pedra da alma

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A Pedra da alma Um conto de world of warcraft Diogo iendrick 2014

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O arquimago Huor convoca repentinamente seus amigos para uma misteriosa missão em Costanegra. Antigos rancores e um mal planejamento colocam em risco sua própria vida, alterando para sempre os laços que o cercam.

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Page 1: Pedra da Alma

A Pedra

da alma

Um conto de world of warcraft

Diogo iendrick

2014

Page 2: Pedra da Alma

RENÚNCIA

Esta é uma obra de ficção. Os personagens e cenários aqui mencionados não são de minha

propriedade. World of Warcraft pertence à Blizzard Entertainment. Não há intenção de ganho

financeiro, sendo este conto apenas para fins de entretenimento.

Page 3: Pedra da Alma

Este conto é para a Vem Tormenta,

especialmente para o amigo Huor.

Page 4: Pedra da Alma

PARTE I

Page 5: Pedra da Alma

folhagem púrpura balançava preguiçosamente à brisa do início

da noite. O rio Olho d’Água um suave sussurro muitos metros

abaixo. Übrisil era uma das árvores mais altas da Clareira do

Oráculo e uma das poucas que abrigavam moradia. Não havia

escada que levasse ao amplo platô em sua copa e a elfa noturna preferia assim.

A solidão sempre fora sua melhor companhia.

A lua surgiu por entre as folhagens e sempre causava emoção à druidesa.

Ao perceber que era a maior das duas luas de Azeroth, se inclinou suavemente

e fez uma silenciosa prece à deusa Eluna. Em seu pensamento havia apenas

gratidão. Uma brisa morna envolveu seu corpo fazendo um arrepio percorrer

seus membros esguios. Ela sentia o poder da lua assim como sentia o poder da

natureza. Era abençoada.

Enquanto a maior parte dos druidas de Azeroth via Cenarius como

patrono, Thaynahra e sua ordem voltavam o olhar a Eluna, a mãe do semideus.

Algo incomum e talvez por isso fossem um grupo que minguava a cada dia. De

qualquer forma, o Pacto Lunar resistia. À arquidruidesa não importava que

fossem poucos e sim o propósito de sua união. Agiam em consonância com o

Círculo Cenariano e adotavam os mesmos princípios: a natureza precisava ser

preservada a qualquer custo.

O vestido de seda lunar verde era um dos seus preferidos. Bordado com

padrões de pequenas flores brancas, a deixava confortável e seria apropriado

para a ocasião. Descalça, Thaynahra caminhou suavemente por seu platô no

alto da grande Übrisil e se deparou com um magnífico espelho. O artefato era

um grande pedaço de vidro adornado pelos galhos da própria árvore. Toda a

mobília – se é que poderia ser assim chamada – de seu refúgio era de galhos,

folhas e tecidos; poucas peças de prata eram encontradas naquela moradia

élfica.

A imagem do espelho continuava a mesma por incontáveis eras; o

metabolismo élfico garantia isso. A pele rosada exalava a suavidade e o frescor

da aurora de seus dias. Talvez com mais sabedoria no olhar. Sim, ela mesma

podia notar. Não de forma soberba, mas com a resignação de uma

sobrevivente. A druidesa vivera incontáveis batalhas e perdera tantos amigos

Page 6: Pedra da Alma

que desistira de contar as baixas. A tristeza nublava seu rosto com facilidade.

Muito mudara em Azeroth. A própria geografia já não era a mesma. Thaynahra

lembrava dos gritos em Auberdine, tanto durante a Terceira Guerra quanto no

Cataclisma; ocupara a linha de frente em ambas as ocasiões. Jamais perdera a

fé, mas vacilara algumas vezes.

Decidira usar a tiara lunar, seu adereço preferido. A pequena lua

prateada cingia-lhe a testa, emitindo um brilho suave por entre seus cabelos. As

marcas tribais verdes atravessavam-lhe verticalmente os olhos, conferindo certa

selvageria ao rosto sereno da druidesa. Ajeitou os cabelos azuis esverdeados

que lhe desciam lisos até a metade das costas estreitas. Seus dedos rosados

deslizavam por entre as madeixas procurando o melhor caimento. Permitiu-se

mais uma olhada no espelho e seu rosto afilado esboçou um sorriso. Sentia-se

em paz naquela noite de Outono. A perspectiva de reencontrar grandes amigos

sempre lhe enchia de alegria. Uma alegria contida, mas verdadeira.

As luas se elevavam com rapidez no céu. Estava quase na hora. A

arquidruidesa caminhou em passos suaves até a borda do platô e com um

pequeno impulso se lançou aos céus de Kalimdor. Os segundos em que pairou

no ar até começar a cair lhe davam uma magnífica sensação de liberdade.

Então, com a facilidade dos anos de experiência, deixou a energia se revolver

em seu corpo e sentiu sua forma mudar. A mudança era rápida e não

representava mais dor depois de tantos séculos. Os braços abertos se

encolhiam levemente. Simultaneamente as pernas atrofiavam. A cabeça afilava e

o vestido de tecido magicamente fiado se atava ao corpo, fazendo parte da

transformação. As penas esverdeadas se projetavam por toda parte, cobrindo-a

por completo. Era um pássaro. Um corvo da tempestade.

A metamorfose não levava mais que alguns segundos, embora sentisse

todo o processo lentamente em seu íntimo. Transformar-se em um corvo da

tempestade era a última e mais difícil etapa das metamorfoses de um druida.

Depois de tantos séculos se tornara algo banal, porém ainda maravilhoso. O

vento adejava suas penas azuladas conforme ela se erguia. Sabia que deveria ir

para baixo, mas não poderia deixar de sentir os céus por alguns momentos.

Page 7: Pedra da Alma

Conforme descia em um voo espiralado, Thaynahra notou a forma

humanoide à beira de um dos poços lunares. Instintivamente sabia quem era e

se fosse possível sorrir em sua forma alada ela o teria feito. O elfo noturno

estava de costas, passando a mão suavemente sobre a superfície da água que

emitia um pálido brilho prateado.

- Aí está você. – o elfo falou suavemente sem desviar o olhar do poço

lunar.

Thaynahra se lembrava com clareza da primeira vez que o encontrara,

bem como de todas as outras vezes em que estiveram juntos. Observara de

perto o amadurecimento do jovem elfo noturno e o quanto seu poder havia

aumentado nas últimas décadas. Sua participação nas batalhas decisivas

durante o Cataclisma lhe valeram o título de arquidruida, do qual ele bastante

se vangloriava, mais de forma jocosa que soberba. Thaynahra alterou sua forma

novamente enquanto pousava, o vestido verde captando o brilho da lua que

refletia em suas flores bordadas.

- Sim, grande arquidruida. – o tom era de gracejo, como os dois

costumeiramente se dirigiam um ao outro.

- Não tão grande quanto você, minha amiga.

Berwyn se virou e encarou a velha amiga por alguns momentos. O sorriso

no rosto lilás estampava a sinceridade de sua amizade. Os olhos brilhavam com

uma tremenda vivacidade.

- Quanto tempo! – sorriu o druida.

Os dois se abraçaram por alguns momentos. Rever Thaynahra sempre

trazia à memória as aventuras em Nortúndria. Lembrava-se com nitidez da

primeira vez em que vira Dalaran e da risada da amiga diante de sua

estupefação. Ele era tão jovem à época. Ficara admirado com a grandiosidade

da cidade dos magos. Os telhados purpúreos abobadados, a magia pulsante.

Em seu íntimo procurava alguma daquela inocência, da admiração simples que

uma nova paisagem poderia causar e acabou constatando o quanto mudara em

poucas décadas.

Page 8: Pedra da Alma

- Fico feliz por ainda lembrar o caminho até aqui. - a provocação da elfa

escondia certo ressentimento.

O jovem druida apenas sorriu e os dois caminharam até a borda do poço

lunar. Era possível ver algumas Sentinelas em pontos mais afastados da Clareira

do Oráculo. Um fogo fátuo se aproximou curioso dos dois e logo em seguida se

afastou.

A quietude de Teldrassil era reconfortante. As árvores de tronco e folhas

purpúreos, a grama macia, o brilho do poço lunar. Tudo aquilo era um alento às

almas cansadas dos dois amigos. Como druidas, estavam intimamente ligados à

natureza e principalmente àquele local. Era como se uma orquestra tocasse uma

suave canção e eles fossem instrumentos junto com toda a fauna e flora de

Azeroth. Sentiam as folhas roçando umas nas outras, as águas do rio Olho

d’Água passando sobre as pedras, o esforço das pequenas mariposas em

aproveitar as brisas noturnas para equilibrar o voo. Ser um druida era estar

conectado intimamente à natureza e também não se perder em sua música.

- Acha que os outros virão? – Thaynahra relutara em perguntar.

A druidesa tinha medo da resposta. Tantos se foram. Muitos se afastaram

e outros não estavam mais entre eles.

- Claro! Devem chegar a qualquer instante. – respondeu otimista o

druida, embora, em seu íntimo, incerto.

Os dois sentaram na borda rochosa do poço lunar e fitaram as águas

tranquilas. Podiam sentir a vida ali. Vida e poder vibrando calmamente. O brilho

pálido que o poço emitia à luz da lua aumentava conforme a maior das duas

luas de Azeroth tomava os céus.

- Soube que sua irmã terminou os treinamentos. – a elfa noturna

perguntou hesitante, mas sentia a necessidade de tratar deste assunto.

- Ah sim. É oficialmente uma druidesa. – fez uma pequena pausa. -

Cerdwin foi muito aplicada aos treinamentos. Mais do que eu jamais fui. – o

druida acrescentou com certa irreverência; a irmã mais jovem era motivo de

orgulho.

Page 9: Pedra da Alma

- Isso é verdade! – sorriu Thaynahra.

Embora indisciplinado e distraído no início, Berwyn fora uma grande

aposta do Círculo Cenariano desde os primeiros dias de treinamento. No

entanto, havia se juntado ao Pacto Lunar por amizade à Thaynahra. A druidesa

desejava rir e relembrar as histórias do amigo na época de seu treinamento,

mas tinha assuntos importantes a tratar:

- Ela ingressará no Círculo Cenariano então? – a pergunta direta silenciou

o elfo noturno por alguns instantes.

Thaynahra o fitou enquanto o olhar do amigo estava perdido na

superfície do poço lunar. Os cabelos prateados presos em um longo rabo-de-

cavalo, o rosto tranquilo e jovial. A túnica verde e marrom de tecido grosseiro

escondia o verdadeiro apreço pelas roupas suntuosas que usava em batalha.

“Um arquidruida deve ser imponente, régio”, dizia ele de forma divertida. E, no

entanto, estava ali em sua túnica de algodão-prata. A druidesa podia reparar na

movimentação da natureza ao redor do elfo: o simples toque do pé do druida

na relva fazia acelerar o crescimento das plantas, que se abriam em folhas

verdes e novas. A vida fluía com vigor através do corpo de Berwyn.

- Não é minha decisão, você sabe. – O olhar do druida continuava

perdido no poço lunar. Seus dedos tocavam suavemente a superfície e parecia

que a água se agitava vividamente. – Cerdwin está ciente de minhas

preocupações e até mesmo de meu desejo. Mas a decisão cabe a ela afinal.

- Entendo... – a voz de Thaynahra baixa, quase inaudível.

- Ela não vê a Horda com maus olhos, Thay. – o arquidruida se dirigiu à

amiga com a informalidade da intimidade que partilhavam – Pelo que entendi

fez amizade com uma trolesa nos Reinos do Leste. Uma trolesa!! – a indignação

era pungente no tom de voz de Berwyn.

- Ela é jovem, meu amigo. Estamos em tempos diferentes. – a

arquidruidesa estava triste e também voltara seu olhar para o poço lunar.

- Tempos difíceis. Muito difíceis. Não consigo acreditar que o Círculo

Cenariano vá permitir trolls em suas fileiras. – completou o druida.

Page 10: Pedra da Alma

Uma perturbação no ar voltou o olhar dos dois abruptamente e

interrompeu a resposta da elfa noturna. Uma brisa agitou os cabelos dos

druidas. Instintivamente Thaynahra liberou um desencadeamento de energia

lunar e alterou sua forma, ficando parcialmente no plano etéreo. Um brilho

pálido e dissonante a envolveu, como minúsculas estrelas cadentes.

Berwyn também se preparou. As folhas se agitaram sob seus pés e uma

suave energia verde emanava de todo o seu corpo, se alastrando por alguns

metros ao redor. Cogumelos multicoloridos e de diversos tamanhos começaram

a brotar aleatoriamente, emitindo uma oscilante luminosidade verde. As árvores

se agitaram e raízes próximas começavam a se levantar em resposta.

Os druidas, em expressões severas, pareceram notar algo familiar à

medida que a perturbação manifestava traços azulados de energia arcana a

poucos metros do poço lunar. Em um piscar de olhos um portal se abriu e um

elfo noturno passou através dele, se colocando diante dos dois druidas. Era o

arquimago Huor em todo o seu esplendor de batalha.

Berwyn imediatamente sentiu a agonia da natureza pela chegada do

mago de fogo. Instintivamente estendeu seus poderes e um tapete de trama de

energia verde se espalhou sob os pés de Huor, protegendo a relva. A rapidez

com que o arquidruida agiu impediu a grama de se queimar, deixando apenas

algumas folhas levemente chamuscadas, rapidamente curadas por ele.

- Esse sabe fazer uma entrada triunfal. Perigosa, mas triunfal. – sorriu

Berwyn. O mago era um de seus amigos mais antigos e queridos.

- Por pouco não liberei energia estelar sobre você, Huor. – a druidesa fez

uma pequena pausa, se recompondo - Isso não é jeito de abordar amigos! –

Thaynahra ainda estava atônita e lutava para acalmar a energia lunar vibrando

ao redor de seu corpo.

O arquimago estava magnífico. Seu robe vinho escuro ardia em

pequenas chamas. Padrões vibrantes de amarelo atravessavam toda a roupa

como magma rasgando o tecido. O mago pulsava em fogo. O ar ficou quente

ao redor dos três e a brisa noturna parecia intimidada pelo poder de Huor.

- Gostaria de poder abraça-los, meus amigos. Mas precisamos ir.

Page 11: Pedra da Alma

Os druidas se entreolharam. Thaynahra foi a primeira a falar.

- O que houve, Huor? Ir para onde? – perguntou desconfiada.

Apesar de inquieto, Huor entendia a consternação dos amigos. Era

aguardado para uma reunião e então aparecia em chamas requisitando a

presença dos dois. Por instantes se deu conta da maneira com que se dirigira a

dois dos mais poderosos druidas de Azeroth, inclusive a líder de sua ordem.

Mas não havia tempo para desculpas ou grandes explicações. Não agora.

- Para onde mais? Batalha, meus amigos. – Huor utilizava o tom bem

humorado que lhe era peculiar.

O mago baixou o capuz de seu manto e o rosto amigável sorriu para os

amigos. A temperatura começava a normalizar à medida que o fogo se

apaziguava.

– É bom demais ver vocês.

Era o mesmo rosto sincero que eles conheciam de incontáveis batalhas

juntos. A pele levemente azulada, os cabelos brancos na altura dos ombros e a

barba bem aparada. Huor era um pouco mais alto que os dois amigos druidas e

existia algo de ameaçador em sua postura, talvez peculiar aos magos.

O sorriso do arquimago pareceu acalmar os outros elfos, mas nem por

isso diminuía o senso de urgência de sua chegada.

- Um ataque! Ainda não sabemos exatamente do que se trata, mas

precisam de reforços em... – o mago fez uma pequena pausa, relutante – Costa

Negra.

Huor sabia o quanto aquele nome significava para os amigos.

Especialmente para Thaynahra. A druidesa perdera incontáveis amigos na

Terceira Guerra e principalmente na devastação de Auberdine pelo Cataclisma.

A lembrança ainda era dolorosa demais e a fez baixar o olhar por alguns

instantes. Berwyn tencionou colocar a mão no ombro da amiga, mas hesitou.

Havia urgência na chegada de Huor e eles precisavam partir. A elfa encarou o

mago por alguns momentos.

Page 12: Pedra da Alma

- Existe um poço lunar nas ruínas de Auberdine. – sussurrou a druidesa,

ainda de cabeça baixa. Havia consternação em seu tom. As poucas palavras

denotavam a urgência.

Os poços lunares eram a preocupação principal do Pacto Lunar. A

ordem estudava a energia lunar latente nos poços, remanescentes da Nascente

da Eternidade. Estudava e protegia.

- Exatamente! Por isso o Kirin Tor me... – o mago não conseguiu terminar

a frase.

- Kirin Tor? – Thaynahra interrompeu, levantando a cabeça e encarando

Huor. Seu olhar era severo, mas logo se amenizou.

Uma tensão se instaurou por alguns segundos. Havia uma resistência

secular dos elfos noturnos com relação à magia. Pouquíssimos enveredavam

pelo caminho dos estudos arcanos e os que o faziam não eram bem vistos. O

perigo da corrupção arcana seria sempre uma sombra para a raça. Huor não

continuou a frase, nem tampouco os druidas o instigaram, embora a simples

menção ao Kirin Tor fosse suficiente para inquietá-los.

A resignação atravessou o olhar da elfa noturna e seu íntimo se acalmou.

Huor percebeu quando a amiga relaxou a postura. O mago sabia que o senso

de responsabilidade falaria mais alto, embora reconhecesse o preço.

- Precisamos avisar aos demais membros de nossa partida. Estão para

chegar a qualquer momento. – finalmente falou Thaynahra, ignorando por ora a

menção ao Kirin Tor, ao que os amigos agradeceram silenciosamente.

Atendendo à preocupação da líder do Pacto Lunar, o arquimago traçou

com os dedos algumas runas. Um rastro de energia arcana se formou,

entalhando no ar o pequeno aviso azul flutuante. Imediatamente em seguida

Huor conjurou um portal grande o suficiente para os três atravessarem. O

zumbido logo se dissipou e a Clareira do Oráculo ficou novamente em silêncio,

as águas do poço lunar cintilando à luz das duas luas de Azeroth.

Page 13: Pedra da Alma

PARTE II

Page 14: Pedra da Alma

ostanegra, que já fora uma das mais prósperas regiões do

império kaldorei, agora era apenas mais um dos muitos locais

devastados no evento que ficou conhecido como Cataclisma.

Suas praias rochosas, montanhas entrecortadas por rios e

cavernas deram lugar a ruínas espalhadas de construções élficas de diversas

eras.

O zumbido característico do portal arcano se fez em uma língua de terra

nas Ruínas de Lornesta, a leste do que restou de Auberdine. O mago Huor e

seus dois companheiros, já totalmente vestidos para a batalha, se

materializaram abruptamente.

A região sempre fora inóspita e agora parecia ainda mais tomada pela

vida selvagem. O Cataclisma aumentara a instabilidade dos elementos em Costa

Negra. Vento, chuva e descargas elétricas constantemente assolavam a região,

sem manifestar aviso de sua aproximação. Elementais vagavam sem rumo e fora

de controle. Os três elfos noturnos encontravam-se em meio a um alagamento

provocado pela destruição do solo. Um rio corria revolto às suas costas.

Apesar dos esforços do Círculo Cenariano e do próprio arquidruida

Malfurion, a natureza permanecia descontrolada. Os abalos estruturais causados

pela ascensão do Asa da Morte eram profundos e não pareciam solucionáveis a

curto prazo. Um destacamento de druidas cenarianos permanecia na região,

juntamente com xamãs da Harmonia Telúrica. Até o momento todos os seus

esforços pareciam infrutíferos.

Thaynahra e Berwyn, com algum esforço, bloqueavam as emoções que a

natureza ao redor lhes passava, mas era nítida em seus semblantes a alteração

de humor provocada pela revolta da natureza. O treinamento druida ensinara a

separar essas emoções, pois de certa forma eles eram a própria natureza e a

revolta desta era a mesma deles. A arquidruida tocou o pingente em formato

de lua que carregava no pescoço em uma silenciosa prece à Lua. O simples fato

de estar em Costa Negra a deixava desconfortável. A sensação de perigo

iminente a tomava por completo. A druidesa deixou seu corpo migrar

Page 15: Pedra da Alma

parcialmente para o plano etéreo, tornando sua figura translúcida. Pequenos

pontos estelares circulavam seu corpo, emitindo um brilho pálido.

A elfa noturna trajava uma túnica verde e dourada de tecido grosso,

encimada por grandes ombreiras cobertas de penas azuis. Eram acessórios

antigos, de uma era há muito passada. As leves descargas elétricas que

perpassavam as ombreiras a lembravam de aventuras anteriores. Thaynahra

estivera com essa mesma vestimenta em Auberdine, não muito antes. Os anos

são horas para quem viveu por eras.

Um assovio longo chamou a atenção do grupo. Para os ouvidos

treinados dos três elfos estava claro que não era um pássaro, embora a

semelhança fosse enorme. Imediatamente o arquimago olhou para o alto de

uma formação rochosa acima do rio e sorriu aliviado ao ver uma elfa noturna

descendo em incrível velocidade. Ao seu lado corria um animal branco, ainda

mais rápido e impossível de identificar à distância.

Os dois druidas imediatamente reconheceram a caçadora Ninde. O

cabelo azul índigo, preso por uma tiara, balançava ferozmente à brisa noturna.

As orelhas pontudas vibravam ao impacto dos pés da elfa com o solo, embora

fosse o único indício de seu contato com a terra; Ninde parecia flutuar em sua

corrida acelerada. Com a proximidade era possível também identificar Felpas,

sua altiva raposa branca.

Caçadora e fera pararam diante dos recém-chegados. Ninde fez uma

ligeira mesura saudando os dois amigos e então se deixou envolver nos braços

de Huor para um breve beijo. Elfos noturnos eram bem discretos na

manifestação de seus afetos; talvez por isso o ligeiro desconforto dos dois

druidas. Mas Huor sempre fora um elfo peculiar e Ninde era sua companheira

há incontáveis décadas. Felpas farejou os dois druidas amigavelmente e então

se colocou ao lado da caçadora novamente.

A grande raposa parecia sobrenatural em sua pelagem imaculadamente

alva. As pontas das patas eram de um negro profundo e causavam um belo

contraste com o restante do pelo. Os olhos eram vivos e inteligentes, levemente

Page 16: Pedra da Alma

avermelhados. Orelhas pontiagudas e compridas se mexiam atentas a qualquer

movimento.

- Ninde! Que a lua brilhe sobre você. – Berwyn rompeu o silêncio.

- Sobre todos nós, meus amigos! – a voz da caçadora era melódica e

bastante afetiva.

Huor olhou ao redor e em direção a Auberdine. Fitou a amada por alguns

instantes.

- Algum sinal?

- Nada. As feras não avistaram qualquer movimentação. Nem por terra e

nem por ar. – a elfa noturna parecia preocupada. Os cabelos azuis caíam por

sobre os ombros. A caçadora usava uma bela cota de malha élfica esmaltada de

verde com pequenos detalhes roxos em formato de folhas. Uma longa capa

verde musgo pendia-lhe dos ombros ao chão. O olhar treinado era

extremamente atento a tudo o que acontecia ao redor. – Tudo estranhamente

quieto. Nenhum sinal do Kirin Tor.

Thaynahra respirou fundo.

- Huor, qual foi exatamente a mensagem que recebeu? Precisamos saber

com o que estamos lidando.

Huor olhou em direção a Auberdine com uma expressão inescrutável.

Respondeu à amiga ainda com os olhos fixos no horizonte.

- Eles interceptaram uma mensagem. Identificaram um destacamento da

horda em uma missão ao poço lunar de Auberdine. Pelo que puderam

descobrir trata-se de algum experimento goblínico.

- Horda... – O druida Berwyn murmurou baixo, suspirando. Thaynahra

parecia confusa.

- E por quê contataram você? Eles poderiam me avisar pelas orbes de

comunicação. Ou então um mensageiro.

Page 17: Pedra da Alma

Huor pareceu constrangido. Ninde o encarava severamente, aguardando

uma resposta. O mago percebeu e assentiu.

- Rhonin me fez uma nova proposta...- o elfo noturno fez uma pequena

pausa e fitou seriamente os dois amigos - e eu resolvi aceitar.

Berwyn e Thaynahra permaneceram impassíveis. Se algum pensamento

passava pela mente dos dois, eles não demonstraram. Por fim, a arquidruida

rompeu o silêncio, embora sua voz não traísse qualquer emoção.

- E em que parte dessa história Berwyn e eu nos encaixamos em uma

missão do Kirin Tor?

A pergunta atingiu Huor de surpresa. Demonstrava o ressentimento da

druidesa e também um pouco do desprezo que sentia pela ordem dos magos.

Não que houvesse alguma rixa entre os grupos ou mesmo qualquer

estranhamento. Apenas o receio pela utilização da magia e principalmente pela

aproximação de novos elfos noturnos a esta.

- Vocês são meus amigos, Thay. – o tom do arquimago era sincero e

amigável. – Continuam sendo as melhores pessoas para se estar ao lado em

qualquer missão. E estamos falando de um poço lunar. É algo de nosso

interesse... o Pacto Lunar.

Um pequeno silêncio se instalou. O ruído do rio e a fúria dos elementos

à distância eram tudo o que ouviam.

- Estamos com você, meu amigo. – Berwyn respondeu, um esboço de

sorriso no rosto, a mão levemente sobre o ombro da druidesa. Gostava da

aproximação de Huor com o Kirin Tor tanto quanto Thaynahra, mas não deixaria

o amigo sem ajuda. E de qualquer forma, tratava-se de um poço lunar. A

druidesa apenas assentiu com certa indiferença.

Um grasnado se fez ouvir e rapidamente um borrão negro voando em

direção ao grupo revelou ser um corvo. Ninde estendeu o braço e o animal

desceu de seu voo. Com suaves batidas das asas negras brilhantes se

aproximou e pousou no braço da caçadora. O pássaro se agitou, abriu e fechou

Page 18: Pedra da Alma

o bico algumas vezes emitindo um piado quase inaudível. A elfa noturna franziu

o cenho, virando para os amigos:

- Estão aqui. – uma pequena pausa e um olhar para o arquimago. – A

Horda.

Os quatro elfos olharam em direção a Auberdine e pouco puderam notar,

embora sentissem instintivamente uma ameaça pairando no ar. A luz da lua

atravessava o corpo translúcido de Thaynahra e refletia intensamente nas

partículas estelares ao seu redor. A druidesa fechou os olhos e abaixou-se,

encostando a mão direita na superfície da água do rio. Um estremecimento

percorreu seu corpo.

- As águas do poço estão perturbadas. Posso sentir.

Ninde parecia escutar o ar. Apesar da dificuldade em relação aos

elementos instáveis de Costa Negra, a caçadora era uma exímia rastreadora. A

raposa branca permanecia inquieta a seu lado, com os pelos eriçados. Existe um

vínculo muito forte entre caçador e fera. Ambos partilham sensações e Felpas

visivelmente sentia a apreensão de sua mestra, além, é claro, de seus instintos.

- Ier il ereb! – sussurrou a caçadora em sua língua nativa, informando aos

amigos de que não estavam sozinhos.

- Precisamos nos aproximar. – Berwyn fitavam Auberdine ao longe. – O

que aconselha, Thay?

Os três elfos noturnos encararam Thaynahra, que durante um bom

tempo parecera não perceber sequer a presença dos amigos. O olhar da

druidesa parecia distante. Ao término de alguns bons minutos ela finalmente

respondeu.

- O que devemos fazer, Huor? Você convocou esta missão. – a druidesa

encarava o mago com seriedade. Mais uma vez Huor ignorou o tom frio da

amiga.

Page 19: Pedra da Alma

- Vocês podem se aproximar furtivamente? Ninde providenciará alguma

distração. Assim que nos aproximarmos podemos estabelecer um perímetro e

proteger o poço lunar.

Os amigos assentiram como se tivessem debatido minuciosamente o

plano e soubessem exatamente o que fazer.

O poço lunar de Auberdine era um dos mais antigos de Azeroth.

Diferente dos outros poços, suas águas eram normalmente agitadas, em

consonância com os elementos de Costanegra. Localizava-se, atualmente, em

uma elevação de terra ocasionada pelos terremotos, formando um pequeno

precipício em relação às áreas mais baixas da região.

Thaynahra e Berwyn aproximaram-se lenta e furtivamente em suas

formas felinas. Ela de pelagem azul e ele de pelos brancos. Moviam-se com

impressionante destreza, mal alterando a relva em que pisavam. A

arquidruidesa estava um pouco à frente do amigo e se aproximava do poço

lunar com determinação. A atitude de Thaynahra preocupava Berwyn, mas ele

não se atreveria a interroga-la ali. Não em meio a uma aproximação furtiva.

Avistaram a Horda. Um grupo pequeno e sem estandartes. Fossem quem

fossem, não pareciam agir em nome de alguma organização ou facção. Um

imenso troll de pele azul clara parecia coordenar a ação.

O poço lunar estava intocado, pelo que puderam perceber. Mas não

ficaria assim por muito tempo. Cinco goblins engenheiros montavam um

maquinário. Os druidas também notaram alguns orcs de sentinela a alguns

metros do pequeno grupo.

- Andem logo com isso aí. – vociferou o troll para os engenheiros, que

apenas o ignoraram.

Os goblins conectavam fios e faziam pequenos ajustes em uma espécie

de centrífuga, pouco maior que eles próprios. Uma tubulação bastante avariada

era puxada em direção ao poço lunar.

Page 20: Pedra da Alma

Berwyn e Thaynahra, invisíveis em suas formas felinas, pararam à certa

distância. Não ousavam maior aproximação sem Huor e Ninde. Havia um

imenso lobo adormecido próximo ao troll. Isso e o arco em suas costas

indicavam que era um caçador. Certamente seriam rastreados se chegassem

próximos demais.

Era intrigante todo o aparato instalado pelos goblins. Os poços lunares

nunca foram preocupação da Horda, tampouco tinham poderes conhecidos. Era

impensável que um poço lunar pudesse despertar o interesse de um grupo tão

improvável quanto aquele: goblins engenheiros comandados por um troll

caçador.

O grande troll parecia demasiadamente ansioso com o andamento de

sua misteriosa missão. Olhava atentamente a movimentação dos pequenos

goblins, que ignoravam os impropérios ocasionais do grande caçador.

Mago e caçadora aproximaram-se invisíveis, mas não passaram

despercebidos por seus amigos. Os quatro se reuniram atrás de um grande

tronco de árvore, os druidas já em suas formas élficas. Thaynahra explicou

brevemente a situação.

Havia um receio pouco perceptível na voz da druidesa. Em seu íntimo

ainda pesava o desconforto por estar em Auberdine, agora somado à sua

participação involuntária em uma missão do Kirin Tor. Algo não estava bem

explicado e ela não conseguia digerir a situação. Apenas rezava à Lua para que

seu desconforto não prejudicasse sua razão e sua concentração. Sentia que

precisaria de toda esta em instantes.

- Temos o elemento surpresa e a distância. Não precisamos de

aproximação para ataca-los. Vamos estabelecer um perímetro. – A objetividade

de Ninde era precisa em sua observação. A caçadora imediatamente

desamarrou sua aljava das costas e começou a fincar algumas flechas no

terreno.

À distância Huor conseguiu avistar o pequeno e improvável grupo.

Engenheiros e um troll. Um troll caçador. O reconhecimento atingiu o

Page 21: Pedra da Alma

arquimago como um forte soco no estômago. O ar lhe faltou rapidamente e um

estremecimento percorreu todo seu corpo. Ele sabia quem era o caçador à beira

do poço lunar. Por alguns instantes sua mente pareceu flutuar e seu corpo

entrar em algum processo de letargia. A pele azul clara, o cabelo esbranquiçado

e espigado. O olhar zombeteiro e alucinado. Imediatamente Ninde percebeu

que havia algo de errado com seu amado. A elfa noturna parou ao lado do

mago e encarou o grande troll metros à frente.

- O que houve, Huor? O que aconteceu?

O grupo de elfos noturnos ainda não fora percebido pelo destacamento

da Horda. O arquimago estava atônito. A expressão de Huor lentamente

adotava um tom sombrio e ele pareceu balbuciar algo. Como sua companheira

não parecera entender, os lábios do mago soltaram um nome. Lentamente. Um

nome que a caçadora conhecia, e também o seu significado:

- Ironshörds!!

Ninde alternou o olhar incrédulo entre o companheiro e o troll ao lado

do poço lunar. Os dois druidas se aproximaram, estranhando a parada

repentina do casal. A lua refletia no cabelo prateado de Berwyn e uma brisa

quente os envolvia. Foi Thaynahra quem percebeu que a quentura emanava do

arquimago.

Do ponto onde estavam era improvável que fossem vistos. O grupo do

Pacto Lunar encontrava-se em uma elevação de terra, fruto da destruição

provocada pelo Cataclisma. Um grande tronco caído lhes providenciava um

belo esconderijo. O caçador troll liderava um pequeno destacamento de

goblins. Pareciam despreocupados na missão que os trouxera ali.

- Huor conhece aquele troll. – Thaynahra reparou certa melancolia na voz

de Ninde e olhou curiosa para o casal.

- O que está acontecendo, meu amigo? – Berwyn tentava manter a voz

calma de forma a inspirar o mago.

Page 22: Pedra da Alma

- É Ironshörds, Berwyn! IRONSHÖRDS!! – o mago quase gritou o nome

do troll.

Os elfos noturnos se agitaram e olharam inquietos em direção ao poço

lunar, receosos de que a Horda tivesse ouvido o quase grito de Huor. Ninde

encostou a mão no ombro do amado, em uma tentativa de acalma-lo, mas

afastou rapidamente ao perceber que Huor estava quente.

Berwyn se lembrava de Ironshörds. Huor lhe contara a história e o

arquidruida não estranhava a reação do velho amigo. Os três elfos noturnos

conheciam o arquimago bem o suficiente. Sabiam que a batalha era iminente e

que seria desesperada. Huor não manteria o controle de sua raiva por muito

tempo.

Os sonhos se tornaram bem menos constantes, mas a lembrança da

humilhação causada pelo troll ainda o perturbava ocasionalmente. Huor era

bem jovem quando se deparou com o já experiente troll caçador em uma

missão no Vale Gris. Durante dias foi caçado impiedosamente pelo troll.

Ironshörds o perseguira incontáveis horas com lobos e hienas famintos.

Quando estava prestes a captura-lo, desaparecia sem deixar rastros, para então

reaparecer e continuar com sua caçada insana. Era apenas diversão. Huor se

lembrava das risadas. Ainda as ouvia algumas vezes. Ouvia a voz de Ironshörds

ordenando às feras que pegassem o coelho assustado. Não, não conseguiria se

controlar. Não imaginava jamais reencontrar o troll. Sentia o calor do fogo. O

calor do seu próprio fogo.

- Ironshörds é meu. Cuidem do poço.

- Huor!! – o chamado de Ninde foi em vão. Sabia que o amado não a

ouviria. O arquimago podia ser bastante temperamental quando queria.

As chamas envolviam ferozmente o corpo de Huor. Os três amigos se

afastaram do calor crescente e seguiam o mago enquanto este se aproximava

da Horda. Apenas Ninde manteve-se no lugar em que fincara as flechas,

acompanhada da raposa branca Felpas. Sendo uma caçadora de precisão, a

distância a beneficiava e ajudava manter o foco.

Page 23: Pedra da Alma

A engenhoca goblínica já estava montada e em funcionamento. O troll

observava com olhos vidrados enquanto os goblins abriam um container

acoplado à centrífuga. Uma pequena esteira em movimento acoplava os dois

objetos. Os elfos noturnos observaram incrédulos quando a grotesca bolha

vermelha saiu do container em direção à centrífuga.

Era de um vermelho vibrante e parecia ter vida própria. Pulsava e liberava

um cheiro pungente, a julgar pelos goblins cobrindo o nariz. Para os elfos

noturnos não havia dúvida da procedência daquela bolha, o que não diminuía

em nada o choque da constatação. Mas eles estiveram na Queda do Asa da

Morte. Participaram daquele evento apocalíptico e quase perderam suas vidas

nele. Sabiam que se tratava de uma bolha de sangue corrompido do próprio

Asa da Morte.

Que efeitos teriam uma mistura do sangue corrompido com as águas do

poço lunar, Thaynahra desconhecia, mas não acreditava que a Horda estivesse

ali para um teste isolado. Alguma coisa eles sabiam. Quem estaria por trás

dessa empreitada? Não fazia sentido que algo dessa magnitude fosse uma ação

desprendida de um troll lunático. E como conseguira aquele sangue

corrompido? Haveria outras amostras? Isso era extremamente perigoso sequer

de se pensar.

A arquidruida imaginava que esses pensamentos ocorressem também a

Berwyn, mas ao olhar para o amigo mago, o via apenas consumido em seu ódio

determinado. Huor se aproximava do grupo da Horda cada vez mais rápido,

marcas negras nos locais em que pisava. A druidesa se perguntava se ele sequer

tinha percebido do que se tratava a grande bolha vermelha.

- IRONSHÖRDS!!!

O poderoso grito do arquimago ecoou através do terreno calamitoso de

Auberdine, surpreendendo não só o pequeno grupo da horda, mas também

seus próprios amigos. Os pequenos engenheiros olharam sobressaltados e

temeram o que viram.

Page 24: Pedra da Alma

Se na Clareira do Oráculo, Huor parecera esplêndido, neste momento

assemelhava-se a um deus do fogo. Sua ira irrompia em chamas, afastando

ainda mais os amigos. Era impossível até mesmo enxergar o robe vinho, pois

Huor vestia o puro fogo. O cajado em sua mão pulsava como brasa viva.

O troll caçador olhou incrédulo em direção aos elfos noturnos. Estava tão

absorto em sua missão que não cogitava ser interrompido, apesar de estar em

território da Aliança. Os elfos noturnos assumiram posição de combate,

formando um triângulo com Ninde mais atrás e Berwyn ao centro.

- Que merda é essa? – grunhiu o troll.

- A sua destruição, maldito! – era possível sentir o ódio na voz de Huor e

nas chamas ao seu redor. – Hora do acerto de contas!

Ironshörds mostrava uma expressão de confusão. Esquecera por alguns

momentos de seu empreendimento e dos goblins, que se moviam

agitadamente à sua volta. Em um movimento instintivo, alcançara o arco às

costas. A fera ao seu lado permanecia dormindo profundamente.

Ao arquimago não faria diferença explicar ao troll quem ele era. Sabia

que fora um evento insignificante na vida de atrocidades do caçador, mas não

perderia a oportunidade de informar quem era. E no que se tornara.

- Vale Gris. – Huor começou. A voz profunda e alta, para se fazer ouvir,

diferente do tom amigável que lhe era comum. – Caçado por dias. Apenas por

diversão.

O troll irrompeu em uma longa e insana gargalhada e instintivamente os

druidas souberam que não contariam mais com o autocontrole de Huor.

Com um som grave ensurdecedor, os elfos assistiram atônitos à

formação de um imenso domo ao redor do grupo da Horda. Logo identificaram

dispositivos posicionados ao redor deles projetando a energia rosa. Os dois

druidas se entreolharam, pouco escondendo a surpresa.

- Um domo de engenheiro! – Thaynahra gritou para os amigos. – Huor,

temos que concentrar forças no domo.

Page 25: Pedra da Alma

Huor não parecia sequer ouvir. O mago de fogo estendeu o braço direito

em direção ao troll e observou a bola de fogo se formando e crescendo sobre

seus dedos crispados. Os olhos vidrados em Ironshörds.

O arquidruida se aproximou da amiga, em voz baixa.

- Thay, isso não vai ficar bem. Huor está fora de nosso alcance e mal

entramos em combate.

A druidesa respirou fundo e encarou Berwyn por alguns instantes. Algo

dentro dela era totalmente contra estar em Auberdine e no entanto estava ali.

Berwyn era um excelente curador, mas sua atenção precisava estar totalmente

focada na cura. Ninde era perita em sobrevivência, rastreamento e possuía uma

mira espetacular, mas dificilmente engajava-se em missões de grupo. Era uma

caçadora solitária quando não estava próxima ao companheiro. Caberia a ela, a

arquidruidesa Thaynahra liderar um ataque em Auberdine. Mais um. Esperava

que este fosse menos trágico que os anteriores.

- Está certo, Berwyn. Vou fazer o possível para liderar esta loucura.

Depois exijo explicações. Seja de Huor, do Kirin Tor ou de quem for.

Olhando em direção ao domo, Thaynahra notou que o resultado da

centrifugação estava agora nas mãos de Ironshörds. Uma tigela rústica com

pouco menos de um metro de diâmetro. O troll a erguia com avidez. O

arquidruida percebeu a ansiedade da amiga e olhou incerto em direção à

Horda.

- Ele vai...

Beber. Ironshörds virou entre suas presas o resultado viscoso da

centrifugação da água do poço lunar com o sangue corrompido do Asa da

Morte. Os três elfos noturnos observaram incrédulos. Até mesmo Huor pareceu

hesitar, com uma bola de fogo ardendo entre seus dedos.

- Berwyn!! Aconteça o que acontecer, preciso que aquela centrífuga e o

poço lunar sejam protegidos. O troll não consumiu todo o resultado

abominável daquela mistura. Temos que recupera-los. – A voz de Thaynahra era

Page 26: Pedra da Alma

incisiva. Em seu íntimo realmente assumira o comando. O druida assentiu com

seriedade.

Ser um druida curador é ser a natureza. É através de um árduo

treinamento que um druida de restauração, como são chamados, aprende a

separar sua consciência da fauna e flora do planeta. Com o arquidruida Berwyn

não era diferente. Bastava afrouxar suas defesas à natureza e esta respondia.

Um gramado verde e brilhante cresceu em segundos sobre o pequeno

penhasco em que se encontravam. As folhas das árvores próximas agitavam-se.

A própria roupa do druida, feita de couro e folhas, florescia. Suas ombreiras

eram de folhas verdes e novas. Um aroma amadeirado o cercava. Cogumelos

brotavam por vários metros e um brilho verde emanava da relva.

Uma mudança começava a ocorrer com o troll. Ironshörds estava

arqueado no chão e gritava em agonia. Algo parecia se mexer

descontroladamente sob a pele do caçador, que começava a escurecer em

diversos pontos.

- Precisamos descer o domo! Huor, me escute!! Vamos concentrar os

esforços. Ainda podemos pegar o troll em desvantagem. – A druidesa tentava,

mais uma vez, chamar o mago à razão.

- Ironshörds é meu! – o elfo noturno nem ao menos se virou para a

amiga. A bola de fogo em sua mão atingira um enorme diâmetro e ele a atirou

com força em direção ao domo. Um baque surdo. O fogo se espalhou em torno

da área de colisão por alguns segundos, mas o grande escudo de energia

continuava intacto.

O processo de transformação do troll parecia chegar a um nível de

estabilização. Seu corpo praticamente dobrara de tamanho, deixando alguns

membros disformes. A pele de Ironshörds emanava uma fina fumaça,

apresentando escamas escuras calcificadas em toda sua extensão.

Levantando vagarosamente, Ironshörds parecia acordar de um transe.

Olhava com surpresa para seus próprios membros transformados. Fechava e

Page 27: Pedra da Alma

abria as mãos, sentindo a força fluir. Um sorriso se esboçou em seu rosto, bem

lentamente, transformando-se em uma risada gutural.

Os pequenos engenheiros olhavam estupefatos para o resultado de seu

experimento, um misto de pavor e deslumbramento. Não ousavam uma

aproximação do troll e sibilaram de medo quando este lhes dirigiu a palavra.

- Desçam o domo!

Os goblins se entreolharam com incredulidade. Três elfos noturnos

preparados para combate os aguardavam furiosamente e tudo o que os

mantinham a salvo era o domo de energia rosa. O momento de hesitação teve

fim quando o troll, agora transformado em uma monstruosidade, ordenou mais

uma vez, em um grito apavorante, que desativassem o escudo de proteção. Os

goblins correram desorientados por alguns instantes e atenderam à ordem.

Mal o escudo desapareceu e o troll correu em direção ao pequeno grupo

da Aliança, ignorando seu próprio arco atirado ao chão. Aquela arma não

representava mais nada para o caçador, que agora se tornara sua própria arma.

Ninde estivera aguardando pacientemente de sua posição no alto de um

frondoso abeto. Era uma caçadora experiente e preferia permanecer oculta a

maior parte do tempo. Suas flechas podiam cobrir dezenas de metros e podia

manter um foco e concentração melhores enquanto estivesse fora da vista do

inimigo. Soltou a tensão do fio do arco e a flecha zuniu em um rastro de cor

púrpura característico do tiro arcano. Em menos de dois segundos completos o

arco já disparava uma segunda flecha em direção ao mesmo alvo.

As duas primeiras flechas atingiram em cheio o peito do monstruoso

troll, porém sem causar qualquer ferimento. Apenas fincaram-se como uma

indiferente penugem na carapaça de Ironshörds. A caçadora observara todo o

processo de transformação e desconfiara que suas flechas fossem inúteis em

um primeiro momento. Tateou uma flecha especial em sua aljava e a encontrou

rapidamente. Renovaria o veneno de mantícora aplicado ao lobo de Ironshörds;

atirara a primeira flecha antes dos engenheiros implantarem o domo e o efeito

poderia se dissipar a qualquer momento.

Page 28: Pedra da Alma

O fogo estalava sobre o corpo de Huor à medida que se preparava para a

aproximação de Ironshörds. Um pedregulho flamejante atingiu o troll em cheio,

atirando-o alguns metros para trás. O caçador foi atrasado por alguns

momentos, dando vantagem a Huor, que em um piscar de olhos se

movimentava em diferentes direções, atingindo-o de diferentes formas.

Os engenheiros disparavam tiros em todas as direções. Usavam armas de

fogo de formatos variados. Os tiros rasgavam o ar com extrema velocidade e

atingiam os elfos noturnos com frequência, atravessando-os. O trabalho

compenetrado de Berwyn fazia com que não passassem de pequenos

incômodos; mal a rajada atravessava a pele de Thaynahra e a ferida cicatrizava.

A druidesa movia-se com graciosidade, elevando as mãos e conjurando

raios lunares contra seus oponentes. Os goblins tinham dificuldade em se

manterem parados. Precisavam correr a todo instante, fugindo do surto estelar.

Apesar de ser uma druidesa de habilidades de equilíbrio, seu treinamento

contemplara aspectos básicos de comunhão com a natureza. Sendo assim,

Thaynahra fez com que raízes brotassem do solo, prendendo dois goblins por

alguns momentos. Foi o suficiente para disparar energia de ira solar em um e

fogo estelar no outro. Os dois foram facilmente abatidos e ela pôde reparar que

Berwyn mantinha o terceiro preso em um modesto ciclone.

O troll se movimentava com lentidão, o que dava certa vantagem a Huor.

Os dois estavam engajados em um combate acirrado. Ódio brilhava e crescia no

olhar do mago de fogo. Movia-se com rapidez e até mesmo precipitação em

alguns momentos. Sua vantagem ainda era maior devido à inabilidade do troll

com seu novo corpo.

- Coelho orelhudo! Vou esmagar você e usar seu crânio como pote de

mijar! – Ironshörds não parecia sequer cansado. Continuava em suas investidas

contra o arquimago.

Um assovio soou alto e em alguns instantes animais selvagens, vindos de

todas as direções, avançaram em direção ao troll. Um urso marrom, dois lobos e

uma aranha gigante fizeram com que Ironshörds se detivesse por alguns

Page 29: Pedra da Alma

momentos. Os animais estavam sob comando de Ninde, que se aproximava da

batalha.

Berwyn observava as frentes de batalha com atenção. Thaynahra

verificava rapidamente os danos causados ao poço lunar e preparava-se para

investir contra o troll. Huor aproveitava o momento para se concentrar. As

chamas ardiam ao seu redor formando uma bolha de calor alcançando mais de

dois metros além de seu corpo.

A selvageria dos animais parecia ter conseguido causar algum dano ao

troll, que estava ainda mais irritado. Havia sangue em partes de seu corpo,

embora não parecesse profundamente ferido. Ironshörds olhou ao redor e

encontrou Ninde há alguns metros. Sabia que ela havia invocado os animais,

habilidade preciosa dos melhores caçadores. Com um grunhido de raiva, puxou

um dos lobos por uma das patas traseiras e rapidamente lhe quebrou o

pescoço. O pobre animal não teve tempo de ganir. Com uma força descomunal

o troll arremessou o cadáver do lobo em direção a Ninde. A elfa noturna não

previu a investida inusitada e sua esquiva não foi feita de maneira adequada. O

corpo da caçadora foi arremessado contra uma árvore, caindo inerte no chão.

O que aconteceu a seguir se processou bem rápido. O surto estelar de

Thaynahra atingia o troll enquanto Huor via o corpo de sua amada se chocar

contra a árvore. Se havia algum resquício de autocontrole no arquimago, esse

acabara de se esvair.

Mesmo em uma considerável distância, Berwyn sentia o calor emanando

do corpo de Huor. Precisou aumentar sua proteção à relva e também ao

próprio corpo do arquimago. O calor atingira níveis alarmantes. Não era

possível mais ver os olhos do mago; a luminosidade característica dos elfos

noturnos dera lugar a dois pequenos motes de chama.

Em questão de segundos, emitindo um grito estrondoso, Huor entregou

seu corpo ao fogo. Era difícil identificar a silhueta humanoide do mago em

meio a chama que ardia violentamente, pulsando em ódio. O arquimago abriu

os braços e, utilizando todo seu corpo como catalisador, liberou o jorro de fogo

em direção ao troll.

Page 30: Pedra da Alma

Berwyn entendera o que aquilo significava. O druida sabia que o corpo

de Huor não aguentaria a liberação do fogo. O calor atingido havia

ultrapassado os limites suportáveis. Imediatamente o arquidruida alterou sua

forma. Seus corpo e membros deram lugar a tronco e galhos, que se erguiam

aos céus evocando toda a força da flora de Azeroth. Raízes envolveram o corpo

de Huor. Ironshörds jazia uma pilha de cinzas.

Thaynahra correra em direção aos amigos. As raízes mantinham o corpo

do mago de pé e a força de Berwyn o mantinha vivo. O arquidruida também

canalizara suas energias à Ninde, que se aproximava um pouco atordoada.

- O que aconteceu? – a urgência na voz da caçadora não manifestava a

hesitação que tivera em tocar no mago.

Uma inquietação pairava entre os três elfos noturnos. O arquidruida

ainda estava em sua forma arvorosa e temia voltar a seu estado original. O

esforço de Berwyn era a única coisa que impedia o corpo de Huor de se

desintegrar.

- Huor usou o próprio corpo como catalisador de seu fogo. O ódio pelo

troll o dominou. – Thaynahra disse com pesar.

Ninde aproximou o rosto do arquimago, que parecia dormir

tranquilamente. O corpo emitindo uma leve quentura, estranhamente

confortante. Um filete de fumaça pairava sobre sua pele, que agora tinha um

tom roxo bastante escuro.

- E meu amor? Não foi o suficiente para mantê-lo? – a voz era um leve

sussurro em sua língua natal. Os olhos se encheram de lágrimas, o rosto suave

em sofrimento.

O arquidruida se aproximava lentamente, enquanto sua forma voltava ao

original. A natureza continuava se agitando ao redor. A relva brilhava em verde,

mais intensamente próxima a Huor.

- Receio que ele não vá resistir, minhas amigas. A vida se pendura por

um fio e não há o que eu possa fazer para restaurá-la. Seu corpo está além de

Page 31: Pedra da Alma

reparos. – o pesar contido na voz do druida soava distante. A voz flutuava no

vento, enquanto os elementos inconstantes de Auberdine pareciam silenciar

pela primeira vez.

- Vou buscar ajuda, Berwyn. O Círculo Cenariano está por perto. Até

mesmo Malfurion pode estar aqui. Juntos talvez possamos fazer alguma coisa,

ou mesmo pensar em algo. Não duvido de suas capacidades, meu amigo, mas

podemos ter alguma chance ainda e devemos nos apegar a isso.

- Toda tentativa é válida. Vá. Posso mantê-lo nesse estado por tempo

indeterminado.

- O maquinário goblínico é nosso. Vou confisca-lo. Não permita que se

aproximem. – dizendo isso, a druidesa assumiu sua forma alada, ao que Berwyn

apenas assentiu. O druida sabia que a amiga precisava ficar sozinha em seus

pensamentos. Mais uma batalha em Auberdine. Mais um desfecho duvidoso.

A grande raposa branca de Ninde raspava as patas no solo, sentindo a

angústia de sua mestra. A caçadora passou a mão suavemente no rosto do

amado elfo noturno. Tantas eras juntos. Não poderia acabar daquela maneira.

- Isso é ridículo. Não existe outra palavra para isso. – Ninde se virou para

Berwyn, com certa revolta na voz. O arquidruida estranhou a atitude da

caçadora.

- Berwyn! Há algo que tenho que fazer e preciso que você me prometa...

Por Huor. Ele é seu amigo. Não podemos deixar que... – a caçadora não ousou

terminar a frase.

Um lampejo de esperança se fez nítido no rosto de Berwyn. O jovem

druida era peculiar no tangente às emoções; diferente da maioria dos elfos

noturnos, suas emoções ocasionalmente se tornavam aparentes.

- Faça o que for necessário, Ninde.

- Preciso de algumas horas. Você consegue mantê-lo... vivo?

Page 32: Pedra da Alma

A hesitação de Ninde demonstrava o quanto ela duvidava da vida do

amado naquele estado. A respiração era inaudível e ela não ousava sentir o

pulso. A garantia que tinha da vida de Huor era a palavra de Berwyn.

O arquidruida estendeu as mãos em direção ao mago. As raízes que o

envolviam começaram a se movimentar e gentilmente deitaram o corpo de

Huor sobre elas, formando uma superfície de raízes e folhas. Berwyn sentou-se

aos pés de Huor, cruzando as pernas e relaxando o corpo.

- Estaremos aqui esperando. Eu e meu amigo Huor. – o jovem druida

olhou o corpo inerte do mago e lançou um sorriso triste à caçadora.

E Ninde correu. Correu em direção ao sul como se Sargeras estivesse em

seu encalço. Felpas, sua fiel raposa, a seu lado.

Page 33: Pedra da Alma

PARTE III

Page 34: Pedra da Alma

haynahra cruzou o grande salão circular violeta em passos

decididos. A suavidade élfica de seus movimentos não produzia

qualquer barulho do contato de suas botas com o piso lustroso.

Seu manto azul esverdeado era de um veludo pesado e cobria

todo o seu corpo, se arrastando à volta. Apenas seu rosto era visível por baixo

de um vasto capuz. Os olhos da elfa noturna brilhavam ferozmente. Seu

semblante era indecifrável.

Diferente da angústia sentida em Auberdine, estar em Dalaran naquele

momento a deixava irritada. Não pela cidade em si – adorava Dalaran, com seus

telhados abobadados e suas muitas e elegantes torres púrpuras – mas por tudo

o que representava, especialmente naquele amanhecer. Estar em Dalaran era

respirar magia. E magia era o motivo de sua raiva.

O grande salão circular violeta parecia não ter fim. As altas paredes de

mármore branco conferiam um ar nobre à sede do Kirin Tor. Thaynahra e sua

pequena comitiva seriam recebidos na Sala de Gelo, conforme informados

assim que chegaram. Lá fora o dia amanhecia triste. A arquidruidesa, a única de

Azeroth, estava ladeada por um casal de elfos noturnos, ambos

misteriosamente cobertos por mantos. Poderia ter ido sozinha, ela sabia, mas

tornar aquela visita em uma delegação tinha motivos políticos. E em se tratando

de magos, sempre havia política. Tudo envolvia poder, seja ele qual fosse.

A Sala de Gelo, apesar do nome, era quase aconchegante. Parecia um

pequeno pedaço de Invérnia recortado e transplantado para o Palácio Violeta.

Era mágica, claro. Os três elfos noturnos encontraram-se em uma clareira de

neve assim que cruzaram a soleira para o que pensaram ser uma das muitas

salas daquele edifício. Um sol tímido se escondia atrás de pesadas nuvens. A

claridade pungente refletida em toda aquela imensidão branca não causou mais

que quatro segundos de incômodo aos elfos.

Uma grande cadeira dourada de espaldar alto e estofado púrpura

encontrava-se em meio a toda aquela neve. Discretamente, Thaynahra observou

os flocos de neve caindo lentamente do céu. Não pareciam encostar na grande

cadeira ou mesmo acumular sobre seu manto. Mágica. Como tudo ali. Por

Page 35: Pedra da Alma

alguns instantes esquecera que estava apenas em uma sala no Palácio Violeta.

Precisava manter sua concentração. Havia uma sensação de impotência

angustiante. Sentia-se indefesa em um ambiente manipulado como aquele.

Tencionou olhar para o vulto élfico em um manto verde água à sua direita em

busca de segurança, mas jamais se permitiria. Afastou o capuz com

determinação, deixando os cabelos azulados caírem em cascata sobre o manto

e se confundindo com o mesmo.

– Sejam bem vindos, meus amigos. – a voz masculina revelou a presença

de um humano ruivo à frente da grande cadeira. Trajava uma túnica púrpura

bordada em pura energia arcana com o olho do Kirin Tor.

Rhonin era um humano alto e robusto. Poderia ser confundido

facilmente com um formidável guerreiro, caso não fosse conhecido em toda

Azeroth. O cabelo, de um vermelho vivo, lhe descia liso até os ombros e uma

pequena barba ruiva parecia prolongar e afunilar seu rosto. Os olhos azuis eram

astutos, perscrutava tudo e todos ininterruptamente. Era um homem belo,

manifestando os primeiros traços de sua idade em vincos em volta dos olhos.

Possuía um rosto feroz, mas seus gestos firmes e calculados atenuavam

qualquer má impressão.

Era tal o nível de imersão dentro da câmara que os elfos noturnos não

saberiam dizer se as cadeiras sempre estiveram atrás deles ou se materializaram

há pouco. Cada uma delas era estofada com a exata cor do manto élfico que

vestiam. Apesar de belas, não se comparavam ao trono do líder do Kirin Tor,

demarcando nitidamente a posição que a pequena delegação ocupava frente

ao clã de magos mais poderoso de Azeroth.

– Por favor... vamos conversar.

A cordialidade no tom de Rhonin soou forçada à arquidruidesa e uma

irritação ameaçou estremecê-la. Lembrava-se, contudo, que o mago era

conhecido por ser direto e incisivo. Thaynahra puxou suavemente o manto e

sentou-se em postura digna. Seu rosto ainda impassível. Sabia que era

minuciosamente estudada pelo mago humano, não somente sua postura, mas

também suas intenções. Feitiços poderosos estavam em efeito naquele lugar.

Page 36: Pedra da Alma

Os dois elfos a seguiram, baixando seus capuzes. À direita da druidesa

estava Zehunter, um dos caçadores mais antigos dentre os elfos noturnos,

trajando um pesado manto verde. Encarava Rhonin com selvageria nos olhos

sob espessas sobrancelhas de intenso verde água, a mesma cor de seus cabelos

que eram longos e desciam com certo desalinho sobre o manto. Havia algo de

animalesco em sua expressão, como se o prolongado convívio com as feras o

tivesse aproximado delas. Seus companheiros – recusava-se a chama-los de

feras – não estavam visíveis, mas era provável que, a um chamado seu, todos os

animais existentes em Dalaran irrompessem no Palácio Violeta.

A elfa noturna ao lado esquerdo de Thaynahra era uma recém-

consagrada druidesa, Cerdwin. A jovem tentava disfarçar o assombro que a

câmara mágica lhe causava, mas pouco conseguia. Era uma adorável e celestial

visão, seus cabelos e manto brancos, somados à toda a neve do ambiente; o

cabelo preso em uma longa trança descia pelo ombro direito e lhe dava um ar

inocente. O olhar, de um vívido brilho branco percorria toda a extensão de neve

da Sala de Gelo, cruzando com o de Rhonin, que sorriu amigavelmente. A elfa,

irmã do arquidruida Berwyn, expressou leve consternação, sentindo-se

constrangidamente infantil. Imediatamente, juntando alguma dignidade dentro

de si, seguiu os movimentos de Zehunter, sentando-se altiva ao lado de

Thaynahra.

Um silêncio pairou entre elfos e humano. Thaynahra se perguntou onde

estariam os outros magos. Não era hábito do Kirin Tor conceder audiências

privadas com apenas um de seus membros, ainda que esse fosse seu líder,

como era o caso do arquimago Rhonin. A druidesa preferiu ignorar essa

questão e tratar do assunto urgente que a levara até a cidadela violeta dos

magos. Se o arquimago era conhecido por ser direto, tampouco ela era

conhecida por ser diferente:

– Huor está morrendo. – a druidesa permaneceu impassível como se

tivesse anunciado que uma garoa se iniciava. Já Rhonin não pôde evitar um

sobressalto.

– Morrendo?

Page 37: Pedra da Alma

– Sua missão não foi bem sucedida. Ou pelo menos não totalmente.

– Mas... – A informação realmente atingira o arquimago de surpresa, para

consternação de Thaynahra. A druidesa esperava que o Kirin Tor já soubesse de

todo o desenrolar de sua missão. A elfa imediatamente decidiu aumentar sua

cautela. Podia sentir as sondas mágicas ao seu redor e, pelo leve desconforto de

seus amigos, sabia que também estavam sob intenso escrutínio.

Após dar alguns momentos para que Rhonin absorvesse a informação

inicial, a arquidruidesa contou de forma objetiva todo o desenrolar do conflito

em Auberdine. A aparição de Huor na Clareira do Oráculo, o teletransporte para

Auberdine, o poço lunar e o grupo liderado pelo caçador que, há muitas eras,

caçara Huor. Não poupou Rhonin ao manifestar sua insatisfação em participar

de tudo aquilo. O arquimago ponderou sobre toda a situação durante alguns

longos minutos. Zehunter parecia pronto a avançar sobre ele a qualquer

momento, enquanto as duas druidesas permaneciam calmas e insondáveis.

– Entendo sua consternação, minha cara. – Rhonin iniciou após longo

silencio e certa relutância. – Mas também preciso que entenda... – olhou para os

dois elfos noturnos que acompanhavam a druidesa e se corrigiu – que vocês

entendam minha posição. Não posso revelar os propósitos de nossa ordem em

relação ao que deveria ser uma missão secreta.

– Uma missão secreta em Kalimdor, nosso continente. E envolvendo um

poço lunar sob nossa responsabilidade. – Thaynahra falou de forma suave,

ainda que incisiva, mas não querendo se indispor com o clã de magos.

– Ainda assim... – Rhonin fez uma pequena pausa, os dedos tamborilando

suavemente sobre o braço da majestosa cadeira. – Não posso entender por que

motivos Huor precisaria de ajuda para derrotar um grupo tão pequeno e

desarticulado como aquele. Ou mesmo entender como pôde sucumbir diante

de um simples caçador.

Nesse momento Thaynahra moveu a mão direita em direção ao braço de

Zehunter, segurando-o com suavidade. O caçador emitiu um leve rosnado,

fazendo Rhonin arregalar os olhos e balançar a cabeça em constrangimento.

Page 38: Pedra da Alma

– Céus! Perdoe-me, nobre elfo. Não foi minha intenção. Referi-me ao

fato de não utilizarem energias e magias. Muito embora exista manipulação

arcana em seus tiros e sejam tão mortíferos quanto qualquer mago. Veja – o

mago fez uma pequena pausa e tentou esboçar um sorriso – minha própria

esposa é uma caçadora. Realmente não quis ser rude. Toda essa situação me

deixou abalado. Perdoe-me mais uma vez.

Zehunter conteve-se, apenas cerrando o punho direito e estalando seus

dedos. A ferocidade em seu olhar permanecia, assim como a tensão em estar

naquele ambiente magicamente manipulado. Thaynahra ignorou toda a

situação, retomando o assunto que a levara ali.

– Lealdade, senhor mago. Foi lealdade o que levou Huor a procurar o

Pacto Lunar. Uma lealdade jurada há muitas eras. Agora consigo entender parte

do que houve e entristece-me ainda mais o destino de meu amigo.

– Huor é caro a todos nós. Enviarei meus melhores curadores

imediatamente.

– Ah por favor... não se incomode. – era inevitável o desdém na voz da

druidesa – Os melhores de Azeroth já estão lá. O próprio arquidruida Malfurion

está lá, juntamente com Berwyn e outros.– a acidez no comentário de

Thaynahra foi ignorada por Rhonin que apenas assentiu com sua cabeça ruiva.

Rhonin era um homem bom. Era sabido entre todos. Thaynahra não

gostava de dirigir-se assim a ele, mas a situação exigia. Era necessário equilibrar

as forças.

– Estão mantendo-o vivo, muito embora receamos não haver qualquer

solução. O fogo desintegrou seu corpo de forma irreparável. Berwyn o está

mantendo vivo até que Ninde retorne. – Thaynahra continuou.

A arquidruidesa não pôde deixar de reparar uma sombra de tristeza

atravessando o olhar astuto de Rhonin. Por instantes o arquimago se perdeu

nos próprios pensamentos, parecendo distante.

Page 39: Pedra da Alma

O mago de fogo passara a integrar o Kirin Tor por insistência de Rhonin.

Costumavam conversar calorosamente sobre antigos encantamentos e técnicas

de transmutação. O líder da ordem dos magos de Dalaran nutria grande

simpatia por Huor. Ambos eram magos casados com caçadoras. Rhonin pensou

em Vereesa e em seus dois filhos. Huor não teria filhos. Aquela constatação

devastara o arquimago por dentro. Segurou com firmeza os braços de sua

cadeira e respirou fundo, tentando espantar aqueles pensamentos.

– E quanto ao artefato, minha senhora? O que foi feito dele?

Resignada, a druidesa ajeitou uma dobra de seu manto, imediatamente

arrependendo-se por manifestar tal inquietação. Sabia que a parte mais

delicada daquela audiência chegaria e não poderia mostrar qualquer indício de

indecisão ou fraqueza.

– O artefato ficará sob custódia de Darnassus.

A notícia atingira Rhonin como uma bomba. O arquimago não pôde

evitar o sobressalto. As sobrancelhas ruivas arqueadas em dúvida.

– Darnassus?

A arquidruidesa sentiu certa satisfação, é verdade, em ver o

estremecimento do grande mago Rhonin, mas ainda assim precisava ser

cautelosa.

– Sim. O sangue corrompido do Asa da Morte, bem como o resultado da

centrifugação e todo o maquinário goblin está sob poder da Senhora Tyrande.

Será devidamente analisado.

– Entendo... – assentiu o arquimago Rhonin.

– O ataque foi realizado em Kalimdor, em uma de nossas antigas cidades.

Próximo demais a Darnassus. – a arquidruidesa continuou, como se precisasse

justificar o envolvimento de Tyrande. – E o que aconteceu com Huor – fez uma

pequena pausa, acrescentando peso às próximas palavras – A Senhora dos Elfos

Noturnos nutre grande sentimento por nosso amigo.

Page 40: Pedra da Alma

O silêncio pairou de forma constrangedora sobre a audiência. Não havia

o que argumentar. O que deveria ser mais uma simples missão do Kirin Tor

virara uma questão diplomática. Não havia mais o que fazer ali. Auberdine era

uma cidade élfica, sendo natural, aos olhos de Rhonin o envolvimento de

Tyrande na questão. O arquimago sabia que toda atividade do Pacto Lunar era

reportada diretamente à Grande Senhora dos Elfos Noturnos.

– Agradeço por nos receber tão prontamente, Rhonin, bem como todo

apreço manifestado por Huor. – Thaynahra se levantou e então, subitamente os

quatro encontravam-se em uma aconchegante biblioteca repleta de estantes e

livros. Grandes estantes de carvalho enegrecido pelo tempo abrigavam o que

pareciam ser registros raros sobre toda sorte de assuntos. Um fogo púrpura

dançava em uma lareira atrás de Rhonin.

O arquimago estava a uma escrivaninha de madeira entalhada, ainda

sentado em sua nobre cadeira. Uma bebida intocada flutuava poucos

centímetros acima da mesa, ao lado de um livro intitulado Vida Arcana, de um

autor chamado Mago Elladir. Livros atravessavam suavemente os ares da

biblioteca, indo ocasionalmente de uma prateleira a outra.

– Enviarei um destacamento do Kirin Tor para prestar toda assistência

que puder. Huor nos é muito caro. Não poderia fazer menos. – o mago se

levantou e caminhou até os três elfos noturnos. Era notória a resignação em

suas palavras e a hesitação em seus movimentos. – Vou me reunir com o

Conselho, relatar o ocorrido e refletir sobre toda a situação. Mais uma vez

lamento demais o desfecho de tudo isso.

Havia sinceridade na voz de Rhonin. Era inegável. Despediram-se

amigavelmente, apesar da tensão ainda persistir. Tudo com os magos envolvia

tensão. Política e tensão, pensou Thaynahra.

Os três elfos noturnos caminharam em silêncio por Dalaran durante

longos minutos. Apenas quando estiveram a uma distância segura do Palácio

Page 41: Pedra da Alma

Violeta ousaram trocar impressões. Sabiam que estariam sob observação

enquanto estivessem na cidadela dos magos.

– Toda a conversa me deixou preocupada. – começou Thaynahra em uma

versão particularmente difícil do idioma élfico. As palavras eram mais

sussurradas do que propriamente faladas, o que dificultaria o entendimento de

qualquer pessoa que os estivessem ouvindo – Rhonin deixou claro que a missão

era individual, no entanto pensei ter entendido que Huor esperava ajuda do

Kirin Tor.

– Nada envolvendo magos é simples. Não gosto deles. Sempre

irresponsáveis e ávidos por magia. – Mesmo com toda a suavidade do idioma

élfico, Zehunter conseguia se expressar com agressividade. Nesse momento,

como que ouvindo a voz do caçador, um imenso falcão marrom desceu dos

céus em um impressionante mergulho. O animal alterou a rota segundos antes

de colidir com o grupo e posou com elegância no ombro do elfo noturno, que

passou as mãos em suas penas marrons e brancas.

Os três elfos noturnos, enrolados em suas capas, chegaram ao chafariz

de Dalaran. O dia estava claro e aquele início de manhã prometia calor. A jovem

druidesa Cerdwin parecia inquieta.

– Senhora Thaynahra, algo me incomoda. O artefato não está com a

Senhora Tyrande, está? – a voz da druidesa era um sussurro quase inaudível no

idioma élfico.

– Não. Não está. Tyrande nem ao menos sabe de sua existência. Não

ainda. – Thaynahra continuou, vendo o semblante confuso da elfa mais nova. –

Mas Rhonin também não sabe disso.

– Não acha arriscado, Thay? – a pergunta viera do caçador, em seu tom

grave, com menos agressividade desta vez.

– Diplomacia é algo arriscado. Envolver Tyrande automaticamente retirou

Rhonin e o Kirin Tor de toda a situação. Pelo menos por hora. O Kirin Tor é

influente e poderoso, mas evitam questões de Estado. Eles não me deixariam

Page 42: Pedra da Alma

ficar com o artefato de outra forma. Rhonin sabe ser bastante persuasivo

quando quer. Não tive outra escolha. – Havia cansaço na voz da arquidruidesa.

– Entendo. – a jovem druidesa olhou para o chafariz com certa

inquietação. Os raios de sol já ultrapassavam os telhados abobadados da cidade

e atingiam parte da água, que resplandecia serenamente.

A arquidruidesa não seria a líder que era, se não fosse capaz de observar

seus seguidores nos mínimos detalhes. Thaynahra percebia a aflição de

Cerdwin, e compartilhava de sua angústia. Mas precisava se dar alguns

momentos ainda.

– Você pode ir, Cerdwin. Sei que deseja se juntar a seu irmão.

A jovem druidesa se virou rapidamente; distraíra-se à beira do chafariz.

Thaynahra se permitiu um esboço de sorriso para tranquilizar a elfa noturna.

– É que... estou preocupada com eles. Sei que não há nada que eu possa

fazer. Os melhores curadores de Kalimdor já estão lá. Mas eu gostaria de ficar

perto do meu irmão e... – Cerdwin fez uma pequena pausa – do Huor.

Cerdwin ainda era uma criança élfica quando, juntamente com o irmão,

conheceu o mago. Huor sempre conjurava esplêndidos brinquedos mágicos

cada vez que via a pequena elfa com seus cabelos presos no alto da cabeça.

Lembrava também de suas histórias. Com seu jeito peculiar, diferente da

maioria dos elfos, Huor era falante. Contava histórias fabulosas sobre Azeroth,

quedas de reis, ascensão de vilões, romances épicos.

Thaynahra assentiu e não reparou quando a druidesa se transformou em

um pássaro cinzento e subiu aos céus de Dalaran. Notou a sombra alada

quando esta já se distanciava no céu claro da cidade, passando por entre as

torres púrpuras e brilhantes. Foi então que desabou.

Não saberia dizer de onde viera ou mesmo tinha consciência de que

estava exercendo algum tipo de autocontrole. Quando deu por si, as lágrimas

rolavam das cavidades de puro brilho que eram seus olhos. Era um choro

abafado e amargo. Um choro de impotência. Seu corpo estremeceu e ela

Page 43: Pedra da Alma

ameaçou cair, sendo imediatamente amparada por Zehunter. O caçador a

envolveu em um abraço apertado e permaneceu em silêncio.

– É o Huor, Ze... O Huor!! E não há nada que eu possa fazer! – o lamento

viera no idioma élfico, atropelado por soluços e embargado pela dor. O peito

de Thaynahra arfava e ela chegou a pensar que fosse explodir, tamanha a

compressão que sentia.

– Eu sei, Thay... Mas essas coisas estão além de nosso controle. – o tom

sempre grave do caçador, agora cadenciado pelo pesar, soava melancólico,

triste.

– Como fomos nos deixar levar dessa forma? Como pudemos entrar em

uma missão totalmente sem sentido como essa? Fomos amadores. Nunca irei

me perdoar! – um início de raiva se mostrava em sua voz. Zehunter percebeu

com preocupação uma pequena alteração ao redor de Thaynahra. Pequenos

pontos brilhantes começavam a se desprender de seu corpo.

– Thay, você deve manter a calma. Não existem culpados em situações

assim. Você mesma disse que Huor estava fora de si, descontrolado. Ele ainda

está vivo, não está? Ainda há esperança.

A arquidruidesa afastou o rosto alguns centímetros para olhar o amigo

nos olhos, ainda se mantendo em seus braços. A expressão da elfa era de

enorme desamparo. Segurou suavemente a borda do manto de Zehunter

enquanto o encarava.

– Não, não há, meu amigo. O corpo de Huor se desmantelou em nível

estrutural. Alguma coisa na utilização da maldita magia fez isso. Berwyn está

mantendo seu corpo coeso, mas não conseguimos sequer alcançar alguma

consciência ali. – A druidesa fez uma pequena pausa e então prosseguiu com

gravidade – Berwyn provavelmente conseguiria manter Huor desta forma por

eras, se entrasse em uma espécie de transe vegetativo. E tenho certeza de que

cogita essa possibilidade. – a druidesa suspirou – Não posso perder os dois. –

Uma nova torrente de choro tomou-a.

Page 44: Pedra da Alma

Zehunter franziu o cenho em tristeza e puxou a amiga para si, reforçando

o abraço. A vida em Dalaran começava a se movimentar. Comerciantes abriam

suas lojas, um cheiro adocicado vinha de alguma cozinha. Os moradores da

cidade arcana olhavam com estranheza os vultos élficos abraçados em seus

mantos.

Thaynahra olhou sobre o ombro de Zehunter, fitando o céu claro de

Nortúndria. Detestava o dia. Desejou com todas as suas forças que fosse noite.

A elfa noturna fechou os olhos lentamente e se aninhou ainda mais nos braços

de Zehunter. Não havia conforto fora da noite.

* * *

Os imensos pinheiros estavam cobertos de neve e suas poucas folhas

deixavam um frescor no ar. O vento era fraco e parecia piedoso ao deixar as

folhas em seus galhos. O dia estava claro, quase ofuscante, embora o sol não

estivesse visível. Uma vegetação rasteira se alastrava pelo vale, salpicando a

neve aqui e ali. Amontoados de neves, folhas e galhos estavam por toda parte.

Invérnia era um lugar calmo e praticamente inabitado. Um sonho para qualquer

caçador.

A elfa noturna aguardava atrás da árvore, imóvel como se fosse um galho

da mesma, o manto amarronzado contra o frondoso tronco que descascava. Os

olhos brilhavam serenamente, emoldurados por um rosto lilás encapuzado. Seu

olhar encarava atentamente um pequeno arbusto a poucos metros de onde

estava. A respiração era quase inexistente, tamanha a concentração. Um

movimento sacudiu o arbusto. Uma vez. Duas vezes. A caçadora se permitiu um

leve sorriso quando viu uma pequena raposa branca correr para fora da

vegetação. Era um filhote de raposa de Invérnia. Essa, especificamente era a

mais esplêndida que já vira, pois possuía as ponta das paras negras. Seria

aquela mesma. Ninde iria domá-la.

Page 45: Pedra da Alma

A caçadora hesitou por alguns momentos. Um leve estremecimento

percorreu seu corpo. Estava nervosa. Era a primeira vez que domaria um animal

sozinha. Havia domado animais antes, mas na presença e com certo auxílio de

seu mestre caçador. Desta vez pesquisara com cuidado e domaria um animal

para estabelecer verdadeiramente o vínculo espiritual. Parte de sua vida se

integraria ao animal e também parte da essência da fera comporia sua própria

essência. Era um passo avançado e decisivo na vida de um caçador. Aquela

raposa branca seria a fera que acompanharia Ninde por toda a vida. Mas ela

estava pronta. Respirou fundo e olhou mais uma vez para a pequena raposa.

Um zumbido agudo irrompeu o ar inesperadamente. A pequena raposa

correu de volta ao arbusto, sob o olhar sobressaltado da jovem caçadora. Ninde

olhou cuidadosamente ao redor, se concentrando ainda mais em sua respiração

e camuflagem. Um baque surdo entre ela e o arbusto onde se escondia a

pequena raposa deixou um corpo estendido em meio à neve. A caçadora olhou

com incredulidade. Era um elfo noturno, ao que parecia.

A caçadora alcançou a aljava em suas costas com a mão direita, retirou

uma flecha e encaixou-a no arco. Seu manto de tom amarronzado envolvia

todo o seu corpo e um capuz protegia seu rosto. Lentamente deixou a

segurança dos pinheiros e caminhou para a clareira, em direção ao corpo. O

manto farfalhava atrás de si e assumia tons mais claros conforme ela caminhava

pela neve. Apontava a flecha em direção ao corpo do elfo.

Parecia ter caído de algum lugar. Ninde olhou ao redor e então para o

alto. Um portal arcano oscilava em um brilho púrpura vários metros acima. Uma

queda e tanto. A caçadora relaxou a postura, agachando-se cautelosamente ao

lado do elfo. Jogou o capuz para trás, liberando os cabelos azuis ao distante sol

de Invérnia. Pousando o arco e a flecha ao seu lado, tentou mover o corpo, pois

caíra com o rosto na neve. Não parecia estar gravemente ferido.

Era jovem. O rosto sereno era de um azul pálido e acinzentado. Uma

barba rala cobria parte dele e era branca como seus cabelos. Vestia um robe

branco com detalhes em púrpura. A roupa, o portal arcano e um cajado simples

de freixo caído ao seu lado indicavam que se tratava de um mago. Um aprendiz

Page 46: Pedra da Alma

talvez. Isso explicaria o portal metros acima do chão. Ninde não pôde deixar de

sorrir.

A caçadora se inclinou para verificar se havia algum ferimento na cabeça

do mago. Sem perceber, seu cabelo roçou suavemente o rosto do mago

desmaiado, fazendo com que movimentasse o nariz e a boca devido ao leve

incômodo. O elfo noturno lentamente abriu os olhos em um suave jorro de

brilho claro, característico da raça.

A primeira expressão a tomar o rosto do elfo foi de estupefação. Encarou

a caçadora como se fosse de outro mundo e ela então se deu conta de que ele

estava desperto. Um pequeno desconforto a abateu e ela recuou rapidamente.

Pensou no quanto havia sido imprudente e desejou estar com seu arco na mão.

Hesitou em pegá-lo.

– E... Eluna? – o elfo dissera em um breve e entrecortado sussurro em seu

idioma natal.

Ninde pareceu confusa por alguns segundos e então quase sorriu.

– Não... não sou Eluna. Você pelo visto bateu com a cabeça mais forte do

que supus. – a voz da caçadora era fina e suave, ao que o elfo noturno pareceu

maravilhar-se.

– Seu cabelo... – o elfo falou devagar. – Ele... me despertou. Tem cheiro

da grama molhada pelo orvalho da manhã. Achei que estava em... Darnassus. –

olhou intensamente para a jovem agachada ao seu lado. – Você... você... tão

linda! – esticou uma mão hesitante em direção à caçadora, que recuou com

rapidez felina.

– Ei ei ei... O que pensa que está fazendo? – a caçadora sobressaltada

respondeu na língua comum, ignorando o idioma élfico.

O mago respirou fundo e piscou os olhos algumas vezes, parecendo

acordar de um transe.

Page 47: Pedra da Alma

– Desculpe, eu... – após uma pequena pausa o jovem tentou levantar e

imediatamente levou a mão à cabeça em uma expressão de dor, desistindo por

hora da ideia de ficar em pé.

– Calma. Você caiu de uma altura considerável. Descanse um pouco.

A caçadora colocou a mão dentro do manto e retirou um cantil de couro

azulado. Habilmente destravou a tampa e estendeu para que o elfo bebesse.

– Tome! É alüvar. Vai se sentir melhor.

O jovem mago se apoiou em um dos cotovelos e pegou o cantil com

firmeza. Fechou os olhos enquanto bebia. Respirou fundo ao terminar e

encarou a elfa. Sorriu em agradecimento.

– Onde estamos?

– Invérnia. Ao norte da Aldeia Chuva Estelar, para ser precisa.

O elfo sorriu:

– Bom... nada mal. Eu tentava ir para Darnassus. E estava em Altaforja!! –

o jovem parecia maravilhado com a perspectiva do teletransporte. – É a

primeira vez que tentava. Quero dizer... a primeira vez que tentava ir de um

continente ao outro. Errei por alguns quilômetros.

A caçadora não poderia deixar de acha-lo divertido. As palavras do

jovem mago, quase cada uma delas, manifestavam um encantamento. Não um

encantamento de feitiço, mas um maravilhamento com tudo ao redor. A

maneira como a olhara, como olhou ao redor, como falava do teletransporte

fracassado. Ninde não percebeu, mas sorriu afetuosamente.

– Ora, não tenho vergonha de errar. Mas não precisa rir também. Sou um

aprendiz ainda. Um aprendiz de mago. Aliás... meu nome é Huor. O seu...?

Ninde ficou encabulada com o sorriso despercebido e piscou

nervosamente os olhos, balançando as sobrancelhas longas. Levantou-se

depressa pegando seu arco. Voltando a si, lembrou-se do propósito de estar ali

e a frustração estampou seu rosto.

Page 48: Pedra da Alma

– Meu nome é Ninde. E você me deve uma raposa.

Huor não teve tempo para se maravilhar também com o nome da

caçadora, pois a cobrança o deixara confuso. Franziu a testa e a elfa explicou:

– A que você afugentou quando caiu. Eu estava de tocaia para domá-la.

O jovem aprendiz de mago pareceu profundamente desapontado. Ninde

achou que fosse até mesmo chorar e se arrependeu de soar tão rigorosa. Huor

respirou fundo e tentou mais uma vez se levantar. Desta vez com calma e

movimentos lentos. Pegou o cajado e pôs-se de pé, vários centímetros acima da

caçadora. Sacodiu a neve do robe e adquiriu um ar digno.

– Eu sinto muito. Não foi minha intenção. – o sentimento na voz do

jovem elfo era comovente. Ninde sentia-se quase culpada por ele ter caído.

– Está... está tudo bem. Ela ainda está por aqui. Posso sentir.

O mago sorriu. Um sorriso largo de genuína alegria. E, mais uma vez sem

perceber, a caçadora sorriu, desta vez retribuindo ao mago. Deu-se conta de

que estava sorrindo para um total estranho, mas decidiu que não se importava.

Huor agitou suavemente o cajado e murmurou algumas palavras que

Ninde não conseguiu entender. Um chiado suave se fez ouvir e uma sombra

começou a se formar para logo se materializar em um grande naco de carne

crua. A carne fora conjurada a alguns metros dos dois elfos e o cheiro era muito

forte. Huor fez sinal para que Ninde se afastasse e os dois, lentamente, um do

lado do outro, foram em direção ao pinheiro da tocaia.

Não demorou muito e a pequena raposa saiu de sua toca, farejando o ar

em direção ao suculento pedaço de carne. Os dois elfos se entreolharam e

sorriram. Huor disse afavelmente em um sussurro:

– Não teremos problemas com a mãe dela, não é?

– Não... encontrei o rastro há alguns dias. Foi morta por alguma outra

criatura selvagem.

Page 49: Pedra da Alma

Huor pareceu mais uma vez sentir pena e a caçadora quis abraça-lo.

Estava encantada com o jovem aprendiz, admitira para si. Retirou a aljava das

costas e entregou-a ao mago junto com o arco.

– Fique aqui. – ela pediu.

O jovem mago fez uma mesura e esticou o braço para que ela avançasse.

A caçadora caminhou lentamente em direção à raposa branca, que a esta altura

já se banqueteava com a carne. Ninde inclinou o corpo, andando um pouco

curvada e com um dos braços estendidos, pé ante pé. Balançando suavemente

os dedos em direção à raposa, começou a entoar um mantra sussurrado bem

baixinho.

A pequena raposa então parou seu banquete e farejou o ar ao redor.

Encontrou a caçadora, que havia parado sua aproximação, e hesitou por um

momento. Os olhos das duas se cruzaram. Caçadora e fera, ambas totalmente

imóveis.

A comunhão com as feras é uma das artes mais antigas de Azeroth e ser

um caçador é exercer total domínio sobre essa técnica. Domar um animal é um

teste de resistência, sobretudo para o caçador, pois da mesma forma que

invade as defesas sensoriais do animal, também é invadido por este. Ninde foi

assaltada pelo cheiro pungente da carne crua, da neve e de fezes. Exerceu todo

seu autocontrole para não correr em direção à carne crua cujo cheiro inundava

suas narinas. Da mesma forma, a pequena raposa estremeceu experimentando

as sensações da caçadora.

Ninde conseguiu recobrar algum controle de si e retomou o caminho em

direção à raposa, que a observava fixamente. Mais um pouco e estaria lá. As

emoções fluíam entre a elfa e a fera. Quanto mais próximo Ninde chegava, mais

difícil se tornava resistir. O suor brotava em sua testa. O cheiro da carne

violentava seus sentidos. Mais um pouco. Só mais alguns passos. O jovem

mago, atrás do frondoso pinheiro, observava com curiosidade. Não tinha ideia

do que realmente se passava ou do motivo da demora da caçadora em chegar à

raposa.

Page 50: Pedra da Alma

A raposa então saiu de sua paralisia e se aproximou. Primeiro

cautelosamente para então avançar decidida. A caçadora esticou mais um

pouco a mão e permitiu que a pequena fera a cheirasse. O focinho gelado da

raposa tocou primeiro o dedo indicador de Ninde, para depois cheirar a própria

extensão de seu braço e decidir que não havia ameaça. Ninde sorriu e então

posou a mão sobre a testa da fera, murmurando a parte final do mantra. Um

estremecimento percorreu tanto o corpo da caçadora quanto da fera. Uma fina

luz esbranquiçada surgiu entre a mão da elfa e a cabeça do animal.

Quando Huor deu por si, Ninde caminhava em sua direção com a

pequena raposa branca no colo. Um sorriso no rosto do jovem mago se

esboçou e então tomou todo o seu rosto de forma radiante.

– Você conseguiu!!! – vibrou o aprendiz de mago com o punho cerrado.

A caçadora sorriu e acariciou a pequena raposa, que estava dócil como

se conhecesse Ninde desde o nascimento.

Ao se aproximar de Huor, a raposa o cheirou imediatamente. O mago

esticou a mão para acaricia-la e então ganhou duas simpáticas lambidas. Os

dois elfos riram juntos.

– Olha... parece que alguém gostou de você. – disse a caçadora em tom

afável.

– É... eu sou um tipo simpático. – o mago respondeu em tom de troça e a

caçadora deu uma sonora gargalhada.

Ambos passaram incontáveis minutos entretidos com a pequena raposa.

Observaram-na correr em volta de suas pernas, rolar na neve de Invérnia e roer

parcialmente a borda do robe de Huor. A noite caiu sem que os elfos sentissem,

agradados um da companhia do outro. Uma fogueira ardia e um pequeno

banquete era preparado. A raposa dormia aconchegada no manto da caçadora.

– Você deveria chama-lo de Felpas. – disse o mago distraidamente,

olhando a raposa dormindo.

– Felpas? – a caçadora indagou curiosa. – Por quê?

Page 51: Pedra da Alma

– Significa “feliz encontro”... em uma língua antiga.

– Você está inventando isso... – a caçadora respondeu um pouco

encabulada, mas sorrindo.

– Não, não estou! Alguns feitiços são realizados em línguas que não

existem mais. E não são alterados, pois o poder está nessas palavras. Nós

magos estudamos muitos idiomas. – o jovem mago disse em um divertido tom

de orgulho.

Ninde olhou a raposa longamente.

– Felpas... – murmurou, parecendo estudar o nome. – Foi um feliz

encontro de verdade. Será meu pequeno companheiro de caçadas.

– Não me referia somente a esse encontro...

Ninde olhou para Huor e viu o que chamaria mais tarde de “o sorriso

mais encantador de Azeroth”. Seu rosto imediatamente corou e ela não pôde

deixar de sorrir.

Ninde chegara a seu destino. As lágrimas corriam-lhe livres pelo rosto,

expulsas pelas memórias de um passado que jamais esqueceria. Ela não se

importava mais em enxuga-las. A imponente construção em pedra enegrecida

erguia-se irregular e assustadora à sua frente na Garganta de Pedra, em um

canto esquecido da Península Fogo do Inferno, em Terralém.

O pequeno prédio sustentava-se exatamente à beirada do precipício, em

uma inclinação horrenda. Dava a impressão de que despencaria a qualquer

momento e cairia no vazio púrpuro que cercava Terralém. Uma quentura

doentia emanava do solo árido. O ar era pesado e rarefeito, difícil de respirar.

Parada em frente à construção em formato de um demônio agonizante

com uma gigantesca boca escancarada, por onde teria que entrar, a caçadora

Page 52: Pedra da Alma

passou a mão em seus cabelos reunindo forças. A jornada tinha sido

extenuante; atravessara portais e voara durante horas, mas enfim chegara.

Ninde se agachou ao lado de Felpas, seu fiel companheiro:

– Preciso que espere por mim aqui fora, meu querido. Não vou demorar.

Não posso. – a caçadora fez uma pequena pausa e olhou incerta para seu

destino – Estarei segura.

A raposa branca encostou o focinho no nariz de sua mestra, que não

conseguiu impedir mais uma lágrima de rolar. Felpas raspou as patas no chão

enquanto via Ninde se afastar em direção à construção, onde um demônio a

aguardava na entrada.

– Minha mestra aguarda. – entoou o demônio em uma voz gutural e

assustadora. Era um terrorífico, com seus seis chifres na cabeça e um rosto

macabro adicional no dorso. A imensa criatura abriu as asas verdes de

membranas translúcidas em um breve agitar, intimidando a visitante. Um cheiro

repugnante tomou o ar.

Ninde, altiva, entrou no prédio. Não era surpresa que o cheiro fosse

ainda mais repulsivo no interior da construção, tomada de demônios como

estava. Pequenos diabretes vis amontoavam-se pelos cantos do lugar. A

caçadora encontrava-se em um amplo salão rodeado de portas. As paredes

enegrecidas sugeriam que o lugar pegara fogo incontáveis vezes. Imundície

acumulava-se em todas as direções. Um grande trono negro de pedra

acomodava o motivo de sua jornada. Ladeada por tochas de fogo vil brilhando

em verde, uma mulher sorria sentada de maneira displicente na grande cadeira.

– Minha querida... Aguardava sua chegada. Bebe alguma coisa? – a voz

da mulher transbordava uma afetação maliciosa. Um pequeno diabrete vil se

aproximou com uma bandeja, de onde a mulher retirou uma taça prateada

fumegante. Dispensou o diabrete com um forte chute.

A caçadora se aproximou. Somente o rosto visível em cima de seu manto

azulado. Reunia toda a coragem que tinha. Não podia vacilar. Não podia se

Page 53: Pedra da Alma

arrepender. Em seu interior queria correr para fora daquele prédio maligno e de

toda energia vil que pulsava ali.

– Não. Agradeço, mas não posso me demorar.

Um caçador vil dormia aos pés do trono negro e despertou

repentinamente, agitando os longos tentáculos de sua cabeça. Farejou em

direção à elfa, em um leve rosnado maligno. Caçadores vis nada mais eram do

que espreitadores vis treinados para caçar energia arcana. A besta demoníaca

não sentiu presença arcana na visitante e voltou a dormir, se deitando

desajeitadamente devido aos imensos chifres.

Levantando-se do trono, a mulher agitou os braços em direção à

caçadora:

– Aqui estamos. Conte-me suas angústias. – debochou.

Não só a voz, mas tudo naquela mulher sugeriam malícia e deboche.

Tratava-se de uma mulher humana, embora os chifres e o olhar maligno

sugerissem outra coisa. O corpo pálido e esguio era pouco coberto pelos trajes

negros, não mais que roupas íntimas. Um coque de cabelos negros equilibrava-

se entre os chifres grandes e demoníacos. O rosto era uma máscara de escárnio.

A feiticeira fez sinal para que a caçadora se aproximasse e tornou a sentar, um

pouco mais ereta desta vez.

– Não vim contar angústias. Vim buscar o que prometeu. – Ninde disse

com decisão. A mulher deu uma leve risada.

– Confesso estar surpresa. Não imaginei que estaria tão segura e

decidida sem seu mago de brinquedo. Soa quase desafiadora.

– Ele é meu marido. – Ninde rebateu indignada.

– Maridos, brinquedos... – a mulher disse com desdém – Homens são

brinquedos, na melhor das hipóteses. Para o que mais serviriam?

– Não vim até aqui para jogos, feiticeira. Não tenho tempo a perder.

Você deve a Huor. E eu vim cobrar a dívida.

Page 54: Pedra da Alma

A mulher se empertigou em seu assento. Uma sombra de ódio passou

por seus olhos e então ela sorriu em escárnio.

– Se não a conhecesse acharia que está me ameaçando, Ninde.

A caçadora não respondeu à provocação. As duas se encararam por

longos segundos. A feiticeira tomou um gole do líquido efervescente de sua

taça.

– O que me pede é caro... Espero que entenda. – fez uma breve pausa. –

Mais do que seu marido fez por mim no passado.

Dessa vez foi Ninde quem sorriu com deboche:

– Sua honra vale tão pouco assim?

A feiticeira atirou longe a taça de prata, que atingiu com força a parede

enegrecida. O som ecoou por toda a construção. O caçador vil acordou

assustado e os diabretes se agitaram amedontrados por todos os lados. Um

leve cintilar de energia vil esverdeada envolveu o corpo da humana, que gritou

em descontrole:

– Não venha até meus domínios me afrontar, elfa. Eu ainda tenho o que

precisa e posso negar.

Ninde apenas arqueou uma sobrancelha e permaneceu impassível.

Alguns minutos se passaram até que a tensão entre as duas diminuiu. Os

demônios ainda resmungavam por toda parte. Foi a bruxa quem rompeu o

silêncio.

– Eu tenho sim uma dívida com seu marido. E é apenas por causa dessa

dívida que relevo seu insulto. Mas aviso novamente: o que me pede é caro. E é

você quem estará em dívida comigo dessa vez.

Por alguns segundos Ninde pensou em recuar, embora seu rosto nada

revelasse. Não gostava de Terralém, não gostava daquele lugar e gostava

menos ainda daquela mulher. Estivera com ela algumas vezes em companhia de

Page 55: Pedra da Alma

Huor. A ideia de lhe dever algo era repugnante, mas não havia outra escolha. A

vida de Huor dependia disso. Sendo assim, era fácil decidir.

– Isso não é problema. A vida de meu marido vale mais do que qualquer

preço a pagar. – Ninde disse com convicção.

A feiticeira sorriu maliciosamente.

– Acredito que sim. – a mulher fez uma pausa – Ah sim... Existe um

porém. – a mulher fez uma segunda pausa, se deliciando com a expressão de

confusão no rosto da elfa. – Vocês elfos noturnos são peculiares. Creio que...

algumas modificações precisarão ocorrer para que funcione. Se ainda estiver

interessada...

Nesse momento um pequeno diabrete vil, Ninde não saberia dizer se era

o mesmo que trouxera a bebida, se aproximou com uma caixa de madeira

entalhada. A caçadora pegou a caixa em suas mãos, percorrendo os entalhes

com os dedos enluvados. Olhou com incerteza para a bruxa, que assentiu em

um último sorriso malicioso. A elfa abriu a caixa e dentro estava uma esfera

púrpura, não maior que um punho cerrado. A pedra emitia um brilho sinistro e

nela repousava a última esperança de Huor.

* * *

A expressão no rosto de Huor era serena. O robe vinho parecia

tristemente apagado, sem a chama da vida do mago para o alimentar. Ninde

passava as mãos em seus cabelos brancos, debruçada sobre o pequeno platô

de galhos e folhas onde se encontrava o companheiro. As lágrimas da incerteza

lhe corriam pelo rosto. Felpas uivava a seu lado. Um triste uivo de lamento, pois

estava conectado às emoções da caçadora. E se algo desse errado? Era tão

arriscado. Mas precisava tentar.

Ninde chegara há alguns minutos de Terralém e pedira momentos a sós

com Huor. Fora recebida com olhares tristes e consoladores, mas ninguém

Page 56: Pedra da Alma

ousou perguntar onde estivera ou por que demorara. Encontrara o marido

rodeado por druidas, xamãs e sacerdotes. Ainda podia ouvir a sonora voz do

arquidruida Malfurion ao longe. Todos haviam tentado o melhor de suas

habilidades, mas eram categóricos afirmando que não havia solução. Apenas

Berwyn se mantivera próximo.

O arquidruida permanecia sentado aos pés de Huor, as pernas cruzadas,

os olhos fechados e indiferente a tudo ao redor. Sua pele assumira um tom

esverdeado e pequenas folhas brotavam de seus cabelos. As extremidades de

seus membros afilaram-se e mais pareciam galhos. Era o que mantinha o mago

vivo.

A caçadora aproximou o rosto do mago e beijou-lhe os lábios. Uma

última vez. Manteve o rosto próximo o suficiente por alguns momentos,

deixando que três lágrimas caíssem no rosto de Huor, que permanecia imóvel.

– Espero que me perdoe, meu amor. – a voz não mais que um sussurro

élfico.

O braço de Ninde surgiu da dobra do manto e em sua mão a esfera

púrpura reluzia. A caçadora fechou os olhos e recitou de maneira quase

inaudível as palavras obscuras que lhe foram ensinadas. O brilho sinistro agora

era mais intenso e ela parecia pulsar. Algo se agitou dentro da pedra. Algo se

remexia no interior daquela esfera demoníaca. Algo estava vivo ali dentro.

Berwyn abriu os olhos repentinamente.

– Ele... ele se foi.

O arquidruida se levantou em um sobressalto, a pele lentamente

assumindo sua cor suave de costume.

– Ele se foi! Huor... Huor se foi. – falou mais alto e em consternação,

atraindo a atenção de todos que estavam a alguns metros. Ninde chorava.

Thaynahra foi a primeira a se aproximar, alarmada.

– Berwyn!! – ela tocou o ombro do amigo. – O que houve?

Page 57: Pedra da Alma

– Ele se foi, Thay. Huor... – a confusão tomava o druida – A vida deixou

seu corpo. Não... não sei o que houve.

Os elfos se aproximaram do corpo de Huor, que estava tão imóvel e

indiferente quanto antes. Ninde se afastara; o corpo envolvido pelo manto

élfico. Berwyn e a caçadora trocaram um olhar. O rosto de Ninde era uma

confusão indecifrável de sentimentos, mas seus olhos clamavam por piedade.

– Ninde... – Thaynahra rompeu um silêncio fúnebre que pairava naquele

pequeno elevado de terra em Auberdine. O sol dava seus primeiros indícios de

despedida, com seus raios já preguiçosos. – Todos sentimos muito, minha

amiga.

As elfas se abraçaram, embora Ninde pouco correspondesse. Seu olhar se

mantinha distante e incrédulo. A arquidruidesa se afastou e segurou as mãos da

amiga, olhando em seus olhos com afeto. A caçadora recolheu as mãos com

hesitação e limpou a garganta em um breve pigarro.

– Eu... eu preciso ir a Ventobravo. – disse incerta.

Os druidas se entreolharam incrédulos. Mais pessoas se aproximavam

querendo prestar seus pêsames e oferecer algum tipo de ajuda. Uma irritação

começou a agitar Ninde, que se sentia sufocada.

– Eu preciso ir. – repetiu a caçadora.

– Ninde, existem algumas coisas que precisaremos arranjar. – Thaynahra

falou com carinho, dirigindo um olhar bondoso à amiga.

– Me recuso a enterrar meu marido. – a caçadora respondeu de forma

ríspida. A inquietação de Felpas, a seu lado, aumentava.

– Mas... Ninde? – Dessa vez foi Berwyn quem tentou intervir.

– Não, Berwyn. Não posso. Me perdoe.

Um silêncio se instaurou e todos os membros daquele pequeno grupo

entenderam que não era o melhor momento para prestar condolências à

Page 58: Pedra da Alma

caçadora. Thaynahra chamou por um mago, que prontamente abriu um portal

para Ventobravo. Nada mais foi dito.

A caçadora estava prestes a atravessar o portal quando sentiu o toque

em seu ombro. A expressão no rosto do arquidruida Berwyn era grave. Ninde

se sentiu desconfortável com seu olhar inquisidor.

– Seja lá o que está prestes a fazer... Faça funcionar! – o arquidruida

fechou os olhos ao final da frase.

Ninde piscou os olhos demoradamente e passou a mão na dobra do

manto. A esfera púrpura ainda pulsava. A elfa noturna entrou rapidamente no

portal, sem olhar novamente para trás.

* * *

A caçadora observou com esperança quando os dois homens se

aproximaram carregando uma maca volumosa coberta com um grosso tecido

cinzento. Era início de noite. Uma brisa morna passeava entre as árvores do

cemitério de Ventobravo. Em qualquer outra ocasião Ninde teria apreciado a

quietude daquele lugar. Não naquele momento.

O cemitério de Ventobravo localizava-se atrás da grande Catedral da Luz.

“A magia vil não funciona adequadamente em vocês elfos noturnos”, prevenira

a feiticeira. Somente a caminho de Auberdine a caçadora se deu conta das

implicações daquele alerta. E agora que estava ali, no cemitério de Ventobravo,

mais uma vez seus pensamentos eram completo caos. “E se desse errado?”, não

deixava de pensar.

Os dois carregadores deitaram a maca no chão, próxima a uma cova

aberta. Era um corpo de homem que carregavam, presumia-se pela robustez do

conteúdo da maca e pelo alívio que os homens sentiram ao baixa-lo. Estavam

um pouco afastados da ruela de pedras que cortava todo o cemitério. Ninde

saiu detrás de uma árvore, para sobressalto dos dois humanos.

Page 59: Pedra da Alma

– Pela Luz!! – gritou o primeiro homem, mais idoso dos dois.

– Nos assustou! – o segundo disse de forma áspera, mas arregalou os

olhos ao ver que se tratava de uma elfa norturna. A claridade dos lampiões

reluzia na pele clara de Ninde.

Certamente eram pai e filho. E o mais velho provavelmente herdara o

ofício do pai, como era comum nesse tipo de profissão.

– Desculpa, senhora. Está um pouco escuro e não vimos a senhora

chegar. – o mais velho dos dois coveiros limpou as mãos no avental, incerto se

deveria fazer uma mesura ou não.

– O que carregam aí? – Ninde ignorou o pedido de desculpa dos

coveiros. Sua expressão era dura e assombrosa.

– Um corpo, minha senhora. O que mais poderia ser? Somos coveiros. –

disse o mais novo, um tanto quanto insolente. – Somos simples coveiros, minha

senhora. É apenas um corpo. Nada mais. – reforçou.

O mais velho dos coveiros demonstrava apreensão. Amedrontado pela

expressão no rosto da elfa, iniciou uma justificativa de seus trabalhos honrosos:

– Somos homens direitos, dona. Pode acreditar. Fui ajudante de meu pai,

que foi o coveiro de Ventobravo durante anos. Enterrou pessoas muito queridas

de nossa cidade. E antes dele meu avô era o coveiro e meu pai seu ajudante.

Assim como meu filho é meu ajudante agora. E antes do meu avô...

– Refiro-me ao que carregam. Quem é? – a caçadora interrompeu

impaciente.

O velho se endireitou e falou antes que o filho desse alguma resposta

indelicada:

– O jovem Thomas Lenger. Não se sabe do que morreu. Era saudável

como um touro, mas andava muito triste pelo que contam. Apenas não acordou

esta manhã. Não tem nem parentes, uma pena. Ninguém para chorar.

Page 60: Pedra da Alma

Era o bastante. Habilmente, Ninde deslizou os braços do manto e, ao

mesmo tempo, cravou dois dardos nos homens. O efeito do veneno da

mantícora era instantâneo e indolor. Os coveiros dormiriam por algumas horas

e acordariam apenas com a mente embotada.

Desde que deixara Auberdine em direção a Ventobravo, Ninde adotara

uma postura severa. Colocara sua mente em um estado de resignação,

transferindo toda sua energia para o que precisava ser feito. Não poderia

pensar. Não poderia hesitar. O armazenamento da maldita pedra não duraria

muito tempo. Seria aquele corpo. Precisava ser.

A caçadora ajoelhou ao lado do corpo humano. Subitamente lembrou

novamente do distante dia em Invérnia, quando foi acudir um certo mago

aprendiz caído do céu. Eram tão jovens. Desde aquele dia ela e Huor se casaram

em seus corações. Estiveram sempre juntos desde então. O mago acabara com

a caçada solitária dela. Não o perderia. Não podia perdê-lo. Esticou a mão para

levantar o tecido mortuário que envolvia o corpo humano, mas hesitou. “Não

quero vê-lo”, pensou, “ainda não”.

A pedra da alma pulsava em sua mão direita. Era sólida e perfeitamente

esférica. O brilho parecia um pouco menos intenso do que a última vez que

olhara ou era impressão sua? Lisa como vidro. De fato parecia de vidro, embora

sugerisse um material mais resistente. Algum material demoníaco, certamente.

Uma torrente de pensamentos a invadiu. Dezenas de efeitos colaterais,

centenas de catástrofes. Ouviu a reprovação de Thaynahra, a decepção de

Berwyn, a gargalhada da feiticeira. Maldita. Imaginou até mesmo o fim de

Azeroth. E em sua mão a pedra apenas brilhava.

Ninde fechou os olhos. Não precisou revirar o pensamento em busca das

palavras. Já as estava pronunciando:

– Erzin kvartug grroulminzkazy!!

As palavras demoníacas saíram decididas de seus lábios, embora

nitidamente desconfortáveis na boca de uma elfa noturna. Ninde olhou a pedra

rapidamente em sua mão direita e fechou os olhos. Em um gesto rápido a

Page 61: Pedra da Alma

caçadora colidiu a esfera contra o que acreditava ser o peito do homem morto.

A pedra se estilhaçou, porém não deixou resíduo algum. Um brilho, em parte

verde e em parte roxo, emanou do corpo que se ergueu sobressaltado da maca,

tornando a deitar com uma respiração ofegante.

A respiração de Ninde não estava diferente. Olhava com certo horror

para a mortalha subindo e descendo conforme a respiração acelerada do...

morto? O corpo começou a se remexer, tentando se livrar do que o cobria. Por

alguns segundos a caçadora hesitou, alarmada, mas se pôs a ajudar. Pensou em

pegar o punhal em sua greva direita, mas desistiu com medo de machucar...

Huor. Tinha que ser Huor.

Os dedos da caçadora estavam um pouco atrapalhados pelo nervosismo

e ela detestou a si mesma por não ter retirado as luvas de malha. Para que

estava de armadura em Ventobravo? Não havia local mais seguro para a Aliança

em toda Azeroth. Conseguiu desenrolar a mortalha e perdeu a respiração por

alguns segundos.

Um homem humano a encarava. Olhos negros, cabelo e barba negros em

um rosto levemente quadrado. A pele morena de sol. O cenho franzido

demonstrava toda a confusão que uma pessoa podia sentir. Os olhos piscavam

e se reviravam atordoados.

A preocupação abateu o rosto de Ninde. Um aperto no peito ameaçou

estrangula-la. Suas mãos, sempre tão hábeis no manejo do arco e das flechas

mortais, tremiam incontrolavelmente. A visão começava a falhar, ao redor tudo

começava lentamente a se tornar branco. O homem moveu a boca. Em uma

primeira vez não conseguiu falar, mas na segunda a voz áspera surgiu. Uma voz

diferente do que estava acostumada a ouvir:

– Eluna...?

As lágrimas irromperam do rosto da caçadora. O homem forçou a vista

um pouco mais.

– Ninde?! Minha visão está um pouco embaçada... – o homem fez uma

pequena pausa, recobrando forças que não lembrava ter perdido. – Mas é você.

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Conheço esse cheiro de orvalho... lembro desde a primeira vez... é você. – A

confusão no rosto do homem se transformou em preocupação quando a visão

lhe retornou por completo. – Por que está chorando, meu amor?

Ninde pensou ter sorrido, mas irrompeu em uma crise compulsiva de

choro e se deixou cair sobre o corpo do homem. Tremia incontrolavelmente e

soluçava de maneira dolorosa. O homem a abraçava. Um abraço diferente,

desajeitado. Por alguns momentos achou que havia sido enganada. Por alguns

momentos achou que despertaria algum morto-vivo. Mas era ele. Era Huor.

As nuvens se abriram e a lua resolveu olhar para o casal. Ninde se

recusara a pensar nas implicações de sua escolha. Não era uma escolha; era o

caminho. Escolha lhe daria ao menos duas opções e ela só tinha uma: trazer

Huor de volta. A culpa por seu egoísmo a consumiria lentamente durante o

resto da vida, ela sabia, mas não se arrependia nem por um momento. Seu

amor estava vivo. Ela só poderia esperar que a perdoasse.