peirce e lacan: as sobras deixadas pelo simbÓlico · no entanto, poder sê-lo que o signo insiste...

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137 PEIRCE E LACAN: AS SOBRAS DEIXADAS PELO SIMBÓLICO Mírian dos Santos Univás 1. Introdução Buscando por si mesmo, o ego acredita encontrar-se no espelho das criaturas para se perder naquilo que não é ele. Esta situ- ação é fundamentalmente mítica. É uma metáfora da condição humana, uma vez que estamos sempre ansiando por uma completude que não pode jamais ser en- contrada, infinitamente capturada em mi- ragens que ensaiam sentidos onde o senti- do está sempre em falta. (SANTAELLA, 1886, p.28) Somos seres simbólicos, seres de linguagem. Dizer isto significa que só conseguimos entrar em contato com o outro por meio de uma me- diação. Entre mim e o e outro se interpõem signos das mais diferentes naturezas. Só podemos nos aproximar dos objetos e de outros homens através da linguagem; só utilizando a linguagem podemos apreender, em parte, a realidade. Esses elementos simbólicos que nos propiciam a aproximação com o outro são elementos que agem como duplos. Eles não são as coisas, mas estão no lugar das coisas. São sempre fragmentos incompletos que representam algo que não são eles e representam o real de uma certa maneira, dentro de certos limites, sendo, portanto sempre parciais. Lúcia Santaella (1996, p.64), analisando esse aspecto na linguagem e usando como sinônimo de linguagem a palavra signo, adverte-nos que CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS

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PEIRCE E LACAN: AS SOBRAS DEIXADAS PELO SIMBÓLICO

Mírian dos SantosUnivás

1. IntroduçãoBuscando por si mesmo, o ego acredita encontrar-se no espelho das criaturas para se perder naquilo que não é ele. Esta situ-ação é fundamentalmente mítica. É uma metáfora da condição humana, uma vez que estamos sempre ansiando por uma completude que não pode jamais ser en-contrada, infinitamente capturada em mi-ragens que ensaiam sentidos onde o senti-do está sempre em falta. (SANTAELLA, 1886, p.28)

Somos seres simbólicos, seres de linguagem. Dizer isto significa que só conseguimos entrar em contato com o outro por meio de uma me-diação. Entre mim e o e outro se interpõem signos das mais diferentes naturezas. Só podemos nos aproximar dos objetos e de outros homens através da linguagem; só utilizando a linguagem podemos apreender, em parte, a realidade.

Esses elementos simbólicos que nos propiciam a aproximação com o outro são elementos que agem como duplos. Eles não são as coisas, mas estão no lugar das coisas. São sempre fragmentos incompletos que representam algo que não são eles e representam o real de uma certa maneira, dentro de certos limites, sendo, portanto sempre parciais.

Lúcia Santaella (1996, p.64), analisando esse aspecto na linguagem e usando como sinônimo de linguagem a palavra signo, adverte-nos que há

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A impossibilidade de se subverter o caráter do signo como duplo, visto que se este, o signo, fosse capaz de atingir a mais absolu-ta identidade e completude em relação ao objeto que representa, então não seria mais o signo, seria o próprio objeto e este objeto estaria fadado ao desaparecimento. É devido à fenda da diferença que a realidade, na sua completude complexa, resiste como re-alidade. É devido a esta fenda entre o querer ser o objeto, sem, no entanto, poder sê-lo que o signo insiste na sua parcialidade e incompletude de signo.

O inelutável caráter duplo da linguagem assinala que entre o “real” e a linguagem, abre-se uma brecha. Isto significa que a linguagem ja-mais esgotará todas as potencialidades da “realidade”. Na sua inteireza constitutiva, na sua integralidade existencial, a “realidade”, os objetos do mundo, o referente é intangível: sempre haverá aspectos sobre os quais a linguagem não poderá ocupar-se. Por mais que se fale e se es-creva a respeito de um simples objeto que está a nossa frente, nunca esgotaremos todas as possibilidades significativas. A linguagem jamais apreende todos os significados de um objeto. Isto se dá porque em cada atribuição de significado dado a um objeto interferem as condições de produção, as experiências colaterais que se conceituam, segundo Peirce (CP 8.179) como uma espécie de intimidade que o intérprete deve ter com o signo. É uma informação anterior ao signo, adquirida por meio de outros signos.

Entre o real e a linguagem, existe um estado pulsante, prenhe de pos-sibilidades, aberto as mais variadas interferências. Ignorar este aspecto é agir como o mítico Narciso.

Segundo Santaella (1996), Narciso, ao se olhar nas águas do rio, en-cantou-se com a própria imagem. Mas a imagem não era ele, era seu duplo e ao tentar se apossar da imagem, apossar-se da linguagem que a ele se referia, mas que não era ele, Narciso se destruiu. Considerou a imagem de si mesmo como se fosse o real e se esvaiu. Narciso se perdeu porque não considerou que entre a linguagem (imagem de si mesmo) e o “real” (o existente, ele mesmo) havia uma fenda, que assinala a in-completude da linguagem. Ou seja, a linguagem, por mais que queira ser fiel ao objeto não é o objeto, o ser existente no mundo. A linguagem é apenas uma parte do “real” e por mais que ela se aproxime do “real”, jamais será o objeto. Querer transformar a linguagem em objeto tem consequências sérias: aniquila o objeto e a linguagem; destrói tanto o objeto quanto a linguagem. A linguagem acaba por engolir a vida e a vida por engolir a linguagem. Para Santaella, Narciso perde-se por não perceber a imagem – linguagem – como fragmento parcial e incompleto

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que, como toda linguagem só pode estar no lugar de, sem que, no entan-to, possa ser o objeto a que se refere.

Isto posto, este artigo objetiva estabelecer relações de parentesco en-tre as os registros essenciais da realidade humana - ou categorias exis-tenciais, explorados por Lacan - do conceito de objeto do signo aborda-do por Peirce.

2. Os registros lacanianosLacan, relendo a obra de Freud, estabeleceu os três registros psicana-

líticos da dimensão psíquica humana. São eles o imaginário, o simbólico e o real.

O imaginário é o registro da busca por si mesmo no outro. É neste processo que nasce a subjetividade. A criança, segundo o célebre Estágio do Espelho de Lacan (1966), pensa ver sua imagem refletida no espelho e nesse ato, pensa também reconhecer seu próprio corpo. Acredita ter alcançado a unidade. Ao tomar-se como a imagem que se apresenta, a criança se engana, porque a imagem de si mesma é apenas um registro do eu. A imagem representa o eu. Não é o eu. É fragmento parcial do eu da criança. O Estágio do Espelho bem ilustra que a constituição da identidade dialeticamente se instaura na relação com a alteridade.

Visto dessa forma, o registro do imaginário se apresenta como um engodo. No entanto, essas ilusões fornecidas pelo imaginário são regis-tros carregados de significados e, ao mesmo tempo agem como pro-vedores de conteúdos para o simbólico, ou seja, o imaginário é uma imagem externa e prenhe, que desperta sentidos num sujeito. Assim “senhor e servo do imaginário o eu se projeta nas imagens em que se espelha: imaginário da natureza, do corpo, da mente e das relações so-ciais” (SANTAELLA; NÖTH, 1999, p.190).

E isto nos mostra que o ser humano desde a sua origem será um ser que busca a completeza, mas é marcado pelo desamparo: sozinho está. Nasio (1993) completa estas afirmações, dizendo que a imagem total de seu corpo, o corpo da criança, no estágio do espelho, como unidade imaginária, na verdade são sensações múltiplas e dispersas.

O simbólico é o espaço do significante, lugar da linguagem, ins-talação da forma material da linguagem. Serve para Lacan “designar um sistema de representação baseado na linguagem” como afirmam Roudinesco e Plon (1988). Espaço da mediação. “Ele é lei, estrutura regulada sem a qual não haveria cultura. Lacan chama isso de grande Outro. O Outro, grafado em maiúscula, foi adotado para mostrar que a relação entre o sujeito e o grande Outro é diferente da relação com o outro recíproco e simétrico ao eu imaginário” afirma Santaella (1986, p.28). Se o imaginário nos traz a imagem, o simbólico nos apresenta

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um corte: um corte entre o objeto “real” existente no mundo e a sua representação.

O real, extraído simultaneamente do vocabulário da filosofia e do conceito freudiano de realidade psíquica, designa uma realidade feno-mênica que é imanente à representação e impossível de simbolizar, con-forme podemos encontrar no Dicionário de Psicanálise (1988). O real é, para a psicanálise, aquilo que não cessa de se escrever. Ele não inter-rompe jamais a representação. Sempre haverá um resto irrepresentável, algo que resiste à simbolização. Na categoria do real, Roudinesco e Plon (1988) afirmam que Lacan estabeleceu uma realidade desejante que é inacessível a qualquer simbolização.

O real lacaniano difere daquilo que comumente conhecido como noção corrente de realidade. Para ele, o real é a sobra do imaginário que o simbólico não consegue capturar em toda sua integridade. Do real, na sua verdade, apenas nos aproximamos pela mediação do signo. “Real é aquilo que falta na ordem simbólica, o resíduo, o resto ou sobra ineliminável de toda articulação que pode ser aproximada, mas nunca capturada” (SANTAELLA & NÖTH, 1999, p.191).

Estes três registros têm como marca a incompletude e há uma rela-ção de interdependência entre eles. E é Santaella (2008, p. 148) quem nos demonstra a interdependência desses registros lacanianos, explici-tando-nos que um registro prescinde do outro. Vejamos nas próprias palavras da autora:

Embora poderoso na função mediadora dos laços sociais que en-seja, o Simbólico não passaria de uma maquinaria regrada, se não fosse o imaginário para preenchê-lo com conteúdos, mas esses conteúdos são sempre ilusórios, alimentados pela nostalgia de uma imagem primeva, que não cessa de acenar com a promessa de uma completude que se prova impossível.

O simbólico são significantes, que assumem sentido com as cores do imaginário. Entre o imaginário e o simbólico há a produção de sentido. O imaginário fornece conteúdos para os sentidos; o simbólico lhes dá fisicalidade. E o real?

No real habitam as pulsões, compreendendo a pulsão como desejo que nos alimenta. É uma carga energética que nos impulsiona a procu-rar o objeto desejado. Os objetos são sempre desejados, mas a satisfação é apenas momentânea, o que significa que, satisfeito um desejo, outro desejo nasce e precisa ser satisfeito. É este o mecanismo que governa o erotismo e a publicidade, por exemplo. Santaella (2008, p.146) nos ajuda a compreender melhor o conceito de pulsão. Senão vejamos:

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Pulsão significa, como bem o demonstrou Freud, que nenhum objeto de nenhuma necessidade jamais poderá trazer satisfação ao corpo do humano porque a natureza da pulsão é dar intermi-náveis voltas em círculos, um movimento cujo verdadeiro ob-jetivo coincide com o seu próprio caminho rumo a uma meta inalcançável. Ainda para Santaella (2008, p.147), o objeto da pulsão foi chamado

por Lacan de objeto “a”. O objeto “a” é uma curvatura do próprio espa-ço do que resulta só seja possível dar voltas quando se quer alcançar o objeto. Por isso mesmo é o objeto “a” que impede que o círculo do prazer se feche, introduzindo um desprazer irredutível na própria busca do prazer.

No Dicionário de Psicanálise (1998, p.551) encontramos o seguin-te conceito para o objeto (pequeno) a: “termo introduzido por Jacques Lacan em 1960 para designar o objeto desejado pelo sujeito e que se furta a ele a ponto de ser não representável, ou se tornar um ‘resto’ não simbolizável”.

Nasio (1993, p.117) afirma que “o objeto “a”, dentre das várias acep-ções que se pode dar a ele, em sentido estrito “é o gozo enigmático e inominável que Lacan chama de mais gozar. O advérbio mais frisa que o objeto é sempre um excesso ou um a mais de energia residual, inassi-milável pelo sujeito”.

O gozo, para Lacan, segundo Nasio (1993) não se confunde com vo-lúpia. Segundo o autor, a ideia de gozo se liga a Freud, quando afirma que o ser humano é atravessado pelo desejo, sempre constante e jamais realizado de atingir um objetivo impossível: atingir uma felicidade abso-luta que se confunde com o desejo, também inatingível, da completude.

Para Santaella (2008, p.149) é “pela falta que o desejo se anima”. Continua a autora dizendo que o desejo pode funcionar via descarga, retenção e liberação total. Essa terceira via, “a da liberação total da energia sem entraves e sem limites, é puramente hipotética e irreali-zável”.

A partir do funcionamento do desejo, Lacan, segundo Nasio (1993, p.27) propõe três tipos de gozo: o gozo fálico, o mais gozar e o gozo do outro. “O gozo fálico corresponderia à energia dissipada durante a descarga parcial, tendo como efeito um alívio relativo, um alívio incom-pleto da tensão inconsciente”.

O mais gozar consiste em reter uma parcela do gozo, isto é, há uma energia psíquica que não é totalmente descarregada. O mais gozar tem um aspecto residual a quem cabe estimular constantemente a tensão interna.

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Façamos aqui uns parênteses para relacionar esse conceito de mais gozar com o erotismo. Para Bataille (1988), o erotismo resulta de ele-mentos antagônicos, mas complementares que seriam a vida e a morte. E essa ideia advém da compreensão do mito de Eros, pois segundo a mitologia grega, Eros, o deus do amor, tem capacidade de provocar a unidade, além dos limites da união sexual. Seu poder se estende à ideia de conexão com o princípio da vida ou com o da morte.

Isto porque, conforme registra Platão em O banquete, Aristófones, convidado do Banquete, narra que antes do nascimento de Eros, a humanidade se compu-nha de três sexos: o masculino, o feminino e andrógino. Os andróginos tinham apenas uma cabeça, mas duas genitálias, quatro pernas, braços e orelhas. Essa natureza os tornava poderosos, tanto é que resolveram desafiar os deuses. Zeus, então, corta-os ao meio para deles retirar-lhes o poder. Mutilados e incompletos, esses seres partem em buscam da sua metade. Sentem-se incom-pletos. Anseiam por um desejo de unidade e de união. Desta trama é que resulta Eros, a busca de um desejo, sempre satisfeito, mas apenas por alguns momentos.

Finalmente resta-nos abordar o terceiro tipo de gozo que é gozo do outro. É ainda Nasio (1993, p.27) que nos fornece esclarecimentos sobre a terceira categoria do gozo. Para ele, “seria um estado hipotético que corresponderia à situação ideal em que a tensão fosse totalmente des-carregada sem o entrave e nenhum limite”. Seria a obtenção impossível da total liberação do gozo.

Como podemos ver todas essas categorias da psicanálise que levan-tamos acima põem em evidência a incompletude1 que habita no ser hu-mano. Analisemos a partir de agora o objeto peirceano.

3. O objeto peirceanoSegundo Peirce (CP 1.339), o signo “‘representa’ algo para a idéia que

provoca ou modifica. Ou assim - é um veículo que comunica à mente algo do exterior. O ‘representado’ é o seu objeto; o comunicado, a sig-nificação; a idéia que provoca, o seu interpretante.” Um signo envolve, portanto, uma tríade que pode ser dada pelo diagrama abaixo (figura 1).

Signo/Representamen

Objeto Interpretante Figura 1

Tríade peirceana para a definição de signo (DRIGO, 2007, p.63)

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Deste modo, observando o diagrama, podemos dizer que um signo representa o objeto, portanto é a causa fundante desse signo, ou como nos diz Peirce, “o ‘representado’ é o objeto”. Se ele representa o objeto, ou seja, se está no lugar do objeto, não é o próprio objeto. Santaella (1995, p.49) afirma que:

O signo representa o objeto, porque, de algum modo, é o próprio objeto que determina essa representação, porém aquilo que está representado no signo não corresponde ao todo do objeto, mas apenas uma parte ou aspecto dele. Sempre sobram outras partes ou aspectos que o signo não pode preencher completamente.

O signo, afeta uma mente (no caso, pensemos na mente humana) e nela determina algo devido a esse objeto, o interpretante. Como o signo é o “veículo que comunica à mente algo do exterior”, então, só temos acesso ao mundo exterior por meio de signos. No ato de apreender os fenômenos, o pensamento necessariamente os converte em signos.

Vamos conferir essas explicações em outra definição de Peirce.

Defino um Signo como qualquer coisa que, de um lado, é assim determinado por um objeto e, de outro, assim determina uma ideia na mente de uma pessoa, esta última determinação, que de-nomino o Interpretante do signo é, desse modo, mediatamente determinada por aquele Objeto. Um signo, assim, tem uma rela-ção triádica com seu Objeto e com seu Interpretante (CP 8.343).

O interpretante é o produto da síntese intelectual e a ação do signo só se efetiva quando ele gera outro signo, ou seja, o interpretante não permanece como potencialidade.

Quanto ao objeto, objeto de nosso estudo, ouçamos Peirce:

(...) temos de distinguir o Objeto Imediato que é o objeto tal como o próprio signo o representa e cujo Ser depende assim de sua representação no Signo, o Objeto Dinâmico, que é a realidade que, de alguma forma, realiza a atribuição do Signo à sua repre-sentação (CP 4.536).

Para Peirce, portanto, o signo possui, pois, dois objetos: o imediato e o dinâmico. Expliquemos. O imediato está dentro do signo. É o modo como o signo apresenta o objeto dinâmico a uma mente, sugerindo, in-dicando ou representando o que está fora dele. O objeto imediato tem uma natureza sígnica e, segundo Santaella (1995), Peirce introduziu essa

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noção para demonstrar a impossibilidade de acesso direto ao objeto di-nâmico, sem a mediação do objeto imediato. Exemplifiquemos. Se for um signo verbal, por exemplo, o objeto imediato pode se configurar no tamanho das letras ou na escolha de uma palavra em detrimento de ou-tra; se visual, pode traduzir o objeto dinâmico em nuanças de cor, for-ma, traçado, tamanho, jogos de luz, sombra. Podemos dizer que o objeto imediato, de natureza sígnica, é a própria materialidade que se nos apre-senta, ou seja, é o material com que os usuários de signos trabalham.

O objeto imediato é nosso acesso ao objeto dinâmico. A função do objeto imediato é, então, agir como elemento mediador entre signo e objeto dinâmico. Ele é “sempre um signo que nos coloca em contato com tudo aquilo que chamamos de ‘realidade’” (SANTAELLA, 1995). Ao capturar uma faceta do objeto dinâmico, o objeto imediato já é uma imagem mental, e se faz representar no próprio signo.

Cada apreensão do mundo, configurada no objeto imediato, são pe-daços do que existe no mundo. É o mundo em fatias que se nos apre-senta e cada representação focaliza um aspecto, sem jamais conseguir abarcar o ser/objeto por inteiro.

O objeto dinâmico é aquilo que rodeia o signo, está ao seu entorno. Segundo a autora (2002) quando pronunciamos uma frase, nossas pa-lavras falam de alguma coisa, referem-se a algo, aplicam-se a uma de-terminada situação ou estado de coisas. Elas têm contexto. Assim todo contexto particular que está no entorno do signo é seu objeto dinâmico. Dessa forma, o objeto dinâmico é externo ao signo e é sempre muito mais amplo do que o signo, ou seja, ele é maior do que aquilo que o ob-jeto imediato, na sua natureza sígnica, é capaz de representar.

A captação feita pelo signo de apenas um dado do objeto dinâmi-co advém da impotência do signo para abraçar o objeto em todas as dimensões. Sempre ficarão significados à mercê de novos intérpretes com outros registros de memória e em outras condições de produção de interpretantes, com outras experiências colaterais. Outros aspectos ficarão pulsando à espera de novas encarnações simbólicas a partir das sugestões do imaginário. É a realidade grávida de sentidos.

Do objeto dinâmico, o signo sempre capta um dos aspectos. O objeto dinâmico se situa na amplidão de aspectos que um signo pode suge-rir, apontar ou representar. Os outros aspectos ou algumas das sobras podem ser recuperadas no processo da semiose ou, ainda, podem ser flagradas em outras semioses particulares. A captação feita pelo signo de apenas um dado do objeto dinâmico advém da impotência do signo para abraçar o objeto em todas as dimensões.

Vemos então que ao representar o objeto, o signo apresenta dupla face. A primeira face aponta para fora – dinâmico – e a segunda aponta

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para dentro; é o objeto imediato, objeto tal como o signo o representa. O dinâmico corresponde à realidade, ao contexto e o intérprete precisa ter familiaridade prévia com essa realidade para apreender o signo. É a exigência da chamada experiência colateral. O objeto imediato é sempre um recorte do objeto dinâmico, dada à amplitude deste último. Estes dois objetos, à luz do signo e, correlatamente, produzem o interpretante.

O signo é incompleto devido à sua impossibilidade de reter o objeto dinâmico que é vasto e ilimitado. O signo só poderá representar algum aspecto do objeto - o aspecto inscrito no signo que é o objeto imediato. O signo busca então se completar no interpretante.

Santaella, de uma maneira muito didática deixa bem clara a diferen-ça entre objeto imediato e do objeto dinâmico, a partir da análise do signo espelho. Vejamos nas próprias palavras da autora:

A primeira característica do signo é a de funcionar como uma es-pécie de duplo em relação ao seu objeto dinâmico. A imagem espe-cular é um duplo daquilo que está nela refletido. A imagem refleti-da é um signo. Aquilo que ela reflete é o objeto dinâmico. Ora esse objeto dinâmico tem sempre muito mais caracteres do que aqueles que aparecem na imagem especular. Só pode fazer do objeto refle-tido uma captura frontal, perdendo a parte lateral ou traseira ou vice-versa. O modo como o objeto dinâmico aparece naquele refle-xo especifico se constitui em objeto imediato (2001, p.46).

Sintetizando, podemos dizer que o objeto dinâmico é aquele que, do lado de fora do signo, no mundo “real”, determina o signo. Alguma espé-cie de correspondência liga o signo ao objeto. A primeira representação mental dessa correspondência (e como representação mental já é signo) é o objeto imediato. O que faz a ponte do signo até o objeto dinâmico é o objeto imediato e assim o faz com a preponderância de algum aspecto que o fundamento ou natureza do signo impele. Se o fundamento do signo for uma qualidade, ele capturará do objeto dinâmico como mera aparência, ou algo que apenas sugira o objeto dinâmico. Se a natureza do signo for a de ser existente, sua conexão com o objeto será factual e o signo indica, aponta para o objeto dinâmico; finalmente, se o signo tiver caráter de lei, ele vai representar o objeto dinâmico, em termos convencionais.

Na semiose, portanto, nos aproximamos do objeto dinâmico, cami-nhamos ao seu encalço. Nela estamos sempre no espaço da procura. Estamos sempre no meio do caminho, pois nunca podemos afirmar que um signo desenvolveu todo o seu potencial a ponto de esgotar todos os aspectos que o objeto dinâmico, via objeto imediato, pode sugerir, indicar ou representar.

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Algumas considerações Isto posto, acreditamos que o simbólico de Lacan parece-nos ter cor-

respondência com o objeto imediato de Peirce. Tanto o simbólico como o objeto imediato apresentam a natureza de linguagem. É o simbólico que apresenta um corte no imaginário. É o objeto imediato que apresen-ta uma fatia do contexto que o rodeia o signo.

E o imaginário lacaniano, espaço da formação da subjetividade, identidade, da alteridade, não poderia ser chamado como contexto do signo, ou seu objeto dinâmico?

Se assim for, o sentido estaria na conjunção do real e do imaginário, na conjunção do objeto imediato e objeto dinâmico. E o real, por ser impossível de ser simbolizado, permaneceria como aquilo que não cessa de se escrever.

E tanto os conceitos psicanalíticos como os conceitos de objeto de Peirce, não estariam apontando para a impossibilidade de completude, um desejo humano que, inelutavelmente, não cessa de acenar para a humanidade, mas que nunca se cumpre?

Notas1 Sobre incompletude do sujeito e dos sentidos ver E. Orlandi (1988).

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Palavras-chave: Imaginário. Real. Simbólico. Signo.

Key-words: Imaginary. Real. Symbolic. Sign.

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