pedro paixão - amor portátil pt

87

Upload: carlascala

Post on 04-Dec-2015

16 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Pedro Paixão - Amor Portátil PT

TRANSCRIPT

Pedro Paixão Amor Portátil Cotovia Pedro Paixão nasceu em Lisboa em 1956. Estudou Filosofia que também ensina. É sócio da empresa Massa Cinzenta. Tem um filho. É casado. Em Julho de 1992 publicou nos livros Cotovia o seu primeiro livro de ficção A Noiva Judia, a que se seguiram Vida de Adulto (1992), Boa Noite (1993), Histórias Verdadeiras (1994), Viver Todos os Dias Cansa (1995), Muito meu amor (1996) e Nos teus braços morreríamos (1998). Ao Senhor Luiz Pacheco «*each drug that numbs alerts another nerve to pain*«. Robert Lowell

Lódz No ghetto de Lódz uma mulher de 42 anos aproximou-se do arame farpado pedindo à sentinela que a matasse. O soldado exigiu que primeiro dançasse e depois de a ver dançar atirou à queima-roupa. Foi no dia 11 de Novembro de 1941 em Lódz, na Polónia, como já disse, ou em qualquer outro lugar.

Noite antiquíssima Assusto-me ao pensar que as noites são iguais e que vou ter de as atravessar, uma a uma, sozinho. Estranho só agora reparar numa coisa tão óbvia. Que uma noite antiquíssima se sucede igualzinha à outra desde sempre, que tenho diante de mim uma enorme massa informe e vazia onde tudo desaparece, em que nem sei quem sou, inconsciente. Faço conjecturas teológicas para me explicar esta escuridão, esta falta de sentido. Deus ter-se-á esquecido desta sua obra por ter começado outra? Ter-se-á fartado das suas pretensiosas criaturas e começado tudo de raiz noutro sítio? Sentir-se-á arrependido e triste e impotente depois de cometidos crimes tão monstruosos e sem coragem de nos dizer da sua fraqueza? Será bom e justo mas já incapaz de impor a sua justiça depois de muitas tentativas falhadas, um deus cansado e velho que os filhos ignoram e deixam de visitar num lar suburbano? De cada vez que começo a pensar nisto há sempre um ponto a partir do qual deixo de pensar no que quer que seja, em que os juízos se atrapalham uns aos outros, confundindo-me. Sinto invadir-me uma melancolia de outros tempos em que acreditar :, era mais fácil. Ou talvez não, talvez me engane, talvez tenha sido sempre assim, do mesmo modo absurdo. O que sei é que sozinhos nos invade um terror agudo que nos imobiliza os membros e a vontade e que outros se encontrem na mesma situação não chega para dar o alento mínimo indispensável. Sozinhos numa solidão universal, que pavoroso panorama. Será certamente a causa por que a distracção deixou de ser um complemento agradável no decorrer dos dias para se tornar numa questão de sobrevivência e o seu valor monetário subir em flecha. Precisamos urgentemente de nos enganar com o que quer que seja, de fugir à brutal realidade das coisas, de entrar em zonas que nos poupem da lucidez. Adoecemos rapidamente se não formos entretidos. O amor entra aqui como água em terra seca, um substituto em tempos indigentes, de grande insuficiência, o que nos resta. Mas é um amor em sobressalto, fugidio, instável. Um amor que mete muito medo, medo de irremediavelmente nos perdermos, de não nos voltarmos a encontrar senão mais sozinhos, não podermos ou não querermos continuar e ficarmos pior do que estávamos no começo. Não sei o que me deu para me pôr a pensar nisto. Se ao menos ajudasse. Os pensamentos convertem-se noutros meros pensamentos e em volta tudo se cala.

Sofrimento O sofrimento pode ter sentido, transformar--nos por dentro. É preciso paciência. Porque o tempo parece nunca mais acabar e somos projectados para um ponto muito longe do convívio entre os humanos. Faz parte do sofrimento deturpar as coisas, vê-las através de lentes tão fortes que facilmente entontecemos, nos desequilibra-mos, caímos. Temos medo de tudo, de nós mesmos. A simples superfície das coisas nos agride. Somos assaltados por demónios que nos roem a alma. É um tormento em que nos atormentamos. É preciso ter paciência e o mais das vezes não a temos. A violência da vida bate-nos em cheio. Procuramos abrigos e todos cedem e nenhum é suficiente. Recordamos a paz que perdemos como o bem mais precioso, ignoramos o caminho que nos traga de volta a nós próprios. Falta-nos a coragem, mas para ela nem encontramos motivo. O mundo todo é um mal-entendido que aguarda-mos que se resolva ou estoire e enquanto nada acontece sofremos. Agarramo-nos a coisas que se nos escapam entre os dedos. Só a morte está por todo o lado desperta, cerca-nos, olha-nos com os, olhos muito abertos, mete medo. Fechamos os olhos, mordemos os lábios, fugimos para debaixo da cama e não há maneira. O amor é uma coisa tão distante, tão impossível. Vivemos, momento a momento, uma solidão que nos aperta a garganta, faz de nós o que quer. Uma música, uma palavra, uma folha caída e é o suficiente para nos trazer uma irremediável precisão de chorar. E quando choramos não sabemos bem porque o fazemos, é só a tristeza a tomar conta de nós. O sofrimento pode ter sentido, transformar--nos por dentro. Meu deus, fazei que assim seja. Dai-nos a paciência e uma pequena esperança. Ajudai-nos a aceitar quem somos. Salvai-nos da confusão. Obrigai-nos a prosseguir, porque ignoramos.

Toda a gente precisa de morrer uma vez Acabava de jantar um arroz de pato que a minha avó me tinha embalado em papel-metal, sobra do almoço de domingo, e preparava-me para me enfiar na cama com um livro do Primo Levi nas mãos quando, sem avisar, apareceu o meu amigo. Vinha com uma conversa ainda mais esquisita do que o costume. «Convencemo-nos que a pior coisa que nos pode acontecer é morrer. Errado. Isso seria a melhor coisa que nos podia acontecer. Nós não vamos morrer,» disse de seguida, depois de um trago de vodka gelado que lhe pus nas mãos. «Pois, pois, isso é uma coisa muito antiga,» retorqui com pouca vontade de metafísica. «_São belíssimos os templos de Luxor. De certa maneira nós também podemos decidir não morrer. Não estou certo é do resultado final.» E ele: «Não é nada disso. Não vês? Seria demasiado fácil, muito conveniente, mais do que natural. Fizesses isto ou aquilo, e pouco importa o quê, se bem ou mal, e chegava o ala em que tudo acabava, ficava tudo apagado, isto a que chama-mos, viver. Como nos enganamos. Tu não vais morrer, tu *estás* a morrer. É diferente. Tu não vais acabar, tu vais continuar. Não está nas tuas mãos nem o princípio nem o fim, a tua alma é imortal.» Levantei-me da cadeira, procurei um disco compacto que não encontrei e voltei a sentar-me na mesma cadeira. Ele insistiu. «Estás a entender o que eu quero dizer, ou não? Pensas: Bom, como cheguei até aqui não sei, foi um daqueles acasos, enfim, que é a maneira que tens de dizer que não tens a mínima ideia de como vieste aqui parar, mas posso sempre sair daqui, como quem sai pelas traseiras e bate a porta atrás de si. Uma enorme vantagem, sobretudo quando as coisas não estão a correr bem. Muito melhor que o melhor seguro de vida, um seguro de morte. Só que te enganas outra vez. Nós não decidimos nascer. Nem morrer.» O meu amigo vem sempre com conversas muito interessantes às horas menos convenientes e eu disse-lhe que tinha de acordar cedo, visitar uns clientes, que nos víamos no dia seguinte para o café. «Está bem. Vou já. Deixa-me acabar a vodka.» Não tentei ler e dormi muito mal. Sonhei que estava fechado dentro do metro parado há horas numa estação qualquer e perguntava insistentemente aos meus companheiros de viagem onde estava a minha

alma porque a queria salvar. Ninguém percebia o que queria dizer. Eu também não os entendia, falavam uma língua que ora parecia russo ora castelhano. Éramos estrangeiros num sítio de ninguém. Acordei de manhã muito assustado a suar e pensei: «Estamos todos à mesma distância da morte, que é nula. É a razão que temos para continuar a viver.» Levantei--me e fui lavar a cara.

O meu amigo e eu A literatura, assim como assim, só nos dá cabo do juízo. As mulheres destroem-nos a vida. Isto era o que o meu amigo me dizia enquanto provava, com toda a sabedoria, um vinho. Eu concordava, se bem que não entendesse muito bem o que ele entendia por literatura ou quisesse dizer precisamente com a destruição das vidas. Estávamos os dois desconsoladamente tristes, o que por vezes embaraça o pensamento, e faziam-se longos os silêncios. Depois do vinho ficámos mais animados, era um remédio. Quando saímos para a rua quem nos visse não adivinharia o mal que nos roía. Éramos só duas sombras avançando pela noite. A certa altura disse-me: «_Não basta viver a dor, ainda ter de a escrever» e percebi que tínhamos voltado ao começo. «Ainda se nos distraísse por pouco que fosse. Mas agora andar nisto sem saber porque razão, com que fito, a insistir no mesmo.» Eu não tinha de responder e olhava para o chão como para um desenho esquisito e indecifrável. Custava-me respirar, mas sabia que não era nada, era só aquele conhecido buraco no meu peito. O meu amigo era pelo menos tão forte quanto eu, e entre nós não havia lugar para a piedade. Na próxima paragem tomaríamos mais remédio.

Vila do Conde *para Rui Pedro Tendinha* Dormi pouco. Fiz trezentos quilómetros. Julguei ver-te várias vezes no caminho. Encontrei os teus cabelos soltos numa estação de serviço. Ao abrir sem querer o guarda-luvas redescobri o teu cheiro. Por duas vezes pensei na tua boca em estado de pura provocação. Eras quase tu e nunca me dizias nada. O cansaço deixa-nos tão vulneráveis. Um bom amigo levou-me para o Norte. Achou por bem que mudasse de paisagem, de companhias. Na noite em que chegámos bebemos tanto, ele ainda mais do que eu. De manhã não se recordava do fim da noite. Perguntou-me várias vezes se não tinha feito nenhuma asneira e não se mostrava tranquilo quando lhe dizia que não. Como se eu não fosse de confiança no que respeita a recordações. Havia um rio, havia rosas. Eu acho que tivemos sorte. O meu amigo só me pedia que não o deixasse sozinho, que tinha medo de não voltar a encontrar o caminho do hotel e no hotel a porta do quarto. Dormi sozinho. Antes ainda li alto uma tradução de um poema de um poeta chinês afeiçoado aos pirilampos. Por todo o lado as pessoas eram simples, acolhedoras, quase pobres. São coisas que se notam por pequenos indícios - palavras, roupas, dentes - que tudo alteram, e as tornam humanas. Ao meio-dia fomos para a praia. Havia vento, a areia magoava as plantas dos pés, miúdos apanhavam estrelas do mar que depositavam na orla húmida da areia onde lentamente se contorciam. Eu mergulhei nas águas. O meu amigo não, sentia-se podre, dizia. Não largou a t-shirt nem tirou o boné. Eu abri os olhos dentro de água para que ela os lavasse e senti a minha cabeça muito quente, prestes a explodir, coisa que nunca antes tinha experimentado. As pessoas protegiam-se dentro de barracas de lona listrada, azul e branca. Algumas jogavam ao prego, outras comiam coisas que retiravam de cestos. O meu amigo dizia-me que aquilo ali não existia, que era outro mundo e depressa ficou impaciente. Fomos num sábado, viemos num domingo. Eu gostava de ter ficado mais tempo. Talvez ali pudesse finalmente livrar-me de ti. Dois homens a chorar num restaurante de luxo. Escolhemos uma mesa junto à janela e pedi-mos cherne grelhado. Há quatro meses que não nos vemos, cada um com os seus problemas, ele a refazer uma empresa, eu a curar-me de ti. Claro que de ti não falo, porque não temos intimidade para isso e porque

falar de ti é arriscar-me a reavivar a ferida, a dor que hoje ainda não senti. Por isso nem minto quando digo que já estive mal e que hoje estou bem. Mas, de repente, o meu amigo, o meu novo amigo, sem que pareça vir a propósito, começa a falar de um amor antigo e que não passa, um amor excessivo como o nosso e eu fico preso às palavras que me diz sem cuidar de mais nada. Como é possível que outros tenham sentido o que eu senti? É um escândalo. Eu digo-lhe que o meu interesse é puramente literário mas que por favor não pare. Há pormenores, detalhes que são uma réplica perfeita do que fomos, coisas sem importância que guardamos como tesouros. Olhamo-nos fixamente nos olhos como se um do outro aguardássemos uma resposta a qualquer coisa que não saberíamos pôr por palavras, náufragos sem desejar salvação. E enquanto ele me conta devagar com todos os cuidados – é imperioso que nada falte - a despedida, o último abraço, a voz embarga-se-lhe, vêm-lhe, lágrimas aos olhos e depois sorri. Também eu sinto os olhos húmidos, uma vontade de o abraçar de o proteger, embora ambos saibamos que não há maneira de afastar para longe aquela dor que bate quando quer. Pagamos a conta e saímos, seguindo calados pelas ruas cheias de um sol sem compaixão. Uma montra lembra-nos com malvada ironia que vem aí o dia dos namorados. Deixo-o à porta do escritório onde nos abraçamos pela primeira vez e continuo em frente sem me perguntar para onde.

Vidas Uma pessoa não pode viver a vida de outra. Por mais perto que esteja, por mais necessidade que haja, por mais vontade que tenha. Uma pessoa nasce separada de todas as outras, vive uma vida que é só dela e acaba por morrer no minuto de uma hora que lhe é destinada. Não deixa de ser estranho apesar de não poder ser de outra maneira. E duas pessoas sozinhas não fazem uma pessoa acompanhada. Pelo contrário: a solidão de uma potência a solidão da outra, como uma lupa, até ao fracasso. O fracasso aqui significa a desistência, o abandono, a busca de outra coisa. Escrevo isto para me convencer que não vale a pena contrariar a solidão que aumenta. Penso nisto para aceitar o absurdo de andarmos misturados e cegos e impenetráveis. Vivo isto porque não tenho outra maneira de viver. Sinto o peito oprimido por uma dor antiga que sei não irá passar. Vejo a minha mãe, a minha mulher, o meu filho como estrangeiros cujos corpos roçam o meu e cada qual segue com o seu destino desalinhado. Vem-me uma grande vontade de gritar que silêncio. A esta hora já ninguém ouviria.

Uma história triste A minha musa tinha os cabelos pretos e encaracolados e os olhos doces como mais não pode haver. Era um pouco vaidosa dos seus seios belos, mas comigo não tinha sorte porque os não desejava, que as musas querem-se longe, à distância do olhar. A minha musa não tinha culpa alguma de o ser. Não fez pedido ou meteu cunha. Era só um mistério que me ligava à divindade e me fazia escrever.

Quarto 909 «O Quarto é o 909. A porta fica aberta. Quando chegares, entra.» E deitei-me sobre a cama, duas almofadas debaixo da cabeça, um livro de poesia nas mãos. Por mais que tentasse ler, regressava sempre ao mesmo verso, «porque aqui não se pode amar, senão deixar-se amar», por me parecer mesmo verdade e ficar a pensar nisso ou porque a ansiedade me imobilizava qualquer gesto. Eu estava à tua espera há muito tempo, é bem verdade. Depois levantei-me. Achei que era indelicado não te aguardar à entrada do hotel. Tu saíste do táxi, o cabelo apanhado, os movimentos lentos. Era a primeira vez que te via e não podias ser senão tu. Segui à tua frente. No quarto deitei-me sobre a cama, duas almofadas debaixo da cabeça e li-te o poema com o verso «porque aqui não se pode amar, senão deixar-se amar«. Quando terminei pediste-me mais. Deve ter sido então que a paixão se precipitou e com ela o sofrimento. Quando saímos para jantar quase nos perde-mos. Havia uma rapariga deitada sobre a relva que parecia adormecida, dizias tu, morta, diria eu. O vinho que bebemos era tão bom que nos fazia saber ao mesmo, confundindo-nos de perto. Quando regressávamos ao hotel as ruas enchiam--se de gente sem saber o que fazer, passeando, e eu aproveitei para te agarrar o braço confessando-te ao ouvido uma simples palavra. Ao meu lado eras mais alta do que eu e tinhas metade da minha idade. De novo no quarto, deitada de bruços sobre a cama, os sapatos a baloiçarem no ar, pedias-me que lesse não importa o quê, o que fiz sem qualquer vontade porque os meus olhos eram fáceis presas do teu corpo que adivinhavam belo por debaixo de toda a roupa de inverno, sufocado. Ainda por cima estavas constipada, a tua voz cativava-me. A certa altura ousei aproximar-me de ti, descobrir-te um ombro e beijá-lo e depois recuei o mais depressa que pude com receio de ser identificado. Era tão bom assim que não podia ser de outra maneira. Nunca antes fora tão natural o existir uma mulher e eu estar ali a seu lado. E nada parecia ser urgente quando nos sentámos no terraço fixando uma inconsolável estrela até o frio nos despedir. Na manhã seguinte tinhas de partir cedo e eu levei-te no carro onde adormeceste, as tuas mãos dentro das minhas, sujeitos a todos os acidentes, prometendo guardar segredo daqueles momentos em que ao misterioso amor nos entregámos.

Quando uma mulher deixa de amar um homem Já nada serve tentares enganar-te a ti próprio, jogares para a frente o destino. Acordas numa manhã igual a todas as outras com a certa certeza de ela não te amar e sabes bem que o amor não se repete. Que persistes na vida dela como uma espécie tolerada que insiste em continuar por ali, alguma coisa que ainda dá sinais de vida e já vai morto, erva arrancada ao caminho, que para algumas coisas ainda serve. Percebes, deitado de costas, com uma irrecusável nitidez que ela se quer ver livre de ti para sempre e só ainda tem a piedade ou a pena de não to dizer pelas palavras mais simples. Quer que o descubras por ti e partas por tua livre vontade. Como se tivesses lugar para onde ir. Não ousas tocar-lhe, não ousas dizer uma palavra sequer, choras baixinho para que ela não acorde. Já não te consegues esconder, tapar com um muro ou um écran de fantasia. Esta mulher deixou de te amar, uma coisa simples que pode sempre acontecer a quem quer que seja, está sempre a acontecer por todo o lado. Uma coisa irreversível e irreparável e estúpida como um desastre inesperado. Não ousas mexer-te, com :, receio de a acordares e ouvires as palavras temíveis. Gostavas que tudo fosse um sonho, um pesadelo, mas sabes bem que não. Sentes tanto medo que continuas imóvel. Não sabes para onde fugir, onde te esconderes. A mulher deitada ao teu lado é o teu perigo, e não tens qualquer esperança, nem vontade, de lhe sobreviver. Sentes só uma dor aguda no peito que vai e volta para se fazer melhor sentir, uma faca que te espetam devagar e com maldade. A mulher que te amou e deixou de te amar, que se enganou, uma coisa tão simples como isso, tão vulgar como esta, só que és tu que estás ali parado e ferido sem te poderes levantar, sem poderes acabar o que quer que seja ou recomeçar o que quer que seja, nesta manhã igual a todas as outras em que descobres o que já sabias e maldizes a vida que por instantes vos uniu e vos separou.

Coração na boca 1 Começaste por perguntar «_Queres acabar comigo? Como se me fosse possível acabar contigo. Nem que te matasse. Se te matasse seria pior ainda, pior do que já sou. Não preciso de te ver para te matar. Preciso só de matar o que eu sou. Não te encontrei por acaso. Foi mesmo preciso, uma necessidade da vida, do mundo, não minha. E agora dói tanto continuar a rever-te. Repito para dentro de mim que o passado não existe. Uma fraca estratégia para enganar o futuro. Quando entraste pela primeira vez no carro já tudo estava decidido. Que não íamos a nenhum lado. Sequer fazer amor. Lembro tão bem as noites em que te pedia morfina, para adiantar o tempo, para atrasar o mundo. Desfiz-me tanto nas tuas mãos que acabei em páginas de livro. 2 No princípio era tudo muito calmo e triste e vagaroso. Eu já não tinha qualquer esperança. Entretinha-me a ideia de te ter, não a vontade. Eu sabia que não podíamos o que quer que fosse. Tu não sabias nada. Eu dizia: amanhã vamos almoçar. Tu dizias: está bem, vem-me buscar. E eu ia. Almoçávamos nos restaurantes mais caros da cidade. Para não sermos vistos. Para te mostrar o meu poder. Pedia o que tu pedias, por educação, para sublinhar o teu bom gosto, para te conhecer. Tu não podias ser vista comigo. Eu não podia ser visto contigo. Tu tinhas tido um namorado, eu tinha uma mulher. Tu achavas-me muito esquisito. É que não precisávamos de nos ver para cairmos juntos no amor. Vermo-nos só trouxe complicações. Nós não sabíamos nada, era isso, nem tu nem eu, apesar da confiança com que olhávamos as nossas vidas. Eu com muito pouca, tu com muita. O que tu querias era vingar-te e eu também. Dos outros, do mundo. Escolhemo-nos para isso. Não podíamos estar melhor um para o outro. Do que nos tinham feito, do que não nos tinham feito. E, por vezes, as tréguas, a maravilha de estarmos ali um para o outro, para mais ninguém, o mundo todo arrependido de existir. No princípio era tão triste, tão calmo, tão bonito. Ainda não chegara a

pressa de acabar. Ainda nem sabíamos do começo, que já tinha começado o começo, que os dados já estavam lançados. Que tudo já estava decidido, acabado, que não podia ser de outra maneira, meu amor. 3 Quando te fui buscar já não sabia o que dizer-te. Disseste-me que tinhas saudades de Sintra e levei-te até lá. Não tenho culpa do restaurante estar cheio, dos criados, presumiste, te olharem com olhos de desejo. E quando te perguntei o que querias, disseste-me que querias passear. Levei-te ao cimo da Serra, um caminho que conhecia. Não tive culpa que estivesse muito escuro e o nevoeiro cerrado. Não pensei que te assustasses facilmente. Mas tu não quiseste sair do carro e ficámos minutos quietos, fechados, o suficiente para eu não aguentar aquele silêncio, aquela imobilidade. Pus a minha mão sobre a tua para logo sentir uma estalada lenta, o suficiente para doer. Chamaste-me ignóbil e ordenaste-me que te levasse imediatamente ao teu carro. Não sei em que pensei, em ti certamente, todo o caminho a ouvir Schubert sem trocarmos uma só palavra. A música são lágrimas, escreveu alguém. Éramos prisioneiros, já nada havia que pudéssemos fazer. 4 Não é nada do que dizes, inventas tudo. Pões as coisas de tal modo que até parece que foi assim que aconteceram, dizes tu. Contas histórias para te enganares, te protegeres, te desculpares. Eu não queria nada de ti. Foste tu que te impuseste. Eu estava muito enfraquecida. Tinha perdido muitas guerras, deposto as armas. Estava vencida, não foste tu que me venceste. Cortei o cabelo muito curto, apareceu-me uma cicatriz na mão esquerda. O meu namorado quis passar a ser o meu melhor amigo, convencido que eu precisava de um amigo. O meu trabalho terminou bruscamente e tive de arranjar outro. A minha família via em mim o que eu já não conseguia ver. Os meus pais, os meus irmãos não aceitavam agora a minha fraqueza que eu sempre tão bem lhes tinha conseguido esconder. Tive de continuar a representar vários papéis ao mesmo tempo e quando me olhava ao espelho era uma máscara que via a olhar--me, a interrogar-me sem que soubesse porquê. Cheguei a beber, arrastando-me para dentro do meu apartamento onde o

meu corpo habitava mas que nunca foi meu. Tudo corria mal antes de tu apareceres na minha vida. Foi isso que me fez desejar enganar-me como nunca, foi por isso que te quis de joelhos aos meus pés, dizias tu. 5 A minha mulher sofre de me ver sofrer por ti. É isso que a torna invencível, que me tira todas as razões para a poder abandonar à vida dela, quebrar o meu juramento. Porque há um juramento de protecção entre dois humanos que decidem viver juntos. E tem de haver uma razão para quebrar esse juramento. Há coisas sagradas entre dois humanos que partilham a mesma casa. Muitas coisas que nem se sabe o que são. Coisas misteriosas, gestos que se repetem, palavras que se dizem, palavras que se calam. E a única coisa que havia era eu estar loucamente apaixonado por ti, o que não é razão nenhuma, mas falta dela. 6 Quando percebi que era tarde e não havia nada que pudesse fazer para te tirar da tua vida tentei fugir, dizes tu, e nem sempre foi da melhor maneira. As tentativas em vez de me libertarem enredavam-me mais dentro da teia. Em vez de recomeçarmos um pouco mais atrás ou mais à frente, recomeçávamos exactamente no sítio em que nos tínhamos abandonado, em que eu te tinha abandonado. Começavas a ser um vício de que não me queria desfazer, não podia. Tentei coisas, violentas que te contei, os olhos fixos em ti para apreciar a devastação que produziam. E por mais que procurasses esconder-me o que sentias havia um músculo, uma palavra incontida que te traía. Sim, traí-te várias vezes, bem o sabes. Como se fosse justo chamar traição à minha vontade de recuperar o meu nome, os meus passos, um destino a que pudesse chamar meu. No teu aniversário bebi com o propósito de te castigar por não estares comigo. Pedi ao Luís que dormisse comigo. Fui eu que o agarrei e o levei para a minha cama, o pus com as minhas mãos dentro de mim. Não o culpes de nada, culpa-me a mim se tiveres coragem para tanto. Sente a vergonha que eu senti. Sofre o prazer que o meu corpo teve de sofrer por te ter e não conseguir. Deixa-me em paz com tudo o resto. Fiz-me tão mal a mim que só tu depois me podias sarar as feridas, meu amor. Trair seria começar uma guerra sem a declarar. Mas nós já estávamos em guerra,

uma luta feroz, eu queria a tua alma só para mim. Tu dizias que não era possível. Que já não era possível, que para ti já nada era possível, que fugisse se pudesse. 7 Quando te comecei a mentir foi quando te comecei a perder. Era inevitável. A mentira, o perder-te. A situação era insuportável, eu não podia escolher, não te podia trocar por ninguém, nem te podia deixar, nem permitir que de mim fugisses. Por isso mentia. Prometia coisas que sabia impossíveis, jogava com o tempo como se não fosse ele que comigo jogava. Sentia tudo a ir-se abaixo. A minha cabeça, o meu corpo, o meu mundo. Eu sabia que havia um fim que se aproximava, só não sabia qual, como. Por vezes acreditavas no que te dizia mas as mais das vezes olhavas-me com um ar surpreso, arrependido, desconfiado. Houve um dia em que soube que não podia perder-te, em que soube que tinha de continuar em frente, sem destino. Em que só contavam os minutos que passavam e desapareciam para um lugar secreto, irrecuperável. Eu sofria horrores, tu deves ter reparado. Os silêncios tornavam-se difíceis, todas as pausas eram um risco de depois não saber continuar, não ter por onde. Falava demais, via-me a fazer gestos despropositados, o tom da minha voz mudava sem que soubesse como. Eu já não sabia para onde ia, só sabia que tinha de ser contigo, que de outro modo enlouquecia. Sim, é verdade. Eu, que sempre julgara poder colocar os sentimentos no seu devido lugar, de modo a que não atrapalhassem, sentia-me derrotado, como se agora juntos se vingassem. Com esta idade, depois de tantas coisas amadas e sofridas, tu ensinavas-me que nada acaba, que tudo volta sempre ao princípio, que nada se resolve para sempre, a morte e a vida avançando ao, mesmo passo. Disse-te que viveria contigo, que te protegeria com as minhas mãos fechadas até ao fim, que tudo se ia resolver. E quando te mentia também te dizia a verdade. Tinhas de ser tu a vencer, se eu já estava vencido. Eu só esperava o golpe de misericórdia que tardava. O que tinha começado tão ao de leve, tão devagar, tão tristemente eram agora cordas que nos agarravam num turbilhão de vento, espelhos quebrados que nos aleijavam a alma, suspiros abandonados. O amor mostrava-se forte, enraivecido, desesperado e não éramos nós que o tínhamos, era o contrário. O deus amor zangara-se connosco, comigo principalmente, que continuava a mentir o melhor que podia, agarrado a ti. E se havia coisa

que não suportavas era ver-me chorar ao teu colo, mostrar-te a minha fraqueza, o meu desespero. Nessas alturas em que não aguentava, tu afastavas-me. Dizias para não voltar a aparecer assim, que era de tudo culpado. Por isso mentia mais ainda, avançava com uma máscara, engolia as lágrimas e depois voltava. 8 E houve um dia em que partiste. E houve uma noite em que não chegaste. O começo e o fim estiveram sempre a acontecer, confundiam-se. Quando chegavas era para dizer que partias, quando partias era para dizer que voltavas. O tempo não estava do nosso lado. Nós não cabíamos na mesma cidade, no mesmo país. Tu querias partir mal fosse possível e logo que foi possível, passadas tantas eternidades, horas, instantes, no momento previsto fizeste as malas e apanhaste o avião que te levou para o outro lado do mar. Nem me consegui despedir, tu também não, doía demasiado, mais valia zangarmo-nos. Durante muitos dias e muitas noites não sabia o que acontecia. Durante meses tive medo de pegar no telefone, apanhar uma chamada, evitava toda uma zona da cidade, havia carros de uma marca que me punham o coração acelerado. Durante muitas noites transformei-me num fantasma. Continuava com um corpo a percorrer o espaço mas não habitava mais o tempo presente. Adormecer era um horror em que era assaltado por todos os demónios. Do desejo, da angústia, do fim de tudo. Calava-me, guardava tudo comigo porque não tinha palavras, nem ninguém a quem as dizer. Estranhava que me reconhecessem como um humano, arranjar forças para fazer o mínimo que esperavam de mim no trabalho. Imaginava o teu corpo a mover-se noutra cidade, a atravessar uma rua, a apanhar um táxi, a meter-se num cinema, próximo de outros corpos de quem eu tentava imaginar a face e nada via. A imaginação nunca me serviu de nada. Tudo o que tive tão perto se afastava, as tuas mãos, os teus beijos. Só por vezes te tornavas nítida, em movimento, quando era por acaso. Quando te queria fixar tudo se desfazia. Era inútil todo o meu trabalho, toda a minha vida. E só me espantava de não sofrer mais ainda, como se os nervos do meu sentir estivessem amortecidos, os meus olhos cansados mergulhados numa luz fraca. Houve o dia em que partiste, a noite em que não chegaste, minha amada. O espaço impunha-nos a sua impossibilidade de existirmos em coisas tão simples como a de te ir buscar a casa e sairmos para jantar

juntos. A teu lado eu ainda conseguia adormecer. Agora nunca nada seria tão natural como isso. Sem saber, era à distância que nos tínhamos condenado. Desde o começo que me avisaras do fim. Que ias partir, que a tua vida te chamava de outros lados, que não ias continuar ali onde estavas, que ansiavas por outras paragens, outras pessoas, que a palavra pátria não te dizia nada. Tivemos de nos zangar para não termos de nos despedir. 9 Laura dos olhos castanhos muito escuros. Laura das fúrias repentinas. Menina do meu coração. Onde estás para que me ouças? Onde te escondes, para onde fugiste para que te procure e te veja? 10 Dentro do elevador com o bagageiro a quem não conseguimos esconder a premência do desejo, apesar de serem onze da manhã e o quarto ainda não estar feito. O quarto de dez lados - foste tu que os contaste - com varanda sobre a praça das palmeiras coberta de vento. À mesa do restaurante a empregada que nos sorri como se pudesse estar alegre por nós. No passeio os namorados beijam-se nas mãos, lembrando como a ternura se tornou tão rara. E tu resplandecente à minha frente sobre as ruas de mim desconhecidas. Quando me telefonaste a dizer que não aguentavas mais, que precisavas das minhas mãos, eu apanhei um avião e fui ter contigo. Não consegui adormecer com medo de não acordar, de perder o transporte. Tu não estavas diferente. Eras só tu, como sempre. Tínhamos tanto para nos contar que as palavras se atropelavam nas nossas bocas. Ali que ninguém nos conhecia podíamos andar como bem nos apetecesse, de mão dada, abraçados. Quase parecíamos namorados. Eu não queria ver nada em especial mas tu insistias em mostrar-me as belezas da cidade, as preciosidades. Eu distraí-me facilmente. Só queria saber de ti, dos teus olhos, dos teus lábios. Fechados no quarto dos dez lados todo o mundo morria de repente à nossa volta. Foram quatro dias e três noites e quando me deixaste no aeroporto, quando te perdi ao longe, chorei por me sentir sem ti, por me afastar de mim. A vida voltava lentamente com toda a sua injustiça e toda a sua verdade. Antes de partir lembraste-me que me amarias para

sempre, que mais nada importava.

Tarde inútil Não quero que ninguém me venha incomodar esta tarde. Estou a pensar em ti. Todo o esforço é pouco, toda a atenção não basta. Penso em ti que chegas das mais diversas maneiras e não tenho modo de controlar por inteiro. Apareces ali e depois saltas para muito longe no tempo ou no espaço, baralhando-nos as vidas. Ouço-te a dizer uma frase que não chegas a completar porque pelo meio irrompe uma recordação mais apressada. O melhor é deixar vir o que tem de vir porque tentar fixar uma imagem é condená-la a desaparecer, ensaiar uma recordação é afastá-la para longe, correr o risco de para sempre a perder. Pensar em ti é um mágico jogo em que continuas a brincar comigo para além da minha vontade. Por vezes levas-me para lugares sombrios e dolorosos para que ninguém caia na mentira de que tudo foi fácil. As tuas zangas voltam a parecer pavorosas, a assustar-me. As tuas palavras duras ainda me fazem ficar calado e entristecer de repente. Mas há a compensação do súbito abraço, do sufoco das línguas, do sossego na alma. É tão estranha a memória, tão inútil e tão poderosa. Raramente me deixo abandonar a ti como agora, mas hoje, repito, não quero ser incomodado por nada deste mundo, que tu já nem sequer habitas. E ainda gostava que soubesses que não consigo, ao pensar em ti, separar-te da beleza do teu corpo. O que pode ser injusto, pois tu tens a alegria e a graça que atrai e vence. Mas é o teu belo corpo que continua a fazer de mim parvo, a prometer-me a felicidade que jamais alcançarei. Guarda esta confissão e faz dela o que quiseres.

Primeira vez A primeira vez que dormimos juntos não dormimos nada. Era um quarto de uma casa velha junto ao mar com uma araucária no jardim. Uma casa com capela onde pensei entrar e rezar e não entrei. O tempo estava mau, uma névoa perpétua cobria o mar e tu estavas tão cansada que me preocupava por ti. Todos os cuidados eram poucos para uma pessoa tão frágil, a qualquer momento podias quebrar. Tu não te preocupavas comigo, não era preciso. Eu não parava de falar. Narrava minúcias biográficas, lembrava teoremas de geometria, dizia-te os nomes das árvores. Eu queria dizer-te tudo. Tudo o que sabia e tinha aprendido durante anos talvez ainda servisse de alguma coisa. Julgava eu que era a maneira mais segura de te prender a mim porque uma coisa pede outra, uma palavra outra palavra, uma história outra história, um fim outro fim. E enquanto não terminasse tu ias querer saber o resto. Sobre a areia, tu com várias camisolas, no meio daquela névoa que nos reduzia o horizonte a alguns metros onde se ouvia bater o mar, eu desenhava objectos, letras, números. Tu estavas tão cansada que por vezes me pedias que parasse e eu agarrava-te, deitando-te sobre mim. Fechava os olhos e continuava as minhas explicações infinitas, em silêncio. No restaurante bebíamos vinho branco, comíamos amêijoas, ensopado de enguias e tu pedias um sorvete. Ver-te comer encantava-me. Eu orgulhava-me de ti. Tu eras uma menina sem medo de nada, sem medo de mim, sem medo do que nos podia acontecer, do que já acontecia, do que já tinha começado. Porque eu era um homem sem esperança e sobre isso creio que nunca te menti. Quando adormeceste fiquei imóvel a olhar-te. O teu sono era um dom precioso. A tua cara tapada pelos cabelos negros sobre a almofada, o teu corpo abandonado aos sonhos, a tua respiração enchendo o quarto todo, o primeiro onde dormimos sem dormir. Minha querida, se fosse possível voltar de novo ao princípio, nada havia que quisesse mudar, só queria ficar mais tempo nesse tempo em que ainda sabíamos tão pouco um do outro, em que os nossos corpos desconheciam tanto de si próprios, em que entrávamos num mundo novo que nós dois fazíamos sem saber como, mas fazíamos com gestos e palavras enquanto o mundo todo morria à nossa volta.

Castigo Fomos apanhados de surpresa onde julgara-mos correr menos perigos. Um sítio tão tranquilo, tão afastado, uma manhã de domingo. Fiquei tão nervoso, tão inábil para qualquer gesto. Qualquer palavra confessava o crime de te amar e de te ter por amada. Não duvido que seja um crime contra todos os outros humanos que habitam esta terra minuto a minuto, ao mesmo tempo, na miséria de continuarem. É um crime fazer o que fazíamos, sentir o que sentíamos, viver o que vivíamos. Ofendemos as regras mais simples que fazem este mundo habitável. Mentíamo-nos, enganávamo-nos tanto sem querer. Éramos loucos em busca de nada, roubávamos tudo o que podíamos à nossa volta com os nossos olhos, as nossas mãos enlaçadas, tudo nos pertencia. Desprezávamos o resto, o que não servia para alimentar a nossa insaciável fome de nós próprios. Os deuses a um canto quando muito olhavam, invejosos e desempregados. Devíamos ser apanhados, condenados e punidos. No nosso estado o mundo sucumbiria às primeiras horas. Éramos dois irresponsáveis a passear pelas ruas. Se não existisse mais ninguém, não teríamos saudades, se calhar até preferíamos, dos nossos próprios pais nos esquecíamos. Todo o mundo não era mais que o cenário da nossa paixão violenta em que alguns personagens nos serviam, e visto à distância nos tornava únicos. Se tínhamos vergonha? Sim, muita, por momentos. Se sentíamos culpa? Enorme, asfixiante a certas horas da noite e do dia. Se queríamos outra coisa? Não, nunca. Nós vivíamos aquele pecado, aquele amor excessivo, aquele tormento como se nada mais pudesse vir a acontecer às nossas vidas. É este o castigo.

Tão longo adeus para breve vida Há zonas da cidade que evito, uma série de restaurantes onde não penso voltar. Tenho muito medo de te encontrar. Só ou acompanhada, tanto faz. Minto. O ciúme ataca a horas incertas mesmo depois de tudo se julgar acabado. Muito medo de não poder saber de antemão o que vou sentir, como vai ser, não poder antever o golpe. O medo de todas as palavras ridículas, e todas elas serão ridículas, de todos os gestos desajeitados, e não haverá nenhum que possa reclamar como meu. Medo de ficar a pensar violentamente em ti durante horas, sabe-se lá onde, sem conseguir regressar ao normal correr do tempo. Uma intromissão que exige o álcool que se põe, embebido em algodão, na ferida que reabriu para que de novo arda, palavras aflitas de uma conversa em que só eu estou de facto interessado e vou aumentando a parada provocando a memória até que faça doer. E depois o regresso a casa com o corpo anestesiado, a música aos berros, a vontade que tudo se desfaça no instante para o qual falta a coragem. Chegar a casa e agarrar numa última garrafa e nas tuas fotografias até me virem os vómitos, as lágrimas, o ranho que expulse de mim o que guardo no mais fundo e me traz a vida vazia e inútil. Tenho tanto medo de te encontrar que mesmo nunca te encontrando estás mais presente que todos os que vejo girar à minha volta.

O que os dias trazem Todas as noites dormíamos no mesmo quarto. Não havia outro. Servia ainda de sala de estar, de sala de jantar, para ver televisão. Por uma porta dava para uma cozinha onde só cabia um de nós de cada vez e, por outra, para uma casa de banho forrada de ladrilhos azuis e brancos com um chuveiro e uma retrete. Ela dormia numa cama para pessoa só contra uma das paredes do quarto que devia ser, se bem que nunca o tivesse medido, quadrado. Eu dormia sobre as três almofadas do sofá oposto sobre as quais se tinham estendido dois lençóis e um cobertor. Por vezes ela, sem aviso e às horas mais diversas, vinha deitar-se ao meu lado de onde a tinha de expulsar de um modo que, apesar de todos os meus cuidados, era forçosamente violento. É sempre difícil tirar uma pessoa do lugar onde se encontra deitada. Depois, como nunca ninguém tocava no caso, era como se nada tivesse realmente acontecido, um sonho, uma alucinação e mais nada. Não se pode dizer que fosse uma situação feliz, mas também não se pode dizer que fosse uma situação desesperada. No fundo fazíamo-nos companhia, mesmo quando passavam dias em que não dizíamos palavra. Um corpo precisa de ver outro para saber o que é. Ela trabalhava numa fábrica gigantesca. Dentro dela deslocavam-se autocarros que transportavam, como na cidade, as pessoas de uma paragem para outra. Passava meses a desenhar o pormenor de uma peça, a qual, por decisão superior e misteriosa, era geralmente retirada do projecto, tornando inútil todo o seu trabalho. Nesses dias quando chegava a casa, sem tirar o casaco, sentava-se na cama e chorava baixinho, mas não por muito tempo. Ela era corajosa. Dizia: «_A vida não é boa nem má, é o que fizermos dela». Eu trabalhava de manhã como recepcionista de uma pequena biblioteca pública raramente frequentada e passava as tardes como podia, muitas delas a não fazer nada. Se não chovesse podia dar um longo passeio pelas estradas. Nos piores dias levava um livro para casa e lia umas páginas. O nosso prédio tinha oito andares e parecia desabitado. Era raro encontrar alguém nos corredores ou nos elevadores. Um mistério que nunca desvendei, como tantos outros. Ficava à entrada de um bosque e tinha a vantagem de quando se estava dentro dele não se ver como era feio. Idosos e suicidas podiam sucumbir à vontade e só se vir a descobrir os cadáveres semanas mais tarde, tal a solidão que o habitava. Tinha portanto uma vida mais fácil do que a minha companheira, se assim quiser designá-la e houver critérios para aferir da dificuldade da

vida, porque, por outro lado, ser-me-ia relativamente fácil mostrar como viver me era então insuportável. As pessoas fazem rapidamente uma ideia de como é a vida das outras pessoas, ideia com a qual se contentam e lhes permite continuar com a sua, apesar de toda a gente saber como as coisas são muito mais complicadas. As pessoas são apressadas e esquecidas, é o que as salva. Mas eu, que passava as manhãs sentado ao guichet onde ninguém vinha e as tardes a olhar no céu o trajecto dos poucos pássaros que passavam, tinha todo o tempo do mundo para o achar pouco habitável. Mais valia fazer qualquer coisa que não servisse para nada. Mas eu não tinha muita escolha, nenhuma para dizer a verdade, e já reputava por boa sorte o ter encontrado aquele emprego, estável se bem que mal remunerado e não continuar desempregado. É tão árduo não se fazer nada, viver preso no mundo. Aos sábados de manhã, um pouco antes do meio-dia, como quem vai à missa, íamos ao supermercado. Íamos num carro, que ela sempre conduzia, já que nunca consegui tirar a carta, e voltávamos, passada hora e meia, no mesmo carro com o banco de trás repleto de coloridos sacos de plástico. Ir ao supermercado era para mim das ocasiões mais críticas da semana, para ela acho que era o contrário, se bem que nunca tenhamos falado explicitamente sobre o assunto. O ar que se respirava lá dentro era-me irrespirável, eu sentia-me um animal no meio de muitos outros, exclusivamente preocupado em continuar a sê-lo. Ela, calculo, encarava-o como um passeio por entre produtos depurados de uma civilização. Quem nos visse, se fosse o caso de alguém reparar em alguém, veria um jovem casal com o futuro pela frente, não notaria a facilidade com que me podia tornar num assassino. À tarde ela fazia um bolo de laranja que comíamos às fatias a beber chá e a ver televisão. A televisão ajuda muito mais do que parece. Depois jantávamos qualquer coisa, aventurávamo-nos a ver um filme com princípio meio e fim, desejávamo-nos boa noite e ia cada um para o seu canto. Não era uma vida alegre, mas também não era uma vida infeliz. Se não nos tivéssemos um ao outro seria bem pior e acontecia ela agradecer-me o estar com ela e eu agradecer-lhe o mesmo e darmo-nos as mãos durante uns minutos. Nós éramos mais do que amigos, nós aguentávamos aquilo, o que quer que fosse juntos. Aos domingos deixávamo-nos ficar deitados, quietos e silenciosos, até o outro dar sinais de vida. Era pelo menos o que eu fazia e, com o treino, consegui atingir períodos de imobilidade que a princípio me pareciam inalcançáveis.

Talvez ela fizesse o mesmo, cada um enganando o outro. Depois do pequeno almoço, em que acabávamos o bolo da véspera, íamos dar um passeio pelo bosque. Sempre o mesmo, porque o bosque era pequeno e se não tivéssemos atenção ao caminho ficávamos fora da protecção das árvores e embatíamos em prédios iguaizinhos ao nosso. De tarde fazíamos duas ou três barrelas de roupa nas máquinas situadas na cave do nosso prédio com a ajuda das moedas que tínhamos posto de parte durante a semana. Em seguida era seca nas máquinas para isso apropriadas e que estavam mesmo ao lado das primeiras, e depois de seca, o que, diga-se, nunca se atingia por completo, era esticada e dobrada, trabalho que me causava náuseas mas para o qual as minhas mãos eram imprescindíveis. Não se pode imaginar a trabalheira que a roupa dá se nos queremos manter minimamente asseados e mudar de lençóis todas as semanas. É uma vida. Graças a deus as semanas regressavam ao seu começo e com elas a actividade que me permitia manter um estado de relativa mas controlada sanidade. É bom saber que podem precisar da nossa ajuda para encontrar um livro. Era raro, mas acontecia. Os poucos frequentadores da biblioteca eram pessoas idosas que vinham ler os periódicos que recebíamos. A minha tarefa consistia no essencial em impedir que fossem subtraídos livros à nossa colecção, coisa da qual me apercebi rapidamente não só ser improvável como desejável, um indício de uma qualquer urgência. Data de então a minha repugnância em ver livros amontoados à minha frente. São objectos físicos que ainda me trazem recordações de uma espécie de longa prisão e dos quais me procuro desembaraçar logo que posso. As noites sucedem-se aos dias e os dias às noites, eis o que se pode dizer, e quando nada acontece vai-se perdendo a insensata esperança de esperar que algo aconteça e depois, pouco a pouco, sem se dar conta, perde-se a vontade. Ganha-se medo, somos vencidos por um mundo mais poderoso do que nós. Assim, vim a temer que alguma coisa viesse alterar a rotina, os pequenos hábitos, os previsíveis picos de angústia, convencido que estava que a minha condição só poderia piorar e se sofria, o que era inegável, já me tinha habituado a essa dor, sempre igual e a mesma. Todas as formas de vida, a partir de certa altura, sugerem tornar-se normais. Eu tinha aceite que nada ia acontecer que pudesse modificar a minha vida de tal modo que viesse a dizer-me outra coisa diferente do que me dizia, baixinho, todas as manhãs ao acordar: isto é só isto, mas é mesmo assim e quando

acabar acabou-se. Foram anos assim, talvez tristes, admito, mas não desesperados. O desespero é outra coisa. Eu tinha destruído em mim todos os sonhos, todas as ambições, transformado a raiva em desprezo. Era um só no meio de uma multidão infinita e incaracterizada. Foi quando já me tinha aceite, um trabalho de tantos anos, que ocorreu o que veio transformar radicalmente a minha vida, se bem que, por outro lado, ela continue igual ao que foi, igualmente triste embora não desesperada. A vida é sempre a mesma, irresolúvel, demasiado próxima e afastada para poder ser avaliada à distância conveniente, incontornável. O que pode é ser olhada de vários lugares. A partir de certa altura comecei a fazer o que precisamente tenho estado a fazer e vem a propósito agora notar: comecei a escrever. Uma das vantagens de escrever é passar-se despercebido, não mudar nada nem no mundo nem nas nossas vidas, que continuam a sofrer, quando por outro lado, interior, subterrâneo, vai mudando tudo. Não vou dizer para melhor porque poderia dizer com a mesma verdade o contrário. O que nos distingue, aos humanos, é não aceitar as coisas como elas são, não conseguirmos ficar quietos, ter de lhes mexer de qualquer maneira. Houve um dia, que me lembro ser de Inverno, em que comprei um caderno de capa dura e comecei a escrever. É de supor que tenha tido a ver com o passar o tempo rodeado por livros que ninguém queria ler e ser tomado por uma doce melancolia ao pensar na generosidade desses seres distantes que os tinham escrito o que me despertou a vontade de ser como um deles, presente e abandonado, insistindo em não querer morrer. Não ignoro o abismo entre a ideia de escrever e escrever, distância que superei com alguma ajuda, inclino-me mais para a inconsciência do que para a força de vontade. Escrevia por escrever, às escondidas, sem dizer nada a ninguém - como se houvesse gente interessada no que fazia ou deixava de fazer - e escondendo muito bem dela os cadernos que ia completando, não os trazendo para casa. Procurava escrever precisamente o que via, o que fazia, o que pensava nos estreitos limites do meu mundo, afastando para longe tudo o que não via, o que não fazia. A vida e o tédio continuavam a ser o que eram, o que sempre tinham sido, só que deixavam de ser exclusivamente suportados para serem olhados, e isso trazia muitas vezes um alívio, uma libertação, uma revolução aos meus dias. As coisas actuavam sobre mim como sempre, mas eu não ficava calado, reagia, escrevendo. Escrevia as idas ao supermercado, as tardes de domingo, as caras dos idosos que frequentavam o meu local de trabalho, os pássaros a atravessarem o céu, a brutal falta de sentido. Tudo era visto a uma certa distância, como se

tivesse recuado três passos em relação à realidade, dando espaço a um mundo onde o nada se transformava em algo. Uma coisa é sofrer a náusea ao escolher uma garrafa de champô, outra, fazendo exactamente o mesmo, escolher as palavras com que se irá descrevê-la. Sem querer, a minha atitude em relação às coisas, que continuavam sem acontecer provocava em mim sinais exteriores a que ela não estava habituada. Por exemplo um estado de meditação profunda seguido de uma súbita alegria fazia-a perguntar se algo tinha acontecido ao que lhe respondia, sem faltar à verdade, que não. Ao escrever, o que é distinto do tempo em que se está a juntar palavras sobre uma folha, passei a ser duas pessoas, uma das quais observava, por vezes espantada, a outra. Era uma coisa muito estranha e de facto mágica. Foi assim que tudo começou e, ao mesmo tempo e pelos mesmos motivos, que tudo terminou. Houve um dia em que mandei para três editores uma selecção da minha prosa a que dei o título «O que os dias trazem, um diário do tédio». Um dos meus dois eus tinha a certeza que o que escrevia não podia interessar a ninguém, mas o outro também queria ter essa certeza. Passados três meses recebi um telefonema de um dos editores dizendo-se interessado na publicação, o que me espantou de tal modo que me obrigou a avisá-lo de que muito provavelmente não encontraria leitores e perderia dinheiro. O livro foi, pode-se lá saber porquê, um sucesso, o que me motivou a continuar a escrever, seguindo sempre o princípio dos três passos atrás da realidade, o que me trouxe não a glória mas a fama e o dinheiro que nunca tinha julgado ao meu alcance. São surpresas das quais nunca se recupera totalmente e têm, como qualquer novidade, os seus lados nefastos. A minha companheira, sem a qual eu não podia ter sobrevivido e a quem nunca poderei agradecer devidamente por ser a principal responsável e a condição sem a qual eu nunca teria começado a escrever, foi-se afastando de mim, pouco a pouco, mas irremediavelmente. Mudámos, sempre no mesmo prédio, para um apartamento onde cada um tinha o seu quarto, frequentávamos bons restaurantes onde o silêncio se fazia ouvir agudamente, íamos ao cinema para acabar discutindo. Tudo o que acontecia em vez de nos unir afastava-nos. É para mim uma inconsolável tristeza perder alguém com quem vivemos, ver desaparecer a testemunha de todo o tempo que enfrentámos juntos e vencemos. Chegou o dia em que ela, sentada no sofá novo da sala, me pediu delicadamente para fazer a minha mala e sair do seu apartamento, não sabendo eu até então que tinha uma mala e que era o seu apartamento.

Certas noites lembro-me, com uma suave melancolia a oprimir-me o peito, das noites em que íamos, cada um à vez, espreitar a lua da janela da cozinha daquele prédio que nunca mais visitei.

Para ti Pouco a pouco vais-me expulsando da tua vida. Com avanços e recuos, é um trabalho árduo. Eu por mim não me mexia, deixava que a morte me surpreendesse em qualquer parte. Mas tu ainda estás cheia de vida, não deixas que o meu peso estorve o teu caminho. Eu concordo. Prometo nada fazer que impeça o livrares-te de mim. Mas é muito difícil pensar em ti no tempo passado. É um mistério tão grande o não saber onde ficaram os nossos gestos, não poder enfim voltar a ouvir as doces palavras. Por vezes julgo que enlouqueço, que estou muito perto disso, e tenho de acender todas as luzes, levantar-me, ver o meu corpo a prosseguir de um lado para o outro. É tão difícil concentrar-me, impedir que os pensamentos corram sem direcção nem sentido, me surpreendam em insinuações tão dolorosas. Tomo comprimidos. Mesmo antes da dor chegar, tomo comprimidos. O pavor de nada voltar a acontecer invade-me. Agarro-me a uma almofada, o tecido fresco sobre a cara oferece um pequeno alívio que logo se dissipa. É preciso saber que nada dura, nem isto, acreditar nisso com muita força, deixar que os olho fiquem fechados. De manhã é mais fácil. Há o ar da manhã. Há o café quente. Há o sofrimento dos outros por todas as esquinas espalhado. Nem estás sozinho nisto, nem vales quase nada. Tens o teu filho, a tua família, a tua vida normal que exige ser vivida. Sentes culpa de não seres de outra maneira, de não poderes, de não tentares o suficiente. Pedes perdão alto como se deus existisse e te ouvisse, um deus que serviria as tuas conveniências. No carro o começo das Variações Coldberg vem provar que continuam existir coisas perfeitas, pelo menos para os ouvidos, e acabo por sorrir com uma piada do género embora me pareça um escândalo voltar a sorrir. É a vida a passar de qualquer jeito, a passar por entre os finos dedos da morte.

Cerco Todos os lugares onde não posso voltar e que me cercam, só por ter sido contigo que lá estive pela primeira vez. A inocência com que os ias marcando no mapa com pequenos corações encarnados como se de conquistas se tratasse e me deixam agora aqui imóvel sem lugar algum para onde fugir. Porque são eles e só eles que quero revisitar, mas sem ti como ousaria enfrentar o terror de estar só e não poder haver alguém? Como tudo que fizemos de um modo tão leve, tão descuidado, se transforma agora no chumbo que pesa sobre a minha vida e a vai afundando. Estou quieto no centro de uma memória que facilmente se desequilibra e me apavora. Sim, pensar no que vimos, por onde andámos, onde nos perdemos e procuramos é um ácido que lentamente me corrói a alma, um vício que me transforma em fantasma. Por vezes nem quero pensar em nada, sou assaltado. Um cheiro intenso e estranho, uma paisagem breve adivinhada do carro, a suave temperatura do vento, e choro. Não quero atraiçoar-te e a todo o momento não faço outra coisa, porque vou insistindo em reviver isso tudo de que a correr nos afastámos. E não podemos regressar por nenhum caminho que não existiu em parte alguma senão neste instante que acabou agora. É tão triste o que tão alegre foi, minha amada.

A cama é um deserto De repente a cama vazia. A sensação de não pertencer mais aqui. Os corpos habituam-se aos corpos. Quando se separam é sempre por um corte, um rasgão. Fica uma ferida. É preciso ter cuidado, prestar atenção. As mulheres são seres alados que voam para longe. Os graves homens não. De repente, à luz da noite, a cama é um deserto. Chamemos as coisas pelos nomes. O amor que transportamos vai-se gastando por onde passamos. Não nasce do vento. O que levamos deste amor para aquele é muito pouco, não chega para nada. É preciso ter a vontade e a energia e a concentração para começar tudo outra vez. Não somos donos de nada. O que mais importa é o que só passa e nem se deixa tocar com os dedos É preciso ter cuidado. De repente, à luz da noite uma só aflição.

Namorada de Inverno A minha namorada de Inverno tinha as pernas esguias e os olhos claros. Gostava muito de cinema. Eu só gosto de mulheres com as quais, embora não se faça nada, se possa fazer tudo. Não era sequer o seu caso. Ela tinha um namorado, eu duas amantes. Nunca nos tocamos, juro. Uma só vez demos as mãos no escuro de um cinema e foi tudo. Íamos jantar fora. Passeávamos pelas docas. Ela vinha a minha casa embora eu preferisse ir à dela. Era mais habitada a casa dela, a minha era um quarto com uma mesa e duas cadeiras e uma cama desfeita a um canto. Ela tinha tido outros namorados. Às vezes pedia-lhe que me falasse deles, por mera curiosidade, quando não tínhamos nada para dizer. Ela queria saber tudo sobre as minhas amantes. Eu mentia o melhor que sabia e quando já não sabia, inventava. Ela não notava ou fazia como se não notasse e continuávamos. Ou então ficávamos calados, um livro nas mãos, a olhar para a televisão. De vez em quando tornava-se urgente dizer um ao outro que gostávamos muito um do outro. Não sei porquê. Éramos namorados. Mas só um inverno. Mal a Primavera chegou deixámos de nos ver. Não sei porquê. Seria a luz, seria a temperatura? Eu tinha sido abandonado, ela tomava conta de mim ou então era o contrário. Não, era mesmo assim. o tempo era lento, tínhamos tempo um para o outro. A paixão nunca nos veio incomodar, nunca deixámos. Era bonito aquilo. Eu ia buscá-la ao emprego. Ela fazia-me esperar um bocadinho. Eu não me importava. Íamos no meu carro, chovia, ela não sabia conduzir. Eu contava-lhe a última tristeza das minhas desventuras. Ela perguntava: Como assim? Vivíamos de amores emprestados. A minha namorada de Inverno tinha as pernas esguias, os olhos claros, uma pele de cetim.

Amor portátil De um dia para o outro deixou de telefonar. Nós falávamos três, quatro, cinco vezes por dia. Até mudámos para a mesma rede para sair mais em conta. Não nos víamos, mas pelo menos deixávamos recados no telemóvel um do outro. De um dia para o outro deixou de telefonar. E não havia recados. Deixei-lhe um, bem-disposto, em que lhe dizia precisamente isso: «_Tu, minha malandra, minha querida, deixaste de me telefonar? Como é que consegues? Olha, eu não consigo. No dia seguinte foi muito pior. Respondeu-me uma gravação a dizer que a caixa de correio estava cheia e que portanto não admitia mais recados. Fiquei assustado. Pensei em desastres, calamidades, raptos. Mas depois acalmei-me, sorrindo. Perdeu pela terceira vez o telemóvel, foi o que foi, e não sabe o meu número de cor porque usa o que tem gravado na memória do aparelho perdido. Se tivesse havido um acidente alguém me viria dizer, as más notícias, de qualquer maneira, chegam sempre correr. Isto sossegou-me alguns dias. Mas depois pensei que não podia ser. Telefonei para casa dos pais, falei com a irmã que me disse que ela não estava em casa mas que tinha falado com ela nesse mesmo dia de manhã. Eu não lhe disse o que me atormentava, mas ela pressentiu que havia alguma coisa comigo, embora não nos conhecêssemos. Disse-lhe que não ficasse preocupada. Eu é que estava cada vez mais preocupado. Agora mais comigo do que com ela. A palavra exacta seria abandonado. Aguentei três dias e depois voltei a telefonar. Já havia espaço na caixa de correio. «_Hoje é o dia em que faço trinta e nove anos. Não podia deixar de te telefonar e dizer que estou muito preocupado contigo porque preciso de saber se estás bem.» Passei a nunca desligar o telefone. A trazê-lo no bolso da camisa. A atender apressadamente todas as chamadas, o coração apertado, um suor frio. Nunca era ela. Cada vez que pensava nisto tudo era como se levasse um murro no estômago. Eu precisava de falar com ela. Eu dependia da sua voz muito mais do que julgava. Mandei-lhe um postal com uma fotografia da Marylin em que ela está com cara de total aflição e escrevi no verso: «_Meu deus! Como pude esquecer-me de ti.» Só faltava ir a casa dela, bater à porta, falar com quem me atendesse. Mas o que poderia invocar? Como poderia explicar--me? Eu próprio não sabia. Tinha sido eu a propor aquele estranho contrato: não nos vemos, só nos podemos falar. E ela tinha concordado. Eu tinha apresentado razões altamente morais mas

agora apercebia-me da minha perversidade. Não era mais do que aumentar a expectativa do prazer até um de nós não aguentar mais. Podia ser eu, não importava. Só que agora estava tudo a falir. A ignorância enchia-me de ansiedade. Que ninguém me falasse sobre o que quer que fosse que respondia irritado. Eu estava à espera que ela me falasse. E não falava. Passadas duas semanas era ela «Querido, sou eu. Deixei ficar o carregador no norte e tenho tido imenso que fazer. Não estás zangado com o bebé, pois não?» Eu não conseguia dizer nada, não tinha nada para dizer, doía -me demasiado. E ela continuou. «_Está tudo aqui a falar ao mesmo tempo. Posso falar mais tarde? Então até já, amor.» Nunca mais falou.

Inferno Risquei com raiva o teu número de telefone da minha agenda. Deito-me e começo a repetir em silêncio o teu número de telefone, não consigo deixar de o dizer, como se fosse a única coisa que pode derrotar a minha consciência por inteiro. Um número tão poderoso que sem ele a minha vida corre o risco de se desfazer, de se perder sem nunca mais voltar a encontrar-se. Como se estivesse condenado a repeti-lo até ao fim dos dias, como castigo de te querer como te quero, por maldição. Quero parar este inferno e não consigo. Por fim, exausto, esqueço-me de mim, de ti, de tudo, durante alguns minutos e depois recomeço. O teu número de telefone que me amarra a este mundo de que quero fugir.

Demasiado tempo Quatro horas é muito tempo na vida de uma rapariga. Isto foi o que o meu amigo me disse quando lhe contei que ela me tinha telefonado para dizer que segunda-feira tinha tempo para estar comigo, e eu lhe perguntara quanto, e ela tinha respondido o suficiente, e eu tinha dito pelo menos quatro horas, e ela disse que isso não podia, que era demasiado tempo.

A maldade do mundo *_É provável que coisas improváveis aconteçam. Aristóteles, *_Poética*, 1461 b Isto não é a verdade, apenas aconteceu. Eu adorava a minha mulher, mais do que julgava saber. Mais do que devia poder. Pensar que um dia um de nós morreria já me fazia sofrer. Eu acabava de completar 26 anos, ela ia fazer 23. Deixei-me ficar sentado, apanhei o livro que estava na mesa ao meu lado e quando quis começar a ler não consegui. Não via nada. Não podia ser. Havia qualquer coisa que não estava bem, embora ainda não estivesse a doer. Logo depois começou a doer. Primeiro deitei-me, depois levantei-me, depois voltei a deitar-me. Sentia-me alguém à espera de ser fuzilado, como se me fosse possível saber o que é estar à espera de ser fuzilado. As balas sem nunca chegarem. Depois adormeci. Fui acordado pelo nome dela e senti medo. Não havia nada que soubesse fazer. Quis voltar a adormecer, em vão. Fui para a sala. Fiquei horas com o telefone ao colo. Quando tocava nunca era quem eu queria que fosse. A certa altura ouvi a voz do meu pai dentro de mim: «_Um homem é um homem, um bicho é um bicho» ou coisa do género e resolvi deixar aquela casa. Esperar é um suplício, agir um alívio. Senti-me melhor. Fiz uma mala, grande, vermelha, e fui para o apartamento desocupado de um amigo que estudava em Paris. Sentia-me forte com a minha decisão até notar que não sabia qual era. Deitei-me outra vez. Doía-me por todo o lado. Eu adorava a minha mulher, sem saber porquê. Mesmo quando me confessou, principalmente depois de me ter confessado, estar «perdidamente apaixonada» pelo seu professor. Havia alguma coisa que me forçava a repetir as palavras dela: «É um homem encantador. E escreve maravilhosamente.» Torturei-me noites e dias seguidos. Via-a passear de mãos dadas por um jardim, ele ensinando-lhe o nome das plantas exóticas e depois a fornicar violentamente, o que me excitava e enojava ao mesmo tempo, uma massa mole e esverdeada a escorrer pelas minhas mãos. No sábado em que fez um mês que tinha saído de casa, comprei uma garrafa de vodka com o propósito de celebrar a minha infelicidade. Ao mesmo tempo que ia bebendo, engolia regularmente pastilhas até que lhes perdi a conta. Andava de um lado para o outro eufórico, ria e chorava. Não sentia nada.

Estava anestesiado. Estava a despedir-me do mundo, só que não tinha maneira de saber o que era isso. Chamei um táxi - não estava em condições de conduzir, mesmo se a minha intenção fosse a de acabar comigo - que me levou a um bar da cidade. Não havia ninguém, eram duas da manhã, sentei-me num banco junto ao balcão. Pouco tempo depois chegou uma rapariga com um gorro encarnado. Reconheci-a, mas não saberia dizer de onde. Sentou-se ao meu lado. Não sei o que lhe disse. Coisas que se dizem quando se tem a morte diante dos olhos, se bebeu meia garrafa de vodka e se engoliu uma lâmina de ansiolíticos. Depois ficámos sem trocar palavra uma eternidade, e ela disse: «_Vamos embora.» Eu segui-a, tonto, a cabeça a latejar. Quando já estávamos dentro de um carro perguntou: «_Por onde vamos?» e eu respondi: «_Por mim, com a graça de deus.» Pensou que me referia a um bairro da capital onde se encontra o Panteão Nacional e há um jardim com vista sobre a parte baixa da cidade. Como se pudesse interessar-me por paisagens. Mal saímos do carro reparei, um pouco abaixo, num letreiro a piscar Residencial Boa Esperança, para onde logo me encaminhei. Sentia-me mal, precisava de me estender. Ela seguiu-me. O quarto tinha uma vista sublime sobre a cidade adormecida. Estupidamente pensei: «Se ainda estou sujeito a impressões estéticas é porque ainda não estou acabado.» E não me lembro de mais porque me estendi sobre a cama e adormeci. Acordei com as senhoras da limpeza a aspirarem o corredor. Era meio-dia, estava sozinho. Ao meu lado, sobre a cama, numa folha, estava escrito: «_Por favor telefona-me. Nem sequer sei o teu nome. Tive de ir porque tenho uma gravação marcada a que não posso faltar.» Pensei: «_Que horror, se a minha mulher soubesse», e depois lembrei-me que a minha mulher não queria saber de mim. Mas eu continuava a adorar a minha mulher e não existia lugar para mais ninguém. Não lhe telefonei. Nem ela a mim. Eu não me queria distrair, transferir o meu amor, afugentar a dor com a vaidade. Telefonei-lhe passadas duas semanas. Disse-me: «Esperei por ti estes dias todos. Tive muito medo que não telefonasses. Preciso muito de te ver. «E eu disse: «Às onze, se quiseres, podes ir buscar-me onde me encontraste.» Nessa noite dormimos agarrados enquanto eu pensava unicamente na minha mulher. Na manhã seguinte, ao pequeno-almoço, enquanto molhava uma torrada no chá e olhava para uma praia deserta ouvi dizer: «É bom que saibas que estou perdidamente apaixonada por ti.» Não respondi.

Começámos a estar juntos todos os dias, ou quase. Ela era muito famosa, o que obrigava a certas precauções e cuidados que ocupavam a minha atenção, me entretinham e me comunicavam: um poder de mim até então desconhecido. Olhavam para ela e depois olhavam para mim. Frequentávamos dois ou três restaurantes onde nos reservavam mesas discretas e protegidas. Mesmo assim fomos cercados por um bando de adolescentes saídos sabe-se lá de onde. Reconheciam-na dentro do carro e começavam a buzinar como se se tratasse de um casamento. Era impossível andar nas ruas sem ser parado por admiradores que pediam autógrafos em maços de cigarros, sobre a pele, onde quer que fosse. Eu achava graça. Tinha menos por onde chorar. Quando a minha mulher que eu adorava veio a saber telefonou-me. Estava furiosa. Gostei de a ouvir assim, como se continuasse a pertencer-lhe. Eu não estava bem, ainda tinha muitas recaídas. Continuava a ser assolado por uma tristeza que me obrigava a fechar todos os estores e a deitar-me esticado na cama. Quando estava muito mal o corpo que trouxera de novo a voz da minha mulher aparecia, sentava-se ao meu lado no bordo da cama e cantava-me uma cantiga baixinho, de embalar, como se eu fosse um menino perdido e atormentado. Depois deitava-se sobre mim e fazia tudo o que é preciso fazer sem que eu fizesse nada até se ouvirem gritos e, de súbito, um profundo silêncio. Pedia-lhe perdão. Dizia-me que eu não tinha de pedir desculpa de nada, que era bom assim. Se não fosse ela talvez tivesse morrido, penso nisto muitas vezes. Os joelhos tremiam-me, havia ainda qualquer coisa que me queria sair pela garganta, o coração certamente. A cruel verdade era que, se bem que não acalentasse já qualquer esperança de poder voltar a viver com a minha adorada mulher e gostasse cada vez mais do corpo que me trouxera a sua voz, por quem permanecia perdidamente apaixonado era pela primeira, a que não merecia nada. Ela propôs-me então que fosse seu motorista e a acompanhasse pelo país. Eu não podia adivinhar que, deixando as estradas principais, a pátria se tornava tão labiríntica, as povoações tinham nomes tão inverosímeis e, sobretudo, que eram habitadas por tanta gente entusiasta de música popular. Na primeira semana estive contaminado por aquela excitação. Como motorista dela eu era já uma pessoa importante, mais importante

do que alguma vez tinha sido. Enquanto esperava que o concerto terminasse, na sala reservada, não era raro ouvir perguntar em voz baixa quem eu era, ao que era respondido, com o devido respeito: «É o chofer.» Claro que os músicos e restante pessoal sabiam que também éramos amantes. Ao fim da segunda semana já não se aguentava. Tinha vontade de matar, de sabotar, punha bolas de cera nos ouvidos durante os espectáculos. Dava comigo enredado em fantasias nas quais a minha mulher era a protagonista. Uma vez telefonei-lhe só para ouvir a voz dela mais uma vez e depois desliguei. Eu sabia que as coisas não podiam voltar atrás, que nada acontece duas vezes, mas temia que também não estivessem a seguir em frente. Arranjei uma desculpa e fugi. Apesar de ter acabado, não deixei de estar em contacto com a mulher que me trouxera de novo a voz da minha mulher. E houve um dia em que dei comigo a desejá-la sem mais ninguém. Reencontrámo-nos por minha insistência e ela disse-me: «Envolvi-me com o meu baterista. Tu sabes como é duro estar em viagem. Tu sabes que eu não consigo estar sozinha. Sou assim.» Regressei a casa só. Em cima da mesa esperava uma carta com remetente de um advogado. Informava-me que a minha mulher tinha feito entrar em tribunal uma acção de divórcio em que era acusado de ter publicamente um caso com uma mulher cujo nome não era mencionado. Não valia a pena defender-me, decidi. Já tinha perdido o bastante. Ouvi a voz do meu pai dentro de mim: «_Um homem é um homem, um bicho é um bicho.»

Fumo e depressão Recomecei a fumar. Tinha saudades. O meu médico diz que é bom sinal. Que estou menos deprimido. Que quando se está deprimido até ao prazer de fumar nos recusamos. Parece-me curioso mas acredito. O meu médico fuma cigarros consecutivamente e não me parece nada deprimido. Como seria um psiquiatra deprimido, com a sua própria vontade de morrer, a tratar as depressões de outros? Voltei a fumar tal como deixei de fumar. Sem dar por isso. De um dia para o outro. É bom fumar. É uma metáfora do mundo. Tanto tempo para as coisas se mostrarem, se fazerem, tão pouco para desaparecerem, tão pouco para durarem. O tempo de fumar um cigarro até meio.

Má sina A minha sina em qualquer festa é ficar sempre na pior mesa. Começa-se por falar em férias, depois em praias, por fim na temperatura da água do mar, que dizem estar gelada. Quando confesso que por causa do calor nem saio de casa e preciso em geral de ler três horas antes de ter a coragem de me levantar da cama, toda a gente ri, eu próprio me rio de mim mesmo. As pessoas são todas muito diferentes, as que já conheço e as que ainda não conheço. A minha diferença é só outra diferença e todas elas se dissolvem no barulho de mudar os pratos e seguirmos para a sobremesa. O que vale é que tudo isto não dura muito tempo e tenho a possibilidade de, tomados os cafés, mudar de mesa. Conheço gente em vários grupos que se formam e só não percebo como estão ali num conjunto de mundos baralhados. Fumo e bebo. Tenho um nervoso lá no fundo que não me deixa estar quieto. A caminho da casa de banho apercebo-me de um movimento estranho e há alguém com um sorriso que me pergunta se não quero dar um cheirinho. Acho a expressão desagradável mas claro que aceito e vamos para meu carro. Com um pedaço de papel faço um estreito canudo e num instante tudo fica mais simpático. Tenho vontade de abrir o meu coração mas resisto, não é agora que vais começar a falar nela. Voltamos para dentro e sinto-me bastante efusivo. São pessoas que não vejo há muitos anos. Numa mesa uma rapariga gira diz que viu os meus pés fotografados numa revista. Não acho nada estranho. As pessoas gostam de nós mais do que julgamos. Há uma pista de dança onde passa música sul-americana e onde quem sabe dançar, dança. Eu não. Dói-me a garganta enquanto sorvo um whisky com gelo e continuam a fumar de modo irresponsável. Fico a olhar as pessoas e cada uma delas leva-me a uma corrente de pensamentos muito diferente. Esta lembra-me uma viagem que fiz quando era novo no norte de África e em que esgotei para sempre o gosto pelas viagens. Aquela evoca-me, não sei como, outra pessoa de que não me lembro o nome e do qual procuro com urgência lembrar-me. Aquela outra leva-me a um tempo devastado. São pessoas que faltam, que morreram, se mataram. Mas eu não sou o único sobrevivente. Aproximo-me do meu amigo que tem a faculdade de me pôr mais alegre, faço-lhe um largo sorriso e pergunto-lhe quando é que vamos dar outra volta de carro. Ele diz-me para esperar, que já me vem chamar, que não vou ficar esquecido. Afinal a rapariga gira é a nova na morada de um

outro velho amigo. Também não me apetecia quase nada. Só quero chegar a casa e atravessar a noite sozinho. Olho para o relógio, sinto-me cansado, ainda tenho de fazer alguns quilómetros. Despeço-me dos anfitriões sinceramente agradecido e saio. Os meus companheiros de mesa desapareceram para sempre. Quando chego tomo três comprimidos e deito-me esperando que tudo seja mais breve do que o passado.

Capricórnio Quando se está muito aflito acredita-se em mais coisas. Dou comigo a ler o meu horóscopo e a reparar como bate tudo certo. Todos os Capricórnios deste mundo devem estar a passar pelo mesmo que eu. Serve de consolação, embora breve. Penso na ambiguidade de todos os meus méritos, no muito pouco que acrescento a este mundo onde sou só um que passa. Estou deprimido, resolvo ir a um médico. Depois de algumas perguntas o meu caso desenha-se igual ao de muitos outros e receita-me comprimidos. Sem comprimidos a vida neste virar do século seria muito diferente. Televisão, carros e comprimidos são os expedientes de uma vida dependente.

Um estudante em Heidelberg Os príncipes vinham de visita e eu não estava preparado para os receber. A minha roupa, para não falar da minha cabeça, não estava em condições. Pelo menos uma camisa tinha de ser passada a ferro e os sapatos não tinham resistido às últimas intempéries, apesar dos vários tratamentos ao cabedal. Eu morria de vergonha antecipada, não pela minha pobreza, mas pelo meu descuido. O telegrama da véspera dizia: «Chegamos terça à hora combinada. Não nos esperes na estação de comboios. Encontramo-nos para jantar no Hotel das Quatro Estações». E assinavam com os primeiros nomes. Eu tinha vinte e três anos menos seis dias e dormia num quarto alugado que dava para um pequeno pátio interior e tinha a exacta largura dos meus braços quando me punha de pé. Há dois anos que permanecia aberta a mala com que chegara pois insistia em considerar-me de passagem. Se bem que soubesse de onde vinha, ignorava por completo para onde seguiria. Tinha-me inscrito como estudante de direito com a convicção suficiente para obter um cartão de estudante, ocupação reconhecida pelas autoridades. Havia gente em muito pior situação. No quarto do meu lado direito vivia um desempregado que chegava embriagado e lançava urros antes de adormecer. O do lado esquerdo era o de um americano arruivado de mau aspecto, que ensinava inglês numa escola do exército e ouvia Wagner às oito da manhã de todos os domingos e feriados. Eu vivia uma grande solidão que não procurava remediar. Era uma condenação que tinha aceite. À hora do almoço, na cantina, encontrava uma mesa retirada onde não estivesse ninguém e onde esperava que ninguém se viesse sentar. Falar com outra pessoa seria pelo menos cansativo e eu precisava de todas as minhas forças para poder continuar. Continuar para onde? Isso era uma das muitas perguntas que não ousava colocar-me. Simplesmente continuar, pois não me parecia ter o direito de acabar o que não tinha sequer começado. A minha vida era regulada por um relógio impiedoso, em aço, dentro de mim. Fazendo sempre as mesmas coisas às mesmas horas adquiria pouco a pouco um estatuto de fantasma, de ser inexistente. Era um regime que me permitia sobreviver com o meu passado. Ninguém me conhecia e eu não procurava conhecer ninguém. Os esporádicos cruzamentos nas escadas com os vizinhos, as frases curtas trocadas com a

bibliotecária, os colegas aos quais se faz um ligeiro aceno com a cabeça ou mesmo se dá uma resposta sucinta sobre uma determinada matéria, não chegam a ser conhecimentos. São seres vivos em geral dos quais nem se chega a ter uma ideia do que são. Tudo isto viria a ser alterado de modo significativo quando chegassem os príncipes. Aliás, o principal motivo da visita visava mudar este estado de coisas. Eles vinham para me apresentar uma lista de gente selecta e abrir-me as portas mais privadas da cidade. Eu não podia recusar-me. Não saberia como. O meu passado teria por força que encontrar o seu futuro. Mesmo numa sociedade desclassificada os príncipes sustentam um poder que se revela nas ocasiões mais comuns. Ou então levam a decadência muito a sério e elegem-se vítimas de si próprios, metodicamente. Há coisas mágicas que se aprendem sem se dar conta, vindas de antepassados, e que nada têm a ver com o exercício da vontade. É uma maneira de andar ao entrar numa sala que põe os espectadores fascinados, é o exercício das práticas mais próximas da animalidade com uma arte inimitável, é uma graça do espírito que vale como uma armadura emplumada. Eu procurei manter-me sereno, não me desviando o mínimo que fosse dos planos estabelecidos. Acordar às 6 e meia. Duche frio. Um café quente sem açúcar e uma fatia de pão de milho sem manteiga. Entrada na biblioteca às 8 menos um quarto. Leitura anotada de dez parágrafos da filosofia do direito por Jorge Frederico Hegel. Prelecção às onze sobre polícia externa no reinado de Luís XIV. Almoço, sem sobremesa nem café, ao meio dia. Passeio pelo bordo do Neckar durante meia hora. Regresso a biblioteca. Leitura de 20 páginas do diário de Pavese, imediatamente seguida de três capítulos de Sade até às 18 horas. Regresso a casa. Duche quente. Vestir para sair. Às oito horas em ponto entrei no hall do Hotel das Quatro Estações onde a minha vida se ia alterar definitivamente.

O actor Faz agora de porteiro num bar da capital. Já fez de empregado de mesa, mas é mais cansativo, sujeito a pequenas humilhações e recebe-se mal. Alguma publicidade para a televisão sempre dá para pagar dívidas antigas, para que possam vir outras. É actor profissional. Queria demitir-se, suicidar-se em cena atirando-se de uma escada para um balde, misturar o riso às lágrimas. O tempo vai passando e o talento desempregado dói cada vez mais. Depois do Conservatório, esteve três anos em Londres onde foi feliz. Aprendeu muita coisa, viu muita gente, nem tinha alma que se deixasse afectar pelo estado do tempo. Podia chover dias a fio que tanto fazia, não era do sol que tinha saudades. Tinha morada em museus, passeava pelos jardins, frequentava bares onde passavam o Pinter e o Berkoff e outros grandes senhores. É bom estar onde o mundo se faz, sentir a agitação do novo a chegar. Não houve trabalho por mais humilde que não valesse a pena fazer. Teve amantes compenetrados e sérios com quem passou noites a beber, e o futuro pela frente. Voltou por causa da nossa destruída língua e porque aqui tudo lhe pareceu estar por fazer. Foi actor secundário em dois filmes de algum sucesso antes de se incompatibilizar com um produtor importante. Nunca mais lhe ofereceram qualquer papel. Montou com três colegas uma companhia de teatro que fez duas temporadas para vir a falir. O que está por fazer é para ficar por fazer, foi aprendendo aos poucos, dolorosamente, sem o querer. Não é infeliz. É outra coisa. É o movimento elástico da alma que o prende ao mundo. Sempre que lhe dirigem a palavra responde a sorrir, sem se queixar. Por causa do frio tem um casaco que vai até aos pés.

Vida e meia a servir copos Começou aos dezassete, vai fazer trinta e quatro. Sempre a servir copos no mesmo bar. No primeiro dia o patrão disse-lhe: «_Salta para trás do balcão e desenrasca-te.» Nem sabia o que era um vodka laranja. Hoje só as garrafas continuam a se as mesmas, as pessoas não. As pessoas estão muito diferentes, quase não se reconhecem, é uma confusão. Acontecem coisas a mais em tempos cada vez mais breves. É arriscado pensar o que quer que seja sobre quem quer que seja, quanto mais dizê-lo. O tempo desfoca qualquer juízo mal é proferido, quer seja moral ou estético. As caras transmudam-se pela noite e o bar é uma abstracção onde se cruzam indivíduos múltiplos. Os sentimentos escasseiam. É preciso sentir coisas e é cada vez mais difícil. Há muita gente que desiste, desaparece, muda de sítio. Nem os vícios já são puros. As garrafas continuam as mesmas, as pessoas não.

O homem que se alimentava de flores Acordar de manhã sem ter nada que fazer. Sentir o tempo todo pela frente e o desespero. Não ter coragem para se mexer. Ficar a sentir a dor que vem cada vez mais forte até julgar não poder crescer mais e crescer ainda. Ser tomado pela miséria dos outros como se a dele não bastasse, pensamentos tristes colhidos por todo o lado, ao acaso. Entrar em pânico, respirar como quem sufoca, deixar-se cair da cama para o chão como se do chão já não se pudesse cair para nenhum lado, como se ao chão alguém se pudesse agarrar com toda a força dos braços e esperar salvação. O desempregado chora a sua inutilidade, a sua aflição. E não tem nada a fazer. No princípio ainda lia, depois deixou de ler. No princípio ainda se mexia, depois deixou de se mexer. Ficava a olhar as flores de uma árvore que se via através da janela do quarto.

Filho morto A senhora está deitada sobre o sofá da sala. São três da tarde. As vozes por fim calaram-se. Espreito. Lá fora a luz do sol queima as pupilas. Seres humanos matam-se, é sabido. Tento descrever o que se passa e passo ao lado, é ridículo querer salvar com palavras algum sentido. E eu, de mim sobrevivente, o que aguardo? A falta toma--me o corpo por inteiro. Querer voltar atrás, ver com vida o corpo morto, é o mínimo. Querer pensar, conversar comigo, e os pensamentos escorregarem uns sobre os outros, não servirem de nada, desconjuntarem-se. Um redemoinho leva o que resta para longe. Eu quero acreditar que um conforto há-de chegar e não acredito. Dói tanto que a dor ocupa a sala, resiste a ser atravessada. Nem parece haver lugar para ninguém neste abandono. Qualquer explicação é impiedosa, inverosímil, verdadeira. Eu não posso dizer o que sente a senhora. E não consigo deixar de o pensar, insistindo no que não consigo. Digo-me que tenho de contrariar o redemoinho, agarrar-me ao trabalho, afastar estes sentimentos aflitos, ser lúcido. A senhora sentou-se. Não traz lágrimas à superfície da cara. Agarrou com as duas mãos um álbum de fotografias que examina de perto com todo o cuidado. A senhora não se encontra esta tarde. Ficou-se num pequeno passo do tempo, anuncia-se fechada sobre si própria. A minha vontade, se pudesse, era não a deixar sozinha. Mas se entrasse nesse lugar por onde sairia, como? A senhora, vejo-a de fora, com distância, coberta de luto, e pergunto-lhe se quer um chá de limão, um copo de água. A senhora responde que não precisa de nada e agradece. Meu deus faz com que isto acabe num instante e não volte a reaparecer amanhã, igual, nunca.

Um frio que não passa Na vizinhança as crianças ricas são cobertas de presentes e prometidas à infelicidade. É Natal e sente-se mais o que não falta e o que falta. Eu vou de casa em casa à procura de uma qualquer alegria. A imaginação que não tenho ajuda aqui a completar o que vejo: é gente muito sozinha, famílias desfeitas, recordações dolorosas de um tempo que não era bem este, desastres evitáveis, ruínas. Eu próprio não tenho razão para qualquer tristeza, mas não aguento. Trago os bolsos com ansiolíticos que desfaço na boca com golos de vinhos caros e ainda consigo compor uma frase minimamente correcta. A par disso a desolação avança e toma conta do meu corpo. Fico muito calado e nem percebo o que dizem. Quando eu for grande não quero que haja mais natais. E eu que não me devia queixar de nada. À minha volta é tudo tão confortável. Ainda há tempo, a um canto, de comentar a cotação das acções. Mas estes feriados em promoção, sem alma, doem-me tanto. Fui apanhado por um frio que não passa. Já não sei o que faça, meu deus. Que saudades tenho de não receber os presentes com que sonhava, da pobreza anterior à invasão dos televisores, dos primos na missa em que se pensava em tudo menos no que importava. Dá-me para isto e para chorar grossas lágrimas em que ninguém repara. Reafirmam, pelo contrário, o meu melhor aspecto ao desejarem-me as boas festas. Eu cada vez percebo menos disto e penso, em definitivo, abandoná-los. Só me falta a fé ou a coragem.

Todos os sentimentos são recíprocos Não era a primeira vez. De noite, pela estrada, num instante, ela adormecia. Tinham ido jantar ao outro lado do rio e voltavam para casa. Ele estava a contar qualquer coisa, fazia uma pergunta, olhava para o lado e lá estava ela, a cabeça reclinada para trás, os olhos fechados, os lábios a brilhar como as estrelas. Ele gostava de a sentir assim abandonada. Baixava a música e procurava conduzir com toda a suavidade. Se adormecia era porque estava cansada e precisava de dormir. Quando já estavam quase a chegar ela acordava sobressaltada. «_Já estamos aqui?» perguntava, como se duvidasse onde estava. E pegava num cigarro que fumava lentamente. Chegavam a casa, despiam-se, deitavam-se. Ele dizia: «_Boa noite, minha querida.» Ela dizia: «_Boa noite, meu querido.» Fechavam as luzes e adormeciam lado a lado. Ela primeiro, ele a seguir. Ele nem sempre conseguia adormecer logo. Ficava a pensar nas coisas mais diversas. Era preciso mandar arranjar o carburador do carro. Há duas semanas que não estava com o seu filho. Porque nunca se tocavam? A culpa não seria deles, nem de ninguém. Tinham afastado o desejo. Há três meses que viviam como irmãos. Era uma coisa que nem aos amigos podiam dizer. Ninguém iria compreender. Sentiam coisas que as outras pessoas não podiam sentir. É uma singular liberdade, dois corpos juntos sobre uma cama sem precisarem de se satisfazerem um ao outro. Foi num almoço que ela lhe confessou, um pouco atrapalhada, que gostava muito dele, cada vez mais, que o achava bonito como sempre, mas que não o desejava. Ele sentiu-se muito apaixonado. A partir de então nunca mais discutiram, todo o atrito se desvaneceu. Se as coisas podiam continuar assim é o que nenhum deles sabia. Nem falavam sobre o assunto, com medo do que pudesse vir a acontecer. Tão estranho o haver só dois sexos.

Doce desejo Sabes, Lulu, em Paris, onde fiquei em casa de um amigo, apaixonei-me por uma mulher. Era uma figura em porcelana. Estava colocada sobre a lareira da sala. Na primeira noite levantei-me duas vezes para a ir ver. Lulu a não aguentar o choro ao contar-me pelo telefone como tinha sido apanhada no metro sem bilhete válido por um revisor, bilhete que trazia na mão direita enfiada no bolso, mas se tinha esquecido de obliterar, compelida a mostrar o bilhete de identidade, humilhada, como se forçada a despir-se e a mostrar um sinal íntimo do corpo diante de todos os outros passageiros que fixamente a olhavam. Lulu a desenhar na palma da minha mão, no lugar onde o polegar encontra o indicador, um pequeno coração e na outra uma rosa e a pedir--me que lhe faça o mesmo, o que faço sem conseguir impedir um ligeiro sentimento do ridículo apoderar-se de mim. Lulu por cima de mim a desprender os cabelos que se desenrolam em ondas negras sobre a pele muito branca e a dizer: Quero que vejas os meus cabelos. Quantas somos? pergunta Lulu a meio do almoço. Não espera pela resposta e muda de assunto. Ontem, antes de me deitar, veio-me à cabeça a certeza de que estás devastadamente apaixonada por mim, digo. Não te ocorreu poder ser o inverso? responde Lulu. Teres descoberto que estás devastada-mente apaixonado por mim. Gosto da palavra devastado. É mais forte do que perdido. Mas também gosto de destroçado, saqueado, destruído. Lulu em Lisboa. Eu em Coimbra. Tu em Faro. Cada um por seu lado a pensar no mesmo. O mesmo é cada um de nós a desejar o outro, a desejar o mesmo. Esta noite vou falar-te, diz-me. Mas não é possível, respondo. Eu sei. Também vou pensar que estás a tentar falar comigo e não consegues. Lulu de pé, nua, à minha frente, enquanto visto o casaco preparando-me para sair.

Janela indiscreta Um apartamento habitado por três raparigas e um rapaz. Cada um tinha o seu quarto. Mas também havia gente que passava e alguns vinham de visita e ficavam. O quarto de banho dava por uma janela alta para um saguão, o qual na parede oposta tinha uma janela pequena e quadrada parcialmente ta pada por uma fila de livros sobre uma estante. Era portanto possível procurar um livro, folhear um álbum, ler alto uma estrofe de um poema e, sem querer, olhar pela janela pequena e ver a janela alta em frente que podia estar aberta ou fechada conforme os casos e as ocasiões. Aconteceu, quando Lúcia buscava um livro, ver Clara a tomar duche, de pé na banheira e deixou-se ficar. Viu-a fazer demorar a água nos lugares misteriosos onde o corpo interior vem à superfície, a boca, o sexo, o que a imobilizou, fazendo-a sentir o que desconhecia e a fez fugir, deixando desarrumado o livro que abrira. Quando o telefone tocou era para ela, que chamaram e depois procuraram pela casa inteira, descobrindo-a fechada no quarto sem pretender responder ao que quer que fosse.

Irmãs Lulu afasta as pernas e começa a tocar-se. Olha-me como quem ordena ou suplica: «_Larga de imediato esse livro e vem ter comigo.» Eu prefiro, pelo menos durante algum tempo, continuar este jogo. Os meus olhos saltam das linhas das palavras para o aprumo do seu corno. Não sei quanto tempo vou aguentar, quanto tempo quero. Escurece fatalmente lá fora enquanto admiráveis pássaros chilreiam. Lulu diz: «_Não aguento mais, vem depressa ter comigo.» Eu não digo nada. A luz é já insuficiente para ler o que quer que seja. Sinto-me mais preguiçoso do que excitado e agrada-me a estética daquilo tudo. Eu deitado sobre a cama. ela sobre o canapé, os cortinados pesados a caírem o chão. Tudo isto longe de tudo, cada vez mais longe, enquanto de suspiros se vai enchendo quarto. Agora sim, sinto-me deveras excitado e mostro-lhe o meu sexo. Ela diz: «_Meu amor adorado.» Levanto-me, aproximo-me. Ajoelho diante dela e levo até ao fim o que ela começou. Depois trago-a para a cama, entro nela e deixo-me ficar muito quieto. Quero sentir tudo o que ela sente. Sopro-lhe ao ouvido palavras temíveis. Falo-lhe na irmã que desejo. Ela oferece-ma logo com todo o prazer e eu desfaço-me incontrolado, rendido a uma imensa ternura.

Saudades de Barcelona *para o João Simões* Em Barcelona os beijos são lentos, dolorosos. Eva acorda perdida entre os lençóis. É tão boi vê-la dormir a teu lado. Três dias a ouvir a mesma faixa de musica, fechados nesta casa onde ninguém procura ninguém. Fazemos filmes de nós próprios que depois vemos, dezenas de vezes, estendidos em colchões. Não há quem trabalhe mais e não pareça fazer nada. Pensar é violento, estafa. Estamos apaixonados pela mesma mulher, que merece melhor do que nós e nos olha de lado. É uma tontura grande. Por vezes é insuportável. Qualquer mulher é digna de todos os cuidados, mas ela ainda mais. Bebemos e fumemos tudo o que há em casa e depois propões-te fugir para Madrid no comboio das quatro, o que não fazes. Na TV passam filmes pornográficos enquanto um de nós escreve poemas de amor e o outro diz alto, cheio de intenção: «_Se não for ela, terei todas as outras.» Assim se acaba um amor, sem se começar nenhum outro. Eva trabalha no Zoo com cetáceos cintilantes, tem aulas de canto ao fim do dia e desfaz-nos os corações. Com delicadas mãos agarra-nos os sexos como brinquedos, deixa-nos a chorar. Aquelas belas italianas com quem se dá e nos torturam. Já se nos entregou em cadeiras, camas, espaldares para sentirmos melhor como se nos escapa de qualquer maneira. Em Barcelona queres ficar para toda a vida, mesmo horas. A menina linda que esta terra estrangeira nos roubou. Em Barcelona os beijos são tão fortes que sabem a morte.

Se o amor for outra coisa Não tenhas medo de mim. Eu só preciso de ti. E basta dizeres «chega» para que me afaste e não volte sequer a telefonar-te. Acredita. Não tenhas medo de mim. Esta aflição não é de agora, tu não tens culpa de nada. Se quiseres podes encostar a tua cabeça ao meu peito e chorar todas as lágrimas. Eu choro sozinha, eu sou corajosa. Foi logo no primeiro beijo que me entreguei e me perdi. Tu não tens culpa de nada, sossega. Tu chegaste muito tarde, só agora. E o primeiro beijo foi há muito. Não espero nada. Nem em sonhos. A única coisa que acontece é isto continuar sem que eu saiba como, e eu sei que nem o teu amor, se ele existisse, me poderia salvar. Eu não preciso de ti. Eu só preciso de ti. Não tenhas medo. A culpa é minha. Não tive cuidado. Julguei que o amor era outra coisa. Acreditei nas palavras que me disseram. Ninguém me disse que era preciso ter cuidado. Acordamos de manhã, abrimos os olhos, reconhecemos o quarto em que vive-mos. Quando me entreguei foi para sempre. Não tive cuidado. Levaram-me para longe, para longe do meu quarto. Disseram-me: «_O mundo é todo teu, agarra-o» e eu acreditei que assim era. Que bastava estender uma mão, suspirar um desejo, que o tempo existia por estar à minha espera. O meu amor estava dentro de mim e ninguém tinha morrido. Eu própria me julguei imortal, tive a certeza, enquanto o mundo abria as suas janelas, uma a uma, para que o contemplasse. O mundo e eu, nós dois, e o meu amor que os ligava. Agora pode parecer estranho, mas então nada era estranho. Eu era uma alegre criança cheia de vontade de viver. Não era preciso ter cuidado. Não foi de repente que tudo mudou, que fiquei aflita, nesta aflição em que sufoco. Eu demorei muito tempo a acreditar nas coisas mais simples, em coisas que toda a gente sabe desde sempre. A maldade, por exemplo, parecia-me incompreensível e por isso necessariamente inexistente. E o ciúme, e a inveja, e a mentira, e a traição, sim a traição foi o que mais me doeu sempre. Não sei porque foi assim. Porque teve de ser assim. Porque tem de ser assim sempre. Nem julgo que alguém saiba. Ainda me repetem que insisto em continuar a ser uma criança, que o mundo é muito árduo, que é por minha inteira culpa de cada vez que me engano. Riem de mim. Eu engano-me tanto. Eu acreditei que o primeiro beijo fosse o último. Aprendi que a vida se constrói para além da nossa vontade. Que não caminhamos sobre terra firme, mas sobre água que os nossos

rastos confunde e apaga. Que as minhas palavras fogem de mim para longe, mal são ditas, se separam. Que os corpos têm desejos infindáveis que desconhecemos e assustam muito. Que o mundo que me ofereciam era vazio e silencioso e triste. Que a morte caminha, passo a passo, ao nosso lado. Não foi de repente, foi quando, pouco a pouco, me deixaram, me traíram, me mentiram e eu decidi vingar-me. Foi a pior coisa que me fiz. Foi de mim que me vinguei. Não julgues que foste tu. Tu não tens culpa. Antes de ti eu já sofria o inevitável. Só vieste lembrar-me o que não pude esquecer. É tarde agora. Agarro com força a pequena almofada que tenho entre os braços e penso em ti. Não sei nada. Vens a mim ao de leve e depois largas-me. Para te ver a cara tenho de te surpreender em movimento, fechando uma janela, calçando um sapato, saindo do carro. Tu não eras quem eu esperava que fosses. Estamos sempre a imaginar isto e aquilo e sempre a confundir isso com o que está para vir e vem de outra maneira. Eu pelo menos. Eu tenho uma enorme vontade de te dizer tudo numa só palavra e depois ficar calada, não dizer mais nada. Eu quero que sejas só tu a saber. Eu tenho a infinita certeza de que me estás a ouvir, não sei como. Há aqui qualquer coisa de mágico, uma invocação por palavras que nos transporta para um lugar sossegado. E de repente tudo se desfaz. Não posso deixar de te dizer que não te quero a meu lado, nem por perto. Que de repente há um barulho em que as palavras se transformam, assustadoras, que quero ficar sozinha, longe de ti, como agora, muito longe aqui fechada, agarrada à almofada pequena. Tu não és o primeiro. És só outro que vem para me roubar de mim. Acredito que com a melhor das intenções, sem qualquer maldade. A maldade vem depois quando já não se aguenta de outra maneira e dói por todo o lado e nos tornamos iguais àqueles que detestamos. Os outros são como nós. Tu também és como os outros. Um que passa. De cada vez mais lentamente, é certo, com mais dor, da pior maneira. Tu não és o primeiro, nem sequer o último que provoca em mim esta paixão de que só eu sou culpada. A paixão que é minha, que me arrasta, me arrasa. Digo-te isto tudo porque sei que não podes ouvir-me. Minto-te porque não sei encontrar a verdade. Sofro sem de mim ter piedade. Eu mereço aquilo que te faço, engano-me com o amor, sem desculpa. Sei que fui eu a chamar-te. Estava aflita. Lembrei-me de ti e disse-me: vais ser tu a livrar--me desta aflição. Não sei porquê. Talvez porque já tivesse tomado outras medidas, feito outros esforços sem qualquer resultado. Talvez porque soubesse que tinhas de ser tu por assim o ter

decidido. És tu, vais ser tu, tens de ser tu. E no princípio pareceu dar resultado. Telefonei-te para dizer que precisava de estar contigo e tu vieste a correr, como um menino. Não devias, mostraste-me outra vez esse estranho poder, o desejo. Não esperei que fosses bonito mas a tua voz por detrás de ti encantava-me. O teu sorriso lembrava por vezes a serenidade de um Buda. E por mais que dissesses a tua dor eu não acreditava, eu só sentia a minha a desfazer-me. Servi-me de ti como quem bebe um xarope, pela garrafa, desculpa-me se assim to digo. Ao meu colo tu eras um menino a choramingar por ter partido um brinquedo. Essa mulher por quem sofrias nunca existiu senão como personagem de livro. É assim que o sinto. É assim que mo fizeste sentir e é só isso que importa, é disso que se trata. Aliás, era difícil distinguir em ti o que fazia parte deste mundo, do outro onde te protegias, te escondias, te fazias passar por quem não eras. Falo-te com raiva porque já não me serves de remédio e tenho de encontrar outro mais forte e não é fácil. Sou facilmente magoada. Sou facilmente usada. Deixo-me usar. Contigo ainda foi pior. Porque tudo parecia ser como não era. Para ti eu era material de literatura. Até podia parecer que estávamos bem um para o outro. O teu analista dizia-te que só me podias ajudar, fazer-me bem. O que saberia de mim o teu analista senão o que lhe dizias e desejavas ouvir. Sim, arranjaste todas as desculpas para me teres e para me deixares. Para te entreteres, para recomeçares a escrever, para teres a ilusão de que fazias alguma coisa dos teus dias. Para saíres da cama e assobiares. Eu servi-te de tudo. Mas sobretudo de desculpa para continuares quando não encontravas vontade ou razão ou motivo que fosse para continuares. Fui a tua desculpa. Foi então que encontrei aquele pó branco que alivia. Não te culpo disso. Se não fosses tu, seria outro. Sou eu que me faço mal a mim própria e não consigo sair disto. É uma dor muito antiga que volta sempre. É uma dor que só pode ser expulsa por outra maior. Aquele pó branco anestesia. Sei que não tenho perdão. Nem o procuro. Sou responsável por tudo o que me faço. Isto já começou há muito tempo e não parece ter fim e o pó branco ajuda. O pó branco é uma coisa com quem não precisas de falar, que não tens de acariciar, que nada te exige em troca de prazer. É uma coisa que te não pode mentir, porque é uma coisa inerte, fria, morta. É a única coisa que te pode aliviar. Desculpa-me dizer-to. Tu não tens culpa. Foste só um a passar. Doeu como dói sempre. Nada assim de tão particular. És um menino no meu colo que se cansou e adormeceu. Gosto

de pensar assim em ti. Dorme agora.

Playboy Eu não estou à beira de nenhuma depressão, nem pensar, isso e a rubéola são coisas infantis, foi o que eu disse ao Luís quando ele me afirmou que eu estava à beira de uma depressão, não, o que eu preciso é de mudar alguma coisa e já que não pode ser noutra pessoa que seja em mim, alguma coisa que eu sempre quis e nunca pude e agora posso e devia já ter tomado uns dez Xanax quando entrei no gabinete do esteticista um híbrido entre a cosmética e a cirurgia e lhe disse que queria ter umas maminhas maiores do que as que tinha e ele disse-me para eu levantar a blusa e eu levantei a blusa e foi só isso porque eu nem usava soutien, não precisava, e ele disse-me que para a minha estatura podia de facto fazer-se alguma coisa, gostei da maneira como empregou a palavra Estatura, e ainda me disse mais algumas coisas que esqueci até eu me lembrar que continuava com a blusa levantada tal a eficácia dos Xanax e perguntei se já podia descer a blusa ao que ele respondeu, claro que sim, e depois tirou uma Playboy de uma gaveta por debaixo da mesa, sim uma Playboy exactamente, e começou a folheá-la virada para mim, perguntando se eu queria umas maminhas assim ou assim e eu fiquei estupefacta para não dizer chocada e disse que não era nada disso o que eu queria, o que eu queria eram as minhas maminhas tal e qual só que um bocadinho maiores do que eram e então ele disse que estava muito bem e marcamos logo a data da intervenção que me doeu horrores, para aí duas semanas sem conseguir dormir bem com um hematoma do lado direito, sem posição na cama, uma data de almofadas e agora que já tudo passou há tanto tempo ainda sinto alguma coisa na minha maminha do lado direito, não sei bem dizer, com se não fosse bem a minha, a outra não, não me lembro nunca dela, e se não foi a coisa mais estúpida que eu fiz na minha vida anda lá por muito perto.

Cicatriz Desde que reparei nele senta-se do mesmo lado do balcão e pede a mesma bebida duas ou três vezes. Vem todas as noites, chega cedo e nunca fica muito tempo. O tempo de beber duas ou três vezes. Vejo-o falar, mas a maior parte do tempo tem os cotovelos em cima do balcão, as mãos por debaixo do queixo e olha em frente como se fixasse um ponto por detrás da parede. É assim que o lembro quando penso nele. É verdade que penso nele sem querer. Corro de um lado para o outro, a encher copos de gelo e de álcool. Uma noite perguntou o meu nome e disse-lhe o primeiro que me passou pela cabeça, Sasha. A música está sempre demasiado alta, disse, e acrescentou aquele nome que se insinuou como uma paisagem de neve, uma vida limpa. Fala devagar, tem uma voz grave, podia ser estrangeiro. Uma cicatriz marca-lhe a mão direita acima do polegar. Parece triste. Sai antes de isto acabar. Sai sozinho. Pelo menos vejo-o sair sozinho. Isto só fecha às quatro da manhã. Eu não tenho sono e há sempre alguém que me leva. Não gosto de estar sozinha. Nem a dormir gosto de estar sozinha. Há muito que deixou de me tocar a alma. Podem fazer-me tudo, menos beijar me a boca. Isso é só para o meu amor que não tenho. Desde cedo soube o que queria dos homens. Queria muito. Eles não queriam muito. Durante anos senti uma enorme raiva, consumi-me numa vontade de vingança, depois habituei-me. Os homens, de uma maneira ou de outra, são demasiado parecidos, e eu ganhei um perverso prazer em jogar esse jogo em que lhes dou e depois lhos tiro isso que eles querem. Dizem que sou muito bonita e outras coisas mais verdadeiras. Tudo é estúpido. Os homens olham o meu corpo e pensam no mesmo, coisas violentas. Este é estranho. Quando me pede outra bebida e me fala é nos olhos que me olha e quando me volto, de propósito para que possa ver o meu corpo, volta de novo a cabeça para o muro. Não estou habituada. Nem o meu pai. Torna-me tímida, tudo o que não sou. Ontem fechei as luzes todas para não ter de ver a cara do João a esmagar-me e vi com uma nitidez aumentada a cicatriz por cima do polegar da mão direita. Foi muito doce o prazer. Não quis abrir mais os olhos e adormeci assim encantada a percorrer devagar, com todo o cuidado, uma cicatriz. Quero afastar esta ideia que volta, de nada serve. Espero. O gelo que os meus dedos agarram não está frio porque não o sinto. Umas finas e invisíveis luvas cobrem-me a pele dos dedos e o movimento

automático de encher os copos antecipo-o em câmara lenta. Espero. Quando ele vier é que tudo começa. Até lá o tempo também espera. A possibilidade de não vir hoje, sempre, assusta-me. Deixo cair um copo no chão que se estilhaça em milhares de cristais brancos. Eu não devia estar assim, nunca. Eu jurei a mim mesma que não voltaria a acontecer o que só aconteceu por descuido.

Star Fucking *para o João Luís Barreto Guimarães* Sentou-se à minha frente e começou a chorar. Nunca tinha visto chorar assim. As lágrimas faziam-se-lhe nos olhos até ficarem grossas e pesadas e depois caiam. Fiquei encantado, atrapalhado, não sabia o que dizer. Parecia uma Madonna do Pontormo. Perguntei: «_O que é que te aconteceu. E da, olhando-me nos olhos, disse o que mais temi ouvir alguma vez: O que escreves faz-me sofrer.« Fiquei aflito. Era verdade. Perguntei-lhe o nome e ela disse, Joana. E depois cantarolou «Joaninha voa que o teu amor...«. Apesar da luz fraca, as lágrimas continuavam a cair. Perguntei-lhe se não tinha algum sítio onde pudesse escrever e ela apresentou um pequeno caderno aberto. Escrevi o meu número de telemóvel, pedi-lhe que me ligasse dali a meia hora e saí. Deixei--me ficar no carro, frente ao hotel. Quando tocou ouvi: «Onde é que me queres foder?» Respondi num péssimo português: «Não é nada evidente. Espero-te à entrada do Hotel da Lapa.« Não quis entrar comigo, preferiu esperar. Eu estava mais que acabado. Comecei por lhe dizer que não estava habituado. «Não está habituado a quê?», «Olha, preciso de tempo para me habituar a um corpo. Isto talvez seja uma máquina, mas uma máquina sensível. Não obedece como se quer.» Sentou-se na cadeira e dobrou as pernas que tinha esticadas. A posição das pernas excitou-me. Revi por momentos uma pintura branca do Julião Sarmento. Já não chorava, ninguém diria que tinha chorado. Aproximei-me dela e comecei a despi-la. Era muito bonita. Era ruiva, abandonada, novíssima. Lembrou-me uma holandesa do Vermeer. Pediu-me que fechasse todas as luzes. No escuro, sem nada ver, perdi toda a pouca excitação que já tinha. Estava demasiado cansado. Quase desmaiava. Tentei parar, recuperar, mas nada havia a fazer. Pedi-lhe para acender pelo menos uma luz. Ela saltou da cama e vestiu-se. Agarrou numa máquina fotográfica, que eu nem tinha reparado que trazia, perguntou se eu não me importava que me tirasse umas fotografias, e começou a disparar com o flash. Eu punha os braços diante da cara. Depois disse que já eram quase quatro da manhã, e despediu-se com um beijo. Apesar de toda a raiva, adormeci a sonhar com ela. Mas não tenho a certeza, foi num rede moinho.

Sushi Sento-me ao piano e começo a tocar. O meu pai diz: «_Toca outra coisa, isso é tão triste.» A minha mãe diz: «_Deixa-o tocar o que ele quiser, não impliques, já é crescido.» A minha irmã a beber vinho branco e a falar sem qualquer pausa como se estivesse eufórica. O meu pai a repetir: «_Filho, vê lá o que fazes» A minha mãe silenciosa no jardim à sombra do guarda-sol por causa das manchas de pele, na cara e nas mãos. As dela são escuras, as do seu irmão, meu tio, são claras. A minha mulher satisfeita com tudo, feliz, sobretudo com o sol, que não é habitual estar assim tão forte em Março. E depois chega a minha sobrinha, o meu filho, a mãe do meu filho e o seu marido para o retrato desta estranhamente amada família. E as dores que me apertam as costas crescem e eu penso na faca que me há-de cortar os pulsos, longa e fina, de dois gumes, como para fazer o sushi que a minha mulher adora.

Um Verão particular *_Aos Senhores Luís Quintais e Manuel Pais* No Verão passado não estive cá, endoideci. Se fosse fácil de dizer eu dizia, mas não é fácil. Andei a fugir de lugar para lugar, à procura de onde pudesse ficar, a fugir da dor. Mas levava-a comigo, a dor, não disto ou daquilo, mas uma pura dor, absoluta tristeza. A absoluta tristeza, não por isto ou aquilo, mas de estar aqui, de continuar por aqui, de não começar nem acabar, de continuar só, é difícil de dizer, de explicar. Não sei se vale a pena explicar. Num sábado à tarde, lembro-me bem, a minha mulher pensou em chamar uma ambulância e eu também pensei que a única coisa a fazer era chamarem a ambulância e fecharem-me num quarto todo branco e darem-me injecções que me pusessem de imediato a dormir. Eu rebolava-me no chão da sala e punha-me de joelhos apertando com muita força os nós dos dedos até fazer doer e não tinha qualquer controlo pelo que passava por mim, que era terrivelmente assustador, nem que não fosse porque fugia a qualquer controlo. Mas não era só isso, lembro-me bem, era por si, terrivelmente assustador, embora não consiga dizer o que era. E de repente passou. Assim como veio assim passou, como se costuma dizer. De repente fiquei muito quieto sentado num canto do sofá, na sala, a ouvir Bach. Não sei se fiquei assim imediatamente depois de começar a ouvir Bach ou imediatamente antes de começar a ouvir Bach, pouco importa, pois sei que isto tudo tem um mistério, tudo isto, quero dizer, tanto o que passa por nós e nos perturba infinitamente, como o poder da música, no caso a música de Bach, uma partitura de Bach, é como se a estivesse a ouvir outra vez, aqui e agora. A minha mulher nunca me deixou - eu odiava-me demasiado para poder ficar comigo - a não ser quando fui visitar o meu amigo. Mas, nessa altura, não foi ela que me deixou, fui antes eu que a deixei, para estar com o meu amigo a quem desde logo pedi que nunca me deixasse sozinho, foi mesmo a primeira coisa que fiz mal desci do autocarro que me levara do aeroporto à estação de comboios, porque tinha demasiado medo do que ia acontecer, sempre prestes a acontecer e decerto horrível, e nunca acontecia, nunca chegava a acontecer. Estive portanto sempre acompanhado pela minha mulher ou pelo meu amigo e demasiado aflito para poder avaliar do meu egoísmo, que era imenso.

Não foi a primeira vez que isto me aconteceu. Isto, quero dizer, o deixar de estar aqui, o endoidecer, mas devo acrescentar que nunca foi assim, quero dizer, tão mau, tão doloroso, se bem que se saiba que nestas coisas são inúmeros os erros de perspectiva, digamos assim, e que a dor mais antiga é apagada pela dor mais recente por um princípio de misericórdia ou simplesmente de economia, não sei, que a última dor despreza as antigas. Eu não conseguia ler, quanto mais escrever, quanto mais amar. Nem distrair-me com o que quer que fosse, e juntava todas as minhas poucas forças para deixar de pensar no que quer fosse, porque o que quer que eu pensasse era infalivelmente, incorrigivelmente associado à maior dor. Dizia-me: Não sei como vou conseguir chegar até amanhã, amanhã é impossível. Parecia-me irrealizável que os dias avançassem, que os pudesse atravessar, um a um, quanto mais ter um futuro a que viesse a chamar meu. E, no entretanto, o tempo batia. Há coisas que se conseguem explicar, outras não. Explicar, mais valia conseguir dizer. Qualquer coisa - uma fissura na parede, uma folha de papel branco dobrada em quatro – fazia disparar uma sucessão de pensamentos dolorosos que não conseguia controlar. Mais tarde, quando os procurava reaver - para os poder relativizar, compreender na sua lógica – não me lembrava de nenhum. Eles só existiam no preciso momento em que tomavam conta de mim para me assustarem e depois não voltavam mais. Eram cobardes demónios. A meio da noite lá conseguia alguma paz. Logo que soube como, obrigava-me a acordar para poder viver alguns momentos, o que mais parecia um sonho terno e irreal. Levantava-me da cama, vagueava pela casa sem acender luz nenhuma, sentava-me no sofá, olhava em frente, para nada. Mas o sol inoportuno voltava todas as manhãs e com ele a luz que, revelando o contorno das coisas, me aterrorizava. As coisas tinham dentro delas outras coisas que não tinha maneira de saber o que seriam. Se assim não fosse não seriam coisas. Primeiro fomos para o sul, depois fomos para o norte, e depois eu tomei um avião e fui ter com o meu amigo. Repito, eu estava a fugir, se não estivesse a fugir, não procederia do modo como procedi, só que levava comigo aquilo de que fugia, por mais rápido que escapasse. Era um inútil esforço para me distrair, me distrair de mim, pois afinal era eu quem nada podia. Primeiro a minha mulher levou-me para uma estalagem a pouca distancia do mar. Todos os dias :, fazíamos o mesmo. Levava-me a dar um

passeio, a ver o mar. Eu ia a olhar pela janela lateral do carro, como os miúdos, mas sem ver nada do que via. Acompanhava o espaço e o espaço esmagava-me. Não me interessava como estava ocupado, com que cores. Era por demais desolador o haver espaço, tão infinitamente reduzido e extenso para me poder prender ao que nele ocorria. No restaurante engolia uma sopa de peixe e não dizia palavra. Confundia-me com a pessoa que nos servi; punha-me a imaginar as vidas de quem não sabia, igualmente impossíveis. Era arrasante tudo aquilo. Na volta deambulava pelo parque mas sem nunca me afastar, com medo de me perder, de me encontrar, com medo de nunca mais ver a minha mulher que me esperava no quarto, pacientemente. A estalagem ficava no meio de um parque, vejo-o agora, magnífico com um lago e árvores esguias e belas. Mas naquela altura a beleza era um rasgão na minha cara, um rasgão por onde sangrava. Não havia corda, fio telefónico, arame que não me conduzisse directamente a corpos pendurados baloiçando no ar, o meu ou o de outras pessoas que eu sabia terem-se matado assim ou imaginava terem-se matado assim e há tantas. Não sei porquê, sempre o enforcamento, sobretudo o enforcamento, porque sabia e sei perfeitamente também existirem outras maneiras de alguém se matar que me ocupavam a cabeça durante horas paradas. Recordei, um a um, todos os casos que conheci de pessoas muito próximas, desde os meus amigos e familiares, até simples conhecidos, até pessoas de quem tinha ouvido falar e outras sobre as quais tinha lido. Recordei, como se fosse imperioso não me esquecer de nenhuma, imperdoável, todas essas mortes apressadas. E voltava ao começo mal acabava, obsessivamente, como se mais nada houvesse com que me ocupar, mais nada que me prendesse a esta vida, nada de mais revelador que pudesse acontecer a um humano. Eu não vou recordar agora essas mortes porque são muitas, demasiadas, e me parece uma impiedade escrevê-las se já não penso nelas senão muito por acaso e logo as afasto, porque já não estou doente, como de certo estava, porque se o não estivesse nada era como foi e nada é como é. Depois fomos para o norte. Ficámos hospedados numa velha casa inglesa transformada em hotel, perto da qual passava uma linha de comboios. Regularmente, uma regularidade em progressão geométrica, ouvia o barulho das rodas de aço sobre carris de aço e o antecipado apitar de um deles. Eu não estava melhor. Ao fazer a barba cortava-me em vários

sítios. O espelho não reflectia a minha cara. Era a cara de um outro a que via e me desconcertava. Parecida com a minha, mas não o suficiente para ser a minha. Era uma cara que me olhava, indagadora. Uma cara que eu desprezava, sem passado nem futuro, sem história. Passei semanas sem sequer me entrever. E ao pequeno-almoço olhava para os hóspedes para me certificar se seriam humanos. Tinha dificuldade em reconhecer neles a humanidade, em fixar um critério. Vi animais estranhos vestidos com roupas emprestadas. As crianças ainda assim eram as que pareciam mais naturais, mais perto da selvajaria. A minha mulher, à minha frente, olhava-me com um ar preocupado e tentava começar uma conversa que eu despedia com uma frase. Nada me interessava do que se pudesse dizer. Eu amava a minha mulher, naquele silêncio desesperado. Quando a minha mulher me propôs revisitar a terra da minha infância, na esperança que a material presença do passado me trouxesse algum ânimo ou sossego, foi um desastre. Os emigrantes tinham pacificamente destruído todos os vestígios da sua antiga miséria. Os muros de granito substituídos por cimento, as casas, com janelas de alumínio importado, armadas com parabólicas, as aveleiras arrancadas. Os camponeses sobreviventes viviam de subsídios, dinheiro que vinha da Europa para onde em seguida voltava. Como se não bastasse, a corrupção turística ameaçava alastrar do litoral. Pensei que já não havia pátria, que já não tinha qualquer refúgio onde regressar. A comoção sobrepunha-se à raiva. Jurei não voltar. A certa altura, não sei bem como, convenci--me que tinha de suportar o mundo sozinho, enfrentá-lo, perder o medo. Decidi ir ter com o meu amigo ao norte da Europa. Nas vésperas da partida julguei não aguentar, lutava contra mim, o odiado inimigo, e perdia. Passei dias e noites naquilo, naquela luta em que éramos magoados. Quando chegou a hora de embarcar, surpreendeu-me o não começar a gritar, o ainda não ter começado a gritar. Quando cheguei lá o meu amigo esperava-me. Eu não conseguia dizer uma palavra, olhava só, fixamente, para os olhos dele, gritando em silêncio por socorro. Disse-me mais tarde que nunca me tinha visto assim, que trazia na cara a aflição, não de ter perdido isto ou aquilo, mas de não saber mais o que me ligava ao mundo. Quis regressar, apanhar o primeiro avião, mas era inviável. Aguentei a primeira noite e depois o primeiro dia. Depois foi menos difícil. Inventámos uma rotina que me protegia. Vinha buscar-me às oito ao quarto. Eu já estava acordado, os olhos agarrados ao tecto, ensopado em água. Tomava um duche frio, vestia-me,

saíamos para comprar pão fresco, voltávamos e sentávamo-nos frente a frente com grandes malgas de café na pequena mesa da cozinha. Todos os dias fazia-me uma exposição sobre um tema diferente para me prender: Píndaro, Husserl, gramática latina. Eu seguia encantado como podia, as minhas faculdades de concentração e absorção descaradamente enfraquecidas. Depois saíamos. Almoçávamos filetes de peixe frito com salada. Eram dias quentes de um Verão continental, atingia-se os quarenta. Passávamos as tardes com as pernas numa piscina pública onde, de vez em quando, mergulhávamos para nos refrescarmos. A piscina, enorme, ao ar livre, estava entregue a centenas de pessoas nossas semelhantes, embora em absoluto diferentes. Ao perto ninguém é normal, a normalidade requeria a distancia que me faltava. Era arriscado nadar por ser incerto voltar a encontrar uma zona da borda não ocupada por gente por onde se pudesse sair. Houve momentos em que achei cómica a situação, humor logo destruído por recordações minuciosas de extermínios, de uma Europa morta. Tenho de estar preparado para muito pior, dizia-me, se bem que não pudesse sentir-me pior. De volta parávamos, a meu pedido, num banco de uma igreja despida por dentro, luterana. À noite bebíamos, sentados em bancos corridos, comentando a beleza ao abandono da mulher que nos servia. Bebíamos ainda. Mesmo assim adormecer era um tratado. Ao décimo dia voltei para junto da minha mulher. O meu amigo trouxe-me comigo. Pouco a pouco voltava a mim. Foram dias intermináveis até que se fosse dar a algum sítio. Os lábios gretados, o dorso e os membros ásperos e inertes do sol ou da manhã, não sabia. As noites com corpos frios que me impediam de dormir. As horas ligavam-se umas às outras por comprimidos. Palavras três vezes ao dia com as refeições, que quase sempre esquecia. E, para além da música, o abandono a circular os carros, os desvios, as avenidas. Transportava sempre muito pouca vontade e não podia deixar de prestar atenção aos semáforos, aos outros, às lágrimas. Ao entrar em casa, mais do que acabado, temia não escrever uma frase que pusesse em ordem todo este tempo. Desperdício, dizia, como se não se salvasse um pouco do mundo.

Vinte e sete Nem mesmo as palavras aladas, só os números invisíveis, atravessam intocados os dias. Era uma bela rua, larga e tranquila, de prédios modernos entre os melhores da cidade, que subia em forma de crescente até embater numa fileira de pequenas casas arruinadas. Uma rua lavada regularmente por homens que dominavam potentes jactos de água que brotavam de quilométricas mangueiras, jibóias negras reluzentes, que me fascinavam do alto da janela, o queixo apoiado nas mãos. Foi no nº 27 dessa rua que morei num tempo em que o tempo não tinha fim, era um só e o mesmo, estendendo-se elasticamente tanto quanto fosse preciso para que nele pudesse caber tudo o que a vida traria. Chegou porém o dia em que a humilde fileira de casas, que servia, sem que o pudesse suspeitar de dique contra a enorme pressão de um outro tempo, cedeu e foi destruída e a tranquila rua em que cresci se transformou no que é hoje: uma via rápida de entrada na cidade, onde os largos passeios de outrora servem para arrumar os carros e de onde desapareceu para sempre o cheiro e a cor lilás dos jacarandás. A minha família vinha de um bairro popular e só pôde suportar os custos daquela zona elegante porque o meu pai trabalhava para uma firma estrangeira que pagava, servindo de escritório duas das divisões da casa, metade da renda. Bastava reparar nos habitantes do meu prédio, para verificar que, se bem que diferentes entre si, todos eles pertenciam e se deslocavam em correntes da vida cujas águas nunca se tinham misturado com o curto e insignificante ramal a que pertencia a minha família. Isto mostrava-se das mais diferentes e aparentes maneiras: o modo de andar, a entoação na fala, pequenos gestos, os traços fisionómicos que os faziam pertencer a outras raças, as infinitas regras de etiqueta. Ainda vivo fascinado por esse mundo do qual só restam fragmentos, peças soltas, rastos e do qual, se pude aproximar-me como um espectador ao longo do tempo, graças Li um laborioso trabalho, nunca poderei dar o passo que me transportaria para o seu interior, porque não tem portas nem janelas, mas é redondamente perfeito como uma bola de sabão, e como ela frágil. O prédio em que cresci tinha um porteiro gordo, três andares, direito e esquerdo, e uma sereia com escamas em pedra por cima da porta da entrada. A minha família vivia no terceiro andar direito. A minha família era os meus pais, a minha avó, a minha irmã mais velha e uma longa

sucessão de criadas. Eu não era triste nem alegre, coisa que cedo estranhei que os outros pudessem ser. Chegava a casa ofegante por ter subido a correr com a pasta às costas a íngreme rua, chamava pela minha mãe que ainda não tinha chegado, ia para a cozinha lanchar torradas e leite com chocolate e sentava-me num banco alto diante da criada que passava a ferro os intermináveis lençóis brancos, eu em silêncio a ouvir as histórias que ela me contava com o cheiro do algodão quente de baixo do meu nariz. A última das criadas morreu lá em casa, alagada em sangue na sua cama estreita, termo de um aborto clandestino mal conseguido. Era a Jóia. A partir daquele triste dia a minha mãe decidiu que se tinham acabado as criadas, coisa que na altura julguei sem maior importância, sem poder prever que hoje penso nelas com a nostalgia de uma relação humana que perdi sem ser jamais substituída. Eu gostava muito das minhas criadas. Com elas eu estava à vontade como com mais ninguém, fazendo-me sentir uma maravilhosa liberdade que não encontrei mais em parte alguma. Eu detestava a escola, as férias, os barulhentos miúdos da minha idade, os primos. Elas também gostavam de mim. Eram as minhas irmãs mais velhas que me abriam e anunciavam um mundo feminino e interessante, à espera de ser conquistado. Nunca lhes agradeci, nem saberia como. Depois, era preciso ir fazer os trabalhos de casa, vigiado de perto pela minha mãe, tomar o banho que terminava pela ritual fricção de álcool nas costas para precaver os resfriamentos jantar já de pijama uns rins com arroz de manteiga que a minha avó preparara e que eu adorava e por fim deitar-me na minha cama cujo colchão era duríssimo em previsão dos futuros problemas de costas que, de facto, até hoje não ocorreram. Mas podia acontecer avistar ao longe a senhora que morava no 1.º esquerdo e que era tão linda que a sua beleza me assustava e fugia dela. Nesse caso, conforme a situação no terreno, ou voltava a correr para trás ou mudava de passeio e ficava especado a olhar para uma parede a fazer tempo para ela entrar ou sair de modo a não ter de a cumprimentar, coisa que punha o meu coração a bater loucamente tal a impressão que ela me causava e o medo que eu tinha que essa impressão pudesse causar. A qualquer momento podia escorregar e cair fazendo figura de tolo, ou dizer uma palavra indevida que provocasse uma definitiva e baixa apreciação da sua parte e me reduzisse para sempre à minha verdadeira insignificância. Por vezes já não me era possível recuar, tinha mesmo de a cumprimentar. O seu sorriso constante por debaixo de uns olhos de uma cor que nunca ousei fixar é o mais belo que alguma vez vi. Nunca tomando

o elevador, descia pelas escadas em mármore, que um tapete vermelho em parte cobria, mais etérea e cintilante que qualquer estrela de cinema que eu pudesse admirar a preto e branco na televisão. É verdade que nunca caí, nem nunca disse as palavras despropositadas que temia proferir, mas também nunca aconteceu que a minha prestação tivesse aos meus olhos mais do que a qualificação de sofrível, o que me acabrunhava e deprimia, acordando-me de novo para a minha condenação à condição de visitante que não pagou o bilhete inteiro e é simplesmente tolerado pela gerência. Aliás eu não gostava de encontrar ninguém à porta de casa, nem a entrar nem a sair, o que sempre sucedia por demasiadas vezes. O que eu gostaria era de saltar magicamente aquela barreira e ficar de imediato diante da minha criada que me contava, com algumas variações, uma das minhas histórias preferidas, no interior da qual eu me sentia intocável e poderoso. O porteiro gordo sentado à secretária no hall de entrada não contava. Levantava os olhos, não dizia nada e continuava a ler o jornal, era só eu a passar. Já outro interesse despertei no seu único filho, ligeiramente mais velho do que eu. Num Verão iniciou-me nas práticas reais do sexo - as da imaginação sempre fizeram parte do trabalho da minha consciência - mostrando-me o seu, cor de rosa, por entre a braguilha, enquanto agarrava o meu com os seus delicados dedos, fechados os dois na casa das máquinas do aquecimento central, então desactivada e silenciosa e cujo cheiro metálico ainda por vezes me surpreende, assim como uma súbita falta de ar. Depois esticou dois palmos e nunca mais me ligou e eu, ofendido, nunca mais lhe dirigi a palavra. Nessas idades, como é sabido, os sexos são mais parecidos, e a ausência de ejaculação permite provar temporariamente a infinidade do prazer feminino, coisa que depois nos é irreversivelmente retirada. Havia outro ser da minha idade que habitava no meu prédio, filho do casal do segundo esquerdo, com o qual jogava à bola no pátio traseiro até a bola voar sobre o muro e ir aterrar nos jardins do Palácio de Sol ao Rato, onde havia um homem cuja única ocupação era engraxar sapatos, o que continuo a achar estranho. O rapaz da minha idade era o João Luís. Durante anos passei mais tempo em casa dele do que na minha. Não por brincar com ele, eu já era um solitário, mas porque gostava muito daquela casa onde, pela primeira vez, se me revelou a beleza que não deixei mais, tão desastradamente, de perseguir. Foi o gosto, o requinte da mãe do meu amigo que me levou à antecâmara das artes, onde sempre ansiei penetrar.

Os quadros, as porcelanas, os livros ilustrados, os gigantescos puzzles que reproduziam as grandes obras da Renascença e eram a sua ocupação predilecta, forneciam e criavam uma atmosfera onde a minha alma se sentia confortável, reclinada sobre fofas almofadas, por fim serena. Eu comia à pressa, fazia os trabalhos de casa a correr para, atravessando um simples tecto, assistir a uma cerimónia delicada, complexa, ritualizada por regras infindáveis e não escritas do que em minha casa era simplesmente jantar. Sou assaltado por estes pensamentos hoje que venho buscar o meu filho, depois da escola, a esta casa que foi minha e ele me saudou com uma turra amigável e depois desapareceu para se esconder e eu ir atrás dele à sua procura, e não foi fácil de encontrar porque estava feito estátua no quarto que foi meu e o sol baixava na varanda de tal modo que me encandeava os olhos e acreditei que era eu que estava ali outra vez.

Mar grego Com Jacob, a navegar sobre as águas claras do mar Egeu, sabendo que me esperavas deitada debaixo do guarda sol de óculos escuros e biquíni preto. Com Jacob, filho de Isaac, à procura do vento. Com os meus dedos a deixarem um rasto na água, ansiosos por te agarrarem, os olhos a fitarem o cimo do mastro e a perderem-se no azul do céu onde te voltava a encontrar suspensa no nada, o meu corpo salpicado de sal, o sal que no teu corpo buscaria com a minha boca, mais tarde. As férias, a fuga, os nomes trocados. Ou então a nadar atrás de ti, junto às rochas como num lago, ouvindo o ausente movimento das águas. Ou então a comer com as pontas dos dedos e a beber vinho fresco com as ilhas em frente, imóveis, pairando por cima das águas. Ou então os longos passeios a pé pelos caminhos de pó, por entre as oliveiras que já lá estão desde o começo, contando-te a má sina dos Atreus, as brincadeiras dos deuses. E ao fim do dia, na ponta do molhe, com os pés dentro de água, em silêncio, era como se rezássemos pedindo para ali voltar todas as vezes que o tempo cruel nos separasse, acreditando que tudo se ia resolver, que a felicidade prometida seria cumprida, que era bela e perfeita a vida entre os humanos. Foi ali que inventámos a nossa casa lendo um ao outro poemas de Cavafis, enquanto uma tão doce tristeza, que nos sabia a mel e canela, nos invadia. E de repente a tempestade, as ondas alterosas, o vento sibilante, a chuva caindo sobre as nossas cabeças enquanto fugíamos, rindo, à procura do refúgio do quarto. E de repente o sossego, a paz nos nossos corações atribulados, o alívio de por fim nos termos encontrado.

Agradeço a ajuda do Luís Quintais; agradeço o verso do livro *_A Arma do Rosto* de Paulo José Miranda. :__do mesmo autor nos livros __cotovia A noiva Judia A minha vida Quase gosto da vida que tenho. Não foi fácil habituar-me a mim. Tive de me desfazer das coisas mais preciosas, entre elas de ti Sim, meu amor, tive de escolher um caminho mais fácil. O dinheiro também tem a sua poesia. E tenho tido sorte. Deixei para trás a obrigação de mudar o mundo. Já cometi corrupções. Só ainda sinto dificuldades em mentir, mas também aqui vejo melhoras. Trata-se só de deformar ligeiramente o que vai acontecendo, não de inventar tudo de novo. Tenho mais alguns anos diante de mim e depois quero acabar de repente. Não sei se valeu a pena mas também não me pergunto se valeu a pena. Há muitas coisas assim. Não é desistir, é só não dar demasiada importância a coisas que não a têm. A vida é uma delas. Ganha um valor particular quando deixamos de a encarar como o centro de tudo. E só por acaso que gosta-mos das flores e do mar. E, claro, que é um bom acaso. Mas mais do que isso não. Quase gosto da vida que tenho. Quando a quis toda não gostava de mim. Agora há dias em que aceito que o tempo passe por mim e me leve para onde só ele sabe. Não entendo como nunca houve uma religião que adorasse o tempo. Será possível imaginar algo de mais elementar e poderoso? Que com ele não se possa falar não me parece um defeito. Há coisas que, de qualquer modo, não se pode falar. Vivo sozinho. Passam pessoas, mas nunca ficam por muito tempo. A partir de certa altura intrometem-se tédios por entre as frases e não sabemos continuar. Não insisto. Há muitas pessoas. Não vale ter medo. Há muito que o amor mostrou ser um fracasso. No dia seguinte, no escritório, esperam-me problemas por resolver e decisões que valem dinheiro. Não posso sofrer. Claro que por vezes me sinto triste como toda a gente. Mas é uma tristeza doce, como um descanso. E como não espero nada, não faço nada. De uma maneira ou de outra também acabarei por adormecer esta noite.

Tenho um filho que cresce longe de mim e que ainda não sabe quem sou. Quis que fosse assim e não me arrependo. Não me julgo bom exemplo. Tenho um seguro de vida por morte violenta em seu favor que me poupa uma inquietação e lhe lega uma fortuna. Do resto não sou responsável. A biologia é uma ciência quase exacta e a natureza tem a inteligência das pedras. Estudei durante muitos anos sem qualquer interesse prático. Os livros pareciam-me mais interessantes do que qualquer viagem. Escolhia-os ao acaso. Mas o que se fica a saber não nos torna mais lúcidos. Agora quase preferia não os ter lido. O saber transforma as coisas em nada, ou, pelo menos, arruma-as numa gaveta escura e triste da memória que é sempre uma deusa nostálgica. Durante algum tempo tentei distrair-me. Cometi crimes contra a moral. Abusei do meu corpo sem qualquer respeito. Não fui feliz nem fiquei satisfeito. As raparigas de que gostei não queriam de mim o que eu queria delas e há mal-entendidos que não convém alimentar. Foi assim que fiquei sozinho. A sério que tentei. Talvez da maneira errada. Agora, mesmo que quisesse recomeçar não tinha tempo. O tempo não mostra qualquer compaixão. E houve alegrias que bastassem. É justo assim. Quase gosto da vida que tenho. Sou conhecido nalguns restaurantes, o que não significa que me sirvam melhor, mas é sempre bom ser reconhecido. Raramente saio à noite, mas quando o faço acabo sempre por encontrar alguém que ainda se lembra de mim e quando volto a casa tenho comprimidos que fazem dormir. Por vezes durmo com uma rapariga e faço o que se deve fazer e o prazer vem e passa como um alívio. Não espero encontrar ninguém, a minha melancolia é-me suficientemente querida. Não tenho saudades de pessoas, só de sítios e de coisas. Em particular há um frigorífico que guardo zelosamente na memória. Ainda subsiste algures porque a matéria é a única coisa que resiste. De que gosto? De literatura, whisky escocês e de adormecer logo. O trabalho é um rentável entretém que me ocupa as horas mortas. Vejo os filmes em casa, de todas as séries. Incomodam-me os barulhos das pessoas sentadas ao meu lado e gosto de rever as cenas mais macabras. Por isso vivo sozinho. Quando preciso, conheço um massagista que é negro e silencioso como a noite. E de inverno nado. A minha mulher a dias vem todos os dias quer esteja ou não constipado. Se fosse mais bonita e menos surda casava com ela sem qualquer preconceito. Já julguei ser um génio. Agora acho-me um mero mortal desencontrado. Vivo, é já o bastante. Não vou a nenhum lado,

mas isso já tu sabias. Sim, meu amor, é esta a vida que levo. E raramente penso em ti como agora. Não te arrependas de nada. Por hoje já bebi o bastante. À tua saúde.

Vida de Adulto Apagar Escrevia uma página. Relia-a e cortava logo alguns parágrafos. Voltava a lê-la e tirava algumas frases. Depois ia às palavras. Reparava na inutilidade de muitas e extraía-as. O que se encontra após uma vírgula também podia desaparecer. Um ponto e vírgula geralmente indicia a ineficácia das frases que une, e eram retiradas. Continuava assim durante algum tempo. Se não fosse a sua mulher roubar-lhe a página, restaria uma palavra ou talvez nada. Ele precisava tanto de escrever como de apagar o que escrevia.

Boa noite O que sei é que ela chegou num avião, mostrou um passaporte com uma fotografia ainda de menina, esperou pelas bagagens, entrou num táxi e mostrou ao motorista um papel onde estava escrito uma morada. Tinha talvez vinte anos, talvez mais, nunca sei Mas lembro-me de ela me dizer que quando chegou se tinha sentido muito assustada, muito perdida. Isto apesar de ela não ser de lugar nenhum, porque tinha nascida num país, crescido noutro e depois estudado noutro e depois partido para outro e para mais a sua família era pequena, espalhada e dispersa pelo tempo e pelos sentimentos. Era judia, mas isso pode não querer dizer nada, a não ser nos pesadelos que continuam de coisas que se ouviram aos mais velhos e não se esquecem nunca e continuam sempre a meter muito medo. Mas para mim isso era muito, quase, reconheço-o só agora, demasiado importante. É saber de onde se vem, ter uma história e um destino, é não estar perdido e sozinho num mundo que não é de ninguém. É ser um que está de passagem de deus para deus, era o que era.

Historias Verdadeiras O Avô e o Menino O menino que vai fazer cinco anos em maio e tem o cabelo curto e encaracolado vai de mão dada com o avô pelas ruas da cidade e têm os dois de ter cuidado porque os carros passam por cima dos passeios e quase não há jardins na cidade. Não se queixam. Têm um ar sério, olham em frente e seguem. Sabem o que estão a fazer. Os pais estão separados e têm a vida deles. Acontece o mesmo com tanta gente. Mais vale assim do que andarem à bulha, é o que se costuma dizer. Vivem em casas diferentes, cada um na sua, com pessoas diferentes. O menino anda de casa em casa, passa o tempo a ir de um sítio para o outro conforme o tempo que têm para ele, que não é muito e não é culpa de ninguém porque todos têm de trabalhar nesta vida e a vida está difícil para toda a gente. O menino ainda não sabe de nada. O avô tem mais tempo. Está reformado. Repete com orgulho que ser avô é ser pai duas vezes e os pais sorriem porque acham graça. O avô e o menino não tem pressa de chegar a nenhum lado. Têm a mesma idade ao contrário. Brincam um com o outro como amigos verdadeiros. O menino pergunta: «_E para que serve?», e o avô sabe: _é para cortar a relva». O menino pede: «_Conta esta história» e o avô protesta: «_Outra vez o Batman.» O avô volta a ser pequenino e todos os dias o menino cresce. Os tempos são outros. Os pais preocupam-se. Toda a gente se preocupa, cada qual com a sua coisa. Ninguém pode fazer nada. Só o menino adorado, o menino abandonado, pode fazer tudo que o avô não diz nada. «_Avô, posso andar descalço?» E o avô tira-lhe os sapatos. Encontram-se depois da escola cheios de saudades. O avô não lancha. O menino vê um vídeo e depois a mãe vem buscá-lo. Aos sábados o pai vem buscá-lo. Aos domingos a mãe vem buscá-lo. Dorme numa caminha no quarto dele e acorda de noite com sonhos maus. O médico disse para tomar qualquer coisa para dormir descansado, o avô pensa que o médico é maluco e cala-se. Os pais não sabem o que fazer, talvez um psicólogo saiba. O menino pergunta porque não dormem todos no mesmo quarto e o pai diz que têm de ir ver outra vez os golfinhos ao jardim zoológico. O avô e o menino vão de mão dada pelo meio da cidade e riem de tudo e não dizem nada.

Viver todos os dias cansa Oração Meu deus, livra-me de mim. Pai, continua a ser o nosso pai. Faz com que a nossa vida seja o sinal de outra vida. Ajuda-nos a aceitar, na incerteza destes dias que parecendo ser tudo nada são, o que chega e o que vai. Não nos deixes desesperar mais do que o necessário para continuarmos despertos e para que depois possamos descansar na tua paz. Continua a mostrar-te sem nunca te vermos porque não somos dignos da tua presença e enorme é a nossa aflição. Fizeste-nos à tua imagem e sem ti enlouquecemos. Quiseste que só te encontrássemos com a alma e perdemo-nos com os olhos da distracção. Acompanha o meu filho e os filhos de todos os outros, por mais que se percam que te possam de novo encontrar. Perdoa-nos as palavras injustas, a insensatez dos nossos actos, a grande ignorância que se esconde na nossa vaidade. Ajuda-nos a ser fiéis ao que prometemos, assusta-nos quando levianamente trocamos o que importa pelo que não tem importância, castiga-nos quando julgamos que sozinhos conseguimos fazer o que quer que seja. Somos feitos de ossos, pele e carne. E de uma parte divina que quer voltar a ti, nosso pai

Muito, meu amor A porta está aberta. Empurra-a. Entra devagar. Agora, se prestares atenção, podes ver tudo o que se passa dentro do quarto. Tem cuidado, não faças barulho, tenta não respirar. Ela está deitada sobre a cama com o roupão de turco branco entreaberto. Ele está de joelhos a beijá-la entre as pernas. A luz é pouca mas suficiente. Ficaria bem numa cena de um filme, a preto e branco. Agora podes aproximar-te. Não batas no candeeiro de pé que apesar de apagado está à tua direita. Agora sim, podes fixar a cara dela. O que vês? O prazer. O prazer é coisa que se veja? Podia ser dor. Ouve agora o que dizem os amantes quando se agarram. Gritam. Não se entende. Ele beija-a todo o tempo. Uma nuvem de sangue tinge lentamente o roupão de turco branco. Tu olhas, nada mais. Agora já te podes retirar. Podemos começar por qualquer lado que tanto faz. Havemos de chegar lá. Não me perguntes onde. Quando chegarmos saberás. Agora é cedo para perguntar. Ouve só.

Nos teus braços morreríamos Os amantes sabem por que morrem Acordo com um ferro no coração. Qualquer movimento pode reabrir a ferida. O melhor é ficar quieto, aproveitar estes minutos, sentado na varanda com vidros que me isolam do mundo a olhar o areal imenso e o mar branco lá ao fundo. Nada mexe e eu não me mexo. Se houvesse um sentido era este. Tenho o livro de Propércio fechado sobre os joelhos e penso nele como num parente próximo e querido que me deixou como herança esta melancolia como um vinho. Daqui a pouco hão-de vir fazer o quarto e desfazer a frágil teia em que me sustenho. Tomarei um banho rápido, farei a barba e sairei para a rua. Para me entreter a imaginação há aquela rapariga da loja de fotografia onde compro os rolos que desperdiço com minúcias e que se chama Elvira. Tem os olhos grandes e o umbigo à mostra que apetece lamber como uma cria. Estou disposto a pagar-lhe o que for preciso que o dinheiro bem pode servir para isso. A partir dos quarenta, alguém me disse, já nada é natural, nem a dor nem o prazer. Almoço pouco. O tempo pára e depois arranca. Vou até ao fim do molhe para poder voltar para trás e odeio os homens que ensinam os filhos a pescar à linha. Fecho-me no quarto com a certeza de que isto, como o resto, há-de passar. Isto é a dor do ferro, o cansaço que me enevoa os olhos, a falta que em tudo habita, irreversível. Nem à minha sombra venceria, quanto mais a qualquer um adaptado a esta vida. Já não acho bela esta paisagem. O sol neste curso previsível entedia francamente. Pensar na quantidade de água à minha frente traz--me náusea. O aquário onde me protejo mais dia menos dia vai quebrar e é como se fosse agora. Por fim toca o telefone. É a tua voz a dizer que de mim não me livras.