pedro demo. introdução à metodologia da ciência

62
METODOLOGIA CIENTIFICA METODOLOGIA CIENTIFICA EM CU!NCIAS SOCIAlS Padro Demo Trata essencialmente do pr ocesso metodol6gico - etimologlcamente, do e st ud o d os c amin ho s e d os i ns tr umen to s usados para se fazer ciencla. C om o d is ci pl in a, a met od ol og ia d a p es qu is a e mar ca da me nt e i ns tr umen ta l, s en do c ol oc ada a servtco d a p es qu is a e do processo d e f or ma ca o c le nt lf lc a. Abor- dando-a dessa forma, 0 a ut or a ce nt ua qu e a met od ol ogi a cl en tf flc a n Ao e s- t ud a t eor ia s, m as 0 mod o d e su a ar rn ac ao e co nst ru ca o. Dlv ·id ld o em du as partes, a prlmeira culda do debito social da ciancla, onde se ressalta a perspectlva da sociologia do conhecimento na demarcacao clentfflca, na v ig Ei nc la d o a rg umen to d e a ut or id ad e, n a b us ca d a r el at iv iz ac ;a o d a c lA nc ia . na ldela d a a nt imet od ol og ia c omo c on tr ab al an co a preoc upac ao exagerada e mor ali st a d o me to do loq o e na dl sc us sao em t or no d a n eu tr al ld ad e. A 8e- g un da p ar te d est aca a lg umas a bor da gen s d a p esq uls a at ua l n as CI An cia s Socials, como 0 emplrismo, 0 p os lt iv is mo , a dtaletlca, 0 s lst em lsm o e 0 estruturallsmo. METODOLOGIACIENTfFICA Eva Ma ri a L ak ato s a M ar in a de Andrada Mar coni E st e t ex to a pr es en ta -s e c omo u ma l nt ro du ca o g er al 8 metodologla clentifica. Co mp le ta -se co m o ut ro , da s m esm as a ut or as , s obr e tecntcas de pesqulsa. Seu prop6sito fundamental e e vi de nc la r q ue h a d lf er en ca s e ss en ci al s e nt re o c on he ci me nto c ie nt if ic o e 0 senso cornum, vulgar ou popular - diferen- c as q ue r esu lt am mu ito mai s d o c on te xt e me to dol 6gi co d e qu e e mer ge m do q ue pr op ri ament e d o c ont eu do , M ost ra ndo t odo 0 encadeamento do conhe- cl me nt o c ienti flc o, f oca li za o s met od os c ie nt if ico s q uan to a o se u d ese nv ol - v im ent o hi st 6r ico e a sua caracterizacao: osfatos, as leis e as teor[as; as h lp 6t es es e as va rt ave ls : o s r net od os de ve rif ica ca o d e hl p6t ase s. TtCNICAS DE PESQUISA M..... de A nd ra de Ma rc on i a Eva Marla Lakatos E st e t ext o e xam in a a s va rla s etapas de um projeto d e p esq uis a: s ele ci io do t 6p lc o o u p ro bl ema p ar a l nv es tl qa ca o, d ef in ic ao e d lf er en cl ac ao d o' p ro bl ema, levantamento de hip6teses de trabalho, c ol eta, slstemetlzacao e c lass lfic ac ao dos dados, analise e lnterpretacao dos dados e relat6rio do resultado da pesqulsa. Fol escrito como texto baslco, a nivel dldatlco, par a cursos In- t ro du t6 rl os , mas t ra z p ro ce dl me nt os f un da me nt ai s d e i nt er es se p ar a p es qu l- sador es, tanto do meio acader nlco como profissionals. Examina ainda as d if er en te s t ec ni ca s d e p es qu is a, a e la bo ra ea o ·d e dados e sua interpret8QIlo e, por f lm , as formas d e ap re se nt ac ao de , t ra ba lh os cl en ti fl co s: a rt lg os, r e- l at 6r io s d e p es qu is a, mon og ra fl as , d te se rt ac ee s e t es es . publicac;oes .atlas PEDRO DEMO INTRODucAc A METODOLCGIA DA CIENCIA

Upload: ricardo-silva

Post on 08-Jul-2015

5.208 views

Category:

Documents


7 download

TRANSCRIPT

Page 1: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 1/62

 

METODOLOG IA

CIENTIF ICA

METODOLOGIA CIENTIFICA EM CU!NCIAS SOCIAlS

Padro Demo

Trata essencialmente do processo metodol6gico - etimologlcamente, doestudo dos caminhos e dos instrumentos usados para se fazer ciencla. Comodiscipl ina, a metodologia da pesquisa e marcadamente instrumental, sendocolocada a servtco da pesquisa e do processo de formacao clentlf lca. Abor-dando-a dessa forma, 0 autor acentua que a metodologia clentf flca nAo es-tuda teor ias, mas 0 modo de sua ar rnacao e const rucao. Dlv ·id ldo em duaspartes, a prlmeira culda do debito social da ciancla, onde se ressalta aperspectlva da sociologia do conhecimento na demarcacao clentfflca, navigEincla do argumento de autor idade, na busca da relat iv izac;ao da clAncia.na ldela da antimetodologia como contrabalanco a preocupacao exagerada emorali sta do metodoloqo e na dlscussao em torno da neutral ldade. A 8e-

gunda par te destaca algumas abordagens da pesqulsa atual nas CIAnciasSocials, como 0 emplrismo, 0 poslt iv ismo, a dtaletlca, 0 s lstemlsmo e 0

estruturallsmo.

METODOLOGIA CIENTfFICAEva Maria Lakatos a Mar ina de Andrada Marconi

Este texto apresenta-se como uma lntroducao geral 8 metodologla clentifica.Completa-se com outro, das mesmas autoras , sobre tecntcas de pesqulsa.Seu prop6sito fundamental e evidenclar que ha dlferencas essencials entreo conhecimento c ient if ico e 0 senso cornum, vulgar ou popular - diferen-cas que resultam muito mais do contexte metodol6gico de que emergem doque propriamente do conteudo, Most rando todo 0 encadeamento do conhe-clmento c ienti flco, focali za os metodos c ient if icos quanto ao seu desenvol -v imento hist6r ico e a sua caracterizacao: osfatos, as leis e as teor[as; ashlp6teses e as vartavels : os rnetodos de verif icacao de hlp6tases.

TtCNICAS DE PESQUISAM..... de Andrade Marconi a Eva Marla Lakatos

Este texto examina as varlas etapas de um projeto de pesquisa: seleci io do

t6plco ou problema para lnvestlqacao, definicao e dlferenclacao do' problema,levantamento de hip6teses de trabalho, coleta, slstemetlzacao e classlficacao

dos dados, analise e lnterpretacao dos dados e relat6rio do resultado dapesqulsa. Fol escrito como texto baslco, a nivel dldatlco, par a cursos In-trodut6rlos, mas traz procedlmentos fundamentais de interesse para pesqul-sador es, tanto do meio acadernlco como profissionals. Examina ainda asdiferentes tecnicas de pesquisa, a elaboraeao ·d e dados e sua interpret8QIloe, por f lm, as formas de apresentacao de, t rabalhos clenti fl cos: art lgos, re-lat6r ios de pesquisa, monograflas, dtesertacees e teses.

publicac;oes .atlas

PEDRO DEMO

INTRODucAc A•

METODOLCGIA•

DA CIENCIA

Page 2: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 2/62

 

INTRODU<;AO A METODOLOGIADACI£NCIA

Pedro Demo

Est e te xt o parte da i de ia de que a s c ianc ias

socia is poslUem especif ic idades qua pracisam

da uma metodologia prOpria para lUes pe.

quisa . e anMisa. Tais especif ic idadas advim da

ra alida de que tra tam, ou saja , uma re ali da de

intrinsecamente ideolbgica, histbrica e polltica.

Esta marca ni o inpossibilita , porlm, 0 usodos mllt odos t fpic os da s cia ncla s naturais.Delas a s c ianc ia s soc ia is t im mui to que apren-

der. Mas nio podam desc.. acter iz . .-sa, por-

quanto, raduzindo a raelidade socia linatural,nio saaxpiica, apenas sadetu rpa.

o taxto allUme qua a metodologia prOpria

das ci ancia s soc iai l sa ja a dia illtic a, porque e

mais capaz da aprande r a s par ticu la ridade l dare alida de soc ial, ta is como: hlstoric idada ,proc:ellUaiidade, ideologia, consciincia histbri-

c a, dimenl6e s qual itat ivas e ident idadel de

contr llrloL Nam por illOsa esconde 0 fato b6si-

co de que nio pode axistir uma 'mica die-lit ica. Pelo contr llrio, sio muitas; e he ateme_"o contraditbriaL

No relacionamento com 0 obje to adota aOptica do "objeto constru(do", porque estabe-

Ieee um contato dinimicoefecundoentreop ..quisador e a rea lidade p8lqu isada. Nio sa f ixaam. campos axdul ivos de p8lqu ise, p rinc ipal -mente da palquisa emp(r ica clhsica . Reconhe-ee, pa lo menos , qua tro g8neros de p8lquisa : a

tabrica , a matodolbgica, a emp(r ica a a prirtica.

Todo. " 0 importantel na descoberta de raeli-dade.

o taxto mostra ainda que a constru~io cien-

t (f ·ica e tamblm um fenameno soc ia l, eo lado

de ser car tamente uma axpreuio apistamolbgi-c a. Evidenc ia tamblm que a ideologla e pa rte

integrante da ciincia . Nio coloca a pOllibilide-

de de a eli ni nar, mes sin a de c ontrolar. At re -

ve s de se u c ontrole, e vi .,e l c hegar a ums pro-du~io cient(f ica, na qual a parte cient(f ica pre-

domine sobre a p . . te ideolbglca. Neste sentido,

as postural que sa aferram a objetividade, aillmde deturp . . 0 objeto das ciincial.SOCiail, esc..

moteiam outras ideologia•.

Sob outro ingulo, 0 taxto revela que a prirti-

ca e componente metodolbglco da palquisa s0-

c ia l. Ent re taor ia e prl lt ic a coloca-se um re la -

(Continua no orelha po.terlor)

Page 3: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 3/62

 

INTRODUCAO A METODOLOGIA

DA CIENCIA

Page 4: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 4/62

PEDRO DEMO

I N T R O D u c A o A

M E T O D O L O G I AAt.

D A C I E N C IA

WEDITORA ATLAS S.A.

Rua Conselheiro Nebias, 1384 - (Campos EI I sios)

Caixa Postal 7186 - Tel.: (011) 221-9144 (PABX)

01203 sao Paulo (SP)SAO PAULO

EDITORA ATLAS S.A. - 1985

 

Page 5: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 5/62

(c) 1985 by EDITORA ATLAS SA

Rua Conselheiro Nebias, 1384 (Campos Elfsios)

Caixa Posta l 7186 - Tel. : (011) 221-9144 (PABX)

01203 Sao Paulo (SP)

1.ed. 1983; 2. ed . 1985

Impresso no Brasil/Printed in Brazil

Deposito Legal na Biblioteca Nacional, con forme Decreto n~ 1.825, de 20 de

dezembro de 1907.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS - E proibida a reproducao total ou

parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio, salvo com autorizacac, por

escrito, do Editor.

Diagramac;:ao

Pavel GerencerPara:

F. Walter Warnke e F. IIdefonso. mestres e sablos, a quem devo em grande parte

minhas pretensoes cientfficas.Capa

Paulo Ferreira Leite

CIP-Brasil. Cataloga~io-na-Public~

Camara Brasileira do Livro, SP

83-0317 CDD-501.8

Demo, Pedro, 1941-

D45i lntroducso it metodologia da ciencia / Pedro Demo. --

2. ed. 2. ed. -- Sao Paulo: Atlas, 1985.

1. Ciencia - Metodologia I.TItulo.

Indices para catalogo sistematico:

1. Metodologia: Ciencia 501.8

2. lVIetodologiacientlfica 501.8

 

Page 6: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 6/62

S U M A R I O

Preficio,

1. I NTRODUCAO AO ENSINO DA METODOLOGIA DA CIENCIA, 13

1.1. Conslderacoes introdut6rias, 131.2. Par ti cu lar idades das c iencias humanas e social s, 151.3. 0 que e metodologia?, 19

1.4. 0 que e pesquisa? 22

2. A CONSTRUCAO CIENTrFICA, 29

2. 1. Observacoes iniel ai s, 29

2.2. Demarcacao cien ti fi ca , 30

2.3. Os limites da demarcacao cientifica, 422.4. 0 objeto eonstruido, 452.5. Os passos do t rabalho cien ti fl co , 48

3. ALGUNS PRESSUPOSTOS METODOL()GICOS, 52

3.1. Os pr incipios da construcao da cieneia, 523.2. Regular idade da realldade, 53

3.3. Condieionamentos socials, 57

3.4. Estrutura e hist6ria, 60

3.5. Cieneia da rea lidade, 62

4. CIENCIA E IDEOLOGIA, 66

4.1. A ideolog ia e a neutral idade, 66

4.2. 0 que e ideologia, 67

4.3. Objeti vidade e neutr ali dade, 71

4.4. A eieneia e uma utopi a, 75

5. TEORIA E PRATICA. 77

5.1. Observacdes infefafs, 77

5.2. A lrnportancla da pratlca, 77

5.3. A posicao social do eientista, 82

6. ELEMENTOS DA METODOLOGIA DIAL£TJCA; 85

6.1. Observacoes i nt rodut6r fas, 859

 

Page 7: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 7/62

6.2. Pressupostos inieiais 866.3. Dialetiea e estrutura '906.4. Dialetiea marxista, 9 36.5. Cieneias socla is e dlaletlca, 98

7. OUTRAS METODOLOGIAS IMPORTANTES, 101

7.1. Notas inieiais, 101

7.2. Empir ismo e posit ivismo, 102

7.3. Estruturalismo, 1067.4. Sistemismo, 109

P r e f a c i o

8. ALGUNS EXERCrCIOSMETODOLOGICOS, 113

8 ." Algumas l inhas, 1148.2. Algumas exemplifieacoes, 116

Este trabalho e uma apresentacao slrnpllflcada de Metod%giaCientifica em Ciencies Socleis,' Pensou-se numa slmpliflcacao, porqueo trabalho de 1980foi elaborado com certa abranqencia e profundidade,nem sempre acessfveis a iniciantes.

A finalidade aqui perseguida e de servir como lntroducao a meto-dologia cientffica, na area de clenclas sociais e humanas. Adotamos a6tica preferencial da sociologia do conhecimento, sem que distodecorra qualquer lntencao de secundarizar os componentes baslcos dateoria do conhecimento, como vistos na epistemologia. Por isso mesmo,nao supomos que esta 6t ica substi tu i as outras. Ao contrarlo, 0 bornestudo faz-se pela tomada de contato com 0 maior ruirnero de posturaspossfveis, a fim de permitir ao estudante opcoes metodol6gicas.

oultimo capftulo fol produzido como suqestao de exercfcios

metodol6gicos, com vistas a reduzir 0 carater geralmente arldo eteorizante das dlscussees metodol6gicas, bern como a levar a preo-cupacao metodol6gica para esferas pratlcas de apllcacao e de producaocientffica. 0 estudante leva para a vida sobretudo 0 que produziu pelaspr6prias maos, nao tanto 0 que apenas escutou. A ldela foi colaborarpara que se consiga motivar 0 estudante a trabalhar com autonomiae iniciativa.

Defendemos certo t ipo de metodologia que imaginamos crft ico eautocrftico, part indo da ldela de que urn dos fenornenos mais larnen-taveis em clencla e a producao de discfpulos, mais vocacionados a.sequlr urn mestre ou a enquadrar-se dentro de uma escola do que aconstruir com original idade e lntel lqencla novas alternativas clenti -f icas. Sobretudo em clenclas sociais ta l postura e essencial, porquetende, mais que as outras, a curvar-se a dogmatismos ideol6gicos,dentro dos quais 0 tempo e gasto principal mente em projetos falidosde autodefesa. Onde campeia 0 argumento de autoridade, acabamossem autoridade e, sobretudo, sem argumento.

Dentro deste espfrito, este trabalho nao e mais que uma propostade dlscussao que se faz com a expectativa de contribuir para a for-mac;aode posturas criativas, originais e produtivas dentro da clencla.

Brasilia, UnB, Ju/ho de 1982.

f. rambem editado pels Atlas. f.' edit;iio em 1980.

1011

 

Page 8: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 8/62

1

I N T R O D U c A o A O E N S I N O D A

M E lO D O L O G IA D A C lf N C IA

1 .1 . C O N S ID E R AC O E S IN T RO DU TOR IA S

Nao nos referimos aqui as clenclas ditas exatas e naturais. 0 que

se julga val ldo para estas tambern e valido, pelo menos em parte, para

as outras, ditas clenclas humanas e sociais. Todavia, .constituem urn

espaco tarnbern proprio de construcao cientifica.'Tudo isto e polernlco e ai ja comecarn dlverqenclas, que e prefe-

rivel enfrentar, a camuflar. Talvez prevaleca, na pratlca, a crenca de

que deve valer para qualquer objeto cienti fico 0 mesmo metodo, a

saber, 0 metodo tipico das clencias exatas e naturais. No outro extre-

mo, estao os que acham ser 0 fenomeno humano tao sui generis que

necessl ta de metoda proprio, total mente diferente do outro.

Vamos defender aqui uma posicao lntermedlarla. Muito do que se

diz dos objetos naturais vale igualmente para os objetos humanos.

Regras loqlcas do conhecimento, por exemplo, sao as mesmas, como

~ a mesma a rnaternatlca para "gregos e trolanos". No entanto, justi-

fica-se uma metodologia relativamente especifica para as clenclas

humanas, porque 0 fenorneno humano possui componentes irredutiveis

as caracteristicas da realidade exata e natural. Assim, ao lado de coisascomuns, que permitem ampla perrneabll lzacao entre ambas as esferas,

ha coisas proprlas e, no fundo, tipicas. Podem estas coisas ser tambern

aplicadas a esfera contrarla. desde que com a consclencta de ser

adaptacao proveitosa, nao substltulcao ou lmltacao pura e simples.'

As clencieshumanas nao sao unltarlas. 0 grupo interno mais deli-

neado e 0 chamado ciencies sociais, que tern como trace mais proprio

a visao metodoloqlca de que seu objeto e social mente condicionado,

1. P.Demo.Metod%gia Cientifica em Ciencias Sociais (Atlas. 1980);J. Plaget. A Situat;ilo das Cienciasdo Homem no Sistema das Ciiincias (Llvrarla Bertrand. 1970). P. Lazarsteld. A Socl%gla (Llvrarla

Bertrand, 1970).2. H. Marcuse, "Zum Problem der Dlalektlk", In: Die Gesel/schalt, 7. v, I. 1930.

13

 

Page 9: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 9/62

ou seja, torna-se incompreenslvel fora do contexte da lnter-relacaosocial . Algumas clenclas sociais dizem-se aplicadas, porque se voltam

mais para a apllcacao pratlca de teorias sociais, tais como: direito,

admtntstracao. contabilidade, servlco social etc. As clenclas sociaismais classlcas. entretanto, sao aquelas geralmente com maior densl-

dade teorlca: sociologia, economia, psicologia, educacao, antropologia,

etnologia, e tarnbern histor la.

Urn grupo importante, embora menos del ineado, e aquele formado

pela dita comunlceciio e expressiio, incluindo as letras sobretudo.

Com 0 desdobramento da lingiHstica moderna, esta parte foi intensa-

mente submetida a tratamento imitativo das clenclas naturais, em

muitos casos com grandes avanc;:os. Outro grupo sao as artes, aindamais disperso, onde encontramos 0 estudo de todas as manl festacoesaitfsticas Imaqlnavels. como a musica, 0 teatro, as artes plastlcas etc.

Pertence ao quadro das clenclas humanas tambern a filosofia,tratada hoje de maneiras muito contradltorias na universidade. Em

alguns lugares e somente tolerada ou usada como propedeutlca geral,nao passando de erudlcao particular ou lnlclacao reflexiva. Em outros,

pode aparecer como esfera propria, sobretudo como teoria do conhe-

cimento.

Ademais, existem outras esferas mais vagas ou no limite, taiscomo: jornalismo, arquitetura, planejamento urbano, geografia etc.

Para nao nos perdermos excessivamente neste matagal, nossas

conslderacoes orientam-se fundamentalmente pela otlca .das ditas

clsncias sociais, sem que devam, com isto, ser elevadas a modelo para

as clenclas humanas. Sao apenas a referencla pr lnclpal. '

Algumas esferas admitem a permeabilidade das clenctas sociais

em maior ou menor grau. Por exemplo, ha quem entenda arquitetura

menos como dlscussao estetlca da ocupacao do espac;:o urbano do

que sobretudo como dlstr lbulcao social dele, entrando profundamente

na sociologia e na economia. Parte da medicina, por vezes chamada de

medicina publica ou social, leva em conta seriamente as questoes

sociais de seu acesso, bern como os condicionamentos pslccloqlcos

dos doentes. A geografia tende a adjetivar-se como econornlca ousocial, porque geralmente rei uta em ser somente uma descritiva

espacial.

Por outro lado, ha 0 contrarlo. Clenclas humanas ha que admitem

maior ou menor perrneabillzacao das clenclas exatas e naturais.

Por exemplo, a economia fez grande esforc;:o de absorcao das tecnlcas

de rnensuracao ~stat rstica e desenvolveu a econometr ia. A IingOfstica

absorveu parte lrnportante do tratamento dado a sistemas complexos

capazes de manejo computacional. A psicologia e tida em muttoe meioscomo pertencente as clenclas da saude, junto com medicina.

Mas, que terlarn, as clsncias sociais de diferente das outrasclenclas, exatas e naturais?

1.2. PARTICULARIDADES DAS CIENCIAS HUMANAS E SOCIAlS

De partida, e preciso entender que esta dtscussao nao conhece

vencedor. Tanto os que defendem nao haver particularidades suficien-tes para justificar rnetodo diferente quanto os que defend em 0 contra-

rio nao possuem argumentos cabais. Quer dizer, se os poritos de

partida sao diversos, os resultados serao igualmente diversos. Nao

temos como provar cabal mente que 0 objeto social e intrinsecamentediferente do natural, porque isto suporia um conhecimento profundo

de tal ordem de am bas as esferas, que e facll demais desconf iar

que nao 0 temos de forma satisfatorla.'

Ern vista disto, e por outras razoes que aduziremos mais tarde,

vamos assumir urn ponto de partida, pelo motivo simples de que nao

partimos sem ponto. E : tao-sornente urna hlpotese de trabalho, que,

embora nao se conseguindo comprovar com rigor, podernos apoiarrelativamente. Neste sentido, varnos buscar algumas l inhas de reflexao

que permitiriam aceitar diferenc;:as irredutfveis entre as esferas olen-

t rficas em questao.

Num prlrnelro momento, podemos aduzir que 0 objeto das clenclas

sociais e hlstorlco, enquanto 0 outro e no maximo cronoloqlco. Ser

hlstorlco significa caracterizar-se pela sltuacao de ..estar", nao de

"ser " , A provisoriedade processual e a marca baslca da hlstorla,slqnlflcando que as coisas nunca ..sao" definitivamente, mas' ..estao"

em passagem, em transtcao. Trata-se do "vlr-a-ser ", do processo ina-

cabado e lnacabavel, que admite sempre aperfeic;:oamentos e supera-

coes, Ao lado de componentes funcionais, que podem transmitir umaface de relativa harmonia e lnstltuclonallzacao, predominam os confli-

tuosos, atraves dos quais as realidades estao em continua fermen-tacao.

Realidades ffsicas sao cronoloqlcas, no sentido de que padecemdesgaste temporal, mas isto nao as acomete de forma intrlnseca, ja

que a identidade se da na estabilidade. Realidades htstortcas tern

sua identidade nao na estabilidade, mas nas formas varlavels de sua

translcao, Sao faslcas. Todas morrem. AI esta uma grande diferenc;:aentre seres vivos e nao vivos, organicos e lnorqanlcos. Realidades

3. M. Thlol lent. Criti~~ Metodol6gica. Investiga~eo Social e Enquete Operaria (Polis. 1980); C. Capalbo.

Metodolog la das C lenc/as SOCia ls _ A fenomenoloala de Alfred Schultz (Antares 1979)' L. Goldmann,

Dlallftlca e Cienc /as Humanas I e 1/ (Presenc;:a,1973); F. Kaufmann. Metodologla 'das Cienclas SocIals(Francisco Alves, 1977); A. V. Pinto, Ciencia e Existencla (Paz e Terra. 1969); S. Bagu, nampo. Rea·fldad SocIal y Conoclmlento (Siglo 21, 1973).

4. H. Albert, Tratado da Razeo Crltlca (Tempo Brasilelro, 1976).

14 15

 

Page 10: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 10/62

hlstorlcas, de modo geral, nascem, crescem, amadurecem, envelhe-

cern e morrem. Nao acontece isto com uma pedra.'

Num segundo momento, podemos aduzir 0 fenorneno particularda consctencte hist6rica. Por mais que a modern a pstcoloqla tenha

descoberto que a consclencla a menos importante que a tnconsclencta,

porque nossas rnotlvacoes comportamentais sao mais decisivas nasegunda lnstancla, isto apenas teve como resultado colocar as coisas,

digamos, em seu devido lugar. Nao se trata, pois, de supervalorizar

o nlvel da consciencla, ou de voltar ao arcalsmo de que a hlstorla afeita por nos, pelas nossas lntencoes e vontades, pelas nossas ideolo-

gias e declsoes, pela nossa subjetividade e assim por diante.

Fazemos htstorla, sem duvlda, mas em condtcoes dadas, quegeralmente sao mais fortes que nossas ldelas. Mas isto nao retira 0

trace profundo de que podemos ter consclencla hlstortca de nossos

condicionamentos. 0 fato de que a hlstorla nao somente acontece,mas em parte pode ser "felta " acontecer, pode ser relativamente

planejada, pode-se intervir nela com maior ou menor exito, mostra

que se trata de realidades muito diversas. As realidades materia is

nao tern consclencla de si mesmas. Por mais que possamos mostrarque a "vontade propria n a menor do que imaginamos, desde que

exista, ja consti tu i uma di ferenc;:a capital.'

Num terceiro momento, podemos aduzir a identidade entre sujeitoe objeto, pelo menos em ultima lnstancla. Quando estudamos a socle-

dade, em ultima lnstancla estudamos a nos mesmos, ou coisas que

nos dizem respeito socialmente. ~ por isto diferente de estudar urn

cristal que colocamos debaixo de urn rnlcroscoplo. Nao existe identi-

dade entre nos e 0 cristal. Mas certamente existem identidades

entre n6s e pessoas consideradas psicologicamente anormais, ouurn grupo humane urbanizado, ou a populacao de baixa renda etc.

Pelo menos posso, a titulo de exerclclo, colocar-me no lugar do

objeto. Ou, dito de outra maneira, nenhum objeto pode ser total mente

estranho e exterior, porquanto a posslvel l rnaqlna- lo como parte nossa,

em outras clrcunstanclas.

Tal identidade nao precisa ser confusao ou excessivo envolvi-

mento. 0 cientista a precisamente treinado a evitar tais excessos.Em todo 0 caso, 0 mlnlmo que se pode dizer a que tal envolvimento

pode ser maior no caso dos objetos sociais.

Num quarto momento, podemos aduzir 0 fate de que realidades

sociais se manifestam de formas mais qualitativas do que quanti ta-

tivas, di ficul tando procedimentos de mantpulacao exata. Por exemplo,

a ldela de democracia a urn fenemeno de contornos vol'tols que nao

sabemos bern q~a~d~ surgiu, qual e 0 seu "tamanho"'hoJe; por vezesa~hamos que dl~mulu, outras que aumentou e ata desapareceu. ~dlferente da molecula da agua, na qual a posslvel indigitar com.malorpreclsao sua constltulcao interna, lnvarlavel no espac;:o e no tempo.

A perceocao da qualidade nao deve ser desculpa para fait. de

rigor na analise, como se nas clenclas sociais valesse a reflexiosolta, confusa e mesmo disparatada. Pelo contrarlo, sera urn desaflO

a mais para apresentarmos construcoes clentlflcas ainda mais culda~dosas. De todos os modos, a rnensuracao nao pode ser crtterto fatatja que, se assim fosse, ficarlamos somente com 0 "mensuravel" .e:

. ao mesmo tempo, talvez com 0 que ha de menos interessante no fenb-

meno, Pelo fato de nao saberm os medir diretamente democracia, isto

nao a faz, de forma alguma, menos relevante.

Num quinto momento, podemos aduzir aquilo que julgamos ser

a diferenc;:a mais profunda, ou seja, 0 carater ideo/6gico das clenctae

sociais. A ideologia acomete qualquer clencla, tarnbem as naturals,

mas aoul de forma extrlnseca, a saber, no posslvel usa que se faz

delas. Seu objeto nao a ldeoloqlco em sl. 0 objeto, porem, das clencias

sociais a intrinsecamente ideoloqico, porque a ideologia esta alojada

em seu interior, inevitavelmente. Faz parte lntrlnseca do objeto.

Ideologia significa, para nos, 0 modo como justificamos nossas

poslcoesooll tlcas. nossos interesses soclals, nossos prlvlleqlos dentroda estratlftcacao da sociedade, e assim por diante. Trata-se de urn

fenomeno de [ustlficacao, de conteudo predominantemente politico,

mais do que de arqurnentacao, entendendo-se este como 0 esforc;:o

de colocar a realidade assim como ela e. Arqurnentar e fundamentarporn 0 maximo de objetividade possfvel, tendo como padrao de com-

portamento cientifico a fidelidade aos fatos. Justificar e defenderuma poslcao, por mais que se use de artlflcios clentlflcos. A finali-

dade baslca, embora geralmente escondida, e convencer, a influenciar,. a envolver.

Nao parece haver ideologia numa molecule da agua. Nao obstante,

pode-se fazer usa ldeoloqico da fislca. A teoria atornica nao a culpada,em si, pela bomba atornica. Embora em termos pratlcos as coisas nao

se separem assim, porque, se a realidade a que conta e se esta

sempre aparece ideologizada, a flslca emerge, ja como urn projeto

Ideoloqlco, Nao a acaso 0 fate de que seja mais usada para a destrulcao.

para a cornerclallzacao exploradora. para a aqressao humana e ecoloqt-ca, do que para a paz e a convlvencla: mostra que nao exlste ffslca em

si, na pura teoria, mas feita em contexto hlstorlco especlfico e com

sua marca propria.

Todavia, a importante fazermos a dtstlncao teorlca e sabendoque e teorlca, para nao confundirmos os niveis: aideologia na ftsica

17

5. A Gramscl, Concept ;80 D/a le t/ca da Hist6r/a (Civiliza~i!o Brasllelra. 1978); A. Schaff. HIst6rla e

Verdade (Martins Fontes. 1978); L. Althusser e outros. Dlaletlca e C/~nclas Soc/sis (Zahar. 1967);

A. Abdel-Malek. A Dialet/ca Soc/sl (Paz e Terra, 1975); G. Lukacs, HIst6ria e Consc/iJncla de Clssse(Escorpllio, 1974).

6. G. Lukacs, H/st6rls e Con8c/~;'c/s de CIs8se, op. c it ; G. G. Granger , Penssmento Formsl e CliJnclsdo Homem, I e II (Presenc;;a,1976).

16

 

Page 11: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 11/62

e um fenomeno extrlnseco, enquanto na democracia, por exemplo, eintrinSeco. ~ tao falso nao vermos ideologia nas clenclas naturaisquanto nao reconhecermos a diferenc;a entre ideologia intrlnseca ~

extrlnseca.

Enquanto 0 cientista natural pode abstrair , pelo menos teoricamen-te, do usa que se pode fazer do conhecimento gerado, 0 cientista

social que se coloque tal pretensao ja nisto e idecloqlco, porquanto

faz parte de suas ideologias mais baratas a pretensao de nao ser

ldeoloqo. AI temos urn condicionamento fundamental das clenclassociais: a lnevltavel convivencla com a ideologia; nao nos propomos

ellmlna-la - seria ingenuidade ideoloqlca -, mas controla-la critica-mente. As clenclas sociais serao clentiflcas, se nelas predominarem

os traces reconhecidos como cientlflcos: nao serao cientificas casopredomine a lntencao ideol6gica ou se fizerem a llusao de lsencao

ideol6gica.

Todas as possfvels tecnlcas de mensuracao da realidade naopodem colocar-se com a pretensao de superar sua constltulcao ideo-

loqlca interna, mas com 0 prop6sito de salvaguardar, sempre mais,

as condlcoes favoraveis de manipulacao mals objetiva. Nao se ganha

nada apenas imitando as clenclas naturais; muito menos vale a pena

"naturallzar " as clenclas sociais. Ganha-se, contudo, muito, se souber-

mos aproveitar criticamente condutas das clenclas naturais e vice--versa.

, . Finalmente, rum sexto momento, podemos aduzir, a sombra daultima caracterfstica, a lmbrlcacao com a pretice, para alem da teoria.

No caso das clenclas naturais a questao da pratlca e extrfnseca, porque

aparece no usa que se faz do conhecimento, nao no proprio conhe-

?Imento. Se entendemos bern 0 significado de ideologia e sua presence

lnterna no conhecimento social, torna-se conclusao conseqiiente 0

reconhecimento da pratlca como trace intrfnseco.

Urn qulrnlco pode estudar a cornposlcao interna de uma moleculeapenas para saber, para acumular conhecimento. Urn socloloqo nao

conseque fazer isto, porque seu distanciamento para com a pratlca

e apenas uma pratlca alienada. A omlssao ja e uma opcao pol ltlca,asstm como 0 nao-allnhamentc e uma forma de al inhar-se.

. Nao se ha de confundir teoria e pratlca, como veremos melhor

adlants. Mas, ao tratarmos problemas socials. nao tratamos so de

como pensamos a vida, mas sobretudo de como vivemos concretamen-

te., ~s clenclas sociais refletem profundamente 0 roteiro hlstorlcopratlco que viv~mos atraves dos espacos e dos tempos. Por exemplo,

e~tende:se facllrnente que 0 mundo desenvolvido prefira metodolo-

~Ias "':la~s conservadoras de expllcacao da realidade, porque convern

a j,0.slc;ao de quem e privilegiado no contexto soclo-econemlco epo ItICO, bern como se entende que 0 Terceiro Mundo aprecie metodo-

18

logias mais contestadoras, porque 0 interesse em superar fasesadversas pode predominar. As respectivas praticas htstortcas condl-

cionam 0 modo de fazer clencla.

Tomando alguns exemplos possfvels, e incoerente para 0 socto-

logo proper a revolucao somente na teoria, para 0 pslcoloqo proper

uma deflnlcao de normalidade pslqulca que nada tenha a ver com a

reatidade, ou para 0 economista propor uma teoria do mercado que nao

seja 0 mercado real que vige na pratlca. 0 cientista social pode ser

alienado, seja porque nao percebe sua lnevltavel tlacao com a pratlca,

seja porque a nega explicitamente, seja porque procura descrever a

toria como acao suflclente, seja porque teme ser colocado em cheque

na pratica etc. Mas isto nao obscurece seu envolvimento pratlco,

mesmo na pretensa omlssao,

o cientista natural tern seu envolvimento lnevltavel como cldadao

que e: mas isto nao faz parte intrfnseea de seu objeto de estudo,embora faca parte extrfnseca. Polltlcos somos todos nos, pelo simples

fato de ocuparrnos uma poslcao qualquer na soeiedade, dominante ou

dominada. Nao precisa ser poslcao partidaria. 0 cientista social tern

tal lmbrlcacao no proprio objeto de estudo, eom 0 qual em ultima ins-

tancla se ident if ica.

. .

1.3. 0 QUE ~ METODOLOGIA?

Metodologia a uma preocupacao instrumental. Trata das formas

de se fazer clencia. Cuida dos procedimentos, das ferramentas, dos

eaminhos. A finalidade da ciencla a tratar a realidade te6rica e pratl-

camente. Para atlnqlrrnos tal finalidade, eolocam-se varlos caminhos.

Disto trata a metodologia.

~ um erro superestimar a metodologia, no sentido de culdar mais

dela do que de fazer clencla. 0 mais importante a ehegarmos onde

nos propomos ehegar, ou seja, a fazer clencla, A pergunta pelos meios

de como ehegar la a essencial tambem, mas a espeeif icamente instru-

mental. Somente 0 rnetodoloqo profissional faz dela sua razao de ser,principal mente 0 fil6sofo da teoria do conhecimento. Mas, para 0

cientista em gera!, a apenas dlsclpl lna auxil iar.

Este reparo nao deve ser Interpretado eomo secundarlzacao.

Apenas buscamos colocar as coisas nos seus lugares. Mas, uma vez

dito isto, a essencial entendermos a lmportancla da metodologia para

a formacao do cientista. ~condi<;ao fundamental de seu amadurecl-

mento eomo personalidade eientffica. Trava-se al a declsao do tipo decientista que prefere ser, a medida que segue um metodo especifico,acima das imitac;6es. Promove 0 espfrito crltlco. capaz de realizara autoconsclencla do trajeto feito e por fazer. Dellrnlta sua criatividade

e sua potencialidade no espaco de trabalho.

19

 

Page 12: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 12/62

A clencla propoe-se a captar e manipular a realidade assim comoela e.A metodologla desenvolve a preocupacao em torno de como

chegar a isto. !: importante percebermos que a tdeta que fazemos darealidade de certa maneira precede a ldela de como trata-la. Nisto

fica clara sua poslcao instrumental, porquanto esta a servlco da capta-c;:aoda realidade. Se na o temos ldela da realidade, sequer coloca-sea questao da captacao,

A realidade ja foi manipulada de lnumaras maneiras na hlstorla,Antigamente, os indios pretendiam captar a realidade atraves dosmitos. Nos achamos que tal exollcacao e mitica, porque a comparamos

com as nossas e achamos estas como superiores. Para eles, porem,nao se tratava de mitos, mas pura e simplesmente de expllcacao

objetiva da realidade. Quando 0 indio interpreta que seu deus estairado e por isto fez chover com estrondos e raios, fala serlo e, em

sua mente, propoe uma expllcacao de por que chove.

Poster iormente a funcao mitica foi superada em parte pela relig iao,

que tarnbem trouxe sua expllcacao da realidade. Assim, quando nablblla se montou uma hlstorla da crlacao do mundo e do surgimento

do mal, nao se pensou em fazer uma alegoria, urn conto interessante,

ou qualquer outra coisa, mas certamente em dar uma expllcacao de

como comecou 0 mundo, 0 homem e 0 mal.o que chamamos de clencla, de certa forma, quer substituir as

expllcacoes acima, porque nao acredita nem em mitos, nem em reli-

giao, como formas de explicacao, Chove, nao por razoes mitlcas, ou

religiosas, mas naturais. Quer dizer, a clencla entende-se como pro-

cesso de desrnltoloqlzacao e dessacralizacao do mundo, em favor da

racionalidade natural, supondo-se uma ordem das coisas dada e man-tida.

tarnbern urn conceito ldeoloqlco. porquanto na o pode ser definida fora

de urn contexto social dado. Se a definirmos como a escolha dos

meios mais aptos para atingirmos os fins, esta claro que, ao riao

discutirmos os fins, apenas deslocamos a questao. 0 homem perfei-

tamente racional seria urn robo, e ja nao saberlarnos qual a pior

neurose: se aquela que achamos irracional ou esta da total racionali-

dade. Ha outras culturas que valorizam mais componentes mfticos,

estetlcos, parapsicoloqicos etc. Nada haveria de surpreendente, se

daqui a alguns seculos nossos sucessores na historia venham a nos

julgar irracionais, porque acredltavamos em coisas tao frageis e mal

arrumadas como aquelas que chamamos agora de ciencla. 0 esforco

que a ciencia faz para vender-se como proposta racional e muito mais

tecnica de convencimento do que caracter istica intr inseca.

Em clenclas sociais, manipulamos geralmente uma gama variada

e historicamente contextuada de metodologias. Podemos destacar,entre outras, 0 empirismo, que imagina encontrar a cientificidade no

cuidado com a observacao e com 0 trato da base experimental; 0

positivismo, que aparece em varias versees, desde suqestoes do tipo

de Comte, misturadas com reliqlao, ate aquela cham ada de posi tivismo

loqlco, girando em torno das caracteristicas loqlcas do conhecimento

ou do positivismo de Popper e Albert, muito critico e influenciado

pela dlscussao com a dialetica e que ve na neutralidade cientificauma opcao possivel entre outras; 0 estruturalismo, que revive pro-

fundamente a crenca ocidental cientifica da ordem interna das coisas

e das invariantes expllcatlvas: 0 iuncionelismo. multo ligado a faces

mais sociais da realidade e empenhado na explicacao dos lados mais

consensuals dela; 0 sistemismo, a sombra da moderna teoria dos

sistemas, comprometido com a sobrevivencia dos sistemas e com

o manejo dos conflitos; a dieletlc«, que se faz a expectativa de ser

a metodologia especifica das cienclas sociais, porque ve na hlstorla

nao somente 0 fluxo das colsas. mas igualmente a principal origem

exp Iicatlva.'

Neste trabalho, nao passaremos em revlsta cada uma delas, em

particular. Acentuaremos as caracteristicas da dlaletlca, em contra-

posicao as outras, assumindo 0 compromisso de manter espirltocri tico principalmente com respei to a dialetica. Tratando-se apenas de

uma introducao a metodologia, eentraremos nossa atencao sobre ques-

toes inieiais e propedeuticas que preoeupam a quem deseja embre-

nhar-se na tarefa de construi r clencia social.

A metodologia pode ser vista basieamente em duas vertentesmais tipicas. A mais usual e aquela derivada da teo ria do conhecimentoe centra-se no esforco de transmitir uma inieiac;ao aos procedimentosloqicos do saber, geralmente voltada para a questao da causalidade,

dos principios formais da identidade, da deducao e da lnducao. da

Todavia, dentro da clencla, sempre houve esferas mais devassadas

por crencas mfticas. Alquern adepto das clenclas naturais, e que

julga erroneo ver nos objetos sociais particularidades irredutiveis,

certamente imagina arcaica a pretensao de visualizar em fenomenos

ditos sociais especificidades diversas dos naturals. A propria ldela

de que as clenclas sociais seriam inevitavelmente ldeoloqlcas podeinterpretar-se como recaida em laivos miticos, porquanto, pesquisan-

do-se urn cerebro humane em sua base organica, nao encontramos

af nenhuma ldela, nenhuma ideologia, nenhuma expectativa, masapenas massa ffsica.

Quem e 0 credulo? Aquele que faz da clencla sua nova religiaoou aquele que imagina nao podermos libertar-nos de todo da ideologia?

Provavelmente, os dois. E sera praticamente impossivel garantir quem

seria preferivel. Preferimos nos 0 segundo, porque, se af existe inge-nuldade, e pelo menos criticamente assumida.

Ademais, a racionalidade que a clencla gostaria de fundar e

, 207. P. Demo, Metod%gia Cientifica em Ciencias Socials (Atlas. 1980).

21

 

Page 13: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 13/62

objetividade etc. Outra vertente e aquela fiJiada a socloloq is do conhe-

cimento, que acentua mais 0 debito social da ciencla, sem no entanto

desprezar a outra. Trata-se apenas de uma acentuacao preferencial,

e por isto nao pode, em hip6tese alguma, substituir a outra. Neste

sentido, dizemos aqui com toda a clareza posslvel que este trabalho

e uma proposta de discussao do problema metodol6gico, calcado mais

na 6tica da sociologia do conhecimento do que na da teoria do conhe-

cimento, e que nao levanta a pretensao de ser unica e muito menos

de desconhecer outras propostas, pr incipalmente aquelas mais I igadasaos procedimentos 16gicos e epistemol6gicos.

o que realmente interessa e a pesquisa. Esta e a malor final idade

baslca da clencla . A rnetodoloqla e somente instrumento para chegar-

mos la, Discutimos os caminhos possfveis. os ja vigentes, os que

poderlamos inventar, os discutlvets. os que ja se superaram, e assim

por diante. Nao vale a pena entreter-se de tal modo com questoes

metodol6gicas que nao cheguemos a fazer a pesqulsa, Assim, mais

lmportante que botar defeito metodol6gico em tudo e fazer a pesquisa,

ou seja, par-se a construcao das clenclas sociais.

Como em tudo na vida, a clencla nao e ensinada totalmente,

porque nao e apenas tecnice. E : lqualmente uma arte. E na arte vale

a maxima: e preciso aprender a tecnlca, para termos base suficiente;

mas nao se pode sacri ficar a criat ividade a tecnlca: vale precisamente

o contrarlo: 0 bom artista e aquele que superou os condicionamentos

da tecnlca e voa sozinho. Quem segue excessivamente as tecnlcas,

sera por certo mediocre, porquanto onde ha demasiada ordem, nada

se crla."

E importante mantermos esse alerta. As suqestoes metodol6gicas

sao importantes a medida que favorecem a crlacao da pesqulsa. Nao

devem passar a finalidade em si, exceto se for 0 caso de um metod6-

logo profissional. A lnestimavel contrlbulcao da metodologia para a

formacao cientffica pode abortar, se tornar-se obsessao de quem

apenas constr6i caminhos, mas nao chega a nada. 0 cientista criativo

e tanto capaz de fazer um trabalho "como manda 0 f igurino", formal,

dentro da ordenacao prevista, como e capaz de comecar pelo fim, de

nao citar n lnquern, de afi rmar 0 cont rario do que todo 0 mundo espera,

de buscar espacos il6gicos para a lnvencao etc.

absorve-la (dlscencla l. Na verdade, tal at lv ldade e subseqi iente. Antes

existe 0 fenorneno fundamental da gera<;:ao do conhecimento,"

Pesquisa e a atividade cientffica pela qual descobrimos a reali-

dade. Partimos do pressuposto de que a realidade nao se desvenda

na superffcie. Nao e 0 que aparenta a primeira vis ta . Ademais, nossos

esquemas explicativos nunca esgotam a realidade, porque esta emais exuberante que aqueles.

A partir dal, imaginamos que sempre existe 0 que descobrir narealidade, equivalendo isto a aceitar que a pesqulsa e um processo "

lnterrnlnavel, intrinsecamente processual. E : um fenomeno de aproxl-

rnacoes sucessivas e nunca esgotado, nao uma sltuacao definitiva,

diante da qual ja nao haveria 0 que descobrir.

Para fins de classlficacao, distingu imos quatro linhas baslcas de

pesquisa: a te6rica, a metodol6gica, a empfrica e a pratlca,

a) A pesquisa te6rica e aquela que monta e desvenda quadros

te6ricos de referencla, Nao existe pesquisa puramente te6rica, por-

que ja seria mera especulacao. Mera especulacao e a reflexao aerea

subjetiva, a revelia da realidade, algo que um colega cientista nao

poder ia refazer ou controlar.

Nao combatemos a especulacao, porque a divaqacao te6rica pode

ter faces criativas e constituir-se em exercfcio de reflexao valldo,Combatemos somente a especulacao pela especulacao, Que e viver

. no mundo da lua, como se a realidade fosse um jogo de ldelas.

A discussao, por exemplo, de uma deflnlcao conceitual - digamos

do conceito de mais-valia do marxismo, de normalidade psfquica no

freudismo, de racionalidade economlca - e uma forma possfvel de

pesquisa te6rica, de grande relevancla para a formacao cientffica.

Na verdade, sua lrnportancla esta na formacao de quadros te6ricos de

reierencte, que sao contextos essenciais para 0 pesquisador movi-

mentar-se.

Alguns procedimentos sao fundamentais para a formacao de um

quadro te6rico de referencla, Um primeiro pode ser 0 domfnio dos

classlcos de determinada disciplina. Eles trazem a acumulacao ja

feita de conhecimento, as polernlcas vigentes, a crtstallzacao de

certas prat lcas de lnvest lqacao, 0 ambiente atual da dlscussao em

torno do assunto, e assim por diante. 0 conhecimento criativo dos

classlcos - nao a mera leitura pass iva ou a de discfpulo ingenuo -

e uma das formas mais comuns de pesqulsa te6rica.1.4. 0 QUE E PESQUISA?

A atividade besice da clencie e a pesquisa. Esta aflr rnacao podeestranhar, porque temos muitas vezes a ldela de Que ciencla se

concentra na atividade de transmit ir conhecimento ldocencla) e de

9. A. Kaplan. A Conduta na Pesqulsa - Metodologla para as CI8nclas do Comportamento (Herder, 1972);

F. N. Kerlinger. Metodologia da Pesqulsa em Cienclas SocIals (EDUSP. 19801: A. Vera. Metodologls

da Pesqulsa Cientffics (Globo. 1974); V. Kourganoff, A Pesqulsa Clent/flca (DIFEL. 1961); T. Tr'j}f'e outros. Analise da Pesquisa Social (Francisco Alves. 1975); M. Weatherall. Metodo ctem I co

(Polfgono. 1970); A. Moles. A Crlat;iio Clentlfics (Perspec1lva, 1971); A. L. Cervo e P. A. Berv8~.

Metodologia Clent/ffca (McGraw-Hili. 1973); L. Hegenberg. Etapas da Investlgst;iio Clent/ffcs d(EDdUSd,

1976); J. Galtung. reort» y Metodos de la Investlgacl6n Social, 2 v, (Editora da Unlversl a e e ,.....

Buenos Aires, 1966); W. Goode e P.K. Hatt , Metodos em Pesqulss SocIal (Naclonal, 1973).

8. P. Feyer~bend, Contra 0 Metodo (Francisco Alves. 1977); D. l. Phillips, Abandoning Method _

Sociological Studies in Methodology (Jossey-Bass Publishers, 1973).

22 23

 

Page 14: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 14/62

~utro procedimento e 0 domfnio da bibliografia fundamental,

atraves da qual tomamos conhecimento da producao existente; pode-

mos acelta-la, relelta-la e com ela dialogar criticamente. Sobretudo em

clenclas sociais a leitura bibliografica e vital, porque, mais do que

resultados ja obtidos, temos discussf ies lntermlnavels, que so conse-

guimos acompanhar pela leitura assldua. 0 dominio dos autores pode

ajudar muito a criatividade do cientista, porque atraves deles chega

a saber 0 que da certo , 0 que nao deu certo, 0 que poderia dar certo,

e assim por diante.

Outro procedimento e a verve crltlca, atraves da qual instala-se

a dlscussao aberta como caminho baslco do crescimento cientffico.

o born teorico nao e tanto quem acumulou erudicao teorlca. leu muito

e sabe citar, mas principalmente quem tem vlsao crltlca da producao

cientffica, com vistas a produzlr em si uma personalidade propria,

que anda com os pr6prios pes. E mau te6rico quem nao passa do

dlsclpulo, do colecionador de cltacoes, do repetidor de teorias alheias.

Boa bagagem teorlca significa, assim, nao somente domfnio das

teorias mais importantes em sua area de pesqulsa, mas principal e

essencialmente capacidade teorlca propria. Ou seja, personalidade

te6rica formada, no sentido de dialogar com os outros teortcos,

atuais ou claastcos, nao como mero aprendiz ou discfpulo, mas comoalguern que tarnbem ccnstrol teoria, tern suas poslcoes teorlcas fir-

madas, enfrenta polernlcas pr6prias, marca a hist6ria da disciplina

com contr lbuicoes origina is .

A falta de quadro teorlco de referencla traduz imediatamente urn

trace tfplco da mediocridade cientlflca, porque a pessoa nao dlspoe

de material de dlscussao. seja retirado de outros autores, seja proposto

por si mesma. 0 confronto te6rico crltlcc e condlcao fundamental

de aprofundamento da pesquisa para se superar nfveis apenas descri-

t ivos, repet it ivos, d ispersivos e apresentar penetracoes originais.

A teoria faz mal somente quando se encerra em si mesma e passa

a ser urn castelo no ar. Pode ser, por exemplo, 0 caso de alquern que

pratica uma docencla sem pesquisa. Se pensarmos bern, nao se ternnada a ensinar, se nao tivermos construldo algo atraves da pesquisa.

Nao existindo a pesquisa, 0 professor torna-se urn mero repetidor

de textos e de ldelas dos outros. Conta para os alunos 0 que leu por

al. Sera somente um transmissor de conhecimentos. Neo e propria-mente urn cientista, ou seja, urn construtor do saber.

Muitas vezes temos da clencia esta vlsao estereotipada, quando

a entendemos como transrnlesao de conhecimento alheio. Ha univer-

sidades que somente fazem isso. Nao sao, pois, universidades, porque

para tanto nao as precisamos. Os meios modernos de cornunlcacao

transmi tem conhecimento, ho je, de forma mais efet iva e atraente.

24

Inculca-se no estudante, igualmente, a mesma mentalidade, a

saber, do receptor passivo que acumula mimeticamente conhecimento

alheio. Nao sabe descobrir a realidade, somente ve-la com 6culos

emprestados. A verdadei ra tarefa docente e a de transmitir 0 compro-

misso com a pesqulsa, buscando produzir const rutores do saber.

b) A pesquisa metodo/6gica nao se refere diretamente a reali-dade, mas aos instrumentos de captacao e manlpulacao dela. Para

muitos sera estranho imaginar uma pesquisa rnetodoloqlca, porque

nao e usual colocar as coisas assim. Cremos, no entanto, que e funda-mental estabelecer a lrnportancla da construcao metodoloqlca, porque

nao ha amadurecimento clentlf lco sem amadurecimento metodoloqlco,

Construir clencla e em parte 0 cultivo de uma atitude tiplca diante

da realidade, da atitude de duvlda, de critica, de indagaGao, rodeada

de cuidados para nao sermos ingenuos, credulos, apressados. Tudo

isto e questao metodoloqlca. Perqui rir tais caminhos pode ser devaneio

digressivo, especulacao desenfreada; mas pode ser condlcao funda-mental para desabrocharmos nossa opcao te6rica e pratlca diante da

clencla.

A falta de reflexao metodoloqlca traduz tambern, imediatamente,

um tipo de mediocridade clentlf lca que e a crenca em evldenclas dadas.

A clencla corneca precisamente al, quando nao se reconhecem evi-denctas dadas. Problematizar as vias do conhecimento e ir em busca

de outras, com vistas a urn conhecimento mais realista e profundo.

!: muito val ldo. portanto, dedicar-se a discussao sobre os caminhos

seguidos pelos auto res para const ruir suas teorias, contrastando com

outros caminhos. No final buscamos a opc;ao propria metodol6gica

que fundamentaria nossa proposta de clencia. Por que dizemos que

nos so modo de construir clencla e cientlf ico? Por que rejeitamos

outros? Como pesquisar? Que metodos existem?

E e preclsarnente 0 que fazemos neste trabalho. Nao 0 vemos

como teorlzacao aerea, como especulaeao solta, como softstlcacao

estranha. Pelo contrarlo. e profundamente pesqulsa, porque e cons-

trucao de propedeutlca da descoberta da realidade.

c) A pesquisa empirica e aquela voltada sobretudo para a face

experimental e observavel dos fenomenos. E aquela que manipula

dados, fatos concretos. Procura traduzir os resultados em dtmensoes

mensuraveis. Tende a ser quantitativa, na medida do posslvel,

Embora 0 emplrico nao precise coincidir com 0 mais relevante

na realidade, a pesqulsa ernpirlca desempenhou ernclenclas soclals

urn papel lnestlmavel, porque trouxe 0 compromisso com aftrrnacoes

controlavets, contra especulacoes perdidas. Nao se pode negar que

muitas clenclas sociais ou, pelo menos, crlentacoes dentro de certas

clenclas sociais tendem a teor lzacao excessiva, sendo ja diffcil dis-

tinguir da filosofia, em sentido pejorativo.

25

 

Page 15: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 15/62

a grande valor da pesquisa empfrica a 0 de trazer a teoria para a

realidade concreta. Foi muitas vezes abusada, e nao ha metodologia

mais superficial e mediocre que 0 empirisrno, porque credulo. Acredita

na realidade que observa. Ora, as coisas mais relevantes da reali-dade nao se manifestam a prirneira vista e sernpre ha dlmensoes

refratarlas a mensuracao. Se levarrnos em conta somente 0 mensu-

ravel, ficaremos com 0 superficial. Mas, se souberrnos usar, a dedi-

cacao ernpfrica chega a ser um rernedlo para as clenclas sociais.

E igualmente um erro imaginarmos que somente a pesquisa 0

que se faz empiricamente, como a hablto, sobretudo, nos Estados

Unidos. Pesquisador nao a apenas quem domina tecnlcas de compu-

tador e sabe muita estatfstica ou quem acumula tabelas e fndices.Nao a diffcil encontrarmos pesquisadores empfricos perdidos no

meio de dados irrelevantes, fazendo testes estatfsticos sobre coisas

que nao tocam problemas cruclals da real idade ou apenas descrevendo

fenornenos. sem os explicar.

Nao obstante, por causa da pesquisa empfrica avancou-se muito

na producao de tecnlcas de coleta e rnensuracao do dado. Constitui

hoje uma parte importante de cada clencia social. Sao tarnbem instru-

mentos de controle da ideologia.

d) A pesquisa pretice a aquela que se faz atraves do teste pratlcode possfveis ldelas ou posicoes teorlcas. Certamente a uma funcaoda pratlca testar se a teoria e fantasia, especulacao ou se a real.Todavia, a pratlca tem a funcao mais essencial de representar 0 lade

polftico das clenclas sociais. Af, a propria ornlssao e uma pratlca,

porquanto ha de signi ficar 0 favorecimento da sltuacao vigente.

Seja qual for a dlmensao visualizada, a pratlca tarnbem a umaforma de descobrir a realidade. Aparece muitas vezes em pessoas que

somente sabem pela pratlca, ja que nunca pararam para teorizar, ousequer saberi am fazer isto de forma explfeita. No cientista social a aocaslao de descortinar horizontes que nao tinham sido percebidos na

teoria ou mesmo surpresas a revelia da teoria.

Freqiientemente dizemos que na pratlca a teoria a outra. Isto naoquer somente dizer que pode sempre haver dlssonanclas entre os dois

nfveis, mas principal mente que um nao se faz sem outro. Nada melhor

para a teoria do que uma boa pratica e vice-versa. as extremos

tarnbem sao lndesejavels, a saber, 0 teoricismo que aeaba sendo uma

fuga da realidade, ou 0 ativismo que nao se eontextua teorieamente.

Esta parte geralmente e muito negligenciada na formacao cien-tlfica, porque se da peso quase exclusivo a dedlcacao teorlca, sobre-

tudo em clenclas sociais. Muitas vezes, entendemos por pratlca so-

mente 0 estaqio de signi ficado profissionalizante. Embora isto tarnbernfaca parte, pratlca e sobretudo a tomada de poslcao explfcita, deconteudo polltlco, diante da realidade.

26

Tal assercao torna-se mats compreensfvel. se voltarmos a tdeiade que as clenclas sociais sao intrinsecamente ldeoloqlcas no quese distinguem profundamente das clenclas naturais, onde a ideologia

aparece extrinsecamente. Se assim e, a pratlca e consequencla natural

do engajamento ldeoloqico, que todos tern, mesmo a nfvel de omissao.

Estas quatro formas de pesquisa nao podem insinuar um esquemarfgido. Tern mais a finalidade de nao exclusivizar a pesquisa empfrica.

Por mais importante que esta seja, nao e expressao unlca de desco-

berta da realidade. Ademais, chamam a atencao para 0 fato de que

nao pode haver docencla nem dlscsncla efetiva sem 0 fundamento da

pesquisa. Ate mesmo a atividade de extensao unlvetsltarla ~ c~ndic~o-nada pela pesquisa, embora nao decorra dela, como a docencla, Nao

se pode intervir adequadamente numa realidade que nao se conhece.

Enfim, perguntamo-nos 0 que a realidade? Para muitos pare~eevidente a realidade. Nada rnals enganoso. E precisamente 0 que mars

ignoramos. Por isto pesquisamos, ja que nunca do.minam~~ a ~eal idade.Quem imaginaconhecer adequadamente a realldade, ja nao tem 0

que pesquisar, ou melhor, tornou-se dogmatico e delxou 0 espaco da

clencla,

Realidade sao todas as dlmensoes que compoern nossa forma de

viver e 0 espaco que a cerca. Em nosso caso, realidades soci~iS clr-

cunscrevem-se as dtrnensoes sociais, tanto aquelas que estao emnos quanto aquelas que nos circundam:. Fazem pa~te delas igu,almentenossas ideologias, nossas representac;:oes mentals, nossos slrnbolos,

nossas crencas e valores, bem como nosso comportamento externo

e as condicionamentos circundantes de ordem social.

Em todas estas dlmensoes a possfvel sempre descobrir novos

horizontes do conhecimento e da pratlca, A realidade nao a apenasempfrica, ou seja, aquela traduzida em dados observavels. Por vezes

a 0 menos interessante dela.

Cada clencla social dedica-se a uma faceta da realidade. E uma

das formas de ve-la, Ao mesmo tempo, nao se dedicando a outras

facetas, inevitavelmente deturpa a realidade, se perder de vista que

a uma faceta entre outras. Ver a realidade apenas psicologicamentea clara deturpacao, comum, por exemplo, em pslcoloqos que nao

percebem outra coisa no homem senao sexo, ou em economistas quenada mais percebem do que determlnacoes de ordem material, ou

em antropoloqos que nao veern outra coisa que mitos e ritos.

Cada clencla social estabelece suas relevanclas baslcas, atravesdas quais realiza seu modo particular de ver a realidade. Nao temos

uma regra para garantirmos quantas sao as principais relevanclas da

realidade. Algumas podem, inclusive, ser apenas convencionais. Detodas as formas, cada ciencia social imagina estar lidando com algo

essencial na realidade. Sera tanto rnais importante quanto acertar

27

0 ,

 

Page 16: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 16/62

uma dlrnensao estrutural da realidade, ou seja, uma dlmensao quecaracteriza a hlstorla inteira da humanidade. nao uma dlrnensao toplca,conjuntural, t ipica apenas de certo momenta hlstorlco. Por exemplo,a Sociologia - definidacomo 0 tratamento teorlco e pratlco dadesigualdade social - possui urn objeto estrutural que faz partedo cerne de qualquer sociedade. Outras disciplinas podem ser menosdensas, por estudarem objetos de estilo mais toplco. como pode sero caso das ditas Clenclas Contabels, da Admtnlstracao, do ServlcoSocial e que, por isto, acabam buscando sua fundarnentacao ou na

Economia, ou na Sociologia, ou na Psicologia, ou na Antropologia etc.Se definimos pesquisa como 0 processo de descoberta clentlflca

da realidade, parece claro que existe por tras dela sempre algumprojeto mais ou menos explfcito de dominio do objeto. 0 conhecimentotorna-se facilmente instrumento de domtnacao, ja que. conhecendoadequadamente 0 objeto, poderfamos manlpula-lo a nosso favor, sejano sentido de produzirmos condlcoes mals favoravels de exlstenclahumana, seja, sobretudo, no sentido de encontrarmos novos instru-mentos de consolldacao de grupos dominantes. Sem desmerecer apossibilidade de uma clencla por amor a arte, sendo produto tarnbernsocial, nao ha como lsenta-la dos interesses sociais. A clencla naotrata qualquer coisa; trata principalmente 0 que interessa. ~ sempretambem reflexo do poder e das necessidades sociais.

2

A C O N S T R U c A o C I E N T r F I C A

2.1. OBSERVA CO E S I N IC I A IS

28

Trataremos de alguns momentos importantes da construcao cien-tlflca, particularmente da demercecso cientifica, atraves da qual bus-camos alguma forma de definir 0 que a clencla: do obieto construtdo,que constitui propriamente 0 resultado da construcao cientff ica; dotrabalho cientifico como tal, em cima de hlpoteses capazes de con-

duzir seu desdobramento, e asslm por diante. Sao lnurneras e inevi-tavels as dlverqenclas nesta parte. Sao lrulmeras, porque as ideologiaspor definic;:ao sao diversificadas, multlplas: sao lnevltavels, porqueas ch3ncias sociais possuem ideologia no seu Intimo.

Nao se pode, pois, emitir urn conceito tranqii ilo de clencla, comose fosse posslvel partir de algo evidente e lnquestlonavel e chegara algo tarnbem evidente e lnquestlonavel, 0 que podemos fazer aapresentar uma proposta de deflnlcao da clencla, na consclencla deque a uma entre outras. Apenas, devemos evitar dois extremos: de urnlade 0 extremo do dogmatismo, que admite coisas indiscutiveis; deoutro, 0 relativismo, que subjetiviza tuc'o ao nivel de veleidadesparticulares.

Sendo a clencla tarnbem urn fenomeno historico,a propriamenteurn processo. 0 conceito de processo traduz a caracterlstlca de umarealidade sempre voluvel, rnutavel, contradltorla, nunca acabada, emvlr-a-ser. Nao ha estacao final onde este trem poderia parar; naoha porto seguro onde este navio ancoraria em definitivo; nao haponto de chegada onde nao tlvessernos que partir. Emclencla estamossempre comecando de novo.

~ preeiso igualmente conceder que 0 conceito de cieneia dependeda nossa concepcao de realidade. Sequer nos colocarlarnos a questaode eaptar e de tratar a realidade, se nao tlvessemos ja alguma noc;:aocomo a. Assim, por exemplo, 'captar dialeticamente a realidade sup6e

29

 

Page 17: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 17/62

que a vemos dialeticamente. Por outra e Impossivel mostrarmos diale-

ticamente que a realidade e dialetica. porque uma sup6e a outra.

Isto nao precisa coibir 0 espirito critico, que percebe a viqencia

natural deste circulo vicioso, nem nos condena ao solipsismo, como

se cada visao nao pudesse veralern de si mesma. Embora toda vlsao

tenda a centrar-se em si mesma, isto nao e necessarlo. Fazer ctencia

social e em parte aprender acompreender outras vis6es e admitir

a propria como preferencial, nao porque nao tenha defeitos, mas

porque imaginamos menos defe ituosa.

Assim, esta por tras de nossas conceituacoes de ciencia uma

respectiva visao de mundo que vai ficando visivel nas entrelinhas

deste trabalho. Pode ser isto um exercicio metodoloqico fundamental:

acertar a visao de mundo subjacente as propostas aqui elaboradas.'

salva. t : uma lnforrnacao comum, transmitida sem maiores cuidados.

Um engenheiro pode achar que este tipo de conhecimento e total mente

inadequado, porque 0 avlao e 0 meio mais seguro de transporte e

fundamenta isto tanto na qualidade tecnlca dos aparelhos quanto nas

estatfsticas. Do ponto de vista dito cientffico, talvez 0 engenheiro

nos quisesse convencer de que e mais segura viajar de avlao do que

andar a pe pelas ruas.

. Existe a expressao born senso que traduz uma faceta muito posl-

tlva do senso comum. Usa-se para designar a capacidade de encontrar

solucoes adequadas em momentos inesperados e sobretudo quando

nao dispomos da necessaria especlalizacao ou lnformacao. t: a habl-

lidade de conviver criativamente com as sltuacoes da vida, mesmo

nao sendo cientista. Assim, 0 que se espera de um presidente da

republica nao e tanto conhecimento especializado de polltlca (neste

caso deveria ser um doutor em pclltlcal), mas a necessaria sensibi-

lidade para conduzir um fenorneno tao complexo como e um pais.

Muitos cientistas sabem tratar de forma especializada a realidade,

mas nao tern bom senso, porque nao sabem conviver criativamente

com os problemas, • q uebram os prates" com muita facilidade, exacer-

bam as dificuldades e inventam outras, e assim por diante.

Neste senti do, 0 senso comum e a dose comum de eonhecimentos

da. qual ,dispo~os para nossas necessidades rotineiras. Por mais qu~seja credulo, e componente essencial das condlcoes de exlstencla.

~duca~os nossos fllhos sem _sermos pedagogos profissionais.

E m.als que IStO: nem sempre os pedagogos sao melhores educadores,

assim como f ilho~ de pslcoloqos nao sao necessariamente mais equili-

brados que os filhos comuns. Andamos de autom6vel sem sermos

rnecanicos, bem como moramos numa casa sem entendermos de

engenharia de construcoes,

o senso co~um e forma ~alida de conhecimento tarnbern. Hoje

acentuamos frequentemente 0 saber popular", baseado fundamental-

mente no s~nso comum. 0 POVQ tarnbern tem cultura, no sentido de

q~e sabe .dlzer 0 que para ele e belo, importante, simb61ico etc.

Nao possut a cultura da elite, por definil;ao sofisticada e multas vezes

re?uscada at r aves de conhecimento cientiflco. Ha rnuslca popular,felta por pessoa que nunca viu em sua vida teoria musical. Existe

a~te no artesanato, n~ literatur~ ~e cord~I, na cullnaria, e assim pordlante. Pelo fato de nao ser soflsticada, nao e menos importante.

Isto nao deve encobrir as formas credulas de conhecimento do

senso comum, que normal mente sao mais ressaltadas. Ha crendices,

extremas ingenuidades, superstlcoes soltas. No limite trata-se de

lqnorancla. Todavia, 0 senso comum, menos que ser falta de conhe-cimento, e uma forma propria dele.

Por outro, nao e clencia a ideo/ogia, entendida aqui preferente-

mente como justlficacao de poslcoes sociais. Diziamos que a ideologia

31

2.2. A DE MAR CA QA O C IEN TiF IC A

Entendemos por dernarcacao cient if ica 0 esforco de separar 0

que e e 0 que nao e cientifico. As dernarcacoes cientif icas sao relativas

as concepcoes de realidade e nao podem reclamar exclusividade.

Alern do mais, nunca encerram a discussao. como mostraremos adiante.

Talvez seja mais facil comecar por aquilo que imaginamos naoser c ienti fico. Nao e clencla 0 que cham amos de sensa comum, a formacomum deconhecermos a realidade, sobretudo at raves da experiencia

imediata. Temos uma nocao das coisas que nos cercam, bem como

daquilo que nos constitui. Existe uma maneira de tratar doencas que

e tlplca do senso comum. A dona-de-casa tarnbern percebe 0 problema

da inflacao. porque nota que 65 prec;:os sobem cont inua e aparente-

mente sem razao. Ao tentar explicar as razoes do aumento de prec;:os,

pode aventar coisas inteligentes, ao lado de out ras lmedlatistas.'

o que rnarca 0 sen so comum e ele ser um conhecimento acritico,

lrnedlatlsta, credulo. Nao possui sofisticacao. Nao problematiza a

relacao sujeltc/objeto. Acredita no que ve. Nao distingue entre f eno-

meno e essencla, entre 0 que aparece na superficie e 0 que existe

por baixo. Ao mesmo tempo, assume lnformacoes de terceiros semas cri ticar.

E preciso ver que 0 senso comum nos cerca por toda a parte.

Tarnbern 0 cientista pratica senso comum, porque nao e especializadoem tudo. Temos da vida em geral urna nocao de senso comum e

acreditamos normal mente nas inforrnacoes vindas de outras fontes.

Podemos acreditar, por exemplo, que e perigoso viajar de aviao, por-

quanto e alqo surpreendente voar e se cair, dificilmente alquern se

1. P. Demo. Metodologia Cientlliea em Cienciss Soeiais (Atlas. 19801; G. Bachelard 0 Novo Espiri toCientilieo (Tempo Brasileiro. 1968); Idem. EI Compromiso Raeianalista '(Sigla 21, 19721 : G. Canqu l-'hem, -Sabre uma Epistemologia Concordararla". in: Tempo Breslteiro, ,8 (Epistemologia).

2. J. Bronowskl, 0 Senso Comum da Cienc le (EDUSP, 19771.

30

 

Page 18: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 18/62

antnha-se intrinsecamente na clencla social, 0 que ja supoe naofazermos uma separacao estanque entre clencla e ideologia. No quechamamos de cientlf ico deve predominar a clencta. mas jamais exlsteurn tratamento exclusivamente clent lflco do objeto . .Mais que argu-mentar, ou seja, descobr ir a real idade assim como ela e, a ideologiavol ta-se para a justl flcacao poll tlca de poslcoes socials. correspon-dendo ao debito social da clencla,

A ideologia, ao contrarlo do senso comum, pode ser multosofisticada; por isto, e geralmente produzida por pessoas versadasintelectualmente, que podem investir na elaboracao de uma ideologiaextrema erudlcao teorica e informacao factual. Por exemplo, a ideolo-gia nazista, que prega a super ioridade da raga ariana sobre outras,nao se apresenta com a ingenuidade de uma aftrmacao singela. Pelocontrarlo, buscou enfeitar-se de todos os elementos da erudlcaoacadernlca, ate mesmo para conseguir com isto malor credibilidade.

o carater possivelmente sofisticado da ideologia e buscado geral-mente no uso que faz da clencla para seus fins. E muito comumrevestir a ideologia com teorias pretenciosas, com dados fartos, combases computacionais, com vistas a aumentar a credibilidade, ja quea comunidade propende a acreditar naquilo que aparece com a face

cienti fica. Assim e que uma besteira econornlca; montada dentro deurn quadro econometrlco sofist icado e usando uma linguagem bernhermetlca, tern muita chance de ser aceita como poslcao lncontestavel,

Pertence a sagacidade classlca da ideologia esconder-se atrasda Iinguagem cientif ica, precisamente porque tal l inguagem alcancouem nossa sociedade 0 valor de urn mito indiscutfvel. A clencla naoproduz tanta certeza. E por deftnlcao urn fenomeno questlonavel. Masisto e precisamente ideologia, a saber, produzir a aura de lnquestlona-vel, para realizar a [ustlficacao mais convincente possivel. Interessademais a clencla obter dos que se dizem cientistas e tambern dopovo em geral a conftanca relativa a uma atividade que nao sedeveria colocar em questao, dada a pretensa integridade de seusconstrutores. Nisto ja se ve 0 quanto a ideologia pervade 0 corpo

cientff ico em ciencias sociais, porque na verdade e doloroso reco-nhecer-se fal fvel e crl ticavel. Por mais que 0 cientista social aceiteisto racionalmente e ate com modest la, a propensao natural de quemfaz ciencia e desejar 0 audit6rio cativo, que acredite e aplauda. A ati-tude mais natural nao sera a de oferecer-se a crltlca, dentro dadlscussao mais aberta possivel, mas de evlta- Ia ou de provoca-la em

seu favor.

o fenomeno ideol6gico precisa ser entendido a sombra da questaodo poder e da desigualdade social . Se admitimos que as clenclas 50-

ciais possuem urn debito social, ao lade de serem tarnbern uma dimen-sao epistemol6gica, isto significa mais precisamente que se constroemno contexto do poder e da desigualdade. 0 fenomeno do poder

32

distingue-se, entre outras eoisas, pela caracterfstica de fugir a centes-tacao, a f im de legit imar-se sem opostcao. E essencial ao poder cons-trulr a crenca em sua legitimidade, como sltuacao normal e desejavel,para que nao surja movimento contrarlo, interessado em mudar asregras de jogo. 0 papel da ideologia e fundamental mente de encobrira tendencla opressora do poder, vendendo-a como situacao normal edeselavel, Neste sentido, a ideologia e 0 disfaree inteligente do poder,que usa de todas as justificacoes possfveis, ja conhecidas na hist6ria.

Justifiear a situacao vigente, os prlvlleqlos obtidos, a obtencao deoutros, os valores dominantes, tudo isto e funcao primordial e maistfpica da ideologia. Nao e somente representacao mental, porque istonao a distingue de um mito, de um slmbolo, de uma ldela, E represen-tacao mental com vistas a [ustlficacao de poslcoes vantajosas.

As cienclas socia i s sao construfdas de modo geral nao pelosdesiguais, mas por pessoas beneflclartas do sistema, ate mesmoporque conseguiram alcancar a formacao superior. Muito natural-mente os cientistas sociais - que nao sao anjos, mas gente interes-seira como qualquer cristae - propendem a embutir no conhecimentoclentifico sua pr6pria [ustlflcacao. E facil demais mostrar que auniversidade corresponde muito mais aos interesses dos beneflclarlosdo sistema do que aos marginalizados. Extremando as coisas, produ-zem-se todas as ideologias encomendadas a troca dos respectivosprlvlleqlos.

A clencla nao pode ser entendida apenas como combate a ideo-logia, na busca de sua ellrnlnacao. Alias, tal lsencao ideol6gica seriaapenas a pr6xima ideologia, sob a forma de uma estrateqia de con-vencimento. 0 que a clencla pode pretender e a convlvencia crft icacom a ideologia, seu controle relativo, seu enfrentamento semdisfarees. Assim tomada, a ideologia pode ate ser uma bela insplracaoou pelo menos atraente mottvacao.

Ademais, a ideologia igualmente contem sensa comum, de talforma que nao podemos postular reqloes estanques. 0 que postulamose a predominancla decerto conteudo em certa reqlao, A clencla contem

sensa comum, bern como ideologia, e esta contem aquele e vive-versa.No fundo, trata-se de algo tiplco de qualquer conceito social; temosrazoavel certeza de seu miolo, mas nao sabemos bem onde comecae onde acaba.

Enfim, se conseguimos alguma dellmltacao daqui lo que ronda aclencla, mas nao e clencla, poderfamos fazer 0 esforco por cercaraqullo que poderfamos qualificar de cientffieo. Para comecarrnos estadtscussao lnterrnlnavel por deftnlcao, poderfamos vislumbrar 0 quese faz na universidade, ou 0 que faz um professor, ou mais propria-mente um cientista, para que acreditemos que sua a980 se qualifiquecomo cientffica. De urn lado, aparece uma atividade cercada de certosrigores de comportamento. 0 cientista procura tratar seu objeto

33

 

Page 19: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 19/62

dentro de certos rituais reconhecidos como importantes, de modo

geral: evita a credulidade, assume atitude distanciada, cita autores,

usa uma linguagem estereotipada, quase urn dialeto, busca definir

os termos da forma mais precisa possfvel, emprega tecnlcas complexas

de quantlftcacao, confia apenas em testes rigorosos, e assim por diante.

Pratica-se uma forma de treinamento voltada para conseguir dos alu-

nos uma vtsao critica da realidade, uma atitude mais objetiva, urn

dominio de autores e teorlas, uma producao argumentativa insistente,

e assim por diante. Ha, assim, urn rol de cuidados especfflcos, que,

uma vez seguidos, parecem produzir 0 resultado imaginado, a saber,

a clencla.

Tais cuidados poderiam ser categorizados em cri terios internos e

externos de cientificidade. Os primeiros decorrem da propria obra

cienti fica, na qualidade de cartecteristica intrinseca. Os segundos

decorrem da optniao sobre ela, na qualidade de caracterlstlca extrln-

seca, ou atrlbuida de fora.

Entre os crlterlos internos, distinguimos dois principais, mais I i-

gados a forma, e outros dois, mais ligados ao conteudo. 0 crlterlo

formal mais amplamente reconhecido e 0 da coerencie. Nao pode

haver obra cientif ica que seja incoerente, entendendo-se a coerencla

como crlterto propriamente 16gico formal.'

A loqlca e uma parte central da teorla do conhecimento e refere-

se a caracterfstica de uma montagem teorlca sem contradlcoes. Loqlco

e aqullo desdobrado sem tropecos, com corneco, meio e fim, ordenado,

construldo dentro de urn planejamento racional, onde as partes estao

em seu devido lugar, deduzido de tal sorte que a conclusao nao contra-

diz 0 ponto de partlda, e assim por diante.

A expressao mais Ifmpida da loqica e a matematica, que assim

pode ser, porque e estritamente formal. E pura forma. Uma reta nao

tern conteudo e por isto e exata. Em clenclas soclats nao temos feno-

menos deste tipo, mas a loqica e apllcavel como deducao teorica

sem contradicoes. Uma teoria pode ser definida como urn conjunto

loqlco de enunciados, articulado, concatenado, ordenado, amarrado,

sistematizado. Nao se aceita como cientffica a teoria, onde podemos

encontrar enunciados contradltorlos. desordem interna de idelas e

concepcoes, conceitos mal definidos e usados em sentidos diferentes

no mesmo texto, ou ate mesmo em sentido contraditorio. conclusoes

nao dedutiveis do corpo anterior.

E, por exemplo, contraditorlo 0 positivismo de Comte, porque

propoe a superacao da fase religiosa da humanidade, mas terrnlna

produzindo nova forma de religiao. E contraditorla uma crltlca sem

autocritica, porque nao aplica a si 0 que imagina dever apllcar nos

outros. ~ contradltorlo defender para 0 filho liberdade sexual, enquanto

para a fllha se defende 0 contrarlo, ja que para a pratlca da l iberdade

sexual ,~asculina e.mis.ter a filha que a isto se preste. E contraditorio

urn polit ico construlr ~ imaqem de paladino da justlca social, enquanto

em sua.f~zenda mantem trabalhadores sem terra em regime de semi--escravldao, •

T,rata-se de urn ~ri~erio formal, porque, por exemplo, uma ideologia

tamb,em pode ser loqlca. Dado0

ponto de partida, nao discutido, eposslvel desdobrar logicamente todos os outros enunciados, obtendo-

s~ .uma co~clu~~o nao contradltorla. A teoria do racismo pode ser

log~ca. Se~a rejeltada por raz6es de conteudo, do ponto de partida,

da ldeoloqla, mas pode ser lnatacavel do ponto de vista loqlco. Assim

ser uma teoria loqica nao e tudo, embora constitua uma caracterfstic~importante.

. Ao mesmo tempo, refere-se ao trace desejavel de ordenamento

mterno das partes, ou seja, de slsternatlzacao. Urn objeto qualquer,

para ser captado, precisa num primeiro momenta ser sistematizado.

Ele apresenta-se, de modo geral, complexo, perdido em meio a lml-

meras facetas .des~acav~is, com contornos imprecisos. Urn dos primei-

ros atos do clentlsta e colocar alguma ordem nas ldelas, formular

cate~orias .d~scr!ti~as ~ue cir~u.ndem 0 objeto, dividir em partes. E

precrso deflnlr, distlnqulr, clasalf lcar, opor etc. Sao todas atividades dalogica, fundamentais para que 0 objeto apareca com horizonte claro.

Assim, sao tarefas baslcas para se construir clencla:

a) def in ir os t~rmos com preclsao, para nao deixar margem Ii ambtqutdade:

ca~a concerto deve t~r u rn con teudo especff ico e del imi tado; nao pod~va~lar durante a.analise: ,e-:nboraum,a dose de tmprectsao seja normal,? , Ideal a reduzl-la ao rnmrmo possfvel, produzindo 0 fenOmeno dese-Javel da clareza de expostcso:

b) d:screver e. explicar. com transparencla, nao incorrendo em compllca-c;:oe~,ou ,seJ~, em !mg~a.gem herrnet lca, dura, ininteligfvel; para bernexphcar e mister s lmp ll flca r, mas a preciso tambern buscar 0 meto--terrno entre excessiva slmpllf lcacao e excessiva compltcacao:

c) d is tlnqul r <_ :omr igor facetas dive rsas, nao emaranhar te rmos c larearsuperpoSIc;:oes ~ossfveis, fugir Ii mistura de pianos da rea lid~de; nao

carr em confu~~o, n? ~entido de confundi r uma colsa com outra, deo~sc~recer resioes dlstlntas no mesmo objeto, de trocar termos desta-cavers:

d) pr~curar c lass lf tcaedes nf tidas, bern s ls temat lcas, de ta l sor te que 0

objeto aparec;:arecortado sem perder muito de sua riqueza·

e) impor certa ordem no tratamento do tema, de tal modo que sela claro

o co~~.c;:o.ou.0 pon~o.de partida, a const ltulcao do corpo do trabalho, ea sequencia lnconsuttl das conclusdas,

A coerencla apllca-ss tarnbem a pratlca. Sera incoerente 0 pro-

f:ssor que.constro.1 em.sala de aula uma postura revoluclonarla, mas

nao a pratica ~o dla.-a:dla. E coerente 0 pal que acredita dever evitar

toda forma de rmposrcao na educacao e jamais bate no fllho, Ecoerente

3. K. Lambert e G. G. Brittan. tm ro du cso " Filosof/a da Ciencia (Cultrlx. 1972); R. M.Chrlsholm.Teoria do Conhecimento (Zahar. 1974); J. Hessen. Teorla do Conhecimento (Amertco Amado. 1968);H. Reichenbach. La Fllosofla Clentiflca (Fondo de Culture Econ6mlca. 1967).

34 35

 

Page 20: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 20/62

36

a mesma coisa que ja estava no sujeito. Por exemplo, a arte e bela."~ bela" ja faz parte do conceito de arte e por isto nada acrescenta.

~ repeti tiva, redundante, pleonastlca.

Ligada ao conteudo, a originalidade e urn crlterlo de grande rele-

vancla, sobretudo em cienclas sociais, onde, sob a avalancha ores-

cente de trabalhos ditos cientificos, sobretudo com a pos-oraduacaoque obriga a redacao de teses, esta ficando cada vez rna is dificil pro-

duzir coisas novas. Se na o atentarmos para isto, caimos facilmente

na copla, na lrnitacao, no parasitismo, sem falar no plaqlo,

Significa a necessidade de levar a clencla para frente, de a re-

novar constantemente, de recuperar interminavelmente a criatividade,

de explorar todas as potencialidades imaginaveis, de inventar alter-

nativas onde menos se espera. Em meio a tanta dlscussao chocha,a polemlcas estereis, a anallses pedestres, e essencial conclamar a

originalidade, para nao institucionalizarmos a mediocridade de quem

somente faz exercicios academlcos, pesquisas para treinamento, sl-

rnulacoes de trabalhos.

Faz parte central da formacao do aluno, se voltarmos a recolocar

a pesquisa como atividade baslca da vida acadernica. 0 born aluno nao

e aquele que repete bern, que apenas segue 0 professor, 0 born leitor,mas aquele que aprende a andar com os proprlos pes, que se eleva

ao nivel de construtor da clencla. Tarnbern faz parte central da forma-c;:aodo professor, porquanto, se na o produz originalmente sua propria

postura de cientista, nada tern a ensinar. Talvez se' possa dizer que a

grande maioria dos professores e mera transmissora de conhecimento

alhelo, No fundo, elegantes paras itas.

Para nos fixarmos num termo importante, a originalidade, quando

ligada ao conteudo da clenc la, significa principal mente produtividade,

capacidade de construir autonomamente clencla, contrlbulcao a seu

progresso, lnvencao de alternativas. Nao cai do ceu por descuido.

Nem e realista imaginar que 0 cientista criativo e aquele que sabe

sem estudar. Sera assim que parte pode ser "Insplracao", mas grande

parte sera "transplracao ". De modo geral, nlnquern e original sem

arduo estudo da discipl ina, sem apllcacao profunda, sem conhecimento

prevlo acumulado. Estamos, na verdade, a procura do genio criador.Talvez seja para a Sociologia alquern como Marx, para a Psicologia

alquern como Freud, para a Educacao alquern como Piaget, e assim

por diante. ~ preciso superar a monotonia da repetlcao parasltarla, ~

preciso conclamar 0 espirito critico. ~ preciso fomentar 0 comporta-

mento contestador. Se as clenclas sociais sao urn processo intermi-

navel, inquieto e produtivo, a originalidade deve ser marca profunda.

o segundo crlterlo nao formal interno e a obletiveciio, entendida

aqui como 0 esforco de ser objetivo. Desde logo aceitamos que naopodemos ser objetivos, porque a ideologia esta, em clenclas socials.no amago do sujeito e do objeto. Embora seja esta a razao principal,

37

a pessoa que, imaginando nao poder viver sem neurose. racionaliza

a preferencla por alguma que Ihe seja inspiradora.

o segundo crlterio formal interno e a consistencie. Na verdade

e menos formal que 0 primeiro, mas predomina nele ainda 0 aspecto

formal. De certa maneira, podemos defini-Ia como capacidade de re-

sistir a contra-argumentos. ~ consistente aquilo que nao rui, que e

compacto, que e resistente.

Das obras ditas cientificas produzidas em determinado espaco e

tempo, a grande maioria vai empoeirar-se nas prateleiras. Embora istopossa acontecer por outras razoes tarnbem, podemos admitir que ge-ralmente acontece porque a maioria das obras nao possui a necessaria

consistencla, nao resistindo a critica. Assim, se lemos ainda hoje

Arlstoteles, Platao, Maquiavel, e porque vemos em suas obras algo

que conseguiu sobrepor-se a erosao do tempo. Nao sao mais atuals,

Reconhecemos ate mesmo erros. Mas continuam importantes. Tal im-

portancla nem sempre esta ligada a crlterlos formais; por vezes esta

ligada a crlterlos sociais. Mas nao podemos negar excelencla clentl-

fica baseada tambern em crlterlos de ordem formal.

A lrnportancia atribuida a uma obra ou a urn autor pode estar ba-

seada em razoes sociais, por exemplo, de coincidir com a ideologia

do grupo, de ser promovida pelos dominantes, de fazer parte de certo

dogmatismo vigente no momento, e assim por diante. Muitas obrasimportantes foram assim reconhecidas somente depots, como foi 0

caso de Galileu, de Maquiavel etc.

Todavia lsto nao desmerece 0 fato comum de que a grande maio-

ria das obra~ acaba na poeira das estantes e nao volta a ser perceblda,

pelo menos de forma relevante. A consistencia 'pod~: assim, rsvestlr

a caracteristica de profundidade que toda obra ctantlflca deve ter. Em

contrapartlda, e superficial aquela obra que. nao ~e escuda ~m argu-mentos solldos. que nao apresenta uma tessltura flrme, que nao desce

a int imidade do fenomeno, que nao demonstra suf iciente conh~cimento

de causa, que lqnora as teorias ja existentes, que ~es??nsldera. as

dlscuasoes havidas e atuais. Conhecer bern urn tema slqnlflca dommar

com a necessaria profundidade as axpllcacoea ~x~stentes so~re el~,

no passado e no presente, e sobret~do saber expllc~-Io com ,melos .p~o-prios melhor que outras explicac;:oes. Tal conhecimento e condlcao

bas ic'a de aprofundamento no tema, distiguindo facilmente ~ autor~ de

anallses simplificadas, de voos rapldos e dispersos, de .dlscussoes

gerais e soltas, daquele que ataca os problemas com senedad~, por

todos os angulos possiveis, disseca os termos e penetra no amago

da questao.

o primeiro criterlo nao formal interno e a originalidade: ~ode cer-

tamente haver originalidade na forma, mas a usamos aqui IIga~a aoconteudo. Quando ligada a forma, exprime sobretudo a superacao da

tautologia. que significa fazer urn enunciado, no qual 0 predicado diz

 

Page 21: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 21/62

ainda ha aquela ligada a complexidade do objeto, malor que nossas

simplifical;:oes explicativas.

Na verdade, e 0 crlterlo mais importante interno. In~e~essa a

clencla captar a realidade assim cO,mo ela e. ~ao se pod~ eriqrr como

para metro qualquer coisa ligada a ~eturpa~ao d,a. reahdade. ,~esteponto de vista, nao interessa 0 conhecimento ldeolcqlco seq,uer a Ideo-

logia, porquanto, para atingir os fins da. ide~logia, e prefenvel aquele

conhecimento que traduz a realidade Hdedlqnamente. A melhor rna-

neira de "deturpar" a realidade sera conhece-I~ b~m. ': mel~or formade a manipular em favor dos interesses propnos e domlnar com

perfeicao.

Ao aceitarmos que a ciencia convive com. a ideolo~ia e 9ue. naopode propor-se elirnlna- ia. nao e.stamos .sac~~h~ando a_Inva~ao Ide?·

logica. Na clencla deve predommar a c lentlftcldade, ~ao a Id~ologl-

zacao. Nao faz sentido chamar de mal necess~r1o aq~1I0 que .e part?

integrante. Mas e meta da clencla control~r a Ideologl.a. Conviver en-

ticamente com ela nao significa favorece-Ia, e!1cobn-la: m~~ certa-mente reduzl-la, desmascara-la para que no fenomeno clentlflco pre-

domine cada vez mais a clencla.

A maioria dos cuidados metodoloulcoe visa a obje!ival;:~o. Usa-

mos este termo, em vez de objetividade, porque est~ nao ~xlste em

clenclas sociais . Objetlvacao significa 0 processo macabavel, rna,snecessarlo, de depuracso tdeoloqlca da ciencia, na busca de uma an~-

lise que seja a rnals realista posslvel. 0 fato .de que nenhu~a teonaesgota a realidade nao pode produzir 0 .conf~rmlsmo, m~s preclsamente

o contrarlo: 0 compromisso de aproxlmal;:oes sucessrvas crescentes.

Se nao conseguimos dominar todas as facetas da realidade,

temos que reconhecer que a pesquisa, ao mesmo tempo que descobre

a realidade, tambern a encobre, naquilo que nao toma em conta. V~r

o homem apenas psicologicamente, ou economicamente, talv~z seja

uma sina da aspeclallzacao, mas e sem duvlda uma deturpacao tam-

bern. Assim, quem se imagina objetivo, na verdade ~n?obr~ suas .d~-

turpacoes. objettvacao. vista como proces~o necessano ? mtermma-vel de busca da objetividade, e maneira mars madura e crltlca de r~s-

peitar uma realidade que nos sobrepassa a cap.acidade de captacao.ao mesmo tempo que levanta sempre a desconflanca contra a peque-

nez de nossa vlsao.

No entanto, a objetlvacao volta-se sobretudo contra a excessiv~

tdeoloqlzacao em clenclas sociais. Muito facilmente surgem vsrdadel-

ras seitas, grupos que nao admitem crlt lcas. escolas fechad~s, e~purgAo

de oponentes, crendices fanatlcas, e assim por diante. Nao ha feno-

rneno mais degradante, em clencia, do que 0 discfpulo. Este adultera

o mestre, porque geralmente e "rnais catolico ~ue 0 papa". ~o.me.nterepete, parasita, transmite, transformando aquilo que e materia me-

vltavel de dtscussao, em materia de te o

38

Embora uma ideologia possa igualmente ser uma bela lnsptraeao,

quando mantida como tal, reconhecida e criticada, na maioria dos casos

tende a predominar, reduzindo a ciencla a instrumento de justificaC;ao

das poslcoes sociais em questao. Nada emperra tanto 0 progresso

cientff ico quanto 0 fanatismo ldeoloqico. Nem a ignorancia e tao prejtJ-

dlclal, 0 surgimento de urn nurnero elevado de tecnlcas de coleta e

rnensuracao do dado, bem como 0 usa de testes estatfsticos foram

motlvados pelo desejo de maior objetlvacao em clenclas socia is, par-

tlndo-se do ponto de vista de que muitas anallses sao excessivamentesubjetivistas, especulativas, aereas, que falam de coisas irreais, lma-

qlnarlas ou tao distantes, que nao pareceriam ser deste mundo.

Chegou-se ao extremo de reduzir as clenclas sociais as dlmensoes

observavels da realidade. Isto e urn exagero larnentavel, mas entende-se que tenha surgido, como res posta ao erro oposto. Entretanto, a

formacao cientffica e em grande parte a formacao do compromisso

com a objetlvacao.

Se observarmos alguns cuidados rnetodoloqlcos comuns, flcara

claro como se ligam ao compromisso com a objetlvacao:

a) espirlto crlttco, s ignif icando a postura que da primaz ia a contestaeaodos pretensos resul tados cientif icos, sobre sua consolldacao: no fundo,nao acredita em consolldacao, mas na necessidade de constante supe-ral;ao;

b) rigor no tratamento do objeto, signi ficando sobretudo a necessidade dedef in ir bern, d is tingui r cu idadosamente, s is temat izar com detalhe efineza;

c) trabalho sine I ra et studio, signi fi cando a atitude dis tanciada, na pro-cura de nao se deixar envolver em excesso por aqui lo que gostar iamosque fosse, em detrimento daqutlo que de fato e;

d) profundidade de analise, signi ficando a recusa de deter-se na superficiedas coisas, na vtsao imediata, na ingenuidade da lnformacao primeira;

e) ordem na exposlcao, signi ficando a montagem concatenada, arrumada,clara da pesquisa e da analise;

f) dedicar;iio a clsncla, tomada como vocar;iio, ou seja, fei ta com convlccaointima, com prazer, com realizal;ao pessoal;

g) aber tura incondicional ao tes te elhelo, a fim de superar colocacoessubjetivistas. etereaa ou excessivamente gerais, que nao conseguemser reproduzidas pelos colegas;

h) assidua leiture dos class/cos. para conhecimento aprofundado de comoviram a realidade e ate que ponto foram capazes de objet lvacao:

i ) dedlcacao ao estudo das principais teorias, metodologias e da producaoatual , com vistas ao pos ic ionamento inte ligente dentro da dtscussao eao amadurecimento de uma personalidade pr6pria cientifica.

Ao lade desses crlterios temos ainda os externos, destacando-

se 0 da intersubjetividade. Significa a oplnlao dominante em deter-

minado assunto ou sobre certa obra ou autor. E urn crlterlo externo,

porque se forma em torno da questao, extrinsecamente, nao a partirde caracterfstica interna.

A intersubjetividade marca a presence tfpica dos condicionamen-tos sociais nas clenclas sociais. Do ponto de vista epistemol6gico e

39

 

Page 22: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 22/62

formal. nunca seria argumento. Em si, uma obra cientifica deveria ser

avaliada somente por crltertos internos. Em outros termos, deveriamosadotar somente a crltlca interna, ou seja, aquela baseada nos crlterlos

internos, al icerc;:ada na qual idade interna dela, nao na oplnlao externa.

Todavia, ensina a sociologia do conhecimento que a clencla tern

tarnbern seu debito social. Este se manifesta em grande limpidez

atraves da oplnlao dominante cientifica. Assim, uma obra e cons ide-

rada cientifica muitas vezes a revelia dos crlterlos internos, apenas

porque satisfaz a expectativa ldeoloqica ou coloca-se como susten-tacao da opinlao dominante.

Principal mente em clencias socials. que sao marcadas pela ideo-

logia de forma intrfnseca, a vlqencla da opiniao dominante e um fato

marcante. Aparece sob muitas formas:

a) a feitura de uma tese de mestrado ou doutorado t raduz sempre a ques-tao do orientador, que estabelece entr e ele e 0 candidato um relacio-namento de poder; por mais que ambos os lados se comprometam coma objetlvacao, f ica sempre pelo menos algo de relacionamento desigual;

b) a formacao dos alunos e um processo de soclallzacao, no qual emergeinevi tavelmente, ao lade de possfvels argumentos , a pos lcao pr ivi le-giada do mestre; dif ic ilmente alquern defenderia que 0 fenomeno daatrlbulcao de uma nota para um trabalho dado nao esta exposto itlncursao subjetivista e tendenciosa;

c ) a publlcacao de l ivros e art igos sofre uma selecao orientada. de acordocom a ideologia da editora ou da revis ta;

d) cada depar tamento tende a depurar -se de acordo com tendenclas ideo-16gicas dominantes; onde predominam professores com formacao ame-ricana, ensina-se a la americana, geralmente com forte dose de quanti-flcacao: em outros ambientes, tambern extremados, ja se ve empirismona simples montagem de uma tabela;

e) em determinado ambiente social forma-se preferencialmente um tipo deortentacao cientif ica. por vezes influenciado pelo momento hist6rico;assim, predomina no Tercei ro Mundo uma sociologla de avanguarda,porque busca superar 0 subdesenvolvimento ou com ele preocupa-se;no mundo avanc;:adoencontra-se uma sociologia mais de estilo funcio-nal ista e slsternlco, no fundo favoravel i t manutencao dos prlvl leqlos:

f) por vezes certas posturas tornam-se moda compelente, como talvez seta

o caso de muitos ambientes de sociologia brasileira, onde a adesso peiomenos externa ao marxismo ja vale como atestado de lntellqencla: em

outros lugares pode valer como atestado de ignorancia.

A intersubjetividade cobre, assim, uma serle de fenornenos im-

portantes. a mais destacado certamente e 0 argumento de autoridade,que traduz com muita propriedade a questao do debito social da

clencla, A autoridade, em si, nao e argumento algum. Um enunciado

nao pode ser cientfflco por causa da boca que 0 pronuncia. Todavia,

sabemos que a Irnportancla atribufda a certas teorias esta multo mais

em funcao de seus donos do que de crlterios internos de cientificidade.

E neste sentido que muitos abusam de citeciies de autores que ima-ginam celebres e capazes de ajudar a convencer 0 leitor. Na verdade,

a cltacao e importante no sentido de permitir ao leitor refazer critica-

40

mente 0 roteiro de construcao cientifica seguido pelo autor, ou de

facilitar a cobertura do tema de varies anqulos, ou de explorar poten-

cialidades outras em autores geralmente vistos em uma direcao janotorta . e assim por diante. A citacao nao e autoridade, porquanto esomente instrumental. Um trabalho sem cltacao pode ser tao cleetl-

fico quanto outro abarrotado delas. Um trabalho sem cltacao e apenas

mais pobre em referencla a dlscussao circundante do tema.

A maioria, porem, dos autores esconde-se atras das cltacoes, pro-

curando uma protecao que temem nao poder transmitir por proprlas

palavras. Recaem no argumento de autoridade, que, embora sendo

talvez 0 mais vigente, e tambern 0 que menos comprova. Nao se podeconfundir argumento de autoridade com autoridade do argumento, ou

seja, muitos autores sao considerados autoridade porque dlspoern de

fa to de uma obra cientffica. Sua citacao faz sentido, porque se recorrea alquem que na respectiva ternatica mostrou arqurnentacao respel-

ravel.

Isto quer dizer que os crlterlos internos deveriam predominar e,

no limite, decidir; mas nao podemos fechar os olhos para os externos,nao so porque de fato predominam, mas sobretudo porque fazem parte

real do processo cientifico. Nao leva-los em conta e pelo menos ca-

muf lar sua vigencia.

Outro fenomeno importante dentro da intersubjetividade e aoplniso dominante, que rea Imente influencia a producao cientifica.

Um dos fatos mais transparentes da construcao cientifica sao as dl-

verqsnclas de escolas. Embora elas produzam lqualmente consensos,

ate mesmo porque se comunicam e se entendem, e se identificam

como pertencentes ao mesmo fenorneno fundamental, nao consequi-

riam esconder as disparidades. Em cada escola surge uma linha domi-

nante, que passa a caracterlza-la e muitas vezes a constituir seu atra-

tivo especifico. Uma escola com personalidade propria nao e somenteaquela capaz de realizar bem criterics internos, mas igualmente aquela

que consolida capacidade propria de tnfluencla. de conv~ncim~nto: d~lideranc;:a. Por mais que uma escola possa tornar-se obstaculo a crlatl-

vidade, quando se torna igrejinha particular e fechada, ~ tarnbern um

fenorneno normal em clencla e pode chegar a inspirac;:ao fecunda.

Outro fenorneno da intersubjetividade e a compereciio criticaentre teorias, autores, escolas. Na verdade, a crltlca preferencial e

a interna, aquela que critica a partir da propria obra, que busca pene-

trar dentro da casa alheia, que a contesta por defeitos que se en con-

tram nela mesma, nao a crftica externa, aquela que parte de umaposlcao ldeoloqlca diversa. Todavla, esta geralmente predomina, e se

nao for unilateralizada, pode ter seus merltos,

a grande problema esta em que, sendo 0 ponto de partida ideo-

loqlco diverso, e proprio da ideologia torcer a seu favor, diminuindomuito a possibilidade - que deveria ser real - de mudar de posiC;~O.

41

 

Page 23: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 23/62

Assim, uma crftica ideol6gica, para ser coerente, deve entender-se

ideol6gica, e jamais imaginar que conseguimos criticar uma ideologia

adversa de forma isenta. Se alquern e ideologicamente contra 0 freu-dismo, dificilmente delxara de chegar a conclusao de que 0 freudismee uma postura errada. Por mais que se esforce em adotar atitude obje-

tivante, nao seria ideol6gico se nao propendesse a justificar sua

propria poslcao,

uma proposta entre outras sernpre .possiveis. Apresentamos nada

mais que uma forma de se ver ciencia, aceltavel na medida de sua

fundarnentacao.

Ternes dois extremos principais a serem evitados. De um lado, 0

dogmatismo, que faz da clencla mero instrumento de justificacao

ideoloqlca. E um mundo fechado, onde nao faz sentido a discussao

critica, a criatividade, a originalidade, a alternativa explicativa. E a me-

diocridade do bando de discipulos, meramente reprodutores e forte-

mente inspirados pela condenacao facll de quem tenha ldeias diferen-

tes. Para eles, ideologia e simplesmente a opiniao do outro!

.Do lado oposto, aparece 0 relativismo metodol6gico que procura

fundar sua validade declarando todas as poslcoes validas. Assim como

o dogmatismo e um fen6meno e um perigo concretos, 0 relativismo

tarnbem 0 e . Confunde-se com 0 ecletismo, que significa a falta de

posicao rnetodoloqlca elaborada, ou seja, 0 parasit ismo sobre posicoes

ja encontradas, nao discutidas e mecanicamente assumidas e con-

fundidas. Nao e 0 caso do ecletico que ajunta elementos de varias

poslcoes. mas elabor:a uma poslcao identiftcavel: ai nao ha falta de

posicao (0 que nao deixa de ser uma pessirna poslcao), mas uma

posicao especifica.

orelativismo pode ser facilmente motivado pelo fato de que as

dlverqencias sao em ultima lnstancia Insuperaveis: nao e tmaqlnavel

um consenso universal, a nao ser por dogmatismo. A partir dai caimos

no extremo oposto. Se nao existe a evldencia, tudo e valido. Gada um

propoe 0 que quiser, defende 0 que deseja, constrol a vohtade. Naose toma conhecimento da critica alheia, porque cada um esta ..na sua".

No entanto, 0 relativismo e contradit6rio, porque nao se pode

afirmar que tudo e relativo. Esta aflrrnacao [a nao seria relativa. Por

outra, nao e sustentavel a ideia de que uma posicao seja apenas

individual. 0 proprio fen6meno social, que significa inevitavel inte-

racao e mutuo condicionamento, coibe a posicao puramente subjetiva

e individual. 0 que existe na realidade e a opiniao dominante que,

embora tenha suas faces indesejaveis, leva a produzir consensos,

aceltacoes relativas, convencimentos impostos, e assim por diante.

Aquela sltuacao estereotipada, na qual cada um pensa a seu talante,

e um contra-senso social, porque suporia um contexte nao socializado.

A vida social e condicionada, quer dizer, valem menos lntencoes

particulares, consciencias subjetivas, veleidades intimas do que con-

dicionamentos objetivos. Estes nos moldam, produzindo lnevltavels

consensos, opinioes dominantes, verdades comuns, que cofbem rela-

tivizacees extremas.

E certamente possivel imaginarmos excesso de diverqencla, bem

como excesso de consenso. Ambos sao prejudiciais a ciencia. No

primeiro caso, porque a dlverqencla se torna fim de si mesma. No se-

gundo, porque nao existe criatividade.

2.3. OS LlMITES DA DEMARCACAO CIENTrFICA

Podemos fazer 0 exercfcio de autocritica sobre a dernarcacao

que acabamos de apresentar. Sera aceltavel? E muito frouxa? 0 que

ganhamos com ela?

Emprimeiro lugar, e preciso atentar para 0 fato inarredavel de que

nao podemos jamais concluir esta dlscussao. Quando falamos de

crlterlos de cientificidade, estamos supondo que temos em nossa

frente um conceito nao evidente e que necessita de deflnicao, comoe 0 conceito de clencla. Apresentemos, entao, um criterlo de deflnlcao

que consiga dizer 0 que 0 conceito e , 0 que nao e. como se delimita,

qual e seu contexto de vigencia. Tomemos 0 crlter io de coerencla.Dissemos que e um dos crlterlos, que e formal, que e interno etc.

No entanto, notamos logo que 0 conceito de coerencla tarnbern

nao e evidente. Precisamos defini- Io igualmente. E 0 fizemos apelando

para sua caracterfstica 16gica de falta de contradlcao. Mas surge

imediatamente a constatacao de que nem 16gica, nem contradicao

sao concei tos evidentes. Precisamos, de novo, defini -Ios.

Ora, de que se trata? Trata-se de uma reqressao ao infinito, como

dizem os 16gicos, 0 que coincide com a ldeia de uma discussao inter-

rnlnavel. Se nao admitimos evldenclas, ou seja, coisas que se im-

poem como definidas de anternao, absolutamente claras para todos:

supomos que se apresentam de forma indistinta, discutivel, nao

evidente. Gada termo tera que ser definido por um novo termo, e

assim indefinidamente.

A dlscussao nao pode ser natural mente suprimida. 0 que fazemose interrompe-la a certa altura, por convenlencla externa, nunca por

exaustividade interna. Interrompemos, seja porque cansamos de dlscu-

tir, seja porque perdemos 0 fio da meada, seja porque 0 contexte

chega a nos satisfazer, seja porque combinamos interromper. Tudo

isso e convenlencia externa, da qual nao escapamos. Assim, a primeira

conclusao a ser colhida e a de que a dernarcacao cientifica tem valor

certamente relat ivo; e 0 caso tlpico de uma dlscussao, ou seja, de

algo por definlcao dlscutlvel .

Em segundo lugar, a demarcacao cientifica das clenclas sociais,

mantendo-se coerente com 0 ponto de partida, ha de aceitar que e

42 43

 

Page 24: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 24/62

Assim, 0 fato de nao conseguirmos concluir terminantemente

uma dlscussao nao a torna relativista; apenas precisamos reconhecer

as lneqavels convenlenclas sociais e os limites de nossas virtudesloqlcas,

Em terceiro lugar, a labilidade da dernarcacao cientifica aqui feita

nao e propriamente um defeito, mas uma propriedade dlaletlca, se-

gundo a qual, se a clencia e processo, esta sempre se fazendo. Nao

podemos construir poslcao definitiva. Mais que salvar teorias, propo-

mo-nos a supera-las,

Se tomamos as clenclas exatas e naturais como pararnetro cien-

tifico, tal situacao pode parecer lndesejavel e provocar um sentimento

de frustracao. Incomoda muita gente ouvir que em clencla social

nada esta definitivamente comprovado; nem esta aflrrnacao. Pode ser

levada ao exagero, pode ser banalizada, como sempre. Mas pode ser

tambern a fonte da criatividade perene. Talvez as clenclas naturais

amadurec;:am e pleiteiem poslcoes cada vez mais consensuais. As

clenclas sociais, por sua vez, tornam-se cada vez mais jovens! Ama-

durecer para elas e transformar-se na historla. trazer alternativas,

comec;:ar de novo, inventar.

Nao serve isto como fundarnentacao para que desprezemos 0

rigor loqico e 0 trabalho ordenado. Se e verdade que os conceitossociais sao sempre tarnbern imprecisos - vemos melhor seu miolo,

mas nao sabemos bem onde comec;:am, nem onde acabam -, pelo

menos comparando com 0 conceito de agua, isto e apenas um repto

a mais em favor da objetlvacao. Nao e uma vantagem 0 fato de que a

maioria das discuss6es sociais e confusa, digressiva, prolixa, indis-

tinta, lnterrninavel, cansativa etc. Pelo contrarlo, e falta de nivel

cientifico.

Nossa poslcao sup6e dose acentuada de autocrftica. Trata-se de

uma ascese fundamental. Fazer clencia aberta a dlscussao. que procure

mais a descoberta da realidade do que sua defesa ldeoloqica, e con-quista ardua, e modestia convicta, e sabedoria profunda.

Ao mesmo tempo, parece-nos que a labilidade tipica da dernar-cacao cientifica mostra nao valer a pena imitar mecanicamente as

outras c lenclas . Vale a pena certamente aprender delas procedimen-

tos que preservem a objetivacao, para que coloquemos a descoberta

da realidade acima de tudo. Bem usada, a experlrnentacao empirica

e salutar. 0 teste estatistico de nossas hipoteses pode contribuir

para 0 nivel clentlflcos Mas nao faz sentido reduzir tudo a base fisica

e formal. Em termos estritos, nao se consegue medir bem 0 fenorneno

da normalidade psiquica. Qualquer rnensuracao sera indireta. No

entanto, 0 fenorneno nao e menos importante por causa disto, nem

se deve atirar ao mar 0 esforc;:o de mensurar quando somente apll-

cavel de modo indireto.

Isto parece ser um componente fundamental da realidade social:

estamos cercados, no dia-a-dia, de noc;:6es que, se fossemos invecti-

vados a def inir , 0 fariamos com grande dificuldade. Por exemplo, 0

que e alegria? Beallzacao pessoal e social? Satlsfacao das necessi-dades basicas? Direito humano fundamental? Hellqlao? Um bom ca-

samento?

Podemos usar certo conceito de forma aparentemente muito con-

sensual, e de repente descobrir um total equivoco. Talvez seja muito

consensual que as novelas de televlsao sao uma forma moderna emuito atraente de dlversao, Bem pensando, todavia, podemos des-

cobrir que exercem sobre nos uma tlranla impressionante, no senti do

de emitirem influencias ldeoloqlcas contestavels. A partir daf, 0 que

era dlversao natural e inquestionada passa a ser fonte de grande

preocupacao, porque podemos imaginar que nossos filhos sejam, por

exemplo, excessivamente manipulados por elas.

Da mesma forma, nenhum cientista social e capaz de garantir

matematicamente a vltorla de um deputado nas urnas. Por mais que

seja perito em estatfstica e em pesquisa empfrica, sabe que sua

prevlsao e probabilfstica, nao matematica em sentido estrito. A pro-

messa da certeza e a coisa mais incerta das clenclas sociais. Em vez

de camuflar a labilidade, e preferfvel enfrenta-la criticamente e

dela partir.

2.4. 0 OBJETO CONSTRUrOO

Dizemos que a ciencia trabalha com um objeto construido. Nao

trabalha com objetos ..dados", puros. Esta poslcao sup6e, certamente,

uma vlsao especifica do que entendemos por clencia, como fizemos

acima. Dentro dela, parece-nos coerente falarmos em objeto construido

como resultado da l ide clentlf lca. '

A ldela de objeto construfdo significa, num primeiro momento,

que nao trabalhamos com a realidade, pura e simplesmente, de forma

imediata e direta, mas com a realidade assim como a conseguimos

ver e captar. Temos da realidade uma visao mediada, ou seja, mediata.Vemos a partir de um ponto de vista. 0 problema do ponto de partida

significa que nao partimos sem ponto. Este ponto coloca um infcio

sempre problematizavel, porque esta amerce tarnbem de condicio-

namentos externos, de ordem temporal e espacial, que explicam, entre

outras coisas, as dlverqenclas de escolas e autores.

o cientista nao e somente um fenomeno loqlco e formal. E igual-

mente um fen6meno social. Quer dizer, nao consegue fazer ciencia

social sem lrnlsculcao ldeoloqlca, embora possa controla-la por vezes

4. P. l.Berger. A construcso Social da Realidade (Vozes, 1973).

44 45

 

Page 25: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 25/62

de forma bastante eficiente. Nao capta propriamente a realidade assim

como ela a, mas como ave.

Na verdade, nao captamos a realidade, mas a interpretamos.

Interpretar significa aceitar que ~a analise do fen6me~0 aparecem

elementos que sao menos do fenomeno do que do anallsta ..A~arece

a marca do cientista. Os fatos, que muitas vezes julgamos objetlvos e

na verdade 0 sao, porque acontecem apesar de nossas ideologias,

nao se impoem ao sujeito, como se fossem evidentes em si. Basta

observarmos que 0 mesmo fato pode ser visto de modos diferentes

por cientistas diferentes. Por ex.em_p~o,a queda d.e crescimento dopais em determinado momento htstorlco pode ser lnterpretada estru-

turalmente como indicador de inviabilidade econornlca, bem como

conjunturalmente como dificuldade passageira, ou ate mes~o cO'_!lo

sltuacao desejavel, tendo em vista, por exemplo, 0 controle da tn f lacao.

o dado nao fala por si, mas pela boca de uma lnterpretacao.

Quando 0 julgamos evidente, nao 0 a por si, mas por_que .cai n,at~ral-

mente na malha de nossa interpreta<;:ao que, por razoes ldsoloqlcas.

ju lgamos evidente. Assim, 0 fanornenc da evid~n~ia nao a ?O ~ado:

mas da lnterpretacao em que cai. Uma estatistlca. por Sl, nao e

empirista, como se contivesse de anternao uma lnterpretacao neces-

saria. 0 empirismo aparece no usa que se faz dela, por exemplo,

quando reduzimos a realidade social a sua expressao estatistlca . .Re:duzir 0 desenvolvimento de um pais a expressao da renda per capita e

confundir desenvolvimento com crescimento e exigir de uma estatfs-

tica 0 que ela nao pode dar. A renda per capita diz apenas u~a rela<;:a?

entre a rlqueza gerada e a populacao presente, mas nada dlz se. a n-

queza esta ou nao dlstrlbuida. Depende, portanto, de como a Inter-

pretamos.Num segundo momento, objeto construldo significa que a ciencia

investiga de acordo com interesses da sociedade, ~obretudo da est ru-

tura dominante. A ciencla nao capta toda a realidade ou qualquer

faceta ao acaso. Dedica-se a tratar aquilo que a percebido, no contexte

social como relevante. Nao existem, assim, relevanclas de anternao

importantes, mas relevancias que interessam e por isto sao lrnpor-

tantes.Tentaremos 0 exemplo da economia. Poderiamos sugerir que os

conhecimentos de economia servem mais a rnanlpulacao econornlca

da sociedade em beneficio de minorias privilegiadas do que a liberta-<;:aoeconomlca dos povos. Explica-se isto, porque serve tamba'; l ~os

interesses dominantes, rrfulto mais preocupados em fazer a rnaquma

funcionar do que em questlona-la. 0 economista a formado basica-

mente para tocar 0 planejamento econ?m~c.o govern~~enta~ e~le.varas empresas a produtividade, 0 que siqnlflca uma otlca sl.stemlca,

preocupada em fazer 0 sistema funcionar, nao em problematlzar t~m-

bam. Por mais que pudesse haver consenso em torno do economista

como cientista "objetivo ", que nao discute ideologias, mas domina

instrumentais da produt ividade econornlca, isto nao desfaria seu lado

ideol6g ico. No l imite, produz 0 economista que sabe muito de pobreza,

na 6tica econornlca, mas que nao se sente compromissado com ela.

Faz nisto 0 jogo do poder.

Assim, cremos ser um fa to importante que as clenclas sociais

fazem 0 jogo do poder, simplesmente porque sao construidas por

pessoas beneflclarlas no sistema. Se temos nossa consclencla con-

dicionada pela nossa poslcao econornlca - sem traduzir aqui deter-

minismos -, parece que a apenas um resultado esperado: prontifica-se muito mais a justificar a sltuacao privilegiada do que a supera-la,

Portanto, a clencla nao transmite a realidade ..obletlva", mas

aquela que interessa. Nao pode ser acaso que seu usa preferencial

a 0 da rnanipulacao da sociedade e do controle social. Quando estu-

damos, por exemplo, 0 comportamento psicol6gico das pessoas e

grupos, tendemos a usar tal conhecimento como tecnlca de dominic

e de controle, 0 que aparece transparentemente na propaganda: a

sib il ina rnanlpulacao do comportamento alhe io.

E claro que nao podemos interpretar a clencla como projeto

conscientemente mal- intencionado. Certamente nao a uma consplracao

contra a humanidade. Dizemos somente que os interesses sociais sao

uma referencia importante, sem os quais as clenclas sociais estariam

soltas no espaco e no tempo.

As pr6prias clencias naturais sao mais usadas para coisas ques-

tlonavels do que para coisas positivas. Poderfamos hoje saciar a fome

de todo 0 mundo; a um projeto tecnol6gico dominado. Todavia, nao

usamos este conhecimento neste sentido, mas na linha da manipula-

cao econornlca dominativa que redunda na manutencao da fome num

contexte de riqueza. Certamente entendemos mais de guerra, de

destruicao, de aqressao tecnol6gica e ecol6gica do que de paz.

Num terceiro momento, objeto construldo nao pode significar

objeto inventado, que ja seria 0 caso, se a rnanlpulacao ideol6gica

predominar. Quer certamente dizer que a natural uma dose de detur-

pacao dos fatos, uma dose de slmpllflcacao do fenorneno, uma dose

de manlpulacao. Quer tarnbern dizer que, nao vendo tudo em tudo,vemos por facetas; quando classif icamos os fenomenos, recortamos

e, assim, estereotipamos; nenhuma deflnlcao a tao rica quanto 0

fen6meno.

Mas nao quer dizer que compactuemos com a deturpacao pura

e simples, colocando ja a ideologia como finalidade da ciencia. Fazer

clencla ainda e, profundamente, controlar a lncursao ideol6gica. Por

mais que 0 controle seja sempre relativo, a metodologia fundamental

das ciencias sociais. Reconhecemos que, em cienclas sociais, 0 sujeito

deixa no objeto sua marca; neste sentido, 0 tratamento do objeto

social acarreta doses mais ou menos fortes de sua transforrnacao ou

47

46

 

Page 26: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 26/62

2.5. OS PASSOS DO TRABALHO CIENT(FICO

tram emprego satisfatorio, nao conseguem sustentar-se adequada-mente e acabam empurradas para 0 mundo do crime.

Uma vez concebida a hlpotese, que por deflnlcao e hipotetica

provlsorla. da ordem de uma suspeita ou de uma suqestao, trata-s~

de construir 0 roteiro do trabalho. Tal roteiro e composto de vartos

elementos importantes. Urn deles e a const rucao de urn quadro teorico

de referencia que se forma at raves do conhecimento das explicac;:oes

ja feitas sobre 0 mesmo assunto, seja no plano dos classtcos. seja

no plano da discussao atual. Outro elemento e a busca de materialfactual em torno do problema, quando houver, para se averiguar ate

que ponto ja existe saber prevlo, aceltavel ou nao. Outro elemento, ja

mais formal. e 0 ordenamento interno. seja sob a forma de capltulos,

seja sob a forma de blocos sucessivos de problemas, seja sob a forma

de sequencia de idelas e de argumentos, seja sob a forma de organi-

zacao explicativa. e assim por diante.

a cerne da questao. contudo, em termos de roteiro de trabalho

e 0 teste da hip6tese, para averiguarmos se a suspeita explicativa foi

correta ou nao, ou em que deve ser corrigida para satisfazer a expli-cacao do fenorneno. Tal teste geralmente e pensado sob a forma de

expertrnentacao emplrica, cercada de muitos cuidados estatlstlcos,

mas isto e apenas uma versao do teste, mesmo que fosse reconhecida

como a rna is praticada. Ha outras. como a dlscussao teorlca, critlca,ou 0 teste de argumentos teoricos e pratlcos, no sentido de aceitar,

rejeitar ou reformular. a problema baslco, em todo 0 caso, sera con-

seguir transformar a hlpotese numa tese, porque tese e uma hipotese

conf irmada, testada, e por isto ace i ta como comprovada.

Dentro de nossa concepcao de clencla social. nao produzimos em

ult ima lnstancia mais do que hlpoteses, ja que nao existe comprovacao

em regra que nao pudesse ser colocada em questao. Tese ha de

significar tao-sornente uma hipotese testada e mantida enquanto nao

se achar outra melhor. De qualquer forma, deixa de ser mera suspeita

e passa a ser ja uma relativa contribuicao a clencia.

Por fim, chegamos as conclusiies que buscavarnos a partir da

hlpotese inicia l. Quer dizer , todo trabalho cienti fico propoe-se a mostrar

alguma colsa, por exemplo, provar a relacao que existiria entre dois

fenornenos (entre pobreza e criminalidade urbana), provar que uma

expllcacao vigente esta errada, provar outra maneira de expllcar,

provar que 0 conhecimento acumulado e problematlco, e assim por

diante. E importante esta proposta hlpotetlca de trabalho, porque e

ela que transmite unidade ao projeto, ordena as partes. monta 0 corpo

de enunciados. conduz a loqlca de deducao, e assim por diante.

Quando nos propomos a realizar urn trabalho deste tipo e normal

que a primeira lrnpressao seja de perplexidade. Nao sabemos por

onde comecar, sobretudo se nunca nos tlnhamos metido antes no

assunto. Todavia. e a situacao normal de quem se julga pesquisador

49

de sua rnanutencao. AI esta precisamente uma diferenc;:a importante

para com objetos naturais, que sao extrlnsecos ao sujeito.

Objeto construido significa, pois, que nao se entende sem 0 res-

pectivo construtor. Nao conseguimos imaginar a solldao pura de urn

sujeito objetivo diante de urn objeto, travando entre os dois urn rela-

cionamento apenas formal de simples captacao, descrlcao e repro-

ducao, Seria isto ignorar os condicionamentos sociais e a clencia

como processo hlstorlco. A relacao entre sujeito e objeto e dinarnica,

dialetlca, no sentido de mutua lntluenc!a. E isto e precisamente 0fenorneno rnetodoloqico da interpretacao, ou seja, depende tambern

do lnterprete, e. como consequencla, do seu contexto social.

Parece-nos. entao, claro que a Economia. a Sociologia, a Antro-

pologia, a Filosofia etc. sao formas de interpretar a realidade, havendo

ainda iruimeras formas internas a cad a uma delas. Nao se pode ima-

qinar, a nao ser no dogmatismo. uma lnterpretacao unlca de Marx, de

Freud, de Levi-Strauss. de Piaget etc. Por outro lado, nao e tarnbern

assim que tudo e mera lnterpretacao, no senti do de veleidades subje-

tivistas. A propria vlqencia de dogmatismos ja mostra que tais velei-

dades nao sao fenornenos lnstituclonalizaveis em seu limite. E tarnbern

comum encontrarmos na hlstorla lnterpretacoes consensuais, assim

como era consenso em momentos importantes da Idade Media que 0

poder seria propriedade divina ou de alguma familia real. A varlacaointerpretativa nao pode obscurecer as identidades entre elas, as

superposlcoes, as cont iquldades e as substltulcoes,

Para simpli ficar as coisas, colocamo-nos 0 exercicio de escrever

um trabalho cientlfico. Tal trabalho pode ser entendido como uma das

quatro pesquisas acima descritas e definidas. Em termos pratlcos.

trata-se de fazer uma construcao cientlfica. Que pass os sao impor-

tantes?

Quando nos propomos fazer um trabalho clentlflco, a primeira

questao e a hip6tese de trabalho. Significa 0 lanc;:amento de uma sus-

peita explicativa ou a suqestao provlsoria de que certa forma de expli-

cacao poderia dar certo. Imaginemos que desejamos explicar donde

vem a criminalidade urbana. um fenorneno que nos preocupa muito e

que estaria recrudescendo. I'odemos imaginar lnumeras hlpoteses de

trabalho: uma poderia partir da ldela de que a questao fundamental e

a falta de adrnlnlstracao da cidade, sobretudo do despreparo policial;

outra se concentraria na preocupacao em torno da educacao das farnl-

lias, donde proviriam as pessoas ligadas a crimes urbanos; outra

preferiria relacionar-se com a questao da pobreza, suspeitando que

o crime e na maioria das vezes motivado pela necessidade de sobre-

vlvencla. porquanto pessoas vern do campo para a cidade, nao encon-

48

 

Page 27: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 27/62

e nao detentor de saber evidente e prevro, Pesquisador e alquern

que se propos a descobrir a realidade, supondo que nunca a sab~m_os

satisfator iamente. Sempre ha 0 que descobrir. Quem parte de evlden-

cias nada tem a pesquisar. 0 processo de superacao desta perplexi-

dade inicial a algo central na formacao clentlflca de uma pessoa.

Como se faz?

Em primeiro lugar, vamos a biblioteca ler sobre 0 tema. Nao. a

bom expediente adiantar, de mao beijada, literatura esp~cifica, ~ multo

menos certas paqinas, cuja leitura da uma res p osta a questao pro-curada. Pesquisador a aquele que descobre por si, que inventa sua

safda. Em segundo lugar, vamos levantar inforrnacao em torno do

assunto, seja de ordem factual, seja de ordem teorica, E~ terceiro

lugar, a preciso colocar a lrnaqlnacao para funcionar, ou seja, apelar

para a criatividade.

A perplexidade comeca a ser superada, quando imagin~mos vis-

lumbrar uma suspeita explicativa. Af descobrimos um cam mho pos-

slvel vemos uma luz no fundo do tunal. Conseguimos levantar algumas

refer~ncias orientadoras. Avancamos, entao, na direcao imaginada.

Pode ser que venhamos logo a constatar que 0 caminho imaginado

nao a factfvel ou que a equivocado. Mas ja foi um avanc;o,. po~~uedescobrir que a hlpotese nao e realizavel e um resultado clentltlco

valldo. Oaf. reformulamos a hlpotese em parte ou a abandonamos ebuscamos outra. E vamos avancando, com maior ou menor velocidade,

ate elaborarmos as condicoes suficientes para desembocar nas con-

c1us6es.

Nao sai trabalho nenhum, quando nao form os capazes de imaginar

um roteiro hlpotetlco. E preciso saber montar uma proposta de cami-

nho possfvel, alnda que provlsorla. Na verdade, grande parte da cria-

tividade do trabalho esta na Invencao da hlpotese. Uma mente criativa

arranja facilmente hipoteses surpreendentes, ve coi.s~s onde o~t ros

nada veem, faz ilacoes inesperadas, conserva boa visao de conjunto

para jogar com varios fatores num mesmo contexto, e a_:;sim po~

diante. Quem nao possui criatividade - e sobretudo quem nao pOSSUI

preparo teorlco e metodoloqlco - e incapaz de levantar hlpoteses

explicativas atraentes, as vezes a despeito de bases empf ricas fartas.

o t re inamento unlversttar lo dever ia levar sobretudo a capacidade

de construcao de trabalhos cientfficos. E grande contradlcao prat icar

uma docencla verbalista, que reduz 0 estudante a ativ idade de anotar

o que 0 professor fala , de reproduzir apenas 0 que 0 professor prop6e

e a ler certas paqlnas previamente fixadas. Multos terminam os

estudos sem jamais terem escrlto um trabalho em regra, nem mesmo

como exercfcio acadernlco. Todavia, esta e uma das atividades funda-

mentais para a motivacao a pesquisa, atraves da qual se aprende a

ordenar ldelas e a concebe-Ias, a crltlcar posrcoes e a fundamentaroutras, a desdobrar um tema, e assim por diante.

Nao pode ser somente uma atividade teorica. de sala de aulas.

A pratica a igualmente importante, principal mente na forma de estaqlo

curricular, atraves do qual a dedlcacao pratlca passa a fazer parte doprocesso de formacao do estudante.

Trabalho cientifico nao a resumir um livro, fazer fichas de leitura,

extrair passagens especificas. Estas atlvldades sao propriamente pra-

-un lvers ltar las. Trabalho cient if tco a pr incipal mente producao de conhe-

cimento, que no estudante nao sera sempre original, mas pelo menosdentro da tentativa de construcao por palavras proprlas. Tem como

resultado tarnbern a necessidade de leitura, algo essencial para se

obter um referencial teortco abrangente e diversificado, de tal sorte

que coloque a pessoa sempre em condlcao de imaginar hip6tesesalternativas.

A formacao unlversttana deveria levar especificamente ao surgi-

mento de pessoas capazes de construir clencias socials. Nao se faz

isto com alunos apenas ouvintes e pacientes. 0 que importa na ver-

dade a sua producao, seu trabalho concreto, sua partlclpacao em

ativ idades prat icas, que implantem 0 habito de enfrentar temas, de

ordenar seu tratamento, de argumentar solidamente e .de extrairconclusoes coerentes e conslstentes.'

50

5. L. Hegenberg, Etapas de Investigat;ao Cientifica (EDUSP, 1976),

51

 

Page 28: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 28/62

3.1. OS PRINCiPIOS DA CONSTRU«;AO DA CIENCIA

possul algumas identidades relativas que buscamos .dutoriamente. aqui expor intro-

. Emb~ra tendamos ~ chamar ocidental a este modo, nao sabe-names dizer como senarn outros modos. Apenas imaginamos

talvez haja possibilidade de construir ciencia de outras formas ~~e

seriam "o~ie~tais", o~ ~.djetivadas de .qualquer outra tipicidad~. N~fun~o, reststlmos a ideia de que a unica maneira de descobrir a

reall.dade deva ser aquela que conhecemos entre nos e que vimos

pratlcando. P'". se~ulos a fi.o., ~e a criatividade deve ser marca regis-trada da crencra, e contraditorio encerrarmos sua evolucao dentro de

um lastro conhecido ou apenas predominante. '

Ademais, ~ossas formas de racionalidade, de rigor metodoloqlco.

~e. ver 0 relaclonarnento entre sujeito e objeto, nao precisam ser as

urucas. porquanto recairfamos naquilo que ja e viclo notorlo do ocl-

dente: a arroqancla c lasslca de considerar ignorante quem nao conhece

o_que conhecemos. Nao somos padrao absoluto para os outros. Isto

nao torna nossa hlstor!a menos importante, mas e uma entre outras.

Esta rnodestia cient ffica e apenas coerente, se part irmos da idela

de que na~ conseguimos esgotar a explicacao do fenorneno cientf fico.

Fazemos dele precisamente uma construcao cientf fica.

3

A L G U N S P R E S S U P O S T O S M E T O D O L O G I C O S

Poderiamos dizer que se trata de hipoteses metodologicas. Sao

posicionamentos basicos que adrnttirnos de modo geral validos e que

orlentarn a conduta na pesquisa e na construcao cientifica em gera!.

Por serern linhas htporencas. e claro que os podemos e devernos ques-tionar, mesrno que tacarn parte de uma t radicao. forte.

Mostram, por outra, os dais lados tipicos da ciencia: 0 episte-

mol6gico, ligado a teoria do conhecimento e que pcdernos slrnpllf icar

como sendo a caracteristica loqica: 0 social, ligado a sociologia do

conhecimento e referenciado aos condicionamentos socials da constru-

cao cientifica. Seja como for, a otica e matodoloqica. no sentido de

que sao pressupostos na linha das instrumentalidades da construcao

cientifica. Em que pesern as diver qencias notor ias , ha relativos con-

sensos e ate mesrno urn modo tipico de fazermos clencia, que as

universidades,de modo qeral, cultivam, aperfeic;:oam, e repetem.'

De certa rnaneira, seriamos tentados a dizer que se trata de urn

modo ocidental de construcao cientifica, dentro da tr a dicao grega,

que lancou os prlrnordios deste tipo de preocupacao, tanto ern sentido16~Jico quanto em sent ido social, inventando 0 fen6meno ate hoje

importante do grupo que sabe fazer ciencia. Este modo ocidental

3 .2 . REGULA RIDA DE DA REA LIDA DE

1 V. Mannheirll. Wujsenssozio/ogie [Luchterhand, 1<)70); G. Gurvitch, Os Oundros Sociei s do Connect -

nu-nto (Morae" 18u9); R. K Merton, Soc ia l T heo rv " li d Soc ia l S trt Jc lu re (The Free Press, 1968):

A, H, Bertelli e out ro s. Soc i%gia do Conhecimento [Zahar . 1974) ; V. Pareto, I re ue to di Soc io logic(;t..:ller~Jfu (1\11I1ao, 19Li4l: w R. Coulson e C. R. Rogers, 0 Homem o a Cencie do Hornem {interlivros,

l~.r,'J. .J Ben-Davtd . 0 Pr.lpel do C ie nt i s t e ria Socicdade [Piune rr a, 1974): J. O. de Deus. A Critics da

Cenl:iu ( Zat tar , 1974) ; P. V. Kopnin, Funda rnen tcs LLi gi co s da Ciencie (Ci vi li zacao Brasi le ir a, 1972);

H S Rudner. Filosufw du Ciencia Social (lahar, 1969): J. Ben-Davrd e out ro s , Suciu/ugl::j do Ciencie

H;V 1'J7S}: C. G. Hempel . Filosofia da Ci enciu Natural {Zahar, 1910); H. F. jup.as su. Intrudu~jo apPinrs.uncntc: EplstemtJ/u9'cu (FranCISCO Alves. 1975) F . B raudei . Histone e Cltll/e/as Socia is {Pre-

SCIlC;J, 1~72J: A. L. Stinchcombe , Ld Construcciou de Ieot iss Soc is te s (Nueva vision. 1970); H. F.. lapr as Su , Pa ra Le r B ac he/ arc ! (Francisco Alves, 1976); P. Ouillet. tntroauceo 80 Penstuuento de

lJ"cI,ulilrJ (lahar, 1977); E. C. Leao, Apr oJ ll de ndo a Pense r (VOles. 1976).

. Um .d?s pressupostos rnetodoloqicos mais importantes das clen-eras SOCialSe a crenc;:a de que a realidade e urn fenorneno regular.

Por muito tempo predominou a crenca de que a realidade social

seria influenciada mais pela vontade das pessoas do que por condicio-

nament?s"objetivos. Sem pretender fazer uma historla da evolucao

destas ideias, podemos ressal tar pe lo menos dois marcos importantes.

U.m deles c~ntra-se na figura de Comte que introduziu a visao positi-

v is ta da real idade, segundo a qual ter famos superado a postura anterior ,

filosofica e religiosa, que percebia na realidade condicionamentos

oriundos de fora dela. As coisas acontecem nao porque Deus quer,

ou .0 homem decide. mas porque a real idade possui sua propria raclo-

nalldade, seu comportamento tiplco. ordenado e regular .

Muito contraditoriamente, Comte acabou instituindo nova forma

de rellqlao, mas nao deixou de legar a ciencia a preocupacao de

superar crencas rnitlcas e de instituir explicacoes que nao recorram a

pretensas influencias externas, principal mente de ordem extramun-

dana.'

2. Poderiamos .i,!,aginar talvez uma clencra de est ilo orien ta l, mais l igada a percepcao de horizontesextra-sensortars e fundada em filosofias da sensibilidade cosrntca e interior. A racionalidade uttlt-

tarta e menos prese~te que no modo oc iaental de produz lr c lenc la. nem se atr ibui ao nornem 0

papel de centro dornlnador da natureza, 0 que leva cer tamente a incut ir na ctencla um projeto dedomlnacao. A visao de mundo or iental e bastante diferente. como podemos vislumbrar atravee de

manttestacoes do t ipo ioga.3. R. Aron, Les t tape s de la Pensee Sociotoqique (Ed. Galtlrnard, 1967).

5352

 

Page 29: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 29/62

. T~mos, para as clenclas sociais, dois pontos relevant .prtmetromomento, trata-se da aceltacao de que a hlstorla es. t

num

bi t' t - bl y aeon eceo jle ~vamen . e . . ' n~o sdu jet lvamente., A consclencla a mais condicionadape a mconscrencra 0 que 0 contrario. Quando escutamos urn hl ~f I

. - , d c rnesa ar, a rrnpressao que temo~ e e caos total; no fundo, porern, nao

falam.?s CO~? q~eremo~ ou mventamos, mas falamos de acordo comuma gramatlca, ou seja, de forma ordenada e repetitiva.

~um. segund?~ m~mento, t rata-se da acel tacao de que, onde existe

possl~el tntervenlencla humana, ela tarnbern a regular. Querer, decidirplanejar, perceber, tudo isto nao se da ao leu, na pura subjetividade'

mas .d~~tro de re~ularidades constatavels. No extremo, elimina-se ~

p~sslblll~ade daquilo que chamamos liberdade de iniciativa no homem.

Nao precrsarnos chegar a tanto. Contudo, instalou-se a crenca de que

o comportamento humane a cientificamente tratavel, precisamente

porque 0 cremos regular.

. E~ ultima. inst.an.~ia, 0 element?_ mais tlplco da postura cienti-~Ica ocidental e a ideia de que a ciencra somente trata aquilo quee regular na realidade. Diziam os classicos: "de individuo non estscientia", ou seja, nao ha ciencla do individuo. Entende-se al individuo

como fenorneno irrepetivel, nao generalizavel, aquilo que tern de

tlplco, proprio, particular.

Ai temos urn componente importante da construcao cientffica

em termos loqlcos: a clencla trabalha por ebstrectio generalizante:Abstrai as particularidades e fica com 0 geral . Todo e qualquer concei to

form?-se pela abstracao dos casos particulares, centrando-se naquilo

que e comum a todos. 0 conceito de democracia a abstraldo dos casos

concretos - democracia grega, americana, suica, socialista -, con-

centrando os traces comuns e qeneraltzavels do fenomeno, Na reali-

dade concreta, nao encontramos 0 concei to, mas uma versao hlstorlca

factual e particular dele. Nao existe na natureza 0 concei to de arvore:

este a produto mental. 0 que existe sao arvores concretas, manguei~

ras, perobas, lpes etc.

A possibilidade de generalizar baseia-se na crenca de que a reali-

dade possui uma ordem interna, que faz del a substancialmente urnfenorneno repetitivo. Cada arvore nova que cresce tern urn lado irrepe-

tivel, a medida que a urn individuo particular; mas tern igualmente urn

lade de monotone repetlcao, razao pela qual identificamos como per-

tencente ao mesmo conceito, apesar de possiveis individualidades.

~ gen~~aliza<;:ao admit~ niveis variados, no senti do de que pode-mos ldentiflcar traces mars e menos apllcavels de forma comum.

Num lado, podemos dizer que alguns traces sao tipicos, entendendo

P?r ?I~s faces qenerallzaveis historicamente, ou seja, constatadas nahlstcrla concreta conhecida. 0 conceito tiplco de revolucao social

seria extraido das identidades comuns das revolucoes acontecidas.

55

Todavia, 0 marco mais importante talvez seja a eontrlbulcao de

Marx naquilo que chamou de materialismo htstorlco para as clenclas

sociais. Contrapondo-se a Hegel, no qual via 0 orotottpo da clencla

ideologica, subjetlvista, especulativa, propoe que os homens fazem

sua htstorla. mas dentro de eondlcoes dadas, principalizando estas.E dentro destas, destacou as economicas. Segundo muitos lnterpretes,

determinam, em ultima instancta. a realidade social, as condicoes de

sobrevivencia material:

Marx nao reduz 0 resto aquilo que chamou de infra-estrutura. A

superestrutura detern papel importante, ainda que determinado. Por

ter sido uma poslcao a epoca muito nova e contrarla as' tsndenclas

vigentes, sua explicacao nem sempre foi feita em termos tranqullos.

Podemos facilmente encontrar textos marxistas duros, praticamente

positivistas, imaginando encontrar "leis farreas" na sociedade, em

vez de raqulartdades."De nossa parte, parece-nos que a postura marxista tende ao de-

terminismo, na propria esteira da tradlcao cientifica ocidental, ainda

que seja urn determinismo inteligente. Em termos metodologicos,

dificilmente se mantern a crenca de explica<;:oes monocausais em

cienclas sociais. A medida que 0 materialismo historlco se aproxime

de uma expllcacao monocausal, seria excessivamente determinista.

Mas vol taremos a discuti r isto poster iormente.

De todos os modos, a tmportancia da postura marx ista a ineqavel

e estabeleceu uma virada metodologica das mais significativas, ate

hoje extremamente influente. A realidade nao se rege principalmente

atraves de lntencoes. boas vontades, decisoes subjetivas, niveis de

consctencta. mas por condlcoes objetivas, dadas. 0 homem nao faz

simplesmente hlstorla. como um deus que magicamente conduz seu

destino, mas a faz condicionado - segundo alguns -, ou determinado

- segundo outros."

Transferiu-se, assim, para as ciencias sociais a mesma crenca

secular segundo a qual a realidade tem um comportamento regular.

Fala-se em "leis" do acontecer. E muito profunda esta crenca ocidental.

Supomos uma ordem interna nas coisas, por mais que aparentemente

tenhamos outra lrnpressao. A muslca. por exemplo, aparece como algo

muito complexo, variado, rico (rnuslca antiga, primitiva, indigena, ecle-

slasttca. classlca. moderna etc.l, mas tudo e redutivel a combtnatoria

invariante de doze semitons. A materia fisica aparece com uma face

total mente diferente daquela dada pela cornbinatorta de um nurnero

finito de elementos atomlcos.

4. K, Marx, Contrtbuiceo para a Critica da Economia Politica (Estampa, 19731;F. Engels. Do SocialismaUtooico ao Socialismo Cientifico (Estampa, 1971); M, Harnecker, I.os conceotos Elementales del

Materialismo Histortco (Siglo 21. 1972). '

5. P. Demo, Metodologia Cientifica em Cieneias Sociais (Atlas. 1980)'p, 191ss.

6. P. Demo, Soc iologia _ Uma Introduc;: iioCrit lca (At las, 1983),c fr. capitulos sobre "questaes de

metodo" e sabre v isiio rnarx lsta.

54

 

Page 30: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 30/62

E, pols, 0 caso de uma qenerallzacao mais concreta. dentro do conhe-

cimento ou do que se imagina conhecer.

E muito mais forte a qeneralizacao puramente conceitual, no

sentido de uma lei de significado estrito. 0 que imaginamos ser lei da

natureza aplica-se a todos os fenornenos possiveis e nao somente

aqueles conhecidos. Supomos que valha tambern para 0 futuro, inclusi-

ve 0 pass ado desconhecido. A lei da gravidade, segundo a qual todo

corpo mais pesado que 0 ar cai, nao e imaginada vallda por causa do

conhecimento de casos hlstor lcos concretos acontecidos, mas por serurna caracteristica supratemporal.

Ha generalizac;:6es ainda menores que as tipicas, quando encer-

radas em determinado momenta hlstorlco. Por exemplo, t races proprios

da lnflacao acontecida em marco de 1982, do governo Figueiredo etc.

Mesmo aquilo que podemos chamar de estudo de caso nao pode

ser entendido como a captacao de meras particularidades. Pelo con-

trario, a cata de particularidades serve para depurar generalizac;:6es

indevidas ou excessivamente abstratas. No fundo, nao conseguimos

captar cientificamente algo que e somente individual, porquanto te-

rfamos que inventar uma nova ciencia para cada individual. Mesmo

quando queremos explicar a variacao dos fenornenos. 0 que fazemos

praticamente e descobrir formas repetidas da varlacao, A saber, expli-

camos pela constancla das diferenc;:as, nao pelas diferenc;:as mesmas.

Neste sentido, temos a crenc;:a de que a dinarnlca dos fenomenos

nao e algo caotico, que acontece dentro do inesperado, total mente

imprevisto; ao contrar lo, associ amos a idela de movimento a de movi-

mento ordenado. A hlstorla nao e veleidade; e forma ordenada de

acontecer. Assim. nao conseguimos explicar a varlacao, se nao desco-

brimos como invariavelmente varia.

Uma teoria das revoluc;:6es sociais acaba ressaltando aquilo que

elas tern de comum. E precisamente por isto que aplicamos 0 mesmo

conceito. Tal vi sao pode levar a uma pos icao conformista da realidade,

mas nao e necessaria. como veremos depois. De todos os modos, epor isto tarnbern que tendemos a dizer que e um modo ocidental de

fazer clencia e que talvez pudessernos imaginar outros.

Ao lado da abstracao generalizante e importante ressaltar a crenc;:a

na relacao entre causa e efeito. Explicamos um efeito, se encontrarmos

sua causa. Em medicina is to e um esquema fundamental. So consegui-

mos curar uma doenc;:a,se sabemos sua causa; caso contrar lo. f icamos

atirando a esmo. Nem podemos confundir sintomas com efeitos dire-

tamente causais. Por exemplo, dor de cabec;:a pode ser causada por

rna dlqestao, por preocupacao pslcoloqica e tambern por dlsnirblos

na cabec;:a.

Sobretudo na realidade natural, 0 esquema causa/efelto e dos

mais arraigados. Partindo-se da crenc;:ade que chove nao por vontades

externas ou lnfluenclas disparatadas, mas de acordo com lel d t _. t f idel d f IS e errrunan es, ormamos a lela e que 0 enorneno da chuva e efeito de

uma. causa ou de um compl,exo dado de causas. Se chegassemos adorninar tal complexo, poderiamos fazer chover. No caso de uma a'd 't" I' db' reaeser rca , se_a canc;:assemos esco nr as causas da falta de chuva

e se conhecessemos como se produz chuva, poderiamos mudar 0

deserto em terra fertll, .

Assim colocada a questao, percebemos logo que al reside uma

das p~ofundas expectativas cientificas da humanidade, a saber, 0

dornlnlo da natureza e do homem. De certa maneira, temos nisto a

oportunidade de superar a condicao de subserviencia aos fatos, colo-

cando-os a nossa dlsposlcao. A ldela de planejamento esta pervadidadesta esperanc;:a, porque acredita poder inf luenciar 0 rumo dos aeon-

tecimentos.

A hlstoria seria tanto mais "hurnana " quanto mais seus condi-

cionamentos objetivos fossem dominados pelo homem. A assim dita

revolucao da agricultura realizou precisamente este saito: em vez de

depender cegamente da natureza para nossa allmentacao, passamos

a produzi-Ia, dentro de um quadro de conhecimentos possiveis. 0

homem passou a plantar e assim a garantir melhor sua sobrevivencla.

A ideologia do progresso faz parte visceral da Mica cientificaocidental. Lateja nela 0 sonho. de dornlnacao da natureza, dentro do

refrao tlplco de que 0 homem e 0 rei da natureza. Nao e errado ver

nisto um projeto latente de dorninacao e que por isto muitas vezes

degenera em aqressao a natureza, em aqressao ao convivio humano

e em aqressao a condlcoes necessarlas para a propria sobrevlvencla.

Hoje, a maior necessidade tecnoloqlca e a tecnologia para combater

os males da tecnologia.

De novo, parece-nos urn trac;:o hlstorlco, digamos, ocidental de

fazer ciencia. Poderiamos certamente imaginar uma clenc la mais 'mo-

desta, ecoloqlca, pac ifica, construtiva do que esta.

A clencla e nomotetice, porque acredita em "leis" do acontecer.

Mesmo. uma explosao, que pode parecer algo inesperado, acontecedet~rmlna.da ~,or causa~ p!"ecis.as. Nao ha caos, propriamente, porque,se tlver sldo causado, e efeito produzido e tem trac;:os caracteristi-

cos; possui, portanto, uma identidade que somente e possivel com

alguma ordem regular.

3.3. CONDICIONAMENTOS SOCIAlS

Parece-nos que nao cabe em clenclas sociais 0 conceito de lei ou

de causa/efelto, em sentido estrito. Mesmo em clenclas naturals. ha

5657

 

Page 31: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 31/62

autores que nao aceitam. porque entendem a ciencia sempre como

proposta hlpotet lca, nunca deterrnlnada.'

Todavia. e preciso reconhecer que a clencla de estilo ocldental

e de tendencia determinista. porque acredita que existe na realidade

uma estrutura interna repetitiva ou uma ordem subjacente. Quandofalamos em regularidades da realidade, estamos usando apenas outro

tlpo de determinismo. mais aberto, capaz de conviver com a hlstor!a.

Em vez de falarmos em determinantes da realldade, falamos de con-

dicionamentos. nos quais cabe melhor a ldela de probabilidade. 0 con-ceito de probabilidade admite efeito contrarlo. nao como excecao, mas

como normal, dentro da margem de possibilidades. Se nao admitisse

o contrarto, ja seria deterrnlnacao estrita. Mesmo que a probabilidade

de acontecer 0 contrarlo seja de apenas 1%. ela e real. asslrn como.

se ganho na loteria esportiva, isto foi um acontecimento muito raro,

de balxlsslrna probabilidade, mas posslvel. Nao teria ganho por exce-

c;:ao,mas dentro da prevlsao probablllst lca.

o comportamento social pode variar e ate mesmo surpreender.

Todavia, predomina a rotina de um comportamento muito mais repetido

do que cada dia reinventado. Imaginamos ate poder prever 0 cornpor-

tamento de certa pessoa ou grupo. porque 0 supomos regular. Se

atentarmos para as tecnlcas de propaganda. que visam a influenciar 0

comportamento das pessoas, baseiam-se nesta expectat iva cienti fica.segundo a qual e possfvel manipular 0 fenomeno, controlar, prever.

A sociedade nao seria planelavel, caso fosse um fenomeno de velei-

dade subjetiva.

Olhando a sociedade do ponto de vista do fenorneno da socla-

llzacao, que significa a lncorporacao do comportamento tido como

normal, ela aparece como algo surpreendentemente monotone e repe-

titivo. Predomina a rotina. E isto explica, em parte pelo menos, a

estabilidade social e a convlvencla consensual. Caso contrarlo, teria-

mos 0 constante desencontro, a atitude inesperada que agride a nor-

malidade, 0 sobressalto desordenado.

Os fenomenos sociais tarnbern apresentam uma face relat ivamente

uniforme, que permite sejam tratados cientif icamente. Nao precisamos

negar a vontade livre (relativamente livre) do homem, nem precisamosreduzl-la a fator meramente ocasional. E posslvel manipular, de forma

objetivada, 0 fenorneno da lnflacao, da relacao entre capital e trabalho,

da neurose, do amadurecimento mental, da mlqracao rural-urbana, e

assim por diante. Nao f ilosofamos simplesmente sobre tais problemas,

a nivel de especulacao subjetiva. Ao contrarlo, buscamos seus condl-

cionamentos reais, suas origens, suas fontes. Tentamos reconstituiro caminho de producao dos efeitos estudados. Enfim, usamos 0

esquema nornotetlco e causal, mas de forma aproxlrnada, adaptado arealidade social.

Se contemplarmos 0 fenomeno da educacao de crianc;:as na escola,

dizemos que a t ratavel cienti ficamente, porque 0 que al ocorre e

relativamente regular, prevlslvel , manlpulavel , Nao conseguimos deter-

m_ina! tod~s ,as causas ou todos os condicionamentos. Ja dlzlarnos quenao e prat icavel um conhecimento completo. Fazemos inevitavelmente

um conhecimento seletivo, de acordo com as relevancias que imaqina-

mos descobrir, tarnbern sob a lnfluencia de nossas ideologias. E tao

complexo 0 fenorneno da educacao que nao poderfamos sequer lma-ginar a rnultldao de fatores que 0 comp6em e condicionam.

., ~esmo assim, cremos poder manipular de forma relativa e proba-

blllstica. Sabemos alguma coisa sobre como motivar as crianc;:as de

modo que se interessem pelo trabalho, como faze-las aprender a ler

e a escrever, como implantar normas de bom comportamento, como

elevar 0 rendimento da aprendizagem etc. Evidentemente, tudo isto

seria impossfvel se nao supusessernos uma realidade cient ificamentetratavel,

Convem, de novo, distinguir entre lados mais loqlcos e mais

sociais de tais condicionamentos. 0 que dissemos esta rnals na esfera

da loqlca: relac;:6es formais entre fen6menos. Apllcam-se as clenclas

sociais de modo aproximado e, nesta proporcao, valldo,

Quando falamos de condicionamentos sociais, pensamos, na maio-ria das vezes, na propriedade ..social" deles. Uma realidade social-

~e~te condicionada a aquela influenciada pela ideologia de forma

intrinseca, porque nao pode expelir objetivamente seu contexto poll-

tico. Precisamente esta caracterfstica faz com que a apllcacao dos

e~!lu~mas I~g~cos das c~encias naturais e formais se apliquem nasciencras socials de rnanerra aproximada. A sociedade nao e so forma'e antes de tudo conteudo, hlstoria, possibilidade. '

De certa maneira, seu tratamento torna-se muito mais complexo

ja que 0 objeto a igualmente muito mais complexo. Facilmente escap~

pelos dedos. Os conceitos nao possuem contornos estritos. As teorias

todas envelhecem. Nao ha resultados definitivos. Construir uma ponte

de concreto ou ir a lua a uma tarefa cientffica tambem complexa. Masa mais complexo, delicado, preocupante a tarefa de produzir e dlstrl-

buir adequadamente alimento para a humanidade ou conseguir con-dic;:6es para a paz.

Nao a assim que a ideologia nao possa ser t ratada cienti ficamente.

Ela tarnbern se repete, pode ser aproximativamente definida delimi-

tada e ate controlada. Mas sua loqlca a por vezes a falta de logi'ca. Nem

sempre esta nas linhas, mas nas entrelinhas. Nao e propriamente

~~ns~ravel, .~as nao '!lenos atuante. Esta em todas as gretas dasciencras SOCialS, que sao, neste sentido, mais um desafio perene doque uma tarefa propriamente dita.. RK.~. Popp_er. The Logic of Scientific Discovery (Hutchinson. of London. 1965] ; H . A lber t, Traiado da

azao Crltice (Tempo Brasllelro. 1977].

58 59

 

Page 32: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 32/62

Pertence tarnbem a nosso modo de producao cientffica a crenc;:ade que a realidade possul estruturas dadas, ou seja, supra-espaciais

e supratemporais. E apenas uma consequencla da ldeia fundamental

de que a realidade e ordenada, pelo menos em sua subjacencla.

Sao posturas tlplcas do estruturalismo e do positivismo,que vere-

mos posteriormente. Faremos aqui uma conslderacao inicial, no que

toca as clenclas sociais.Dizfamos que, quando buscamos explicar a varlacao dos fenorne-

nos, tecemos um esquema de tendencla formal para capta-la. 0 resul-

tado sera que somente explicamos a varlacao se descobrimos como

ela invariavelmente varia.

o conceito de revolucao, por exemplo, nao escapa a esta sina da

clencla ocidental. Imaginamos haver identidades de tal ordem que

podemos aplicar a um conjunto de fenomenos 0 mesmo conceito.

Trata-se de mudanc;:a da e na historla. mas ela nao se da ao leu, emsaito sem precedente ou oriunda do nada. Ela se da condicionada por

fatores pelo menos em parte repetfveis e de certa forma regulares,

como qualquer fenorneno. Quando 0 marxista ortodoxo afirma que

somente se trata de revolucao se houver mudanc;:a de modo de pro-

ducao economlca, esta oferecendo um esquema formal para captartal mudanc;:a, ou seja, algo invariante no fenomeno e que constitui

propriamente seu cerne. Quando afirma igualmente que 0 capitalismo

se explica basicamente atraves do fenomeno da mais-valia, imagina

ter encontrado a principal identidade deste fenomeno que permiteperceber que, apesar de possfveis mudanc;:as na hlstorla, ainda e 0mesmo. Tivemos certamente muitas fases internas do capitalismo,

tals como a do capitalismo nascente, do capitalismo sem intervencao

estatal, do capitalismo com mais ou menos fortes lntervencoes do

Estado, do capi talismo pos-querra, do capi talismo das multinacionais

e ollqopclico, do capitalismo da crise do petroleo etc. Sao muitas va-

rlacoes internas, mas dizemos ainda ser no fundo 0 mesmo fenomeno,

porque nao perdeu a identidade atraves da mais-val ia. E algo entendido

de maneira formal, um esquema que explica a varlacao hlstoria, mas

ele mesmo nao varia.

Certamente intriga este tipo de problema que a dlaletlca, por

exemplo, muitas vezes gostaria de camuflar. Incomoda aquele que

deseja primaziar a referencia hlstorlca. Todavia, e preciso compor-se

com tal caracterfstica que talvez nao seja necessaria a clencla, mas

que- e componente tfpico do modo ocidental de producao clentifica.

A idela de infra-estrutura econornlca em Marx perfaz precisamente

esta crenc;:a,quer queiramos ou nao,

Damos 0 nome de estrutura a elementos de ordem formal e que

constituem a realidade de modo invariante. Tais elementos apresen-

60

tam-se de modo sistematizado, ordenado, e no fundo sao os response-

veis pela expectativa de regularidade dos fenomenos. Sao de ordem

formal, :-,orque dizem respeito mais as formas do acontecer do que

ao proprio acontecer. Nem sempre trata-se de estruturas supra-

historicas em dlrnensao mais totalizante ; podem referir-se apenas a

determinado perfodo. De todos os modos, qualquer fenomeno social

con segue persistir na historla, alern de poder ser superado, se for

estruturado. ou seja, possua elementos que preservem sua identidade.

Assim, a estrutura de uma tnstltulcao significa os componentes esta-

veis dela e ao mesmo tempo fundamentais.A partir dai, emerge imediatamente a ldela de que estrutura coin-

cide com uma vlsao fixista da hlstorla. Sobretudo quando ligada a

otlca sistemlco-funcionalista, aparece como estruturas de funciona-

mento e sobrevlvencla de sistemas, atraves das quais reconstituem

seu equilfbrio constantemente e resistem a superacao hlstorlca.

De fato, isto pode muito bem acontecer. E, na verdade, predomina

em cienctas sociais a ideologia da persistencla temporal, mais do que

da mudanc;:a. E e muito compreensfvel: se ideologia signif ica principal-

mente a necessidade de leqltlrnacao do poder atraves de representa-

coes mentais que 0 pintem como necessario e normal, age no senti do

de produzir visoes slsternlcas da sociedade, porque esta e a logica do

poder dominante.

Mas nao precisa acontecer. Mesmo reconhecendo que nossa ma-

neira de produzir clencla agarra-se a descoberta e a manlpulacao de

estrutura~ explicativas, isto nao desfaz a dialetlca, ja que presenc;:as

estruturals podem tanto pender ao fixismo quanto ao dinamismo. Se

aceitamos que toda formacao social e suficientemente contradltorla

para ser historicamente superavel, esta aflrmacao e de ordem formal

tambem, mesmo que seja embutida numa visao dlnarnica: e um

esque!'la .expl~cativo, como qualquer outro, do ponto de vista loqlco,Todavla, rrnaqmamos uma estrutura que nao baseia 0 fixismo, mas

precisamente 0 contrarlo, a saber, estruturas que sao a fonte inter-

mlnavel do diamismo social. 0 reconhecimento da presenc;:a estrutural

do co~fI~to, da, contradtcao, do antagonismo na sociedade nao produzuma visao estatlca, mas exatamente uma vi sao de que a sociedade ehlstorlca porque possui um conflito estrutural, que nunca a deixatranqulla e terrnlnada."

Conflitos estruturais nao param a hlstorta: ao contrarlo. produ-

zem-na. Senao, terfamos uma hlstorla feita ao leu, de grac;:a, sem

precedente. Certamente, existe al uma especie de determinismo, slrn-

plesmente porque nosso modo de pensar nao 0 dispensa. Para sermos

3.4. E ST RU TU RA E H IS TO R IA

8. E. H. Carr. Que e Historle? (Paze Terra. 1976); J. Plekanov. 0 Papel do Indlvlduo na Historla (Rodrl-

gl!es. ?<avler. 1~71); P. Veyne. Comment on terit l'Histoire (Seull. 1971); A. Gramsel. Coneepr;io

Dlaletlel!. da Htstor)« (ClvilIzacao Brasileira. 1978); G. Lukacs. Hlstort« e Conselenela de CIssse

(Eseorplao, 1974).

61

 

Page 33: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 33/62

modestos. dirfamos que nao sabemos, pelo menos por enquanto, pen-

sar de outra forma.

Cada nova fase historica l rnpoe ao confl ito estrutural sua roupagem

tlpica nova (capitalista. feudal. asiatica etc.): quer dlzer, supera 0

conteudo hlstorlco, mas nao supera a forma. que e t ida por estrutural.

Nao existem na hlstorla saltos mortais. de tal sorte que a inter-

rupcao ja nao e expllcavel pelos condicionamentos precedentes.

Quando falamos em saito qualltatlvo, nao estamos pensando num ato

de criacao do nada, mas numa lnterrupcao particularmente profundaque tenha como resultado na fase posterior a predomlnancla d? ~ovo

sobre a velho. 0 que acontece na hlstorla e historicamente expllcavel.

ou seja, a rnudanca htstorlca pode realmente trazer 0 predo~fnio do

novo mas nao sua exclusividade. No fundo, continuamos manlpulando,

embora de forma aproximativa e adaptada, esquemas loqlcos, tlplcos

de nosso modo de ver a mundo: e regido por leis de causajefeito. Talvez

um dia descubra-se que tal crenca e resqufcio de nossas arcaicas pas-

turas teolcqlcas subjacentes. Mas. no memento, 0 modo ocidental de

producao cientff ica assume isto como profundamente tlplco.

Num segund~ r:nomento. 'Ae ~reciso ressaltar que ° principal pres-suposto rnetodoloqlco da ciencra deve ser ° propos ito de captar arealidade assim como ela e. 0 que a clencla e , justifica e a desco-berta da realidade. No fundo, 0 que interessa e a realidade, entendida

nao somente como os condicionamentos que nos clrcundam, mastambem a sociedade nela mesma.

Quando problematizamos a relacao entre sujeito e objeto nas

ctenclas socials, quando reconhecemos que nao somas capazes. por

razoes loqicas e ldeoloqicas, de captar exaustivamente a realidade.estamos na verdade nao desistindo da pesquisa. mas preparando con-

dlcoes mais aperfelcoadas de sua reallzacao, Nao queremos esconder-

nos atras de problemas teorlcos, metodoloqlcos, empfricos e pratlcos:

pelo contrario, queremos enfrenta-los, de forma que consigamos ainda

melhor chegar a realidade. Chegar a realidade significa aproximarmo-

nos sempre mais.

Neste sentldo, a mestra verdadeira da clencla e a realldade, nao

os autores, as escolas. as oplnloes dominantes. Sequer para a ideologia

o conhecimento ideoloqlco pode ser sua meta. porquanto. se a propostae justificar posicoes sociais. a melhor maneira de a fazer e dominarda forma mais realista possfvel a realidade. E e por isto que a disfarce

rna is importante da ideologia e a clencla. Ouase por deflnlcao, a

ideologia nao se apresenta como ideoloqlca. Ainda que fosse umacoerencla logica. nao seria coerencla social.

Se a realidade e lnesqotavel, temos sempre que comecar de novo.

Nenhuma teoria acaba a dlscussao, apenas a repoe ou a redireciona.

o fato comum de que todo teorlco se faz a llusao de ter descoberto a

ultima palavra no assunto e questao social do conhecimento. Nao

passa de estrateqla de convencimento e. bern pensando. prejudica

muito mais do que favorece a respectiva teoria. Porquanto al comeca

a dogmatismo que se caracteriza pelo fato de reduzir 0 mundo ao

tamanho da propria teoria. Nao cansegue ver mais do que permite sua

teoria. ldelas divergentes passarn a ser par definlcao erradas. E trata

como ldeoloqlca toda poslcao que venha de outro lugar.

A partir dai, investe-se a esforco em resguardar a teorla, preser-

vando-a como peca preciosa em perigo. Cerca-se de isencoes, comose fosse absolutamente diferente de outras teorias: diz-se nao ser

ldeoloqlca, garante-se que e neutra, propoe-se como lnsuperavel. A

dlscussao crftica sai de cena, porque vale somente reproduzir a

verdade do grupo. Torna-se um fenorneno repetitivo. no qual a medio-

cridade e resultado fatal. Nao ha mais criatividade. 0 cientista pro-

dutivo e substi tufdo pelo dlsclpulo fiel. A fidel idade a teoria e semprepreferida a sua contestacao crltlca,

A esta altura. onde esta a realidade? Ja foi abandonada como pe-rarnetro principal do esforco cientffico. De urn lado, nao estranha.

porque, sendo as clenclas sociais urn fenomeno social. inevi tavelmente

63

3.5. CI~NCIA DA REALIDADE

Por serem as clenclas sociais em grande parte herdeiras da filo-sofia. muitas vezes lanca-se a suspelta de que produzem mais conversado que descoberta da realidade. E nao sera diffcil encontrar sltuacoes

em que determinada ciencla social e levada a tais nfveis de especula-

<;ao gratuita e descompromissada. que mais parece nao ser ciencla

da realidade.

Num primeiro memento, tal atitude pode demonstrar um desa-

preco preconceituoso frente a filosofia. Como forma de reflexao meto-

doloqlca e de lnestlmavel valor. Nao ha born cientista que nao saiba

U filosofar" sobre sua producao cientffica. Grande parte da mediocri-

dade de muitas analises sociais esta na falta de dlrnensao fllosoflca,

que 0 domfnio de tecnlcas estatfsticas nao substitui jamais. A profun-

didade da analise. constitufda do conhecimento das varlas posicoes

teorlcas importantes. da reflexao penetrante nos fenornenos sob for-mas de hip6teses criativas de trabalho, do cuidado metodoloqlco que

nada adianta sem argumentar. depende em grande parte de referencias

filos6ficas. pelo menos no sentido do conhecimento relativo do roteiro

teorlco e metodoloqlco dos modos de produzir clencla.

E claro e notorlo que a filosofia pode degenerar em sspeculacoes

Irresponsavels e subjetivistas. Mas esta e a rna filosofia. Pensada

metodologicamente. a f ilosofia e instrumento importante para captar

mais adequadamente a realidade. E. no fundo, a medida que nossaexposlcao aqui se vale tarnbem da ftlosofta, e a que esperamos estar

fazendo.

62

 

Page 34: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 34/62

sao lrnlsculdas de ideologia. De outre, at temos urn desafio tlplco destaarea da clencla. A metodologia centra-se em grande parte sobre este

desaflo, procurando acertar um meio-termo produtivo entre a i lusao

das lsencoes ldeoloqlcas e os ideologismos exacerbados. Os cuidados

metodoloqlcos - que neste sentido nao podem ser exagerados -

orientam-se precisamente para tal desafio.

Mais do que nunca, e preciso ressaltar que as cienclas sociais

de modo particular dependem de um ambiente aberto de dlscussao

critica e autocritica. 0 antidoto a ideologia e a critlca a ideologia.Esta critica nao pode iludir-se com a expectativa lnqenua de que ja

nao seria ideoloqica. Mas. sendo autocri tica. produz 0 ambiente neces-

sarlo de criatividade. sem 0 qual as clenclas sociais tornam-se um

palco mediocre de autodefesa.

Como em tudo, 0 espirito crltlco pode ser unilateralizado como

fim em si. Se e expediente metodoloqico, e instrumental. Nao fazemos

a discussao pela dlscussao, mas como instrumento para preservar a

realidade como parametro mais fundamental.

Neste contexto.desempenha grande papel a pratlca, porque ela

nos da ocaalao de percebermos ate que ponto nossas ideias sao

quimeras subjetivas. Ao mesmo tempo. tudo isto nos traz a necessaria

rnodestia de reconhecer que0

conhecimento cientifico e tao-sornenteuma especle de conhecimento. geralmente considerado superior. por-

que teria condicoes melhores de captar a realidade assim como ela e.

Todavia, e sempre possivel encontrarmos gente dotada de capa-

cidade mais aguda de tratar a realidade. sobretudo na pratlca, do que

cientistas. A universidade e frequenternente mais facll de ser vista

como antro de altenacoes do que como criadora de conhecimentos epraticas reais. Pode produzir montes de pesqulsa, para deleite proprio

ou sem vlnculacao nenhuma com a realidade circundante. Pode pro-

duzir somente teoria aerea e distante. Pode produzir apenas exercicios

acadernlcos, supinamente mediocres. Pode produzir uma casta de

cientistas que vivem de uma fama que encobre apenas sua inutilidade

social. embora sejam bem pagos. frequenternente.

Por vezes dispomos de algum conhecimento ja sobre certo pro-blema. mas nem por isto 0 conseguimos resolver. Nem sernpre a

questao maior e 0 conhecimento teorlco da realidade, mas seu trata-

mento pratico, Por exernplo, nao e enigma resolver 0 problema da

unlversallzacao da educacao basica, considerada obtlqatoria pela cons-

titulcao do pais. Nao se quer com isto dizer que conhecemos de forma

suficiente 0 assunto. Em absoluto. Nao existe esta forma suficiente

de conhecer qualquer assunto social. Queremos dizer que 0 problemamaior nao esta na possivel maior ou menor lqnorancla teorlca, mas

que esta na falta de pratlca coerente. ou se]a, na esfera mais polftica

do que tecnlca.

Se as ciencias sociais forem ape heelpassarao de erudicao. De algum modo nas COn leclmento teortco, nao

resolve decorar 0 nome de todas as r~aas~_me ham:~e a. a/guem que

ordern alfabetica. E urn feito memorav~1 uma CI ade grande. pord· - .. '1 • mas serve para que? ..

eru .cao mut: e. no fundo. muito oemosnca Nao t '. . t:

parte constde-avst de nossas clencias soci~I's na-roesa duvdlda de que

d ! d I" pass a e desper-ICI_O e pape escrtto, de polernica. de contestacao vazia. Por vestao cheias de estudantes apenas porque representa ezdes1a' f"I d h' . rn um estu 011 IS aCI. on e a mars conversa sal ta que esforco disciplinado.

6465

 

Page 35: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 35/62

4

C IE N C I A E I D E O L O G IA

grupo social, as divis6es de poder e de classes as idetas d . t c:

t I' ,. ,ornman es

do~ntlOmen os uctoncos especif~cos e suas superacoes, e ass irn porIan e. ..

Ernbo:a haja metodolouos que acreditam haver em ciencias natu-

rais_ tambe,m. som.ente IIlterpreta.<;:6es da realidade, condicionadas por

no<;:oe.sprevlc:s VI gentes e Jama!s capazes de retirar certeza total da

e~perlmentac;ao, parece que ha difer encas notavats entre os dots

nlvel~, como pr etendernos crer. Parece-nos que tambern a! nao e

posstvel esqotar 0 objeto; os conceitos e teorias recortam a realidadce nunca a abrangem toda; neste senti do sao sernpr e ' interpretac;:6es.

porque sao do tarnanho da mao que os constroi. Oeste ponte de vista

loqico podernos fazer a mesma consideracao para as ciencias hurnanase sociais. .

Todavia, a diferenca esta na relacao diferente do sLljeito frente ao

objeto. A relacao de urn maternatico frente a suas equacoas e bern

diver sa daquela de urn econornista do Tercei ro Mundo frente a questao

do subdesenvolvimento. Nao pode ver-se apenas como expectador; e

sernpre tambern ator. 0 argumento de autoridade apresenta-se na

propria cons trucao e nao somente na maneira de construir ou narnaneira de usar a construcao

Porisso imaginamos coerente propor para as ciencias socials Lima

metodologia propria, denorninada dialetica. que nao busca difer enc»

absoluta para com outras metodologias mais prcprias das ciencias

e~atas ~ naturais; ao contrario convive com elas, delas aprende, mas

nao abdica de especif ic idades, pr6pr ias. Falaremos de dia le tica adiante.

Agora levantaremos questoes da ideologia e da neutra lidade cienti fica.

4.1. A IDEOLOGIA E A NEUTRALIDADE

Tentaremos aprofundar a perspectiva da sociologia do conheci-

mento, como contraponto aos elementos da teoria do conheciment~,

Para as clencias socials a um tema central, embora possa haver apll-

cacao semelhante as cienclas naturais e formais.

Estas nao sao ldeoloqlcas intrinsecamente, como as sociais;podem ser ldeoloqlcas extrinsecamente ou no usa que se faz do c?nhe-

c imento. Este nao precisa estar necessariamente liqado a deterrn lnada

pratlca. Oesenvolver 0 saber rnatematlco, ainda que nao sirva para

nada, tarnbern faz sent ido e a uma parte da clencla.

No entanto mesmo sendo a ideologia extrlnseca no caso das

clenclas naturai's e exatas, nao a menos importante ve-las por isto

mesmo tarnbem condicionadas pela hlstoria. 0 fato de a tecnologia

ter-se desenvolvido mals em tempos de guerra, mostra que a ciencla

progride, batida tarnbern pelos interesses da sociedade; e na v,~rd~de

um projeto de dornlnacao da natureza e do homem. Mas, nas cle~clas

naturais e exatas a ideolog ia c ircunda inevitavelmente 0 conhecimen-

to, porque sao construldas tambern no conte~to. social; nas sociais,_ a

ideologia impregna 0 conhecimento no seu mttrno, porque a relacaoentre sujeito e objeto a no fundo de ident idade, nao apenas externa.

A sociologia do conhecimento busca captar tais especificidades,

lembrando que existe sernpre um debito social da clencla, Tal debito e

externo ou interno, conforme se trata de cienclas n3turai: e exat~s

ou das humanas e sociais. Poderlarnos slrnpliflcar a questao atraves

da viqencla do argumento de autoridade. ~m si, nao _e argumento,

porque autoridade justiflca, influencia, d~mlna, mas nao argu~enta.

Um bom argumento nao depende de autoridade alguma. Na realldade.

porern, a impensavel que as clenclas sociais se facarn for~ ~o contextoda propria sociedade, levando-se em conta as caractertstlcas desse

4.2. 0 QUE E IDEOLOGIA?

Nao vamos proper-nos a construc;ao de uma teoria da ideologia,

mas apenas montar uma visao introdut6ria, que nos permita entendercomo a ideologia impregna as ciencias sociais.

/deologia e um sistema teorico-pratico de just ificac;:ao po/it ica

das posicoes socia is . Por tras desta visao. rnanipulamos a ide!a deque 0 Ienorneno do poder e alqo estrutural na sociedade, no sentido

aclrna definido de estrutura. E componente da ordern da estrutura,

quer dizer, um trace lnvartante na hist6ria, [a que nao ha hist6ria quenao tenha apresentado 0 Ienorneno do poder.'

Por mais que revolucoss se proponharn a superar a questao da

desigualdade de poder, na verdade instauram formas diferentes de

poder e nao chegam a elimina-lo. Todavia, nao e algo estrutural no

sentido de preservar uma visao fixista da hlstoria: pelo contrar!o. e

1. P. Demo. Sociotoq ie - Urna lntroducao Critic" (Atlas, 1983), ctr cap iuln sabre ideul oql a ,

6667

 

Page 36: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 36/62

uma das fontes do dlnarnlsrno historlco. A hist6ria, esta semore em

ebullcao, porque acossada interminavelmente tambem por .pr~b. lemas

de poder. E um dos conflitos estruturais que mantern a hlstorla e a

sociedade dlnarnlcas.

o conflito aparece facilmente na desigualdade interna do fe~o"

meno: nao ha poder sem um lado menor que man?~e ~ um lado ma~orque e mandado. As relacoes de mando e de obedlencla p.odem vanar

fortemente, desde formas rnais e menos riqldas. desd~ dltaduras ma-

qulave llcas ate democracias muito participativas, mas sao todas formasde poder e desigualdade.

A partir daf , percebe-se que 0 fenomeno do ~oder, por ser confll-

tuoso e desigual, necessita legitimar-se na socledade, porqu~nto 0

conf li to acarre ta sempre 0 risco de reacao por part~. dos _domma~os

ou dos desiguais. Ao lado da necessidade de leqltlmacao, precisa

ainda dlsfarcar a lmposlcao.

o expedlente usado, de modo geral. para institucionalizar ~ua

leqltlrnacao e dlsfarcar a imposlcao e a producao de repre~enta<;oes

mentais, de ordem te6rica e pratlca, que levam ao ~onv~nclI:nento da

sociedade da normalidade e da necessidade da domm.a<;a?.vlg~nte. Ai sto damos 0 nome de ideologia. E instrumento de [ustiflcacao das

poslcoes socials para que se as tomem c~mo . funcionais, alca~<;a~as

por merlto, necessarlas e legftimas. E asstrn. m~trumento de tnstltu-clonallzacao das desigualdades socials e 0_ CUIdado constante p~r

parte dos privilegiados de coibir a contestacao por parte dos desprl-

vilegiados.

A ideologia tem muitas faces. Do ponto de vista do conhecimento

objetivado, e uma deturpacao da realidade em nf~el exce.ssivo; Tal

deturpacao pode ser maior ou menor; no conhe~lmento ldeoloqlco

predomlna a parte just if icado.ra so~re a ~r.gum_entat lva;. no caso extre-

mo, podemos chegar a mentlra e a falslficacao consclente e preme-

ditada da realidade. Isto tarnbern existe. Encontramos, por exemplo,

dados estatlstlcos inventados ou propositadamente falsificados por

uma lnstltulcao interessada em nao prejudicar sua imagem.

Do ponto de vista da pratica, a ideologia pode ser !alsa. cons~i~n-

cia no senti do de escamotear os rea i s conflitos, 0 carater trnpositlvo

do 'qrupo dornlnante e sua exploracao dos dominados, as rnudancas

historlcas necessarlas, e assim por diante.

Do ponto de vista dos movimentos sociais: a id~ologia e instru-

mento de coesao dos grupos e das classes, a rnedlda que ela~ora

idelas-forca que fundamentem uma crenca comum, um comprormsso

mutuo e 0 entusiasmo do movimento.

Do ponto de vista dos deslquais, a ideologia toma ~u.as.dlrecoes:vinda de clrna, aparece como convencimento da legltlmldad_e da!3

atuais estruturas de poder; vinda de baixo, pode ser a forrnulacao teo-

68

rica e pratlca da contra-ideologia, com vistas a subverter as rela _de poder. ,c;:oes

- Tentamos slrnpllf tca- todos esses mat izes no concei1.o de just if i-cacao, Que_traduz de modo geral 0 movimento tfpico da i~ologia que

e a prod! -,?ao de repres~nt~coes mentais, de ordem te6rica, mas sobre-

tudo pratlca, ? O ~ .a finalldade de inst itucionalizar posic;oes sociais

v~ntaj.osas. A just lf icacao procura caracterizar a leg it imidade da situa-

cao vrqents e recorre aos disfarces de possfveis imposi<;oes mais

severas, evitando a contesta<;ao e a mudanca de poslcao.

Disfarces classtcos da desigualdade sao, por exemplo, 0 apelo a

uma p~ete~sa ordem natural, que teria produzido sociedades superio-res e inferiores, racas mais e menos inteligentes; ou 0 apelo a uma

ordem divina, que teria dado a certas pessoas 0 dom inalienavel de

comando na sociedade; ou 0 apelo a certas idelas que, na aparencta,

prometem ~ ~berdade:. . m~s a realizam somente para aqueles que pos-suem ccndlcdas economlcas para tanto; e assim por diante.

~ A ideologia e fenomeno necessario, porque e t ranspi ra<;ao do fe-

n~m~no do po?er. Seria ellminaval somente se pudessernos tambem

elimlnar 0 fenomeno do poder. Por isso, dlzernos que e ideolog ia ba-

rata tender a acabar com a ideologia, porquanto serla apenas urn dosdisfarces dela.

Do _ponto Ade vista cientffico, a ideologia e de modo geral uma

expressao e_rronea, porquanto mais pretende justif icar posi<;oes do

que_descobnr.a realldade asslm como ela e. Desta postura, e detur-pacao da rea"~ade:.. normalmente de forma inconsciente. Vale, por-tanto, a determma<;ao de controlar a ideologia, de a reduzir ao mlnl-

mo possfvel, de distinguir 0 argumento da Iust tftcacao. Embora nao seelimine, a convivencia lnevitavs] deve ser crftica.

Por outro lado, a ideologia pode tarnbern apresentar faces atraen-

tes. Se nao a podemos evitar, e preferfvel cultivar ideologias menos

deturpadoras e mais voltadas para projetos humanitarios. Os ldeolo-

g~s geralmente nao provem de classes humildes ou se delas provern,

sao alcados a estratos mais altos, porque se especializam intelec-

tualmente de tal forma que ja nao Ihes atingem nfveis mfnimos deso~revivencia. Se assim e, nao fica diffcil entender por que a ideo-

I?gla n~mora ~reponderantemente 0 grupo dominante, ou seja, justi-

fica m~lto mals.a e:strutura de poder dominants do que a dominada.

A.medida q~e 0 ldeo loqo pertence ao grupo pr iv ileg iado da sociedade,

ainda que nao extremamente privilegiado, mas que possa viver a som-bra dos gr~n~~s privilegios, tende a acolitar 0 dominante. Dlspoe-sea elaborar Idelas-for<;a em favor do poder, porque participa no fundodo mesmo projeto de sociedade.

Mas e posslvel 0 ideoloqo que assuma as dores dos dominados,dos oprimidos. Estes dificilmente possuem virtudes intelectuais sufi-

69

 

Page 37: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 37/62

cientes para elaborar sua propria justlflcacao, para inventar ldelas-

-forca, para levantar slmbolos catalisadores do entusiasmo popular,

para cristalizar valores que produzam a necessaria coesao do grupo.

Ainda que 0 ldeoloqo em termos economicos geralmente continue a

fazer parte da carnada mais privilegiada, pode apresentar real identi-

ficacao ideoloqlca com as classes subalternas, na teoria e na pra-

tlca."

Nesse sentido, a ideologia pode ser 0 charme de determinada

teoria, como e 0 caso da teoria marxista. Partindo-se do ponto de vistade que e tarnbem ideoloqica como qualquer teoria social, pode-se

aceitar que sua ldentiflcacao teorlca e pratlca com 0 problema do pro-

letariado empresta-Ihe uma densidade historica pouco comum e que

explica tambern a forca que tem no mundo cientffico e politico.

Se e tarnbern falsa consclencia, porquanto sempre possui pelo

menos pequena dose de deturpacao da realidade, e sobretudo a ma-

nelra de elaborar consclencla hlstorlca. de tomar conhecimento do

mundo, de construir sua mundivlsao que justifique 0 modo de ser, de

viver e de pensar. A ideologia produz coesao social, porque torna-se

elemento identificador politico. E e por isso que prepondera nela 0

lade politico. Possui ineqavel dlmensao teorlca. no sentido de ser

representacao mental e de lancar mao das tori as cientfficas para

sua montagem, mas predomina a pretensao pratlca, porquanto pre-tende-se justificar nao coisas imaginadas, mas reais prlvlleqlos. muito

concretos.

Os prlvileqios sao conquistados ou impostos, nao sao dados ou

apenas encontrados. Por isso, sao periclitantes, historicamente pro-

visorlos, de acordo com a conjuntura do poder. Urge legitimar, para

nao serem contestados. Urge igualmente dlsfarcar lmposlcoes, para

que se as percebam como normais, legftimas e ate necessarlas. Ideo-

logia propoe-se a construir uma crenca comum em valores que se que-

rem comuns, mesmo que nao fossem. Uma ideologia bem montada e 0trace de intellqencla do poder. Para se manter, dispoe de muitos ins-

trumentos, da tradlcao, das lnstitulcoes vigentes, da lrnposlcao ffsica

ou moral, mas igualmente da rnanlpulacao ldeoloqlca.

Gostarfamos de afirmar que as clencias sociais sao inevitavel-mente ideoloqicas, porque sao um fenomeno social, como qualquer

outro. Ou seja, sao construfdas social mente tarnbern ao sabor de um

fluxo historlco movimentado por conflitos da desigualdade social.

Sao tarnbem uma expressao de poder. Contem uma [ustlficacao da

sociedade em que se produzem. Tal [ustiflcacao nao Ihes e algo extrin-

seco, oriundo do posslvel usc, mas algo intrfnseco, interno, da pro-

pria tessitura delas. Nao ha ciencia social que nao seja ldeoloqica."

Disc~timo~, pOi,s,.nao sua lsencao, mas 0 grau malor ou menor dec~mpr.?mlsso ldeoloqlco, Concentramos nossos esfor<;:os nao na eli-

rrunacao del~, mas n~ma ~onvivencia crltica com ela, para que co-

siqamos aqullo que. e parametro fundamental das clenclas sociais:

nelas deve pre?Oml,n~r a constr~<;:ao cientffica sobr a ldeoloqlca.Deve, h.aver satl~fatono controle Ideologico, reducao ~ seus nlvels

ao. rrumrno possfvel, consciencia crft ica de sua vigencia e constantecuidado contra ela.

A ci~ncia e um fenomeno de aproxirnacoes sucesslvas e cres-~entes; nao son:ent~ por questoes logicas de nao podermos construir

m~ comprovac,:ao final, 'p?r9uanto, se nao aceitamos um termo prl-m~lr? eVldente,. sua deflnlC;ao subseqOente, traz uma reqressao ao

I~flnlto, _con~o vlamos.:_ mas tarnbern por causa da imiscu i<;:ao ideolo-

glca. , ~ao ha depuracan total da ideologia, mas e uma tarefa tao ne-cessaria quanto inacabavel.

_ ~uan?o. as ciencias sociais levantam a pretencao de se tornaremnao ldeoloqtcas. objetivas, evidentes, caern no ridfculo mais penoso

de sua propna construcao hlstorica, porque acabam apenas encobrin-

do uma nova farsa. Estao apenas fazendo autodefesa, disfar<;:ando

novas forma~ ~e c~nvenci~e~to do publico, camuflando impoSic,:oesque se desejartarn muuestronavets.

. Derrub_ar uma ideologia, tambern e urn projeto ldeoloqlco, Justl-

ficarnos, _nao por~ue acabanamos com 0 fenomeno da ideologia ou

P?rque nao estanamos comprometidos com alguma forma dela mas

sl~plesmen!e porque imaginamos estar imbufdos de uma contra'-ideo-

loqla pref~nve!. Dizemos ..preferfvel" preeisamente porque nao sa-

bena~os .Jamals demonstrar, apenas por argumentos objetivos queseria evidente " ,

Aqui esta 0 elemento principal de distincao entre clenclas exatas

e naturais e clencias humanas e soeiais. E isso justifiea uma metodo-

loga propria para elas, embora nao absolutamente propria.'

4.3. O B JE T IV ID A D E E N E UT RA L ID A D E

Dizfamos que, em ciencias socials, nao e realizavel a objetivida-

d~, ~as a objetiva9~0, entendida como a esforco e 0 processo inter-

~lnayel e necessano de atingir a realidade, rnals do que retratos

fldedlqnos. Mesmo a imagem de retrato e erronea, porque depende

4. c. H. ~s?ob~r, Cie".ci~ da Hist6ria e Ideologia (Graal, 1978); L. Althusser, "Sobre el Concepto deIdeolog!a , In: Potemtce so~re Marxismo y Humanismo, col. Minima 13 ,(Siglo 21, 1968) ; Idem,

Ideolofl,la < :. Aparato.s Ideol6glcos do Estado (Tempo Brasileiro, 1976); E. Veron, Ideologla, Estrutura,

Comunlca9ao. (.Cultrlx, 19~0); Center For Contemporary Cultural Studies (org.), Da Ideologla (Zahar,1980); I. Zeltlln, tdeotoat« y Teoris Sociol6gica (Amorrortu, 1P73); P. Lira, Uteratura e Ideoloaia

(Vozes, 1979); R. Blackburn (org.), Ideoloa!« na Giencia Social (Paz e Terra 1982)' J. Ranclere, Sabre

a Teoria da ldeolooie (Portucalense, 1971); P. Vilar, Marxismo e Hist6ri~ _ Polemlca com LouisAlthusser (Praxis, 19741.

2. P. Demo, Intelectuais e Vivaldinos - Da Crltlce Acr/tica (Sao Paulo, Edit. Aimed, 1982).3. P. Demo, Metodologia Glentifica em Giencias Sociais (Atlas, 1980), cfr. sobretudo "Demarcacao

Cientif ica", "0 Argumento de Autoridade" e "Sociedade Provis6ria - Perspectivas de uma Metodo-logia Processual Dlaletlca",

70 71

 

Page 38: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 38/62

Em segundo lugar, se a lsencao de jufzos de valor e um mitenao seria menos irracional cair no extremo oposto, ou seja, coloca;

o enqajamento como meta exclusiva da ciencla. A propria efetividadedo engajamento ficaria apenas mais comprometida, caso 0 cientista

nao 0 conseguisse distinguir do conhecimento propriamente dlto."

Em terceiro lugar, precisamos caracterizar alguma~ dlstlncoes

importantes no trabalho cientifico, quando nos referimos a questaoda neutralidade. Nao podemos confundir fato e valor, mesmo que na

vida real todo fato, ao ser interpretado de forma contextuada social-mente, nao escape pelo menos de laivos valorativos. Mas, logica-

mente, sao dois fenomenos dist intos.

Para percebermos a dlstlncao, basta olharmos para a impossibi-

lidade de deduzirmos urn do outro. De urn fa to nao segue urn valor, e

vice-versa. Por exemplo, do fato de que toda a historla conhecida

tenha sido marcada pela desloualdade social nao segue que assim

deva ser. Do fato de que a mulher ate hoje aparece socialmente sub-

missa nao segue que assim deva ser.

Ao mesmo tempo, se considerarmos a paz um valor, nao segue

que de fa to exista paz. au, se consideramos os direitos humanos urn

valor inalienavel e reconhecido pela aNU, nao segue que sejam res-

peitados concretamente.

Nao podemos tarnbern confundir meio e fim, par mais que napratlca ambos aparecarn no mesmo contexte e lndlferenclavels, Mes-

mo que um meio venha constantemente ligado a urn fim especifico.

ainda ai cabe a dlstlncao, Tomemos 0 exemplo da tecnologia. que eda ordem dos meios. Pelo fa to de ser empregada preponderante-

mente para fins destrutivos, isso nao quer dizer que nao poderia

ser empregada para f ins nao destrut ivos. t log icamente errado tornar

o meio urn fim em si, ou 0 contrarlo. a crescimento economlco pa-

rece ser um meio de desenvolvimento, embora seja continuamente

transformado em fim de si mesmo.

Seja como for, a questao dos meios esta sernpre a reboque dos

fins, na pratlca, onde as coisas aparecem vinculadas. Nao discutir os

fins, por razoes de neutralidade, e simplesmente adota-los e Ia nao

neutrarnente. E al emerge uma questao importante para as clenclassociais: nao podem ser vistas somente como instrumento de conhe-

cirnento e de manlpulacao da realidade, isentando-se da ideologia e

do uso que venha a ser feito delas."

Diziamos ja que as clencias sociais (e talvez tarnbem as outras)

sao um projeto tarnbem social, ou seja, de [ustificacao das estruturas

dominantes de poder. a que mais produziram ate hoje foram certa-

mente tecnicas de controle social, atraves das quais se pode influe_n-

ciar os outros (tecnlcas psicoloq lcas de propaqanda, de manipulac;ao

tarnbem de outros fatores. Por isso, nao conseguimos produzir meras

descrlcoes, frias e neutras, que fossem a reproducao perfeita do obje-

o descrito. Ao falarmos de objeto construldo, transmitiamos precisa-

mente esta preocupacao.

a processo de objetlvacao, porern, e 0 criteria interno mais im-

portante de cient ificidade. Ao reconhecermos que as clenclas sociais

sao necessariamente ideol6gicas, nao queremos ldeoloqlza-las: que-

remos desldeoloqlza-las: apenas, isto nao traz a elimlnacao da ideo-

logia, mas a convivencla critica, capaz de coloca-la na construcaocientifica como parte menor.

Neutralidade significa lsencao de [uizos de valor. Se o que disse-

mas antes tem fundamento, nao ha como nao reconhecer que as clen-

cias sociais sao valorativas. Seu objeto nao e nem pode ser neutro.

Se existe pelo menos relativa identidade entre sujeito e objeto, nao

ha como imaginar urn sujeito que nao seja subjetivo, principal mente

consigo mesmo. A obsessao pela neutralidade acaba eliminando 0

suje ito no processo de conhecimento.

Dizemos, pois, que nao nos propomos a ser neutros, porque isto

seria apenas outra forma de valorar as relacces entre sujeito e objeto.

t interessante notar que ha autores positivistas modernos, sobre-

tudo Albert, que admitem ser a clencla neutra uma opcao entre

outras possiveis, mas que nao e factivel fundamentar objetiva e neu-tramente em favor de uma clencla neutra.'

Muitas vezes aponta-se para 0 fenomeno dos paises nao alinha-

dos em politica. A primeira vista, pareceriam nao ter poslcao tomada.

Mas, olhando bern, 0 nao-alinharnento e tao-somente outra forma de

posicionar-se, ou seja, a adocao de outra linha de conduta. Nao sao

propriamente palses neutros, mas outro bloco de poder.

Todavia, vale para a neutralidade coisas semelhantes que apll-

cavamos a objetividade. Para estabelecermos dlst lncao ent re os dois

termos, poderfamos definir a objetividade mais da otlca do objeto e

a neutralidade mais da otlca do sujeito. No fundo, traduzem 0 rnes-

mo problema, apenas visto de pontos de vista diversificados, mas no

mesmo contexte.'Em primeiro lugar, e mais racional e realista aceitar 0 sujeito

como nao neutro, e a partir dal elaborar a possibilidade de reducao

da falta de isencao de juizos de valor. au, se aceitarmos que a po-

sicao da neutralidade e apenas outra opcao, 0 que buscamos e urn

comportamento mais isento de julzos de valor, nao totalmente isento.

5. H. Albert, Tratado da Razao Critics (Tempo Braslleiro, 1976).

6 . P . Demo, Metod%gia Cient if ica em ctsnctes Sociais, op. c it ., p , 83 ss.: R . Dahrendor f, "Clenc la

Social y Julcios de Valor". In: Sociedad y Libertad (Teenos, 1971): M. Weber, "Die ObJektlvl taet

Sozialwlssensehaftlieher Erkenntnls", in: soz to toate, We/ tgesch icht ll che Ana /ysen, Pol ii lk (KroenerVerlag, 1964).

7. H. Japiassu, 0 Mlto de Neutral ldade Cient if lca (Imago, 1975).

8. J. Habermas. Conhecimento • In teres•• (Taha. 1982).

72 13

 

Page 39: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 39/62

comportamental, de penetracao subliminar, etc.), se pode evitar mu-

dancas indesejadas de cima (tecntcas de soclallzacao, de cooptacaopolltica, de rnanlpulacao de movimentos sociais, etc.I, se pode pro-

duzir 0 especialista adaptado (0 tecnlco que nao discute fins, 0 buro-

crata apenas administrador, 0 economista apenas gerente, etc.), e

assim por diante.

Acreditar numa universidade cienti ficamente neutra 13l iteralmen-

te "cair no conto do viqario ". A poslcao de neutralidade ou 13mali-

ciosa, de quem busca al uma estrateqia de aceltacao nao contestada,

ou 13 lnqenua, de quem nao percebe 0 engajamento da neutralidade.

Dois extremos nos parecem prejudiciais ao processo cientifico.

De urn lado, aparece 0 extrema lnqenuo ou malicioso da neutral idade.

Faz sentido 0 esforco e 0 processo de formacao de um sujeito que

saiba criticamente perceber seus engajamentos, reduzindo a lncursao

excess iva de juizos de valor. As tecnlcas de coleta e de mensuracao

dos dados, de expertmentacao, de observacao, de tratamento empi-

rico e estatfstico foram em grande parte inventadas para coibir a

lncursao valorativa nas clenclas sociais. Possuem nisto grande merl to,

desde que nao queiram simplesmente imitar as clenclas exatas e na-

turais, reduzindo a realidade social aqullo que seria observavel e

exoerlmentavel, Desde ja nao saberiamos estudar a ideologia e os

valores, porque di fici lmente os reduzimos a expressoes rnensuravels.

De todos os modos, 13 importante a analise tranquila, relativa-

mente distanciada, ponderada, de alquern que toma como mestra ba-

sica a realidade assim como ela 13,nao assim como gostariamos que

fosse. Essa atitude 13construida atraves de um processo de treina-

mento, ao qual serve em grande parte 0 ti rocinio unlversl tarlo, Toda-

via, nao pode ser assumida como atitude tendencial. dada, nao pro-

blematlca. 0 ponto de partida realista 130 contrarlo: tendencialmente

interpretamos em excesso a realidade, no sentido de ve-la muito mais

com a cor esperada ou desejada do que a partir dela mesma.

Assim, uma atitude analltlca, te6rica e pratlca tranqillla significa

o produto de uma consclencia crltlca. capaz de aceitar suas tend en-

cias a forcar os fatos a seu favor. E uma ascese constante, nao urn

resultado definitivo, como muitas vezes se tem a lrnpressao de cien-

tistas sociais que se imaginam evidentes e objetivos.

De outro lado, aparece 0 exremo do engajamento ativista, sem

preocupacoes te6ricas, colocando a pratlca a revelia da teoria. E pre-

ciso ter em mente, em primeiro lugar, que 0 engajamento nao precisa

ser ideologicamente 0 desejavel, porquanto pode haver 0 cientista

social tanto engajado no nazismo quanto na democracia. Assim, 0

engajamento em si nao precisa ser "born". Em segundo lugar, 0 enga-

jamento nao precisa ajudar nem atrapalhar 0 conhecimento e a ma-

nlpulacao da realidade. Nao precisa ajudar, se ja for ativismo deso-

rientado, pratica sem reflexao crltlca, ac;:ao pela acao. Nao precisa

atrapalhar, se for critico e autocritico, e ai pode ate mesmo ser a

grande insplracao cientif ica.

No meio destes extremos, podemos apresentar uma poslcao inter-

media, l igada a postura herrneneutlca." Esta caracterlza-se pelo born

nivel da lndaqacao te6ri~a. e crltlca, mas nao se de~vinc~ ~unca t:condicionamentos da pratica e do contexto das coisas. LJIIstmgue !or

rna de conteudo, fato de valor, meio de fim, mas nao perd~ de ,vista

que na pratlca real tudo aparece num so contexto ., ~ao ha co-

nhecimento ul terior sem conhecimento prevlo, sem tradlc;:ao._Nen.hum

texto tem em si somente toda sua expllcacao. As linhas. nao dlze_m

tudo. As entrelinhas por vezes dizem mais. 0 senti do do dlsc~rso nao

13uma forma transparente e definitiva, mas tambern um conjunto dersssonanclas, que precisamos buscar igualmente fora e antes dele.

Nao ha teoria sem pratlca, e vice-versa, mas ambas possuem

nlvels pr6prios de densidade. Nao se pode embaralhar a~ dua~, nem

sspara-las de forma estanque. A hermeneutica proc~ra liqar !IOS da

meada, compor quadros contextuais de compreeAns~o, pesqul~ar asgretas das palavras e do disc.urso, ouvir ressonancias que vem de

longe, de antes, do meio arnbiente.

Funda a perspectiva da objetlvacao, que esta num m~i?-ter~o

entre a objetividade neutra e 0 engajamento confuso. "A pr~tlca na?

substitui a teoria e vice-versa. Para transformarmos bern a. re~lI-dade 13preciso conhece-Ia "bern". Mas nao 13a~sim que p~lmel~o

necessitamos conhecer, depois transformar. As corsas na pratl?a sao

concomitantes; 13 muito possivel e desejavel conhecer pratlcando

e prat icar conhecendo.

4.4. A CIENCIA E UMA UTOPIA

Para 0 tipo de poslcao metodol6gica aqui fundamentada, 0 c~n-

ceito de utopia 13 importante. Significa a presence ?e proc.e~~os m-

termlnavels na realidade, idealizados acima das rears possibilidades

hlstortcas. mas importantes para conservarmos a historicidade do

processo."

Diziamos que a ciencia 13uma questao de aproximadac;:a_9 suc,e~-siva e crescente da realidade. Nunca a esgota, seja por raz~e~. loql-

cas seja por razfies sociais. Todavia, fazemo-nos sempre a ldela de

um~ clencla perfeita, aquela que nos desse 0, ?onheciment.o. completoda realidade e a possibilidade de dominio pratico total. Crltlcamos Aas

teorias conhecidas, porque encontramos defeitos. Ma~ s~ _todas tern

defeitos, tambern a teoria que apresentamos em substltulcao .a ~utra,

por que nos dedicariamos a superar constantemente as teonasi

9 J. Haberrnas, z» l.oatk der ,<;ozia/wis.sens~.ha/ften. r~uhrkam~, 1970). SS' R Dahrendorf.

10. P. Demo, Metod%gia C ient if ica em Cienclas 809,a ls , oo. CIt., p. 25, SS. e 184 Di~te i;ca da Espe-'Alem da utoola", in: Ensa;os de Tearle da Socledede (Zahar, 1974), P. Furter,

renee (Paz e Terra, 1974).

74 75

 

Mesmo que tenhamos de conviver sempre com 0 erro, e 'a uto-

pia da verdade que n?s impele ~ com.bate-Io sempre ..Como. ut~pia, e 5

Page 40: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 40/62

por definicao irrealizavel. Mas e preC1SO,nesse sentldo multo irnpor-

tante, para manter acesa a luz que interminavelmente busca uma

clencia mais aceltavel.

Definir a clencia como processo significa ve-la como um inces-

sante vir-a-set, como uma fonte imorredoura de indaqacao sobre a

realidade. como um movimento sempre a caminho e em constante

questionamento da realidade e de si mesma. Morreria a ciencia se

col hesse resul tados definit ivos. como rnorre, por exernplo, no dogma-

tismo ou no conformismo. ou no mimetismo. Continuamos sempre a

pesquisar. a desvendar novas facetas do real. a questionar 0 que jafizemos. porque acreditamos que nao existe a ultima palavra. ou seja,

nao ha na pratica a verdade. a evidencia, a certeza.

A criatividade cientffica e a filha legftima da utopia da ciencla.

Criar significa nao submeter-se aos parametros do ja conhecido. do ja

visto. do ja acontecido. Ouer dizer contestar as coisas como se apre-

sentam e parti r para outra alternativa de composicao. Ouer dizer nao

tomar a hlstoria passada como parametro do futuro. Ouer dizer acre-

ditar no novo. no insperado. na virada. no saito qualitativo.

Do contra rio. estarfamos condenados ao dogmatismo. ao fana-

tisrno, a irnltacao, a reproducao das coisas. E por lsso, tarnbern, nao

e possfvel reduzir as cienclas sociais a mera defesa de um projeto

de dominacao e de desigualdade. A ciencia que queremos e aquelados nossos sonhos. capaz de produzir conhecimento e pratlca que

garantam uma sociedade habitavel, menos conflituosa. menos de-

sigual.

Tambern por causa disso, as clenclas sociais nao podem ser mera

discussao de meios. em vista de fins nao discutidos. Nao podem ser

apenas treinamento profissional. Pelo contrario, devem ser formacao

educativa de cidadaos capazes de definir seu destino. A discussao

critlca e autocritica e metodologia basica, na qualidade de expediente

fundamental para preservar 0 processo cientffico aberto e criativo e

nao excessivamente subjugado a ideologias de autodefesa.

A clencia nao e . pols, a acurnulacao de resultados definitivos.

E principal mente 0 questionamento lnesqotavel de uma realidade re-conhecida tambern como inesqotavel. Sobretudo. as ciencias sociais

sao nesse sentido um corpo irrequieto. lntranqilllo, curioso. Seu char-

me esta em nao poderem ser frias. estatlcas, neutras. Nao conse-

guem apenas descrever problemas. Sempre tambern provocam a

enfrenta-los. Sao muito mais um desafio ao homem do que a guarda

de resultados obtidos e armazenados. Conseguem reinventar-se. Mui-

tas vezes sao azedas e impertinentes. No fundo. sao hlstorlcas, ouseja, irrequietas e criativas como a propria historia.

T E O R I A E P R A T I C A

5.1. OBSERVAC;OES INICIAIS

Uma das caracterfsticas das clenclas sociais e de terem uma

vlnculacao intrfnseca com a pratica, de tal ordem que a omlssao pra-

tica torna-se inevitavelmente uma especle de pratlca. 0 descompro-

misso e uma forma de compromisso, ja que a lsencao e no fundo

outra forma de tomar poslcao.

Nas outras clenclas a pratlca aparece extrinsecamente a cons-trucao clentlflca, ao nfvel do seu uso e da poslcao polltlca do cientistacomo cldadao, Por ser extrfnseca nao e menos importante, nem pre-

cisa ser menor 0 compromisso. Mas, do ponto de vista metodoloqlco,

e muito diferente, como vfamos.

Existem. por outra, pratlcas que nao sao politlcas ou tendencial-

mente politicas. Ha as profissionais, dedicadas ao treinamento. ou

aquelas experimentais. dedicadas a vertflcacao ?e hip.?te~es teorl-

cas, e assim por diante. De todos os modos, sua lrnportancla _para as

clenclas sociais e capital, porquanto marcam com profundidade a

relevancla das clenclas sociais para a sociedade, bem como 0 tipo

de metodologia cientffica que Ihes cabe.

5.2. A IMPORTANCIA DA PRATICA

76

Para as clenclas sociais, uma teoria desligada da prattca nao

chega sequer a ser uma teoria. E e nesse sentido que muitos diriam

ser a pratica 0 criterlo da verdade tecrlca.

Foi inventada a expressao "pratlca teorlca " sobretudo como auto-

defesa de cientistas que se imaginam apenas dedicados a teoria, en-quanto outros se dedicar iam a pratlca. Segundo essa postura, alguns

77

 

Page 41: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 41/62

pr!vilegiados pensam, outros menos dotados "carregam 0 piano".

Naose pode negar que existe em clenclas sociais uma tendencla

~ist~rica a fuga teorlca, com medo da pratlca. A pretensa revolucao

e feita apenas na sala de aula: fora dela, a vida continua como se

nada tivesse aver uma coisa com a outra. Por outra, multas vezes a crl-

tica nao passa de charme modista, porque nao acarreta nenhuma con-

sequencia pratica. Tudo isso acaba transmitindo as clenclas sociais a

lmaqem de atividade parasitarla e inutil que frecuenternente tern e

nao sem ,r~zao. Podem ser incapazes de resolver um pequeno pro-

ble~a pratlco, embora saibam virtuosamente criticar tudo, encontrardefeltos em tudo, deterger tudo. Sao tao mestres da destrulcao quan-

~o covardes da construcao. Por isso mesmo, a pratlca e algo muitormportante.

No entanto, nao se pode afirmar que a pratica e 0 crlterlo da ver-

dade pura ~ simp}~smente, ja que de uma mesma teoria se podem

deduzlr varras pratlcas, inclusive contraditorlas. Ligar 0 verdadeiro

necessarlamenta ao pratlco e assumir acriticamente a variedade das

prat ica~. Da me.s'!l~ teoria .marxista, por exemplo, deduzern-se pratl-cas ate contraditorlas - dlqamos, a versao sovletlca e chinesa _,

que p~etendem ser verdadeiras. Assim, 0 mero fa to de serem pratt-c~s na~ Ihes. qarante .0 titulo de verdadeiras. Esse problema ganha

~Imensao mars explfcita, se tentamos vislumbrar uma relacao dlale-

tica entre teoria e pratlca.

A teoria usa conceit?s teorlcos. obviamente, ou seja, abstratos,

mes~o q~e os_ tenha retirado do concreto, porquanto nao se poe a

ex~llcar sltuacoes concretas individuais, mas a regularidade do aeon-

teclrnento concreto. Nao ha como escapar ao nivel abstrato da teoria

que f~nda tarnbern sua capacidade de qenerallzacao. Talvez se pudes-

se ate taxa~ esta optlca de vlclo da clencla de tlpo ocldental, mas no

mom~nto nao sab~m~s. fazer clencta ?e maneira diversa, mesmo quea revl~tam_os de dlaletlca, Esta tambem nao escapa a certa dose de

f~r~a~lzac;oes, embora seu fenorneno priv ileg iado sejam as translcoeshistoricas.

vindicar exclusividade hlstorica. do ponto de vista clentifico, embora

todas fac;am isto do ponto de vista ldeoloqlco.

Assim, pratlca vem entendida aqui preferencia lmente na sua optlca

politica, de compromisso com realidades hlstorlcas determinadas na

acepcao ideoloqlca, Recai por isso sempre na exclusao de outras

possibilidades reais. Nao se pode praticar a teoria em sua general i-

dade. Na pratica nao temos, portanto, ..0" marxismo, mas flarxismos

variados, todos com pretensoes de serem lnterpretacoes fidedignas

de Marx. Trata-se, portanto, na pratica, de interpretacoes, ou seja,

contextos ideoloqlcos que privilegiam determinadas poslcoes em de-

trimento de outras. Ao mesmo tempo, isso leva a excluir outras pra-

ticas como erroneas. ou pelo menos com dose menor de acerto. Se

tomarmos como exemplo a questao biblica, vista da optlca metodo-

loqlca, nao de possivel fe, parece clara tal consequencia. Nao pode

haver lnterpretacao unlca, a nao ser sobre a base de um argumento

de autoridade. Cada lnterpretacao imagina ser a verdadeira, e busca

excluir as outras. Nao se pratica a Biblia na sua pureza teorlca. mas

dent ro de uma lnterpretacao especifica.

o compromisso hlstorlco da pratica significa tambern "sular as

rnaos ", porque se deixa a pretensa pureza da teoria e desce-se ao

terra-a-terra, embrenhando-se em compromissos ldeoloqlcos sempre

crltlcavels por deflnlcao. No fundo, e uma qualidade essencial do

teorlco que busca superar a allenacao, A teoria pode dar a lrnpressaode pureza, exatamente porque pode fugir aos condicionamentos con-

cretos de sua relatlvlzacao: mas se ficar apenas nisso, torna-se falsa

a irnpressao de pureza, porque 0 pretenso descompromisso acaba

sendo um compromisso com a sltuacao vigente. Torna-se, no fundo,

uma ..sujeira " ordinaria, porque nem sequer sabe disto, quando ing·e-

nua, ou usa 0 descompromisso como estra teqla da manutencao da posl-

cao, quando maliciosa.

A grandeza da pratica esta em completar a teoria, submetendo-a

a prova concreta, para se poder verificar se 0 discurso tem reais

condlcoes de rnanlpulacao da realidade, mas esta, sobretudo, na di-

mensae politica de realizacao ideoloqica, no sentido de coerencla

loqlca e social. Somente ela pode dizer se uma teoria e pura inven-

cao gratuita, mesmo que esse teste nao possa ser deflnltlvo, porqueja seria exigir demais da clencla.

Duas, pois, sao as grandezas da pratlca: de um lado, 0 teste da

realidade concreta, at raves do qual experimentamos se estamos dian-

te de um objeto construido ou de um objeto inventado e alienado; d~

outro, a reallzacao da coerencia ideoloqica, atraves da qual curnpn-

mos 0 que prometemos na teoria.

A mtserla da pratlca esta em estreitar inevitavelmente a riqueza

da totalidade teorica e de introduzir as determlnacoes sociais do dfe-

norneno cientifico. Pratica e sempre apenas uma versao. uma as

~e

Nesse senti do, de toda teoria pode emanar uma aura de des-

compromisso com a realidade concreta. Uma teoria da revolucao naopode apenas explicar a revolucao russa, porque esta seria um dos

casos. s~b~umidos pela teoria; embora respeitando as individual ida-

des .hlstoncas - aqullo que cada revolucao tem de irrepetivel -, ateorta coloca-se acima do caso concreto.

A ~ratica, por sua ,v.ez, e sempre uma das aplicacoes possiveisda. teorla. Nenhuma pratlca esgota a generalidade da teoria, sendo

pots, u,~a das formulas historlcas de aplicacao da teoria. Em nenhu~

ma pratica esqota-se a teoria marxista, freudiana, piagetiana etc.

Cada uma contem sua verdade hlstorlca, mas nenhuma poderia rei-

78

 

tir apenas a inflndavel dlscussao teorlca. A dlscussao sobre demo-

Page 42: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 42/62

lnterpretacoes eoneretas possiveis. Apela para 0 argumento de auto-ridade, a medida que preeisa exeluir as outras pratlcas como menos

aceitavels, Qualquer eompromisso hlstorlco preeisa assumir as rnl-

serlas da hlstorla: toda pratlca contern contradlcoes, concessoes,

dogmatismos etc., "defeitos" sem os quais nao se pode fazer hlsto-

ria. Toda pratica e inevitavelmente ldeoloqlca, porque, nao se po-

dendo demonstrar em definitivo que seja a unlca pratica possivel a

partir de eerta teoria, sua rnanutencao esta necessaria mente ligada

ao esforco dlario de leqltlrnacao da ordem implantada e de defesa

das poslcoes diretivas eonseguidas na htstorla, Claramente, seraideoloqlca a tentativa de mostrar que certa pratlca hlstorlca seria a

unlca aceltavel na hlstorla.

Tais mlsertas da pratlca costumam apavorar os tecrlcos. Em pri-

meiro lugar, porque se sentem expostos a crltlca, ja que, sendo a

pratlca uma opcao entre outras e nao esgotando nunea a realidade

toda, e crltlcavel por deflnicao. Uma das maneiras de fugir a critlca

e nao fazer nada. Ever 0 mundo atraves da janela da sala de aula

ou atraves das dlscussoes livres dos barzinhos, de acordo com amoda intelectual do momento. Em segundo lugar, a pratlca da tra-

balho. Supoe arreqacar as mangas e cumprir 0 que se dizia na teoria.

Mais facll e especular, escrever livros, suscitar polernlca. Em ter-

eeiro lugar, a pratlca compromete, no senti do de poder levar a glo-

rifica<;:ao ou execracao hlstorlcas. Nada praticar pode ser um expe-diente para fugir a condenacao hlstorlca, como se isto nao fosse

igualmente um compromisso condenavel, No fundo, e a arte de nao

se comprometer com nenhum lado, ficar "em cima do muro ", para

sacar vantagens de tudo. ~ a estrateqia de jogar sempre no time quevence.' .

Fazer apenas teoria tarnbern e uma pratlca, mas uma pratica alie-

nada. Altenacao, eontudo, nao e descompromisso, mas uma forma

ineoerente de eompromisso, ingenuo ou malieioso. Teoria alienada

e precisamente aquela que nao busca 0 teste da pratlca, nem realiza

a coerencla ideoloqlca. A docencia tambern e uma prat lca. Dizemos

que e alienada, se prega em teoria a revolucao, por exemplo, e na

pratlca nao aparece consequencla alguma. Sera alienada tarnbem se,

pregando-se crltlca, nao aceitar ser criticada. ~ isentar-se daqui 1 0que aplica aos outros. Podemos dizer que somente em teoria existe

"a" democracia; na pratica temos democracias relativas, realizadas

em condicionamentos historlcos concretos, por deflnlcao imperfeitas

e labels, critlcavels e superavels como sempre. ~ pura teoria ima-

ginar 0 governo do povo, pelo povo e para 0 povo. Na pratica, todas

as versoes ditas dernocratlcas no maximo aproximam-se desse ideal

(utopia) teorlco e acabam por justificar uma forma de dornlnacao,

ocasionalmente rnenos repress iva. Todavia, a hlstorla nao pode admi-

cracia deve parar em certo momenta e partir para a sua reallzacao.Tal reallzacao assume inevitavelmente compromissos crlticavels, en-

volve-se com uma estrutura de dominacao. com condicionamentoshistoricos, alguns superavels, outros insuperaveis, como a necessi-

dade de defesa da pratica contra outras praticas. E uma das manhas

classlcas do te6rico permaneeer apenas na discussao geral, evitan-

do deseer a pratlca, com medo do compromisso hlstorlco. A pratlca

inevitavelmente se expoe, tende ao fanatismo, exalta estruturas hie-

rarquicas, pode ser obtusa porque soconhece como real 0 que man i-

pula eoneretamente; mas tem seu lado grandioso: a coragem deassumir a condenacao hlstorica, a critica. A teoria pura, alern de nao

existir, ao imaginar-se por eima dos eompromissos, torna-se, por isso

mesmo, algo sempre mais condenavel, porque a pretensa falta de

compromisso e sempre um eompromisso lnqenuo ou rnaldoso.'

Neste mesmo contexto, coloea-se a discussao sobre verdadeira

e falsa consclencla. A nocao de verdadeira consciencla somente pode

ser definida num plano' de reallzacao historica, 0 que equivale a

dizer que nao vai alern de uma verdade historica. Concretamente nao

se pode definir uma ciencla como absolutamente verdadeira, por-

que seria instalar 0 dogma como resultado principal do processo

cientif ico. Historieamente, porern, pode-se fundamentar 0 carater mais

verdadeiro de uma consciencia, tendo em vista 0 crlterio relativo da

pratlca. Tal criterio e apenas relativo, tarnbern porque varia na histo-

ria, sobretudo porque a pratica nao substitui a teoria. No caso do

marxismo, por exemplo, pode-se atribuir ao proletariado consciencla

verdadeira, por uma serie de razoes que sao mais da ordem da justi-

ficacao do que da arqurnentacao: por tratar-se da classe rnajorltaria.

ou daquela capaz de superar 0 conflito basico, ou daquela que e por-

tadora da contradlcao principal da historla conjuntural etc.

Todavia, e preciso ver que a definlcao de' verdadeira conscien-

cia nao pode ser feita sem 0 apelo a autoridade, que acaba sendo a

justificacao preponderante do que e ou nao e verdadeiro. Ai ·coloca-

-se 0 problema complicado de atribuir consciencia verdadeira ao par-

tido, que assume a postura de marco divisorlo: os que com ele eon-

cordam sao "verdadei ros ", os que critieam sao "falsos ". A cienclaverdadeira passara a ser aquela que favorece a orientacao do partido;

a outra sera reacionaria. Nao sendo a pratica U rn fen6meno espon-

taneo, necessita de orqanlzacao polltlca. Tal orqanlzacao acarreta 0

reconhecimento de uma estrutura de poder, diante da qual haveramais subrnissao do que contestacao.

1. P. Demo, /nte/ectuais e Viva/dinos - Da Critice Acritlca (Aimed, 1982).

2. A. S. Vazquez , Fi/osofia da Praxis (Paz e Terra. 1977); F. Chatelet. Logos e Praxis (Paz e Terra.1972); U. Eco, Apocalipticos e /ntegrados (Perspectiva. 1976); M. lowy, Para una Socioloqie de los/nte/ectua/es Revo/ucionarios (Siglo 21. 1978); K. Kosik, Dietetice do Concreto (Paz e Terra. 1976).

8081

 

Muitos marxistas tenderiam aver na Unlao Sovletlca mais falsa

Page 43: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 43/62

do que verdadeira consclencla, bem como nos trabalhadores euro-

peus, pelo fato de se terem inserido na classe media e nao deseja-rem mais a superacao do sistema capitalis ta.

Insistir apenas no contrarlo, contudo, e sair da hlstoria e i~a-

ginar-se assistindo-a de camarote. E : preciso recol?car a. q~es~ao

ldeoloqlca: um dos resultados importantes das teorias socials e a

leqltlmacao de estruturas dominativas, revoluclonarlas, reformistas,

conservadoras, ou reaclonarlas. Toda pratlca pode ser vituperada e

nao sem mesquinharia hlstorlca, Mas e ela que da a tempera a teoria

e faz do teorlco um elemento aproveltavel, precisamente porque 0

faz condenavel na historia. Para sermos pratlcos, precisamos ser "par-

tldartos ", Assumimos as virtudes e vlclos do "partido". Sem pelo

menos algum "fanatismo" nao se pratica nada. Se a pratlca tambem

estreita e trai a teoria, igualmente a realiza.

Essa dlaletlca nao pode ser perdida de vista. A teorla nao subs-

titui a pratlca e vice-versa. Sao nlveis com certa autonomia, como

poles de um todo dlnamlco. Assim, nada e tao proveitoso para uma

teoria como uma boa pratica, e vice-versa.

Ao mesmo tempo, nao existe coerencla perfeita entre teoria ~

pratlca, porque 0 homem nao e tao logico quanto social. ,Em ~udo ha

pelo menos alguma dose de allenacao, Somente ? .santo e, multo co~-

rente, porque faz 0 que diz, de modo geral. Na pratlC?, ~orem, a. teorlae "outra", conforme se ere, quase ao nlvel de proverblo, ?s slmple~

mortais sao apenas relativamente coerentes, 0 que quer dlzer que hasempre uma taxa perceptive! de dlverqencla entre 0 que se pensa

e 0 que se faz.

primeiro lugar da dotacao intelectual da pessoa, mas certamente de

suas posses economtcas ou de suas ligar;:oes polfticas, 0 que mostra

ser ainda mais privilegiado, no sentido de ser conquistado e man-tido tarnbem as custas da maioria da sociedade.

Se admitimos que nossa consciencla e condicionada tarnbern pela

nossa poslcao social objetiva, dentro do sistema produtivo e politico.

temos de admitir igualmente que propendemos, como beneflclartoa

do sistema, muito mais a justlflca-lo do que a contesta-lo. Nao temos

proprlamente a consclencla que decidimos ter, mas aquela condi-cionada objetivamente pela realidade econornica e politlca que nos

cerca. Mesmo 0 pobre que consiga gal gar a posicao de elite inte-

lectual passa a assumir tendencialmente consciencla de intelectual.

Podera ter ldentiflcacao ldeoloqlca com os pobres, mas ja nao e

pobre.

No fundo, podemos dizer que as clenclas sociais sao um projeto

pequeno-burques, no sentido da pequena burguesia. Nao e capita lis-

ta, porque se tem capital, tem-no em quantidade relativamente peque-

na; de modo geral, e assalariada, embora bem assalariada. Nao e

proletarla, porque nao se aplica a ela 0 salarlo de sobrevlvencla e a

sltuacao de exercito de reserva. Ainda que possa ter-se originado do

proletariado, um proletarlo intelectual e muito mais intelectual do

que proletarlo, Propendera a assumir consciencia pequeno-burguesa.Consclencia pequeno-burguesa signi fica precisamente tendencla

a ldentlflcacao com a burguesia, da qual retira relativos favores, pelo

menos salaries elevados. Exagerando e caricaturando as coisas, se e

verdadeque tendemos a ter nossa consclencia no bolso, isso se apli-

ca igualmente ao cientista social, que e um crlstao qualquer do ponto

de vista social. A partir dai, fica facll constatarmos que muitos cien-

tistas sociais justificam qualquer projeto social, desde que sejam bem

pagos. Sao capazes de justificar qualquer ideologia, se isto Ihes for

favoravel,

Nao faltam na Hlstoria os exemplos. No tempo do nazismo, parte

conslderavel dos socloloqos alemaes aderiu ao nazismo e 0 propa-

gou com vigor. Nao faltam pslcoloqos capazes de aperfeicoar tecnl-

cas refinadas de "Iavagem cerebral" para fins politicos escusos. Naofaltam educadores que se dlspoern a rnanlpulacao mais crua do com-

portamento das crlancas. Nao faltam economistas que se prestariam

a mostrar que 0 salarlo rninirno e suficiente para uma familia pobre.

Nao faltam antropoloqos que aprovariam a erradlcacao da cultura in-dlgena.

Nao e facll mostrar que as clenclas sociais tenham de fato favo-

recido a construcao de uma sociedade mais iqualltaria, mais fraterna,

mais pacifica, e assim por diante. Normalmente, a pesquisa sobre

pobreza favorece muito mais 0 pesquisador do que 0 pobre. 0 co-nhecimento economtco, que talvez possa ser considerado muito avan-

83

5.3. A POSICAO SOCIAL DO CIENTISTA

o cientista social, de modo geral, faz parte de uma elite social.

Muito simplificadamente, ha tres blocos de elite na socied~de. A

mais importante e a elite econornica, f~ndada na p~~se dos lnstru-

mentos de producao da riqueza. A sequir vem a polltlca, qu~ o~upa

as poslcoes rnals centrais do cenarlo politico do Estado. A elite trite-

lectual e formada de modo geral por pessoas que alcancarn a for-

macae superior e, com ela, poslcao de d~staque n.a socied.ade. Os

cientistas sociais nao se colocam entre os Intelectuais de maier pres-

tiqlo, mas ainda assim fazem parte desse tipo de elite.

Detem, assim, uma dose relativa de lnfluenc la social, geralmente

menor e ate bem menor que a elite econornlca e polltlca. Nesse sen-

tido sao beneflclar los do sistema, significando 0 acesso a formacao

superior um privilegio lncontestavel. Tal privilegio nao depende em

82

 

Page 44: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 44/62

cado, e talvez mais usado como tecnlca de aumento da produtividade

do que como tecnlca de satlstacao das necessidades bastcas. De mo-

do geral, possivelmente diria que as cienclas sociais servem mais

como controle social, n o sentido de apresentar elementos utels a

manutencao dos privilegiados vigentes do que como mudanca em

favor dos desprivilegiados.

Se isto e correto, fica igualmente mais facll entender 0 dlvorclo

frequents entre teoria e pratlca. Pode ser muito utll ao cientista so-

cial apresentar uma imagem de revoluclonarlo, de contestador, deavancado, porquanto isto Ihe da aplausos, Ihe confere 0 atestado de

atuallzacao, Ihe oferece maior mercado de venda dos livros etc., des-

de que nao Ihe seja exigida a pratlca correspondente. Se isso for fei-

to, a maioria desiste da teoria, porque nao se dlspoe a arriscar seus

prlvlleq los, A tendencla natura l do pequeno-burques e conservadora,

por vezes ate reaclonarla ou tambern reformista, e muito raramente

revoluclonarla, por mais que assim se pregue na teoria. Af a pratlca

e criterlo importante, tanto como teste empfrico quanto como coe-

rencia ideoloqlca.

Nao a de estranhar-se, pois, que as clenclas sociais se aninhem

num projeto de dornlnacao da sociedade e sirvam preferentemente ajustlflcacao dos dominantes. Dificilmente sairia da universidade a re-

volucao. Esta sai dos desprivilegiados, que sao os verdadeiros inte-ressados e possivelmente nao tem nada a perder. Os cientistas so-

ciais geralmente tern a perder e por isso se preservam. Todavia, a

possfvel a ldentlflcacao ldeoloqica, quando pratlca. E nao seria nada

mais que eoerente.

o que dissemos aeima leva a verificar algo em que tnslstimos

desde 0 infcio. As clenclas sociais sao diferentes das outras, entre

outras coisas, porque sao ldeoloqicas intrinsecamente. Por mais que

se esforce em ser objetivo - e assim deve ser -, 0 cientista social,

quando estuda a sociedade, envolve-se eom ela, porque no fundo se

envolve consigo mesmo. A dialetlca entre sujeito e objeto maroa pro-

fundamente esse relacionamento, que e diferente do relacionamento

entre um cientista natural e uma formiga ou uma pedra.

Nao cabe ao cientista social uma atitude de neutralidade e de

objetividade, tanto porque do ponto de vista do objeto ja aparece

ideologizado na respectiva pratlca hlstorlca como porque do ponto de

vista do sujeito nao ha como declarar-se neutro consigo mesmo.

o cientista social pode ignorar sua poslcao social e seu rela-

c ionamento com 0 objeto, pode camuflar, pode deturpar, pode mentir,

pode buscar lsencao: mas tudo isso apenas reforca a constatacao:

a propria ornlssao a uma forma de envolvimento. Conclusao: a pre-

ferfvel aceitar-se ldeoloqo e a partir dal controlar-se a cair nas pro-

prias redes da ideologia .

6

E L E M E N T O S D A M E T O D O L O G I A D IA L E T I C A

6.1. OBSERVAC ;OES IN TRODUT 6RIAS

Nada mais fazemos aqui do que introduzir breve mente a meto-

dologia dlaletlca. Cremos ser a metodologia mais correta para as clen-

cias sociais, porque e aquela que, sem deixar de ser loqlca, demonstra

sensibilidade pela face social dos problemas.No contexto das metodologias, a claro, trata-se de uma entre

outras, cuja excelencla precisa ser fundamentada, nao suposta. Ade-

mais nao existe somente uma dlaletica, par exemplo, a marxista.

Se assim fosse, ja nao seria dialetlca, E, mesmo dentro do marxismo,

nao ha unidade em torno do que seria dlaletlca, a partir do proprio

Marx. Tentamos fundamentar aqui um tipo de dialetlca, nao marxista,

ernbora comparti lhe de mui tos componentes do marxismo. Poderfamos

cunhar esse tipo de dlaletlca de hist6rico-estrutural. Explicaremos

isso a sequlr .'

No contexto das ciencias sociais nao e a metodolog ia predomi-

nante. Ela tem alguma predominancla em pafses do Terceiro Mundo,

por razoes socials, a saber. por prestar-se melhor a compreender suas

contradlcoes e alicercar a desejo de rnudanca hlstorlca. Encontra-setam bam nos pafses avancados, mas predominam outras metodolo-

gias, sobretudo as de orlentacao funcional lsta-slsternlca, estrutura-

l is ta ou posit iv is ta.

De modo qeral, admite-se ainda que a dlaletlca e propriamenteuma rnetodoloqla social, no senti do de que nao seria adaptavel, de

forma adequada, as clenclas exatas e naturals. Sempre houve a esfor-

90 de colocar a dialetlca como capaz de substituir as outras no

campo total das cienclas. ~ conhecida. por exemplo, a obra de Engels

1. P. Demo. Metodologla Clentlflca em Clincl .. Soclala (Atlas, 1980). p. 142 S8.; Idem. Soclologla -Uma Introducao Crltica (Atlas. 19831.

84 85

 

A dlaletlca acredita que a contradicao mora dentro da realidadeNao e defeito. ~ marca registrada. ~ isto que a faz urn constante vir~

-a-ser, urn processo lnterrnlnavel, criativo e irrequieto. Ou seja quebre a dlaletlca da natureza, na qual a aplica a todas as clenclas, Cada

so mais aceita-se que sua apllcacao a mais fecunda ao fcnorneno

Page 45: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 45/62

Toda metodologia supoe uma concepcao de realidade, sem 0 que

nao teria 0 que explicar. Isso acontece tarnbem com a dlaletlca, que

supoe uma vi sao dialetlca da realidade.

Seu pressuposto mais fundamental parece ser: toda forma{:ao

social e suficientemente contreditorie para ser historicamente supe-

ravel. Obviamente, nem todas as dlaletlcas aceitam lsso: mas serve

como ponto de partida e ate mesmo como divisor de aguas.

Entendemos por iormeciio social a realidade que ~e forma. pr~-

cessualmente na historia, seja ela mais ou menos orgamzada ou instt-

tucionalizada, macro ou mlcrossocloloqlca. Por uma tendencla his~o-

rica, a dlaletica esta habituada a contemplar fenornenos de maier

porte, mas e claro que se aplica igualmente aos, de po~te menor. Na

realidade historlca nao ha somente mudanca: ha tambem elementos

que sobrevivem as fases hlstorlcas, aos quais damos 0 nome, emgeral, de estrutura.

Em todo 0 caso, a dlaletlca privilegia 0 fenomeno da trensiciio

htstortce. que significa a superacao de uma fase por outra, predomi-

nando na outra mais 0 novo do que repetlcdes possfveis da fase

anterior. Essa colocacao e importante tarnbern porque ace ita a dialeti~acomo uma forma c 'J privilegiar certos fenomenos sobre outros; nao

ve nem expllca tudo. Tal perfelcao nao existe em metodoloqla. Assi~,

a dlaletlca nao escapa a condlcao comum de ser uma lnterpretectio

da realidade, ou seja, de ser uma das formas de a construir. Sera

preferivel as outras, nao porq~e nao tenha d.efeitos, mas porque ostern menos, ou e mais cornpatlvel com a realldade a ser pesqulsada,

A dlaletlca esta ligada ao fenomeno da contredtciio ou, em outros

termos do conflito. Aceita que predomina na realidade 0 confl ito sobreharmon'ias e consensos. E mais: acha que as contradlcoes nao pre-

cisam provir de fora, exogenamente, mas de dentro, como caracterfs-

tica endoqena. Contradlcao exoqena e aquela imposta ou superve-

niente de fora, como, por exemplo, uma lnundacao sobre uma clda-

de, que a destroi e a obriga a uma mudanca htstorlca profunda; ou a

queda de urn meteorito sobre a Terra, que a abale de tal forma queproduza uma desaqreqacao geral e em consequencla urn ressurgir

novo hlstorlco.

a faz hlstorlca. '

Ser hlstorlco e aquele que sofre hlstorla, ou seja, a mudanqa

hlstorlca como processo natural: nasce, cresce, vlve e morre. 0

exemplo do homem pode ser ilustrativo. A morte e urn conflito endo-

geno e profundo que nos leva a superacao, Morremos tarnbem por

fatores externos possiveis, mas estes nao sao necessarlos, ja que

morremos tambern se nao nos matarem, porquanto temos dentro denos 0 principio da morte.

A realidade e suficientemente contreditorie no sentido de que naoexistem somente contradlcoes leves, superficiais, passageiras, mas

tarnbern aquelas que nao conseguimos solucionar, ou seja, de profun-

didade tal que levam a formaqao social a se superar. Nisso se poe

urna dlferenca fundamental com outras metodologias, porquanto e

diverso admitir conflitos sociais como elemento importante da rea-

lidade, como faz 0 sistemismo tambern, mas consldera-los soluclo-

navels e admiti-Ios igualmente como nao soluclonavels, De urn lado,

ha as metodologias que procuram ser dlnamlcas dentro do sistema.

colocando como horizonte de superacao 0 interior do sistema; de

outro, a dlaletlca que aceita esse tipo de dlnamlca, mas nao dispensa

aquela que explode 0 horizonte do sistema, na translcao para outro.

Historicamente supereve! quer dizer que a superacao a expllcavelhistoricamente. De urn lado, deve predominar na fase proxima 0 novosobre 0 velho; de outro, 0 novo tern origem no velho, porquanto a

contradicao que ocasionou a superacao ja fOi gerada no seio da faseanterior. Nao existe 0 saito mortal hlstorlco que nao seja gerado na

fase anterior, bern como existe 0 saIto hlstorico, no sentido de que 0

novo seja quali tativamente diferente do anter ior.

Do ponto de vista da concepcao da realidade, a alma da dlaletlcaa 0 conceito de antitese. Tradicionalmente, apontarn-se para os termos:

tese, antitese e sintese. Na verdade, a dlaletlca baseia-se em dois

termos - tesa e antftese -, sendo a slntese simplesmente a nova

tese.

Tese significa qualquer formacao social, vigente na hist6ria. Di-

zemos que toda tese elabora sua antftese, porque possui endoqena-

mente suas formas de contradicao hist6rica. Nesse sentido, antitese

significa a convlvencla, dentro da tese, de componentes conflituosos

e que sao ao mesmo tempo a face da dlnarnlca hist6rica. A realidade

e hist6rica porque a antltetlca. A dlnarnlca hist6rica nutre-se dos

conflitos que nela se geram e acabam explodindo, ocasionando suasuperaqao. .

Dois sao os nfveis principais da antftese. Existe uma forma de

87

~~:torico, como definido aqui. Nao quer i~SO ?i_zer que nao se PO.SAsa

colocar a dlscussao a respeito de sua apllcabilldade a to~a~. as oren-

clas, ate mesmo a maternatlca, e sobretudo sobre a posslb"l~ad,e. de

as ciencias exatas e naturais aproveitarem elementos da dlaletlca.

6.2. PRESSUPOSTOS IN IC I A IS

86

 

antitese menos radical, que expressa conflitos menores, internos ao

Page 46: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 46/62

sistema, e por isso tarnbern soluctonavels dentro do sistema. Trata-

-se de um nivel menor da problernatlca social, aceita como contor-

navel e compatfvel com a Instttucionallzacao. Quer dizer, para existir

perslstencla historlca, manutencao das instituic;:6es, possibilidade da

social izacao e da convlvencla relativamente consensual, os proble-

mas nao podem ultrapassar certo limite, a saber, nao podem colocar

em xeque a razao de ser do respectivo sistema.

Nao a que a dlaletlca nao consiga captar a perslstencia tempo-

ral, por exemplo, do capitalismo. As realidades nao so mudam, per-sistem tarnbern. Nao se ha de negar que 0 capital ismo, como qualquer

fase hlstorlca, contenha suas contradic; :6es. Nem todas, porem, agem

na dtrecao da superacao imediata. Embora seja uma hlstorla proble ..

rnatlca, como toda hlstoria. tem-se manti do ate hoje, porque suas

antfteses apareceram sob forma menos radical.

A outra forma de antftese a a radical, aquela que determina a

superacao do sistema, ja que expressa um conflito tao profundo que

nao se soluc iona sem superar 0 sistema. Enquanto 0 outro nfvel de con-

f lito traduz 0 movimento da reforma, este traduz 0 movimento da

revolucao, Hevolucao significa a superacao de um sistema e a entra-

da em outro, onde predominem qualidades novas.

Percebe-se que a postura dlaletica tende a uma slrnpllficacao

forte da realidade, quando a classifica como movimentodual de tese

e antltese, ou quando desdobra dois nfveis mais perceptfveis de anti-

tese. A rea lidade certamente a mais complexa do que simples esque-

mas da analise. Todavia. dependendo da dialetica. toma-se este

esquema tal como e. ou seja, uma forma de slrnpliflcacao explicati-

ca. nao urna camisa-de-forc;:a, na qual ensacamos tudo. Ao contrarlo,

t rata-se de expedientes rnetodoloqicos para destacar relevancies: na-

da mais.

A nocao de antftese leva a nocao de unidade de contrertos.

Infelizmente, em nossa Hngua falamos ora de contradlcao. como

antes. ora de contrartos. Mas. deixando de lado superposlcoes lin-

gUfsticas. unldade de contrarlos significa a convlvencla na mes·

ma totalidade de dols palos que, ao mesmo tempo, se repelem e se

atraem. Por outra, esta nocao fundamenta a vlsao da totalldade, que

muito caracteriza a postura dialetlca.

o dinamismo hlstor ico da real idade e expresso em grande parte.

por esta forma de vlsao, que admite ser ela um todo complexo. sem-

pre com duas faces. como se fosse uma moeda; nao ha moeda com

uma face SO; mas. embora sendo duas, forma um todo. A polarlzacao

traduz a Idela de dinarnica e de contradicao.

Todavia. a contradicao nao se entende em sentido tradicional

loqico de exclusao do termo oposto. pura e simplesmente. Assim. a

dlaletica nao pode afirmar que algo existe e nao existe ao mesmo

tempo, ou que algo e e nao e ao mesmo tempo. Ser ia eontraditor io.

o que ela afirma e a convivencia de contrartos, ou seja, de elemen-

tos que tern na sua exclusao apenas uma face do fenorneno, com.plementada neeessariamente tarnbern pela face da polarlzacao. Unl-

dade de ccntrarlos. pols, significa convlvencia nurna mesma totalt-dade, nao exclusao pura e simples.

Urn exemplo pode ilustrar. Dizemos que desenvolvimento e sub-

desenvolvimento formam uma unidade de contrartos, porque, emprlrnetro luqar, formam um todo so, OU se]a, nao sao dois pedac;:os

contfguos ou duas eoisas justapostas. Em segundo lugar, um ne-

cess ita do outro. ao mesmo tempo em que se repelem. Um necessita

do outro, porque faz parte de sua dlnarnlca propria historlca a explo-

rac;:ao do subdesenvolvido por parte do desenvolvido; asslm, nao

haveria desenvolvimento sem 0 subdesenvolv imento. que e a base

dos prlvlleqlos do outro. Mas se repelem, porque ha entre eles con-

flito, visto aqui sob a otica da exploracao,

Outro exemplo interessante e 0 fenomeno do poder. Visto em

sua totalidade dialetica, nao pode ser deduzido a postura dos domi--

nantes. Poder de cima para baixo e uma parte do fenOmeno. A outra

e dos dominados - no que e moeda de duas faces. Entre os dois

lados estabelece-se uma convlvencla de necessitacao e repulsa. quecaracteriza hlstorfcarnente sua dinamica propria. Ha necessltacao,

porque nao pode existir quem mande. sem alquem que e mandado.

Ha repulse, porque nao se pode camuflar a desigualdade entre um

lado e outro.

Assim. 0 poder funda tanto a possibilidade hlstorlca de manu-

tencao da ordem. quando visto sobretudo de cima para ~aixo. qua~to

a possibilidade de desestablllzacao da ordem. quando VISto de baixo

para eima. Sao as duas faces da hlstorla: mantern-se, enquanto se

muda, e rnuda-se, enquanto se mantern.

A pedra de toque da dlaletlca e 0 conceito de antftese, com suas ,

consequenclas naturals,· sobretudo da unidade dos cont raries. Ha

.dtaleticas que se tornam estatlcas, pelo motivode que postularn 'antlteses de tal ordem radicals que ja nao produzem uma superacao

htstorlca. porque imaginam um saito qualitativo da ordem da crlacao

do nada, nao tendo nada ou quase nada a ver com a fase anterior. Pode

ser uma postura estatica, porque no fundo aposenta a htstorla: a nova

fase seria tao perfeita que ja nao aceitaria a apllcacao dos esquema~

de superacaohtstorica. Ou tornam-se estatlcas, porque postulam ant i-

teses apenas de forc; :a interna. que nao superam 0 sistema e acabam fa-

zendo-o somente girar em torno de si mesmo.

E diffci1 compor urn meio-termo adequado, entre contradic;:6es

tao contraditorios que ja gerariam algo a-historlco. e contradic;:6es tao

aq8

 

suaves que ja apenas repetem a fase anterior. Reformas sao manei-a que a dialetica faz de diferente e captar as estruturas da dina-

e ,

Page 47: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 47/62

ras de contin~ar a hlstorla, de modo geral, ainda que em sentido de

seu amadureclmento, 0 que poderia levar, a mais longo prazo, a su-

peracao. Hevolucoes buscam a superacao, na qual predomina 0 novo

sobre 0 velho. Ha continuidade em toda revolucao, mas sao meno-res que a lntroducao da novldade,"

mento da hlstoria, tornando-a mera repetlcao estanque de esque-

mas rigidos e ja nao reconhecendo conteudos variados e novos, mas

um instrumental que exalta 0 dinamismo dos conteudos novos, mes-

mo que se reconheca nao haver 0 novo total.

a pressuposto inicial e dessa ordem. Se dizemos que toda for-

macae social e suf icientemente confl ituosa para ser historicamente

superavel, aceitamos a vigencia de uma estrutura dada, estavel, que

aparece em qualquer superacao hlstorlca: mas

euma estrutura que

funda a dlnarnlca, a hlstorla. au seja, a a regular idade da dlnarnlca,

nao da estatlca.

Quando ressaltamos que a caracteristica baslca da hlstorla asua provisoriedade em fases sucesslvas, nao deixamos de ter del a

uma vlsao ordenada, porque ha algo permanente al , isto a , a provi -

sor iedade como caracteristica lrnutavel. Precisamente isto quer dizer

superacao historica: radical , mas htstor lca. Produz-se 0 novo, mas nao

o novo qualquer, nem absoluto. E gerado no seio da fase anterior e apor ela condicionado.

Reaparece aqui 0 trace tipico de um tipo de determinismo cien-

tifico, que a maior ou menor, dependendo da postura rnetodoloqlca.

A dlaletlca aqui proposta procura ser aberta, no sentido de que, par-

tindo do reconhecimento da tendencla ocidental a certo determinismocientifico, dlspoe-se a reduzi-Io ao minima possivel. Nao e possivel

delxar de reconhecer que a dlaletica tarnbern a um sistema metodo-

loqlco, um esquema explicativo, uma expressao loqlca, e assim por

diante. Ao mesmo tempo, isto nao a uma condenacao a estatlca, mas

a fundarnentacao da dlnarnlca, porque se volta as estruturas que ge-

ram a propria necessidade hlstorlca.

Dizemos que esta postura a hist6rico-estrutural. De um lado,

manipula a crenca de que na hlstorla existem componentes da ordem

estrutural, como a 0 conflito social. Nao ha historla sem conflito, mes-

mo porque a hlstorlca por causa do conflito, na vestimenta tiplca de

certa fase e que se supera com ela. Assim, se superarmos 0 con-

f li to capital ista, superaremos 0 modo hlstorlco capitalista de ele se

expressar, mas nao superamos 0 conflito como tal. Na fase nova, te-remos ainda conflito, nao mais qualificado como capitalista. E a poressa razao que a nova fase sera tarnbern uma fase, nao a estacao

final do trem da htstorla. Esperamos certamente que os novos con-

flitos sejam mais aceltavels em term os ldeoloqlcos, embora isso nao

precise acontecer necessarlarnente. Talvez nao fosse impossivel mos-

trar que na hlstorla ate hoje conhecida, pelo menos ate ao capitalis-

mo, houve mais aguc;:amento dos conflitos do que reducao,

De outro, manipula a crenca de que a face mais importante da

realidade social a a hlstorlca, ou seja, sua caracteristica processual.

91

6.3. D IA L E TIC A E E ST RUT UR A

Um dos problemas modernos da dlaletlca a sua convlvenc la com

estruturas na hlstorla, uma pedra colocada em seu caminho pelo estru-turalismo. Trata-se de uma 'objecao importante que pede reflexao por

parte da dlaletlca, mas a superavel com certa facilidade. '

Em primeiro lugar, existem na realidade fenornenos que nao saohlstor lcos, pelo menos no sent i do corriqueiro qlfe atrlbuirnos ao termo.

A propria dlaletlca, concebendo-se como esquema explicativo da rea-

lidade social, de modo geral nao se admite superavel como a realldade~ue q,uer explicar. No fundo, entende-se como esquema explicativo,IStO e, estrutura supra-historica de expl lcacao hlstorlca. Explica amudanca, mas nao muda.

Ao mesmo tempo, imaginando-se um sistema metodoloqlco, no

senti do de ser um corpo rnetodoloqlco concatenado e fundamentado,possui os traces de uma estrutura relativamente autonoma e tenden-

cialmente fechada, na propria medida que se distingue das outras.

Explica as fases hlstcricas. mas nao se entende como reflexo direto

da fase.de tal sorte que desapareca com a fase em questao,

E assim voltamos para uma velha questao, que talvez seja um

vlclo do modo ocidental de produzir ciencla. Imaginamos a loqica

como algo supra-hlstorlco e supra-espacial, valida para ordenar qual-

quer realidade, ontem, hoje e amanha, Admitimos, no fundo, que exis-

te sob ela uma ordem dada, estavel, formal, algo diferente daquilo

que chamamos de conteudo. Este muda, a conjuntural, a faslco. Aoutra, nao.

Se nao ha leis, ha pelo merios regularidades, tambern do movi-

rnento, E a dialetlca a , ela mesma, um esquema regular de expllcacaoda realldade.'

2. H. lefebvre, Logica Formal/Logica DialBtica (Civilizac;:ao Brasileira, 1975); C. Prado Jr., DlalBtlca do

Conhec~mento, 2 v: (Brasiliense, 1969); A. Abdel-Malek, A DialBtica Social (Paz e Terra, 1975); A.

Cramscl, Concepceo Dietetice da Histori« (Civilizac;:ao Brasileira, 1978); L. Goldmann, Dlaletica e

C,!ltur~ (Paz e Te:r~, 1967); K. Kosik, Dteteuce do Concreto (Paz e Terra, 1976); P. V. Kopnln, A

Dlaletlca como Loglca e Teoria do Conhecimento (Otviltzacao Brasileira, 1978); A. Schaff, Histort«

e Verdade (Martins Fontes, 1978); G. E. Rusconi, Teoria Crltica de la Sociedad (Martinez Roca, 1969)'C. Prado Jr., lntroduciio a Logica Dlsletlce (Brasiliense, 1979); R. Havemann, Dleletlce sem Dogm~

(Zahar, 1?67);. M. lowy, Metodo Dialetico e. Teoria Politica (Paz e Terra, 1975); G. W. F. Hegel,Textos Dleleticos (Zahar, 1969); J. A. GianottI, Origens da Dialetica do Trabalho (DIFEl, 1966).

3. P. V: Kopnln; A tuetettce como Logica e Teoria do Conhecimento, op. cit. H. lefebvre, Logica Formal/Loglca Dietetics, op. cit

90

 

E constante fermentacao, vlr-a-ser, lnquletacao e criatividade. Nao

ha somente repetlcao, mas sobretudo lnovacao social. Toda persis-

de uma metodologia ser dlaletlca, ou formal, a u estruturallsta, e 16glca,no que se encontram todas na mesma tradlcao epls ternoloqlca.

Page 48: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 48/62

tencla hlstorlca e periclitante e sempre inacabada. Nao ha formacao

final, porque ja nao estaria em formacao. Esta em permanente gra-

videz. Embora pareca contradltorlo imaginarmos uma gravidez per-

manente, assim e constituida a realidade social. que, mesmo repe-

tindo est ruturas indelevels, 0 que mais repete e a constancia da

lnovacao.

E preciso, contudo, reconhecer, por coerencla dlaletlca, que as

estruturas identificadas na realidade sao hlpoteses de trabalho, nao

aflrrnacoes perenes. Quando dtzernos que a desigualdade social e uma

estrutura social, porque 'se confunde com as proprlas condlcoes de

formacao social, ainda que disto origine sua dinarnica, estamos fa-

zendo uma lnterpretacao his torlca. como sempre. Todavia, mesmo que

fosse fato constatavel que toda historia conhecida sempre expressou

desigualdades sociais, disto nao decorre logicamente que assim deva

ser, porque de um fa to nao segue um valor. Ao mesmo tempo, nao

conhecemos completamente 0 passado e muito menos 0 futuro, para

fecharmos questao,

Quer dizer, esse tipo de dlaletlca esta a reboque de uma concep-

C;aode realidade que inevitavelmente e uma lnterpretacao entre outras

possiveis. E uma das maneiras de tentar explicar 0 fluxo da histor ia,

privilegiando certos niveis em detrimento de outros. Mudancas sociais

nao sao ocasionais e muito menos anormais. Sao regularidades histo-

ricas, fazem parte da estrutura da historia.

Tem a hlstorla uma estrutura? Ai esta uma questao-chave. Na

maneira ocidental de ver as coisas, nao saberiamos negar que enten-

demos a hlstorla de forma estruturada, porque so sabemos entender

o que aparece estruturado. Se imaginamos que a hlstoria e condicio-

nada (alguns diriam rnesrno que e determinada). que 0 acontecimento

hlstorlco nao e gratuito ou caotlco, que 0 fluxo possui tendenclas

dellneavels. estamos manipulando, mesmo inconscientemente, a ideia

de que 0 acontecer hlstorlco nao se inova ao leu. Por isso cremos em

planejamento. Variam os condicionamentos e os conteudos. Nisso ha

forte variabilidade e constante qeracao da criatividade e da novidade.

Mas a hlstoria nao salta sobre si mesma, ou seja, segue historica,

o que quer dizer: histor icamente condicionada.

o estruturalismo, como veremos, apaga a criatividade hlstor ica

e realca 0 aspecto repetitivo. A dialetica ressalta estruturas da criati-

vidade hlstorica. 0 que significa que a criatividade existe, mas que

nao se da ao leu.

o que distingue as abordagens rnetodoloqicas nao pode ser sua

ligaC;ao com estruturas logicas, ja que, dentro de nossa tradicao cien-

tifica, isso e pressuposto baslco. Sequer seriam aceitas como cientf-

ficas, se nao fossem loqlcas. De modo geral, pode-se dizer que antes

92

As dlstlncoes. por vezes profundas, sao encontradas na dose de

manlpulacao loqlca, nas concepcoes de realidade subjacente, nos

compromissos ldeoloqlcos, nas maneiras de classificar e recortar os

fenomenos, nos modos de privilegiar faces especificas. Os instrumen-

tos loqlcos. de modo geral, sao os mesmos. Assim, nao ha conflito

entre maternatica e dlaletlca, porquanto nao se nega a possibilidade

de exatldao invariante na forma, embora nao nos conteLidos. Haveria

contradlcao se a dlaletlca se metesse a explicar a maternatica. Ora,

o que a dlaletlca pode fazer e explicar usos hlstorlcos de form as

rnaternatlcas. ou seja, expressoes faslcas de seu desenvolvimento

como ciencia, possiveis ideologias coaguladas em suas estruturas de

modo externo, tendenclas de usos preferenciais dela, por exemplo,

para fins bellcos e destrutivos, nao porern a propria estrutura mate-

rnatlca, que, nao sendo intrinsecamente hls torlca, nao pode ser intrin-

secamente dlaletlca.

A dialetlca deve reconhecer sua necessaria rnodestla metodolo-

gica. Nao explica tudo. Como sempre, e mais habll a explicar certos

fenornenos. que sao seus fenornenos privilegiados. Outros, explica

com menor habilidade. Ha muito escarceu lruitll em torno de mirabo-

lantes expllcacoes que a dlaletlca faria de tudo e de todos. o que

explica tudo, nisso mesmo nada·explica. Ja e 0 bastante que a dlaletlca

se dedique a captar as especificidades da realidade social e humana,

e nisso se especialize. Nao e contra a logica, e nao substitui pura e

simplesmente outras metodologias. Sua superioridade precisa ser mos-

trada, nao ideologicamente suposta.

Sobretudo, e preciso ver que a dlaletlca, quanto mais segura e

doqrnatlca, menos dialetica sera. Sua superioridade, segundo cremos,

esta na sensibilidade mais aguda que Ihe permite convivercom maior

desenvoltura com a tipica lnsequranca da realidade social. ou seja,

de elaborar instrumentais mais processuais para captar uma realidade

processual. Nao e panacela, nem receita. E sobretudo pesquisa!

6.4. DIALnlCA MARXISTA

Sera urn tratamento extremamente surnario e s implificado 0 que

faremos aqui, correspondendo de modo geral ao proprio nivel desta

lntroducao rnetodoloqica. Como, falando-se de dlaletlca, muitas vezes

identifica-se com a marxista, e mister dizer alguma coisa. Em primeiro

lugar, a dlaletlca nao tem por que ser ou nao ser marxista; em sl, e

apenas uma metodologia qualquer. Em segundo lugar, dizendo-se

marxista significa uma versao possivel entre outras, cuja excelencia

deve ser mostrada, nao suposta. Em terceiro lugar, 0 que se chama

dlaletlca marxista nao e uma expressao unltarla: talvez hoje contenha

93

 

mais dlverqenclas do que consensos. Mesmo assim, constitui uma

versao fundamental da dialetica, com grandes merltos.' A transforrnacao da base econorruca altera, mais ou menos raplda-

Page 49: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 49/62

Na propria vida de Marx variou sua concepcao dialetica. E~tereo-

tipando as coisas, poderfamos dizer que na juventude predommou.a

vlsao segundo a qual a hlstoria poderia ser superada de fo~ma ~als

ou menos absoluta, ou extremamente radical. De tal forma sena radlc~1

a superacao, que a propria dlaletlca seria igualmente superada ..Servl-

ria, pois, como esquema explicativo tarnbem hlstorlco, no sentldo de

que seria valldo dentro da respectiva fase hlstortca. Superando-s~

esta, supera-se igualmente seu modo de expllcacao. A fase no~a e

tao nova que ja nao se poderia explicar atraves de urn esquema forjado

na fase velha.

Ha uma coerencla ai, entre lnstrurnentacao metodoloqlca e con-

cepcao teorica. A . radicalidade hls torlca da concepcao c~rrespo~de a

radicalidade da lnstrumentacao explicativa. Mas ha urn nsco: dlspen-

sa-se facilmente a historla, porque a fase anterior e cunhada com?

pre-hlstdria e a fase posterior pode ser vista de forma tao ape.rfel-coada que ja nao e fase, mas estacao final. Seria urn produto final,

nao contlnuacao do processo hlstor lco.

Na velhice, tal concepcao mudou substancialmente. 0 texto mais

tlplco e conhecido desta postura e aquele da ..Crftica da Economia

Polltlca", no prefaclo, de 1859, embora nao tenha nunca escrito expli-

citamente sobre metodologia: ..A conclusao geral a que cheguei e que,uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode

formular-se resumidamente assim: na producao soc ial da sua existen-

cia, os homens estabelecem relacoes determinadas, necessarias, inde-

pendentes da sua vontade, relacoes de producao que correspondem

a urn determinado grau de desenvolvimento das forcas produtivas ma-

teriais. 0 conjunto destas relacoes de producao constitui a estrutura

econ6mica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma

superestrutura jurfdica e poll tica, e a qual correspond em determinadas

formas de consclencia social. 0 modo de producao da vida material

condiciona 0 desenvolvimento da vida social, polltlca e intelectual em

geral. Nao e a consclencla dos homens que determina 0 seu ser; e 0

seu ser social que, inversamente, determina a sua consclencla. Em

certo estadio de desenvolvimento, as forcas produtivas materiais da

sociedade entram em contradlcao com as relacoes de producao exis-

tentes ou, 0 que e a sua expressao jurfdica, com as relacoes de

propriedade no seio das quais se tinham movido ate entao, De form as

de desenvolvimento das forcas produtivas, estas relacoes transfor-

mam-se no seu entrave. Surge entao uma epoca de revolucao social.

mente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alteracoes e

necessarlo sempre distinguir entre a alteracao material - que se

pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa - das condlcoes

econ6micas de producao, e as formas lurldlcas. polltlcas. religiosas,

artfsticas ou filosoflcas: em resumo, as formas ldeoloqicas pelas quais

os homens tomam consclencla deste confl ito, levando-o as suas ultlmas

conseqilenclas. Assim como nao se julga urn indivfduo pela ldela Que

ele faz de si proprio, nao se podera iulqar uma tal epoca de transfor-

macae pela sua consclencla de si; e preciso, pelo contrarlo, explicaresta consclencla pelas contradlcoes da vida material, pelo conflito

Que existe entre as forcas produtivas sociais e as relacoes de pro-

ducao. Uma orqanlzacao social nunca desaparece antes que se desen-

volvam todas as forcas produtivas que ela e capaz de conter; nunca

relacoes de producao novas e superiores se Ihe substituem antes que

as condlcoes materiais de existencla destas relacoes se produzam no

proprio seio da velha sociedade. E por isto que a humanidade so le-

vanta os oroblemas que e capaz de resolver e assim, numa observacao

atenta, descobrl r-se-a que 0 proprio problema so surgiu quando as

condlcoes materiais para 0 resolver ja existiam ou estavam, pelo

menos, em vias de aoarecer. A traces largos, os modos de producao

aslatlco, antigo, feudal e burques moderno podem ser qualificados

como epocas progressivas da formacao econ6mica da sociedade. As

relacoes de producao burguesas sao a ultima forma contradltorla do

processo de producao social, contradltorla nao no senti do de uma

contradlcao individual, mas de uma contradlcao que nasce das condl-

<;:oesde ex lstencla social dos indivfduos. No entanto, as forces produ-

tivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao

mesmo tempo as condlcoes materiais para resolver esta contradlcao,

Com esta orqanlzacao social term ina, assim, a pre-hlstorla da socie-dade humana".'

Este texto permite vislumbrar algumas caracterfsticas importantes

da dlaletlca de Marx:

a) t: clara a poslcao do materialismo hlstorlco, segundo 0 Quala consclen-

cia e condicionada pela infra-estrutura economlca: em ultima lnstancla

e determinada pela base material, ainda que nao de forma mecantca ou

automatlca, .b) A hlstorla faz-se por condicionamento reconhecivel, 0 que equivale a

dizer que e estruturada; as transformacoes sao aspecto normal do

f luxo hlstorlco, mas nao se dao ao leu, e multo menos ao sabor das

lntencoes humanas; predominam deterrnlnacdes objetivas.

c) As transforrnacdes sao gestadas no seio da fase anterior; tanto e assim

que as solucoes dos problemas sao historicamente geradas e em ultima

lnstancla determlnadas pela base material.

d) Nao obstante isto, com a capitalismo terminaria a "pre-hlstorta", por-

que seria a "ultima forma contradit6rla".

4. M. Dal Pra, La Dietectlce en Marx (Martinez Roea. 1971); M. Harneeker. Los Conceptos Elementales

del Materlalismo Hist6rieo (81g1021. 1972); M. Goldelier e outros, Epistemolog/a y Marx/smo (Mar-

t inez Roea. 1974); J. P. Sartre, Ouestiio de Metodo (DIFEL. 1~72); K. Marx. Contribui980 para a

Critics da Economia Politice (Estampa. 1973); E. Botigelli. A Genese do Soclalismo Clentifico (Es-

tampa. 1971); F. Engels. Do Socialismo Ut6pico ao Soclalismo Clentiflco (Estampa. 1971).

945. K. Marx. contrtbotcso para a Crltlca da Economla Politlca (Estampa. 1973),p. 28-29.

95

 

Assim, de urn [ado admitem-se superacoes certamente radicais, soluclonavels estruturalmente, embora se possa arranja-los de forma

Page 50: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 50/62

mas historicamente determinadas (ou condicionadas, em nossa lin-

guagem). 0 que acontece na hlstorla a historicamente sxpllcavel . Por

outro lado, perdura a expectativa difusa e pouco explfcita de que,superando-se 0 capitalismo, superarfamos 0 problema da contradlcao

como tal e nao somente urn tipo hlstorlco de contradlcao. Isto nosparece contradltorlo.

Se a verdade que toda formacao social possui suas contradlcoes.por forca das quais a hlstorlca, como seria possfvel isentar disto a

sociedade pos-capltallsta? E logicamente incoerente, porque, se ahlstor lca a sociedade posterior, a contradltcrla. E social mente incoe-

rente, porque acaba tornando-se autodefesa de uma dornlnacao que

nao gostaria de ser contestada. Enfim, dizer que uma socledade nao acontradltorla a camuflar os confl itos.

Af certamente divergem as vlsoes marxistas. Se tomarmos doiscasos estereotipados, 0 marxismo sovletlco e 0 chines, as dlferencas

partern dal, No caso sovletlco, inventou-se a "dlaletlca nao antago-

nlca" na suposlcao de que a sociedade sovletlca teria alcancado nfvel

tal de desenvolvimento que ja nao teria mais contradlcoes antaqonlcas,Isto se verificaria pelo fato de nao haver mais classes e de a producao

estar total mente socializada.I

Nesse sentido, parece haver urna lnterpretacao ligada a ldela de

que 0 modo de producao capitalista seria 0 ultimo antaqonlco, e que

depois dele surgiria urn modo nao antaqonlco de producao, Na verdade,

as vlsoes divergentes da postura sovletlca nao aceitam tal interpre-

tac;ao e nao faltam mesmo as que querem mostrar que existem classes

na sociedade sovletica." Nao existem classes capitalistas, mas desi-

gualdades sociais, nao mais instrumentalizadas pela posse dos meios

de producao. porern pela ocupacao da burocracia estatal e partldarla,

E muita pobreza hlstorlca imaginar a sociedade sovletlca suficiente-

mente perfeita, para nao ser mais historicamente superavel, No fundo,

a "dlalet lca nao antaqonica" e ideologia de autodefesa do poder vi-

gente.

Multo diversa a a vi sao chinese, e rnals coerente. Comunismo auma autentlca utopia, no sentido de que seria lrreallzavel em sua

ldeallzacao, mas constitui a torca imorredoura de superacao hlstcrlca

das sociedades vigentes, sejam quais forem. A sociedade socialista

possui igualmente conflitos antaqonicos que a conservam hlstcrlca

como qualquer outra. A idela de revolucao permanente foi forjada para

responder, permanentemente, a tendencla hlstor ica de os dominantes

evitarem as superacoes,

A desigualdade social, por exemplo, nao foi inventada pelo capita-

lismo. E componente estrutural da hlstorla. Pertence aos conflitos nao

conjuntural. de modo que permitam certa perslstencla hlstorlca rela-

t iva. Tal confl ito apareceu de forma particularmente antaqonica no capi-

talismo. Mas a gratuito imaginar que com 0 capitalismo se acaba a

serle antaqonlca. Espera-se - isto sim - que os conflitos sociais

do socialismo, do comunismo, ou sejam quais forem as caracterfsticas

de sociedades futuras, sejam mais aceltavels do ponto de vista da

utopia da igualdade, do desenvolvimento e da partlclpacao.

De modo geral, a dlaletlca marxista possui dose mais forte de

determinismo que a versao dita hts tortco-estrutural. porque consideraa lnfluencla da infra-estrutura aconornlca como" determinante em ulti-

ma lnstancla", embora nao de modo mecanlco ou autornatlco. 0 mar-

xismo acredita mais em deterrnlnacoes objetivas do que ldeoloqlcas e

polfticas, no que frequenternente tern razao. E isto foi a grande novi-

dade rnetodoloqlca introduzida, diante de uma clencla que acreditava

mais em intencionalidades subjet ivas. Assim, fazer hlstorla a possfvel.mas a medida que se dominem asdeterrnlnacfies objetivas. ,

Tal postura aproxima-se muito, em termos metodoldqlcos, de

otlcas monocausals, no sentido de tender a reduzir a complexidade da

realidade a uma face fundamental. Muito embora essa reducao simpli-

ficadora possa trazer expllcacoes interessantes, e isto a ineqavel no

marxismo, nao corresponde a natureza dos dinamismos sociais:. que

sao sempre muito mais complexos. Par isso mesmo cabe a nocao deregularidade, nao de le' i. Coincidentemente, Marx empregava a nocao

de lei, e ate mesmo de "lei ferrea", conforme usa da epoca.'

Esta relativa rigidez metodol6gica provoca 0 outro resultado

tarnbern questlonavel. a nosso ver, de imaginar a fase posterior libe-

rada da ldela de antagonismo, e, nesse senti do, pouco hlstorlca, Se

as condlcoes de superacao hlstorlca sao geradas na fase vigente, a

fase subsequente, sendo hlstorlca, nao pode abandonar aquilo que a

faz hlstorlca, a saber, os antagonismos, entre as quais alguns soluvels,

outros Insoluvels, Nao cremos ser esse tipo de Isencao ainda dlale-

tico. Parece-nos muito mais uma deturpacao da dlaletlca, como a acaso da dlaletica nao antaqonica sovletlca, Ao poder estabelecido nao

interessa uma vlsao dlaletica, mas slstemlca, capaz de repor constan-

temente a perslstencla temporal do sistema.

Certamente, nao fazemos aqui urn tratamento adequado da dla-

letlca marxista. Toda a dlscussao sobre a possfvel determinismo foi

apenas tocada. No fundo, apenas levantamos algumas dlrnensoes lnt ro-

dutorlas que permitem a reflexao crftica sobre 0 tema.

6. C. Bettelhelm, A Luta de Classes na Untso Sovitltica (Paze Terra, 1976). 7. Cfr. P. Demo, Metologla C/entlflca em Cienclas Socials, op, cl t., p. 191 SS.

9697

 

6_5_CI~NCIAS SOCIAlS E DIALnlCAminada, nao s6 porque a demasiadamente complexa pa!a _cercarmos

Page 51: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 51/62

todos os componentes, como tambem porque a lnter ferencla humanatraz para dentro do fenomeno a possibi lidade do lmponderavel.

g) Nao combate as posturas das clenclas naturais e exatas, desde que naosejam concebidas como regra unlca. Aprovei ta-s.e delas_ no que fO.rpossfvel e recornendavel, como a 0 caso da expertmentacao, d~ q~a.ntl-flcacao, da obser vacao, do teste empfr ico etc. No que toca a loglca,todas 0 sao. Nao ha razao para imaginar que a dlaletlca se oporia acaracterfsticas 16gicas.

h) Convive com a consclencla hist6rica, um fenorneno importante, mesmo

se reconhecido como dependente da inconscienci~, como q.uerem visoe~atuais de psicologia estruturalista. Poderia ser ate tendenclalrnente rest-dual. Ainda asslm, a um fenomeno Impar , espec if icamente humane eque merece ser captado da melhor forma possfvel . Af aparece a impor -tancla da ideologia, a lgo que invade as ciencias sociais de modo intr fn-seco. Nao dar lmportancla a ideologia e eliminar 0 homem como ator.

I) Propoe a vlsao de totalidade, no sentido de esforc;ar -se por rec~r t! lrmenos a realidade e de nao formallza-la em par tes estanques. A v isaopor par tes segmentadas nao e diramica. Agrega. por justap~sic;ao econtigiiidade. A realidade social a complexa e total lzante, confl ituosa edlnarnlca, transbordando a possibi lidade de quantlf tcacao, de classlf l-cacao, de deflnlcao, de teste etc. Nao se explica por monocausalidades.Multiplos sao os fatores, embora alguns sejam sempre mais importantesque outros.

j) E capaz de captar nao somente os condicionamentos materia is da ac;ao

humana, mas igualmente as formas de posicionamento social, de repre-sentacao social. de mundlvlsao, de ideologias etc. Embora haja regula-r idades Implacavels, existe a figura do ator na hist6ria, que a 0 homem.A partlclpacao humana a um fenerneno de conflquracao propria, dlnamlcoe contradit6rio, voluvel e ver satll, para alern de qualquer equacaomatematica. Nao ha ordem absoluta, porque, de outra poslcao soc ia l,pode ser v ista como desordem; nao ha normalidade absoluta, porque;de outra poslcao social, pode ser vista como psicose. A grande dife-renca esta no nfvel polf tico, entendido como aquela esfera da pratl cahumana. Nao pode ser concebida como autonoma, nem comosubjetivaapenas, nem como totalmente Imponderavel. Ela da-se dentro dos con-dicionamentos objetivos. Mas esquece-la, ou reduzi-Ia a eplfenomeno, adeturpar 0 social da realidade social.

I ) E capaz de entender um fenomeno como a utopia e a esperanc;a: muitoquall tatlvo, sensfvel, profundo, jamais mensuravel, talvez nao testavel,mas essencial para entendermos a dlnarnlca hist6rica dos atores huma-nos. Alguns sao revoluclonarlos. porque perseguem a superacao do sis-tema e a lnstauracao de urna nova ordem. Outros sao reformistas, porqueentendem que a situac;iio vigente ainda faz sentido, e preciso melhorar,ou porque, nao sendo possfvel a superacso seja por qual razao for,recomenda-se acumular reformas para amadurecer h istor icamente aformacao social ; outros sao conservadores, porque acreditam devermanter a sltuacao vigente e nao aceitam ar riscar mudanc;as; outr osainda sao reaclonar los, porque imaginam dever lutar contra mudanc;ase retornar a sltuacoes preterltas, que rnantern como ideal. Toda essaluta em tor no do futuro, da arte do possfvel, do projeto de socledadeque desejamos ou nos lmpoem, e importante demais, para nao trata-lasomente porque outras metodologias nao a encaixam bem.

m) Esgueira-se por t ras da casca dos fenornenos, procurando a prof~ndi-dade dele, porque cre numa realidade que nao se da a primelra vista.

99

Parece-nos que a dlaletlca seja a metodologia mais condizente

com as clenclas sociais. Ea forma mats criativa e versatll de construir

uma realidade tarnbern criativa e versatil. Jamais seria isso umaposlcao lndlscutlvel, tarnbern porque Ja nao seria dlaletlca. Trata-se

obviamente de uma lnterpretacao possfvel e que faz parte do jogo

tnterrnlnavel de aproxirnacoes sucesslvas e crescentes rumo a cienti-ficidade, que no seu limite e utopia. Levantamos aqui, a titulo de suma-

r iar, algumas caracteristicas dessa metodologia:

a) Problematiza com maior ln tel lqencla a relacao entre sujei to e objeto,superando poslcoes estanques e estereotipadas l igadas a vlsoes esta-t icas da objetiv idade e da neutralidade. E mais : ve entre os dois ladosuma polar lzacao dlnamlca, que faz do conhecimento um processo, naouma descr lcao ou um retrato, ou seja, faz do conhecimento uma expres-sao crlat lva. nao um ajuntamento rnecanlco e justaposto.

b) Atraves da concepcao de unidade de contrarlos , adapta-se melhor adinamica hlstor lca, que nile e um todo Iiso, matematico, da ordemapenas quantitativa. Para uma realidade dlnamlca a preciso um instru-mental tambem dlnarnlco de captacao,

c) Priv ilegia os fenornenos da translcao hist6r ica, a inda que possa ver osoutros tarnbern. Entende-se, desde que nao doqrnatlca, como uma dasformas possfveis de construir a realidade de modo cientff ico, aceitandoque tarnbem as teorias cientfficas nao sao produtos acabados. Suasuperacao e tao natural quanto a superacao hist6rica. Nenhuma metoda-

logia a tao capaz quanto a dlaletlca de conviver criativamente com aprocessualidade hist6rica, transportando para dentro de si mesma essacaracterfstica, a medida que se entender como pesquisa, como inda-gaC;ao,como crftica e autocrftica.

d) Encontra certo meio- termo entre condic ionamentos objeti vos da reali -dade e a possibilidade de planejar a hist6ria atr aves da iniciativa dohomem. De modo geral , aceitam-se os condic ionamentos objetivoscomo rnals fortes, que para certas dlaletlcas sao determinantes emult ima lns tancla, no caso dos econornicos. Mas ha lugar tarnbern paraideologias e intencional idades, porque em parte pelo menos a hist6riapode ser fei ta. Nesse sentido, nao reduz a hist6ria social a uma estatlcarepet it iva, nem recoloca os subjetiv ismos como mais impor tantes. Senao existe objetiv idade, nem neutral idade, por outra nao e menos cen-tral preservar a objetlvacao e a reducao da lnfluencla de jufzos de valor .

e) Conv ive com estruturas , nas quais ve a fonte do dinamismo hist6r ico,ao contrar lo de outras metodologias que usam as est ruturas para res-sal tar identidades hist6ricas lnarredavels, reduzindo a hist6ria a fene-meno repeti ti vo e secundar lo . Nao e , pols, uma filosofia frouxa, taoelast ica que nela tudo se acolhe. 0 dinamismo his t6ri co nao a maluco,subjetlvo, ca6tico. Ha modos estruturais do acontecer. A crlacao hist6-rica a real, mas a hist6r ica, ou seja, condicionada. A dla let lca nao sepoe a dest ru ir est ruturas, como se fossem inimigas metodol6gicas ; aocontrarlo, ressalta aquelas que carregam 0 processo hist6rico e nas suascontradlcoes 0 preservam, de tal sorte que 0 permanente e a proviso-rledade dos conteudos faslcos.

f ) Adapta-se melhor ao conceito de regularidade, ao cont rarlo do de deter -mlnacao. a sombra do conceito de causa/efelto, onde cabe melhor avrsao de lei . Uma realidade dlnamlca nao pode ser absolutamente deter-

98

 

I: superficial aquela metodologia qua se satisfaz com apr lrnelra impres- 7

Page 52: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 52/62

sao, ou com 0 mensuravel. .

n} Ao lado disso, e a metodologia mals crftica a autocri tica, como requera dlnamlca da realidade social. Ai esta grande parte de sua criat iv idade,embora possa tambam tornar -se preciosismo e tagare li ce vaz ia. I: 0

chao da boa dlscussao, da polernlca construtiva, da vtsao multi facetal,que exige 0 constante es tado de aler ta contra pos turas fechadas, pe-quenas, medfocres.

O U T R A S M E T O D O L O G I A S IM P O R T A N T E S

7_1. NOTAS INICIAIS

De maneira apenas lntrodutorla, fazemos aqui uma exposlcao su-maria de algumas metodologias importantes, contrapondo-as semprea dlaletlca, Passaremos pelo empirismo e positivismo, pelo estrutu-ralismo e pelo sistemismo, sem levantar a pretensao de que nestasvertentes estaria contida toda a gama de metodologias vigentes napesquisa social. Cada uma supoe dlscussao profunda de seus pres-

supostos, de suas propostas de lnstrumentacao cientifica, de sua orl-ginalidade com respeito a outra, e assim por diante.

Embora esta gama variada de metodologias possa produzir aim-pressao de dlspersao e de dificuldade de alcancar certos consensosmfnimos, no fundo pode ser entendlda como riqueza tfplca das clenclassociais. ~ uma dlscussao tao renitente, quanto e renitente a realidadesocial, que se revela em partes, nunca total mente. 0 processo de apro-xima«;:aosucessiva e crescente das clenclas sociais acarreta a cons-tante disputa por caminhos mais e menos condizentes.

De modo geral, as outras metodologias tern em comum, entreoutras colsas, a idela de que se deve tratar unitariamente qualquerrealidade, social ou nao, Nao se justificaria uma metodologia propria,ou relativamente propria, para as clenclas sociais, como e 0 case>da

dlaletica na acepcao acima exposta. Sao privilegiados crlterlos logicossobre os sociais, colocando-se frequenternente como factivel a objeti-vidade e a neutralidade. Conserva-se como prototlpo cientifico 0 modode captar a realidade usado nas clenclas exatas e naturais.

Nesse sentido, correspondem a velha tradlcao ocidental, que acre-dista ser a real idade ordenada e estruturadc pelo menos regular, se-guindo os esquemas expl icat ivos a mesma"fendencia, ou seja, a ela-boracao de slsternatlzacoes estruturadas e se possivel exatas.'

1. Encontra-se em P. Demo, Metodologla Clentiflca em ctencte« Socials (Atlas, 1980), um apanhadode

todas essas metodolog ias, a par ti r da psglna 102 e segulntes.

100101

 

7.2. EMPIRISMO E POSITIVISMOAo mesmo tempo, significa uma dernlssao tecrlca, no sentido de

substi tuir a expllcacao pela descrlcao empfrica. Explicar e compor um

Page 53: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 53/62

quadro teorico de refer€mcia, onde os elementos do fenorneno ganham

relevo, lugar e slqniflcacao. Os fatos nao falam por si, mas pela boca

de uma teoria. Se falassem por si, nao haveria lnterpretacoes ou

versoes. Sobre os mesmos dados pode-se construir teorias ate mesmo

contrad itorias. 2

o positivismo e uma metodologia extremamente mais complexa

que a anterior e esta geralmente mais ligado a sua expressao loqlca.

Tem de comum com oempirismo a desconftanca contra a filosofia e

a especulacao. Mas na sua versao mais loqica, desinteressa-se pela

problematlzacao do relacionamento entre sujeito e objeto e agarra-se

as condicoes loqicas do enunciado cientffico. Nao se fixa tanto na

realidade, quanto na linguagem dita cientffica sabre a realidade, su-

pondo-se suficente adequacao.

E a metodologia mais l igada a reproducao do modelo das clenclas

exatas e naturais, ligando-se muito mais as formas de realidade do

que a seus conteudos. Acredlta em objetividade e neutralidade, bem

como nao admite metodologias proprias para as ciencias sociais. Todos

os objetos devem ser tratados de modo ldentico.

Constitui a mantenedora principal do interesse pela teoria do

conhecimento, na linha eplsternoloqlca. tendo como modelo fundamen-

tal a loqlca matematlca, exata e supra-historlca. Acredita em real pro-

gresso cientifico, no sentido de que muitas clenclas [a sao maduras,

tendo obtido resultados definitivos, como a ffsica, a maternatlca, a

loqlca etc. Nao se liga naquilo que chamarfamos processualidade do

conhecimento em clencias sociais, porque tende aver isto como de-

feito, imaturidade, filosofia gratuita.

A finalidade da ciencia e estabelecer a verdade, compreendida

como algo factfvel e definitivo. Embora nao insista muito em evldenclas

empiricas, preocupa-se mais com a tessitura loqlca da linguagem cien-

tifica, que procura evidenciar-se em transparencla explicativa e

no seu fluxo dedutivel sem contradlcoes.'

o positivismo nao e unitario, e claro. A l inha de Popper, por exem-

plo, recusa a inducao e somente aceita a deducao como metoda valldo,

Com isto, nao se interessa pela acurnulacao de dados e pela obser-vacao sistematica. E acaba instituindo a provisoriedade das teorias

como condlcao normal cientifica, bem como a critlca rnetodoloqlca

como procedimento baslco de depuracao clentif lca.'

o empirismo tem por origem a procura de superacao da espe-

culacao teorica. No lugar dela, coloca-se a observacao empirica, 0

teste experimental, a rnensuracao quantitativa como crlterlos do que

seria ou nao seria cientifico. Busca-se reproduzir em clenclas sociais

as mesmas condicoes ou muito aproximadas das do laborat6rio, onde

se pretende construir 0 ambiente propicio capaz de superar subjeti-

vismos, lncursoes dos juizos de valor, lnfluenclas ideol6gicas, e assim

por diante.

Nao se pode subestimar os rnerl tos do empirismo, porque foi his-

toricamente um santo rernedlo, contra um vezo academlco excess iva-

mente filosofante, perdido na especulacao gratuita. Criou lnumeras

tecnlcas de coleta e de mensuracao dos dados, acumulou fatos e

dados, trouxe para as clencias sociais 0 usa da cornputacao, e assim

por diante. Seu rnetodo baslco e muitas vezes descrito como 0 da in-

dU{:80. Significa aceitar a qenerallzacao somente ap6s ter constatado

os casos concretos. Por exemplo, 0 enunciado - todo motorista bra-

sileiro e imprevidente - somente seria aceito, se tlvessernos cons-

tatado empiricamente, atraves da observacao direta dos motoristas.

Diziamos que a clencla trabalha sempre com qenerallzacoes, Mas

e diferente obter a qenerallzacao dos fatos constatados, ou obter comopressuposto teorico, 0 metodo contrarlo chama-se deduceo, e quer

dizer a aceltacao como ponto de partida de urn enunciado geral, e

depois a contraposlcao dos casos particulares. 0 exemplo comum e

o do silogismo. Digamos: todo homem e mortal; Joao e homem; logo,

e mortal. Trata-se de urn raciocinio dedutivo porque parte do geral

para 0 particular.

A objecao que a lnducao faz a deducao e de ser apriorfstica. Como

se sabe, de antemao, que todo homem e mortal? Tal pressuposlcao

ou e gratuita, ou e doqrnatlca. Ademais, a deducao seria tautol6gica,

porquanto, na descida ao caso particular nao se acrescenta conheci-

mento novo. Se a qenerallzacao esta em primeiro lugar, a contrapo-

slcao de casos particulares nao traz nenhuma novidade.

No entanto, 0 empirismo e a metodologia mais simpl6ria, porque

acredita no observavel, Inevitavelmente e superficial, se aceitarmos

a ldela de que a realidade jamais se da na superffcie. Nem sempre a

parte observavel e a mais importante, ou a que interessa. 0 behavlo-

rismo, que e uma expressao empirista, reduz a personalidade a seu

comportamento externo; entende-se este procedimento, porque e

observavel, de alguma forma rnensuravel, experlmentavel, Mas hoje

sabemos que a parte mais importante da personalidade nao e 0 com-

portamento externo, mas suas motlvacoes inconscientes ou, de modo

geral, mais profundas.

102

2. 0: Hume, Investigar;80 acerca do E~tendimento Humano (EDUSP, 1972); H. Reichenbach, La Filosofia

Cientiiics (Fondo de Cultura Economlca, 1953);W. Hochkeppel (org.). Soziologie zwischen Theorieund Empirie [Nymphenburger V., 1970).

3. L. Kolakowski, Pos!tivist Philosophy - from Hume to Vienne Circle (Pelican/Penguin, 1972); K.lambert e G. G. Br it tan, tntroduciio a Filosofia da Cifmcia [Cultrix •.1972).

4. K. R.Po~per , Th.eL?a.icof SCientific Discovery (Huntchinson of london, 1965); Idem,EI Desarrollo del

C.onoclmle_ntoCtentiilco - Conjeturas y Refutaciones [Paidos, 1967); Idem, La Miseria del Histori·ctsmo (Alranza Taurus, 1973).

103

 

Contra a lnducao, Popper levanta a objecao de que recai numa re-

gressao ao infinito. Com efeito, para dizer, por exemplo, que todosessa que, a nosso ver, confunde com unldade de contradltortos.

Esta a dialetlca nao pode sustentar, como ja viamos; mas aquela .e

Page 54: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 54/62

os cisnes sao brancos, a nivel de uma lei da natureza, deveria ter

observado todos os casos concretos, de ontem, de hoje, e garantir

que arnanha nao apareca urn cisne negro. Nao aceita igualmente que

a no~ao de probabilidade mude 0 problema, porque, para dizer que

todos os cisnes sao provavelmente brancos, teria que constatar todos

os casos provavels. Uma segunda objecao esta no fato de que recai

no apriorismo, pois a lnducao nao se constitui como regra metodo-

logica geral de modo indutivo, mas dedutivo. Nao e resultado da cons-

tatacao concreta, mas de uma aceltacao previa generalizada.

Com isto, nao acredita que consigamos verificar teorias, ja que,

por mais que acumulemos fatos concretos positivos, isto nao acres-

centa nenhuma certeza. Todavia, se nao conseguimos verif icar, pode-

mos falsificar, porque basta a presence de urn unlco fato concreto

negativo para dizer que a teoria ja nao e verdadeira, no todo ou em

parte.

A falsificabilidade passa a ser 0 crl terlo basi co de cientificidade,

no sentido de que uma teoria e clentiflca apenas provisoriamente, en-

quanto nao se encontra caso concreto negativo. Ademais, nao interessa

encontrar casos que apolem a teoria, ja que por al nao conseguimos

certeza alguma.O que interessa e a busca de casos negativos. ~ assim

que institui a crltlca rnetodoloqlca como cerne de seu rnetodo.De modo geral, Popper arejou imensamente as poslcoes positi-

vistas. Para ele qualquer constatacao ernpfrlca ja e uma lnterpretacso

teorlca, [a que, para constatar algo concreto, precisamos cientifica-

mente de conceitos prevlos, que nao sao observavels. Urn conceito,

porser uma qenerallzacao abstrata, nao se observa, e claro. Assim,

para constatar . .este copo d 'aqua", preciso de var los concei tos prevlos,

sem os quais nada constato, ou seja, 0 conceito de co po de agua, de

materia solida, de materia liqulda, de recipiente etc.

Popper abandon a a repulsa a f ilosofia, porque nao importa 0 ponto

de partida da teoria, desde que se submeta ao teste negativo. Procura

instituir uma especle de democracia rnetodoloqlca, no sentido de que

cada teoria deve ter sua chance de apresentar-se como explicacao da

realidade, desde que aceite as regras de jogo, ou seja, 0 contraste

impiedoso contra fatos negativos. Nao os encontrando, a teoria nao

passa a ser verdadeira, mas tao-somente vallda par enquanto. A clencla

e uma arena aberta a disputa de teorias. Nao adianta protege-las; o

que interessa e crt tlca-Ias.

A postura de Popper nao e dlaletlca, porque a crltlca aparece

apenas como componente do metodo, nao da concepcao da realidade.

Com efeito, e urn dos adversaries classlcos da dialetica, principal-

mente porque nao aceita a ldela da unidade dos contrarlos: ldela

104

maroa propria da dlaletlca."

Modernamente e importante a poslcao de Albert, dlscfpulo de

Popper, mas ainda mals aberto em termos de dtscussao com a dia-

letlca. Concorda que a neutralidade cientifica e uma opcao entre

outras, ou seja, e urn juizo de valor. ~ praticavel. apos ter-se assumido

tal [ulzo de valor. Ao mesmo tempo, nao ve como fundar-se a ciencla

de modo evidente, no senti do de uma fundarnentacao ult ima; equivale

a dizer que a clencla produz somente hipoteses de trabalho, inter-pretacoes aproximativas, nao resultados def initivos. Nao se distingue

essencialmente da moral e da filosofia, porque certezas cientificasso podem ser doqmas.'

No entanto, 0 positivismo, conforme e comumente conhecido,

apresenta varlas posturas distorcidas, face a da dialetlca. Num prl-

meiro momento, defende a neutralidade clentiflca como factlvel e

necessaria, porque entende ciencia como a producao de certezas 10-

gicas. Num segundo momento, advoga a unicidade do metoda clentl-

fico, tomando como modelo a otlca das clenclas exatas e naturais.

Problemas de captacao da realidade social estao no sujeito, nao no

objeto. Assim, toma-se a formacao cientlfica como 0 t reinamento do

sujeito com vistas a adotar certo tipo de comportamento e a dominar

certos inst rumentais, que possibilitem a captura objetiva da realidade,

assim como ela e. Procedimentos loqlcos. capacidade dedutiva e in-

dutiva, ordenamento descrit ivo, forrnallzacoes categoriais, rigor etc.

sao expectativas muito caras ao posit ivismo.

A medida que se liga ao empirismo, assume tarnbem seus de-

feitos. Contenta-se com 0 fenomenal, nao descendo a essencla da

realidade. Reduz a realidade a seus aspectos mais observavels e mani-

pulavels pela quantt ftcacao. Rebaixa 0 sujei to a eJemento descr it ivo,

catalogador, arrumador, construtor de tabelas, perdendo de vista a

importancla da explicacao, dos quadros teorlcos de referencla, dos

processos interpretativos e herrneneuticos. Pouco adianta 0 aperfei-

coarnento estatistlco dos dados se nao soubermos lnterpreta-los. As

clenclas sociais nao se contentam com colecoes de dados.

Nao obstante, e preciso lembrar que a dedlcacao empirica e 0rigor loqico sao momentos altos do empirismo e do positivismo. A

dlalet ica nada tem a perder se souber usa-los. Ademais, e dogmatismo

lnaceitavel imaginar que a propria construcao de uma tabela ja signi-

fique empirismo. 0 dado em si nao tern culpa. A questao surge no uso

tecrico-Interpretativo dela. Faz muito bern a qualquer dlaletlca com-

5. 0 celebre art igo de Poppercont ra a d la letlca encontra-se em EI Desarrollo del Conocimlento Clenti-

fico, op. cit.

6. H. Albert, Tratada da Razea Critica (Tempo Brasileiro, 1977).

105

 

provar empiricamente suas hipoteses e revestir suas construcoes como maior rigor logico posslvel. Esta propriedade pode ser vista na lingua com facilidade. Toda

Page 55: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 55/62

lingua desconhecida nos parece caotlca. Mas para cada uma existe

uma qramatlca, 0 que equivale a dizer que falamos .d~. forma ordenada,sabre sstruturacoea rnvariantes, de modo geral solldlflcadas em nosso

inconsciente. 0 conceito de inconsciente e essencial para esta optlca,

porque oferece a oportunidade de estabelecimento de uma identidade

profunda entre os homens, independentemente de .espaco e tem~o.Sendo 0 inconsciente coletivo igual em todos, ou seja, nao tendo hls-

torla, permite que todos tenhamos as mesmas cateqorlas mentais e

os mesmos codlqos loqlcos para falar, para fazer mitos, para comporideologias etc.

Secundariza-se, assim, a consclencla e tambern a Hlstorla, pro-

curando garantir para as clenclas soclals e humanas um lastro pos-

slvel de objetividade e ate mesmo de exatidao. Hoj.~ acreditamos po-

dermos traduzir um livro em computador, porque Ja abandon amos a

idela anterior das variabilidades tncomensuravels da Ifngua; ao con-

trarlo, sao estruturas repetitivas, que permitem inclusive aproximar

todas as Ifnguas a elxos comuns.

Considera a consclencla como "inimigo secreto" das ciencias

do homem. A dlstlncao entre humane e natural preclsa ser desfeita,

se buscamos tratamento cientlfico. E enesta linha que Althusser

iria defender que Marx teria sido anti-humantsta, ao construlr a obra

de 0 Capital, porque estava interessado em captar objetivamente asrelacoes necessarlas do fenomeno capitalista, e nao em ideologias.Ora, qualquer posicao humanista significaria a lntromlssao de [ulzos

de valor, de consclencla opcional, quer dizer, de algo ldeoloqlco que

atrapalharia 0 intento clentlfico."

Quanto ao problema da hist6ria, nao a elimina, mas a secundariza.

o mesmo faz com a dlaletlca, Sua objecao a dlalet ica e importante

porque esta exarada na linha de uma critlca interna, a partir de umapretensa lncoerencla interna. Com efeito, para a dlaletlca se cons-

tituir como sistema metodoloqlco, precisa definir, classificar, dlstin-

guir, opor, que e tudo postura da loqlca formal. Ela nao subsiste

sem esquemas formals."

Ela e, apesar disto, importante, porque traz a bai la a percepcaodo fluxo hlstorlco. Mas a consclencla historlca nao e fenorneno rele-

vante, diante da concepcao do inconsciente de Levi-Strauss. Nesta

linha, imagina que a loqlca formal explica a dlaletica, nao 0 contrarlo,

porquanto a dlaletlca aparece metodologicamente como uma estrutura

explicativa. Explica 0 movimento, mas nao passa com 0 movimento;

7.3. ESTRUTURAL ISMO

Esta metodologia tornou-se importante a partir de Levi-Strauss,

que a disseminou em algumas reqloes das clenclas humanas e sociais,sobretudo na lingiilstica e na etnologia. Referimo-nos aqui especlfl-

camente ao estruturalismo de Levi-Strauss, ate mesmo porque foi

quem colocou algumas objecoes serlas a dlaletlca."Restabelece no melhor esti lo a t radlcao eplsternoloqlca ocldental,

que acredi ta estar a real idade invariavelmente estruturada, constltuln-

do sua explicacao cientlflca a codlficacao de tais estruturas lnvarlan-

tes. Explica-se 0 regular, que aqui ja e invariante. Em primeiro lugar,

corneca-se pelo esforc;:o de decomposicao analftica, nao de slntese,

ja que, para entender um fenomeno, e mister desrnonta-lo em suas

partes; e isto e precisamente analise. Em segundo lugar, a decem-poslcao analltlca mostra que a complexidade do fenorneno e uma

percepcao superficial; na sua profundeza todo fenomeno e simples,porque a possfvel varlacao complexa gira em torno de estruturas in-

variantes. Em terceiro lugar, explicar e escavar a subjacencla, por-

quanto a superflcie varia, nao 0 fundo, que invaria. Em quarto lugar,

o fenorneno e slrnpllflcavel em modelos estruturais, revelando a ordeminterna subjacente, ao contrarlo da vlsao de supertfcie.

Alguns exemplos: 0 fenomeno musical apresenta uma superflcleextremamente variada e uma hlstoria exuberante de varlacces: no

fundo, porern, tudo nao passa da combinat6ria variavel de doze ele-

mentos invariantes, os doze semitons. Mesmo que nao fossem doze,acredlta-se que ha um c6digo restrito, Imutavel, estrutural, por baixo

do fenorneno da rmisica. Explicar apenas a evolucao hist6rica, seria

superfic ial. Com efeito, somente 0 explicarlamos, se encontrassernos

a estrutura subjacente.

A Ffsica procedeu da mesma forma. Amadureceu como ciencia,

quando encontrou 0 c6digo dos elementos atomlcos, em nurnero res-

trito e fin ito, dentro de uma ordem estabelecida e dada. E mais, nao

faria sentido imaginar uma hist6ria dos elementos atornicos. porquese trata de uma combinat6ria varlavel de componentes invariantes.

Levi-Strauss aplicou tal expectativa a um fenomeno muito cornple-

xo, que sao os mitos indlgenas. Aparentemente, nem sequer se imagina

que tenham nexo, por vezes, tal a bagunc;:a de termos e retomadasinternas. Nao obstante isto, tentou mostrar que todos os mitos, do

mundo inteiro, apresentariam temas unlcos, estruturas simb61icassempre repet fdas, formas ldentlcas.

8. L. Althusser. La Revo/uci6n Te6rica de Marx (Slglo 21. 1971).9. Veja polemlca cont ra a dta letlca , no Capitulo 9 da obra: C. Levl ·Strauss. 0 Pensamento se/v:ige;:,

(USP. 1970); Cfr. tambern: L C. Lima . 0 Estruturalismo de Levi-Streuse (V~lZes. 1970); C .. R. Ba oc :Levi.Strauss: Estrutura/ismo e Teoria Socio/6glca (Zahar. 1976); A. Bonoml, Fenomen%gla e fstru.turalismo (Perspectiva. 1974); M. Marc·L!piansky. La Structuralisme de Levl·Strauss (Payot. 1973).

R. Bastide. Usos e Sentidos do Termo "Estrutura" (EDUSP. 197~);. L. Sebago.Marxismo e Estr~~%j'Iismo (Portico. s.d.); C. N. Coutlnho. 0 Estruturalismo e a Mlserla da Razao (Paz e Terra. .

7. C. Levi·Strauss. Antrop%gia Estrutura/ (Tempo Brasileiro. 1967); Idem. Anthropo/ogie StructuraleDeux (Pion. 1977).

106 107

 

permanece acima do movimento. E mais: nao explica propriamente

a movimento, mas as esquemas invariantes do movimento, porquefaz hist~ria, ~as .condiCio~a?? Alguns diriam ate que a faz deter~i-

Page 56: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 56/62

se acredita que a movimento nao e sublet lvo, intencional, voluntarista,

consciente, caotlco, mas prec isamente regular, estruturado, axioma-

tizado.

Uma segunda objecao a dlaletlca provern da conslderacao sabre

as lnterpretacoes hlstorlcas. Declarando-se aqnostlco, nao aceita que

a hlstorla tenha um sentido, porquanto e um fluxo de fenornenos con-

dicionados e determinados que somente admitiriam ser agrupados de

acordo com algum sentido na optlca subjetiva e ldeoloqlca do sujeito.Ademais, a propria hlstoria e percebida atraves de esquemas do aeon-

tecer. a mais banal e constituido pelas datas. a que existe e um fluxo

continuo, uma sucessao de coisas. Todavia, se nao destacassernos

pontos fixos, nao veriamos a movimento do fluxo. au seja, para per-

ceber um antes e urn depois, e mister termos um marco fixo quedivida as momentos. Assim, vemos a movimento porque armamos

pontos fixos, em relacao aos quais podemos perceber coisas em

sucessao,

Nao e a historla que unifica a sociedade, mas suas condlcoes de

orqanlzacao social, que sao no fundo estruturas invariantes em torno

das quais gira a hlstorla. J :: dal que provern a crenca de que a hlstorlco,a variante, e superficial; a essencial e invariante. Par isto, explicar

sera descobri r estruturas invariantes.

Sao muito importantes as objecoes do estruturalismo contra a

dlaletlca, porque sao a esforco de critica interna. De fato, a dlaletlca

nao pode negar que tambern sistematize a realidade e que se entenda

como esquema explicativo, na tradicao ocidental clentlflca tfpica. Ao

captar a historla, tarnbern a ordena, define eras, ressalta datas, atribui

sentidos a grupos de acontecimentos etc. J :: importante lembrar aqui

que Marx ja percebera isto com clareza. Sua concepcao dlaletlca naoescapa, em absoluto, desta dose de determinismo, porque cientifica-

mente captamos a regular, a repetivel, a invariante. A concepcao do

econornlco como determinante em ultima lnstancla e a caso tlplco de

uma invariante explicativa, que supoe ademais uma realidade com-

plexa, mas no fundo ordenada.

No entanto, a reconhecimento de estruturas dadas nao impede avigencia da dlaletlca, ate mesmo porque, sendo tambern logica, ja nisto

admite-se convivendo com forrnalizacoes. A dlferenca esta em que a

dlaletlca ressalta estruturas dadas que sao a fonte da historicidadedo processo social, como a confl ito, as antagonismos, as contradlcdes.

Tais estruturas nao "esfriam" a hlstorla: pelo contrarlo, sao seu pro-prio calor. .

A dlaletlca nao concebe uma histcria voluntarista, lntenclonal,subjetiva. Se asslm fosse, perder-se-ia em especulacoes gratuitas,.ern ldeoloqizacoas lrrecuperavels, em filosofias sem limite. a homem

108

n~Ado.Nao eXlste:_mcomp~tlbil idade c0'!l as crencas comuns de nossaciencra, quanta a regulandade da realldade. A hlstorla nao acontecede qualquer maneira. J :: planelavel. nao somente porque a homempode entrar como fator interveniente efetivo, mas tambern porque

havendo condicionamentosobjetivos e sendo conhecidos, 0 pode

manipular. De certa manetra: a hlstorla e previsivel. Se nao se com-

portasse de forma regular, isto seria lmpensaval, Todas as prognosessao muito relativas, porque se baseiam no postulado fragil de uma

tendencla constatada e mantida. Mas sao possiveis.

Nao pode ser, assim, puramente hlstorlca a dlaletlca, Ela e histo,.

rico-estrutural. Ressalta as fenornenos de translcao hlstorlca, dentro

de condicionamentos estruturais. a estruturalismo secundarlza a his-

torla e no fundo nao a aceita como explicativa. Para a dlaletlca, explicar

significa tarnbern recompor a genese.

Ademais, a dlaletlca e de tendencla sintetlca, porque preza a con-

ceito de. totalidade, sobretudo na perspectiva da unidade dos contra-rios. a estruturallsmo e profundarriente analitico.

Enfim, mesmo se provassernos que fenomenos de consclenela

historlca, de lntervencao humana ldeoloqlca sabre a realidade, de cren-

ca em sentidos da vida e da sociedade etc. sao condicionados pelo

inconsciente e par outras estruturas dadas mais do que imaginamos,ainda assim seriam alga essenclal para a sociedade. Caso contrarlo, a

reduziriamos a seu substrata flslco-quimlco. ja que sob a lente de um

mlcroscopio nao aparece ideologia, utopia, consclencla, mas apenas

materia, orqanlca au inorqanlca. Se a que queremos especifico da

sociedade, como alga diferente da realidade natural, e meno r do que

imaginamos, isto nao a torna inexistente au secundarlo.

Fazer hlstorla, produzir ideologias humanistas, manter acesa a

utopia da partlclpacao, garantir a paz e solidariedade etc., ainda sao

projetos essen cia is da sociedade que a dlaletlca entende melhor.

7.4. SISTEMISMO

A metodo!ogia slstemlca alimenta-se da teoria dos sistemas e

tarnbern das concepcoes funcional istas da sociedade. Ressal ta a socie-

dade como fenomeno organizacional, como sistema de partes conca-

tenadas, capaz de manter e recobrar a equilibria da perslstencla his-

tortca."

a trace mais importante do sistema nao e a tnter-relacao d,as

partes, mas a capacidade de constante retroallrnentacao que mant.em

a dinamismo de recornposlcao de seu equilibria na arnblencla. A dlfe-

10. W, Buckley, A Soctoloqte e s Moderna Teoria dos Sistemas (Cultrlx, 1971).

109

 

renca do funcionalismo, que acentua multo a face consensual e har-

monio~a da sociedade, 0 sistemismo parte da 6ptica segundo a qual

nistrar a tratar da rnanutencao de sistemas, leva-los ao funciona-

mento mais racional e produtivo possfvel, cuidar que nao sejam colo-

Page 57: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 57/62

todo sistema se caracteriza por certa dose de conflito, tanto lnterna-

mente quanto na convivencla com outros sistemas. Sobretudo na

convlvencla com outros sistemas, a necessidade de constante lnte-racao tr_?z frlccoes lnevttavels. bern como a exlqencla de constante

adaptacao a novos momentos e a novas clrcunstanclas.

A capacidade de elaborar para os conflitos surgidos uma res postaadequad~, no sentido de os resolver, ou pelo menos compensar ou

abafar, e caracterfstica tfpica do dinamismo slsternico. Nisto reside

sua condlcao de perslstencla hist6rica.

_No .momento, porern, que ja nao consegue garantir a retroalimen-

tacao circular, no senti do de que nao alcanca responder adequada-

mente ao desafio da arnblencla e as frlccoes do funcionamento, 0 sis-

tema pode entrar em colapso. E claro que todo sistema apresenta umaface de partes inter-relacionadas. Mas a mais importante a dlnarnlcaslsternlca."

a sistemismo propoe-se substituir a dlaletica, porque nao foge

ao conflito e nisto a dlnarnlco e hist6rico. A diferenca parece-nos que

esta na concepcao de conflito. Para 0 sistemismo, a tendencla aver

somente conflitos internos, por deflnlcao soluclonavels, ou conflitos

oriundos da convivencla ambiental, mas sempre manejavels, a slste-mismo nao concebe bern conflitos nao soluclonavels que acarretariam

a superacao do sistema.

Se cornparassernos a dialetica, 0 sistemismo ficaria apenas com 0

pe nao antaqonlco, e se daria mal com 0 pe antaqonlco, ja que este sig-

nifica translcao do pr6prio sistema. Assim, 0 problema do sistemismo

a de fechamento excesslvo, porque tern como horizonte de seu dina-

mismo 0 horizonte do pr6prio sistema. Mudancas ha, mas aquelas

dentro do sistema, que nao pedem sua superacao. au por outra, adrnl-

tern-se rnudancas dentro do sistema, nao do sistema." .

Certamente trata-se de uma metodologia dlnarnlca que, embora

mui to aparentada ao funcionalismo, 0 supera nisto de longe. Mas

liga-se a urn dinamismo historicamente unilateral, porque seria pratt-

camente incoerente ao sistemismo basear-se na morte dos sistemas.Sua propensao sera, obviamente, a de ressaltar a dlnarnlca de manu-

tencao do sistema.

Por isso mesmo, a hoje uma metodologia extremamente dlfun-

dida e de grande influencia. Na verdade, invadiu completamente certas

disciplinas academicas, principal mente admlnlstracao publica, adrnl-

nlstracao das empresas e tarnbern economia e politlca. Aflnal, adrni-

cados sob contestacao, e assim por diante.

Para estruturas de poder foi urn verdadeiro achado, porque apanha

precisamente 0 movimento de estruturacao da sociedade visto na

6ptica dos dominantes. A 16gica do poder, de cima para baixo, a de

manter, de maxi mizar, de legitimar. A teoria slsternlca aproveitou tudo

o que veio do campo da informatica, na qualidade de instrumentos

capazes de deteccao de conflitos, de elaboracao de respostas ade-

quadas, de planejamento integrado, de controle de processos, de ava-liacao de projetos, e assim por diante. Diante de estruturas muito

sofisticadas de lnformacao, a sociedade tornou-se mais rnanlpulavel,

mais previslvel, mais adrnlnlstravel. A mudanca mais drastlca val fi-

cando cada vez mais dlflcll porque os controles sao lnurneros e

eficientes.

Controlar conflitos a a habilidade fundamental da metodologia

slsternlca. Significa nao mais 0 controle duro, maqulavellco, no sentido

das lrnposlcoes extremamente excludentes; significa muito mais -

embora jamais se elimine 0 anterior - a cooptacao dos adversarlos,

o convencimento at raves da propaganda, 0 "fazer a cabeca" atraves

da industria cultural, a oposlcao domesticada, e assim por dlante."

A medida que se corta a dlscussao sobre os fins da sociedade

dlscutern-se somente os meios de a administrar. Coloca-la para fun:

cionar, faze-l a girar dentro do dinamismo retroalimentativo, azeitar

posslveis frtccoes, els a tarefa que os dominantes esperam da

metodologia slstemica.

A ldela sovletlca da dlaletlca nao antaqonlca perfaz com perfelcao

esta tendencla metodoloqlca moderna. Cacou-se a antaqonlca, aquela

comprometida com superacoes hlstorlcas. Ficou apenas aquela que

movimenta, faz c6cegas, reforma, mas nao salta. E tecnlca refinada

de manlpulacao dos dominados, dos quais se espera concordancla,

sustentacao, fidelidade. Pode ser a [ustlflcacao ideol6gica mals refi-

nada da manutencao do poder.

Ao mesmo tempo, 0 sistemismo imagina apllcar a mesma postura

metodoloqlca para toda a realidade, voltando a ldela positivlsta eestruturalista da unicidade da clencla. Concebe a hist6ria como cir-

cular, exacerbando muito a presence de estruturas invariantes. Mais

do que ligado em conteudos, acentua 0 aspecto relacional ou a orga-

nizaeso per se."

A natureza a urn sistema, a ecologia a tarnbern. como a sociedade

igualmente 0 a. Ter-se-ia encontrado urn elo comum, nao rnals na re-

11. P. Demo. Metodologia Cientifica em Ciencias Sociais (Atlas. 1980Jp. 231 55.

12. J. D. Nicolas, SoC/ologia entre el Funcionalismo y la Dtelectlce (Guadiana 1969); T. Parsons,Societies: Evolutionary and Comparative Perspectives (Prent ice-Hail , 1966) . '

13. P. Demo, "Da Burocracia 11Adrnlnlstracao Total", in: Documentar,;ao e Atual/dade PolitIcs, UNB,

n.O10, maio de 1980, p. 3 55.

14. L von Bertalanffy, Teorla Geral dos Sistemas (Vozes, 1973).

110111

 

dW;:BOdo humano ao material, mas nas identidades das condlcoes deorqanlzacao,

8

Page 58: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 58/62

o slsternlsmo busca abrlr-se principal mente por levar em contaa dlnamlca do contato com sistemas outros que funcionam comoamblenclas. Os sistemas adaptam-se, aprendem, mexem-se. Todavia,o movimento e slsternico. ou seja, encerrado no horizonte do sistema.Sobretudo quando olhado no quadro das estruturas de poder, percebe-se sua unilateralidade, ja que sacraliza a POSi«;:BOe cima para baixo.A real dlnarnlca do poder esta condicionada muito mais pela posslbl-

l idade de contestacao de baixo para cima. Nisto a dlaletlca e muitomais compatfvel com a hlstorla.

A L G U N S E X E R C ic lO S M E T O D O L O G IC O S

A finalidade deste capltulo e introduzir a ldela de exercicios me-todoloqicos, com vistas a reduzir a tendencla verbalizante e filosofanteda metodologia. Muitas vezes, seu estudo e fei to na base da passtvl-dade dos alunos, que apenas escutam um discurso complicado e es-tranho do professor.

Infelizmente metodologia e uma disciplina exigente, porque tratade uma face central da clencla, muito polernlca, dispersa e complexa.Pode-se tentar simplif icar a questao, mas este esforco vai ate certoponto. Tratando-se de questoes de profundidade, exigem reflexao,amadurecimento e dedlcacao ardua ao tema.

A ldela de propor alguns exerclclos tem, assim, a finalidade detrazer a teorlzacao algum sentido pratlco e sobretudo ensaiar movl-mentos da pesquisa, que e 0 que realmente interessa. Acreditamosque poderiam motivar mais 0 interesse por esta dlscussao, por vezesarida e complicada. Ao mesmo tempo levaria a lei tura e a dlscussao.

A muitos ocorreria a ldela de que metodologia ficaria melhor nofinal do curso, quando 0 aluno ja dispoe de uma vlsao da disciplina edomina certo conteudo, A outros sera preferfvel apresentar logo deinfcio porque deveria ser preocupacao constante e principal mente apreocupacao inicial.

Seja como for, e quase consenso que se apresente logo de lnlclo,fazendo parte do que se chama cicio baslco. Foi neste sentido quese imaginou esta slrnpll flcacao aqui elaborada. E para facil itar malsas coisas, idealizamos alguns tipos de exerclclos, que codificamos sobdez variedades, sem qualquer pretensao de exaustividade e mui~omenos de substltulr a criat ividade do professor, que pode sempre rr

muito alern do que aqui se propos.

113112

 

8.1. ALGUMAS LlNHAS~Ias ofere~em ocaslao de enfrentar a realidade social, nos varlos

angulos, alnda que sem maiores sofistlcacoes, e claro. Esta propostae vital para evitarmos que os estudantes acabem 0 curso sem jamais

1. Urn primeiro exercfcio poderia ser chamado de treinamento

Page 59: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 59/62

terem realizado alguma forma de pesquisa, e muitas vezes sem terem

escrito algo de forma mais organizada e criativa. Se a meta e formar 0

pesquisador. e preciso comecar por ela, para incuti r 0 gosto e a respon-

sabilidade de construir clencia, e nao apenas de ler, ouvlr, imitar e

copiar.

6. A polemtce metodol6gica pode ser tarnbern urn born expediente

para aclarar poslcoes e levar ao aprofundamento. E possfvel faze-l a

em grupo, ou no ambiente de urn grupo contra 0 outro. Ensaia-se com

isto a boa arqumentacao, 0 revide respeitoso, a defesa tranqUila, a

oblecao sem of ensa , a discussao ordenada e ordeira, a pratica do plu-ral ismo etc.

16gieo atraves do qual procurarfamos formar a habilidade e 0 cuidado

em operacoes loqlcas simples e fundamentais para a construcao cien-

tffica, como seria definir bern urn conceito, classificar abrangen-

temente as faces de urn problema social, deduzir coerentemente a

causa principal a partir de seus efeitos, e assim por diante.

2. 0 trabalho escrito, tambern em grupo, mas sobretudo indivi-

dual, e urn dos exercfcios mais importantes atraves do 'qual se podetreinar a montagem formal de seu ordenamento (partir de uma hipo-

tese, construir as partes do corpo central, os argumentos principais,

e chegar as conclusoes). e 0 tratamento do conteudo, de modo a

mostrar com argumentos 0 que se pretendia na hlpotese, Na verdade,

o que fica como bagagem importante para 0 aluno e aquilo que ele

mesmo constrot, com suas proprias forcas. A exposlcao do professor,

por mais brilhante e atraente que possa ser, nao substitui 0 esforco

pessoal . Trata-se de levar 0 aluno a trabalhar diretamente e a ensaiar

construcoes incipentes da ciencla.

3. A critica constitui iniciativa relevante, [a que supomos ser a

ideologia companheira lnseparavel das clenclas sociais. Trata-se de

saber identificar posicoes ldeoloqlcas, de desmascarar ideologias,

de contrapor ideologias opostas, de fazer ideologias conscientes, e

assim por diante. Pode ter como resultado interessante nao s6 des-

cobrir lastros ldeoloqicos alheios, mas sobretudo a formacao da neces-

saria rnodestla do cientista que se admite tarnbem ldeoloqo.

A critica ideol6gica a apenas uma face. Outra seria a critica in-

terna, destinada a apontar falhas internas em pesquisas, de tal sorte

a surpreender lncoerenclas logicas e sociais. A crftica interna a multo

mais importante que a externa, porque nao diverge por razoes ideo-

loqlcas de pontos de vista contraries. mas procura basear 0 dissenso

em erro da propria pesquisa criticada. Ademais, a crltlca externa tam-

bam interessa, ainda que a contestacao se funde em crlterlos externos

de cientificidade.

4. A autocritica a simplesmente a outra face da mesrna moeda.

Costumamos criticar os outros, mas facilmente nos isentamos da crl-tica a nos mesmos. Serve para nos despirmos de nossas crendices,

de nossos vazios teorlcos e rnetodoloqlcos, Leva a reconhecer 0 nfvel

de nossas lqnoranclas. Colabora na formacao de Lima personalidade

cientffica, madura e pluralista na qual a firmeza de uma poslcao se

obtem principalmente atraves da arqumentacao, nao da exasperacaotdeoloqlca.

5. Ensaiar a pesquisa a algo da mesma ordem de lmportancla que

o trabalho escrito individual. Dizfamos que existem quatro versoesmais comuns: a teorlca, a metodoloqica, a empfrica e a pratlca. Todas

114

7. Realizar demercecoes cientificas e uma tarefa mais complexa,

mas pode ser exercitada em doses iniciais. Trata-se de tentar funda-

mentar, porque acreditamos ser certa obra, certo artlqo, certo autor,

certa escola, dotados de qualidade cientffica ou nao, Procura-se iden-

tificar partes mais e menos aceitaveis, arqumentacoes mais e rnenos

solldas. coisas criativas e outras imitativas, presences excessivas ou

justificadas do argumento de autoridade, passos lnqenuos e outros

inteligentes, distorcoes de fatos, e assim por diante.

8. Identif icar correntes metodol6gicas tarnbem e urn esforco bas-

tante complicado, mas muito produtivo, porque colabora para a per-

cepcao de dlferencas e de colncldenclas de metodologias em autores

e escolas diversas. Geralmente os autores nao se declaram aberta-

mente filiados a Lima determinada escola; e, no casode outros que

gostariam de inventar uma poslcao nova, e preciso ver se e nova e

criativa. A ldentlflcacao profunda disto tudo e algo sofisticado que

numa introducao metodoloqlca nao se aplica. Mas poderfamos fazerexerc fcios iniciais, pelo menos no sentido de buscar alguns elementos

dentro de uma obra que ja se sabe pertencer a determinada corrente.

9. E tarnbern urn treinamento salutar 0 fichamento de livros ou

artigos para fins de fomentar e aprofundar leituras. A leitura a urn

procedimento fundamental em clenclas sociais. 0 fichamento em sinao e grande trabalho porque realiza apenas uma extracao de toplcos.

o mais importante e treinar a construcao de urn artigo. Todavia, com

vistas a fomentar a leitura, 0 reconhecimento bibliografico, 0 manu-

seio de algum livro ou obra, 0 fichamento e expediente recornendavel-

10. Enfim, pode ser born exercfcio a eleboreciio de hip6teses de

traba/ho, para fomentar a criatividade explicativa, principalmente sobreurn tema pouco conhecido. Trata-se de tracar suspeitas explicativas

sobre urn fenorneno colocado em dlscussao.

115

 

8.2. A L G UM A S E X EM P L IF IC A (jO E S

1. Quanto ao treinamento 16gico:

5. Quanto a pesquisa:a) ensaiar a pesquisa te6rica, por exemplo: 0 que e que se entende poruniversidade, por educacao, por cidade, por migrac;:aoetc.; qual 0 con-ceito de educacao em determinado autor ou escola, 0 conceito de

Page 60: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 60/62

a) proper 0 esforc;:o de definir conceitos socials importantes, tais como:capital ismo, neurose, paz, qualidade de vida, educacao, cultura etc .;definir significa deUmitar 0 conceito de tal maneira que se dist inga dosoutros, nao se superponha e nao contenha faces confusas;

b) procurar c1assifiear faces de urn fenomeno complexo, como, por exem-plo, varlavels que influem na formacao de uma favela; causas daguerra; motivos que levam urn casamento a separacao: razoes do anonl-mato urbano etc.; "

c) trac;:aras eausas de determinado efeito, e vice-versa: causas da inflac;:ao;efeltos de greves; causas da evasao escolar etc.;

d) destacar contredtcses 16gieasem certo trabalho com pretensoes clentl-f icas, tais como: conclusoes contrar las a postcao inicial ou pelo menosestranhas; argumentos que se desdizem; t6picos soltos dentro do t ra-balho; suposleoes gratuitas etc.;

e) encontrar eilrmecoes nBOfundamentadas, na base de mera tmpressaopessoal, de oplnlao sol ta, de suposlcao sem lastro.

2. Quanto a trabalho escrito:a) montar uma estrutura ordenada e 16giea das partes constituintes, porexemplo: lnt roducao, capitulos do corpo do trabalho, argumentos decada capitulo, conclusao:

b) exercitar 0 tratamento de contetidos: como fundamentar uma propostade t rabalho, como argumentar, como cercar 0 tema, como comprovaretc.;

c) treinar a formacao de uma base te6rica para fundamentar a posic;:aoquese considera correta, bern como 0 apoio em dados e fatos;

d) buscar sustentacao blblloqraflca,

3. Quanto a critica:a) ldentlilcer poslcoes ideol6gicas, por exemplo, de partidos pol it icos, de

personalidades publicas eminentes mas tambem de autores;

b) contrepor-se a ideologias: ao nazismo, as ditaduras, ao racismo etc.;

c) desmasearar ideologias: ideologia por tras de uma novela de televlsao,por t ras do discurso da lqre]a, da aluda ao desenvolv imento, da pslca-nal ise, do crescimento econcmlco etc.;

d) defender ideologias: democracia, nao-violencia, reducao das desigual-dades sociais, reconhecimento da cultura de minorias etc.;

e) localizar lncoerencles de determinada arqumentacao, vendo-a por den-tro, colocando-se no lugar do autor ; procurar entender, antes de rejei tar;

f) levantar exemplos de critlces externas que se agarram a autor idades,a meras divergencias ideol6gicas, a lmposlcso da forc;:aetc.

4. Quanto a autocritica:a) ident if icar a fragilidade das opln loes pr6prias baseadas apenas no •euacho";

b) identificar 0 mimetismo parasltarlo da maioria de nossas poslccesassumidas acriticamente de outros;

c) identif icar nossas ignorancias;

d) identificar vazios teorlcos e metodol6gicos que tornam nossa argumen-tacao parcial , fragi l, mal arrumada.

desenvolvimento, 0 conceito de normalidade psiquica em Freud etc.;

b) ensaiar a pesquisa metodol6gica: diferenc;:a entre oplnlao e argumento,entre senso comum e ciencia; 0 que e ideologia; 0 que e critica rneto-dol6gica; 0 que e r igor clent lfl co: t rac; :osprincipais de uma escola da6ptica metodol6gica;

c) ensaiar a pesquisa empjriea: levantar dados sobre determinado assun-to; fazer uma pesquisa simpli ficada de opln lao: observar 0 comporta-mento dos outros; interpretar dados e tabelas; discuti r diferentes inter-

pretacoes do mesmo dado;d) ensaiar a pesquisa pratica: como ve a realidade determinado par tido

pol it ico, a lqreja, 0 pobre, 0 r ico; ext ra ir formas de conhec imento dapratlca de cada urn, ou da ornlssao: elaborar os componentes principaisda ideologia de cada urn, da classe a que se pertence, da assoclacaoprofissional; identif icar sua pr6pr ia posic;:aopoli tica etc.

6. Quanto a polemica metodo/6gica:a) colocar dois grupos frente a frente e pedir que urn defenda e 0 outroataque uma determinada posic;:ao;

b) buscar 0 argumento contrsrio, na maior objetlvacao possivel;

c) evi tar vicios da polemlca, como 0 sarcasmo, a ironia, a ofensa etc., quenao sao argumento algum;

d) exercitar 0 argumento acertavel de autoridade, bern como a rejei lfaodas formas lnaceltavels:

e) extrair eontradir;oes 16gicas e excessos de ideologia.

7. Quanto a demarca980 cientifica:a) colocar a questao por que se aeredita ser clentlf lca determinada obra,ou autor, ou art igo; percor rer os caminhos dos criterlos i nternos e ex-ternos de cientif ic idade e sua forma de reallzacao:

b) descobrir originalidade;

c) destacar modos intel igentes de argumentar;BO;

d) levantar as categorias bseicee, que perfazem 0 cerne do trabalho olen-tlflco:

e) identificar poslcoes ideol6gieas, expllcltas ou implicitas;

f) fundamentar, por que nBOse aceita como cientifica;

g) decompor argumentac;:oeseontradit6rias;

h) surpreender superficialidades e vazios argumentativos;

i) desmascarar possivel fama falsa de determinado autor , jornal, revistaetc.;

j) levantar deturpscoes de fatos.

8. Quanto a idenuitcecso de correntes metodo/6gicas:a) tomar urn texto que se cr e dlaletlco ever como se mostr a isto;

b) tomar outr o texto nao dlaletlco ever como se mostr a isto;

c) d is tinguir uma anal ise tuncional de out ra func ional is ta, ou uma analiseslstemlca de outra sistemicista;

d) surpreender pretensos dlaletlcos:

116 117

 

e) mostrar anallses que sao apenas descritivas e a diferenc;:apara outras

que sao explicativas.

9. Quanto ao fichamento de textos:

Page 61: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 61/62

a) levar a fichar textos considerados baslcos, para que se leiam com pro-

fundidade;

b) levantar bibliografia em torno de urn assunto;

c) descobrir as categorias baslcas de determinado livro, aquelas que cons-

tituem a coluna vertebral;

d) reproduzir, apos fichamento, as idelas de urn autor, de forma verbal,ou escrita; .

e) comparar autores buscando colncldenclas e dlverqenclas.

10. Quanto a eleborectio de hip6teses de trabalho:

a) tomar urn problema importante e ensaiar suspeitas de expltcacao, por

exemplo: como solucionar 0 problema do menor carente, ou a seca do

Nordeste, ou a alta taxa de separacao conjugal em determinada cidade;

como explicar a atracao urbana por parte do migrante rural, ou os

l imites ent re a normal idade e a loucura, a trnportancla da reliqiao na

sociedade etc.;

b) descobrir faces de urn problema complexo que poderiam dar pistas

explicativas: surgimento da favela, criminalidade urbana, crescimento

da toxicomania, conflito geracional etc.;

c) em cima de alguns dados empfricos, ensaiar expllcacoes posslveis;

interpretar tabelas simples.

Os exemplos nao podern, obviamente, ser especializados. Nor-malmente precisam ser retirados da vida dlaria e rotineira da pessoa,

supondo-se que se trate de estudantes lncipientes. A dimensao de es-

colha e praticamente infinita. 0 que fizemos aqul foi tao-somente

mostrar a possibilidade de exercfcios que poderiam ter 0 resultado

muito desejado de realizar a vocacao primeira da metodologia, que

e a de motlvar 0 construtor da ciencla criativo e versatll.

Por tratar-se de clencias soclals e humanas, insistimos rnals emconotacoes do debito social, mesmo porque predomina aqui a 6pticad a sociologia do conhecimento sobre a da teoria do conhecimento.

Esta, todavia, nao tem por que ser obscurecida ou secundarizada.E tao

importante quanto a outra e poderfamos igualmente inventar exercl-cios tendencialmente voltados aos aspectos da 16gica e da forma.

A metodologia precisa ser entendida tarnbem como expedlenteimportante para mudar um pouco a nossa tendencia tfpica de uma do-

cencia desligada da pesquisa, verbalista e passlva. E uma pauperrirna

formacao cientffica aquela que se faz apenas escutando 0 professor

ou lendo alguns textos esparsos e dispersos. Se nao chegarmos a pes-

quisa, a universidade nao ul trapassara 0 nfvel de um segundo grau

melhorado. Se a universidade nao criar ciencia, sera dlspensavel, por-

que a mera transrnlssao, por vezes rnlmetlca e deturpada, pode ser

feita de modo mais atraente, por exemplo, at raves dos modernos meiosde cornunlcacao.

118

 

(Contln"~do cia ONIhcI.nterlor)

clonem.nto dlel~o, no quel urn t.rmo nio

. . b lt lt ul, nem 'neol. 0 outro. Um. t eorl . an

Page 62: Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência

5/9/2018 Pedro Demo. Introdução à metodologia da ciência - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pedro-demo-introducao-a-metodologia-da-ciencia-559ca2984503c 62/62

pritlea nio expllca • , . . . , I d e d e , bern como um.

pritlea an teor le nio .. 0 que praticL Nastecontexto, mottl'. que • importtmte tembim

apen:eber ·. do .nvolvlmento hll tbri co do

clinele. IOClela: fuem .,.,. . $urn proJeto d.

lOCied.-i•• funcionam ~~laIrnenfe como)Jitlf l~io dos prlv ll6glo . domlM .... malmoporque 01 clentl.. sOclefl.· de mOdo geral,

del. p.-tlClplm.Sio f ocaiiz_ .. eo lonto do telCto, toda ...m.todologle. de . it ito oc:ide,*1 qu. , no fundo,sio determlnl . ... eo pa"tl rwtt d . Id•• de que •

Hii torl. m.i . acontece do que , telte. lito

cabe tim bIIm idielitlc., p.-tlcu I.rm.n. ive r-

sio m..xi •• , d.ntro do materieli lmo hl.brlCo.

Propc5e que • 6ptlca hl.6rlCo-ei trUtural . .. .

manoa d.t ll 'mlnll ll l. Outr•• paltUra. 1 1 ' 0 .Ind.vlllll.. prlnclpllmant. a emplrlllll, • pOlltlvlllll,

a eitrU tural lilli, a funcionll i......." ' I c a .Por flm, p .. der urn t oque d. meior uti lI -

dade pritlea imatodolOlI., 0 ., to r for jou rio

ria lim•• d. _erc:(ciol, 1itnIv" do qull. 0

I .l tor poder . IPrel f' lder • rne tlOdologla , nIoIOI'I'MInte como um tIpo de Nttexlo tebrlc. , m.19u1lm.nte como .,t6l'ltlc.peiqu.

NOTA SOBAE 0 AUTO"

PEDRO DEMO. Ph.D. 1m SociolOli . pel . AI.

m.nh. Ocidentel. Oa f . . e ta tete· im 1971 •publicede 1m 11.,.101m 1973. Fol prot... er daPUC/RJ, da UFF, do IUPEAJ, tntra 1972 •

1974. A p.- tl r de 1975 • do qu. -J ro do IPEA

(Secreter la d . P lMejamento d. P resldine le d .RIPUbllcal, Bream., • d e _ 1976 protellOr'd.

UnB, onde • tor nou pro teIlOr' titu lar . pa"tlr

de 1981. Entr. 1979 .1182fo1 to-geral. -i Junto do Mlnf.. . l o de E , .,tor de

Metoda/Oll ie Clentlf lu ." CIIrIr:)f IJ Socle', •/n~1D • f d ftO flo /o f ie , . :Cline,., public.

do. pale AtI...

APLICAcAo

Impresso em off-set por

EDITORA SANTUARIO

Rua Pe . Clar o Mon te ir o. 342

Apareci da - Si lo Paul o

Fone DOD (0125) 36-2140

com filmes fornecidos pelo editor.

Llvro-texto p.' • dllClpllne METODOLOGIA

DA PESaUISA CIENTJ1 :lCA, dol CUrIO' d.gradu~io, noteclamen t. ~ d tferen tel ....

d•• Clineia. Socials.