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Paulo Moreiras & Vinho Pão mil e uma histórias de comer e beber

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Paulo Moreiras

&VinhoPão

mil e uma histórias de comer e beber

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PãoBREVE HISTÓRIA DO PÃO 9

OS CEREAIS DO PÃO 25

TradiçõesEXPRESSÕES POPULARES SOBRE O PÃO 31

SUPERSTIÇÕES DO PÃO 35

ADAGIÁRIO POPULAR 39

ADIVINHAS 41

CANCIONEIRO 43

CONTOS E FÁBULAS 45

Curiosidades do pãoHISTÓRIA COM PÃO 51

O PÃO E AS PALAVRAS 65

O PÃO NA COZINHA 83

MISCELÂNEA SOBRE O PÃO 97

VOLTA A PORTUGAL ATRAVÉS DO PÃO 119

Índice

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VinhoBREVE HISTÓRIA DO VINHO 135

CASTAS 151

TradiçõesEXPRESSÕES POPULARES SOBRE O VINHO 157

SUPERSTIÇÕES DO VINHO 163

ADAGIÁRIO POPULAR 167

ADIVINHAS 169

CANCIONEIRO 171

CONTOS, LENDAS E FACÉCIAS 177

Curiosidades do vinhoHISTÓRIA COM VINHO 185

O VINHO E AS PALAVRAS 207

O VINHO NA COZINHA 225

MISCELÂNEA SOBRE VINHO 229

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PãoEm buscar pão se resolve tudo, e tudo se aplica a o buscar. Os pobres dão pelo pão o trabalho, os ricos dão pelo pão a fazenda; os de espíritos generosos dão pelo pão a vida, os de espíritos baixos dão pelo pão a honra, os de nenhum espírito dão pelo pão a alma; e nenhum homem há que não dê pelo pão e ao pão todo o seu cuidado.

Padre António Vieira

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Breve História do Pão

O pão é um dos alimentos mais fascinantes na história da alimen-tação do Homem e o que mais tem contribuído para a sua subsistência ao longo dos tempos. A forma como é preparado, respeitando rituais e costumes próprios, tornou-o um produto com uma forte carga simbólica e cultural, com uma matriz identitária muito vincada, reforçando a his-tória e a tradição das comunidades que o fabricam. O pão está também associado ao trabalho, à amizade, à família, à partilha, à revolução e à política; por ele, o Homem modificou a paisagem através da agricultura e dos métodos de cultivo, e também a cultura, a sociedade e a forma como esta se encontrava organizada. Mas o pão nada mais é do que um pouco de massa, preparada com uma certa quantidade de farinha e de água, a que se adiciona fermento e que depois é cozida no forno. Porém, ainda hoje o aroma de um pão quente fascina e embevece os comuns mortais e poucos são aqueles que lhe conseguem resistir. A sua história é a da nossa existência e sobrevivência, do engenho e da arte que soubemos aplicar para transformar grãos secos e duros num produto de excelência, sabo-roso e nutritivo, com alma.

NO PRINCÍPIO ERA O GRÃO

Ainda antes do advento da agricultura, os cereais fizeram parte da alimentação do Homem, consumidos no seu estado selvagem e natural. Há pelo menos quinze mil anos que as gramíneas – plantas que fornecem sementes farináceas – eram usadas como mantimento, entre as quais o

À boa fome não há mau pão.

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trigo, o centeio, a cevada, a aveia, o milho e o arroz. Apesar da sua sazo-nalidade, estes grãos eram facilmente colhidos e podiam ser armazena-dos, constituindo um aliado alimentício fundamental para as longas des-locações migratórias. Diversos tipos de silos – simples buracos naturais ou escavados nas rochas – foram achados em prospecções arqueológicas.

A princípio, os grãos de cereais de variedades bravias seriam con-sumidos crus ou provavelmente torrados. Vestígios arqueológicos em vários locais atestam, por exemplo, a utilização de espigas grelhadas. Outra forma de consumo seria através de um processo de cocção dos cereais em água – de forma a facilitar a digestão – processo intimamente ligado ao surgimento da olaria, outra importante invenção da Humani-dade. Com o incremento da criação de recipientes que podiam suportar o fogo, cozer alimentos tornou-se mais fácil, contribuindo para a sua ingestão. Surgiram assim as primeiras papas à base de cereais, fortemen-te nutritivas e saborosas, a que adicionavam leite, bagas, mel ou frutos secos. Mais tarde, experimentou-se colocar essa pasta de cereais mistu-rados com água sobre pedras quentes e o resultado terá sido uma forma primitiva de pão, como uma bolacha espalmada, sem forma definida e ainda sem fermento.

Durante o Neolítico, há cerca de dez mil anos, deu-se uma revo-lução, com a cultura dos cereais, em que figuravam essencialmente o trigo e o centeio. Após compreender os ciclos naturais de germinação das gramíneas, o Homem começou a domesticar algumas variedades de cereais para utilizar regularmente na sua alimentação, e assim nascia a agricultura. Com ela, tornou-se sedentário e surgiram os primeiros aglomerados populacionais que, naturalmente, importava alimentar. Foram encontrados exemplares ou fragmentos de pão nas imediações de palafitas helvéticas, ocupadas por povos lacustres nas margens do lago de Neuchâtel, que remontam ao Neolítico. Também se encontraram vestígios de que essas comunidades cultivavam mais de uma dezena de espécies de cereais, entre as quais seis variedades de trigo, três de cevada, duas de milho painço e uma de centeio e de aveia.

Uma vez dominado o processo de sementeira, surgiu a necessida-de de moer o grão e transformá-lo em farinha. Esses grãos começaram por ser moídos com recurso a mós de pedra, encontrando-se alguns

A bom amigo com teu pão e com teu vinho.

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exemplares no Egipto e na Mesopotâmia, tendo mais tarde surgido o al-mofariz de pedra e primitivos moinhos manuais. Desta forma, o Homem conseguia extrair um grande rendimento dos grãos de cereais e aparecia assim a farinha. Com um pouco de água e sal amassava a farinha, que depois colocava a cozer sobre telhas, placas de barro ou directamente so-bre as brasas, criando um pão ázimo, crocante, estaladiço e de agradável sabor. Outra importante inovação nas artes da panificação foi o forno, mas ainda faltava o fermento para nascer o pão tal como o conhecemos.

OS COMEDORES DE PÃO

Foi no Antigo Egipto que se aperfeiçoou o pão com a utilização de fermento, elemento inovador de grande importância, mas também com o desenvolvimento de fornos próprios. Não foi por acaso que Hecateu de Mileto (século v a.C.), geógrafo e viajante grego, apelidou os egípcios de comedores de pão, tal o prestígio que este alimento detinha na sua sociedade. De referir, por exemplo, que os egípcios consideravam o facto de recusar pão a um mendigo um dos pecados mais graves.

Sabe-se que durante o Império Antigo cerca de quinze palavras eram usadas para designar diversos tipos de pão ou bolos. Os cereais frumentários mais utilizados eram o trigo e a cevada, sendo a sua cultu-ra essencial à subsistência da população. Em muitas situações a farinha era fabricada em casa com recurso a mós ou almofarizes de pedra, com técnicas rudimentares. Supõe-se que tenham sido os egípcios, de acordo com Plínio, a inventar peneiras de papiro e junco, como sugerem algu-mas pinturas. Foram igualmente encontradas várias estátuas represen-tando amassadores de pão, bem como estatuetas de mulheres carregando cestos com pão à cabeça, o que reforça a influência que o pão granjeava

A criado novo pão e ovo; depois de velho pão e Demo.

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junto da população e das classes reinantes. De acordo com Heródoto (sé-culo v a.C.), considerado o pai da História, os egípcios tinham o hábito de amassar o pão com os pés.

Mas a importância do pão não se limitava à alimentação dos vivos. Era também um elemento precioso e fundamental nos ritos funerários, em que a família do morto fazia oferendas aos deuses pedindo que provi-denciasse ao falecido provisões de pão, vinho, cerveja, leite, entre outros. No célebre Livro dos Mortos, do Antigo Egipto, o pão é citado, no pri-meiro capítulo, como benefício para as almas na casa de Osíris, existindo um variado número de referências ao seu uso ao longo de todo o livro.

O mais destacado contributo dos egípcios para as artes da panifica-ção foi sem dúvida a utilização de fermento, não sendo possível precisar como o descobriram ou entenderam a acção exercida pela levedura para tornar o pão mais macio e esponjoso. Especula-se que tal fenómeno es-teja associado à cerveja, que também já produziam, e à levedura usada para a sua fermentação a partir de grãos de cevada. Durante séculos, esse foi o único fermento usado pelos egípcios, tão ciosos da sua utiliza-ção que tinham um cuidado extremo na sua preservação. A indiscutível qualidade e sabor deste novo produto permitiu a divulgação do seu uso por toda a parte e o pão levedado tornou-se o alimento preferido da população.

Terão sido também os egípcios a construir o primeiro forno para pão. Esses primitivos fornos seriam quadrados e cobertos por uma pedra ou por um tijolo e alguns podiam cozer vários pães ao mesmo tempo. Mais tarde, adquiriram uma forma cilíndrica, tendo o cone fechado no topo. O modelo generalizou-se e o seu fabrico tornou-se corrente e aces-sível a todas as pessoas.

Estas inovações possibilitaram um aumento na produção e na va-riedade de pão. Surgiram as primeiras padarias, tal como o demonstra uma pintura funerária que representa a padaria do palácio real no tempo de Ramsés, onde se podem observar as várias fases da panificação. Os pães assumiam diferentes formatos e composições, de trigo, cevada ou es-pelta, redondos, ovais, achatados, semicirculares, triangulares ou cónicos; alguns eram decorados com motivos ou figuras geométricas. Crê-se que entre os egípcios existiam cerca de cinquenta variedades diferentes de pão.

A esperança é o pão dos infelizes.

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NO REINO DA RAINHA CEVADA

Nos fecundos terrenos da Mesopotâmia, região também conhecida como Crescente Fértil, entre o Tigre e o Eufrates, o cereal que alcançou maior notoriedade foi a cevada, usada essencialmente no fabrico de pão e de cerveja, que ali adquiriu foros de especialidade e registou grandes consumos. Era abundante, permitindo, em certos locais, várias colheitas por ano, embora também se cultivasse trigo e milho miúdo, mas com produções mais reduzidas. Na Epopeia de Gilgamesh, são muitas as re-ferências ao pão e à cerveja, tidos como exemplos maiores da civilização. Na galeria dos deuses da Mesopotâmia figurava também Ninkasi, deusa da cerveja.

Antes do uso de fermento, os pães seriam ázimos, à base de fari-nha e água, provavelmente achatados e cozidos sobre pedras quentes. Especula-se que o pão levedado entre os mesopotâmicos tenha tido ori-gem com a adição de levedura proveniente da fermentação da cevada ou de outros cereais. O certo é que era a base da alimentação, consumido diariamente e tido como um alimento de excelência. Em geral cozido em casa, existiam também vários moleiros que se dedicavam à moagem de cereais e à produção de farinha. Entre os Assírios foram encontradas gravações em bronze, do século vii a.C., representando homens a prepa-rarem pão. Os mais pobres alimentavam-se de trigo ou cevada mistura-dos com água, de que faziam umas bolachas ou bolos que coziam. Numa tabuinha encontrada numa estação arqueológica são mencionadas cerca de trezentas variedades de pães. Estas diferiam entre si de acordo com a farinha utilizada, os líquidos, o uso ou não de fermento, os diversos ingredientes que adicionavam à massa ou as formas que os pães toma-vam. Curiosamente, alguns destes representavam partes do corpo, como o coração, a cabeça ou as mãos.

À falta de capão, cebola e pão.

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O PÃO DA AFLIÇÃO

Entre os hebreus o pão revestia-se de grande importância, alimento não só para o corpo mas também para o espírito. O seu consumo está muito relacionado com a religião e os seus rituais. Supõe-se que foi du-rante o seu cativeiro no Egipto que os hebreus conheceram o uso e o método de fabrico do pão. Quando se deu o Êxodo, levaram consigo massa de pão, mas sem a levedar, e tal facto tornou-se primordial na sua religião. A partir deste episódio, o pão ázimo começou a ser usado na cerimónia da Páscoa e eram denominados «pães de aflição», celebrando a fuga do Egipto.

Sabe-se que os antigos hebreus cultivavam trigo, cevada, centeio e milho painço. Também consumiam cevada torrada, que era moída e co-zida em água. Mas o pão foi sempre a base da sua alimentação. A profis-são de padeiro ganhou destaque, existindo diversos padeiros por toda a Palestina, e em Jerusalém, por exemplo, uma rua destinada ao seu ofício.

CUIDAR DO CORPO

De acordo com a mitologia, teria sido Deméter, a deusa do trigo, quem transmitira aos homens as instruções necessárias para o fabrico do pão. Contudo, sabe-se que os gregos mantinham relações comerciais com os egípcios, graças a quem eles ficaram a saber o que era o fermento e como este tornava o pão um delicioso alimento.

Na Grécia cultivava-se sobretudo cevada, uma vez que os terre-nos não eram propícios ao trigo, que tinham de importar da Sicília, do Egipto, da Trácia e de outros locais no Médio Oriente. Com a farinha de cevada, preparavam a maza, uma espécie de bolacha que fazia parte

A filha e a amigo pão e castigo.

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essencial da sua alimentação quotidiana. O pão de trigo comia-se unica-mente em dias de festa e estava destinado às classes abastadas.

Era habitual os gregos torrarem cereais para adicionarem a vários pratos que confeccionavam. Inicialmente o pão era cozido em casa pelas mulheres ou pelos escravos sobre pedras quentes, dentro de vasos de cerâmica ou no forno.

Só a partir do século v a.C. começaram a surgir padeiros na Grécia, na sua maioria antigos escravos. No século iii a.C. existem referências a um célebre padeiro, de seu nome Thearion, que desenvolveu com bri-lhantismo as artes da panificação e de pastelaria e foi o responsável pela criação de uma cadeia de padarias comerciais, provavelmente a primeira a nível mundial. A sua fama foi tanta e o seu pão tão apreciado, que Platão o menciona como um dos três homens que melhor cuidavam do corpo dos indivíduos.

Ateneu de Náucratis (século ii d.C.), na sua obra Deipnosophistae ou O Banquete dos Sábios, refere a existência de cerca de setenta e duas categorias de pão. Teriam sido os padeiros da Capadócia os primeiros que adicionaram à farinha de trigo um pouco de leite, azeite e sal, obten-do assim um tipo de pão muito suave e delicado. Entre os gregos, o pão branco era o preferido e considerado como o mais fino e de melhor sabor.

ARS PISTORICA

Foi através de escravos gregos que os romanos tomaram conheci-mento do fabrico de pão. Antes, consumiam os cereais cozidos ou assa-dos, a que davam o nome de far, ou uma espécie de papas de farinha co-zida com água, conhecidas por puls ou pulmentum, a que adicionavam queijo fresco, mel, ovos, favas, lentilhas ou legumes. Essas papas eram também usadas para fabricarem um tipo de pão não levedado e cozido em fornos domésticos. Algumas casas dispunham de um forno próprio e o pão era feito pela mãe de família ou pelo cozinheiro da casa. Nas propriedades dos ricos, principalmente no campo, estes tinham ao seu serviço escravos padeiros. Os romanos amassavam a massa para o pão à mão. Depois de levedada e modelada, era colocada numa espécie de prato ou travessa de barro e colocada no forno.

A fio rouba o moleiro e mais dão-lhe pão.

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Com a introdução dos novos conhecimentos sobre panificação por parte dos escravos gregos, a indústria do pão registou um notável desenvol-vimento. O pão tornava-se um verdadeiro alimento-símbolo e um diferen-ciador de classes, segundo os ingredientes usados na sua confecção. O pão de trigo era o pão das classes abastadas e só durante as suas campanhas militares é que os soldados romanos comiam pão não fermentado, devido à facilidade com que poderia ser confeccionado. Estes pães eram cozidos num forno chamado clibanus e tomavam o nome de clibanites ou cliba-nicius. Cornelius Celsus (25 a.C – 50 d.C.), autor da obra De Medicina, declarou que o pão continha mais matéria nutritiva do que qualquer outro alimento. Só por volta do século ii a.C. começaram a surgir as primeiras padarias públicas (pistrim ou pistrinum, a padaria). No reinado de Augus-to existiam 329 padarias em Roma, distribuídas pelos vários bairros da cidade, todas nas mãos de padeiros gregos. Em Roma os padeiros (pistor) tinham tanta importância que estavam organizados em colégios e associa-ções, com direitos reconhecidos e garantidos pelo Estado e até se ergueu um túmulo em homenagem a um dos seus padeiros mais célebres, Vergilius Eurysaces, que ainda hoje existe na cidade. Os baixos-relevos existentes neste monumento funerário revelam todos os episódios da história do pão e da profissão de padeiro, num elogio à ars pistorica, a arte da panificação.

Os romanos usavam habitualmente fermento no pão, pois consi-deravam que o pão fermentado era mais fácil de digerir. Havia várias qualidades de pão, entre elas o panis plebeius, distribuído a baixo preço aos cidadãos. Mas também tinham o furnaceus, que era cozido no for-no; o foccacius, cozido em casa; o clibanicius, cozido no clibanus (forno móvel, de campanha); o mamphula, cozido debaixo das cinzas, feito com os restos da massa usada para uma fornada; o testuatium, cozido numa forma de barro; o panis aquaticus, um tipo de pão cozido que era mer-gulhado, ainda quente, em água, semelhante a uma açorda; ou o panis ostrearius, um tipo de pão específico para comer com ostras. Um dos mais afamados era o pão de Piceno, feito com sumo de uvas. Curiosa-mente, em Aquileia, Itália, foi encontrada uma lamparina na qual estava representado um cesto com uma ânfora de vinho, um pão redondo e um rabanete, com a seguinte legenda: «Pauperis cena: pane vino radic.» («Jantar de pobre: pão, vinho, rabanete.»)

À fome não há pão duro.

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Com a expansão das fronteiras do seu Império, os romanos levaram também os seus conhecimentos sobre o fabrico do pão, influenciando toda a Europa e mudando para sempre a alimentação dos seus povos.

ENTRE DRUIDAS E BOSQUES SAGRADOS

Entre os povos gauleses imperava a aveia como o cereal base da ali-mentação, geralmente consumida sob a forma de papas. O trigo e a ceva-da também eram comuns. No norte da Gália era usado o pão de centeio, bem como pão feito com farinha de milho painço. Os gauleses tinham o costume de guardar os cereais em subterrâneos ou grutas naturais para que lhes não roubassem o trigo ou a cevada do seu sustento. O pão dos gauleses era seco e de pouca consistência, partindo-se ao ser servido. Se-ria comido embebido no molho ou no suco das carnes. Como fermento, os gauleses usavam levedura de cerveja, prática que se manteve durante séculos. As peneiras eram feitas com crina de cavalo. Os druidas gauleses também usavam o pão durante as suas cerimónias religiosas nos bosques sagrados, o que demonstra a sua importância não só alimentícia mas também religiosa.

PÃO PARA TODOS OS GOSTOS

Durante a Idade Média foi enorme a variedade de pães em uso por toda a Europa. No seu Glossarium ad scriptores mediae et infimae lati-nitatis (1678), Charles du Fresne du Cange (1610-1688) menciona uma interminável lista, com base em antigos textos dos séculos xii e xiii. Os tipos de pão existentes tinham diversos ingredientes, adequando-se não só ao consumo diário, mas também distinguindo-se pela sua importância no que diz respeito ao calendário religioso. Nota-se também que variava a qualidade de pão em função das classes ou estratos sociais. Para cada profissão estava destinada uma determinada variedade de pão. Além dis-so, no seio dos mosteiros e comunidades religiosas, a cada monge estava

À gana de comer não há mau pão.

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prescrita uma ração diária de pão, que variava consoante a localidade do mosteiro. Alguns tipos de pão eram ainda usados em trocas comerciais, o panis cambio, ou para pagamento de direitos, como o panis forestae, que se pagava pelo direito de usar a floresta de um determinado proprie-tário; o panis fiscalis, para pagamento de impostos; ou o panis feodalis, pão com que se paga ao senhor da terra. Em termos de esmolas, Du Cange refere o panis caritatis, para esmolar os mais desfavorecidos, ou o panis canibius, para oferecer aos leprosos, geralmente no Dia de Todos--os-Santos. Para perdão dos pecados recorria-se ao panis emendationis. Havia até um tipo de pão destinado ao alimento dos cães. Por fim, um destaque para o panis conjuratus, o pão amaldiçoado que o acusado teria de comer para provar a sua inocência. Esta era uma antiga práti-ca anglo-saxónica, designada corsned. Se ficasse engasgado, isso seria a prova da sua culpa.

PÃO A TODO O VAPOR

Com os avanços tecnológicos promovidos pela Revolução Indus-trial e a introdução de mecanismos movidos a vapor, aumentou exponen-cialmente a produção de pão, o que contribuiu para reduzir os seus cus-tos, tornando mais acessível esse bem essencial à alimentação humana. Estas transformações verificaram-se em todos os sectores do processo de fabrico de pão, desde as sementeiras às colheitas, desde a moagem à co-zedura. Vários aparelhos mecânicos foram desenvolvidos para facilitar a amassadura, os fornos tornaram-se maiores, permitindo várias fornadas; a moagem dos cereais sofreu transformações importantes, possibilitan-do uma separação mais criteriosa das farinhas e dos farelos, obten do-se farinhas de elevada qualidade. Outras importantes descobertas estão re-lacionadas com a levedura usada no pão. Já em 1680, o holandês Anton

A mancebo mau com pão e com pau.

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van Leeuvenhoek (1632-1723) observou a levedura de cerveja ao mi-croscópio. Mais tarde, Antoine Lavoisier (1743-1794) estudou o fenó-meno da fermentação. Mas seria Louis Pasteur (1822-1895), em 1860, a conseguir identificar a levedura Sacchamoryces cerevisae como elemento fulcral no processo de fermentação e a interpretar a sua acção. Todos estes avanços científicos contribuíram, à sua maneira, para um notável desenvolvimento da indústria da panificação.

A AVENTURA DO PÃO EM TERRAS LUSAS

Foram achadas várias sementes de cereais em Portugal, que remon-tam à Idade do Bronze – trigo, cevada, milho miúdo e centeio –, o que atesta a antiguidade do seu uso entre os habitantes da Península Ibérica. Estas gramíneas seriam utilizadas na alimentação através da torrefacção dos seus grãos e posterior uso da farinha em papas ou numa espécie de bolacha cozida, forma primitiva de um género de pão. Mas, além destes cereais frumentáceos, também se recorria à farinha de favas ou bolotas para suprir as necessidades alimentícias. Estrabão (64 a.C. – 24 d.C.), no seu tratado Geographia, quando escreve sobre o povo da Lusitânia, refere uma espécie de pão, feito a partir de farinha de bolotas de carva-lho, moídas depois de secas ou assadas, que se conservava durante muito tempo e era o alimento principal dos lusitanos. Embora não seja mencio-nado o uso de fermento no fabrico, supõe-se que a levedura de cerveja o tornasse mais esponjoso e agradável.

Com a ocupação da Península Ibérica pelos romanos, estes dão con-tinuidade às culturas cerealíferas existentes e intensificam a sua produ-ção. No território que hoje define as fronteiras de Portugal verificou-se uma predominância do milho miúdo ou painço nas regiões do norte e da cevada ou trigo nas regiões do sul. Estas culturas acabaram, naturalmen-te, por condicionar a alimentação dos povos dessas zonas e é exemplo disso a boroa, predominante na região norte, que se faz até hoje, substi-tuindo apenas o milho de então pelo milho maiz.

Com a chegada dos muçulmanos os campos continuaram a ser cul-tivados, principalmente no território a sul, com trigo e cevada. Supõe-se que tenham também introduzido o cultivo de uma outra variedade de trigo, o trigo-sarraceno (Fagopyrum esculentum) ou trigo mourisco. Da

À míngua de pão boas são as tortas.

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sua alimentação fazia parte o pão, geralmente utilizado na confecção de papas. Da sua herança ficou-nos a açorda, do árabe ath-thorda ou ath--thurdâ, e as migas alentejanas.

Durante o período da reconquista, os campos foram fortemente cultivados de forma a fixar as populações e impedir um retrocesso nas fronteiras. Generalizou-se então o uso do pão de trigo, mas várias re-giões recorreram ao milho miúdo ou ao centeio, ou a uma mistura de cereais, para garantirem o sustento. Com as Descobertas, o milho (Zea mays L.) entrou em Portugal e revolucionou por completo a agricultura, tornando-se fundamental para a alimentação das populações nas regiões a norte do Mondego. O pão de trigo era, no reinado de D. Afonso Henri-ques (1139-1185), o pão das classes abastadas, existindo para os menos favorecidos o pão meado ou terçado, feito respectivamente com metade ou um terço de trigo, misturado com milho miúdo, centeio ou cevada. No reinado de D. Afonso II, o Gordo (1211-1223), surgem as funções de saquiteiro, responsável pelo abastecimento de pão à mesa real. Com o saquiteiro, apareceram as saquitarias, local onde se guardava o pão destinado ao consumo do rei.

Na corte do século xiii aparecem também as regueifeiras, mulhe-res que amassavam e coziam o pão para a casa real, tal como esclarece Viterbo no seu Elucidário. A alimentação medieval portuguesa era feita à base de cereais, carne, peixe e vinho. Na Crónica sobre o rei D. João I (1357-1433), Fernão Lopes conta como se alimentaram os portugueses durante o cerco à cidade de Lisboa, em 1385. De acordo com o cronista, na cidade não se achava nenhum pão para comer, pelo que muitos se viram obrigados a sustentar-se com pão de bagaço de azeitonas, queijos das malvas e raízes das ervas.

O pão era um alimento essencial e estava presente em todas as re-feições, desde as mesas mais ricas às mais pobres. Do trigo obtinha-se uma farinha bastante peneirada e fina, chamada de pó branco, usada especialmente na confecção de pão para o rei e seu séquito. Para os pobres eram destinadas as farinhas mais ásperas e os farelos, que pro-duziam pães mais escuros e de sabor acentuado. A partir do século xiv registaram-se com frequência períodos de escassez de cereais que obri-gava os monarcas a recorrer à importação do estrangeiro. Durante estes

A moça a quem bem sabe o pão, perdido é o alho que lhe dão.

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tempos de penúria, em muitas localidades, as populações mais carentes socorriam-se da farinha de fava, castanha ou bolota.

Na maior parte dos casos, o pão era fabricado em casa para consu-mo, assim existissem fornos, mas de outras vezes era cozido em fornos comunitários, existentes em algumas aldeias portuguesas. Nos grandes aglomerados urbanos já existiam mulheres que se dedicavam ao comér-cio de pão, cozendo-o e vendendo-o em tendas próprias ou alardeando a sua mercadoria pelas ruas das cidades.

Na Idade Média, além de principal alimento, o pão também era usado como prato: grossas fatias de pão serviam para assentar carne ou peixe, também para conter os sucos de tais iguarias. Esses restos de pão eram dados aos mendigos ou aos cães, principalmente após os banquetes realizados em casas abastadas. Já no reinado de D. Manuel (1495-1521) era comum um pão redondo, conhecido por monda, que se vendia por bom preço e era acessível a todos. Na Farsa dos Almocreves, Gil Vicente menciona também o pão de calo, um tipo de pão muito amassado, ho-mogéneo e denso, geralmente consumido pelas classes mais pobres.

Durante o século xvi, o fabrico e comércio de pão estava integral-mente na mão de mulheres, como se evidencia no Summario Sobre a Cidade de Lisboa, escrito em 1551 por Cristóvão Rodrigues de Oliveira: existiam 170 forneiras e 782 padeiras. Curiosamente, são também referi-das 23 cuscuzeiras, que fabricavam os cuscuz a partir da farinha de trigo, provável herança alimentar da ocupação árabe, e com bastante procura como alimento nutritivo. Também João Brandão de Buarcos, no livro

A pão de quinze dias fome de três semanas.

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Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552, indica que existiam cerca de 1000 mulheres que viviam continuadamente da venda do pão cozido e de «padejar», ou seja, de fabricar pão. No Dictionarium ex Lusitanico in Latinum Sermonem (1562), da autoria de Jerónimo Cardoso (1508--1569), considerado o primeiro dicionarista português, são referidos vá-rios tipos de pão consumidos em Portugal: a pada, o pão de trigo, de cevada, de centeio, de milho, de arroz, de rala, de farelo, pão preto, pão alvo, pão bolorento, pão-de-ló. Como curiosidade, refira-se um alvará da Câmara de Lisboa, de 13 de Março de 1513, em que era estipulado o vencimento anual de cada vereador, concedendo-se-lhe, além de vinte mil réis em dinheiro, dez moios de pão meiado, à custa das rendas da cidade.

Em Descripção do Reino de Portugal (1610), Duarte Nunes de Leão faz um retrato da qualidade do pão consumido em Portugal, descreven-do-o como o mais saboroso da Europa. Na Relaçam em que se trata e faz hua breve descrição dos arredores mais chegados à Cidade de Lisboa, curioso opúsculo publicado em Lisboa por António Álvares em 1625 e escrito por um anónimo, são descritos vários ofícios existentes na cida-de respeitantes ao comércio de pão e de farinhas. No Terreiro do Paço se descarregavam, de ordinário, bastantes navios de trigo, «que parece cousa imensa», que depois seria vendido no Terreiro do Trigo pelas mãos das medideiras, as vendedoras deste cereal, umas tantas mil fanegas ou moios. O pão, já cozido e formoso, era vendido em várias cabanas na Ribeira por mulheres. O número de padeiras em exercício na cidade de Lisboa, com lugares estipulados de venda, poucos anos antes, não tinha conto, segundo Nicolau de Oliveira, no Livro das Grandezas de Lisboa (1620), uma vez que existiam muitas na praça pública. De acordo com o autor, existiam então na cidade 360 fornos de cozer pão.

Durante os reinados de D. João VI (1767-1826) e de D. Pedro IV (1798-1834) os monarcas preocuparam-se com a qualidade do pão co-mercializado, publicando vários editais que regulavam a venda de pão, incidindo a legislação sobre o peso correcto e as farinhas que o compu-nham.

Através de uma postura da Câmara Municipal de Lisboa, de 11 de Setembro de 1851, ficamos a saber onde se vendia o pão em Lisboa. O pão deveria ser exposto à venda nas padarias, em lojas de mercearia,

A pão duro dente agudo.

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tendas, tabernas, casas de pasto, capelistas, «ou quaesquer outras casas ou lojas, pelas ruas em cavalgaduras, ás costas, ou de outra qualquer fórma, na Praça da Figueira, e mais praças ou mercados, feiras e outros sitios da Cidade e Termo, e finalmente pelas casas particulares, e estabe-lecimentos em geral». Por volta de 1867, sabe-se que existiam cerca de 394 padarias a funcionar em Lisboa, sendo 307 propriedade de portu-gueses e estando 87 na posse de estrangeiros.

Em finais do século xix, Amando Seabra, especialista da Estação Chimico-Agrícola de Lisboa, publica um estudo sobre O Trigo e os ou-tros cereais panificaveis, onde ficamos a conhecer novos tipos de pão que então à venda na cidade de Lisboa: pão saloio; pão de família; pão inglês; pão de luxo; pão de munição; pão de trigo caseiro; pão de trigo cascalvo; pão de melícias, pão de trigo rijo sevilhano; pão de trigo anafil; pão de toda a farinha.

Com o advento das inovações tecnológicas, a indústria da panifi-cação conheceu um forte desenvolvimento. É certo que vários períodos de escassez de cereais continuaram a ocorrer em Portugal, envolvendo distúrbios populares, e muitas políticas foram impostas tendo em vista a manutenção de cotas sustentáveis para alimentar a população portu-guesa. Disso são exemplo as políticas sobre a produção cerealífera im-postas por Salazar. Apesar de tudo, a criatividade, o engenho e a arte dos portugueses acabaram por dar origem a muitos tipos de pão, cheios de tradição, história e sabor. A aventura do pão, graças ao trabalho de milhares de homens e mulheres, pode agora ser apreciada em toda a sua plenitude, em cada mesa portuguesa, em que o pão e o vinho nunca fal-tam, com certeza.

A pouco pão tomar primeiro.

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