pelos caminhos da droga

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26 15SETEMBRO2011 DROGA: FLAGE SOCIEDADE reportagem

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Uma reportagem sobre como se luta contra o flagelo da droga em Coimbra.

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DROGA: FLAGELO EM COIMBRA

sociedade

reportagem

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A HISTÓRIA de vida de J., 35 anos, acaba por não se poder dissociar da droga. "Comecei, como qualquer pessoa, pelo haxixe, aos 16 anos, e depois fui passando para as drogas mais duras", revela, acrescentando que "co-mecei a consumir mesmo a sério a partir dos 21". Tendo perdido o pai muito jovem, J. abandonou a escola aos 19 e "as companhias com que andava" levaram-no ao mundo da toxicodependência. Ao longo de mais de dé-cada e meia de consumo, o caminho tem sido sinuoso. "Já tive quatro ou cinco tentativas de recuperação", refere J., sublinhando que "a partir do momento em que uma pessoa fica viciada, os maus períodos são todos. A ressaca é sempre dura". E está sempre na mente do consumidor. "Uma pessoa só tem cabeça para aquilo. Para arranjar dinheiro para tirar a ressaca, faz coisas de que se arrepende mais tarde", con-fidencia J. "Uma pessoa até sabe que está a fazer mal, mas faz na mesma… Há coisas que nem sei como é que as fiz", conta.Embora, garante, "nunca tenha feito nada que me pudesse levar à prisão", J. "enganou e prejudicou pessoas e amigos". No meio deste

APESAR DAS INCERTEZAS EM TORNO DO FUTURO DO IDT, AS INSTITUI ÇÕES PRIVADAS DE SOLIDARIEDADE SOCIAL CONTINUAM A LUTAR CONTRA AS DEPENDÊNCIAS. A DROGA AINDA É UM GRANDE PROBLEMA

SOCIAL QUE A CÁRITAS TENTA COMBATER, COM REALISMO, SEM NUNCA PERDER A ESPERANÇA TEXTOS MARCO ROQUE FOTOS PEDRO RAMOS

DROGA: FLAGELO EM COIMBRAturbilhão, uma pessoa sofreu mais que as outras: a mãe. "Ela foi a pessoa mais prejudi-cada e envolvida nesta coisa toda. Aliás, não estou a viver com ela por causa de problemas passados, que foram acumulando", indica.Certa vez, "cheguei a vender umas medalhas de ouro que ela tinha. Medalhas de mérito do trabalho, 40 anos de trabalho, e ficar sem elas por causa de uma coisa destas não foi fácil para ela". Com "muitos trabalhos desperdiçados à cus-ta disto", J. também ficou cada vez mais so-zinho. "Nem é a questão dos meus amigos se afastarem", revela, "é mesmo eu afastar-me deles. Quando uma pessoa está sob o efeito da necessidade, não se sente bem no meio das pessoas". Até porque, "desde que tivesse o consumo estava bem…".Hoje, J. está de novo a tentar ficar "limpo". Onde vai encontrar a motivação para tentar sair do problema que já dominou mais de uma década da sua vida? "Tive de a arranjar com as experiências passadas, já não sou um garoto. A situação não podia continuar assim, cada vez batia mais fundo e não quero acabar como alguns", responde.

Posto fora de casa pela mãe há cerca de um mês, "ela nem me quer ver à frente", diz, J. teve a sorte de ser acolhido por um amigo. No entanto, sublinha que, para não haver recaídas, "nunca pode haver 'só uma vez'. Se isso acontecer, depois vem outra e pronto, já lá estás outra vez".

REDUZIR OS PERIGOSHistórias como as de J. são uma realidade, e é com elas que os técnicos do Gabinete de Apoio a Toxicodependentes, promovido pela Cáritas, no Terreiro da Erva, se defrontam todos os dias. "Somos uma estrutura de re-dução de riscos e minimização de danos", refere Sofia Ortet, coordenadora do projeto. "Temos como objetivo eliminar comporta-mentos de risco e minimizar as suas conse-quências, promover a adesão a práticas mais seguras de consumo e fomentar a aproxima-ção às estruturas de suporte". Uma vez que o problema já existe, não se tenta evitá-lo. "A ideia de redução de danos não passa por prevenir ou tratar o problema, mas, sim, assegurar que eles consomem, ou que trabalham a nível sexual, com a maior

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segurança e higiene possível para a saúde, individual e pública". Por exemplo, a troca de seringas "implica que deixe de haver uma seringa na rua ou no recreio de uma escola", refere a coordenadora. Na prática, o gabinete providencia todos os serviços relativos às necessidades básicas, apoio jurídico, consulta psiquiátrica, bem como ações de sensibilização e atividades lúdico pedagógicas. "Somos destinados a intervir com população toxicodependente, sem-abrigo, alcoólicos e prostitutas", refere Sofia Ortet. O gabinete acolhe cerca de mil utentes por ano, na maioria homens, soltei-ros, entre os 30 e 40 anos de idade, portugue-ses, que sabem ler e escrever, mas sem ter o ensino básico completo. O haxixe é a droga de eleição.Para além de fornecer as condições básicas de vida e encaminhar os utentes para outras estruturas, mantém-se a função original do projeto: uma equipa de rua. "Fazemos um ‘giro’ noturno todas as noites, de segunda a sábado, por um itinerário fixo, parando nos mesmos sítios", conta a responsável. "Isso já acontece há muitos anos, a carrinha não é identificada, mas eles já nos conhecem e vão ter connosco. A ideia é fazer troca de mate-rial de consumo, preservativos e donativos alimentares. Eles aproveitam para dizer o que precisam", conta.Nestes contactos diretos, importa trabalhar a motivação, o que é difícil. "A adesão deles é limitada, complicada, circunstancial, sujeita a reforços, de preferência consumíveis", con-ta Sofia, lembrando que "em fases de consu-mos ativos as prioridades deles são outras, os consumos assumem o comando. As taxas de sucesso são relativamente baixas, as pessoas recaem muitas vezes".O dia-a-dia é cinzento e cada utente toca o técnico de certa forma. "A mim pessoal-mente é sempre complicado lidar com os

limites da vida", revela Sofia Ortet. "Tenho dificuldades em lidar com a morte, em par-ticular em situações de overdose nas quais somos os primeiros a intervir. Já perdemos gente muito nova, promissora, que podia ter passado por isto e ter tido uma vida", conclui. O trabalho dos técnicos não é fácil. "Este trabalho implica um certo grau de frustra-ção, mas temos perfeita noção disso. Ten-tamos arranjar estratégias , agarramo-nos aos poucos casos de sucesso", refere a res-ponsável. "Costumo dizer que os ganhos aqui são ao milímetro: conseguir que alguém que consumia vinte vezes passe para dez é um ganho tremendo. Conseguir que alguém seja encaminhado para uma comunidade te-rapêutica, permaneça lá todo o tempo e saia abstinente é a maior vitória de todas. Coisas raras", conclui.

UM TETO CONHECIDO POR "FAROL" Se o gabinete orienta as pessoas que estão na rua, o Centro de Alojamento Temporário "O Farol", também da Cáritas, serve de casa a uma população f lutuante, composta por toxicodependentes, sem-abrigo, bem como pessoas com doenças crónicas. Das 30 camas disponíveis, 15 são para uten-tes com problemas relacionados com droga, embora "a mais-valia que este centro trouxe

Já perdemos gente muito nova, promissora, que podia ter tido uma vidaSofia Ortet

O gabinete acolhe cerca de mil utentes por ano, na maioria homens, solteiros, entreos 30 e 40 anos de idade

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para esta população foi o facto de a admissão não estar dependente de um programa de abstinência", revela Justina Dias, assistente social no Farol, embora "não possam consu-mir no recinto". O centro recebe utentes de todas as estrutu-ras da cidade e também toxicodependentes que, por iniciativa própria, "nos vêm pedir ajuda". Existem duas regras de ouro: o ho-rário de entrada, as portas fechadas pelas 21H30 e acordar pelas 07H30. "Estes horá-rios são estruturantes para o utente, numa lógica em que há direitos e deveres, a pessoa vive numa comunidade e o respeito pela co-

munidade implica obedecer a estes horá-rios", revela Justina Dias. "Oferecemos um espaço de pernoita, 30 utentes em regime noturno mais 30 diurno – que têm as necessidades básicas assegu-radas, desde o espaço para dormir, o espaço para fazer a higiene pessoal ou as refeições", revela a assistente social, acrescentando também "o atendimento social, de psicolo-gia e psiquiatria, enfermagem e as atividades que temos de caráter lúdico ocupacional". As atividades, obrigatórias e opcionais, mos-tram uma filosofia de ocupação de tempo. "Tentamos preencher a vida dos utentes,

de modo a que as pessoas não sejam tam-bém sem-abrigo durante o dia. Tentamos ter atividades para criar rotinas e hábitos, de modo a encontrarem-se consigo próprios", revela Justina Dias. Também por isso existe uma escala de limpeza, que os utentes têm de cumprir. No centro tenta-se sensibilizar os utentes, na maioria homens com mais de 30 anos, para um tratamento. Mas é necessário com-preender a pessoa em toda a sua dimensão. "Primeiro tem de se perceber que 20 anos de consumo não se mudam em 20 segundos ou dias. E as pequenas coisas, um dia sem consumo, por exemplo, são importantes", refere. "É preciso metê-los a pensar", subli-nha Justina Dias.

A assistente social não desiste de acreditar. "Acredito sempre que a mudança é possível. É possível haver algumas melhorias, mas com base realista. Acredito na recuperação, mas não sou ingénua", refere. É preciso dar ao utente o poder de sonhar. "Ele já perdeu a capacidade de sonhar, eu é que não lhe posso permitir isso. O técnico tem de ser capaz de sonhar pelo utente, que já não acredita que é capaz de mudar. Devolver esta capacidade a quem chega destroçado, destruído, pertur-bado e com uma ansiedade total", completa. E o sonho da mudança pode levar o utente a um tratamento, a uma comunidade terapêu-tica? "Ser uma ponte para esses serviços é uma questão determinante para nós. É o que desejamos", responde a responsável.

"UM ENCONTRO CONSIGO MESMO"A Cáritas de Coimbra estende-se até Maior-ca. É lá que se situa a Comunidade Terapêu-tica 'Encontro'. "A comunidade é isso mesmo, uma comunidade, um grupo. É um espaço mais estruturado", explica Albano Rosário,

"Acredito sempre que a mudança é possível. Acredito na recuperação, mas não sou ingénua" Justina Dias

Das 30 camas do centro de acolhimento, 15 estão reservadas para a comunidade toxicodependente

À esquerda: saco com o kit fornecido nos CATs; ao lado (topo): quadro pintado por um dos utentes; ao lado (baixo): recipientes higienizados para confeção do "caldo"; em cima: o kit é compos-to por toda a parafernália necessária para o consumo de drogas em condições de maior segurança

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diretor técnico da comunidade, referindo que são "espaços mais retirados do centro urbano, onde as pessoas têm a possibilidade de se afastar da ambiência das drogas". Aí, contam com o apoio "de um grupo, de uma equipa técnica, num ambiente sossegado, onde tudo está bem definido, de modo a que as pessoas saibam o seu lugar e os seus deveres e direitos". A ideia é atingir um de-senvolvimento pessoal que vai para além do abandono das drogas. "Deixar as drogas é uma condição porque, como se sabe, elas alienam a consciência e sem consciência não é possível ter um pro-cesso de desenvolvimento pessoal, a vários

níveis", refere Albano Rosário. "Aquilo que é fundamental é que entrem numa relação social, num pequeno grupo, em que as rela-ções são muito transparentes, e as atividades desenvolvidas são em função disso". As atividades são variadas, desde as tarefas domésticas, desportivas e artísticas. "Os utentes assumem todos os trabalhos da co-munidade, numa linha da responsabilização progressiva. Os mais velhos são os mais res-ponsáveis e assumem essas funções de res-ponsabilidade e confiança, incentivando os outros a colaborar", revela Albano Rosário.Na prática, estamos perante uma reeducação social. "Eles não estão habituados a relacio-

nar-se de forma desinteressada, relacionam--se em função de um interesse, que, regra geral, era a droga. Desta feita, não há um in-teresse, a relação é gratuita, de entreajuda e de solidariedade. Como já não há interesses pelo meio, também já não há tantos confli-tos", refere o diretor técnico. "E sim, é uma reeducação social, mas também trabalha-moso interior, ao nível da personalidade".O programa da comunidade dura entre um ano a ano e meio, com um grupo a rondar as 18 pessoas, na maioria do sexo masculino. Utentes que têm mais liberdade do que se pensa. "Não fazia sentido tê-los fechados, eles têm plena liberdade. O que os segura cá é que eles entenderam que têm um espaço seguro, que lhes permite reestruturar a sua vida", refere Albano Rosário. "Não temos punições, castigos. A pessoa é incentivada a expor no grupo a sua falha e isso é utilizado para a correção de uma situação idêntica para todos. Todo o grupo aprende e essa ex-posição já é penalização que chegue".Onde se encontra motivação para dar es-te tipo de ajuda? "É um trabalho intenso. Têm-me dito que eu sou um apaixonado. Tenho muito gosto em ver as pessoas bem na vida, com família e trabalho", sorri Albano Rosário. E lembra que "já tivemos utentes que chegaram cá sem o nono ano e hoje são engenheiros". Feita a média, a comunidade apresenta uma taxa de sucesso a rondar os 65 por cento.No entanto, reitera, "depois de saírem, pas-sam para outra fase que não é logo a vida nor-mal, mas sim de reinserção, o que deve ser um processo lento, de adaptação à vida social e preparar-se. Não se pode ter a pretensão, ao sair de uma comunidade terapêutica, um toxicodependente esteja pronto para o mer-cado de trabalho".Daí que sucesso seja quando a "pessoa está capaz do ponto de vista psicológico, cogni-tivo e emotivo, afetivo e social, capaz da sua autonomia e a partir daí desenvolver uma vida com êxito, porque até agora foi um fra-casso", conclui.

ENTRE A RUA, A DROGA E O FUTUROViver na droga pode levar uma pessoa a uma espiral descendente. J., colocado fora de casa pela mãe devido "ao acumular de pro-blemas", tinha um teto sobre a sua cabeça devido à caridade de um amigo. Perto do fecho da revista, chegaram as más notícias: um desentendimento entre ambos e viu-se posto na rua. Depois de ouvir falar no Farol, disse que "ia pensar nisso". Talvez assim se consiga afastar o fantasma do vício.

reportagem

"Deixar as drogas é uma condição porque, elas alie-nam a consciência e sem ela não é possível ter um processo de de-senvolvimento pessoal"Albano Rosário

Manuela Lopes coordena todos os servi-ços da Cáritas de Coimbra no que diz res-peito à toxicodependência. "Apanhamos o toxicodependente em todas as suas fases. Na rua, trocamos material, numa ló-gica de diminuição de danos, distribuímos sering as à troca", revela a responsável, acrescentando que "enquanto fazemos isso tentamos motivá-lo para tratamento, sem o forçar". Para além das referidas na reportagem principal, existem mais "du-as equipas de rua no Bairro da Rosa e do Ingote, e outra que trabalha mais na ótica de trabalhar com jovens consumidores ocasionais ou experimentais, tentar mos-trar-lhes alternativas que não o consumo". Existe também o centro de dia Sol Nascen-

te e os apartamentos de reinserção social. No entanto, sublinha , "não há receitas milagrosas para este problema". Mas há casos qu #e dão esperança a quem tenta ajudar. "Lembro-me de dois irmãos que eram traficantes, e chegaram a dizer que queriam abandonar. Estranhámos, mas demos-lhes o benefício da dúvida", conta. "Foram internados em alturas e comuni-dades diferentes. Nunca ninguém diria que eles iriam abandonar os consumos". Mas o facto é que "já lá vão dez anos e nun-ca mais tocaram em nada. Um está com a mãe, o outro casou-se com uma rapariga que até nem tem nada a ver com a droga – o que às vezes é um problema – e tem uma filha", conta, sorridente.

"NÃO HÁ SOLUÇÕES MILAGROSAS"