a criar um texto, esse texto

tem que coresponder à obra, não pode ser inventado, não pode ser "violino". A

criatividade está só na forma de expressão, porque o que se exprime é o que provém da

obra que foi vista.» (Francisco Perestrello, crítico de cinema na Capital)

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«(a criatividade na crítica...) É o escrever bem. Ou seja, é ver bem e escrever

bem. O sonho de todos os críticos, pelo menos o meu, é escrever uma daquelas frases

que seja citável. É, como dizia o Jorge Luís Borges, "o lugar comum é a melhor coisa

de todas". É aquilo que toda a gente aceitou. Eu já citei várias vezes o Truffaut, e

tomara eu, era o meu grande triunfo como crítico, ter alguma vez escrito alguma frase

que fosse citável, que daqui a uns anos se dissesse "Como disse o José Navarro...". E

isso é a grande criatividade, é ter uma frase tão certeira, tão consensual, tão

verdadeira sobre um filme, que tenha ficado. (...) Não (a crítica não é literatura). O

caso do Bénard é literatura, passa para o lado da literatura, deixa de ser crítica. E é

assumido por ele, não estou a dizer nada que ele não o tenha já dito. Nem me atrevia, é

o meu chefe! Precisamente a partir do momento em que a crítica se torna literatura,

passa a trabalhar segundo as suas próprias premissas, desprende-se do objecto. (...)

Houve uma fase, que me pareceu terrível no exercício da crítica, em que a crítica quis-

se equivaler aos objectos. Isso em termos de cinema reduziu-se a uma frase que alguém

disse que é "escrever com os filmes". Eu acho que a palavra "com" aí é terrível. Não se

deve nunca escrever com os filmes, mas deve-se escrever sobre os filmes. Porque se a

certa altura se se começa a fazer equivaler a minha prosa com o Schindlers List, ou

com um filme do Godard, eu estou-me a pôr um bocado em bicos dos pés e, de facto, -

de facto - a minha prosa não se pode equivaler. É uma prosa de confronto, porque no

fundo o motivo dela foi o filme. Eu não posso pôr-me em pé de igualdade com o filme,

para mim é uma questão ética mesmo.

O resultado imediato dessa equivalência é que a minha escrita deixou de ter

parâmetros, ou seja, eu escrevo o que quero e me apetece sobre um filme, perco a

completamente a noção de rigôr porque já não é sobre ele que eu estou a escrever, é a

pretexto dele, e eu acho que o rigôr para qualquer trabalho teórico é absolutamente

fundamental, entro num subjectivismo aleatório, ou seja, sem o mínimo critério. O

único critério que me motiva aquela escrita é o filme. Se eu perco esse critério, corto os

laços. E o resultado é que se começou a escrever sobre qualquer outra coisa que não o

objecto sobre o qual era suposto escrever-se. Claro que isto gerou uma perversão

fantástica! As coisas vão caminhando passo a passo. Se a minha prosa se auto-

fundamenta e tem um valor em si e se fecha sobre si própria, se o meu grau de

subjectividade pode ser absoluto, se a minha relação com o objecto é apenas uma

relação de vaga motivação, de circunstância, o passo seguinte é eu desprender-me

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completamente do objecto e quando regressar a ele, perder qualquer ideia de

necessidade de me justificar. O resultado é que dá prosas do género, "este filme é uma

porcaria", "quem gosta deste filme é parvo e é uma porcaria, porque eu acho que é

uma porcaria". Estou-me a referir concretamente a um modelo de crítica que existe em

Portugal, que é perfeitamente aleatório. Porque é que se há-de justificar?

São os verdadeiros filhos do Roland Barthes que fazem isso, porque o pai

Roland Barthes, não era o que ele queria mas foi a maneira como acabaram por o

interpretar, ao achar que o texto é para ser desconstruído ao meu belo prazer - o que é

engraçado é que ele dizia "Primeiro leiam, e depois desconstruam". Mas houve pessoas

que saltaram imediatamente para a desconstrução, sem passar primeiro pela

estruturação do texto, neste caso do filme, sem passar primeiro pelo rigôr, passam logo

para a desconstrução, numa espécie de auto-fundamentação da sua própria escrita. O

passo seguinte é que essa auto-fundamentação torna-se auto-suficiente e quando

regresso ao filme, tudo o que eu disser pode ser absolutamente aleatório, porque as

pessoas ou confiam no nome que está assinado em baixo ou não. E o único critério de

argumentação é a assinatura. Portanto, eu acho que se tem que recuar muito mais

atrás e voltar de novo a um diálogo concreto, formal e rigoroso em relação ao filme, ou

seja, não imputar modelos ao filme, ver quais são os modelos que o filme sugere, mas

no fundo ver se o filme funciona segundo as suas próprias premissas, e não se o meu

texto funciona segundo as minhas próprias premissas. Por isso é que é possível gostar

de Spielgberg e de Godart. Ambos têm premissas cinematográficas completamente

diferentes, e o que é preciso é ver se a obra acabada está de acôrdo com os princípios

que a fundamentam e originam. E o meu texto tem que seguir esse percurso, que é o

percurso do filme, não é o meu texto que é o próprio percurso a partir de um percurso

que o filme lançou.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no Público)

«Eu digo que há espaço para a criatividade, embora ele seja um bocadinho

difícil de aceitar. Porque se nós somos demasiado criativos, fazemos como fazia o

Diderot, que começava a olhar para o quadro e a contar a históra do passarinho e da

menina que estava lá representado. E então acabou a crítica e passou a haver um texto

muito bonito do Diderot. Não é esse tipo de criação que pode haver. Eu penso que pode

haver uma certa criatividade quando o crítico é capaz em termos de análise, e

naturalmente isso são textos grandes, não são textos pequeninos, de encontrar novos

conceitos, ou uma nova metodologia para analisar a própria obra de arte. E é capaz de

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estabelecer uma melhor argumentação para a sua própria fundamentação, é capaz de,

ao fim e ao cabo, disciplinar o seu discurso e encontrar uma metodologia para o seu

próprio discurso, e conceitos que lhe são inerentes e que lhe permitem dizer, "Bem, esta

pessoa que fez foi o tal, e aquela foi outra". Porque realmente há um discurso e há um

conjunto de aparelhos operatórios que permitem trabalhar. (...)

E depois, evidentemente, eu penso que muitos críticos de arte se sentem um

bocadinho escritores quando fazem um texto, que é um texto grande, que implica uma

certa análise, uma certa adesão ao artista. E há um gosto que se tem de escrever o

texto, e de o texto estar bonito, estar bem escrito, da qualidade de escrita e de

desenvolvimento das ideias. Penso que, no fundo, o crítico é também um bocadinho um

escritor, quer seja de cinema, ou de música mesmo. Eu estou-me a lembrar de algumas

coisas do João Bénard da Costa, que ele escreveu no Independente, são textos

literários. Do próprio Eduardo Lourenço, ou do Prado Coelho, são textos de facto com

um cuidado literário que têm. E aí penso que há criatividade, obviamente. Aquele texto

não é igual a nenhum outro. E aí há certamente criatividade. (...) (mas em relação à

crítica como forma de literatura...) Não, isto é, nós temos visto, ao longo deste século,

vários críticos de arte verem as suas obras publicadas. Por exemplo, o Bénard da

Costa ou o José-Augusto França. É de certo modo uma forma de literatura. Mas é

totalmente impensável se nós não a relacionarmos com o objecto artístico, enquanto

que o romance não tem que ter essa relação com o objecto artístico. Portanto, a crítica

de arte como literatura pode funcionar relativamente. Se a pessoa não conhece a obra,

eu penso que o texto não funciona minimamente. Na literatura não há essa

objectividade que há na crítica, nem essa depedência. Portanto, parece-me que a

crítica de arte como literatura é uma coisa que não funciona assim muito bem.»

(Cristina Azevedo Tavares, crítica de artes plásticas no Jornal de Letras)

«Como na ciência, a criatividade é a capacidade de gerar o novo a partir dos

dados disponíveis. Portanto, se não há uma interpretação de uma obra e alguém a

consegue gerar, está a criar. Está a criar, digamos assim, uma imagem enriquecida da

própria obra. Portanto, tem que ser criativa, se não, não é nada. (...) (em relação à

crítica como forma de literatura...) Não, isso acho que não. Quer dizer, não sei o que é

isso da literatura mas... Há é escritas de críticos, como há escritas de cientistas, que

têm qualidades literárias surpreendentes. Portanto, penso que a crítica de arte terá ou

não terá, tal como a escrita científica, qualidade literária. Pode ser uma crítica baça e

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cinzenta, mas terá de ser minimamente escorreita, minimamente correcta para

conseguir transmitir correctamente as suas ideias. Mas depois há aqueles casos em que

esses textos adquirem determinado fulgor literário, mas não têm de ser. Há de facto

críticos que são excelentes escritores críticos. Há até excelentes escritores que são

maus críticos. Ou seja, cuja crítica do ponto de vista literário é muito interessante, mas

depois, do ponto de vista científico, é muito pouco interessante. Quer dizer, é muito

interessante literariamente, mas muito desinteressante cientificamente. E também há o

contrário: há críticas que são muito interessantes do ponto de vista científico, mas que

são completamente arrevazadas do ponto de vista literário. Portanto, penso que não é

uma questão essencial para a crítica, a da sua qualidade literária. Claro que se tiver

qualidade literária, melhor. Principalmente para o leitor, para o leitor desprevenido,

para o leitor não especializado, para o leitor comum, digamos assim.» (António

Cerveira Pinto, crítico de artes plásticas no Independente)

«Creio que não, porque a crítica não é uma forma de arte. A crítica tem

parâmetros de objectividade que é a relação com aquele objecto concreto e preciso. É

uma função hermenêutica, especulativa, que pode dar a entender ao leitor que aquele

objecto vai mais além daquilo que parece. Há toda uma série de funções que a crítica

tem como instrumento criativo, mas que está dependente de uma relação com o objecto

específico.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital)

Afirmando a posição primordial da metáfora em relação quer ao discurso da

obra, quer ao seu próprio discurso, a nova prática crítica deixa então completamente de

parte o objectivo de chegar a um sentido-feito-verdade, para passar a dar-se como

exercício de produção literária e, consequentemente, como lugar de desejo, de paixão e

criatividade (embora sempre cultivada e teoricamente informada e regulada). A sua

tarefa passa a ser não a de procurar a suposta coerência simbólica única da obra, mas a

multiplicidade e a diversidade infinita dos seus significados, a sua complexidade e

pluralidade intrínseca, tomando a forma de uma deriva: «a deriva acontece sempre que

eu não respeito o todo»196. Passa a ser a desconstrução da obra no sentido da sua

abertura, libertando algumas das suas potenciais versões de inteligibilidade, com a

196 BARTHES, Mitologias, op. cit., p. 28.

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finalidade de reconstruir um outro texto, também este sujeito a múltiplas

inteligibilidades, infinitamente aberto e relativamente autónomo do primeiro.

Neste contexto, se a prática crítica participa necessariamente da pluralidade de

significações intrínseca ao texto original, constituindo-se o discurso dela resultante

como metáfora da própria obra interpretada, qualquer interpretação dela decorrente será

indecidível e, consequentemente, qualquer exigência de cientificidade a ela feita será

absurda. Assim liberto dos constrangimentos teóricos de uma leitura única e unívoca,

inerentes às exigências de uma crítica de carácter positivista, o crítico barthesiano tem

oportunidade de assumir plenamente o seu papel de produtor activo de sentido(s) (em

contraposição à passividade associada e exigida ao seu papel convencional), insistindo

em encontrar a pluralidade de significações, ainda que sempre parcimoniosa, do texto

analisado, e recusando o pseudo-domínio de sentido apresentado como posição óbvia,

clara e única da sua inteligibilidade.

Deste modo, o sentido estético na nova crítica já não é dado pela análise da

"essência" - onde quer que ela se encontre, na "intenção do autor" ou nas propriedades

formais da própria obra com que dialóga -, mas criado, produzido discursivamente.

Barthes chega mesmo a propôr a substituição do termo "sentido" pelo de

"significância", de modo a enfatizar a sua recusa face à ideia da existência de uma

significação única intrínseca e ontológica, e a afirmar mais claramente o carácter

produzido do sentido. Nas suas palavras, «"significância" é o sentido na medida em que

ele é sensualmente produzido.»197 Donde a obra passa a ser entendida como objecto de

prazer, aberta a diversos percursos eróticos. Também Iser, notoriamente do lado da

nova crítica, vai propor que o horizonte da prática crítica não se vislumbre como um

horizonte de sentido, mas sim como um imaginário, «algo de difuso e proteico, instável

e informe, arbitrário e não fixo, ao contrário do sentido, que se caracterizava pela

precisão.»198

Nesta óptica, a crítica apresenta-se já não como lugar seguro de verdade, sequer

como lugar de repouso de sentido (como o era no âmbito do paradigma

comunicacional), mas como nómada e vertiginosa deriva sobre a obra, na medida em

que empreende não um processo definitivo de reconhecimento, sequer um processo

complexado de atribuição de significados, mas um processo infinito de produção de

sentido(s), sendo que ela própria transforma e a constroi activamente a "matéria-prima"

197 BARTHES, O Prazer do Texto, Lisboa, Edições 70, 1973/83, p. 109 (os itálicos são nossos).

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que lhe é dada a conhecer. Daí Barthes considerar o sentido como um ponto de partida

e não como um ponto de chegada, consubstancializado numa linguagem última: «o que

nos importa é mostrar partidas de sentido, não chegadas. O que fundamenta o texto não

é uma estrutura interna, fechada, contabilizável, mas o desembocar do texto noutros

textos, noutros códigos, noutros signos: o que faz o texto é o intertextual.»199

Este trabalho de transformação e de produção activa do objecto deve ser, porém,

realizado, na opinião do autor, tendo em conta determinadas precauções, ou correrá o

risco de cair num subjectivismo ingénuo, ou seja, numa procura individualista, simplista

e inocente de sentidos ou, pelo contrário, no objectivismo demagógico, isto é, a

convicção de que o que se está a dizer é verdadeiro porque evidente e claro, de que a

obra significa o que obviamente significa.

«O crítico desdobra os sentidos, faz pairar, acima da primeira linguagem da

obra, uma segunda linguagem, isto é, uma coerência de signos. Trata-se, em suma, de

uma espécie de anamorfose, estando entendido que, por um lado, a obra nunca se

oferece a um puro reflexo (...) e, por outro, que a própria anamorfose é uma

transformação vigiada, submetida a coacções ópticas: deverá transformar tudo o que

reflecte; transformar apenas segundo certas leis; transformar sempre no mesmo sentido.

São estas as três regras da crítica. A crítica não pode dizer "o que quer que seja" (como

acusa à nova crítica Raymond Picard, o que verêmos no capítulo seguinte). O que

controla o seu adjectivo não é, porém, o medo moral de "delirar"», até "porque os

delírios de hoje são talvez as verdades de amanhã (...). Não, se o crítico se dispõe a dizer

alguma coisa (e não o que quer que seja), é porque concede à fala (do autor e da sua)

uma função significante e, portanto, a anamorfose que imprime à obra (e à qual

ninguém tem o poder de subtraír-se) é guiada pelas restrições formais do sentido; não

se faz, com o sentido, o que se quer (e se alguém duvida, que experimente): a sanção do

crítico não é o sentido da obra, mas o sentido do que dela diz.» Nesta perspectiva,

continuando nas palavras do autor, «sabemos, pelo menos, que não é possível falar de

qualquer maneira dos símbolos; dispomos pelo menos - mesmo provisoriamente - de

certos modelos permitindo explicar segundo que sequência se ordenam as cadeias de

198 Cit. in COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 390. 199 Cit. in COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 392 (os itálicos são nossos).

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símbolos», o que faz com que «a obra, longe de ser lida de modo "delirante", seja

penetrada por uma unidade cada vez mais vasta.»200

Os modelos de que Barthes nos fala referem-se aos diversos quadros teóricos

disponíveis e em voga no seu tempo, nomeadamente, ao estruturalismo straussiano, à

linguística pós-saussuriana, a psicanálise freudiana e lacaniana e à teoria económica e

social marxista, formas contemporâneas de conhecimento que privilegia e aplica nas

suas análises para produzir sentidos que, muito provavelmente, não seriam acessíveis e

reconhecidos pelos autores das obras em causa ou pelos seus respectivos leitores no

contexto em que foram criados. O emprego de tais modelos por parte da prática crítica

vem no seguimento da preocupação de Barthes em ler e falar das obras ditas "clássicas"

de uma forma contemporânea, segundo a linguagem da época em que são lidas,

adaptando-as ao tempo presente no sentido de descobrir-lhes, ou melhor, de investir-

lhes significações que, provavelmente no passado, no contexto da sua fabricação, não

fariam qualquer sentido, mas que no fundo lhes estavam subjacentes, que nelas existiam

em potência. Estamos, pois, plenamente no espaço do depois-da-obra, espaço esse que a

transforma e a fractura sem piedade, sendo a sua abertura cada vez mais inevitável à

medida que a obra se projecta no futuro. É neste sentido que Barthes faz a seguinte

afirmação: «la nouvelle critique pose, en effect, une question brûlante: l'homme

d'aujourd'hui peut-il lire les classiques? (...) Elle se reconnaît le droit de ne pas

seulement effleurer l'object de cet amour (la littérature), mais de l'investir. (...) La

nouvelle critique a le mérite d'avoir le même language que les créations de notre

époque. Un roman actuel a, plus au moins nettement, un arrière - plan marxiste ou

psychanalytique. C'est une langue que connaît la nouvelle critique.»201

Daí que a nova crítica apele para que esta actividade não permaneça isolada das

restantes áreas de conhecimento humanístico e social que se têm vindo a desenvolver e

a consolidar no campo académico, como havia acontecido até ao seu surgimento em

nome de uma suposta especificidade da literatura e/ou das artes, na tentativa de tornar

a Crítica numa nova ciência que tomaria como objecto de estudo destas em si, com

teorias e métodos de análise próprios, completamente independente das restantes

ciências humanas. Na concepção de Barthes, este projecto de crítica encontra-se, logo à

partida, equivocado, na medida em que: «pretende defender, na obra, um valor

200 BARTHES, Crítica e Verdade, op. cit., pp. 63-64, 66-67 (os itálicos são nossos).

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absoluto, intocado por algum desses "algures" indignos que são a história ou os baixos

da psychê; ela pretende não uma obra constituída mas uma obra pura, à qual se evita

todo o compromisso com o mundo, toda a aliança rebaixante com o desejo. O modelo

deste estruturalismo pudico é, muito simplesmente, moral. (...) finge-se primeiro

acreditar que é possível falar da literatura, torná-la objecto de uma fala; mas toda essa

fala logo se esvazia, pois nada há a dizer do seu objecto, senão que é ele próprio. (...)

Poder-se-ia ao menos aceitar libertar a crítica - que não é e não pretende ser ciência - de

modo a dizer-nos que sentido os homens modernos podem atribuir a obras passadas.»202

Ora, ao incentivar a prática crítica a empregar formas ou modelos

contemporâneos de conhecimento, como aqueles que já atrás referimos, Barthes resolve

não apenas o problema da "libertação da crítica" no sentido de produzir novos

significados sobre as obras ditas "clássicas", como também o problema dos possíveis

efeitos perversos decorrentes dessa libertação, dos quais destaca o risco do criticismo

cair num subjectivismo desenfreado e ingénuo. Acerca deste problema, as propostas

mais cientifistas, como vimos, tendiam a acreditar numa total anulação e neutralização

do sujeito e da sua subjectividade na crítica, travando um aceso combate ao

impressionismo em nome de uma objectividade positivista. Barthes, por seu turno,

repõe este problema em termos bastante diferentes, senão mesmo antagónicos, dos

utilizados naquelas propostas, insistindo na importância e na inevitabilidade do para-

mim na prática crítica, mas de um para-mim que, na medida em que é discursivamente

construído, não pode dizer o que quer que seja: «é preciso reivindicar em favor de uma

certa subjectividade: a subjectividade do não-sujeito, oposta ao mesmo tempo à

subjectividade do sujeito (impressionismo) e à não-subjectividade do sujeito

(objectivismo).»203

Esse tipo de subjectividade que Barthes reivindica para a crítica, em detrimento

quer do objectivismo quer do impressionismo, resulta do trabalho textual, discursivo,

que se interpõe entre a experiência estética e a prática crítica. E precisamente porque

esta última implica a produção de um trabalho textual, não estamos nem no domínio da

objectividade, impossível de alcançar através da palavra, nem no domínio do vale-tudo,

já que, como vimos, o discurso crítico em Barthes apresenta-se sempre como

anamorfose, como "transformação vigiada", isto é, como imagem deformada do objecto

201 BARTHES, in Figaro Littéraire, em 14 de Outubro de 1965 (os itálicos são nossos). 202 BARTHES, Crítica e Verdade, op. cit., pp. 37-38 (os itálicos são nossos). 203 BARTHES, Mitologias, op. cit., p. 25.

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em análise, mas sempre deformada sob certo ângulo, sob determinado ponto de vista. E

aqui entram, para vigiar o trabalho de produção de sentido activado pelo crítico, os tais

modelos contemporâneos de conhecimento.

É na escolha destes, ou seja, na sua preferência em termos de ângulo de visão, de

sistema de referências, de ponto de vista, de posição ideológica, que surge o momento

da subjectividade do sujeito-crítico, que a sua vontade individual se impõe. A partir daí,

da aplicação desses modelos às obras em análise, resultam interpretações discursivas e

sem sujeito, ou seja, são produzidos significados que são textualmente apresentados e

independentes das vontades individuais, preferências ou "génio" de quem os aplicou, já

que obrigam o crítico a seguir determinada sequência na ordem simbólica que tenta

impôr à obra original. Deste modo, as possibilidades de sentido que a crítica promove

não são aleatória e apaixonadamente produzidas, não resultam de "delírios"

impressionistas, na medida em que são sempre controladas por determinadas "restrições

formais de sentido".

Estamos, então, no domínio da subjectividade do não-sujeito, isto é, de uma

subjectividade que é construída no momento da entrada do crítico na ordem simbólica

que se exige de qualquer trabalho textual, produzida no espaço que existe entre o

sujeito-da-leitura e o sujeito-da-escrita ou da enunciação discursiva, subjectividade essa

que é da ordem do individual mas não do pessoal: «cada vez que tento "analisar" um

texto que me deu prazer, não encontro a minha "subjectividade", mas sim o meu

"indivíduo", o dado que constitui o meu corpo separado dos outros corpos e que se

apropria do seu sofrimento ou do seu prazer.» E é na medida em que a prática crítica se

processa neste domínio específico, que ela se apresenta simultaneamente separada quer

da ciência, quer da leitura: «a crítica não é ciência. Esta trata dos sentidos, aquela produ-

los. Ocupa, como já dissemos, um lugar intermédio entre a ciência e a leitura.»204

Já temos elementos suficientes para entender como e porquê ela aparece, na

concepção de Barthes, separada da ciência: para este autor, não se pode exigir do crítico

nem que se comporte como um historiador, observando as variações de sentido sobre

uma mesma obra ao longo da história e descobrindo as lógicas simbólicas de acordo

com as quais esses vários sentidos foram gerados - este papel não é da sua competência

-, nem que se assuma como um mero compilator de significados, como um sujeito

passivo que nada pode acrescentar a um suposto sentido literal que vive no texto; a sua

204 Idem, pp. 110-111 (os itálicos são nossos).

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função é construir novas possibilidades de sentido sobre a obra, aqui entendida como

realidade simbólica e polifónica, o que implica necessariamente a intervenção

individual do crítico sobre essa mesma obra, patente na escolha que faz em temos de

ponto de vista a nela aplicar e da nova possibilidade de sentido a nela desenvolver. A

crítica distancia-se assim da ciência. Por outro lado, distingue-a também da mera leitura,

argumentando a não redução do papel do crítico ao papel de leitor, mesmo que ideal ou

competente.

«O crítico não pode, de todo, substituir-se ao leitor. É inútil ele pretender - ou

pedirem-lhe - que empreste uma voz, por muito respeitosa, à leitura dos outros, que se

reduza a ser, ele próprio, um leitor no qual os outros leitores delegam a expressão dos

seus próprios sentimentos, devido ao seu saber ou às suas opiniões, numa palavra, que

represente os direitos de uma colectividade sobre a obra (como, aliás, se pretendia no

paradigma comunicacional). E porquê? Porque mesmo definindo o crítico como um

leitor que escreve, a própria definição implica que esse leitor depara, no seu caminho,

com um medianeiro temível: a escrita. Ora escrever equivale de certo modo a fracturar

o mundo (o livro) e a refazê-lo. (...) Ao passo que não sabemos como um leitor fala a

um livro, o crítico é, por seu lado, obrigado a tomar um certo "tom"» (...). «Assim,

"tocar" um texto, não com os olhos, mas com a escrita, abre, entre a crítica e a leitura,

um abismo (...). Porque, tanto do sentido que a leitura dá à obra como do significado,

nada se sabe, talvez porque esse sentido, sendo o desejo, se estabelece para além do

código da língua. Só a leitura ama a obra, mantém com ela uma relação de desejo. Ler é

desejar a obra, é pretender ser a obra, é recusar dobrar a obra fora de qualquer outra fala

que não a própria fala da obra: o único comentário que um leitor puro, que puro se

mantivesse, poderia produzir, seria o decalque (...). Passar da leitura à crítica é mudar

de desejo, é deixar de desejar a obra para desejar a própria linguagem.»205

Afastado das figuras quer de "cientista", quer de leitor, o crítico vai

assumirplenamente em Barthes a figura de commentator, ou seja, personifica alguém

que, individualmente, intervém discursivamente sobre o discurso original, tornando-o

inteligível sob determinado ponto de vista que é passado à escrita. Temos então o acto

de passagem à escrita, com tudo o que ele implica e impõe ao crítico em termos de

205 BARTHES, Crítica e Verdade, op. cit., pp. 74-75, 76-77 (os itálicos são nossos).

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condicionalismos simbólicos à sua prática, como garantia da distância que separa esse

personagem do leitor. Ora, o estabelecimento desta distinção, embora ainda não o

fundamente definitivamente, é já "meio caminho andado" no sentido de assegurar o

privilégio da leitura do crítico em relação à do leitor, ou seja, de garantir a manutenção

do poder que detém sobre a obra, sua apreciação, avaliação e interpretação, poder esse

posto em causa com a assumpção da subjectividade do crítico (que, a priori, o manteria

ao mesmo nível, embora com tarefas diferentes, do leitor "comum").

No entanto, a distinção entre leitor e comentador, tal como ela é estabelecida,

torna-se demasiado frágil para fundamentar a legitimidade privilegiada do discurso do

crítico sobre a obra: a escrita, por si só, não é (nem nunca foi) condição de dominação.

Aqui o que faz o poder das palavras não são as próprias palavras (como se fazia crer no

paradigma filológico e no paradigma comunicacional, pressupondo a existência de uma

linguagem transparente, clara, inocente, teoricamente racionalizada e somente dominada

pelo crítico), mas fundamentalmente a crença (não só do leitor mas do próprio crítico)

na legitimidade de quem as pronuncia e da forma como as pronuncia.

Efectivamente, em consequência da diluição do critérios de cientificidade e de

objectividade preconizada na posição teórica de Barthes em relação à prática crítica

como critérios de validação do seu discurso e, como tal, de fundamentação da assimetria

de poder estabelecida na relação entre crítico e leitor, as categorias "verdadeiro/falso"

e/ou "adequado/inadequado" deixaram de fazer sentido para classificar e distinguir os

julgamentos e interpretações empreendidas pelos críticos e pelos leitores. A partir de

Barthes fica bem patente que no domínio da prática crítica nada está definitiva e

objectivamente julgado e interpretado, pelo que a questão já não vai ser quais os

mecanismos que a crítica deve accionar para que dela resulte uma apreciação estética

objectiva, mas antes em que fundamentos o crítico se alicerça para fazer prevalecer a

sua leitura e a sua apreciação.

Assim sendo, em que é que Barthes e os novos críticos em geral se baseiam para

consubstancializar a legitimidade e a validade da sua leitura e da sua apreciação em

relação às dos restantes leitores e, deste modo, assegurar a sua condição de dominação,

o seu poder simbólico perante aqueles no campo das artes e da literatura? Ainda que a

posição do autor quanto a esta questão não seja muito clara, pois nunca se pronuncia

sobre ela directamente, existem no seu discurso alguns vestígios que nos podem ajudar a

clarificá-la. Nas suas palavras, «toda a objectividade do crítico dependerá, então, não da

escolha do código mas do rigôr com que aplicará à obra o modelo que escolheu.» Mais

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à frente, continua dizendo que «a crítica é, certamente, uma leitura profunda (...) e por

aí, de facto, decifra e participa numa interpretação.»206

Eis, portanto, as uma das condições de legitimação e de validação do discurso

crítico em Barthes: já não se traduzem em critérios de verdade/falsidade, de

adequação/inadequação, definidos tendo em conta a objectividade do discurso, mas sim

numa exigência de profundidade e de rigôr analítico na exposição e justificação do seu

ponto de vista individual, teoricamente informado por determinado código ou modelo

conceptual. Nesta medida, podemos verificar que também este autor recorre à utilização

do conceito por parte da prática crítica como estratégia de demarcação face à leitura

pretensamente ingénua, superficial e impressionista do leitor que se assume apenas

como tal. No entanto, na medida em que o paraleliza a qualquer outro signo linguístico,

denunciando o seu teor metafórico e ideológico, confere-lhe um outro estatuto

simbólico e valor operativo que não o que lhe era tradicionalmente emprestado. A

linguagem da racionalidade teórica poderá não ter, para Barthes, um valor científico,

mas tem, certamente, um valor cognitivo, pois ao ser operacionalizada com rigôr por

parte do crítico permitir-lhe-á chegar a um conhecimento mais íntimo e alargado da

realidade criticada.

Por outro lado, os seguidores da nova crítica barthesiana - aproveitando as ideias

por esta iniciadas da crítica ser ela própria uma forma de literatura, sendo a acção

promovida dentro do seu âmbito qualitativamente distinta da do leitor "comum" (ou do

somente leitor) pelo facto de exigir a passagem da recepção à escrita - alargaram os

critérios de validação e de legitimação do discurso crítico firmados por Barthes,

acrescentando aos valores de profundidade e do rigôr analítico o valor da

performatividade. Para estes, o objectivo principal do discurso crítico consiste não em

chegar a um suposto "sentido-feito-verdade" mas em satisfazer, convencer e seduzir do

seu ponto de vista quem o lê. E só na medida em que este é realmente sedutor é que é

aceite a sua validade.

Assim sendo, a acção de criticar passa a implicar a apreciação, avaliação e

interpretação individualmente conduzida sobre determinada obra, condução essa que

passa sempre também pela tentativa de levar o outro a assumir essas apreciações e

argumentações que as sustentam como plausíveis, e já não como verdadeiras ou

adequadas: tal como refere Prado Coelho, aqui «o que é preciso é proporcionar uma

206 Idem, p. 21 e 69 (os itálicos são nossos).

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experiência de pensamento em que uma pessoa se sinta bem e suspenda ou reduza por

algum tempo a sua necessidade de interpretar mais.»207 Constata-se então aqui a

existência constante de um elemento de sedução na crítica, passando esta a constituir

um dos empregos mais persuasivos da língua. O seu discurso é plausível ou não é

plausível, resulta ou não resulta, é eficaz ou não o é: questão de performance. Para além

de um fazer-saber, ou seja, de apresentar uma nova possibilidade de inteligibilidade

sobre a obra original, a crítica passa a implicar igualmente um saber-fazer, para que

seduza e convença, o que leva, em última instância, à importação das noções de talento

e vocação do âmbito da criação estética também para o âmbito da crítica.

É, pelo menos, nesta direcção que vão os recentes depoimentos de alguns

críticos: no dizer de Martin Esslin, «in the case of criticism what is involved is precisely

the talent to talk about an object, a talent which produces an object which is discourse

about an object»208, posição também partilhada por Fernando Pinto do Amaral, para

quem hoje «o que se pede, nos estudos literários, não releva tanto de qualquer saber

previamente adquirido, mas sim de uma performance individual (...) que por isso

mesmo apavora os que para ela não têm vocação.»209 Também os nossos entrevistados,

como tivémos oportunidade de ver atrás, valorizam bastante, de uma forma geral, as

competências linguísticas para o exercício da sua prática, assim como as componentes

propriamente literárias no seu discurso:

José Navarro de Andrade apresenta-nos uma função da crítica como sendo «não

digo a sedução, mas convencer as pessoas de um ponto de vista. A sedução é a forma

de enganar as pessoas, é uma palavra horrível, tão horrorosa que até o Piaget a

utilizava. Como disse o Fernado Gil, anda toda a gente a seduzir, e é preciso é

convencer. De facto, a minha capacidade de argumentação, o meu ponto de vista tem

que convencer o leitor a criar uma certa sensibilidade em relação ao filme. É esse o

meu trabalho, creio que é isso que ele me pede. É isso que faz com que uma crítica seja

uma boa crítica. Argumentar sempre.»

Eugénia Vasques vem também afirmar a competência linguística como sendo

uma das mais importantes para o exercício eficaz da prática crítica: «Uma competência

(do crítico): saber escrever, ser capaz, ser competente linguisticamente. Isto que estou

207 COELHO,Os Universos da Crítica, op. cit., p. 439 (os itálicos são nossos). 208 ESSLIN, "A Search for Subjective True", in HERNADI, What is Criticism, op. cit., p. 211. 209 AMARAL, in "O Céu e a Terra", Ler, nº14, 1991.

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a dizer tem mais a ver com a performance do que com a competence. Mas, apesar de

tudo, a nossa performance vai depender da nossa competência. Eu creio que é preciso

saber escrever para saber traduzir as ideias que se têm sobre o objecto. É preciso

estudar e aprender as matérias sobre as quais se vai produzir discurso, e ser capaz

disso, ser competente nesse sentido.»

Em sintonia com esta posição está a de Carlos Porto, para quem o crítico «como

já disse e insisto, deve saber escrever, deve aperfeiçoar a sua escrita, que é o

instrumento que ele tem para exprimir a sua opinião, o seu juízo. Assim como o actor

dispõe do corpo, o crítico dispõe da escrita. Como o actor precisa de um corpo capaz

de exprimir todos os sentimentos, o crítico precisa de uma escrita que lhe permita

exprimir todos os seus pensamentos, todas as suas ideias sobre o espetáculo. Portanto

penso que a escrita é importante (...) tem vantagens a crítica ser também uma obra

literariamente criativa, penso que há. Se eu vou ler uma crítica que é bem feita sob o

ponto de vista da análise e ao mesmo tempo é uma peça literária boa, tenho mais gozo

que outra que analisa bem um espetáculo mas num estilo literariamente pobre.»

A rotação do móbil da actuação da prática crítica da "verdade" para a

"performatividade", e a consequente transformação do discurso dela resultante de

discurso científico em discurso persuasivo, aparece-nos claramente explicitada por

Stanley Fish, também ele crítico literário e seguidor de Barthes nos seus pressupostos

fundamentais. Nas suas palavras: «Critical disputes are not, properly speaking, about

facts but about the varying perspectives from which the facts will look now one way,

now another; and therefore the business of criticism is not so much to demonstrate in

accordance with the facts as it is to persuade to a point of view within which the facts

one cites will seem indiputable. Indeed this is the whole of critical activity (...). (...) a

model derived from an analogy to the procedures of logic and scientific inquiry, (...)

basically it is a model of demonstration in which interpretations are either confirmed or

disconfirmed by facts that are independently specified. The model I have been arguing

for, on the other hand, is a model of persuasion in which the facts that one cites are

available only because an interpretation (at least in its general and broad outlines) has

already been assumed.»210.

210 FICH, "Demonstration vs. Persuasation: Two Models of Critical Activity", in HERNADI, What is Criticism, op. cit., p. 32.

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No fundo, o que se encontra aqui subjacente é a ideia de que as explicações

estéticas fornecidas pela crítica nunca serão convertíveis numa explicação causal e

científica, nunca serão passíveis de serem asseguradas segundo uma lógica de

demonstração. Isto porque há nelas uma arbitrariedade irredutível no seu ponto de

partida: a escolha de um determinado jogo de linguagem, de um código associado a

determinado ponto de vista, sempre social, cultural e ideologicamente condicionado,

assim como individualmente conduzido. Daí que falar em ciência e em objectividade

em matéria de crítica seja, efectivamente, uma mera ilusão pretenciosa, pois as

explicações estéticas que enuncia funcionam, apenas e fundamentalmente, como

mecanismos discursivos capazes de produzir sobre o objecto em causa determinadas

possibilidades de inteligibilidade, determinados mitos plausíveis que nos convençam e

nos satisfaçam, ou seja, que nos persuadam.

Mas ainda que a nova corrente liberal do criticismo reconheça o carácter

ideológico e subjectivo de toda e qualquer formulação crítica, vimos que ela não vem,

em consequência, neutralizar ou anular o privilégio da leitura do crítico em relação à do

leitor "comum" ou do "só-leitor". Embora liberalmente promova o estatuto

infinitamente polissémico do artefacto estético e afirme a pluralidade das suas

interpretações e subjectividade das suas avaliações, não deixa simultaneamente de

acreditar, de argumentar e de reafirmar a autoridade e legitimidade do crítico na

formulação destas, fundamentadas, aqui, não num pretenso estatuto de cientificidade

atribuído ao seu discurso, mas na profundidade analítica que a ele é capaz de

incorporar, decorrente das suas competências teóricas e estéticas acumuladas, no rigôr

teórico e metodológico que a sua ética profissional reclama na abordagem que faz da

obra, na sua capacidade argumentativa e comparativa, assim como no seu talento de

escrita, supostas garantias da sua desejada ruptura com o discurso crítico empreendido

pelo senso comum ou, como Barthes lhe chama, com um "impressionismo desenfreado

e ingénuo".

Ás competências estéticas formais vêem-se então adicionadas competências de

ordem comunicativa e de escrita como requisitos indispensáveis para o exercício da

prática crítica, tornando-se esta em arte de bem escrever sobre..., com plausabilidade,

profundidade e rigôr, características estrategicamente invocadas para o discurso que

dela resulta de modo a protegê-lo dos riscos da pluralidade paradigmaticamente

afirmada no âmbito desta corrente e, ao mesmo tempo, garantir a continuidade na

crença da sua validade e da legitimidade do seu produtor. Nesta sequência, fica patente

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que o poder simbólico da crítica não advém, aqui, da competência das próprias palavras

que emprega mas, sem dúvida, da crença socialmente legitimada na competência

cultural de quem as profere, assim coomo da forma como as profere. É um poder

assegurado, no fundo, como refere Costa Lima, pelo «conhecimento de certa retórica, a

prática de certa estilização, que não se possui pelo mero facto de se escrever na sua

língua materna.»211

Resumindo e concluindo, com o surgimento da "Nouvelle Critique" e das teorias

a ela afins estamos na presença de um novo paradigma de referência no campo da

crítica, definido, por um lado, pela assumpção da total descoincidência entre verdade e

sentido e, por outro, pela distinção que nele acontece entre receptor-leitor e receptor-

comentador, apesar de continuar a ser o receptor o elemento privilegiado no processo de

comunicação literária. Efectivamente, como já tivemos oportunidade de explicar mais

desenvolvidamente, neste novo paradigma que a nova crítica barthesiana inaugura,

pretende-se da prática crítica não a fixação da Verdade ou de uma verdade intrínseca à

obra mas, em vez disso, o alargamento do seu campo de sentido, a libertação das

posições a partir das quais é passível de se tornar inteligível.

Na base desta posição teórica, herética na ética e conduta que propõe para o

desempenho da prática crítica face à ortodoxia da cientificidade, está o princípio da

arbitrariedade do signo linguístico, tal como foi atrás definido, o qual não se aplica aqui

apenas ao discurso metafórico da própria obra mas também ao próprio metadiscurso

promovido pela crítica - que, por esta via, perde as características de metadiscurso e

apresenta-se, ele próprio, como literatura. E é na medida em que a prática crítica implica

o acto de passagem à escrita, surgindo o comentário do crítico sobre a obra original

como sua metáfora, que neste paradigma a figura do receptor se desdobra, distinguindo-

se então entre o outro-leitor e o outro-comentador, instância individual de produção

simbólica sobre a obra. Ora, com a introdução deste novo elemento no esquema de

comunicação estética (para além do autor, do texto e do leitor), o campo de sentido do

texto fica liberto da fixidez e autoritarismo a que estava anteriormente sujeito (sempre

arreigado à "intenção do autor", às suas próprias características formais ou à figura de

um leitor-competente ou ideal), e torna-se disponível para a produção múltipla e infinita

de significados.

211 Cit. in COELHO, Os Universos da Crítica, op.cit., p. 164.

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4.3. A QUERELA BARTHES-PICARD

OU A GRANDE BATALHA ENTRE OBJECTIVISTAS E

SUBJECTIVISTAS

Traçados os pressupostos básicos subjacentes às principais coordenadas

paradigmáticas de referência a partir das quais a crítica se tem orientado no espaço da

Academia, podemos facilmente aperceber-nos de que os valores assumidos em relação a

esta prática se têm vindo progressivamente a deslocar no sentido da liberdade, da

criatividade, da performatividade, em suma, da subjectividade (ainda que sempre

teoricamente informada, rigorosa e, como tal, competente), em detrimento da

passividade, da neutralidade, da demonstratividade, da objectividade, valores a que

inicialmente se encontrava submetida no interior daquele mesmo espaço. Este

movimento de rotação valorativa traduz, no fundo, o percurso que vai da filogénese,

olhar sobre o objecto estético que acreditava na sua própria pureza, na sua inocência e,

como tal, na sua capacidade de apreender a obra de arte tal como ela supostamente

exigiria que fosse apreendida, em si mesma e por si mesma, à ontogénese, olhar que

começa a consciencializar-se de que está inevitavelmente associado a condições de

percepção e apropriação simbólica da obra de arte muito particulares, não ignorando as

suas condições sociais, culturais, históricas e ideológicas de possibilidade.212

Com efeito, o que sucede na realidade é que todas as apreciações, avaliações e

interpretações sobre qualquer produto cultural, são sempre produto do habitus, ou seja,

do conjunto de disposições e de pressuposições interiorizadas pelo agente que as

formula e que constitui o seu quadro de referência para essas mesmas formulações,

sempre socialmente construído e posicionado. A esta condicionante de ordem estrutural,

é ainda de adicionar, no caso concreto do crítico, todo o tipo de constrangimentos

institucionais e contextuais relacionados com a sua cultura e contexto profissional. E,

neste sentido, podemos apelar às palavras de Bourdieu quando afirma que «o que se diz

é sempre um compromisso (como o sonho) entre o que se queria dizer e o que se pode

dizer, compromisso que depende, evidentemente, do que o locutor tem a dizer, das suas

capacidade de produção, de apreciação da situação e de eufemização, e também da

posição que ele ocupa na estrutura do campo em que se exprime.»213

212 BOURDIEU, O Poder Simbólico, op. cit., p. 284. 213 Cit. in COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., p. 540.

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O percurso atrás descrito, como será de prever, não acontece por acaso. Sabemos

que a invenção do olhar estético como "olhar puro" surge intimamente associada à

instituição da produção artística como acto de "criação" também ele puro, liberto de

toda e qualquer determinação e função social, instituição essa que nasce com o

desenvolvimento paralelo de um corpo de profissionais e experts encarregados de fazer

(a)creditar e conservar a obra de arte na sua "pureza" original, entre os quais se encontra

a figura do crítico, que começa por pensar o seu discurso de celebração como acto de

re-criação e re-edição discursiva da obra na sua verdade primeira e perene. Começando

por ser produto do desejado movimento dos campos artístico e literário para a sua

autonomia, a invenção do olhar puro vai proporcionar simultaneamente o próprio

movimento de autonomização do campo da crítica (pois, como vimos ao longo deste

trabalho, estes são movimentos que se interpenetram e se sustentam recíproca e

continuamente), funcionando como estratégia de demarcação face às restantes instâncias

de legitimação, valorização, celebração e consagração artística que outrora detinham o

monopólio da celebração estética pela palavra (como a Igreja, os diletantes ilustrados e

os próprios artistas).

À medida que esse campo se fecha sobre si próprio no sentido da auto-

legitimação da sua prática e da independência desta em relação às instâncias com que

lida mais directamente (como o autor, a própria obra e o espaço social da sua recepção e

consumo), reivindica para si o monopólio da produção simbólica do objecto estético,

alegando deter o domínio dos conhecimentos e dos instrumentos específicos necessários

a uma apreciação, avaliação e interpretação estéticas sem erros, pura, neutra, verdadeira

e objectiva, competências cuja posse irá fazer parte das condições de acesso ao campo.

A luta pela detenção desse monopólio empreendida por parte do campo da crítica,

assegurado na base de uma pretensa cientificidade (auto) atribuída aos seus resultados

discursivos, teve a Academia como poderoso cúmplice. Com efeito, a estreita ligação

que desde o século XVIII se verifica entre a prática crítica e a instituição académica,

espaço de enquadramento onde decorreu toda e discussão e teorização em seu torno,

associada ao prestígio que a noção de objectividade conservava dentro daquela

instituição, foram decerto factores determinantes na formação do carácter científico

atribuído àquela prática no seu início.

Com a independência do seu lugar assegurada e com sua autonomia

relativamente estabelecida, a par da recente transformação que a própria imagem da

ciência vem sofrendo no campo académico por via do desenvolvimento da

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Epistemologia e da Sociologia do Conhecimento, assim como do trabalho de

desmistificação do «olhar puro» que as Ciências Sociais, nomeadamente a Sociologia,

vêm realizando, as tentativas de fixar a objectividade, ou seja, um ideal de coincidência

entre verdade e valor/sentido estético, começaram rapidamente da declinar no domínio

da crítica, criando-se as condições propícias para que uma certa fracção da crítica de

inserção académica voltasse a reflectir crítica e profundamente sobre os objectivos da

sua prática, com a consequente necessidade de inventar novas estratégias de preservação

da autoridade e legitimidade dos veredictos dela resultantes sobre os pólos da criação e

do consumo cultural.

De facto, em virtude das circunstâncias epistemológicas inauguradas para a

ciência (pós) moderna, surgiram no interior desse campo novas éticas de condução do

olhar para a estética, isto é, novas formas de encarar e de praticar a crítica, e o modelo

que ainda se reivindicava de uma suposta cientificidade, ancorada num ideal de

objectividade=verdade, viu-se sendo cada vez mais posto em causa. Tal como descreve

Paulo Nogueira, crítico de cinema no jornal no Independente, «ultimamente, a ciência

pregou uma rasteira aos críticos mais armados aos cucos ou mais sentenciosos. Pois,

como se sabe, a física quântica mandou a certeza às favas. (...) De acordo com o arauto

do pós-modernismo Jean Baudrillard, "a violência teórica, não mais a verdade, é o único

percurso que nos resta".»214

É neste contexto que os paradigmas comunicacional e metapsicológico se

manifestam tentando quebrar a doxa do campo, esta associada, como se torna evidente,

à tradição filológica. Apresentando-se como grandes adversários desta corrente, nas

suas mais diversas versões teóricas e metodológicas, vieram apregoar (o primeiro com

alguns rodeios, o segundo de viva voz), por um lado, a pluralidade de sentidos

intrínsecos a qualquer obra e, por consequência, a pluralidade ilimitada das suas

interpretações, assim como, por outro, o carácter subjectivo e socio-culturalmente

condicionado dessas mesmas interpretações e dos padrões de referência utilizados na

construção de escalas de valor estético para os produtos culturais.

Como seria de esperar, a emergência destes dois paradigmas no campo da crítica

não aconteceu pacificamente e sem polémica. Pelo contrário, fez ressurgir tensões que,

já desde o século XIX, não se faziam sentir com tanta veemência naquele campo:

referimo-nos, nomeadamente, aos conflitos que envolveram os críticos-jornalistas e/ou

214 NOGUEIRA, "Situação Crítica", in Independente, 8 de Abril de 1991.

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os críticos-criadores, como Baudelaire, Oscar Wilde e David Herbert Lawrence, de

postura mais intuicionista e sensitiva perante as artes e a literatura, contra os críticos

académicos de ethos filológico (disciplina que, na época em causa, se encontrava em

pleno apogeu), acerca da questão da objectividade/subjectividade no desempenho da

prática crítica, questão que dividia radicalmente os protagonistas desse campo nessa

altura específica.

A posição de Oscar Wilde acerca desta questão encontra-se muito próxima da de

Baudelaire (já neste trabalho exposta), como é significativo no seu prefácio à obra "O

Retrato de Dorian Gray" (1891), do qual passamos a apresentar alguns excertos: «O

crítico é aqule que sabe traduzir de outra maneira ou com material diferente a sua

impressão das coisas belas. (...) Aqueles que encontram belas significações nas coisas

belas são cultos. Para esses há esperança. São os eleitos aqueles para quem as coisas

belas apenas significam Beleza. (...) Toda a arte é ao mesmo tempo superfície e

símbolo. Aqueles que descem da superfície fazem-no por seu próprio risco. O mesmo

sucede àqueles que lêem o símbolo. É o espectador, e não a vida, que a arte realmente

reflecte. A diversidade de opiniões sobre uma obra de arte mostra que a obra é nova,

complexa e vital. Quando os críticos divergem, o artista está de acordo consigo

mesmo.»215

O mesmo podemos dizer da opinião de David Herbert Lawrence, "crítico-

escritor" do princípio do século, para quem: «Literary criticism can be no more than a

reasoned account of the effect produced upon the critic by the book he is criticising.

Criticism can never be a science: it is, in the first place, much too personal, and in the

second, it is concerned with values that science ignores. The touchstone is emotion, not

reason. We judge a work of art by its effect on our sincere and vital emotion, and

nothing else. All the critical twiddle-twaddle about style and forme, all this pseudo-

scientific classifying and analysing of books in an imitation-botanical fashion, is mere

impertinence and mostly dull jargon. A critic must be able to feel the impact of a work

of art in all its complexity and force. To do so, he must be a man of force and

complexity himself, which few critics are. A man with a paltry, impudent nature will

never write anything but paltry, impudent criticism. And a man who is emotionally

215 WILDE, O Retrato de Dorian Gray, Lisboa, Círculo de Leitores, 1990, p. 5.

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educated is rare as a pheonix. The more scholastically educated a man is, generally, the

more he is an emotional bore.»216

No entanto, a clivagem que outrora se revelava coincidente entre crítica

académica / crítica jornalística e crítica objectivista / crítica subjectivista, acabou por

diluír-se, a partir daqui, num fenómeno de transversalidade, para o qual também

concorreu o facto de muitos académicos de postura objectivista terem sido solicitados a

ocuparem lugares de comentário crítico e cultural na imprensa generalista. A

subjectividade já não era admitida apenas entre as trincheiras da crítica jornalística nem

a objectividade somente no interior da Academia, pulverizando-se deste modo as éticas

associadas a estes lugares de produção de discurso crítica. Até surgirem as diversas

teorias que vieram a desembocar nos paradigmas comunicacional e metapsicológico -

onde muitos dos pressupostos partilhados por aqueles "críticos-criadores" foram

retomados, embora sob uma nova «roupagem» (designadamente pela nova crítica

barthesiana) - o silêncio e as certezas sobre esta matéria impunham-se no pólo da crítica

académica, onde dominavam totalmente os pressupostos inerentes ao paradigma

filológico, camuflando e dissimulando a arbitrariedade intrínseca ao discurso e à análise

aí produzida.

A chegada daqueles novos paradigmas ao campo, nas suas mais diversas versões

teóricas, veio então quebrar o silêncio que se fazia sentir sobre a questão da

objectividade / subjectividade no desempenho académico da prática crítica, pondo em

causa as "evidências" e as "certezas" em que se alicerçava o paradigma tradicional. A

clivagem entre "subjectivistas" e "objectivistas" reacendeu-se e as tensões dela

decorrentes rapidamente se manifestaram e se generalizaram fervorosamente nas

páginas dos periódicos da especialidade. No cerne de tais conflitos desde cedo apareceu

a figura de Roland Barthes, adversário acérrimo da crítica convencional e/ou de toda a

crítica que, de um modo ou de outro, insistisse ainda em assumir-se no campo como

detentora dos princípios essenciais conducentes à objectividade dos seus resultados em

termos de apreciações, avaliações e interpretações. Em suma, a Heresia em pessoa.

Efectivamente, já em 1957, aquando da primeira edição das suas "Mitologias",

este autor marcava o seu distanciamento quer face à crítica de raíz filológica, quer face à

crítica de referência comunicacional, cujas primeiras teorias começavam no momento a

216 Cit. in RAWLINSON, The Practice of Criticism, op. cit., p. 2.

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emergir no campo, atacando-as vivamente. Em relação à primeira, Barthes acusava-a de

"muda", "cega" e "tautológica":

«Os nossos tautologistas são como os donos que puxam bruscamente a trela do

cão: é preciso que o pensamento não seja deixado à rédea solta, pois o mundo está

cheio de álibis suspeitos e vãos, e é preciso controlar de perto o seu juízo, reduzir a

trela à distância de um real computável. E se as pessoas se pusessem a pensar sobre

Racine? Grave ameaça: o tautologista corta raivosamente tudo o que à volta dele vai

crescendo, e que poderia abafá-lo. (...) Há, enfim, ainda isto na tautologia (...): o que se

poderia chamar o mito da redescoberta crítica. Os nossos críticos essencialistas passam

o seu tempo a redescobrir a "verdade" dos génios do passado; a Literatura é para eles

um vasto armazém de objectos perdidos, em que se vai pescar. (...)

Compreende-se, pelo menos, o que é que uma tal nulidade na definição traz aos

que a agitam gloriosamente: uma espécie de pequena salvação ética, a satisfação de ter

militado em favor de uma verdade de Racine, sem ter de assumir nenhum dos riscos que

toda a investigação um pouco positivista da verdade fatalmente comporta: a tautologia

dispensa de ter ideias, mas, ao mesmo tempo, incha-se ao fazer desta licença uma dura

lei moral; daí o seu sucesso: a preguiça é promovida à categoria de rigor. Racine é

Racine: admirável segurança do nada. (...) A tautologia é esse processo verbal que

consiste em definir o mesmo pelo mesmo. (...) ela não pode senão abrigar-se por detrás

de um argumento de autoridade: "é assim porque é assim". (...) A tautologia funda um

mundo morto, um mundo imóvel.»217

Quanto ao segundo tipo de crítica que Barthes identifica (nomeadamente num

dos primeiros números do jornal francês Express), esta associada às teorias inscritas no

paradigma comunicacional, ele designa-a com um certo tom pejorativo de "Crítica

Nem-Nem", destacando ironicamente o modo como revelam até que ponto se tornam

necessárias determinadas acrobacias teóricas no sentido de tentar sustentar o mito de um

texto objectivo em si mesmo:

«A crítica não deve ser "nem um jogo de salão, nem um serviço municipal";

entenda-se que ela não deve ser nem reaccionária, nem comunista, nem gratuita, nem

política. Trata-se de uma mecânica da dupla exclusão (...) Pesam-se os métodos com

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uma balança, carregando os pratos à vontade, de forma a poder-se aparecer como um

árbitro imponderável, dotado de uma espiritualidade ideal, e por isso mesmo justo,

como o ponteiro que julga o peso. (...)

As taras necessárias a esta operação de contabilidade são formuladas pela

moralidade dos termos empregados. (...) Por exemplo, a cultura será oposta às

ideologias. A cultura é um bem nobre, universal, situado fora das tomadas de posições

sociais: a cultura não tem peso. Quanto às ideologias, elas são invenções partidárias: à

balança, pois! Ei-las contrapostas umas às outras sob o olhar severo da cultura (sem se

imaginar que a cultura, bem vistas as coisas, é no fim de contas uma ideologia). Tudo se

passa como se houvesse, de um lado, palavras pesadas, palavras com tara (ideologia,

catecismo, militante), encarregadas de alimentar o jogo infamante da balança; e, do

outro, palavras ligeiras, puras, imateriais, nobres por direito divino, sublimes ao ponto

de escaparem à baixa lei dos números (aventura, paixão, grandeza, virtude, honra),

palavras situadas acima do triste cômputo das mentiras; as segundas são encarregadas

de pregar a moral às primeiras: de um lado, palavras criminosas, do outro, palavras

justiceiras. (...)

Em contraposição à idealidade do conceito aqui pressuposta, Barthes afirma que

«um juízo literário é sempre determinado pela tonalidade de que faz parte, e a própria

ausência do sistema - sobretudo quando levada até ao estado de profissão de fé -

procede de um sistema perfeitamente definido, que é na ocorrência uma variedade muito

banal da ideologia burguesa. (...) Pode-se tranquilamente desafiar quem quer que seja a

exercer, alguma vez na vida, uma crítica inocente, pura de qualquer determinação

sistemática: os Nem-Nem estão, também eles, embarcados num sistema, que não é

forçosamente aquele de que se reclamam. Não se pode emitir um juízo acerca da

literatura sem uma certa ideia prévia do Homem, da História, do Bem, do Mal, da

Sociedade, etc. (...) Assim, a liberdade do crítico não é a de recusar tomar partido (o

que é impossível!) mas a de proclamá-lo ou não. (...)

O nem-nem-ismo (...) consiste em supor como dados dois contrários e em

contrapesar um pelo outro, de modo a respeitá-los a ambos. (Não quero nem isto, nem

aquilo.) Trata-se, preferentemente, de uma figura de mito burguês, porque decorre de

uma forma moderna de liberalismo. Deparamos aqui de novo com a figura da balança:

o real é antes de mais reduzido aos seus análogos; em seguida, é pesado; enfim

217 BARTHES, Mitologias, op. cit., p. 105, 106, 107, 252 (os itálicos são nossos).

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constatada a igualdade, desembaraçamo-nos dele. Há também aqui uma conduta

mágica: não se dá razão nem a uma nem a outra das alternativas sobre que era

incómodo fazer uma escolha; foge-se do real intolerável reduzindo-o a dois contrários

que se equilibram na medida somente em que são formais; aliviados do seu peso

específico.»218

O distanciamento de Barthes em relação quer ao paradigma convencional, quer

ao paradigma comunicacional (nessa altura, recém-chegado ao campo), bem visível no

tom acusatório dos depoimentos que acabámos de apresentar, veio gerar um clima de

tensão latente que, mais tarde, despoletou abertamente. Com efeito, os conflitos só se

vieram a manifestar mais violentamente quando Barthes, como de resto já havia

ameaçado, resolveu realmente "pensar a sério" sobre a obra de Racine, aplicando os

pressupostos do modelo de crítica que vinha desenvolvendo, e edita em 1963 a obra

"Sur Racine".

Esta publicação, como à partida poderíamos supor, não se apresenta apenas

como mais uma reflexão sobre a obra de Racine, confrontando-a com algumas das

linguagens conceptuais possíveis do nosso tempo, mas representa sobretudo uma

ruptura em relação à forma institucionalizada de praticar a crítica literária, isto na

medida em que o seu autor nela assume claramente a vinculação directa a uma

"ideologia", a determinado modelo de conhecimento extra-estético, reivindicando o

direito (inevitável para ele) a uma "crítica ideológica" em detrimento da demagogia

inerente à dita "crítica universitária", a qual, na sua opinião, ainda «pratica no essencial

um método positivista herdado por Lanson.»219 É neste sentido que Barthes inicia esta

sua obra apresentando-a da seguinte forma:

«L'analyse qui est présentée ici ne concerne pas du tout Racine, mais seulement

le héros racinien: elle évite d'inférer de l'oeuvre à l'auteur et de l'auteur à l'oeuvre; c'est

une analyse volontairement close. Je me suis placé dans le monde tragique de Racine et

j'ai tenté d'en décrire la population (...), sans aucune réfèrence à une souce de ce monde

218 Idem, p. 157, 157-158, 158, 252-253 (os itálicos são nossos). 219 Cit. in COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., p.268. Clarifiquemos que Lanson foi um dos principais pioneiros da corrente filológica na crítica literária.

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(issue, par exemple, de l'histoire ou de la biographie). Ce que j'ai essayé de reconstituer

est une sorte d'anthropologie racinienne, à la fois structurale et analytique.»220

A partir daqui, as opiniões crisparam-se, as posições atomizaram-se e o universo

da crítica dividiu-se radicalmente, instaurando-se em pleno a guerra entre antigos e

recém-chegados, entre objectivistas e subjectivistas, entre conservadores e progressistas,

entre ortodoxos e heréticos. Tal como descreve Jean-Louis Calvet, personagem que

acompanhou de perto essa querela, as expressões públicas de apoio e/ou de recusa em

relação à interpretação e pressupostos inerentes a "Sur Racine" não se fizeram esperar,

ecoando através dos principais orgãos de imprensa franceses e não só:

«Dans Le Monde du 12 juin 1963, Pierre-Henri Simon prend ses distances avec

cette "virtuosité dialectique qui tour à tour (...) enchante et (...) inquiète", s'étonnand que

Racine ait si bien caché ce sens mythique de son texte "que personne jusqu'à present, et

pas même lui, ne l'ait aperçu". Mais la presse est dans son ensemble plutôt positive:

"Une lumière nouvelle sur l'univers racinien" pour Roger-Louis Junod dans La Tribune

de Genève, "Pour mieux aimer Racine" selon Guy Dumur dans France-Observateur,

"Quand la nouvelle critique s'attaque aux classiques" pour La Croix, et enfin "Roland

Barthes et le mythe de Racine" pour Robert Kanters dans Le Figaro Littéraire...

Quelques mois plus tard, à partir de janvier 1964, les revues entrent dans la danse: Le

Mercure de France approuve, La Nouvelle NRF applaudit. La Pensée ne se désolidarise

pas: "A cotê de divinations discutables, certaines vues plongeantes, en renouvelant

notre vision du monde racinien, font apparaître des aspects méconnus de l'oeuvre". Et

Critique, dans un article de plus de vingt pages consacré à la fois à Sur Racine et au

Dieu Caché de Goldmann, qui traite aussi Racine, affirme: "la critique liée au marxisme

et à psychanalyse est la seule à retrouver, de nous jours, le sens du tragique racinien

(...). La critique humaniste ne veut rien connaître en dehors du discours poétique lui-

même."»221

Enquanto surgiam estas reacções mais entusiásticas e positivas em relação à

nova crítica barthesiana, os porta-vozes da designada "crítica universitária" também não

220 Cit. in CALVET, Louis-Jean, Roland Barthes, Paris, Flammarion, 1990, p. 186 (os itálicos são nossos). 221 CALVET, Roland Barthes, op. cit., pp. 186-187 (os itálicos são nossos).

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perderam tempo na preparação das suas estratégias de defesa e de contra-ataque. Destes,

o primeiro a responder a Barthes foi Raymond Picard, professor de literatura na

Sorbonne e reconhecido crítico literário especialista em Racine, autor de "La Carrière de

Jean Racine" e editor de "Racine", obra integrada na prestigiada "Bibliothèque de la

Pléiade". Não tolerando o questionamento da instituição que ele representa - nas suas

palavras «ataquer l'Université fait partie du conformisme d'avant-garde dont M. Barthes

est une des figures marquantes»222 - assim como da atitude perante a prática crítica a ela

associada, Picard não se fica pelas suas respostas e acusações à nova crítica nos meios

de comunicação social e decide atacá-la de uma forma sistemática e determinada,

fazendo publicar um pequeno panfleto sob o título, bem ilustrativo da sua posição em

relação aquela corrente, "Nouvelle Critique ou Nouvelle Imposture?".223

Aqui, Picard tenta notoriamente subvalorizar a nova crítica barthesiana,

acusando-a de "se impôr opondo-se" e de ter "uma realidade menos intelectual que

polémica"224. A isto acrescenta que a "crítica universitária" de que Barthes fala é apenas

um "fantasma" por ele inventado para que tenha ao que se opôr, não compreendendo o

quê e/ou a quem a nova crítica ataca, nem qual o sentido do debate que tenta

empreender. Na sua opinião:

«O senhor Barthes ignora ou despreza sistematicamente os trabalhos

universitários; ele finge julgar que são todos inspirados por um lansonismo

empobrecido, desconhecendo assim tanto Lanson como a extrema diversidade dos

métodos actualmente praticados nas universidades; contra a crítica universitária,

fantasma que ele suscitou para demolir, repete as suas acusações por quatro vezes na

França e no estrangeiro, e reimprime-as em seguida em duas obras.»225

É curioso reparar, de passagem, como Picard se indigna com a atitude de Barthes

chegar ao ponto de difamar a crítica universitária francesa e o lansonismo não apenas no

seu país, mas até no estrangeiro! Perante estas acusações, Le Figaro Littéraire dá

oportunidade a Barthes de se defender publicamente, numa entrevista concedida logo

após a publicação do dito panfleto de Picard, onde ele refere que:

222 Cit. in CALVET, idem, p. 187. 223 PICARD, Nouvelle Critique ou Nouvelle Imposture?, Paris, Seuil, 1965. 224 Idem, p. 10 (os itálicos são nossos).

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«Picard prétend que la critique universitaire n'existe pas. A tort, car l'Université

est une instituition. Elle a son language, son système de valeurs, qui sont sanctionnés

par des exameurs. Il y a une façon universitaire de parler des oeuvres. Au demeurant,

Picard lui-même, dans sa préface aux oeuvres de Racine, parvue dans la Pléiade, part en

guerre contre cette critique universitaire. Quand j'ai relevé son existence, je ne pensais

pas à Picard, mais à certains universitaires qui ont écrit sur Racine en utilisant la vieile

méthode biographique. De toute façon, l'Université ne doit pas être sacralisée. On peut

la critiquer.»226

Retomando novamente a análise do panfleto de Picard, vale a pena reparar como

este representa e caracteriza a nova crítica:

«Eles referem-se a uma certa concepção da obra literária; consideram-na, com

efeito, como uma colecção de signos cuja significação está noutro lado, num outro lado

psicanalítico (fixado por exemplo na infância do escritor) ou num outro lado pseudo-

marxista de uma estrutura económico-política, ou num outro lado deste ou daquele

universo metafísico que seria o do autor, etc. E, claro está, este outro lado encontra-se

no próprio centro da obra, porque é a sua razão de ser. Assim penetrada, povoada,

obcecada por mundos que ela parece ignorar, e também prolongada, explicada,

justificada num além de si mesma, a obra deixou de existir na obra.»227

Pecado mortal para a crítica de ethos filológico: a especificidade da Literatura

que tanto proclama e que lhe é tão querida foi desrespeitada! Com base neste

pressuposto, Picard vai discorrer todo um rol de acusações à nova crítica em

constituição (por vezes, bem pouco agradáveis), das quais passamos a citar algumas das

expressões por ele utilizadas:

Acusa todas as obras recenseadas naquele paradigma, referindo-se

especialemente a "Sur Racine", como "imposturas", caracterizadas pelo "aleatório e o

bizarro", "intelectualmente vazias", "verbalmente sofisticadas" e "moralmente

perigosas", devendo "o seu êxito exclusivamente ao snobismo" ; chocam a moral,

225 Ibidem, pp. 83-84 (os itálicos são nossos). 226 BARTHES, in Figaro Littéraire, 14 de Outubro de 1965 (os itálicos são nossos). 227 PICARD, Nouvelle Critique..., op. cit., pp. 113-114 (os itálicos são nossos).

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fazendo constantemente intervir "uma sexualidade obcessiva, desabrida, cínica";

afirmam-se "pedantemente"; fazem "extrapolações aberrantes"; utilizam um "modo

intemperado, proposições inexactas, contestáveis ou absurdas"; põem em causa a

clareza com "o carácter patológico desta linguagem"; utilizam uma "gíria opaca" como

"instrumento de exibição", somente dando origem a "absurdos"; não é mais do que uma

"sabujice intelectual"; um "livro revoltante"; ferem a razão desobedecendo às "regras

elementares do pensamento científico ou mesmo, simplesmente articulado"; cometem

"excessos de inconsistência satisfeita", baseados num "reportório de paralogismos";

fazem "afirmações delirantes" e chegam a "generalidades abusivas"; traçam "linhas

inquietantes" devido à sua "extravagante doutrina", a qual resulta numa "inteligibilidade

desprezível e oca"; torna-se "perigosa"; desprezando o princípio da objectividade

chegam a "resultados arbitrários, inconsistentes, absurdos"; só dizem "absurdos e

bizarrias"; pautam-se pela "ingenuidade".228

Neste contexto, perfeitamente de acordo com os valores ideológicos dominantes

no fim do século XIX, princípio do século XX (Razão, Ciência, Objectividade e

Contenção) e por oposição ao "delírio subjectivista" de Barthes, Picard pretende da

prática crítica nem mais nem menos do que chegar à Verdade, plena de objectividade,

sendo a primeira definida como «acordo entre os espíritos» a a segunda obtida por

acumulação de factos, tendo o cuidado de «preservar, nas palavras, a sua

significação.»229 Quer isto dizer que, na sua opinião, o objectivo primordial da crítica

não é simplesmente fazer interpretações literárias, mas chegar a uma compreensão

literal. Nas suas palavras:

«Existe uma verdade de Racine, sobre a qual todo o mundo pode chegar a pôr-

se de acordo. Apoiando-se em particular sobre as certezas da linguagem, sobre as

implicações da coerência psicológica, sobre os imperativos da estrutura do género, o

investigador paciente e modesto chega a esclarecer as evidências que determinam por

assim dizer as zonas de objectividade: é a partir dali que ele pode - muito prudentemente

- tentar as interpretações.»230

228 PICARD, idem, pp. 11-12; p.30; p.39; 40; 47; 50; 52; 54; 57; 58; 59; 71; 73 e 75; 85 e 148; 92; 146; 147. 229 Ibidem, p. 45.

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Estas violentas acusações de Picard à nova crítica e os pressupostos que este

crítico partilha en relação à sua prática não ficaram sem resposta por parte de Barthes,

naquela mesma entrevista por ele concedida ao "Figaro Littéraire":

«Picard s'attaque aurtout à moi parce que j'ai écrit sur Racine, qui est sa

propriété. C'est sa chasse gardée. (...) Mais alors, les accusations de Picard prennent

quelque chose d'obstiné, d'obsessionnel presque. Sa critique (...) c'est le type même de

la critique biographique qui établit une relation systématique entre l'oeuvre et la vie de

l'auteur. Les nouvelles psychologies interdisent ce genre d'explication dont se servent

encore certains universitaires. (...) A partir d'une symbolique, je puis manier certaines

règles qui me permettent de retrouver les traits communs, l'unité profonde de symboles

apparemment différents. Picard refuse ces psychologies. C'est son droit. Moi, je parle

de Racine selon le language de notre époque, en utilisant l'analyse structurale et

psychanalytique, au sens culturel du mot. Entre parenthèses, Vatican II vient d'admettre

cette dernière, et je ne vois pas pourquoi la critique serait en retard sur l'Église.»231

Nestas circunstâncias, segundo Louis-Jean Calvet, enquanto «les intellectuels

"d'avand-garde" rient beaucoup de Picard, la grande presse au contraire l'applaudit.»232

Com efeito, o panfleto de Picard serviu como incentivo aos críticos de referência

dominante mais intimidados com os argumentos de Barthes a lançarem-se em força na

arena de combate, prestando obviamente palavras de apoio a Picard e de condenação a

Barthes. Eis algumas dessas imagens que passaram na comunicação social da época:

Jacqueline Piatier refere-se às «surpreendentes interpretações que Roland

Barthes deu das tragédias de Racine» como resultado de um «movimento do coração

que aquece a pena e a cobre de pontas assassinas», prosseguindo o seu comentário

congratulando-se com o «rigor, a coerência e a lógica de espírito» inerentes, na sua

opinião, aos argumentos de Picard.233

Jean Cau, por sua vez, demonstra a sua «vontade de abraçar o senhor Raymond

Picard por ter escrito (...) o vosso panfleto» e de «torcer o pescoço à nova crítica e

230 Ibidem, p. 69 (os itálicos são nossos). 231 BARTHES, in Figaro Littéraire, 14 de Outubro de 1965 (os itálicos são nossos). 232 CALVET, Roland Barthes, op. cit., p. 187. 233 In Le Monde, 23 de Outubro de 1965 (os itálicos são nossos).

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decapitar mesmo um certo número de impostores, entre os quais o do senhor Roland

Barthes.»234

Na opinião de Jean Duvignaud, «Barthes não poderia ter feito pior escolha que a

de escolher Racine para prolongar a sua investigação. (...) a maneira como ele aborda o

autor de "Phèdre" mutila tanto o poeta como o crítico.»235

Em Le XXº Siècle, o panfleto de Picard é apresentado como «um golpe bem

aplicado», atingindo o seu objectivo de «esvaziar» a obra de Barthes dos seus «excessos

desgraciosos».236

Na Revue Parlementaire, questiona-se sobre se «será possível, sobre a clareza

de Racine, construir um novo modo obscuro de julgar e demonstrar o génio? O

abstracto desta nova crítica, inumana e anti-literária (...).»237

Numa carta publicada no Le Monde, um seu leitor, de nome Edouard Guitton,

declara que «um certo livro da nova crítica está eivado de pecados contra a

objectividade. (...) o que me consola ou me tranquiliza quando me afasto das obras dos

senhores Barthes, Mauron e Goldmann sobre Racine, é saber que o teatro de Racine

sobrevive a estas exégeses.»238 Já há um ano atrás, o mesmo Guitton havia afirmado no

mesmo jornal a sua convicção de «que as obras do senhor Barthes envelhecerão mais

cedo que as do senhor Picard!»239

A Europe-Action caracteriza os protagonistas da nova crítica como «os que

substituem a análise clássica pela sobre-impressão do seu delírio verbal, os maníacos

da decifração, que pensam que toda a gente decifra como eles, em função da Cabala, do

Pentateuco ou de Nostradamus. A excelente colecção "Libertés", dirigida por Jean-

François Revel (...), atiçará ainda alguns ânimos, mas nunca os nossos.»240

É ainda de destacar alguns títulos referentes a esta querela241:

«Pearl Harbour da nova crítica»

«Barthes ao Pelourinho»

«Roland Barthes K.-O. em cento e cinquenta páginas»

234 In Pariscope, 27 de Outubro de 1965 (os itálicos são nossos). 235 In Nouvel Observateur, Novembro de 1965 (os itálicos são nossos). 236 In Le XXº Siècle, Novembro de 1965 (os itálicos são nossos). 237 In Revue Parlamentaire, 15 de novembro de 1965 (os itálicos são nossos). 238 In Le Monde, 27 de Novembro de 1965 (os itálicos são nossos). 239 In Le Monde, 28 de Março de 1964. 240 In Europe-Action, Janeiro de 1966 (os itálicos são nossos).

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«La Guerre des Critiques»

«La Guerre Civile des Critiques»

Todo este léxico de carácter belicista, apelando constantemente à condenação e

execução sumária de Roland Barthes, demonstra bem quer o escândalo que, na altura,

"Sur Racine" (com tudo o que esta obra representa em termos de valores acerca da

prática crítica) causou entre o sector mais conservador do universo da crítica, quer as

proporções tomadas pelo conflito entre os partidários da nova crítica e os seus

adversários. Mas tal conflito não ficou por aqui. Se o panfleto de Picard veio a agitar

fortemente o sector da crítica associado aos orgãos de imprensa de referência dominante

em seu favor, a resposta da vanguarda não se fez esperar, tendo surgido com a

publicação do manifesto "Crítica e Verdade" por parte de Barthes. O título que

apresenta esta publicação na revista Notre République torna-se bastante elucidativo

acerca do prolongamento e da intensidade desse conflito, comparando-o a um "match"

de boxe: «"Barthes-Picard": terceito round».242

Neste manifesto, Barthes tem a oportunidade de apresentar de uma forma clara e

sistemática não apenas os pilares fundamentais em que assenta a nova crítica que

propõe (já atrás explicitados), mas também as suas principais contestações à dita "crítica

universitária", as quais passamos a explicitar:

Acusa-a de retrógada - «teme qualquer inovação» -, de antiquada - «move-se no

interior de uma lógica intelectual onde não é possível contradizer o que vem da

Tradição, dos Sábios» -, de recatada como um polícia - «torna-se objecto de uma

vigilância especial por parte das instituições, que geralmente a mantêm sob um código

estreito» - e de conformista - para esta «os desacordos tornam-se desvios, os desvios

erros, os erros pecados, os pecados doenças, as doenças monstruosidades. Dada a

estreiteza deste sistema normativo (...)»243.

Nesta óptica, vai-se afirmar contra os que considera ser os mitos fundamentais

em que se alicerça este tipo de prática crítica, que identifica como sendo:

241 In Revue de Paris, Janeiro de 1966; L'Orient, Janeiro de 1966; Journal de Genéve, cit. in CALVET, op. cit., p.188; La Gazette de Lausanne, idem, p.189; Notre Rèpublique, idem, p. 189. 242 Cit. in CALVET, Roland Barthes, op. cit., p.189.

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- a Objectividade: «dizem que a obra literária comporta "evidências" que é

possível destacar com base nas «certezas da linguagem, nas implicações da coerência

psicológica, nos imperativos da estrutura do género». (...) Aquilo a que se chama (de

preferência ironicamente) "as certezas da linguagem" não são mais do que as certezas

da língua francesa, as certezas do dicionário. O problema (ou o prazer) está em que o

idioma nunca é mais do que o material de uma outra linguagem, que não contradiz a

primeira e que está, por seu lado, cheia de incertezas: a que instrumento de verificação,

a que dicionário poderá submeter-se esta segunda linguagem, profunda, simbólica, de

que é feita a obra, e que é precisamente a linguagem dos sentidos múltiplos? O mesmo

se passa com a "coerência psicológica". Qual a chave para a sua leitura? Há várias

maneiras de classificar os comportamentos humanos e, uma vez classificados, várias

maneiras de descrever a sua coerência (...). Resta-nos, como supremo recurso, a

psicologia "corrente", a que é reconhecível por todos e que por isso mesmo

proporciona um grande sentimento de segurança; (...) o que equivale a informarmo-nos

sobre um autor através da imagem adquirida que dele temos: bela tautologia! (...)

Quanto à "estrutura do género", gostaríamos de saber mais: de há cem anos para cá se

discute o termo "estrutura" (...). De que estruturalismo se trata? (...) Estas "evidências"

não passam, pois, de opções. Tomadas à letra, a primeira é desprezível ou, se se

preferir, impertinente (...). O mesmo sucede às outras "evidências": são já

interpretações, uma vez que supõem a escolha prévia de um modelo psicológico ou

estrutural; este código - pois trata-se de um código - pode variar; toda a objectividade

do crítico dependerá então, não da escolha do código mas do rigor com que aplicará à

obra o modelo que escolheu.»244

- o Gosto: «Como designar este conjunto de interdições que dependem

indiferentemente da moral e da estética e no qual a crítica clássica investe todos os

valores que não pode reportar à ciência? Chamemos, a este sistema de interdições,

"gosto". (...) É aqui que o gosto se revela de extrema utilidade: servidor comum da

moral e da estética, permite uma ponte cómoda entre o Belo e o Bem, discretamente

confundidos sob a égide de uma simples medida.»245

- a Clareza: «Certas liguagens são proibidas ao crítico, sob o nome de "gírias".

É-lhe imposta uma linguagem única: a «clareza». (...) trata-se de escrever um certo

243 BARTHES, Crítica e Verdade, op.cit., p.14; 16; 15; 17 (os itálicos são nossos). 244 Idem, pp. 18-21 (os itálicos são nossos). 245 Ibidem, pp. 23-25 (os itálicos são nossos).

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idioma sagrado, aparentado com a língua francesa (...). O idioma em questão,

denominado "clareza francesa", é uma língua originariamente política, nascida no

momento em que as classes superiores desejaram - segundo um processo ideológico por

demais conhecido - erigir a particularidade da sua escrita em linguagem universal,

fazendo crer que a «lógica» do francês era uma lógica absoluta. (...) Este mito foi

cientificamente demonstrado pela linguística moderna. O francês não é mais ou menos

"lógico" do que qualquer outra língua. trata-se de um idioma particular, utilizado por

um grupo definido de escritores, de críticos, de cronistas, e que decalca, no essencial,

nem sequer os nossos escritores clássicos, mas apenas o classicismo dos nossos

escritores. Esta gíria passadista não está de todo marcada por exigências rigorosas de

raciocínio ou por uma ausência ascética de imagens (...), mas sim por uma comunidade

de esteriótipos, por vezes rodeados e sobrecarregados até ao empolamento pelo gosto

por certas construções de frase e, evidentemente, pela recusa de certas palavras

afastadas, com horror ou ironia, como intrusas, vindas de mundos estrangeiros e,

portanto, suspeitos. Estamos aqui perante uma facção conservadora, (...) particular,

uma vez que as palavras estrangeiras não podem nele ser introduzidas (...), vê-se no

entanto promovida à dignidade de linguagem universal. (...) é um universal de

proprietários. (...) Na verdade, esta linguagem é clara apenas na medida em que como

tal é convencionada. (...) A gíria não é um instrumento de exibição como foi sugerido,

com uma inútil má-fé; a gíria é uma imaginação (e é, como ela, chocante), a

abordagem da linguagem metafórica de que o discurso intelectual um dia necessitará.

(...) O tabu que lançam sobre as outras liguagens não passa de uma forma de se auto-

excluírem da literatura (...).»246

- a Assimbolia: «Assim vai o verosímil crítico em 1965: é preciso falar de um

livro com "objectividade", "gosto" e "clareza". Estas regras não são do nosso tempo: as

duas últimas provêm do século clássico, a primeira do século positivsta. Deste modo se

constitui um corpo de normas difusas, semi-estéticas (vindas do Belo Clássico), semi-

razoáveis (vindas do "bom senso"): estabelece-se uma espécie de ponte tranquilizadora

entre a arte e a ciência, evitando que alguma vez se esteja plenamente numa ou outra.

(...) O antigo crítico é vítima de uma disposição que os analistas da linguagem

conhecem bem e a que chamam assimbolia: é-lhe impossível perceber ou manejar

símbolos, isto é, coexistências de sentidos; nele, a função simbólica muito geral que

246 Ibidem, pp. 28-34 (os itálicos são nossos).

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permite aos hoemens construir ideias, imagens e obras, é perturbada, limitada ou

censurada logo que se ultrapassem os usos estritamente racionais da linguagem. (...)

Não é razoável transformar a letra num império absoluto, para depois contestar, sem

prevenir, cada símbolo, em nome de um princípio que não foi deito para ele. (...) Mas

porquê, afinal, esta surdez aos símbolos, esta assimbolia? O que será, no símbolo,

ameaçador? Fundamento do livro, porque motivo o sentido múltiplo põe em perigo a

fala em torno do livro? E porquê, mais uma vez, hoje?»247

Confrontado com estas questões, Barthes procura entender as causas da recusa

manifestada pela estrutura universitária em relação à "crítica ideológica" ou à nova

crítica que propõe, pondo a hipótese (diga-se de passagem, nada descabida) de tal facto

resultar da acumulação na mesma instituição de duas funções não coicidentes: a função

de ensino e a função de investigação. Na sua opinião, é na medida em que a

Universidade dá notas e fornece diplomas que ela tem a necessidade de recorrer a

métodos críticos «que sejam facilmente avaliáveis nos seus resultados segundo critérios

medianamente (ou melhor, aparentemente) objectivos». E mais: a Universidade também

«precisa de uma ideologia que seja articulada a uma técnica suficientemente difícil para

poder constituír um instrumento de selecção; o positivismo fornece-lhe a obrigação de

um saber amplo, difícil, paciente; a crítica imanente - pelo menos - não exige, perante a

obra, senão um poder de espanto dificilmente mensurável: compreende-se que ela hesite

em converter as suas exigências».248

Nesta perspectiva, podemos aperceber-nos de que, para Barthes, a chave

fundamental para a resolução das questões que se colocara a si próprio, reside na

necessidade objectiva de mecanismos de selecção no ensino associado à crítica literária

(ou no ensino da Literatura propriamente dita): na sua concepção, vislumbra-se uma

acentuda oposição entre uma metodologia da carácter positivista, simultaneamente

difícil q.b. na sua aplicação para que cumpra a função de selecção inerente ao sistema

de ensino e suficientemente criteriosa e padronizada de maneira a facilitar o processo de

avaliação dos seus resultados, e as metodologias propostas pela nova crítica, as quais,

exigindo na sua diversidade sobretudo espontaneidade e perplexidade perante as obras

por parte de quem as aplica, tornam-se bastante difíceis de medir em termos de

classificação e avaliação os resultados que proporcionam, principalmente se tivermos

247 Ibidem, pp. 35-42 (os itálicos são nossos).

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em conta as tradicionais formas de mensuração da objectividade (das quais a nova

crítica deliberadamente se auto-exclui).

Trata-se, no fundo, de privilegiar na prática crítica a aplicação de um capital

cultural institucionalizado, conjunto de saberes e saberes-fazer institucionalmente

reconhecidos como legítimos, nomeadamente a nível da instituição universitária, e

passível de ser convertido e objectivado sob a forma de título escolar ou diploma,

"prova" convencional, constante e juridicamente garantida (e colectivamente

reconhecida) da sua posse; ou de um capital cultural incorporado, isto é, de um

conjunto de saberes e de saberes-fazer resultante de um lento trabalho individual

(embora sempre socialmente situado e condicionado) de mobilização, inculcação e de

assimilação de instrumentos simbólicos e competências culturais (e não apenas

estéticas), conjunto esse que não é passível de ser transmitido instantaneamente na

medida em que a sua aquisição, para além de exigir um avultado investimento em

tempo, é em grande parte feita de maneira dissimulada e inconsciente.

Mas também não podemos esquecer até que ponto a assumpção do "sentido

múltiplo" e da consequente subjectividade na crítica se torna ameaçadora da

legitimidade do agente que a pratica, na medida em que põe em causa a sua autoridade

simbólica sobre o leitor "comum", o privilégio da sua leitura em relação à daquele. Por

isso assistimos à estratégia accionada pelos críticos de referência comunicacional ao se

socorrerem de uma suposta idealidade do conceito (conceitos cuja posse e a

operacionalização legítima está nas suas mãos), afim de garantiram a objectividade do

seu discurso, a ilusão de fecharem a obra e, deste modo, a sua autoridade como leitores

ideiais ou competentes. Talvez daí a sua "surdez" aos símbolos.

Ora, descrito em traços gerais o conflito que, ao longo de toda a década de 60,

opôs a dita "crítica universitária" de raíz positivista à Nova Crítica explicitamente

assumida como ideológica, conflito esse que teve como principais personagens as

figuras de Roland Barthes e de Raymond Picard, torna-se então evidente até que ponto

tal fenómeno ultrapassa de longe a dimensão de uma simples querela inter-individual

(como algumas das suas interpretações sugerem), tomando proporções e uma tal

intensidade (bem patente na agitação massmediática e na violência verbal que lhe esteve

subjacente) que demonstram claramente como é marcante e como se encontra

248 BARTHES, cit. in COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., p. 269.

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cristalizada a clivagem que divide "objectivistas" e "subjectivistas" no campo da crítica

até finais dos anos 70.

Mas afinal o que é que esteve em causa neste aceso debate? Qual o seu principal

objecto de polémica? De uma forma sistemática e abreviada, podemos dizer que, em

primeiro lugar, se tratou de um conflito de éticas: à partida, o que nele se encontra em

causa são maneiras contraditórias de entender o que implica (ou o que deve implicar) o

acto de críticar, que valores e critérios devem estar subjacentes no exercício dessa

prática específica. Isto é, por outras palavras, decorre de visões divergentes no que se

refere à ética que deve revestir e presidir à prática da crítica. Mas não só. Com efeito,

podemos observar que aqui também se encontra nitidamente em questão a dominação

da dita "crítica universitária" ou "académica" no campo da crítica, a legitimidade de

uma certa forma de apreciar, avaliar e interpretar o objecto estético. Senão atentemos na

incomodidade de Picard perante a argumentação de Barthes, a qual, subversivamente,

vai corroendo os alicerces em que assenta o poder da crítica praticada a nível

institucional.

Nesta perspectiva, não é difícil entender que tal conflito não decorre apenas das

divergências que realmente acontecem no plano ético da prática crítica, mas também

resulta em grande parte da assimetria que caracteriza o posicionamento dos

operacionalizadores dessas respectivas éticas na estrutura de relações de força que

constitui o campo da crítica, visando sobretudo a defesa ou a conquista do monopólio da

autoridade na imposição da sua visão (da sua ética) sobre os restantes elementos do

campo (não apenas da crítica, mas também da arte em geral) como a visão

efectivamente legítima. Quer isto dizer que tais querelas não revelam somente

contradições éticas mas, e fundamentalmente, a um nível analiticamente mais profundo,

lutas de, ou melhor, pelo poder. Assim sendo, em última instância, a tendência ora para

afirmar a existência de valores e sentidos estéticos objectivos, ora a privilegiar uma

relação subjectiva com a obra, surge como racionalização de uma determinada posição

na estrutura de relações de poder subjacente ao campo da crítica, o que nos remete

directamente para a localização de cada um dos paradigmas atrás apresentados e dos

seus respectivos agentes na estrutura hierárquica do campo em causa, assim como para a

análise das suas condutas em função da posição que ocupam.

Para classificarmos os paradigmas filológico, comunicacional e metapsicológico,

assim como os seus respectivos operacionalizadores, do ponto de vista das posições que

detêm na estrutura de relações de poder que constitui o espaço da crítica, podemos

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socorrer-nos de dois indicadores que, para tal, nos parecem adequados: por um lado, a

sua antiguidade ou longevidade no campo, tendo em conta uma lógica cronológica de

sucessão paradigmática, baseada na ruptura de determinado paradigma com o

paradigma precedente; por outro, o seu carácter central ou periférico no campo, aqui

medido pelo grau de proximidade e aceitação de cada um dos referidos paradigmas em

relação à Universidade, pólo dinamizador, centralizador e legitimador do debate teórico

e metodológico acerca da prática da crítica desde a sua fundação e institucionalização

social, no seio do qual são votados e vetados os vectores dominantes que informam essa

prática através da apresentação e classificação das teses que os discutem e os

fundamentam, sendo a partir daí definida a sua legitimidade.

Face a estes dois indicadores, a classificação dos referidos paradigmas torna-se

evidente: no plano da antiguidade, temos obviamente o paradigma filológico firmado (e

afirmado) como tradição no campo, sendo por sua vez os paradigmas comunicacional e

metapsicológico os recém-chegados neste; do ponto de vista da sua proximidade e

aceitação universitária, se tivermos em conta que desde que o trabalho crítico e a

instituição académica aparecem associados, o primeiro é marcadamente atravessado por

uma profunda necessidade de aparentar cientificidade e de simular objectividade, o

paradigma filológico preenche de longe e incondicionalmente tais requisitos, adquirindo

por esta via um lugar central dentro do campo da crítica em relação aos restantes, seus

periféricos.

É nesta perspectiva que podemos dizer com Prado Coelho que «deste modo, o

paradigma comunicacional e o paradigma metapsicológico são sempre paradigmas

minoritários, definidos como desvios em relação ao paradigma dominante. Pertencem,

portanto, ao domínio das ciências minoritárias.»249 No entanto, se aprofundarmos um

pouco mais o corolário de Prado Coelho, podemos notar que apesar de recém-chegado

ao campo da crítica, o paradigma comunicacional não pode ser tomado como totalmente

periférico, encontrando-se ao mesmo nível do paradigma metapsicológico neste plano.

Isto porque ao preocupar-se em tentar satisfazer as exigências de cientificidade e de

objectividade requeridas pela instituição universitária, embora em moldes totalmente

diferentes dos pressupostos pelo paradigma filológico, o paradigma comunicacional

atinge uma maior notoriedade e legitimidade institucional, encontrando-se então bem

mais próximo do pólo de centralidade que é a Universidade no campo da crítica (isto,

249 COELHO, Os Universos da Crítica, op. cit., p. 17.

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claro, em relação ao paradigma metapsicológico) e, como tal, assumindo neste um lugar

que podemos considerar de semi-periférico.

Neste contexto, sobrepondo e relacionando os indicadores que acabámos de

expôr, torna-se fácil reconhecer como o campo da crítica, em termos de relações de

poder, aparece perfeitamente estruturado segundo o esquema proposto por Bourdieu

para a análise desta dimensão dos campos: temos o paradigma filológico (e os seus

respectivos operacionalizadores) a nele ocupar a posição dominante, o paradigma

comunicacional a assumir a posição de pretendente e, finalmente, o paradigma

metapsicológico como dominado. Assim sendo, tendo em conta que os interesses e as

estratégias accionadas pelos respectivos cultores e operacionalizadores destes

paradigmas nas relações que mantêm reciprocamente tendem a variar consoante a

posição ocupada dentro da estrutura de relações de força que constitui o campo,

podemos mais fácil e aprofundadamente entender a sua atitude perante a prática crítica e

o seu comportamento na luta de classificação (em termos do que pode ou não caber no

âmbito de tal prática) que a querela atrás descrita representa.

De facto, se atentarmos aos pressupostos básicos de cada paradigma e ao

material empírico que atrás apresentámos, vêmos efectivamente os protagonistas do

paradigma filológico a adoptarem um discurso de defesa da ortodoxia face à prática

crítica, visando o seu interesse de manter a doxa do campo (crenças e princípios nele

firmados e afirmados como tradição, aqui consubstancializados nos valores da

Cientificidade, da Clareza, da Objectividade, do Bom Senso e do Bom Gosto, do

respeito pela Verdade da Arte e da Literatura na sua especificidade supostamente

ontológica e, como tal, da Modéstia e Passividade do crítico), fundamento da sua

autoridade no campo. Vêmo-los também a operacionalizarem constantemente uma

estratégia de subvalorização e de ridicularização das acusações e princípios formulados

pela Nova Crítica barthesiana, estratégia essa que visa simultaneamente desacreditar a

legitimidade daquela corrente e conservar a posição privilegiada que, em termos de

dominação simbólica, eles próprios ocupam no estado de relações de força inerente ao

campo da crítica.

Por outro lado, os interesses e estratégias de sucessão partilhadas pelos

protagonistas do paradigma comunicacional, pretendentes aos lugares de dominação no

campo, são também bem visíveis: apesar de poder ser considerado um sector

"progressista" dentro do espaço da prática crítica (isto na medida em foi responsável

pela mudança radical do centro de interesse da prática crítica e do elemento de

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autoridade sobre a obra do pólo do emissor/criador para o pólo do receptor,

transformação essa que introduziu uma série de novas e pertinentes questões no âmbito

desta prática, pondo em causa muitos dos pressuposto básicos partilhados pela crítica

convencional, muitas das suas "evidências", vindo a quebrar o silêncio imposto por esse

sector da crítica), no paradigma comunicacional ainda existe uma acentuada tendência

para um desvio positivista e objectivista a nível dos requisitos exigidos aos resultados da

prática crítica. Assim sendo, tentando não se comprometer demasiado no que diz

respeito à questão da subjectividade do crítico e definindo, para isso, mecanismos que

supostamente exercem o controlo desta (alicerçados no princípio da idealidade do

conceito), vêmos os protagonistas deste paradigma a assumirem um discurso e a

utilizarem uma estratégia que visa uma inovação limitada e prudente, aceitando, no

fundo, os princípios e valores oficiais e institucionalizados no campo que tradicional e

convencionalmente fundamentam a autoridade simbólica do crítico perante o leitor

"comum" e perante a "ala subjectivista" do campo da crítica.

Por último, vêmos a Nova Crítica, materializada na figura de Barthes, a adoptar

plenamente uma estratégia de subversão, accionando mecanismos que tendem

nitidamente para a heresia, para a heterodoxia em relação à doxa estabelecida no campo,

pondo em causa todos os alicerces que a fundamentam. Qual é, então, o conteúdo das

suas heresias? Em que se firma, concretamente, a transgressão do seu projecto teórico?

Ao publicar "Sur Racine", Barthes viola um duplo tabu fortemente arreigado no campo

da crítica: por um lado, ele toca sacrilegamente em Racine, amplamente considerado

como sendo o último bastião da simplicidade e da clareza na literatura francesa, o

clássico dos clássicos, o mais escolar dos escritores, com a agravante de ser considerado

propriedade de Picard, seu adversário mais próximo e acérrimo; por outro, põe em

questão o sentido tradicional do acto de criticar, denunciando a demagogia inerente aos

valores partilhados e aos objectivos exigidos do exercício convencional da prática

crítica.

Ao analisar e criticar a obra de Racine, Barthes tem uma intenção bem precisa: a

de aplicar um método estruturalista, no sentido straussiano do termo, à obra daquele

autor, para que dela possam sobressair novos significados. Com vimos, na sua

concepção, toda a crítica implica a utilização de um sistema de referências, de um certo

ponto de vista, de uma determinada linguagem (que nunca poderá ser clara, dada a sua

própria estrutura simbólica), gestos que, para grande escândalo de Picard, implicam

sempre uma escolha, uma preferência subjectiva, uma posição ideológica. E por isso

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mesmo, Barthes acha imperdoavelmente naif por parte da crítica universitária

convencional pensar que alguma vez chegará ao "verdadeiro Racine", ao "Racine-em-

si", sonho utópico que, na sua opinião, assombra as críticas ditas objectivas.

Nesta sequência, o seu projecto teórico afirma-se como totalmente oposto à

tradição de ensino da literatura e de investigação crítica que existe desde há muito na

Universidade, atacando fortemente a atitude reaccionária desta e os mitos que a

informam - a Clareza, o Gosto, a Objectividade, a Verdade Literária, o Bom Senso e a

Passividade do crítico no exercício da sua prática - e afirmando novos pressupostos,

radicalmente diferentes ou em contradição com os anteriores - o princípio da Língua

Plural, o princípio da Subjectividade do Não-Sujeito, o crítico como produtor activo e

criativo de sentido, a crítica como forma de Literatura e como tomada de posição

individual, baseada em critérios não de objectividade mas de profundidade, rigor

analítico e performatividade, etc -, pressupostos esses que tendem a definir as principais

coordenadas da prática crítica actual.

Com efeito, apesar da articulação ainda existente entre a crítica e a instituição

universitária (onde os media vão cada vez mais procurar recrutar as suas ostes de

intelectuais-comentadores) estimular ainda hoje a "necessidade" de aparência científica

e de simulacro de objectividade nos resultados discursivos decorrentes daquela prática,

os eixos fundamentais que definem a Nova Crítica barthesiana tendem actualmente a

generalizar-se no âmbito de grande parte da crítica contemporânea. Daí que toda a

agitação e violência verbal que presidiu ao desenrolar da querela que envolveu Barthes

e Picard e que rapidamente se alargou e dividiu o microcosmos intelectual francês (e

não só), nos possa surpreender e parecer tão descabida hoje em dia.

A tendência para o reconhecimento generalizado dos princípios desenvolvidos e

valores partilhados por Barthes a nível da prática crítica como referência central no

campo que lhe é específico, é bem significativa nos depoimentos dedicados ao tema

Criticismo que, depois de tal conflito, têm vindo a ser publicados nos diversos orgãos de

imprensa ou sob a forma de colectâneas. Senão vejamos alguns excertos desses mesmos

depoimentos, bem ilustrativos e ilucidativos dessa tendência.

«A critic, however competent he may be, can never do the essencial work of

responding for us. He can suggest, persuade, put things in a fresh light, but it is always

left to us to try to listen to the voice of true judgement within - to make an act of self-

exploration often needing the most delicade and developed self-discipline. (...) is

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precise, definite, trenchant but never dictatorial (...). Practical criticism is no panacea,

but it offers one of the best chances we have of making literature something personal

instead of a set of teachings embodied in a series of admired authorities. (...) In

practical criticism, where the stress is less on erudition and more insistently on

personal response, he is most likely to begin to develop his capacity to read. (...)

Critical discussion is not often a matter of driving someone else from an

untenable position by irrefutable logic, though this may be involved in an ancillary way.

Rather, we are trying to discover our deepest response which the conscious, articulate

mind, preoccupied with a more superficial view, has been suppressing or ignoring. To

maker a real change of view is to feel an inner, answering assurance, an

acknowledgement that this is what we genuinely feel to be right. If we reach agreement,

we shall not have proved hard, incontestable fact so much as established an

understanding, a full and vital kind of sympathy. This is, of course, what the literary

critic seeks to do with his readers, and this aim should always decide the tone of his

writing. (...) Reading is a process of individual creative discovery, and the individual

with his particular temperament and personal experiense, can always add something

that is fresh and distinctively his own (...). They are simply accounts of how the

literature appears to one person.»250

«Language articulates humanity, and the valuables uses of language are

coextensive with the values we find in and give to our lives. It is thus inevitable that a

literary work, as verbal artefact, and as personal utterance, and as social expression,

should be indefinitely complex, and should have this indefinite complexity as a literary

work and not as something else. Appropriate discussion of it therefore is susceptible os

the same indefinite complexity; and if any part of such discussion is not to be called

"criticism" we have no other name for it. (...) There can be no method of establishing all

and only what has been done in a given work, because no restriction can be set on

questions and viewpoints: the critic may have to call on the full range of his sensitivity

and experience in affairs of life as well as in the world of books and ressources of

linguist skill. His limitation will be his limits of skill and personality, or limits he has

250 RAWLINSON (crítico literário), The Practice of Criticism, op. cit., p.xi, xiii, xv e pp.7-8.

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chosen, not limits imposed by the nature of critical interpretation.»251

«An awareness of the absense of standards of judgement independent of local,

cultural, historical, social, and other specific circunstances, and hence of the

impossibility of applying absolute criteria of any kind, does not mean that we cannot

reason about works of art within an ordered logical framework: we must merely be

aware of the relativity of that framework itself. In other wors: if the convention

concerned demands an inner consistency, it there are canons of taste or plausibility or

harmony or seemliness applicable to the artifact in question, it is possible to discuss it

within that convention, provided always that the limited validity of such a framework is

implicitly recognized, and at least occasionally made explicit. If there are no absolute

standards of judgement, similarly there are no absolute standards of critical

methodology. Here too the analogy with science must be recognized as fallacious and

as a source of error. There is not, nor can there be, one all-embracing method of

criticism, simply because there is no objective thruth to be uncovered; there is instead a

multiplicity of motivations and intentions in the discourse about art, spriging from a

wide variety of interests that underlie the desire to enter into the discourse. (...) Each of

these, in my view, is valid, so long as it is recognized that each deals with a different

aspect of a wide and multifarious subject matter and can yield results only in relation to

the intentions that originally motived its formation.»252

Para Morse Peckman, «...there is no immanent or necessary connection between

any work of literature and any interpretation of the work. On the contrary, the

possibilities of interpreting any work of literature are, if not infinite, at least indefinably

great.»253 Também para Roger Dadoum, a crítica hoje já não é entendida «comme

contrainte ou servitude (servitude imposée par le text, imposés par l'auteur, imposé par

la grille critique), mais au contraire comme voie de libération relativement au texte,

251 SPARSHOTT, Francis (crítico literário), "The Problem of the Problem of Criticism", in HERNADI, What is Criticism, op. cit., 1981, pp.10-11. 252 ESSLIN, Martin (crítico literário), "A Search for a Subjective True", in HERNADI, What is Criticism, op. cit., 1981, pp.203-205. 253 PECKHAM (crítico literário), "Three notions about Criticism", in HERNARDI, What is Criticism, op. cit., 1981, p.39.

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avec lequel on se met en quelque sorte à respirer: (...) la critique fait danser le texte.»254

Segundo Pierre Dux, o julgamento produzido pela crítica «sera purement

subjectif comme il est naturel - dans le domaine de l'art l'objectivité de jugement n'a pas

de sens - et, comme il est souhaitable, reflétera l'optique personnelle du critique.»255

Em sintonia com esta posição está também Marie Francoise Christout, para quem

«l'objectivité absolue est à peu prés impossible à attendre du critique, humain, trop

humain! qui même s'il s'efforce de porter un oeil détaché sur le spectacle, est au font de

lui-même soumis à des attirances, dominé par des prédilections qui, dans le meilleur

des cas, et, mise à part tout attache personnelle, parvient à définir, conscienment ou

non, les cannons esthétiques qui dominent son jugement.»256

Também os críticos da nossa praça demonstram já não acreditar nas

virtualidades científicas da sua prática, não detendo, por consequência, qualquer espécie

de ilusão quanto à objectividade dos enunciados discursivos que empreendem, no

sentido de neutralmente chegar a uma "verdade" única e perene acerca do significado e

do valor estético da obra. Na melhor das hipóteses, admitem deter uma resumida

margem de objectividade nas componentes informativas do seu discurso, isto é, na

apresentação do objecto ou evento que criticam, assim como na identificação dos seus

elementos morfológicos, materiais e/ou técnicos. De resto, nas suas componentes

interpretativas e judicativas, a subjectividade é vista por eles como uma inevitabilidade,

uns mais resignadamente que outros. Em relação àquelas "verdades universais" e

"objectivas" a que alguns críticos supostamente chegam, há a consciência de que estas

não dependem senão de consensos sociais em torno do que, aqui sim, objectivamente,

corresponde a determinados efeitos subjectivos decorrentes de uma leitura, efeitos esses

que evoluem progressivamente no espaço e no tempo no sentido de uma cada vez maior

concordância de subjectividades, sendo ao longo dessa dinâmica que vão adquirir o

estatuto de "efeitos objectivos", de "verdades universais". A lição do M. Barthes foi

bem aprendida.

No entanto, quer se sintam mais resignados, quer se sintam mais insatisfeitos

com a condição subjectiva do seu discurso, num ou noutro caso, ambos desenvolvem

254 DADOUN (crítico literário), "Pour une critique ironique (et tendre)", in Corps Écrits..., op. cit., p. 92. 255 DUX (crítico de teatro), "Reflexions sur la Critique Dramatique", ibidem, p. 103.

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estratégias e atitudes através das quais tentam controlar e arbitrar essa mesma

subjectividade, de modo a não caírem (como recomendava Barthes) num

impressionismo superficial e prejudicial para o seu próprio estatuto de receptor

privilegiado ou comentador credível, os primeiros tão somente na intenção de validar e

fundamentar as suas conjecturas individuais (assumindo o princípio barthesiano da

subjectividade do não-sujeito), os segundos crendo daí obter "ganhos de objectividade"

para a sua acção (assumindo um princípio que poderíamos designar de objectividade da

não-ciência, no sentido tradicional e positivista desta257): por um lado, há a tentativa de

desenvolver na abordagem da obra uma estratégia de distanciação do eu pessoal em

relação a um eu impessoal, recorrendo à operacionalização de determinados dados

históricos acumulados e de determinados instrumentos e critérios que, actualmente,

tendem a ser consensualmente vistos na comunidade académica como detendo um valor

cognitivo, senão mesmo científico; por outro lado, tentam ao mesmo tempo desenvolver

uma estratégia de aproximação e fidelidade constante à obra, nas suas mais variadas

componentes imanentes, num esforço de depuração dos efeitos subjectivos mais

desnecessários à enunciação crítica, porque de algum modo estranhos à obra, não

autorizados por ela. Isto é, retirar aquela prosa que se faz pela prosa e não pela obra.

A articulação virtuosa destas duas estratégias, trabalho que se faz sempre no fio

da navalha, pressupõe-se pautada por valores de "independência electiva" e de "abertura

estética", de "rigôr" e "aprofundamento analítico", de "argumentação informada" e de

"honestidade intelectual", valores esses que, mesmo que operacionalizados com

objectivos mais objectivantes, já não se encontram arreigados às noções de "verdade" e

de "neutralidade" associadas a uma prática crítica tradicional, de cariz positivista. O

esforço na operacionalização desses mesmos valores, na opinião dos nossos críticos,

será mais ou menos recompensado consoante o seu próprio treino, que pressupõe um

capital de experiência e de saberes diversos acumulado ao longo da sua trajectória

256 CHRISTOUT (crítica de dança), "La Critique Choreógraphique", ibidem, p.137. 257 O que se quer fazer ver com esta distinção é que, no fundo, ambos os princípios traduzem-se no desenvolvimento das mesmas estratégias, tendo porém na sua base motivações divergentes, consoante os objectivos supostamente a atingir sejam a objectivação ou a validação do discurso crítico, ou seja, a tentativa de um "ganho de objectividade" ou da "fundamentação da subjectividade". Esta diferenciação põe-se entre os críticos que, reconhecendo a interferência da sua subjectividade no discorrer da sua prática discursiva, ainda desejam e procuram, utopicamente, uma certa "objectividade" na análise do objecto que propõe; e aqueles que, do mesmo modo que reconhecem a inevitabilidade da condição subjectiva da sua prática, não consideram sequer desejável e/ou vantajoso (porque impossível e, como tal, desnecessária) a sua objectivação, procurando conscientemente aproveitá-la no sentido da análise produtiva da obra e, através das mesmas estratégias accionadas, apenas validar a sua argumentação, a sua ideia pessoal sobre, nunca objectivar.

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profissional que lhe permite, supostamente, uma maior gestão e auto-controle sobre a

sua própria subjectividade. É na base destes princípios que os críticos tentam negociar

as componentes de emoção e razão sempre subjacentes ao exercício da sua prática,

promovendo uma atitude que poderíamos designar, recorrendo à expressão de Herman

Parret, de pathos razoável258, fundamento da legitimidade do privilégio concedido à sua

recepção.

«Acredita na existência de uma crítica objectiva? Não, não acredito. Acredito

pura e simplesmente que é necessário nós definirmos as regras, as formas da nossa

própria subjectividade, para que ela seja mais ou menos conhecida pelos outros. Para

que a subjectividade possa ser decifrada enquanto tal. Sobretudo a subjectividade não

deve passar nunca por objectividade. (...) Ninguém exerce crítica como estivésse

situado num lugar atópico e acrónico, isto é, sem espaço e sem tempo. O próprio

espírito do tempo interfere bastante, dita leis, é coercivo nesse aspecto.» (António

Guerreiro, crítico de literatura no Expresso)

«É difícil, não é? Eu dantes acreditava, sabe? Se você me fizesse esta entrevista

há três anos atrás eu diria "Claro! Evidentemente!". Uma vez, numa entrevista com

uma jornalista do Sete, fui completamente bardina. O que eu disse aquela rapariga,

meu Deus!! Claro que não! Claro que não! A subjectividade pode é ser pautada por um

esforço de rigôr, por um esforço de honestidade. Agora objectividade... Para já, é

subjectivamente que eu vou ler a obra, e depois é com base na minha subjectividade

que eu vou criar um tecido de interpretação. Logo, subjectivo é desde a base, sem

dúvida. Da forma como eu entendo a crítica, ou seja, sempre pautada por regras, por

critérios visíveis de ombridade, esta subjectividade é a subjectividade de qualquer

intérprete, seja o intérprete da Bíblia, seja o intérprete de um texto poético, seja um

intérprete de que obra de arte fôr. Ora, a subjectividade é que fundamenta a

interpretação. Claro que há componentes de objectividade. Eu não vou chamar a uma

peça de teatro um quadro de pintor. Então eu estava passada dos carretos, tinha

perdido o controle das minhas capacidades de percepção, intelectuais, etc. Portanto,

dentro do bom senso, que é realmente aquela coisa larga mas ao mesmo tempo

apertada que condiciona a interpretação, eu vou procurar para cada objecto que me é

258 PARRET, "O Pathos Razoável", in Comunicação e Linguagens, nº 10-11, Março de 1990, pp. 189-

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dado ver, criar parâmetros de entendimento dele.» (Eugénia Vasques, crítica de teatro

no Expresso)

«Pode-se falar em objectividade em qualquer outra coisa? Objectivação!

Objectividade, acha que o telejornal é objectivo? Acha que as notícias são objectivas?

Então não sei, essa questão da objectividade é para aquele senhor que estava sentado

ali fora, para aqueles grandes pensamentos que ele tem, chamado Miguel Sousa

Tavares, isso é que deve discutir com ele. (...) Honestidade parece-me também uma

coisa importantíssima, de modo a poder exprimir essa sua sensibilidade da maneira

mais objectiva possível. Isto é uma asneira! Eu quando estou a dizer "objectivo" não

quero dizer... É de forma a objectivar aquilo que se sente. Ser-se honesto em relação

àquilo que se sente.» (Patrícia Cabral, crítica de literatura no Diário de Notícias)

«Eu gosto sempre de ressalvar que a crítica, no fundo, para nós sermos

honestos, temos que reconhecer que não passa de uma opinião pessoal. A crítica é

também, como a arte, um exercício de subjectividade. Não existe crítica científica, isso

foi um mito totalmente derrubado. Uma crítica não é por exemplo, como uma fórmula

química que sempre que você repete a experiência obtém sempre o mesmo resultado. A

crítica não é assim. É por isso que muitas pessoas se admiram de que quatro críticos

tenham opiniões absolutamente divergentes sobre o mesmo filme, ou o mesmo livro.

Portanto, não se pode dizer, no fundo... Quer dizer, dizer-se pode, não se pode é

documentar se uma coisa presta ou não presta. O que nós podemos é honestamente

exprimir a nossa opinião da forma mais fundamentada possível.» (Paulo Nogueira,

crítico de cinema no Independente)

«Um crítico é sempre "engagé", não "engajado", não comprometido

partidariamente, que não deve ser, quando olha para uma determindada obra de arte e

diz "Isto não é realismo socialista, detesto!, ou isto é Brecht e detesto". Não! Estar

aberto a todas as correntes, mas tem as suas preferências. Eu por exemplo, gosto do

teatro de texto, de emoções, de actores, embora também esteja aberto a outras coisas.

Mas claro que não vou dizer que sou imparcial, porque ninguém é. Eu gosto mais ou

menos daquilo que vejo a partir de um conjunto de pressupostos que me são mais

206.

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agradáveis a mim. Detesto coisas chatas. Tenho visto peças de sete horas que me

parecem que têm uma, e tenho visto peças de três quartos de hora que tenho a

impressão que têm sete. O tempo é muito subjectivo e a crítica também é, por muito que

se diga, é de facto.» (Tito Lívio, crítico de teatro na Capital)

«Só é objectiva no sentido em que informa. Mas se eu estou a dar a minha

opinião, a objectividade é um bocado relativa. Há pessoas que continuam a achar que

a crítica pode adquirir o estatuto de ciência. Eu desse lado não gosto nada. (...) Eu

acho que isso não existe. Pode-se ser independente, pode-se ser apartidário, pode-se

ser uma data de coisas, mas a visão é sempre nossa. É evidente que há factos que são

factos, e a partir daí, não há hipótese de os contornar. Mas depois, a partir daí,

formula-se a opinião sobre as coisas.» (João António Dias, crítico de literatura no

Independente)

«Objectividade não tem nada a ver com neutralidade. Pode não ter.

Objectividade tem a ver com tudo o que é o relacionamento com determinada obra em

termos objectivos, quer dizer, com aquilo que é, por exemplo, os processos de

construção implicados nessa obra. É objectivo dizer que não é acrílico e que não é

óleo, e que o acrílico se determina de determinado tipo de características físicas

efectivas, em termos de transparências e de não sei quê. A esse nível, há uma

abordagem objectiva, mas não me parece que seja esse o elemento mais determinante

da relação que se estabelece com a obra. (...) Não existe qualquer vontade de

circunscrever a crítica numa posição de não-subjectividade, não há qualquer vantagem

nisso.» (Alexandre Pomar, crítico de artes plásticas no Expresso)

«É caso para perguntar o que é a objectividade. A objectividade é um consenso,

é chegarmos a um consenso, em que não será só a opinião de um mas a opinião de

muitos, que nos leva a dizer que Picasso é um dos maiores artistas modernos do século

XX, senão o maior de todos. Há um certo consenso, isto acaba por ser objectivo. É

difícil rebater esta afirmação, já somos muitos a dizê-la. Mas para isso houve uma

prova longa, uma vida de artista de mais de 50 anos de prática. E em face dessa prova

longa é que hoje é possível dizer isso. Mas quando ele surgiu era uma grande asneira

dizer que o Picasso era o maior pintor do século XX. Era impossível dizer isso. Com a

distância do tempo, não há dúvida que é um dos melhres artistas do século XX e um dos

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maiores de toda a história da arte. Já podemos afirmar isso assim, mas para isso foi

preciso tempo. Portanto isso é objectivo, mas exige tempo e consenso, a convergência

de opiniões de pessoas com responsabilidade na matéria.» (Eurico Gonçalves, crítico

de artes plásticas no Diário de Notícias)

«Penso que o estudo das letras, ao abdicar das miragens de uma cientificidade

que nunca possuirá, deve assumir sem má consciência nem complexos de inferioridade

dois aspectos fundamentais: em primeiro lugar, a percepção de que todo o texto é

escrito para ser lido e que, ao pressupor essa leitura, ele só existe graças aos efeitos

que consegue criar ao nível de cada leitor individualmente considerado. Assim, aquilo

que alguns quiseram designar por "literalidade" (...) não se define abstracta ou

cientificamente, pois trata-se de um efeito subjectivo que varia de leitura em leitura e

que só adquire maior peso graças a uma progressiva confluência de subjectividades

que com o tempo se vão tornando mais (ou menos) consensuais.» Em segundo lugar, «a

consciência de que todo o sentido, ao transmitir-se, sofre um desvio, uma incessante

refracção que irreversivelmente o afasta daquilo que, no limite, corresponderia à sua

utópica ou pressentida verdade.» (Fernando Pinto do Amaral, crítico de literatura no

Público)259

«Conforme o ponto de vista em que nos colocamos, e colocamo-nos sempre em

algum ponto de vista, o cineasta X ou Y é bom ou mau, o livro X ou Y é bom ou mau, e

portanto a relação com a arte é sempre uma relação de valor. Isto é, objectividade é de

facto uma treta, porque não há ninguém que de repente se retire da sua própria

subjectividade e consiga, como se fosse desejável, o que de facto não é, manter uma

relação objectiva com os objectos artísticos. Aliás, fico sempre desconcertado quando

veja algum artista ou algum cineasta a pedir que a crítica tenha uma relação objectiva

com o seu próprio trabalho. Não tem, nunca terá, e acho que é bom que não tenha, nem

a procuro. (...) (a crítica) não é a revelação de nenhuma verdade, isto é, eu não tenho

nenhuma verdade para oferecer às pessoas sobre aquele filme. O que eu posso ter, e

tento ter, é a minha própria verdade na relação com o filme. Portanto, a crítica será de

algum modo algo que começa nessa relação, e que envolve um acto de exposição. Isto

259 Palavras citadas do seu artigo "O Céu e a Terra", in Ler, nº14, 1991.

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é, ao fazer uma crítica eu estou sempre a expôr algo que é muito meu, e que tem a ver

com essa relação com o filme. (...)

Depois, há factores de outra ordem, que têm a ver com os próprios elementos

que constituem o filme, isto é, eu tenho o mais possível de trabalhar com aquilo que

está no filme, com aquilo que o filme é, com aquilo que o filme me dá, e não com aquilo

que o filme poderia ter sido, ou que eu imagino que poderia ter sido. (...) a minha

relação com o filme não pode partir disso, tem que partir daquilo que eu encontro lá.

Isto para dizer que a tal relação singular que eu estabeleço com o filme tem, apesar de

tudo, modos de validade, e esses modos de validade, sendo obviamente discutíveis,

sempre discutíveis, jogam-se na relação directa com elementos específicos que estão no

filme e não com aquilo que poderia estar ou com aquilo que foram as intenções do

autor.» (João Lopes, crítico de cinema no Expresso)

«Poder-se-á falar de objectividade na crítica? Não. Pode-se falar em criação de

instrumentos que tendam a garantir a máxima objectividade. Instrumentos e atitudes.

(...) (a crítica...) não pode ser definitiva, tem que revelar os pressupostos da sua

construção, como o discurso científico. Se bem que a crítica não seja um discurso

científico... Como um raciocínio científico. (...) há uma implicação subjectiva, que eu

não estava a menorizar...» (João Pinharanda, crítico de artes plásticas no Público)

«Acha que a crítica poderá assumir o estatuto de ciência? Nunca. Nem a

ciência é ciência, é uma pura especulação. Tudo o que dependa da argumentação não

pode ter um critério científico, pelo menos em termos mais ou menos positivistas. Como

hoje em dia a própria ciência depende mais da argumentação do que da experiência, a

coisa é um bocado difusa. Eu valho o que valem os argumentos. E como eu disse, pode

aparecer um fulano a dizer exactamente o contrário com argumentos até, se calhar,

melhores que os meus. E quem é que tem razão? A objectividade não é mensurável,

pelo menos no cinema, por causa das emoções, por causa da ideia de arte, etc. Quando

se perde a medida, não sei se não se perde também a ideia de ciência. (...) é impossível

não ter preconceitos. Creio que uma crítica excessivamente apaixonada, e não estou a

pôr no excesso nenhuma carga pejorativa, deixa de ser crítica e, no entanto, pode ser

belíssimo. Estou a falar dos textos do João Bénard da Costa. Aquilo não é crítica,

porque aquilo, de facto, é uma divagação amorosa entre ele e aquelas pessoas. Mas já

não é crítica, ele próprio o reconhece. Aquilo é outra coisa, que por acaso é

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extremamente indefinível. Mas não é crítica, porque não tem nenhum lado de análise,

tem só um lado relacional, um lado puramente afectivo. Prescinde do rigôr. Aqueles

textos são muito pouco rigorosos, faz citações que não estão no filme, vê coisas que só

ele é que viu, mas isso é a força daquilo. (...) Agora, nunca por nunca a razão está

contra a emoção. Pelo contrário, alimentam-se uma à outra. Então como é que

consegue a objectividade na crítica? Se o filme trata de emoções, eu consigo aceder a

essas emoções, à verdade dessas emoções, mediante alguma bagagem de cultura

cinematográfica que sou suposto ter, e mediante alguma capacidade de raciocínio, de

razão que o filme possa suscitar.» (José Navarro de Andrade, crítico de cinema no

Público)

«É evidente que a crítica faz-se sempre de um ponto de vista pessoal. Por mais

objectiva que eu tente ser, sou eu que estou a escrever. Mas tem que haver uma

tentativa de separarmos as coisas, ou seja, se eu não gosto de policiais, tenho de

separar isso, tenho que arrumar isso quando estou a ler um policial, e tenho de tentar

distinguir porque é que aquilo é bom ou é mau. Não é a minha opinião que interessa

ali. Há, apesar de tudo, um certo número de regras e de princípios que são mais ou

menos abstractos e que nos podem levar a dizer se dentro daquele género é um livro

bem feito ou mal feito. (...) E como é que consegue manter essa objectividade? Isso é

treino, também. Podemos pôr a paixão entre parentesis e tentarmos ser objectivos ao

analisarmos as coisas. Há parâmetros para essas coisas, que são esses da construção

do livro, das personagens, do tipo de narrativa, como é que as coisas se articulam...

Falar do texto segundo as regras que há para se falar do texto literário é sempre uma

maneira segura.» (Tereza Coelho, crítica de literatura no Público)

«A crítica tenderá procurar a objectividade. Há sempre uma carga de

subjectividade muito forte. Eu julgo que se um dia, e espero que nunca aconteça,

existirem máquinas a fazer as críticas em vez de seres humanos, a critica será

objectiva, mas não sei se haverá alguma vantagem nisso. O próprio pendor subjectivo

daquele que se responsabiliza pelo que diz e por aquilo que ajuiza é uma componente

muito forte, isso faz parte da vida, nós não somos máquinas. (...) E como consegue

equilíbrio entre subjectividade e objectividade? É uma questão de treino também.

Naturalmente isso hoje é-me extremamente fácil, mas inicialmente não seria tão fácil.

Mas é uma questão realmente de treino, prática. Procurar o equilíbrio nessas

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situações. Muitas vezes acabei por escrever um adjectivo, eu risco pouco quando

escrevo, e de repente altero para outro porque pode ser mal interpretado ou porque tem

razão a mais ou coração a mais, e prefiro outro que possa ser entendível de uma

maneira, talvez quem sabe um pouco mais neutra.» (Fernando Midões, crítico de teatro

no Diário de Notícias)

«Pode-se falar de objectividade na crítica, mas existe também uma dose de

subjectividade, necessariamente. São indissociáveis. E de que forma é que consegue

estabelecer essa objectividade? Consigo estabeleccer essa objectividade da seguinte

maneira: pega num crítico com muita experiência, põe-no perante um filme de um

qualquer autor difícil, Woody Allen, apresente um filme dele a criticar a um novato e a

um crítico que já tenha trinta anos de experiência. E tem conclusões completamente

distintas, tem formas de análise completamente distintas. O que mostra que há certas

ideias que se vão sedimentando, como é natural, permitindo ao crítico fazer uma

análise tendo em conta tudo o que ele teve para trás.» (Francisco Perestrello, crítico de

cinema na Capital)

«Acho que sim. Eu acho que a objectividade é inerente à crítica... Como é que

eu hei-de dizer? Mas também não é importante que o seja a 100%. A crítica pode ser

um texto criativo, aliás é defendido pelo Barthes que o texto pode ser desmontado e

depois remontado, e que nessa situação de remontagem se possa introduzir uma certa

criação, portanto, o crítico transformava-se também em criador literário. A

objectividade aí tem as costas um bocado largas. Sim senhor, eu sou pela objectividade,

mas predominatemente eu penso que um texto pode ser desmontado e remontado e aí a

objectividade ser um bocado mal tratada. O que não é negativo, do meu ponto de vista.

E que formas é que encontrar para atingir uma maior objectividade? Por exemplo,

não sair do texto. Ler o texto, criticar o texto sem sair dele. Sem remontar ao autor nem

aos arredores do texto, quer dizer, aos elementos que possam ter interferido

perifericamente no texto.» (Júlio Conrado, crítico de literatura no Jornal de Letras)

«Sim, claro, a crítica tem que ser objectiva. Tem que ser, o que não quer dizer

que seja. A crítica impressionista e poética é uma crítica subjectiva. Agora, a crítica

deve ser objectiva, na medida em que ela se deve submeter à integridade do objecto da

própria crítica, ou seja, deve partir da integridade do objecto para elaborar o seu

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discurso. E não partir prioritariamente dos fantasmas do crítico. Nesse sentido, a

crítica deve ser objectiva. Portanto, no meu ponto de vista, a crítica de arte não é uma

crítica do gosto, não se trata de explicar ao público se se gosta ou não gosta de uma

coisa. Isso é relativamente fácil e, como tal, é desinteressante, não leva a lado nenhum.

Uns gostam e outros não gostam. Acha que a crítica poderá então assumir o estatuto

de Ciência? Sim, quer dizer, pode assumir um estatuto de ciência tal como as ciências

são hoje em dia, que são científicas até certo ponto, não é? (António Cerveira Pinto,

crítico de artes plásticas no Independente)

«Eu penso que o crítico quando trabalha, tenta ser o mais objectivo possível. Eu

penso que há parâmetros de objectividade essenciais. Por exemplo, perante a

instalação do Bob Wilson eu posso dizer muita coisa, eu não posso é fazer um discurso

sobre o branco (há uma dominância do branco na instalação). Dizer que o branco,

suponhamos, retrata uma imagem do corpo calcinado... Há parâmetros de

objectividade, não há objectividade. E há discursos completamente estemporâneos,

completamente exteriores à obra, que não têm nada a ver com a obra e que estão a

encher papel. Há exercícios líricos perfeitamente inúteis, que não se inserem em

nenhum dos parâmetros de objectividade. A ideia de estabelecer parâmetros de

objectividade é um pouco uma forma de dizer que não há objectividade, mas há

parâmetros de objectividade. Tudo o que está fora desses parâmetros de objectividade

corre o risco de se tornar prosa inútil, elocubrações meramente poéticas, sem qualquer

relação com o objecto em causa. (...) Também dependem dos a prioris, porque

herdamos todo um património conceptual que vem da crítica de arte, da história e da

filosofia, herdamos tudo, temos de trabalhar com tudo isso. E isso faz parte da

metodologia da crítica.» (Carlos Vidal, crítico de artes plásticas na Capital)

Nesta perspectiva, como podemos constatar, as apregoadas virtudes de uma

crítica, mesmo que académica, fundada em critérios de cientificidade e/ou articulada por

uma linguagem universalizante e objectiva, estão hoje em dia despidas que qualquer

credibilidade, tanto teórica, como prática. A pluralidade, a relatividade, a

individualidade e a subjectividade são valores que actualmente tendem a ser

tranquilamente assumidos no campo da crítica em geral, tendência essa que com certeza

não se encontra desligada das mutações que têm vindo a ocorrer a nível dos valores,

representações e concepções relacionadas com a noção de Ciência e de todo o

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vocabulário a esta comummente associado (noção de "certeza", de "verdade", de

"objectividade", etc), a nível da abertura da Universidade às novas ideias relativistas, e

nomeadamente a nível da própria noção de Arte, com a desmistificação da idealidade

desta e do suposto "olhar puro" ou "ontogenético" que, como tal, se exigia sobre ela. O

facto do crítico académico se ter deslocado da instituição universitária para as

instituições massmediáticas, deslocação que veio a modificar profundamente a sua

cultura profissional e as suas rotinas produtivas (em termos de espaço de

aprofundamento e de tempo de reflexão), é um importante factor que, com certeza,

também não se encontra alheio ao avultado ganho de lucidez que este conseguiu em

relação ao valor dos resultados da sua prática.

Pelo que nos é dado a observar, a querela Barthes-Picard não foi, de forma

alguma, uma batalha em vão, sendo os seus efeitos hoje bastante notórios. A partir dela,

não verificamos ter ocorrido uma ampla reestruturação no campo da crítica, ou seja,

uma profunda e acelerada mudança ao nível da estrutura de relações de força que vinha

desde há longa data a caracterizar aquele campo? Se tivermos em conta que, de facto, os

recém-chegados ao campo, conjuntamente com os sistemas de valores, normas e

princípios por eles promulgados em relação à actividade que exerçem, tendem

actualmente a adquirir uma maior centralidade, notoriedade e operacionalidade no

campo, assim como uma mais alargada visibilidade e reconhecimento público fora dele,

isto, claro, em comparação aos mais antigos e convencionais, tudo indica que sim. É a

mudança de testemunho que, de tempos a tempos, acontece nos lugares de dominação

de todos os campos por via das lutas, mais ou menos violentas, que neles se

desenrolam. E no caso concreto da República dos Críticos, o que assistimos nessa

Grande Batalha foi à vitória do desejo sobre a frigidez.

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V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegámos finalmente ao termo da jornada que decidimos empreender ao longo

dos tempos do espaço da crítica. Muito ficou, com certeza, por aprofundar e até mesmo

por referir e discutir, mas também nunca foi nossa pretensão tudo abarcar,

nomeadamente tendo em conta que este trabalho corresponde à 1º fase de um projecto

com mais largas ambições, como indicámos na nossa introdução. Bastantes questões

ficaram então, decerto, a pairar nas nossas mentes, atitude de resto salutar,

principalmente perante um universo tão pouco abordado na àrea disciplinar em que nos

achamos, como tem sido o da crítica.

Podemos dizer que os objectivos centrais deste trabalho consistiram, no seu

essencial em posicionar o lugar da crítica no sistema de acção colectiva em que se

fundamenta o jogo da nomeação, legitimação e consagração artística, dando conta,

simultaneamente, das funções e efeitos que a partir dele são cumpridas; em estabelecer

o enquadramento teórico-prático para a abordagem do espaço da crítica na sua

especificidade, tentando vislumbrar como é mantido e gerido o seu nível de autonomia

relativa face aos campos que com ele se interseptam; e, finalmente, em restituír, com a

preocupação de um olhar sociológico, o longo trabalho histórico que presidiu ao

processo de institucionalização e de autonomização desse espaço concreto que lhe é

hoje socialmente reservado - espaço esse, sem dúvida, fluído, considerando quer a

pluralidade de situações institucionais e àreas culturais em que tal prática intervém, cada

uma delas dotada das suas particularidades específicas, quer a diversidade de actos

envolvidos no seu exercício, os quais, ao serem valorizados e privilegiados de modo

diferente pelos seus agentes (consoante os seus respectivos sistemas de referências e

contextos de produção), vão consubstancializar diversas formas de desempenho da

prática crítica. Recordemos então, em tom de síntese conclusiva, os principais passos do

itenerário que percorremos.

Enquanto participante activo no sistema de acção colectiva que funda o mundo

da arte, começámos por situar o lugar do crítico como dispositivo institucionalizado de

mediação cultural, estrategicamente localizado entre a esfera de produção-criação e a

esfera de consumo cultural e, nesta medida, operando como destacado interface ou

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zona-filtro, sendo a sua intervenção importante no modo como se articulam as relações

existentes entre essas duas esferas que, apesar de separadas e relativamente autónomas

no respectivo quadro de existência material e social, são, como vimos, indissociáveis e

imprescindíveis uma em relação à outra para que a noção de arte viva e sobreviva. De

facto, a interferência constante e omnipresente da prática crítica, nomeadamente via

massmediática, no dito universo das artes e letras, funciona neste como um importante

mecanismo de arbitragem das relações que se estabelecem entre o pólo do sujeito

criador e o pólo do sujeito consumidor, proporcionando um contínuo acordo e/ou

reajustamento entre os quadros de referência, códigos de leitura e modelos de conduta

inculcados e operacionalizados face aos diversos artefactos que naquele campo são

fabricados.

Fazedora de encontros e desencontros, promovendo amores e desamores, a

acção social da crítica, todavia, não funciona apenas enquanto simples dispositivo de

mediação cultural, mas também, e sobretudo, como uma importante instância de

produção de realidade estética e artística. Efectivamente, ao pressupor um

investimento de sentido e de valor estético em determinados eventos e/ou artefactos

materiais, a intervenção discursiva do crítico detém o poder de os transmutar em

realidades artísticas ou, pelo menos, em realiades susceptíveis de serem discutidos no

âmbito desse julgamento, tornando-se assim numa das principais instâncias activas no

processo de produção simbólica dos objectos de arte.

As ficções cognitivas e modelos de apreciação que os críticos fabricam sobre a

realidade material com que se defrontam, dadas as suas várias componentes discursivas

(informativas, contextualizadoras, judicativas e analíticas ou de reflexão), a par do lugar

mediaticamente destacado por onde são difundidas e legitimadas, tenderão a instituir-se

socialmente como quadros de referência "legais" diante dos quais a realidade cultural e

artística poderá ser legitima e credivelmente aferida, ou seja, a partir dos quais os

agentes internos ou externos ao campo artístico poderão estruturar os seus valores e

representações acerca do que nele é produzido e orientar os seus interesses e actuações

estratégicas dentro desse mesmo campo.

Significa isto que a produção de discurso crítico implica sempre a incorporação

na sua matéria significante de noções, conceitos, representações, valores, normas e

princípios éticos e estéticos que, ao serem processados receptivamente, tenderão a ser

inculcados e a afectar os quadros de referência através dos quais os seus leitores

orientam a sua inserção social no universo das artes e letras, fornecendo modelos de

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compreensão e de apropriação simbólica do que nele é fabricado. Podemos, nesta

perspectiva, concluír que o crítico funciona como destacado operador entre a realidade

material e a consciência estética, concorrendo de forma determinante na produção

simbólica desta última.

Esta maneira de encarar a prática crítica enquadra-se perfeitamente, aliás, no

contexto das novas tendências de pesquisa sobre os agentes mediáticos em geral, as

quais tendem a conceptualizar actualmente os meios de comunicação social como

«instituições que exercem uma actividade-chave que consiste na produção, reprodução e

distribuição de conhecimentos (...), conhecimentos que podem dar um sentido ao

mundo, moldam a nossa percepção e contribuem para o conhecimento do passado e dar

continuidade à nossa compreensão presente.» Ajudam «a estruturar a nossa imagem da

realidade social a longo prazo, a organizar novos elementos dessa imagem, a formar

opiniões e crenças novas.»260

De facto, ao contrário do ponto de vista tradicional que considera a comunicação

de informação como relato, como mera transmissão - quase transparente - de um real

evidente (ponto de vista este associado à designada Teoria Hipodérmica e às suas

diversas versões desenvolvidas pela tradição americana de pesquisa sobre os meios de

comunicação de massa), o ponto de partida das actuais tendências de estudo sobre os

mass media baseia-se no pressuposto de que estes contribuem, de formas diversas, na

formação da noção que temos do real (material ou social), que eles próprios constroem,

fabricam, produzem grande parte das representações acerca da realidade que os sujeitos

possuem.

E o que significa tal forma de apresentar o problema? Segundo José Jorge

Barreiros, «falar de produção de real implica, desde logo, considerar que o

conhecimento e representações da realidade não são espontâneos, ocasionais ou inatos,

obra de uma qualquer natureza humana ou da vontade divina, mas produzidos

socialmente, fruto de influências, condicionamentos, orientações - indicativas ou

normativas - resultantes das múltiplas situações de inserção e relacionamento social em

que os sujeitos vão participando.» Resultam também, em grande parte, da actuação

estratégica e objectivamente orientada e orientadora de determinados «agentes sociais

portadores de algum grau de intensionalidade e com algum nível (poder) de intervenção

260 McQUAIL, cit. in WOLF, Teorias da Comunicação, op. cit., p. 13 e 126.

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(socialmente legitimado) no património cognitivo e cultural dos sujeitos e na

estruturação das suas práticas (sociais e culturais).»261

O crítico é, sem dúvida alguma, um destes agentes. A legitimidade que possui

por ordem das competências especializadas que se pressupõe deter, conjuntamente com

o poder simbólico que lhe advém dos meios de difusão e de circulação do seu discurso

que actualmente tem ao seu dispôr, são factores que, entre outros, o transformam hoje

num dos principais agentes intervenientes no processo de produção de realidade

estética, traduzindo-se a sua acção em consequências significativas ao nível da

formação da consciência estética dos indivíduos, dos modelos de apreensão e cognição

e sistemas de representações, valores e normas que a consubstancializam, assim como

ao nível da orientação e regulação da sua conduta social no campo das artes.

Em que consiste então, mais concretamente, a acção de produção de realidade

estética empreendida pelo crítico? Como opera este actor no processo de produção do

real estético? Como tivemos oportunidade de constatar, o trabalho social do crítico

implica desde logo a selecção e a apresentação pública dos acontecimentos e/ou obras

que considera passíveis de serem olhadas, pensadas e discutidas como artísticas,

actuando a este nível como mecanismo de gatekeeping no domínio das artes e letras.

Este mecanismo sugere desde já a importância que a dimensão visibilidade pública

intrínseca à prática crítica adquire hoje em dia, dando conta do facto de, actualmente,

serem susceptíveis de assumirem o estatuto de realidades estéticas e artísticas apenas os

bens ou acontecimentos que, triados por aquela instância, são mediaticamente

apresentadas e discutidas como tal, operando assim como mecanismo de controlo e de

protecção do acesso ao campo artístico.

Quer-se dizer com isto que o próprio acto de seleccionar objectos ou eventos

merecedores de destaque público em termos de discussão estética implica desde logo

uma mais-valia simbólica sobre os mesmos, a partir do qual é gerado o contexto de

apreciação, classificação e organização hierárquica destes na sua relação com outros

objectos e em função de critérios sempre histórica e contextualmente situados, sendo-

lhes atribuídos conteúdos e valores simbólica e socialmente diferenciados. Nesta

perspectiva, a acção do crítico revela aqui a sua importância fulcral como produtora de

visibilidade e de notoriedade pública sobre o artefacto ou acontecimento que realça

(assim como sobre a reputação social do respectivo criador), integrando-os na lista

261 BARREIROS, Imprensa Escrita e Produção de Real (Provas Académicas), Lisboa, ISCTE, s.d., p.

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daquilo que é publicamente considerado "necessário" ver, ter opinião e discutir em

termos estéticos.

Mas o crítico não se limita a orientar os seus leitores no sentido de informar

sobre que bens ou eventos eles se deverão prenunciar esteticamente. A sua acção vai

intencional e manifestamente mais longe, pretendendo também conduzi-los no modo

como poderão olhar, pensar e discutir sobre esses mesmos objectos, concedendo-lhes

pistas e possibilidades sobre a maneira, na sua opinião, mais "conveniente" ou

"adequada" de fruí-los, fornecendo-lhes determinados modelos de enquadramento

simbólico de apreciação e compreensão que, ao serem incorportados no património

cognitivo e cultural dos sujeitos receptores, vão servir-lhes como matrizes práticas de

referência perante tais objectos, aquando da sua apropriação material e/ou simbólica.

Nesta óptica, o crítico não se apresenta no campo artístico apenas como gatekeeper, mas

também como opinion-maker e taste-maker, na medida em que o objectivo central da

sua acção discursiva não se reduz à mera informação mas também, fundamentalmente, à

formação dos seus respectivos leitores, de maneira a proporcionar-lhes uma certa

competência estética e uma certa ordem de inteligibilidade que lhes permita uma fruição

mais profunda e activa do objecto que lhes é apresentado.

Daí que a intenção pedagógica inerente ao exercício da crítica também não

deixe de ter as suas consequências ao nível do processo de produção de realidade

estética: ao permitir-se e ao ser-lhe permitido, pelas competências estéticas que lhe são

socialmente reconhecidas, formular e divulgar publicamente as suas apreciações e

interpretações sobre determinados objectos ou eventos, o crítico não está, como é aliás a

sua intenção declarada, somente a tentar mobilizar a atenção e o interesse do seu

público específico perante tais objectos e/ou eventos, fornecendo-lhe pistas para uma

apreciação e interpretação dita competente; objectivamente, ele está também a operar

uma injecção de valor estético (passível de ser convertido em valor económico e social)

e de sentido(s) sobre os bens em questão, valor e sentido(s) esses que tenderão a fixar-se

publicamente como os legítimos, porque credíveis.

Assim sendo, a acção do crítico, nas suas componentes judicativas e

interpretativas - que passam pela atribuição de determinada cotação estética e conteúdo

significativo a determinada realidade material -, adquire uma considerável centralidade

no processo de produção de valor e de sentido(s) estéticos sobre os diversos artefactos

8.

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materiais pretendentes ao estatuto de artísticos, concorrendo em larga escala para a

aceitação, integração e consagração destes no interior de um artworld. Nesta

perspectiva, não podemos deixar de considerá-la como um dos principais dispositivos

sociais institucionalizados de produção de real estético, assumindo um papel

preponderante na construção quer da própria noção de realidade estética, quer dos

sistemas de normas, valores e princípios através dos quais aquela tende a ser aferida

pelos restantes agentes sociais, regulando o comportamento destes no universo das artes

e letras.

Interessa, no entanto, precisar que não pretendemos nunca, de todo, dar a

entender a intervenção social do crítico como uma interferência directa e automática,

como uma acção de imposição mecânica e determinista, como uma influência tipo

correia de transmissão em relação à qual os seus receptores se encontram necessária e

inevitavelmente sujeitos, conformando acrítica e passivamente a sua conduta no campo

artístico em função das apreciações e orientações cognitivas propostas nas versões

discursivas do crítico. Com efeito, a acção cultural deste agente social não resulta

imediatamente em doutrinamento, não constitui, inevitavelmente, palavra de ordem: se,

por um lado, o discurso que produz incorpora sempre determinadas referências

simbólicas subjectivamente investidas e socialmente diferenciadas, por outro, a

recepção e apreensão desse discurso por parte dos seus leitores implica sempre por

parte destes o reprocessamento cognitivo dessas mesmas referências nele veículados,

reprocessamento esse também realizado a partir dos respectivos sistemas de disposições

e pressuposições éticas e estéticas incorporados e partilhados pelos sujeitos

destinatários, podendo traduzir-se na concordância total, parcial ou nula com as

opiniões, apreciações e interpretações publicamente apresentadas pelo crítico.

Assim sendo, se entre os diversos sistemas de disposições e pressuposições

éticas e estéticas socialmente partilhadas e operacionalizadas nas esferas de produção e

de recepção de discurso crítico não existir, a priori, uma coincidência, uma afinidade,

um ajustamento mais ou menos perfeito, é provável que entre ambas as partes ocorram

múltiplas dissonâncias semânticas e hiatos culturais que virão, de alguma forma, a

comprometer a operatividade e a eficácia simbólica da acção persuasiva do crítico ao

nível da formação dos gostos e opiniões estéticas dos seus receptores, da estruturação e

actualização dos sistemas de valores, normas, representações e princípios estéticos por

estes partilhados, e da orientação pragmática das suas práticas e consumos culturais ou

mais propriamente artísticos.

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Daí a importância das ditas homologias que, no dizer de Bourdieu, tendem a

caracterizar as relações que se estabelecem entre o campo da crítica e o campo dos

orgãos de imprensa e destes, por sua vez, com os seus respectivos leitores, efeito esse

que vem proporcionar o reencontro entre a esfera da produção e a esfera da recepção ao

nível das "gramáticas" e dos diversos sistemas de disposições e pressuposições éticas e

estéticas inculcadas e operacionalizadas em ambos os pólos, reencontro esse

objectivamente necessário para que aconteça o fenómeno de semiose social previsto por

Véron na passagem de qualquer operação de produção de sentido e de valor sobre

qualquer matéria significante entre intérprete e receptor e, nesta sequência, para que a

acção persuasiva do crítico seja exercida com a máxima eficácia.

Por outro lado, interessa também realçar que o crítico não é, de modo algum, o

único intermediário activo, sequer o mais poderoso, no processo de produção de real

estético e artístico. As acções objectivamente concertadas e cúmplices entre toda a rede

de agentes mediadores presente no sistema de acção colectiva em que se funda o campo

artístico, embora tomem formas e conteúdos diferentes entre si e dos da prática crítica,

também interferem activamente naquele processo, esbatendo-se igualmente aqui a

ilusão da acção determinista e mecânica do crítico que, sem intenção, poderíamos ter

criado ao longo deste trabalho.

Convém, todavia, ter presente que: a visibilidade pública desta figura; a sua

omnipresença nos mass media e destes na nossa vida quotidiana, geradora de um misto

de familiariedade e de naturalidade perante a actividade crítica; o forte impacto

comunicativo e cultural do seu discurso por via da sua difusão mediática; a

acessibilidade (material) do seu discurso relativamente ao produzido por outras

instâncias de mediação e de produção cultural; a sua proximidade de instituições com

elevado grau de notoriedade e de credibilidade social (como a Universidade e os

Media); e as competências estéticas especializadas que tendem a ser-lhe socialmente

reconhecidas e exigidas, são factores que, reunidos, decerto contribuem na recente

tendência de crescimento da parcela de participação e de poder do crítico no modo de

funcionamento do campo artístico e nos consensos informais que a partir dele se

estabelecem em torno de determinados nomes, possibilitando o alargamento do grau de

eficácia da sua acção de nomeação e de consagração na esfera de produção artística,

assim como da sua acção de persuasão na esfera do consumo (secundarizando e

diminuindo a consciência e a resistência aos mecanismos objectivamente

manipulatórios inerentes à sua acção e aos efeitos sociais dela decorrentes enquanto

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prática de mediação) e, desta forma, a ampliação do significado e dos efeitos sociais da

sua acção de mediação cultural e de produção de real estético.

De facto, ainda que não entendamos a intervenção social do crítico de uma

maneira determinista, imediata e mecanicista, considerando que existem outros agentes

envolvidos e que os sujeitos não são receptores passivos e acríticos, provavelmente ela

constituirá uma das mais visíveis interferências mediadoras a nível do processo de

produção de realidade estética, detendo uma importante influência sobre o modo como

os indivíduos apreendem e valorizam esteticamente determinados artefactos materiais,

singularizam os seus criadores e reconhecem os seus méritos criativos, estabelecendo

com estes relações de afinidade em termos de "gosto" e de representações sobre a arte.

Quer isto dizer que embora não resulte necessariamente numa inculcação automática e

mecânica, a prática crítica nem por isso deixa de constituir uma das mais participantes e

eficazes intervenções no património cognitivo e cultural dos agentes sociais activos no

campo das artes, contribuindo em larga escala para a (re)organização e (re)configuração

dos quadros de referência a partir dos quais se opera a sua inserção social e se regulam e

orientam os seus interesses e estratégias neste universo.

Mas a preocupação analítica deste trabalho não recaiu apenas sobre a definição

das características e dos efeitos do lugar da crítica no campo da produção cultural e

artística, tendo também se orientado para a análise desse lugar na sua especificidade,

cuidando de justificar-lhe a pertinência da adopção do conceito de "campo",

considerando aí o seu grau de autonomia relativa em relação aos espaços que o

interseptam, nomeadamente nas condições actuais do exercício da crítica em Portugal.

Apesar de se caracterizar por um grau de codificação institucional relativamente fraco

(na medida em que não exige, à partida, a detenção de um título oficialmente

reconhecido, embora se note que esta vai sendo cada vez mais valorizado), vimos que o

direito de entrada no campo da crítica pressupõe objectivamente a incorporação por

parte dos agentes que lhe acedem de um conjunto de capitais culturais especializados na

área de intervenção onde se propõem agir (conjunto esse configurado em requisitos de

ordem teórica, técnica e histórica, de experiência prática sistemática com a área em que

irá intervir, de uma disposição de sensibilidade sobre os objectos culturais que se

propõem abordar e, finalmente, de ordem linguística e performativa), assim como a

posse de um capital social acumulado especificamente junto dos campos da arte e/ou do

jornalismo.

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É através do conjunto destes capitais instrumentais específicos que é operado o

processo de selecção, regulação e protecção do acesso ao espaço restrito da crítica,

conjunto esse que, reunido, não é a priori exigido nem ao criador de arte, nem ao

receptor cultural "comum", nem ao jornalista cultural, nem sequer a qualquer outro

intermediário cultural activo no campo artístico, constituíndo a sua posse referência

privilegiada no jogo de demarcações que o crítico empreende face a estes protagonistas,

seus concorrentes mais próximos na luta historicamente travada pela autonomia do seu

espaço de actuação. Se outrora o literato, por razão da sua contiguidade ao processo de

criação e do dom da palavra que lhe era reconhecido, detinha legitimidade para fazer

crítica fosse em que área fosse, hoje tal situação já seria difícil de conceber. O mesmo

acontece com o consumidor ou o jornalista diletante no mundo das artes, figuras que no

passado também ocupavam frequentemente os lugares destinados à crítica.

De facto, tendo em conta que o processo de autonomização do espaço da crítica

foi concomitante a um reforço, elevação e especialização de competências culturais

específicas, este encontra-se actualmente reservado a uma minoria, a uma certa

intelligentsia cultural, sendo a sua permeabilidade cada vez mais restrita. Já não basta

saber-fazer arte, gostar de arte ou deter uma certa familiaridade com o mundo da arte

para aceder ao lugar da crítica, importa sim saber sobre arte e saber racionalizar sobre a

arte, o que pressupõe a posse de determinadas competências e instrumentos a nível

histórico e conceptual que se irão traduzir numa determinada abordagem do objecto e

numa determinada linguagem sobre o objecto distinta, porque especializada, das que

supostamente seriam operacionalizadas pelos restantes protagonistas activos nesse

mundo.

Nesta perspectiva, é o reconhecimento social da posse e da legitimidade destes

capitais culturais por parte do crítico, que garante o "crédito" de autoridade que o

conjunto de agentes que se movem e se relacionam no campo artístico conferem àquela

figura, fundamentando toda a rede de crenças que a envolvem e se reforçam

mutuamente: a crença dos artistas na legitimidade dos críticos e dos seus veredictos, a

crença do público no valor estético por eles atribuido e para o qual eles próprios

contribuem, a auto-crença do próprio crítico na legitimidade da sua prática e dos efeitos

sociais e culturais que dela resulta.

A própria doxa em que se fundamenta o campo da crítica contemporânea

apresenta também características que traduzem uma preocupação de manutenção da

autonomia conquistada por parte dos seus agentes. Localizado numa zona de

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intersepção entre o pólo da criação e o pólo do consumo cultural, o espaço da crítica

estabelece com ambos os pólos relações privilegiadas na medida em que destas depende

a sua sobrevivência - o crítico necessita do criador na medida em que é este que fabrica

o seu referente discursivo, ao mesmo tempo que, sendo fundamentalmente representada

como actividade ao serviço do consumidor, a sua prática terá sempre como destino um

determinado público que a justifique e a legitime. Essas relações são hoje, no entanto,

estabelecidas tendo como matriz de orientação alguns valores fundamentais como sejam

os da independência, da abertura, do distanciamento crítico, do rigôr e do

aprofundamento.

No caso das relações mantidas com o pólo da criação, estes traduzem-se na

preocupação do crítico, no exercício da sua prática, em evitar militâncias e

contaminações decorrentes de cumplicidades vivenciais e de afectividades que

porventura poderá ligá-lo aos artistas criticados (como era corrente quando a crítica se

via aplicada na defesa incondicional de um dado grupo ou corrente estética),

preocupação essa que, como vimos, poderá tomar a forma de afastamento físico e/ou de

convivialidade artística pluralística. Desta forma, o crítico propõe manter a sua acção

interpretativa e judicativa relativamente autónoma das intenções programáticas

subjacentes à acção criativa. Já no caso das relações estabelecidas com o pólo da

recepção cultural, embora o crítico faça associar à sua prática uma certa atitude

pedagógica, esta não se traduz no abandono dos valores de aprofundamento e de rigôr

analítico e, consequentemente, não se compadece com o leitor que não detenha ele

próprio, a priori, os instrumentos necessários à compreensão do discurso do crítico. Ou

seja, a expressão da vocação pedagógica do crítica não pressupõe uma nivelação de

abordagem e de linguagem ao nível do receptor "comum", mas será este que, quando

interessado, deverá "esforçar-se" tentar acompanhar o raciocínio do crítico.

Isto porque o espaço da crítica, reivindicando-se da posse dos instrumentos

adequados a uma recepção cultural credível, porque aprofundada e rigorosa, estabelece

a partir do seu interior uma diferenciação qualitativa (e assimétrica) entre a fruição e o

juízo estético do receptor cultural "comum" e a do receptor especializado que se

pressupõe que ele seja, estipulando a existência de diversos níveis qualititivos e de

aprofundamento de abordagem de qualquer obra de arte. Fundamenta-se então o

princípio segundo o qual a abordagem estética da obra, no caso do consumidor cultural

"comum", baseia-se numa lógica de adesão emocional (que consiste numa atitude de

recusa ou de aceitação intuitiva) e de apreensão apenas táctil (que se resume ao acto de

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gostar), enquanto que, no caso do crítico, implica para além desta, que é donde parte,

uma lógica de inteligibilidade ou de racionalidade, que resulta no acto de compreender.

Deste modo, o espaço da crítica autonomiza-se no campo da recepção cultural e fecha-

se enquanto corpo dotado de uma autoridade própria, invocando para os seus agentes o

estatuto de experts, de receptores culturalmente privilegiados.

Todavia, dada a ausência de revistas e de circuitos de divulgação culturalmente

especializados, vendo a sua prática circunscrita ao espaço da imprensa generalista, os

críticos sentem, em Portugal, a insuficiência a nível das suas condições de produção e

de difusão discursivas como ameaçadora de alguns parâmetros da sua margem de

autonomia relativa, nomeadamente aqueles críticos que mais se distanciam em relação

ao que se poderá designar como crítica jornalística, valorizadora das componentes

informativas, contextualizadoras e judicativas em detrimento das suas componentes de

reflexão.

Este sentimento de privação acontece na medida em que se vêem muitas vezes

comprometidos a deixar para trás alguns dos princípios e critérios operativos mais

valorizados na sua doxa interna em detrimento dos próprios critérios orientadores da

lógica de funcionamento produtivo dos media, como se passa, por exemplo, em relação

ao princípio do prazer na selecção das matérias a criticar, que se vê substituído pela

obrigatoriedade ao princípio da actualidade mediaticamente interessante (que nem

sempre será, para os nossos críticos, equivalente à esteticamente mais interessante), ou

aos princípios da profundidade e rigôr analítico e da reflexão maturada, que se vêem

restringidos a espaços e a tempos demasiado curtos, assim como à aplicação de uma

linguagem mais simplificada, que não raramente obrigam a indesejadas abordagens

impressionísticas das matérias tratadas.

Isto sem esquecer que, frequentemente, a visibilidade mediática que em termos

gráficos é concedida pelos orgãos de comunicação aos eventos criticados, não é da

responsabilidade do crítico mas do jornal que os propõe, obedecendo mais a critérios de

importância jornalística associados à noção de acontecimento mediaticamente

interessante do que a critérios de relevância estética. Estes constrangimentos são,

todavia, atenuados, como vimos, logo desde o início, na fase de recrutamento do crítico

(sempre através de convite pessoal) - na qual o jornal tenta adequar ao seu espírito

programático e estilístico e entre os vários críticos disponíveis no mercado, o perfil que

mais convém (que será o mesmo que convém aos seus leitores) -, assim como, num

momento mais avançado, entre os vários processos de negociação que decorrem entre

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editores e equipas operativas de críticos, através dos quais são estabelecidos e geridos os

compromissos entre o esoterismo e subjectivismo dóxico do trabalho crítico e o

exoterismo e critérios de relevância noticiosa prescrito pelo trabalho jornalístico.

O nível de dependência que o espaço específico da crítica demonstra possuír em

relação aos constrangimentos externos provenientes do espaço mediático acresce ainda

na medida em que, fracassadas as tentativas associativas implementadas com o

objectivo estratégico de aumentar institucionalmente e a partir do seu próprio interior a

capacidade de demarcação e de auto-protecção do campo da crítica, ser o próprio campo

jornalístico a gerir as entradas e as saídas daquele espaço, assim como a aplicação do

sistema de sanções (como a expulsão do campo) e promoções (como a legitimação e

credibilização social da assinatura do seu agente) no seu interior. Mas também temos

que considerar que, não raramente, os seus superiores hierárquicos dentro do jornal, ou

seja, aqueles que detêm o poder na regulação das entradas e na aplicação desse sistema

de sanções, eles próprios serem ou terem sido protagonistas do espaço da crítica (como

acontece com os casos Alexandre Pomar e o João Lopes no Expresso, Paulo Nogueira

no Independente, ou Torcato Sepúlveda no Público), o que faz com que, em última

instância, a gestão do espaço da crítica não se encontre totalmente alienado ao espaço da

imprensa generalista.

Nesta perspectiva, embora nas suas actuais condições de produção e de difusão

em Portugal, o espaço da prática crítica seja bastante disponível às interferências (quer a

nível da contaminação da sua doxa, quer a nível da gestão e organização da sua

estrutura interna) decorrentes da sua total integração no campo alargado da imprensa

generalista, caracterizado por uma situação que poderemos designar de autonomia

ameaçada, denota-se a partir dele uma capacidade de gestão desses mesmos

constrangimentos através de múltiplas soluções de compromisso que demonstram a sua

vontade na preservação de um mínimo de autonomia relativa nas suas fronteiras e na

definição da sua doxa particular enquanto corpo social específico (e enquanto outras

alternativas não se vislumbrarem), dotado de interesses comuns e de uma legitimidade

relativamente soberana por via dos saberes instrumentais que lhe são exigidos e

reconhecidos, corpo social esse que reage como actor colectivo sempre que os seus

interesses são postos em causa. Nesta óptica, é um verdadeiro campo que se define ou,

pelo menos, que se pretende definir como tal.

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Quanto ao processo histórico subjacente à génese e autonomização deste corpo

social de especialistas, vimos que foi durante o Renascimento que o espaço da crítica foi

encontrar as suas proto-condições de possibilidade de emergência histórica,

nomeadamente junto do processo de legitimação da prática artística enquanto prática

intelectualmente informada e não apenas como prática artesanal. Neste âmbito, vêmos

surgir a partir do interior do espaço artístico uma prática discursiva com objectivos

teorizadores, intelectualizantes e implicitamente críticos em relação à arte (sob a forma

de Tratados, Elogios, Biografias e Comentários), tomada a cargo dos intelectuais-

humanistas da corte, primeira casta de letrados conhecedores de arte a reivindicarem-se

das competências legítimas para a aferição, compreensão e apreciação do objecto de

arte enquanto objecto dotado já não apenas de mão e suor, mas também, e sobretudo, de

espírito, de ideia, de génio criativo.

A valorização na prática artística de um saber técnico-teórico em detrimento de

um saber técnico-prático, veio assim possibilitar a instauração de um lugar social para

uma certa intelligentsia cultural (que se foi instalar nas academias que se propagaram na

altura), lugar esse que foi monopolizado pela figura carismática do intelectual-

humanista, a qual veio confiscar e intermediar o terreno da nomeação e consagração

artística até aí encontrado nas mãos dos nobres e religiosos, principais consumidores de

objectos de arte.

No entanto, foi somente com o processo de fragmentação e racionalização dos

saberes próprios do campo das artes encetado a partir do século XVIII, no contexto de

uma cultura iluminista que cultivava o poder ilimitado na Razão e que se insurgia contra

a arbitrariedade da mera opinião diletante e sensitiva que tendia a imperar entre os

comentaristas de arte, que a Crítica veio a institucionalizar-se como disciplina

autónoma, discurso específico e prática especializada, a par da Estética e da História de

Arte, suas companheiras disciplinares onde, embora orientando-se para objectivos

teórico-práticos distintos, muitas vezes passou a ir procurar elementos conceptuais para

a fundamentação da sua abordagem.

Na sua génese, vai ser no âmbito do espaço das Academias e dos Salões que

populavam com vivacidade nos principais centros de irradiação artística e cultural e,

consequentemente, das oportunidades discursivas que tais instâncias concediam (em

algumas publicações específicas, anuários, conferências e palestras por eles

organizados), que a prática da crítica emerge na sua especificidade e especialidade,

sendo daí por diante assumida como principal modalidade discursiva de imputação de

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sentido e de valor estético à obra de arte e de nomeação e consagração do seu respectivo

criador, em detrimento das tradicionais biografias e tratados. Assim sendo, já longe da

velha figura palaciana do humanista, vêmos a figura do crítico a institucionalizar-se

como especialista independente e a autonomizar o seu saber e a sua prática discursiva

sobre as artes em relação às que provinham dos campos religioso, científico ou até

mesmo artístico.

Não obstante ser durante o período setecentista que a crítica afirma a sua

indepedência como género discursivo relativamente autónomo de outros saberes e

práticas discursivas de temática artística, somente a partir de meados do século seguinte

é que a figura do crítico salta para a ribalta do mundo das artes e letras, tornando-se

personagem pública e imprescindível na sua dinâmica de funcionamento, vendo o seu

poder de intervenção largamente dilatado em relação ao século precedente. Tal

acontece, como vimos, na medida em que é por essa altura que se reunem toda uma

série de factores que, reciprocamente, irão convergir nesse desenlace.

Por um lado, encontramos a prática crítica a deixar de se circunscrever ao espaço

formal e privado da Academia para passar a integrar o espaço público da imprensa, que

começa a organizar-se segundo o padrão de mercado criado pelo processo de produção

capitalista e que, nesta medida, vislumbra no campo de produção cultural uma fonte

interminável de acontecimentos mediaticamenta interessantes e noticiáveis,

aproveitando o processo de reorientação da audiência da arte de uma elite hereditária

para um público mais geral que era tentado e, simultaneamente, estimulando alguns

mais a disfrutar com maior intimidade de formas de expressão que haviam sido

apanágio de categorias sociais culturalmente privilegiadas. Desta forma, saíndo do

espaço restrito da Academia e expandindo-se pelos muitos jornais quotidianos e

especializados que surgiam, a crítica vê substancialmente alargado o espaço dos

possíveis socialmente disponibilizado para si em termos de acção e de difusão pública,

assim como o seu poder de nomeação, legitimação e consagração no interior do campo

artístico.

Por outro lado, é também a partir de meados do século XIX que encontramos

alguns segmentos de artistas mais heterodoxos a decidir romper definitivamente com a

cultura da figuração que havia até aí dominado na Academia e se acomodado ao gosto

dominante do grande público. O objectivo destes movimentos de ponta era, em grande

medida, o de serem reconhecidos mais pelo seu pensamento pictórico do que pela sua

perícia técnica, entendida como submissão à Academia e à cristalização dos modelos

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estéticos. Pelo que o virtuosismo técnico e representativo deixa de ser um objectivo em

si e o experimentalismo ligado à vanguarda torna-se um experimentalismo de ordem

conceptual. Os movimentos vanguardistas do início do século levaram até às últimas

consequências esse egoísmo estético que já caracterizava os premonitórios artistas

românticos, conduzindo a arte a um fenómeno de comunicabilidade social não-imediata

em termos semânticos e valorativos, quer através da des-figuração da sua morfologia,

quer através da problemática objectualidade dos ready mades, quer ainda, mais

actualmente, pela desmaterialização do objecto artístico (Conceptualismo), ou pela

desvalorização das técnicas artísticas artesanais em favor das de reprodução industrial.

O processo de entropia artística empreendido a partir da acção estética destas

primeiras vanguardas, consubstancializado na transformação radical que aconteceu a

nível da sua morfologia e das técnicas de expressão nelas utilizadas ao pôr em causa

todos os seus referentes históricos e empíricos e a auto-referenciar-se, veio igualmente

acentuar a importância do lugar crítico no espaço das artes. Estigmatizadas pelas

instituições até aí consagratórias - mas já em falência - devido à sua intenção subversiva

de quebrar o ciclo da crença figurativa instalado, as suas acções vieram a ser

convertidas em acções artísticas, registadas e consagradas como tal, em grande parte

graças ao facto de terem sido perserverante e convictamente apoiadas e participadas

pela acção discursiva e intelectualizante do crítico, tido a partir daqui como o único

agente realmente habilitado a distribuir os elogios e as censuras, a apreciar e a des-

codificar essa nova arte que pretendia o incomensurável.

Efectivamente, a extrema ambiguidade na definição do estatuto dessas obras

como arte, deslocando os seus elementos institucionalizadores para domínios

imprevistos, foi pôr o artista na estreita dependência das instâncias discursivas que o

acompanhavam, as quais vão a partir daqui garantir o coeficiente de valor e de sentido

estético necessário ao reconhecimento estético do seu objecto e à sua consagração como

artista. Quer isto dizer que com as novas condições estéticas inauguradas, a recorrência

à palavra escrita tornou-se cada vez mais necessária, num jogo de permanente

articulação entre os actos de designação e de demonstração discursiva, como fiança do

coeficiente de valor e de sentido artístico da obra de arte, jogo esse que vai começar

desde logo pela assinatura do artista na obra e continuar no título que a acompanha -

gestos nominalistas e singularizadores da responsabilidade do próprio artista que, se não

vão de imediato garantir a passagem do objecto ao estatuto de arte, vão pelo menos

reservar-lhe a oportunidade de serem ajuizados e interpretados esteticamente, sem os

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quais tal pretensão não teria viabilidade -, para chegar finalmente a essa instância

decisiva que constitui o discurso crítico, no qual se concentra o poder de produzir as

condições mínimas de inteligibilidade para que tais objectos sejam publicamente vistos,

entendidos e apreciados como artísticos.

Torna-se então notório como a presença e a acção do crítico, designadamente do

crítico de vanguarda, ou seja, aquele que se consagra como tal na medida em que

consagra obras e criadores cujo valor e sentido estético é dificilmente apreendido pelos

amadores mais cultos ou até mesmo pelos seus concorrentes mais ortodoxos, veio a

adquirir uma relevância fulcral no campo artístico na viragem para o nosso século,

quando nele se começaram a desenvolver todo um conjunto de movimentos iconoclastas

em relação à tradição, os quais a crítica protegeu e estimulou do ponto de vista da

inovação estética, colaborando activamente na sua promoção social e legitimação

cultural como seu porta-voz.

Neste contexto, abre-se à crítica, a partir do final do século XIX, um espaço de

autonomia e um poder de intervenção bastante mais alargado em relação ao que detinha

anteriormente, agindo enquanto actividade especializada na produção de discurso

compreensivo e judicativo sobretudo sobre a arte contemporânea no espaço da

imprensa. Ao concentrar no seu perímetro o poder de designar e de demonstrar

discursivamente o sentido e o valor estético que faz existir a obra de arte enquanto tal, o

lugar da crítica torna-se num espaço simbolicamente investido no campo de produção

artística, necessário ser trabalhado no âmbito de qualquer movimento que se queira ver

reconhecido nesse estatuto. É nesta óptica que o crítico passa a ser uma presença

constante e necessária no seio das vanguardas, e já não na condição de diletante

eloquente dotado de dom da palavra, praticante de uma crítica literarizante, mas no

estatuto de especialista dotado de conceito, praticante de uma crítica teorizadora,

usurpando assim o terreno da crítica que até aí havia sido doado ao literato

(nomeadamente daquela que era promovida no âmbito do espaço público).

A ruptura destes movimentos iconoclastas com o sistema centralizado da

Academia veio paralelamente acompanhada da dissociação e/ou indiferenciação em

relação ao potencial público comprador e/ou contemplador das suas obras, público esse

que se alargava na medida do interesse de uma burguesia que crescia em quantidade e

poder em investir simbólica e materialmente em objectos de arte, mas numa arte segura

na sua legitimidade. Com efeito, ao pôr em causa todos os referentes históricos e

empíricos tradicionais da prática artística, as vanguardas deram origem a uma arte que

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já não fazia imediatamente sentido como tal entre esse público, massa anónima e de

vesgo olhar comercial a que o artista, em nome da sua irrevogável liberdade e

autonomia de criação, não se queria ver sujeito.

Tal situação faz, mais uma vez, com que a dependência dos artista em relação ao

crítico acresça, na medida em que irá ser esta personagem que, armado de uma atitude

pedagógica e civilizadora, virá a assumir-se (e será socialmente pretendido) como porta-

voz do programa e intérprete ou descodificador da obra destes artistas junto do público,

enquanto agente de enunciação programática e de recepção especializada e credível,

funcionando como agente mediador entre o mundo da artes e os seus público

potencialmente interessados. Dando a sua caução intelectual a tais artefactos, acção do

crítico vai chamar publicamente a atenção para o facto de que "afinal, aquilo também

será arte", explicando o seu ponto de vista justificativo.

Essa função de intermediário ao serviço do consumidor cultural ganhou ainda

mais primazia aquando da intensificação da mercantilização dos produtos culturais e da

dilatação das fronteiras da arte às comumente designadas indústrias culturais,

traduzindo-se não apenas em ganhos de inteligibilidade sobre os artefactos que eram

fabricados em ambos os pólos (que cada vez mais se encontravam), mas desdobrando-se

também em elementos de informação, contextualização e judicação que, de diversos

modos, viessem facilitar e orientar o trabalho de selecção do consumidor entre o

inumerável cultural que cada vez mais encontrava diante de si.

O alargamento e a valorização dos tempos de lazer como tempos susceptíveis de

investimento cultural também teve a sua cota parte de responsabilidade no acrescer do

valor de uso da prática crítica junto do consumidor, por quanto existe hoje uma

disponibilidade para a arte e a cultura em geral que não existia até à bem pouco tempo,

tendo-se dilatado substancialmente nos recentes anos, adquirindo uma centralidade

social que não detinha. Entrando no nosso imaginário colectivo como objecto de

consumo, investido de distinção social e de prazer cultural e intelectual, a arte e a

cultura tomaram uma centralidade enorme nos nossos dias, quer em termos teóricos,

quer em termos pragmáticos: o seu interesse já não revela uma atitude diletante e fútil

ou, pelo contrário, altamente sofisticada e intelectualizada, verificando-se quer no

domínio político, quer no nosso quotidiano.

É neste contexto profundamente marcado pela intensidade, pela complexidade e

pela pluralidade, quer a nível da produção cultural e de novas formas expressivas a

considerar como artísticas, quer a nível das instâncias para a sua respectiva legitimação,

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quer ainda a nível do seu consumo, que assistimos recentemente a uma ampla inflação

dos discursos críticos na nossa imprensa escrita, com os acontecimentos culturais e

artísticos a tornarem-se regularmente noticiados, comentados e debatidos como temas

na ordem do dia. Os discursos críticos tornam-se omnipresentes no universo das artes e

letras, sendo o processo de autonomização e de institucionalização que descrevêmos,

próprio para assegurar a existência e o reconhecimento dessa categoria, demonstrativo

de que o alto grau de especialização e o peso cultural cada vez maior da crítica até à

actualidade, corresponde a uma necessidade social objectiva e não pode ser considerada

uma actividade secundária, auxiliar ou parasita relativamente à própria arte.

O processo de institucionalização e autonomização do espaço da crítica que

descrevêmos e analisámos no seu plano propriamente social, foi paraleo a um

desenvolvimento teórico e paradigmático em torno do modo de conceber e de praticar a

crítica que, como vimos, também se traduziu ele próprio no desenrolar de um processo

pela luta autonomica. Se a prática da crítica, até ao século XVIII, se encontrava

associada a um conjunto rigoroso de regras que possuíam um valor de orientação

vinculativo e normativo (quer sobre os modos de produção artística, quer sobre os

modos de apreciação crítica), com a progressiva subjectivação da regra de arte,

sustentada pela tradição do novo, enquanto estética de constante inovação, instituída

pela modernidade, os códigos de descodificação e de apreciação crítica também se

desmultiplicaram.

Neste contexto, o fundamento de legitimidade na aferição crítica da obra passou

a encontrar-se já não junto de um conjunto de regras arquetípicas associadas a um ideal

de Beleza e de Representação objectiva da realidade material, mas junto da intenção do

autor, fonte de autoridade na determinação prévia do simbolismo da obra e, como tal,

supostamente reveladora do seu verdadeiro corpo de significado, sendo a sua

autenticidade e originalidade aferida na base de uma análise sincrónica e diacrónica da

produção dos artistas enquanto individualidades historicamente participantes de uma

dada época e de um dado contexto. Em contradição com este paradigma, a aproximação

da crítica formalista, de orientação idealista, veio, por sua vez, insistir no anonimato do

autor e na independência da significação estética da obra em relação à sua intenção.

Neste paradigma, a prática da crítica não teria de perscrutar fontes extra-estéticas

e exógenas à própria obra para descobrir a sua verdade intrínseca, pois se esta lhe era

intrínseca, somente através da sua análise meticulosa em-si-mesma e por-si-mesma, nas

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suas componentes formais e imanentes, se chegaria à sua essência perene,

transideológica e intemporal. Nesta óptica, se este último paradigma já pressupunha a

autonomia do trabalho crítico em relação às intenções do autor, silenciando-o e

exilando-o da relação privilegiada que mantinha com a obra, a ética positivista de que,

tal como o anterior, também partilhava, pressupunha porém o valor da objectividade

consubstancializado no apagamento pessoal do crítico como agente interventivo no

processo de produção de sentido e valor estético. A relação daquele com a obra deveria

ser totalmente isenta e neutra, de modo a permitir o trabalho de restituição de sentido

pretendido.

Em reacção a estas aproximações para-objectivistas, as várias teorias da

recepção vieram desmistificar a ilusão de objectividade na crítica, despromovendo o

Autor e a própria Obra como fundamento ou garantia de legitimidade do seu discurso, e

proclamando no lugar destas instâncias o receptor como elemento fundamental no

processo de significação e valoração estética. Assim sendo, no interior destes

paradigmas, já não irá ser o código da produção, na sua componente intencional ou

morfológica, que despotamente dita e impera sobre a descodificação empreendida pela

da crítica, é a própria crítica que, apesar de subjectiva mas enquanto instância de

recepção especializada e competente conceptual e performativamente, define a sua

legitimidade como instituição produtora de códigos interpretativos e apreciativos

legítimos.

Afirmando o princípio da polivalência semântica de qualquer obra de arte,

pressupondo a sua abertura no sentido em que as suas imagens exprimem um

significado particular consoante o espaço e o tempo em que são lidas assim como a

consciência de quem as recebe, o pensamento crítico, inicialmente submetido em termos

de poder à intenção do autor ou à própria obra enquanto causa ou origem de significado,

recupera então aqui o seu domínio e a sua independência, na medida em que a obra

passa a apenas poder exercer o seu poder no espaço de actuação que o crítico,

intersubjectivamente, lhe concede. E se no caso do paradigma comunicacional, numa

atitude de inovação reconciliadora, ainda se tentaria, derradeiramente, amarrar a crítica

à ilusão de um eixo de objectividade, na medida em que nele a operacionalização do

conceito pressupunha a depuração dos efeitos subjectivos do crítico sobre a obra, já

Barthes, esse herético inveterado, virá afirmar que a crítica nunca conseguirá atingir

senão uma anamorfose da obra que tem por referência, deformação inevítável essa que,

sendo constantemente vigiada durante a aplicação dos modelos conceptuais empregues

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na sua produção, se não pretenderá jamais passar demagogicamente por verdade

objectiva e pura, simultaneamente também não correrá o risco de caír na ordem do

subjectivismo ingénuo e impressionista.

É o limite da conquista da liberdade de acção e de expressão do crítico,

conseguindo assim autonomizar o seu próprio campo de legitimidade discursiva,

apreciativa e interpretativa já longe da referência à objectividade sobre a qual

anteriormente se fundamentava. Com efeito, a crítica já havia conseguido afirmar

totalmente a sua autonomia face ao espaço de criação e ao espaço da recepção cultural

"comum", pelo que a referência à objectividade tornava-se disponível na luta para

assegurar esse mesmo estatuto. Deste modo, vê-se assim consideravelmente aumentada

no seu grau de independência no que respeita à doxa que funda a relação entre o crítico

e a obra, resultado das lutas pela liberdade em relação aos campos científico, ao pólo da

recepção e ao pólo da produção artística, constituindo-se como espaço social

relativamente autónomo dos outros com que se intercruza e que o interseptam,

ocupando um corpo distinto de legitimidade social assente numa ordem específica de

dominação, a dominação sobre a ordem discursiva da aferição, classificação e

interpretação do estético.

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405

ANEXOS

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406

QUADRO Nº 1 (*)

TEMATIZAÇÃO DOS ARTIGOS DE OPINIÃO (%) (Diário de Notícias)

TEMAS

1979

1984

1986

Política Nacional Política Internacional Temas Económicos Comunicação Social Forças Armadas / Defesa Temas Científicos Temas Culturais / Arte Educação / Ensino Temas Sociais Segurança Social Ecologia / Ambiente / Nuclear Informação Geral Espetáculo/Cinema/Teatro/ Música Saúde Temas Religiosos Temas Laborais / Sindicalismo Turismo Terrorismo Novas Tecnologias Temas jurídicos Desporto Total

46.05 12.5 8.55 3.29 7.24 3.95 3.29 3.29 1.97 1.97 1.97 1.97 1.32 1.32 0.66 0.66 0.0 0.0 0.0 0.0 0.0

100.00

37.63 13.62 7.17 7.53 2.16 0.72 6.81 4.66 3.58 0.35 2.87 1.08 2.51 1.79 1.79 3.23 1.08 0.72 0.35 0.35 0.0

100.00

39.73 11.87 5.48 5.02 1.37 1.37

10.96 2.74 7.76 0.0

2.28 0.46 0.91 0.91 3.2 3.2 0.0

1.37 0.91 0.0

0.46

100.00

(*) FONTE: OLIVEIRA, Paquete , Formas de "Censura Oculta" na Imprensa Escrita em Portugal no pós 25 de Abril, Lisboa, ISCTE, 1988, p. 437.

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407

QUADRO Nº 2 (*)

TEMATIZAÇÃO DOS ARTIGOS DE OPINIÃO (%) (Expresso)

TEMAS

1979

1984

1986

Política Nacional Temas Jurídicos / Direito Comunicação Social Política Internacional Temas Económicos Temas Científicos Temas Laborais / Sindicalismo Temas Religiosos Temas Culturais / Arte Crónica Negra / Ocorrências Ecologia / Ambiente / Nuclear Novas Tecnologias Educação / Ensino Saúde Forças Armadas / Defesa Temas Sociais Total

22.5

16.13 0.0

4.85 9.68 3.24

14.52 4.85 1.62 1.62 6.45 1.62 8.06 3.24 1.62 0.0

100.00

23.08 10.26 5.13 5.13

17.95 2.56 0.0

5.13 2.56 0.0

2.56 2.56 5.13 0.0

7.69 10.26

100.00

56.0 4.0 4.0 4.0 4.0 4.0 0.0 0.0

12.0 0.0 0.0 0.0 0.0 4.0 8.0 0.0

100.00

(*) FONTE: OLIVEIRA, Paquete , Formas de "Censura Oculta" na Imprensa Escrita em Portugal no pós 25 de Abril, Lisboa, ISCTE, 1988, p. 438.

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408

QUADRO Nº 3 (*)

PROTAGONIZAÇÃO DE ENTREVISTADOS PERSONALIDADES ENTREVISTADAS (%)

(Diário de Notícias, entre Agosto de 1983 e Junho de 1984)

ESTATUTO PÚBLICO DAS

PERSONALIDADES ENTREVISTADAS

%

Artistas Economistas Eclesiásticos Escritores Gestores

Historiadores Jornalistas Militares Políticos

Nâo Identificados

Total

19.4 2.8 5.5

19.4 2.8 8.4 2.8 5.5

30.6 2.8

100.0

(*) FONTE: OLIVEIRA, Paquete , Formas de "Censura Oculta" na Imprensa Escrita em Portugal no pós 25 de Abril, Lisboa, ISCTE, 1988, p. 444.

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GUIÃO DE ENTREVISTA 1. Trajecto Profissional 1. Quando e de que maneira aconteceu começar a exercer a sua actividade como crítico? 2. E que razões o levaram a dedicar-se a essa actividade? 3. Em que jornais ou meios de comunicação social já exerceu a sua actividade como crítico? . Se já trabalhou noutros para além daquele que trabalha actualmente, quais as razões da(s) sua(s) transferência(s)? 4. Quando e de que forma se começou a interessar pela área artística em que hoje intervém como crítico? 5. Desde que iniciou a sua actividade como crítico, esta tem-se restringido à área artística sobre a qual trabalha actualmente? . Se não, sobre que outras áreas artísticas tem trabalhado? E a que razões se deve essa mudança de área de intervenção crítica? 6. No passado, que outras profissões já exerceu para além de fazer crítica? 7. E actualmente, para além da sua actividade como crítico, exerce alguma(s) outra(s) actividade(s), quer seja(m) relacionada com arte quer não o seja(m)? . Se sim, qual/quais? O que o leva a exercer essa(s) outra(s) actividade? 8. No caso de exercer mais do que uma actividade, de que forma encara a sua actividade crítica do ponto de vista profissional? 9. Caso a sua actividade como crítico seja exercida como uma actividade paralela/secundária, gostava de dedicar-se a ela a tempo inteiro? 2. Representações da Arte e do Artista 10. O que é para si Arte? Como definiria esse conceito? 11. O que é para si ser Artista? Como é que se reconhece um Artista? 12. No seu entender, um Artista possui características específicas que o tornam diferente das outras pessoas ou, pelo contrário, é uma pessoa como outra qualquer? 13. Na sua opinião, que requisitos determinado objecto deve preencher para que possa ser considerado artístico? 14. Considera haverem formas artísticas susceptíveis de serem consideradas «artes menores»?

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. Se sim, quais? E porque é que as classifica dessa forma? . Se não, porquê? 15. Para que um objecto seja susceptível de ser considerado obra de arte, acha importante que se trate de uma peça única? 16. Na sua opinião, acha que a criação artística é passível de estar inserida num processo de produção industrial ou de produção em série (limitada ou não)? Acha que os objectos culturais produzidos industrialmente ou em série (limitada ou não) são susceptíveis de poderem ser considerados obras de arte? Porquê? 17. A distinção que muitas vezes se faz entre Arte (com letra grande) e arte comercial faz algum sentido para si? . Se sim, de que forma? . Se não, porquê? 18. Quais pensa serem as consequências da actual tendência da crescente orientação da Arte para o mercado? Serão positivas ou negativas? Quais as positivas e quais as negativas? 19. Na sua opinião, existe um «mínimo denominador comum» na Arte em Portugal? Acha que existe o que podemos considerar uma Arte Portuguesa? Porquê? O que a caracteriza? 20. E acha que o crítico deve ter a preocupação de tentar proteger os produtos culturais que se fazem em Portugal em relação aos que vêm do estrangeiro? Porquê? 3. Representações da Crítica e do Crítico 21. O que entende por Crítica? Que actos implicam a acção de criticar? 22. Que características deve assumir, no seu entender, uma «boa crítica»? 23. No seu entender, qual a utilidade da crítica? Quais considera serem as suas funções no contexto do actual universo cultural ou artístico? 24. Considera a crítica como uma actividade mais ao serviço do criador ou do consumidor cultural? Porquê? 25. Quais são, a seu ver, as responsabilidades do crítico perante o leitor? 26. E quais são, no seu entender, as responsabilidades do crítico perante o criador? 27. Na sua opinião, o crítico deve preocupar-se em integrar o ponto de vista do autor/criador sobre a sua obra na crítica que dela faz? Cabe ao crítico explicitar a intenção do autor/criador na criação da sua obra?

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28. E o ponto de vista do leitor? Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com o leitor «normal» ou o leitor «médio»? 29. Exerce, exerceu ou alguma vez gostaria de ter exercido uma actividade artística como criador na área em que intervem como crítico? . Se exerceu ou gostaria de ter exercido, porque não seguiu? . Se não exerceu, porque não? 30. É comum ouvir-se dizer que os críticos são normalmente artistas frustrados ou falhados. No seu caso pessoal, identifica-se com esta afirmação? Porquê? 31. E pensando na generalidade dos críticos que conhece, concordaria com essaa afirmação? Porquê? 32. Se não concorda com tal afirmação nem no seu caso pessoal nem para a generalidade das situações dos críticos que conhece, porque será então uma ideia tão generalizada, esta do crítico como «artista frustrado»? 33. Como caracteriza, em traços gerais, o panorâma actual do universo da crítica? 4. O Poder do Crítico 34. Face à multiplicidade de protagonistas que hoje se movem dentro do universo das artes e letras, que poder afere à prática crítica? Como avalia o poder do crítico dentro do actual universo cultural? 35. É comum ouvir-se dizer que os críticos, pelo poder que detêm, são capazes de comprometer o êxito de um espetáculo ou arruinar uma carreira artística se publicamente manifestarem o seu desagrado face à obra em causa ou ao seu autor. Concorda? Assume para si essa responsabilidade? 36. Na sua opinião, em que é que se fundamenta a legitimidade do crítico para publicamente manifestar as suas opiniões estéticas? Em que se baseia a autoridade das suas apreciações? 5. A Formação do Crítico 37. Na sua opinião, que capacidades e/ou qualidades são necessárias possuir-se para se ser um bom crítico? Que tipo de competências este deve possuir para exercer essa actividade? 38. Provavelmente já ouviu criadores reclamarem que os críticos não deveriam escrever sobre o que eles próprios nunca praticaram. Concorda? Considera a experiência «nos bastidores da arte», digamos assim, necessária para um bom desempenho do trabalho crítico? 39. Considera necessário um crítico possuir algum tipo de formação académica relacionada com a área de actividade artística em que intervem? Porquê?

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40. No seu caso pessoal, possui alguma formação académica relacionada com a área de actividade artística em que intervem como crítico? . Se sim, qual? Onde e como a obteve? . Se não, nunca procurou obtê-la? Porquê? 41. Considera importante «credenciar» legalmente a profissão de crítico, ou seja, regulamentar juridicamente as competências exigidas à profissão de crítico? 6. Associativismo e Ética do Crítico 42. É membro de alguma Associação de Críticos? Porquê? . Se sim, que tipo de acontecimentos e/ou actividades organiza a Associação de que faz parte? Costuma participar nesses acontecimentos e/ou actividades? Com que objectivos? 43. Em que medida considera as associações de críticos importantes? 44. Na sua opinião, que princípios éticos devem orientar o crítico no desempenho dessa sua actividade? Com que limites éticos se deve preocupar quem faz da crítica profissão? 45. Quais são, na sua opinião, os principais «perigos» com que, do ponto de vista ético, o crítico se defronta hoje em dia? 46. Considera importante haver uma ética profissional legalmente regulamentada que oriente a actividade do crítico ou acha que a ética deste deverá estar vinculada às suas decisões pessoais? Porquê? 7. Rede de Relações do Crítico . Com os Criadores 47. Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido de artistas? .Se sim, que forma tomam esses contactos? (são relações de amizade, são apenas contactos profissionais, etc) Como caracterizaria esse círculo de artistas? Em que ocasiões se dão esses contactos? . Se não, porque não? 48. Normalmente conhece pessoalmente os artistas de cujos objectos/obras critica? . Se sim, de que forma isso se reflecte nas suas críticas? . Se não, é uma preocupação sua criticar apenas os trabalhos de quem não conhece pessoalmente? Porquê? 49. Os críticos são muitas vezes acusados de estarem organizados em «capelinhas» no universo cultural, de estarem integrados em grupos cujos membros vão privilegiar nas suas críticas desprezando ou maldizendo os membros de outros grupos. Concorda?

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50. Pensa que o facto do crítico manter relações de amizado ou contactos regulares com os artistas de cujos trabalhos critica pode de algum modo comprometer o resultado do seu trabalho? Porquê? . Com os Críticos 51. Mantém contactos regulares estáveis com outros críticos? . Se sim, que forma tomam esses contactos? Em que ocasiões se efectuam? Qual o objectivo desses contactos? Mantém esses contactos apenas com críticos da mesma área de actividade artística em que trabalha ou também de outras áreas? . Se não, porque não? . Com os Agentes de Comercialização 52. Mantém contactos regulares e estáveis com os agentes económicos ou de comercialização que intervêm na sua área de actividade artística? . Se sim, que forma tomam esses contactos? Como é que se estabelecem esses contactos? Em que ocasiões se efectuam? Qual o objectivo desses contactos? . Se não, porquê? 53. Quais são, a seu ver, as responsabilidades do crítico perante os vários agentes económicos intervenientes no mercado artístico (editores, galeristas, distribuidores, etc)? 54. É comum ouvir-se acusar a crítica de ser conivente com os vários agentes económicos do mercado artístico e com as suas manobras especulativas. Concorda? Não desempenhará o crítico também uma função económica junto do mercado de bens culturais? 8. O Estatuto do Crítico e o Estatuto do Consumidor Cultural 55. Na sua opinião, o crítico confunde-se por inteiro com o consumidor cultural «comum», chamemos-lhe assim, ou trata-se de um receptor ou consumidor cultural «privilegiado»? Porquê? 56. Na sua opinião, existe alguma diferença qualitativa entre a relação que se estabelece entre o crítico e a obra e a relação que se estabelece entre o leitor/consumidor cultural «comum» e essa mesma obra? . Se sim, que diferença é essa? . Se não, porquê? 9. Relação Crítico - Público 57. A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas? Dirige-se ao público em geral ou pretende atingir um público específico? . Se se dirige a um público específico, qual o seu perfil? Como caracterizaria esse público?

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58. O público para o qual dirige as suas críticas confunde-se totalmente com o público do seu jornal? . Se sim, porquê? . Se não, quais serão então as diferenças que encontra entre os leitores das suas críticas em particular e os leitores do jornal em que trabalha em geral? 59. O facto de supostamente atingir esse público faz modificar o «tom» da sua crítica? No fundo, que preocupações que tem com o público no acto de criticar? 60. Na sua opinião, acha que público a que se dirigem as suas críticas têm em conta os seus conselhos e opiniões? Qual a sua opinião acerca da sua fidelidade? 10. Relação Crítico - Jornal 61. Como é que se processou o seu «recrutamento» nos vários orgãos de comunicação social em que já trabalhou? 62. Porque é que acha que foi escolhido para nele trabalhar? 63. Quais são, a seu ver, as responsabilidades do crítico perante o orgão de comunicação social para que trabalha? 64. Pelo facto de trabalhar num jornal sente-se um jornalista? . Se sim, porquê? . Se não, que semelhanças e diferenças encontra então entre a figura do jornalista e a figura do crítico? 65. Sente-se de algum modo incomodado pelo facto de exercer a crítica num orgão de comunicação social? Porquê? 66. Quais são os condicionalismos, limitações ou pressões a que, na sua opinião, um crítico está sujeito pelo facto de trabalhar num orgão de comunicação social? 67. Qual a sua opinião acerca das novas formas de crítica que actualmente surgiram, como são, por exemplo, o «sistema das estrelinhas» ou o sistema das pequenas notas informativas e/ou de recomendação? 68. Qual a sua opinião acerca da crítica que se faz noutros jornais que não o seu? 11. Fase de Selecção das Matérias Criticáveis 69. De que forma escolhe os factos culturais que vai criticar? Quais os critérios que normalmente utiliza na selecção de acontecimentos ou objectos culturais a criticar? 70. O jornal para que trabalha interfere de alguma forma na fase de selecção dos factos culturais sobre os quais se deve pronunciar criticamente? Se sim, como interfere? E como reage a essa interferência?

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71. E quanto aos elementos constitutivos do próprio evento, o jornal dá algum tipo de indicação quanto ao que deve incluir, realçar e/ou omitir no seu discurso acerca desse mesmo evento? Que tipo de indicações? Costuma normalmente tê-las em conta? 72. Nesta fase de selecção de factos culturais, tem algum tipo de preocupação com o público ao qual vai apresentá-los criticamente? . Se sim, que formas toma essa preocupação? . Se não, porquê? 12. Fase de Elaboração do Discurso Crítico 73. Quais as suas principais preocupações ao elaborar/redigir um discurso crítico? 74. Tem alguma preocupação com o público que supostamente vai atingir quando escreve as suas críticas? Que forma tomam essas preocupações? 75. Acha que o crítico deve ter a preocupação de se fazer entender junto da generalidade do público? 76. A crítica é frequentemente acusada de uma certa arrogância, hermetismo e intelectualismo na sua forma de escrever, patente na falta de simplicidade e clareza do seu discurso. Concorda? 77. E o jornal para que trabalha, interfere de algum modo nesta fase de elaboração do discurso crítico? Como? 78. Costuma ter que dar a ler e a apreciar as suas críticas a algum representante do jornal? Se sim, a quem? Com que objectivo? 79. Depois de ler, é comum esse personagem aconselhá-lo a fazer alguma modificação no seu discurso? Se sim, que tipo de modificações são normalmente aconselhadas? 80. Como costuma reagir a esses conselhos? Tem-nos normalmente em conta? 81. Sente de algum modo posta em causa a sua autonomia ou liberdade como crítico quando isso acontece? Porquê? 82. Já alguma vez teve de modificar o conteúdo da sua crítica, em termos de opiniões e/ou apreciações, a conselho do jornal para que trabalha? O jornal já alguma vez o admoestou acerca de qualquer sua opinião nele expressa? 13. Relação Crítico - Obra Criticada 83. O que é que busca na obra a que se propõe criticar? 84. Como avalia esteticamente uma obra? Quais são, na sua opinião, os princípios ou critérios básicos por que se deve orientar a avaliação estética de qualquer obra?

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85. Quando pretende avaliar uma obra do ponto de vista estético, tem em conta apenas a sua «forma» ou também o seu «conteúdo»? 14. A Objectividade e a Subjectividade na Crítica 86. No seu entender, o crítico deve manter com a obra a que se propõe abordar uma relação o mais neutra possível ou, pelo contrário, uma relação «apaixonada»? 87. Poder-se-á falar de objectividade na crítica? Acredita na existência de uma crítica objectiva? . Se sim, como e até que ponto? Acha que a crítica pode ou poderá assumir o estatuto de Ciência? O que garante então a objectividade na crítica? Qual a forma de neutralizar ou restringir a subjectividade na crítica? . Se não, porque não? Assume então uma crítica sempre totalmente subjectiva? 88. E que espaço reserva para a criatividade na crítica? 89. Pensa que a crítica pode tornar-se ela própria uma forma de literatura? . Se sim, não acha que dessa forma o crítico é susceptível de tornar-se rival do criador, confundindo-se essas duas personagens? 15. Imagens da Segmentação do Campo da Crítica 90. Como designa e caracteriza o «estilo» de crítica que faz? 91. Tem notado modificações nesse «estilo» desde que iniciou a sua actividade crítica? Quais? Ao que se devem essas modificações? 92. O Universo da Crítica não é, decerto, homogéneo. Como acha que esse universo aparece segmentado? Que tipos diferentes de críticos consegue identificar? 93. Alguns críticos sugerem existir um divórcio entre duas supostas formas de intervenção crítica: uma jornalística e uma académica. Concorda com a existência desta clivagem? 94. Que vantagens e desvantagens encontra no facto da crítica se fazer num contexto académico? 95. E que vantagens e desvantagens encontra no facto da crítica ser exercida num contexto massmediático? 16. Ficha de Caracterização Sociográfica 1. Idade: /___/___/ 2. Sexo: M /___/ F /___/

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3. Estado civil: Solteiro /___/ Casado /___/ União de Facto /___/ Divorciado /___/ Viúvo /___/ 4. Profissão principal: ___________________________________________________ 5. Habilitações literárias: __________________________________________________ 6. Profissão do pai: ______________________________________________________ 7. Profissão da mãe: ______________________________________________________ 8. Profissão do Cônjuge: __________________________________________________ 9. Estatuto no jornal para que escreve: ______________________________________

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CATEGORIAS DA GRELHA DE ANÁLISE DAS ENTREVISTAS - Trajectos - Especialização - Profissionalização - Associativismo - Ética - Poder - Fundamentos da legitimidade e da autoridade - Competências - Representações da Arte - Critérios de Avaliação Estética - Artes Maiores / Artes Menores - Reprodutibilidade / Raridade - Arte / Mercado - Representações da Arte Portuguesa e Proteccionismo - Representações do Artista - Representações da Crítica - Funções da Crítica - Relação Crítico - Criador - Estatuto do Crítico e Estatuto do Consumidor Cultural - Relação Crítico - Público - Relação Crítico - Agentes Económicos - Relação Crítico - Jornal - Selecção das Matérias Criticáveis - Fase de Elaboração do Discurso Crítico - Relação Crítico - Obra - Objectividade - Subjectividade - Relação Crítico - Crítico - Clivagens no Campo da Crítica. - Tendências Recentes no Campo da Crítica

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1. Trajecto Profissional 1. Quando e de que maneira aconteceu começar a exercer a sua actividade como crítico? 2. E que razões o levaram a dedicar-se a essa actividade? 3. Em que jornais ou meios de comunicação social já exerceu a sua actividade como crítico? . Se já trabalhou noutros para além daquele que trabalha actualmente, quais as razões da(s) sua(s) transferência(s)? . Se trabalhou sempre no mesmo orgão de comunicação social, quais as razões da sua permanência? 4. Quando e de que forma se começou a interessar pela área artística em que hoje intervem como crítico? 5. Desde que iniciou a sua actividade como crítico, esta tem-se restringido à área artística sobre a qual trabalha actualmente? . Se sim, porquê? . Se não, sobre que outras áreas artísticas tem trabalhado? E a que razões se deve essa mudança de área de intervenção crítica? 6. No passado, que outras profissões já exerceu para além de fazer crítica? 7. E actualmente, para além da sua actividade como crítico, exerce alguma(s) outra(s) actividade(s), quer seja(m) relacionada com arte quer não o seja(m)? . Se sim, qual/quais? Porquê? O que o leva a exercer essa(s) outra(s) actividade? . Se não, porquê? 8. No caso de exercer mais do que uma actividade, encara a sua actividade crítica como a sua profissão principal ou como uma actividade paralela/secundária, como uma actividade de «recurso», como um «trabalho-extra»? Ou tem outra forma de encarar essa actividade? 9. Caso a sua actividade como crítico seja exercida como uma actividade paralela/secundária, gostava de dedicar-se a ela a tempo inteiro? Porquê? 2. Representações acerca da Arte e do Artista 10. O que é para si Arte? Como definiria esse conceito? 11. O que é para si ser Artista? Como é que se reconhece um Artista? 12. No seu entender, um Artista possui características específicas que o tornam diferente das outras pessoas ou, pelo contrário, é uma pessoa como outra qualquer?

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. Caso seja diferente, que características são essas? . Caso seja uma pessoa como outra qualquer, porque assim o considera? 13. Na sua opinião, que requisitos determinado objecto deve preencher para que possa ser considerado artístico? Porquê? 14. Considera haverem formas artísticas susceptíveis de serem consideradas «artes menores»? . Se sim, quais? E porque é que as classifica dessa forma? . Se não, porquê? 15. Para que um objecto seja susceptível de ser considerado obra de arte, acha importante que se trate de uma peça única? Porquê? 16. Na sua opinião, acha que a criação artística é passível de estar inserida num processo de produção industrial ou de produção em série (limitada ou não)? Acha que os objectos culturais produzidos industrialmente ou em série (limitada ou não) são susceptíveis de poderem ser considerados obras de arte? Porquê? 17. A distinção que muitas vezes se faz entre Arte (com letra grande) e arte comercial faz algum sentido para si? . Se sim, de que forma? . Se não, porquê? 18. Quais pensa serem as consequências da actual tendência da crescente orientação da Arte para o mercado? Serão positivas ou negativas? Quais as positivas e quais as negativas? 19. Na sua opinião, existe um «mínimo denominador comum» na Arte em Portugal? Acha que existe o que podemos considerar uma Arte Portuguesa? Porquê? O que a caracteriza? 20. E acha que o crítico deve ter a preocupação de tentar proteger os produtos culturais que se fazem em Portugal em relação aos que vêm do estrangeiro? Porquê? Como? 3. Representações acerca da Crítica e do Crítico 22. O que entende por Crítica? Que actos implicam a acção de criticar? 23. Que características deve assumir, no seu entender, uma «boa crítica»? 24. No seu entender, qual a utilidade da crítica? Quais considera serem as suas funções no contexto do actual universo cultural ou artístico? 25. Considera a crítica como uma actividade mais ao serviço do criador ou do consumidor cultural? Porquê?

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26. Quais são, a seu ver, as responsabilidades do crítico perante o leitor? 27. E quais são, no seu entender, as responsabilidades do crítico perante o criador? 28. Na sua opinião, o crítico deve preocupar-se em integrar o ponto de vista do autor/criador sobre a sua obra na crítica que dela faz? Cabe ao crítico explicitar a intenção do autor/criador na criação da sua obra? 29. E o ponto de vista do leitor? Acha que o crítico deve fazer um esforço para se identificar com o leitor «normal» ou o leitor «médio»? 30. Exerce, exerceu ou alguma vez gostaria de ter exercido uma actividade artística como criador na área em que intervem como crítico? . Se exerceu ou gostaria de ter exercido, porque não seguiu? . Se não exerceu, porque não? 31. É comum ouvir-se dizer que os críticos são normalmente artistas frustrados ou falhados. No seu caso pessoal, identifica-se com esta afirmação? Porquê? 32. E pensando na generalidade dos críticos que conhece, concordaria com essaa afirmação? Porquê? 33. Se não concorda com tal afirmação nem no seu caso pessoal nem para a generalidade das situações dos críticos que conhece, porque será então uma ideia tão generalizada, esta do crítico como «artista frustrado»? 34. Como caracteriza, em traços gerais, o panorâma actual do universo da crítica? 4. O Poder do Crítico 35. Face à multiplicidade de protagonistas que hoje se movem dentro do universo das artes e letras, que poder afere à prática crítica? Como avalia o poder do crítico dentro do actual universo cultural? 36. É comum ouvir-se dizer que os críticos, pelo poder que detêm, são capazes de comprometer o êxito de um espetáculo ou arruinar uma carreira artística se publicamente manifestarem o seu desagrado face à obra em causa ou ao seu autor. Concorda? Assume para si essa responsabilidade? Porquê? 37. Na sua opinião, em que é que se fundamenta a legitimidade do crítico para publicamente manifestar as suas opiniões estéticas? Em que se baseia a autoridade das suas apreciações? 5. A Formação do Crítico 38. Na sua opinião, que capacidades e/ou qualidades são necessárias possuir-se para se ser um bom crítico? Que tipo de competências este deve possuir para exercer essa actividade?

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39. Provavelmente já ouviu criadores reclamarem que os críticos não deveriam escrever sobre o que eles próprios nunca praticaram. Concorda? Considera a experiência «nos bastidores da arte», digamos assim, necessária para um bom desempenho do trabalho crítico? 40. Considera necessário um crítico possuir algum tipo de formação académica relacionada com a área de actividade artística em que intervem? Porquê? 41. No seu caso pessoal, possui alguma formação académica relacionada com a área de actividade artística em que intervem como crítico? . Se sim, qual? Onde e como a obteve? . Se não, nunca procurou obtê-la? Porquê? 42. Considera importante «credenciar» legalmente a profissão de crítico, ou seja, regulamentar juridicamente as competências exigidas à profissão de crítico? 6. Associativismo e Ética do Crítico 43. É membro de alguma Associação de Críticos? Porquê? . Se sim, que tipo de acontecimentos e/ou actividades organiza a Associação de que faz parte? Costuma participar nesses acontecimentos e/ou actividades? Com que objectivos? 44. Em que medida considera as associações de críticos importantes? 45. Na sua opinião, que princípios éticos devem orientar o crítico no desempenho dessa sua actividade? Com que limites éticos se deve preocupar quem faz da crítica profissão? Porquê? 46. Quais são, na sua opinião, os principais «perigos» com que, do ponto de vista ético, o crítico se defronta hoje em dia? 47. Considera importante haver uma ética profissional legalmente regulamentada que oriente a actividade do crítico ou acha que a ética deste deverá estar vinculada às suas decisões pessoais? Porquê? 7. Rede de Relações do Crítico . Com os Criadores 48. Mantém contactos regulares estáveis com um círculo mais ou menos definido de artistas? .Se sim, que forma tomam esses contactos? (são relações de amizade, são apenas contactos profissionais, etc) Como caracterizaria esse círculo de artistas? Em que ocasiões se dão esses contactos? . Se não, porque não?

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49. Normalmente conhece pessoalmente os artistas de cujos objectos/obras critica? . Se sim, de que forma isso se reflecte nas suas críticas? . Se não, é uma preocupação sua criticar apenas os trabalhos de quem não conhece pessoalmente? Porquê? 50. Os críticos são muitas vezes acusados de estarem organizados em «capelinhas» no universo cultural, de estarem integrados em grupos cujos membros vão privilegiar nas suas críticas desprezando ou maldizendo os membros de outros grupos. Concorda? Qual a sua opinião sobre este assunto? 51. Pensa que o facto do crítico manter relações de amizado ou contactos regulares com os artistas de cujos trabalhos critica pode de algum modo comprometer o resultado do seu trabalho? Porquê? . Com os Críticos 52. Mantém contactos regulares estáveis com outros críticos? . Se sim, que forma tomam esses contactos? Em que ocasiões se efectuam? Qual o objectivo desses contactos? Mantém esses contactos apenas com críticos da mesma área de actividade artística em que trabalha ou também de outras áreas? Porquê? . Se não, porque não? . Com os Agentes de Comercialização 53. Mantém contactos regulares e estáveis com os agentes económicos ou de comercialização que intervêm na sua área de actividade artística? . Se sim, que forma tomam esses contactos? Como é que se estabelecem esses contactos? Em que ocasiões se efectuam? Qual o objectivo desses contactos? . Se não, porquê? 54. Quais são, a seu ver, as responsabilidades do crítico perante os vários agentes económicos intervenientes no mercado artístico (editores, galeristas, distribuidores, etc)? 55. É comum ouvir-se acusar a crítica de ser conivente com os vários agentes económicos do mercado artístico e com as suas manobras especulativas. Concorda? Como comenta estas acusações? Não desempenhará o crítico também uma função económica junto do mercado de bens culturais? 8. O Estatuto do Crítico e o Estatuto do Consumidor Cultural 56. Na sua opinião, o crítico confunde-se por inteiro com o consumidor cultural «comum» (chamemos-lhe assim) ou trata-se de um receptor ou consumidor cultural «privilegiado»? Porquê?

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57. (Para os que respondem que se trata de um consumidor cultural «privilegiado») Em que se fundamenta então o privilégio do crítico em relação aos demais consumidores culturais? 58. Que diferenças e semelhanças encontra entre a figura do crítico e a figura dos demais consumidores culturais «comuns»? 59. Na sua opinião, existe alguma diferença qualitativa entre a relação que se estabelece entre o crítico e a obra e a relação que se estabelece entre o leitor/consumidor cultural «comum» e essa mesma obra? . Se sim, que diferença é essa? . Se não, porquê? 9. Relação Crítico - Público 60. A que tipo de público se pretende dirigir quando faz as suas críticas? Dirige-se ao público em geral ou pretende atingir um público específico? . Se se dirige a um público específico, qual o seu perfil? Como caracterizaria esse público? 61. (Para os que dizem que é o público do jornal para que trabalham) O público para o qual dirige as suas críticas confunde-se totalmente com o público do seu jornal? . Se sim, porquê? . Se não, quais serão então as diferenças que encontra entre os leitores das suas críticas em particular e os leitores do jornal em que trabalha em geral? 62. O facto de supostamente atingir esse público faz modificar o «tom» da sua crítica? No fundo, que preocupações que tem com o público no acto de criticar? 63. Na sua opinião, acha que público a que se dirigem as suas críticas têm em conta os seus conselhos e opiniões? Qual a sua opinião acerca da sua fidelidade? Porquê? 10. Relação Crítico - Jornal 64. Como é que se processou o seu «recrutamento» nos vários orgãos de comunicação social em que já trabalhou? 65. Porque é que acha que foi escolhido para nele trabalhar? 66. Quais são, a seu ver, as responsabilidades do crítico perante o orgão de comunicação social para que trabalha? 67. Pelo facto de trabalhar num jornal sente-se um jornalista? . Se sim, porquê? . Se não, que semelhanças e diferenças encontra então entre a figura do jornalista e a figura do crítico?

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68. Sente-se de algum modo incomodado pelo facto de exercer a crítica num orgão de comunicação social? Porquê? 69. Quais são os condicionalismos, limitações ou pressões a que, na sua opinião, um crítico está sujeito pelo facto de trabalhar num orgão de comunicação social? 70. Qual a sua opinião acerca das novas formas de crítica que actualmente surgiram, como são, por exemplo, o «sistema das estrelinhas» ou o sistema das pequenas notas informativas e/ou de recomendação? 71. Qual a sua opinião acerca da crítica que se faz noutros jornais que não o seu? 11. Fase de Selecção das Matérias Criticáveis 72. De que forma escolhe os factos culturais que vai criticar? Quais os critérios que normalmente utiliza na selecção de acontecimentos ou objectos culturais a criticar? 73. O jornal para que trabalha interfere de alguma forma na fase de selecção dos factos culturais sobre os quais se deve pronunciar criticamente? Interfere de algum modo nas escolhas que faz acerca dos factos culturais a criticar (sugerindo o que criticar)? Se sim, como interfere? E como reage a essa interferência? 74. E quanto aos elementos constitutivos do próprio evento, às suas características próprias, o jornal dá algum tipo de indicação quanto ao que deve incluir, realçar e/ou omitir no seu discurso acerca desse mesmo evento? Que tipo de indicações? Costuma normalmente tê-las em conta? 75. Nesta fase de selecção de factos culturais, tem algum tipo de preocupação com o público ao qual vai apresentá-los criticamente? . Se sim, que formas toma essa preocupação? . Se não, porquê? 12. Fase de Elaboração do Discurso Crítico 76. Quais as suas principais preocupações ao elaborar/redigir um discurso crítico? 77. Quando faz uma crítica, pensa nas pessoas que vão lê-la? Tem alguma preocupação com o público que supostamente vai atingir quando escreve as suas críticas? Que forma tomam essas preocupações? 78. Acha que o crítico deve ter a preocupação de se fazer entender junto da generalidade do público? 79. Quando elabora o seu discurso crítico, tem alguma preocupação com o tipo de linguagem que utiliza? De que forma se manifesta essa preocupação?

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80. A crítica é frequentemente acusada de uma certa arrogância, hermetismo e intelectualismo na sua forma de escrever, patente na falta de simplicidade e clareza do seu discurso. Concorda? Porquê? 81. E o jornal para que trabalha, interfere de algum modo nesta fase de elaboração do discurso crítico? Como? 82. Costuma ter que dar a ler e a apreciar as suas críticas a algum representante do jornal? Se sim, a quem? Com que objectivo? 83. Depois de ler, é comum esse personagem aconselhá-lo a fazer alguma modificação no seu discurso? Se sim, que tipo de modificações são normalmente aconselhadas? 84. Como costuma reagir a esses conselhos? Tem-nos normalmente em conta? 85. Sente de algum modo posta em causa a sua autonomia ou liberdade como crítico quando isso acontece? Porquê? 86. Já alguma vez teve de modificar o conteúdo da sua crítica, em termos de opiniões e/ou apreciações, a conselho do jornal para que trabalha? O jornal já alguma vez o admoestou acerca de qualquer sua opinião nele expressa? 13. Relação Crítico - Obra Criticada 87. O que é que busca na obra a que se propõe criticar? 88. Como avalia esteticamente uma obra? Quais são, na sua opinião, os princípios ou critérios básicos por que se deve orientar a avaliação estética de qualquer obra? 89. Quando pretende avaliar uma obra do ponto de vista estético, tem em conta apenas a sua «forma» ou também o seu «conteúdo»? 14. A Objectividade e a Subjectividade na Crítica 90. No seu entender, o crítico deve manter com a obra a que se propõe abordar uma relação o mais neutra possível ou, pelo contrário, uma relação «apaixonada»? 91. Poder-se-á falar de objectividade na crítica? Acredita na existência de uma crítica objectiva? . Se sim, como e até que ponto? Acha que a crítica pode ou poderá assumir o estatuto de Ciência? O que garante então a objectividade na crítica? Qual a forma de neutralizar ou restringir a subjectividade na crítica? . Se não, porque não? Assume então uma crítica sempre totalmente subjectiva? 92. Na sua opinião, há espaço para a criatividade na crítica? De que forma? 93. Pensa que a crítica pode tornar-se ela própria uma forma de literatura? Acha legítimo a crítica tornar-se numa forma de literatura? Porquê?

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. Se sim, não acha que dessa forma o crítico é susceptível de tornar-se rival do criador, confundindo-se essas duas personagens? Que diferenças estabeleceria então entre o criador e o crítico? 15. Imagens da Segmentação do Campo da Crítica 94. Como designa e caracteriza o «estilo» de crítica que faz? 95. Tem notado modificações nesse «estilo» desde que iniciou a sua actividade crítica? Quais? Ao que se devem essas modificações? 96. O Universo da Crítica não é, decerto, homogéneo. Como acha que esse universo aparece segmentado? Que tipos diferentes de críticos consegue identificar? 97. Alguns críticos sugerem existir um divórcio entre duas supostas formas de intervenção crítica: uma jornalística e uma académica. Concorda com a existência desta clivagem? 98. Que vantagens e desvantagens encontra no facto da crítica se fazer num contexto académico? 99. E que vantagens e desvantagens encontra no facto da crítica ser exercida num contexto massmediático? 16. Ficha de Caracterização Sociográfica 1. Idade: /___/___/ 2. Sexo: M /___/ F /___/ 3. Estado civil: Solteiro /___/ Casado /___/ União de Facto /___/ Divorciado /___/ Viúvo /___/ 4. Profissão principal: ___________________________________________________ ____________________________________________________________________________________________________________________________________________ 5. Habilitações literárias: _____________________________________________ ____________________________________________________________________________________________________________________________________________ 6. Profissão do pai: 7. Profissão da mãe: 8. Profissão do Cônjuge: 9. Estatuto no jornal para que escreve:

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Opções Metodológicas - Orgãos de Comunicação Social Seleccionados: «Público» Diários «Diário de Notícias» «A Capital» «Expresso» Semanários «O Independente» «Jornal de Letras» - Razões para a selecção destes jornais: . são os jornais de maior circulação e tiragem que incluem rubricas culturais com grande regularidade (incluindo críticas), representando diferentes formas de conceber e de praticar o jornalismo e a crítica, assim como diferentes visões do mundo (designadamente do mundo das artes). . representam posições diferentes na rede de relações de poder inerente ao campo dos media. . dirigem-se a diferentes tipos de público. . são os jornais que nos acompanham no nosso quotidiano, onde a crítica terá portanto uma maior visibilidade pública e, como tal, um maior poder de influência. . são jornais onde os críticos actuam de uma forma regular (ao contrário das revistas especializadas, onde o contributo dos críticos tem um carácter esporádico) e onde a crítica se exerce de um modo mais ou menos profissional. . são os jornais onde se encontram os críticos com uma maior credibilidade e uma maior notoriedade pública. - Áreas Artísticas de Intervenção Crítica Seleccionadas: - Artes Plásticas - Teatro - Cinema - Literatura - Razões para a selecção destas áreas artísticas: . são as áreas sobre as quais se produz crítica mais regularmente.

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. são áreas artísticas cuja intervenção crítica já se encontra organizada em associações (Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários, Secção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte, Secção Portuguesa da Associação internacional de Críticos de Teatro, Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, Associação Portuguesa de Críticos Cinematográficos). - Críticos Seleccionados: Artes Plásticas - João Pinharanda (Público) - Eurico Gonçalves (DN) - Carlos Vidal (A Capital) - José Luís Porfírio (Expresso) - António Cerveira Pinto (Independente) - Cristina Azevedo Tavares (JL) Teatro - Manuel João Gomes (Público) - Fernando Midões (DN) - Tito Lívio (A Capital) - Eugénea Vasques (Expresso) - Henrique Burnay (Independente) - Carlos Porto (JL) Cinema - José Navarro de Andrade (Público) - Augusto Seabra (Público) - Eurico de Barros (DN) - João Antunes (DN) - Francisco Perestrello (A Capital) - João Lopes (Expresso) - Manuel Cintra Ferreira (Expresso) - João Bernard da Costa (Independente) - Paulo Nogueira (Independente) - Paulo Portugal (JL) - Maria João Martins (JL) Literatura - Tereza Coelho (Público) - Gustavo Rubim (Público) - António Carvalho (DN) - Maria Teresa Horta (DN) - Águeda de Brito (A Capital) - António Guerreiro (Expresso) - Fátima Maldonado (Expresso) - João António Dias (Independente) - Manuel Filipe Canaveira (Independente) - Fernando Guimarães (JL) - Manuel Frias Martins (JL)

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- Critérios para a selecção destes críticos: . Especialidade (tentámos ser ecléticos nas áreas de criação abrangidas, tentando descobrir dentro de cada uma quais os críticos que sobre elas escrevem nos meios de comunicação seleccionados). . Regularidade (críticos com maior regularidade nos jornais para que escrevem; procedeu-se à contagem dos artigos assinados em cada orgão de comunicação nos últimos três meses de 1993). . Visibilidade/Notoriedade Pública (tentámos entrevistar os críticos com maior visibilidade pública, considerando como indicadores desta a sua participação em debates e querelas sobre a problemática que envolve a actividade crítica). . Geração/Estilo (tentámos entrevistar críticos representativos de várias gerações e com estilos de escrita e proveniências culturais diversas). Área Artística Jornais

Artes Plásticas Teatro Cinema

Público João Pinharanda Manuel João Gomes José N. de Andrade Tereza CoelhoDiário de Notícias Eurico Gonçalves Fernando Midões Capital Carlos Vidal Tito Lívio Expresso Alexandre Pomar Eugénia Vasques João Lopes * António GuerreiroIndependente Antº Cerveira Pinto ---- Paulo Nogueira * João AntJornal de Letras Cristina Azev.

Tavares Carlos Porto Paulo Portugal Júlio Conrado

Alguns Itens Para Grelha de Análise - Trajectos (compreender como «nasce» um crítico. Primeiro há uma proximação ao mundo das artes, seguido de uma aproximação ao mundo do jornalismo - importância do capital social. Razões para a dedicação a essa actividade). Perguntas 1 - 5, 65. - Profissionalização (como o crítico encara e vive essa actividade do ponto de vista profissional. Acumulação de actividades e que tipos de actividades - dentro ou fora do mundo das artes -, e razões para essa acumulação. De que forma encaram a profissionalização da actividade crítica). Perguntas 6 - 9, 43. - Associativismo (de que forma encara o associativismo na crítica e que importância atribui às associações de críticos. Objectivos das associações. Razões para a fraca eficácia e importância dada às associações de críticos. Esta questão pode estar ligada à profissionalização). Perguntas 44 - 46.

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- Ética (valores éticos do crítico, centrados na sua autonomia face ao mercado e face ao criador. De que forma encaram a existência de uma ética regulamentada ou de um código deontológico. Na ausência desta, como é exercido o controle ético? Inter-pares - polémicas - e através do próprio código jornalístico). Perguntas 46 - 48. - Arte (representações da arte. Como a entendem? Como a valorizam? Relação objecto artístico-mercado. Relação objecto artístico-funcionalidade. Representação da arte portuguesa e proteccionismo*. Critérios de avaliação estética). Perguntas 10, 13 - 18, 19 - 20, 91 - 92. - Artista (representação do artista. Contraste entre o profissional e o romântico. O talento e a formação). Perguntas 11 - 12. - Crítica (actos que implicam a acção de criticar - a análise/interpretação e o juízo fundamentado; informar e comentar/opinar. Como representam a crítica. Valores que privilegiam na crítica). Perguntas 22 - 24. - Funções (qual a sua utilidade actualmente). Perguntas 25 - 26. - Relação crítico-criador (Responsabilidades. Autonomia. Tensões. Relações, afinidades e seus reflexos na crítica. Isenção e tendência. Quando o crítico é ele próprio criador). Perguntas 28, 29, 31 - 34, 49 - 52. - Relação crítico-leitor (responsabilidades. Autonomia. Afinidades. Imagens dos públicos. Reflexos na crítica). Perguntas 27, 30, 61 - 63. - Clivagens (segmentação. Relação crítico-crítico. Imagens da produção crítica). Perguntas 35, 53, 74, 99, 101, 104. - Poder (auto-avaliação do poder e dos efeitos da sua acção junto dos vários agentes activos no mundo artístico - criador, consumidor e instituições). Perguntas 36 - 37, 64. - Fundamentos da legitimidade e da autoridade. Pergunta 38. - Competências (formação do crítico, meios de a obter, qualidades/capacidades). Perguntas 39 - 42. - Relação crítico-agentes económicos (responsabilidades, mal-entendidos, objectivos e formas da relação). Perguntas 54 - 56. - Estatuto do crítico e estatuto do consumidor «comum» (demarcações, autonomia. diferenças na relação com a obra).

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Perguntas 57 - 60, 90. - Relação crítico-jornal (afinidades de ideias e «tom» - identificações com perfis; responsabilidades; aproximação entre a figura do crítico e a figura do jornalista; integração no meio jornalístico e nas suas condições de produção). Perguntas 67 - 73, 105 - 106. - Selecção das matérias criticáveis (critérios, constrangimentos jornalísticos, adaptações entre políticas editoriais e critérios pessoais ou cultura profissional do crítico - o princípio do prazer e o princípio do dever; constrangimentos externos; negociações; constrangimentos ao nível dos critérios de noticiabilidade mas quase total liberdade em matéria de valores-notícia; o factor «público»). Perguntas 75 - 78. - Fase de elaboração do discurso crítico (constrangimentos - o tempo e o espaço; o público e o hermetismo; o hermetismo no início funciona como estratégia de marcação no terreno e de demarcação do terreno, mas vai sendo abandonado ao longo da carreira: porquê? - o crítico ganha nome e já não tem que se preocupar em marcar uma posição; - o próprio jornal pressiona-o para o abandono dessa linguagem, quer directamente com conselhos do editor e dos seus pares, quer indirectamente através dos constrangimentos de tempo e de espaço). Perguntas 79 - 88, 100. - Objectividade - Subjectividade (resolução de tensões, como se estrutura a relação com a obra, o que garante o máximo de objectividade, espaços para a criatividade). Perguntas 94 - 98. - Tendências recentes no campo da crítica (inflação do discurso sobre arte nas últimas décadas, nomeadamente nos jornais e em Portugal. A crítica tem a tendência a universitalizar-se: mesmo nos jornais diários, onde a crítica tem um carácter mais informativo e impressionista, os críticos mais jovens já não são apenas diletantes, como acontecia antes do 25 de Abril, mas têm formação universitária na área em que intervêm).