paulo leminski - anseios crípticos 2 (rev)

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  • 8/13/2019 Paulo Leminski - Anseios Crpticos 2 (rev)

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    Paulo Leminski

    Anseios Crpticos2

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    Copyright 2001 Paulo Leminsky

    Todos os direitos desta edio reservados :

    CRIAR EDIES LTDA.

    Rua Jos de Mello Braga Jr., 279

    81.540-280CuritibaPR

    Fone/Fax: (41) 362 0468 / 362 6756

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    Capa: Nexo Design

    Programao Visual: Criar Edies

    Editorao: Jefferson Schnaider

    Reviso: Iria Zanoni Gomes

    Atendemos pelo reembolso postal

    PROIBIDA A REPRODUO TOTAL OU PARCIAL DESTA OBRA,ATRAVS

    DE QUALQUER MEIO,SEM AUTORIZAO DO EDITOR.

    Impresso no Brasil

    Printedin Brazil

    2001

    hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm//ggrroouupp//ddiiggiittaallssoouurrccee

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    OORREELLHHAASSDDOOLLIIVVRROO

    Em 1986, a convite de Criar Edies, Paulo Leminski

    organizou, em dois volumes, textos nos quais deixara fluir seu

    talento de polemista-ensasta-demolidor-criador: seus anseios. O

    resultado foram duas pastas abarrotadas com recortes de jornais,

    cpias de posfcios e prefcios, e textos datilografados. O primeiro

    volumeAnseios Crpticos 1 / anseios tericos foi editado em

    1986. O segundo, os anseios prticos, deveria sair no ano

    seguinte.

    No entanto, s hoje chega aos leitores. Por um lado, osazares dos planos econmicos colocaram a Criar numa

    quarentena da qual s retornou em outubro de 2000. Por outro,

    em 1989, Paulo resolveu polemizar em outras dimenses. No

    bastasse, os originais sumiram, resistindo a trs mudanas e, 15

    anos depois, se materializaram no fundo de uma caixa na qual

    deveriam estar apenas exemplares de antigos suplementos

    literrios.

    So estes os anseios/ensaios que publicamos agora.

    Diferentemente dos que esto no primeiro volume, no qual

    Leminski dizia ter reunido as noes tericas bsicas a partir

    das quais pensava, estes, os prticos, esto voltados para a

    anlise de obras e de autores.

    Reunidos pela primeira vez em livro e na ordem queLeminski estabeleceu, discutem obras de Brecht, Rimbaud,

    Haroldo de Campos, Sartre, Guimares Rosa, Euclides da Cunha,

    Dante, Whitmann, Fante, Jarry, Ferlinghetti, John Lennon,

    Mishima, Becket, Joyce, Petrnio.

    Alguns so inditos, outros so inditos em livro, outros

    foram publicados em jornais e revistas de circulao nacional

    (Folha de S.Paulo, Leia Livros, Veja), e outros saram em jornais de

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    tiragem restrita ao Paran (Gazeta do Povo, Correio de Notcias).

    Em todos, a marca que fez de Leminski um polemista de talento,

    colocando em questo as obviedades literrias do momento, do

    que estamos todos muito carentes nos dias de hoje, quando opensamento nico nos provoca infindveis bocejos de tdio.

    Outras obras da CRIAR EDIES:

    Crtica da Razo Tupiniquim, de Roberto Gomes

    Mal Comportadas Lnguas, de Srio Possenti

    Riachuelo, 266, de Carlos Dala Stella

    Alma de Bicho, de Roberto Gomes

    Nuvem Feliz, de Alice Ruiz

    Paulo Leminski Filho nasceu em

    Curitiba, em 24 de agosto de 1944. O

    pai descendia de poloneses e, a me,

    urea Pereira Mendes, de portugueses,

    ndios e negros. Aos 8 anos, fez oprimeiro poema. Dos 12 aos 14 anos

    permaneceu como oblato no Mosteiro

    de So Bento/SP. Aos vinte anos j

    participa de eventos relacionados

    literatura. Iniciou duas faculdades direito e letras ,

    abandonando ambas. Foi professor de cursinho, jornalista,

    redator de publicidade, tradutor, compositor, letrista. Traduziu,

    entre outros, Um atrapalho no trabalho, de John Lennon, Sol e ao,

    de Mishima, e Satyricon, de Petronius. Foi parceiro de Moraes

    Moreira, Itamar Assumpo, Arnaldo Antunes, Guilherme Arantes

    e Ivo Rodrigues. Como compositor, teve canes gravadas por

    Caetano Veloso e Ney Matogrosso, entre outros. Apresentou o

    polmico Jornal de Vanguarda, na TV Bandeirantes, em 1988.

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    Catatau (prosa experimental) foi publicado em 1975. Seus

    poemas esto em vrios livros: Quarenta cliques, 1979, No fosse

    isso e era menos/No fosse tanto e era quase, 1980, Polonaises,

    1981, Caprichos e relaxos, 1983, Agora que so elas, 1984,Distrados venceremos, 1987, Guerra dentro da gente, 1988.

    Faleceu em 7 de junho de 1989, aos 44 anos.

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    sumriom, de memria

    latim com gosto de vinho tinto

    um texto bastardo

    taiyo to tetsu: entre o gesto e o texto

    lennon rindo

    ferlinguete-se!

    o uivo e o silncio

    jarry, supermoderno

    folhas de relva forever: a revelao permanente

    mxico

    sertes anti-euclidianos

    trans/paralelas

    significado do smbolo

    o veneno das revistas da inveno

    grande ser, to veredas

    e o vento levou a divina comdia

    poeta roqueiro

    aventuras do ser no nada: quem tem nusea de Sartre?

    tmidos e recatados

    traduo dos ventos

    prosa estelar

    bonsai: niponizao e miniaturizao da poesia brasileira

    histria mal contada

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    m, de memria.

    Os livros sabem de cor

    milhares de poemas.

    Que memria!

    Lembrar, assim, vale a pena.

    Vale a pena o desperdcio,

    Ulisses voltou de Tria,

    assim como Dante disse,

    o cu no vale uma histria.

    Um dia, o diabo veio

    seduzir um doutor Fausto.

    Byron era verdadeiro.

    Fernando, pessoa, era falso.

    Mallarm era to plido,

    mais parecia uma pgina.

    Rimbaud se mandou pra frica,

    Hemingway de miragens.

    Os livros sabem de tudo.

    J sabem deste dilema.

    S no sabem que, no fundo,ler no passa de uma lenda.

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    latim com gostode vinho tinto

    1

    as veias abertas da roma antiga

    De C. Petrnio no h muito que dizer. Dormia o dia

    inteiro e dedicava a noite para seus trabalhos e prazeres. Muitos

    ficam famosos por seus empenhos (industria). Ele era famoso porsua preguia (ignavia). No era considerado um homem que corre

    atrs do proveito, mas dos prazeres sutis (erudito luxu).Tudo que

    dizia e fazia era descontrado e sem esforo, e sua simplicidade

    cativava como uma gentileza. Mas soube ser enrgico quando no

    servio pblico, primeiro como procnsul na sia, depois como

    cnsul. A seguir, retirou-se para a vida privada e seus vcios

    favoritos e, como tal, foi aceito no crculo mais ntimo do

    imperador Nero, onde reinou como um verdadeiro rbitro da

    elegncia (el egantiae arbiter). Nero nada fazia sem antes consultar

    seu sofisticado corteso. Isso suscitou a inveja de Tigelino, outro

    corteso, que contra Petrnio arma uma intriga, envolvendo seu

    nome com conspiradores. Sabendo-se perdido, antes da ordem do

    prncipe, Petrnio decide suicidar-se, abrindo as veias do brao.

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    Um mdico grego abria-as, o sangue corria, e ele as fechava

    depois. Voltava a abri-las, e as fechava, assim muitas vezes.

    Enquanto isso, impvido, Petrnio no se entregava a conversas

    sobre a imortalidade da alma. Na realidade, fazia versos lbricos efteis. E assim fazendo morreu, com a maior naturalidade. Nunca

    lisonjeou os poderosos, nem o prprio Nero. Ao contrrio.

    Escreveu uma narrativa onde descreve os excessos do imperador,

    atribuindo-os a jovens depravados. E ao morrer enviou-lhe a

    narrativa. Assim Tcito, o maior dos historiadores romanos,

    descreveu, em seus Anais, a vida e o fim de Petrnio, e a gneses

    do Satyricon.

    2

    Poucos livros tm biografia to acidentada como este

    Satyricon, o primeiro dos romances, a obra mais

    escandalosamente original da literatura latina.

    Oficialmente, consta como sendo o romance escrito porCaius Petronius dito Arbiter, corteso e ntimo do imperador Nero,

    que este condenou ao suicdio, no ano de 65, por se achar

    envolvido na conspirao da famlia dos Pises contra o louco

    imperador poeta.

    Mas na ficha do Satyricon, tudo so conjecturas e

    hipteses que j produziram rios de tinta entre os sbios, do

    Renascimento para c: o livro, alis, foi um dos primeiros textos

    impressos; sua primeira edio, em Milo, de 1477.

    O texto que hoje temos , certamente, parte de um texto

    maior, que se perdeu nos azares da Histria, talvez um quinto

    apenas do original (fragmentos dos captulos XV e XVI). Mesmo

    assim, esse texto se sustenta como uma obra inteira.

    A autoria tambm no segura.

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    Toda a argumentao sobre a autoria se baseia num

    clebre trecho do historiador romano Tcito, que viveu por volta de

    120 da nossa era, cinqenta e cinco anos depois da morte de

    Caius Petronius.Nele, Tcito fala do corteso voluptuoso que, condenado

    ao suicdio por Nero, escreve ao morrer uma longa stira para

    zombar do ridculo tirano.

    Certas evidncias, porm, laboram contra a identificao

    do Satyricon, que temos hoje, com essa stira do corteso de Nero.

    Primeiro, porque no verossmil que um homem pouco

    antes de morrer tenha foras para compor uma obra que, no

    original, deveria ter algo como duas mil pginas.

    Depois, h indcios de linguagem e estilo que acusam,

    me parece, a presena de giros e palavras caractersticos de

    pocas posteriores ao reinado de Nero. A oralidade e o registro

    escrito do latim vulgar, por exemplo, o sermo humilis, parecem ter

    sido introduzidos pela pregao cristPor fim, h o estranho silncio dos escritores romanos

    posteriores (Marcial, Suetnio, Plnio, Juvenal, Quintiliano) sobre

    uma obra que deveria ter causado grande impacto na poca em

    que surgiu.

    Os primeiros escritores latinos que mencionam o

    Satyricon, entre eles, So Jernimo, j so do sculo III da nossa

    era.

    Alguns estudiosos chegaram mesmo a atribuir ao

    Satyricon uma data muito mais tardia. Um erudito mais precavido

    atribuiu a obra a um bispo de Bolonha do sculo V!

    Nem sequer se sabe ao certo se o nome original da obra

    era mesmo Satyricon.

    Em meio a todas essas brumas de dvidas, s uma

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    certeza permaneceu unnime. a obra mais original da literatura

    latina. Aquela que traz mais fundo a marca da personalidade de

    um autor.

    Coisas assim a gente costuma chamar, hoje, de obras-primas.

    3

    No adianta. A literatura latina plido reflexo da grega,

    com a qual mantm uma relao espetacular, de original para

    espelho. Virglio j est todo em Homero e Tecrito. Horcio

    Alceu, Safo e Pndaro. Ccero Demstenes. Ovdio uns

    alexandrinos. Tcito e Tucdides. Todo escritor romano parece

    algum grego.

    Claro. Em literatura, a forma que social. E o

    elemento material transmissvel, a concretude do processo

    criativo. As formas e que so o material herdvel. E da literatura

    grega a latina recebeu todas as suas formas. Seus designs detexto. Seus programas. Seu software morfolgico. Suas

    configuraes desejveis. Suas Gestalts significativas.

    Nesse quadro de dependncia semitica, alguns

    momentos de originalidade romana: o teatrlogo Plauto, o poeta

    Catulo, o satrico Marcial, o elegaco Proprcio, quem sabe.

    Isso tudo, porm, talvez, no tenha muita importncia.

    Em arte, o conceito de originalidade muito recente,

    tendo surgido com a Revoluo Industrial e o romantismo, que a

    expressa.

    A maior parte do que chamamos obras de arte so

    aproximaes a um modelo considerado padro de performance: a

    humanidade clssica, um mundo romntico indesejvel,

    porque ingovernvel.

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    A felicidade do escritor romano era poder reproduzir, em

    latim, as proezas e feitos de algum escritor grego do passado, que

    ele tivesse tomado por paradigma.

    Nesse sentido, a literatura romana clssica porexcelncia.

    Para ns, homens do sculo XX, esse mundo reflexo

    lembra o folclore, onde a tradio tudo e a insurreio do

    arbitrrio do talento individual vista e tratada como tal, um

    ligeiro desequilbrio que o peso da inrcia logo tratar de

    reconduzir aos canais competentes da boa e verdadeira forma,

    aceitvel e reconhecvel por todos.

    Mas isso so complicaes modernas. Os romanos no

    sofriam com isso. Seu universo verbal e literrio era bilnge,

    grego e latim. E era na Grcia, dominada militarmente, que os

    jovens romanos iam completar sua educao, como, hoje, vamos

    fazer o mesmo na Europa ou nos Estados Unidos.

    4

    roma romance

    Pelo menos no Ocidente (a China outra histria), o

    romance, enquanto forma, parece ter nascido das variaes

    retricas escolares em torno de fatos histricos, prtica habitual

    no ensino da oratria no mundo greco-romano.

    Ironia: a histria (a fico literria) nasce da

    Historiografia, o discurso que pretende ser o relato/espelho fiel da

    Histria.

    Nesse caso, d pra dizer que a mentiranasceu da ver-

    dade, da qual a mentira no passaria de uma verso

    romanceada.Depois de Tucdides, seco, racional, cientfico, a

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    historiografia grega comea a ser influenciada pela linguagem

    altamente cultivada das escolas de retrica, e vai virar alguma

    coisa a meio caminho entre a cincia e a arte, entre a verdade dos

    fatos e as belezas da fantasia, a tal ponto que o romanoQuintiliano pde dizer que os historiadores gregos tomavam

    tantas liberdades quanto os poetas.

    Neste territrio furta-cor, nesta twilight zone, entre a

    Histria e a histria, nasceu o romance.

    A saga sobre-humana de Alexandre Magno, por

    exemplo, produziu toda uma linhagem de histrias meio-reais,

    meio-fantsticas, hbridos centauros, sereias, esfinges, das quais,

    s nos chegaram notcias.

    Mas o precursor grego de Petrnio teriam sido as

    Milsias, ficciones ertico-pornogrficas, ambientadas na cidade de

    Mileto e atribudas a um certo Aristides de Mileto (sculo II a.C).

    Quem no gosta de sacanagem? As Milsias tiveram

    grande irradiao no mundo mediterrneo, e chegaram a ser aleitura predileta dos soldados romanos. Em Roma, quase um

    sculo antes do Satyricon, foram traduzidas para o latim pelo

    historiador e orador Lucius Cornelius Sisenna, ao que tudo indica,

    o precursor imediato de Petrnio.

    Alm das Milsias, este texto romano parece dever a

    outra vertente helnica, de maior complexidade textual, a

    chamada stira menipia, tipo de texto que alternava partes em

    prosa com partes em poesia, criando uma espcie de dilogo,

    intratextual, entre dois discursos de natureza, fins e efeitos

    distintos, o chamado prosimetrum, cuja inveno os antigos

    atribuam ao filsofo Menipo de Gandara, que viveu por volta do

    sculo III a.C.

    Uma das caractersticas da menipia era o monlogo,

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    muito freqente no Satyricon.

    Mas nada disso afeta a originalidade e a primazia do

    romance de Caius Petronius: at segunda ordem, o Satyricon a

    primeira obra da literatura ocidental que podemos chamarpropriamente de romance. Dele descendem todos, do Decameron

    de Bocaccio picaresca espanhola do barroco, do romance ingls

    do sculo XVIII a Balzac, de Flaubert a Joyce.

    H, portanto, uma espcie de justia etmolgica no fato

    de o vocbulo romancetrazer dentro de si o nome de Roma.

    Como se sabe, a palavra romance, vem do advrbio

    latino medieval romanice, isto , em romntico, em lngua vulgar,

    palavra cunhada na Idade Mdia quando as narrativas de fico

    eram escritas em lngua vulgar, em contraste com as obras ditas

    srias, escritas em latim.

    Roma, romance. Nada mais justo. Foi com o Satyricon

    que o homem ocidental comeou a apanhar a vida atravs dessa

    forma muito singular que, s no sculo XIX, se transformou numaespcie de O Maior de Todos os Gneros, a epopia burguesa da

    iniciativa privada e da vida particular.

    Poucos livros tiveram to prspera descendncia.

    5

    baixo latim, baixo-ventre: o cdigo dionisacoParece haver algum mistrio no fato de, do Satyricon, s

    nos ter chegado, essencialmente, o Banquete de Trimalcio,

    fragmentos dos captulos XV e XVI da obra original.

    O Satyricon, para ns, um texto onde, sobretudo, se

    come. E como se comia naquela Roma Imperial! Comia-se tudo,

    animais da terra, aves, peixes, salsichas, plantas, frutas, umapetite universal, absoluto, at o limite da fome. Bebia-se vinho

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    em quantidades inverossmeis.

    E Roma, o imperialismo romano, devorando o mundo

    mediterrneo, o trigo da Siclia e do Egito, os figos da frica, o mel

    da Grcia, a pimenta do Oriente.A devorao do mundo, a elefantase do desejo e da

    gula.

    O Satyricon fala a linguagem do baixo-ventre, sob o

    signo da orgia, da bacanal, da embriaguez, de Dionsio, da

    confuso carnavalesca de todos os apetites.

    Este cdigo devoratrio do Satyricon encontra sua

    contrapartida numa espcie de complemento excretrio: o

    Satyricon todo percorrido por aluses ao ato de cagar, vomitar e

    mijar. Trimalcio chega ao ponto de comentar suas dificuldades de

    evacuar diante de seus convivas que devoram um javali.

    Comer, cagar: o Satyricon come e caga. Como todo ser

    vivo.

    6

    menipia, picaresca, carnaval

    Quem nunca leu Petrnio no conhece as delcias do

    latim, o sumo, o suco, o tutano, o perfume desse latim gil, vivo,

    vulgar, malandro, espertssimo, nico.

    O latim que aprendemos nas escolas (quando havia

    latim) era aquela coisa pesada, retrica, altamente artificial, dos

    chamados grandes clssicos, Ccero, Virglio, Csar, Ovdio,

    Horrio, Tito Lvio.

    Mal conseguimos imaginar a milionria riqueza verbal

    da cultura greco-latina, baseada na retrica, na tradio escolar

    da oratria, meticulosa acumulao de saberes verbais, quecomea no sculo V antes de Cristo e s termina com a queda do

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    Imprio Romano, no sculo V depois de Cristo. Mil anos de

    repertrio!

    At as vanguardas do incio do sculo XX, pouca coisa

    inventamos de novo em relao civilizao greco-latina: recursosde estilo, figuras de linguagem, a distino entre poesia e prosa,

    gneros literrios, formas de dizer, moldes do sentir e do pensar,

    esquemas mentais, tudo devemos a esses gigantes em cujos

    ombros estamos trepados.

    Essa cultura, claro, era altamente aristocrtica.

    Uma aristocracia cria, naturalmente, uma linguagem

    aristocrtica que a expresse enquanto grupo social.

    No caso de Roma, do que nos chegou, pouqussima

    coisa tem sabor popular, quase nada sabemos de como se falava

    nas ruas, nos mercados, nas tabernas, nos lupanares, nas

    oficinas, nas esquinas, no interior das casas. E desse latim que

    descendem o italiano, o francs, o espanhol, o portugus...

    Traos de latim vivo, vulgo latim vulgar: o comedigrafoPlauto, o lrico Catulo, cartas de Ccero, o satrico e epigramtico

    Marcial. E s.

    Nesse quadro, Petrnio discrepa.

    Nas falas dos personagens do fabuloso banquete de

    Trimalcio, vemos desfilar um latim vivo, direto, o raro do reles,

    enfim, diante de ns.

    Expresses corriqueiras. Torneios familiares. Locues

    proverbiais. Frases feitas. A lngua viva, na boca de pessoas vivas.

    Por isso mesmo, o latim de Petrnio, apesar da sua

    preciso, particularmente difcil, um latim concentrado, onde

    cada palavra remete a uma instituio, a um hbito da poca, a

    um gesto preciso.

    Pragas. Invocaes religiosas. Frmulas mgicas. O

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    Satyricon rico de raridades.

    Nenhuma obra da literatura romana que nos chegou

    apresenta nmero to elevado daquilo que a filosofia chama apax

    legomena, palavras que s aparecem uma vez, nesse autor, numadada obra.

    Em nenhuma outra obra da literatura latina,

    encontramos palavras como baliscus, matus, carica, embasiceuta,

    scordalia, mixcix, bucolesias, caldicerebrius, laecasin e centenas de

    outras que se perderam no tempo, como plumas ao vento.

    O texto de Petrnio, refletindo uma cultura bilnge,

    grega e latina, est eivado de palavras e expresses gregas, que

    deviam ser correntes no meio em que ele vivia.

    Tanto que os nomes dos personagens do Satyricon so

    todos gregos, com subsentidos significativos para seu pblico.

    Ascilto, em grego, quer dizer infatigvel. Eumolpo, canta bem.

    Giton quer dizer semelhante. Encolpo d a idia de

    passividade. Outros personagens se chamam Psyche,Hermeros, Echion, Agamenon, Phileros, todos nomes

    helnicos, que funcionam como mscaras verbais no carnavalesco

    e carnavalizado romance de Petrnio.

    O nome de Trimalcio (Nero?) um composto burlesco

    greco-semita: tri, trs vezes grande, e malkion, em semita, rei, o

    imensamente ridculo trs vezes rei.

    No caso de Petrnio, esse latim, salpicado de grego,

    estava a servio de um talento (ou diremos gnio?) narrativo, de

    que mal podemos fazer idia, dada a natureza fragmentria do

    Satyricon.

    Seja como for, ainda no foi superada a capacidade de

    Petrnio em marcar o carter, e at a profisso e a origem social,

    de um personagem pela linguagem que usa. O Satyricon uma

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    galeria de tipos, o liberto arrivista e cpido, o mestre de retrica,

    pedante e livresco, o eunuco bbado, o ridculo nouveau riche, o

    cnico, o amoral aproveitador dos esbanjamentos de uma

    sociedade absurdamente desigual, um carnaval de mscaras efantasias, uma polifonia.

    Acrescenta riqueza do texto o fato de o Satyricon

    conter em seu fluxo de prosa inmeros trechos em poesia,

    metrificados: o que se chama de menipia, uma forma mista,

    compsita, hbrida, coincidentia oppositorum.

    No Satyricon, entre outras coisas, uma stira ao ensino

    retrico, a prosa plana, vulgar, popular, coloquial. Os poemas

    so inflados de uma retrica beirando o burlesco e o ridculo.

    Ao tradutor que quer devolver um vivo aos vivos, uma

    tarefa ingrata.

    Entre trair Petrnio e trair os vivos, escolhi trair os dois,

    nico modo de no trair ningum.

    A conciso extrema do latim obriga a alongar certasfrases para que no se tornem incompreensveis ao leitor atual.

    Impossvel entender o Satyricon sem ter alguma noo

    das instituies da Roma escravagista, to distintas das nossas.

    Gestos, hbitos, significados, tudo nos to estranho

    quanto num romance de fico cientfica.

    O que nos aproxima de Petrnio, e nos une, a

    presena forte de uma condio humana, uma humanidade feita

    de grandezas e baixezas, de esplendores e misrias, coisa, alis,

    que o romance vem fazendo desde que o Satyricon nasceu, e deu o

    primeiro exemplo.

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    Um texto bastardo

    1

    Joyce o maior prosador do sculo XX.

    Semelhante afirmao est sujeita a dois tipos de

    contestao, extremos. No bem assim. Maior, em que sentido?

    Afinal, h Proust. H Kafka.

    Thomas Mann.

    Faulkner!

    No terreno ideolgico, as objees se multiplicam pela

    infinita imbecilidade que caracteriza o pensamento ideolgico.

    Solido aristocrtica.Insensibilidade aos problemas reais do seu povo.

    Elitismo hermtico.

    Intelectualismo pedante e cosmopolita.

    Do outro lado, cada vez mais abundantes os que

    objetam.

    No o maior prosador do sculo XX. o maior

    prosador que jamais houve.

    Maior que Cervantes? E Quevedo?

    E Balzac?

    E Stendhal? E Flaubert?

    E Dostoievski?! E Tolstoi?!

    Em que sentido, nesse time de gigantes, Joyce vem a ser

    o maior?Primeiro, claro, pelo insupervel domnio dos poderes de

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    som e sentido da lngua em que escreve: a mquina material com

    que se expressa a alma de James Joyce s tem paralelo nos

    poderes sinfnicos de um Beethoven, de um Wagner, de um

    Stravinski (e esse domnio sobre a arte um domnio sobre avida).

    Depois, pela coerncia arquitetnica nica que

    conseguiu imprimir ao conjunto de sua obra o autor de

    Dublinenses (1906), Retrato do Artista Quando Jovem (1914),

    Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939). Os dois primeiros livros,

    um, uma coletnea de contos, e o outro um romance de formao

    (um Bildungsroman, como dizem os alemes, grandes cultores do

    gnero, que comea, no sculo V, com as Confisses, de S.

    Agostinho), os Dublinenses e o Retrato ainda cabem dentro da

    esttica textual do sculo XIX.

    Ulysses, porm, puro sculo XX, o sculo das

    megalpoles, das massas, do comunismo, do fascismo, o sculo do

    cinema, do rdio, da psicanlise, da bomba atmica, que encerroua guerra, que comeou no ano em que foi publicado o Wake.

    Mas o Ulysses ainda , apesar de tantas inovaes, um

    romance, mesmo que seja o romance para acabar com todos os

    romances, do dito clebre.

    O Wakej um texto para o sculo XXI, prosa, poesia?,

    o qu?

    Ulysses foi difcil ( cada vez menos).

    O Wake, cpsula do tempo, ilegvel (por enquanto).

    A irradiao da obra de Joyce atinge uma rea imensa

    na prosa defico do sculo XX. Suas conquistas tcnicas, como o

    monlogo interior, no Ulysses, fazem, hoje, parte do repertrio

    comum, do parque de recursos de qualquer ficcionista que preze

    seu ofcio. Hoje em dia, o monlogo interior j foi incorporado at

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    pela fico dita comercial, de consumo de massas: em best-seller

    mundial, James Clavell tira um belo partido desse recurso,

    outrora, de vanguarda.

    Ulysses /Joyce influncia determinante na prosacriativa deste sculo. E a lista dos influenciados, direta ou

    indiretamente, impressiona pela excelncia literria: Faulkner,

    Beckett, Virgnia Woolf, Musil (O Homem Sem Qualidades), Broch

    (A Morte de Virglio), Guimares Rosa, Cario Emlio Gadda,

    Augusto Roa Bastos, Lezama Lima, Cabrera Infante, Burgess...

    2

    Impecvel a coerncia crescente da engenharia de vo

    entre as quatro obras-primas de Joyce.

    Nos trinta anos entre os Dublinenses e o Wake, sempre

    escreveu-se o mesmo livro, o mesmo universo sempre levado a

    graus cada vez mais agudos de criatividade verbal e inventiva

    arquitetnica.O mesmo Universo: a Irlanda, a Irlanda, a Irlanda,

    maldita ilha maravilhosa, duende, sempre rebelde e sempre

    submissa Inglaterra, terra de bbados e excntricos, de

    hipcritas e humoristas, com toda a parda mediocridade pastosa

    de Dublin, sua capital, Irlanda papista, abafada debaixo de um

    catolicismo retrgrado, castrador, aldeo.

    O mesmo Universo: vidas rotineiras, sem grandeza, sem

    horizontes, sem sentido.

    Joyce s partiu para um exlio espontneo pela Europa

    (Paris, Zurich, Trieste) para melhor cultivar, distncia, sua

    obsesso pela Irlanda, execrada e idolatrada na prpria veemncia

    dessa execrao, idia fixa, agenbite of inwit, memria, o nico

    tempo possvel.

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    Os temas, os tipos, e at frases inteiras se repetem,

    crescendo, dos Dublinenses ao Wake.

    Joyce nunca saiu da Irlanda. Nunca saiu de sua obra.

    3

    Os Dublinenses: a Irlanda, vista do lado de fora.

    Retrato do Artista: a Irlanda, vista de dentro.

    Ulysses: entrechoque entre o fora e o dentro, monlogo

    interior, o Dia, a Histria.

    Finnegans Wake: sntese dialtica entre o fora e o

    dentro, pura linguagem, a Noite, o Sonho.

    Na triunfal cavalgada das valqurias dessas quatro

    obras-primas, Giacomo Joyce faz s vezes, talvez, de um filho

    bastardo, fruto de um prazer furtivo, de um amor clandestino, de

    um erro da juventude, de uma fantasia ertica.

    Alinha, assim, com os livros de poemas, Chamber Music

    e Tomes Penyeach, performances lricas de uma maestria mtricae verbal extraordinria, mas apenas um pouco mais que isso, no

    sculo dos Cantares de Ezra Pound e do Waste Land, de T. S.

    Eliot.

    Ou com Exiles, a pea que Joyce quis fazer, mas o

    mundo do teatro nunca amou.

    Mas, por favor, no faamos pouco de Giacomo Joyce.

    Quando o escreveu, Joyce, terminando o Retrato e grvido do

    Ulysses, j era, visivelmente, um dos maiores escritores da

    Europa.

    Em Giacomo Joyce, j d pra ver o surgimento dos

    germes do monlogo interior, a tcnica central do Ulysses e uma

    das grandes conquistas da fico do sculo XX.

    Joyce teria descoberto o recurso em um obscuro

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    romance francs do sculo passado, Les Lauriers Sont Coups

    (1887), de douard Dujardin, figura de menor importncia, ligada

    ao movimento simbolista.

    Esse monlogo interior parece consistir, sobretudo,numa sbita (e no anunciada) passagem da terceira para a

    primeira pessoa no universo do discurso, uma passagem direta,

    sem ndices do tipo, disse consigo, pensou, refletiu, e outros verbos

    que acusam a interioridade de um emissor.

    A fico clssica, realista, naturalista, repousa sobre a

    falcia da objetividade, fundada, lingisticamente, na terceira

    pessoa, no plo do ELE, o plo das coisas, como se as prprias

    coisas falassem de si em lugar de um narrador. E a linguagem de

    Deus, o narrador onisciente.

    O monlogo interior representa um princpio de

    economia narrativa. E, conseqentemente, um aumento de

    velocidade no tempo do texto e da leitura.

    Alguns traos dele em O Vermelho e o Negro, de Stendhal(1830).

    E em Dostoiesvski (1821-1881).

    O monlogo interior, de resto, representa uma espcie

    de carnavalizao do eixo pronominal do relato. A tarde est linda.

    Preciso dizer a ela tudo o que sinto. Voc no perde por esperar.

    Ela, eu, voc: sem aviso, sem hierarquia, como no fluxo da vida e

    da conscincia, onde eu, tu e ele podem ocupar o mesmo lugar no

    espao tempo, sem antes nem depois.

    No quarto bloco de Giacomo Joyce, a voz que diz algum

    quer falar com a senhorita j comparece sem aviso, como uma

    pgina de Ulysses.

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    4

    Das circunstncias particulares em que foi escrito, que

    fale Richard Ellmann.

    Da paixo do professor maduro pela bela aluna judiaitaliana de Trieste. Dos destinos do manuscrito quase perdido, no

    fosse a solicitude de um irmo.

    Para ns interessa, sobretudo, encontrar o Joyce que

    conhecemos e aprendemos a admirar, senhor de todas as foras

    da lngua inglesa, num momento fragmentrio, em mosaico,

    isomrfico com a situao pessoal que Joyce vivia naquele

    momento.

    Giacomo Joyce uma novela, cinematogrfica,

    ideogrmica, como uma pea No, feita de flashes, um grande

    poema de amor, uma vertigem vista de soslaio.

    Neste texto, o arquiteto de Ulysses ensaiou,

    orquestrando relmpagos.

    Bem-vindo de volta casa, Giacomo Joyce.

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    taiyo to tetsuentre o gesto e o texto

    guerra sou eu

    guerra voc

    guerra de quem

    de guerra for capaz

    guerra assunto

    importante demais

    para ser deixado

    na mo dos generais

    (p. leminski, 85)1

    Certo dia de novembro de 1970, os jornais da capital do

    Japo estamparam em suas colunas policiais uma notcia, no

    mnimo, inquietante.

    No dia anterior, um pequeno grupo de praticantes de

    artes marciais tinha invadido, com violncia, as dependncias do

    Quartel das Foras Armadas de Tquio. O lder do grupo, um

    homem forte, aparentando uns quarenta anos, acompanhado de

    um jovem, chegou at o gabinete do Comandante da praa, diante

    do qual os dois cometeram harakiri, o suicdio ritual da classe

    samurai.

    Antes do gesto supremo, acrescentaram os peridicos, o

    lder dos invasores leu para a tropa que se encontrava no localuma proclamao onde denunciava violentamente a

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    ocidentalizao, a decadncia dos cdigos de honra tradicionais do

    Pas do Sol Nascente. E a tropa ps-se a rir.

    O grupo invasor era o Tate no Kai, a Sociedade do

    Escudo, um exrcito privado de cultores de artes marciais,organizado e dirigido pelo escritor Yukio Mishima1, que, assim,

    declarava guerra, sozinho, ao Exrcito japons.

    1Na manh do dia quando se matou, Mishima enviou a seu editor o ltimovolume da sua tetralogia, O Mar da Fertilidade.

    Yukio Mishima (pseudnimo de Kimitake Hiraoka)

    nasceu em Tquio, de famlia samurai, em 14 de janeiro de 1925,

    filho de um oficial do Ministrio da Agricultura. Formou-se em

    Direito e, depois do sucesso de seu romance Confisses de uma

    Mscara (Kamen no Kokuhaku), em 1949, entregou-se literatura

    e outros excessos. Sua obra compreende mais de doze romances,

    Confisses de uma Mscara, Sede de Amor (Ai no Kawaki), Morte

    no Meio do Vero, Kinkakuji, Sei no Jida, Kinjiki, Higyo, focalizando

    a dissoluo dos costumes tradicionais no Japo do ps-guerra.

    Deixou mais de uma centena de narrativas curtas. E peas para o

    teatro N e Kabuki, os estilos ancestrais do teatro nipnico (Peas

    Modernas para o N).

    Em 1952, Mishima faz uma viagem Grcia, onde, em

    contato com a beleza da estaturia helnica antiga, seu

    pessimismo de derrotado toma nova direo com a descoberta do

    prprio corpo e da fora do corpo humano exposto luz do sol.

    Foi ator num filme de gangsters. Gravou discos. E

    participou de debates em programas de TV, tornando-se uma

    celebridade nacional.

    Uma viagem a Nova Iorque enriquece ainda mais o

    complexo de suas idias. quando, conhecendo o existencialismo,

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    desenvolve o nihilismo ativo, doutrina na qual o suicdio aparece

    como o supremo gesto de liberdade humana.

    Seu homossexualismo de tipo drico, militar, msculo,

    tinge-se cada vez mais de coloraes sadomasoquistas,transparentes em seu exibicionismo narcisista de tantas fotos,

    onde se compraz em posar nu, a musculatura de halterofilista

    saltando sob a pele, a espada samurai a meio caminho entre a

    bainha e o olhar do observador, objeto sexual absoluto, sujeito

    sexual absoluto.

    Em Mishima, realiza-se, em carne viva, o drama

    essencial da inter-subjetividade, no qual olhar um ato agressivo

    de apropriao do objeto pela conscincia de outro, no qual ser

    olhado sinnimo de estar morto. No pleno exerccio do existir, as

    pessoas so invisveis. S a morte lhes d a opaca presena

    absoluta de um objeto do mundo, de uma obra de arte, por

    exemplo.

    Mais que fazer apenas obras de arte, Mishima quis sefazer todo, corpo, histria e vida, uma obra de arte, entidade alm

    e acima da mudana, da corrupo e da perda de sentido,

    condio natural de todos os seres deste mundo sub-lunar.

    Da fase novaiorquina de Mishima so Gogo no Eiko

    (1963) e Sado Koshakufujin (1965).

    Sol e Ao, de 1970, manifesto e sntese de seu

    pensamento final, foi seu ltimo livro.

    Com tanto texto, engana-se, porm, quem imaginar

    Mishima como pacato escriba, todo dedicado a seus livros e seu

    trabalho literrio, nos moldes erasmianos do scholar ocidental,

    ltimo descendente do monge beneditino, a meio caminho entre o

    cu e o texto, Alm e Signo.

    Cultor das artes marciais, Mishima viveu entre o sol e o

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    ao. Praticava karat e a esgrima Kend (da qual era faixa preta

    quinto grau). Na procura do mximo de seu limite fsico, fazia

    halteres. Narcisista, aparece em suas fotografias mais conhecidas,

    quase nu, msculos flor da pele, um super-homem pronto paraa batalha final consigo mesmo. Que perdeu-ganhou.

    Quando o intelectual ocidental parte para a ao, sua

    sereia, vai normalmente para a poltica, esse simulacro da ao,

    que substitui a verdadeira ao, que a guerra, pelos vai-e-vens

    das conversaes e negociaes, prprias da classe dos

    comerciantes. Mishima era um primitivo. Um primitivo

    sofisticadssimo, herdeiro de uma verdadeira civilizao, alguma

    coisa pela qual vale a pena morrer.

    Antes de condenar Mishima, vamos perguntar: e ns?

    Ser que ns temos alguma coisa pela qual valha a pena morrer?

    2

    O isolamento insular e a benigna (porque buscada, noimposta) influncia cultural chinesa criaram no Japo uma das

    civilizaes mais originais da Histria, cultura de uma coerncia

    interna nica. Onde todos os aspectos da vida esto (estavam?)

    integrados numa harmonia geral. Poder, sociedade, religio, arte.

    Uma civilizao que , ela toda, uma gigantesca obra de arte viva

    de mil anos. Por isso ou por pura sorte geogrfica, o Japo foi a

    nica cultura da frica, Amrica e sia que escapou inclume da

    agresso planetria que o Ocidente gosta de chamar,

    pomposamente, de Grandes Descobrimentos, o mais vasto ato de

    rapina da Histria. Assim que percebeu o que significava a

    chegada dos navegadores e missionrios, a elite governante do

    Japo, o Xogun frente, fechou o pas, ferozmente, a qualquer

    contato com o exterior. Um ovo que s a Revoluo Industrial em

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    1865 comeou a quebrar. E nem se sabe se quebrou: o Japo foi o

    pas no europeu que melhor soube deglutir a Revoluo

    Industrial.

    Era a integridade de uma cultura que Mishima defendiaquando abriu o ventre diante do Comandante do quartel de

    Tquio, escrevendo com ao na pele da sua vida as letras de

    sangue que diziam: EU NO CONCORDO.

    Mishima pertence a uma espcie particular de

    revoltados, encontradia entre os artistas: os revolucionrios para

    trs, os utpicos nostlgicos. Os artistas so as antenas da raa,

    de Ezra Pound, sempre tem sido entendido num sentido futurista,

    progressista, pra frente. O que talvez seja um equvoco. Nem

    Pound era to progressistaassim... Como no o eram Fernando

    Pessoa, Eliot, Yeats, Gottfried Benn, Guimares Rosa, Drieu, e,

    curiosamente, Pasolini, que dizia trocar uma florzinha de terreno

    baldio por todas as instalaes industriais da Itlia.

    Mishima era um artista. E os artistas soparticularmente sensveis s alteraes do meio ambiente.

    O que no leva necessariamente a um triunfalismo

    futurista. Quem foi que disse que a felicidade se encontra l na

    frente? Oprogresso (com que horror escrevemos esta palavra hoje!)

    uma inveno da burguesia dos sculos XVIII e XIX, que sempre

    confundiu avano da Humanidade com a prosperidade dos (seus)

    negcios.

    3

    Quando a Marinha Imperial japonesa e sua aviao,

    num tresloucado gesto, atacou de surpresa e afundou a frota

    norte-americana do Pacfico, em Pearl Harbor, no Hava, o

    samurai Yukio Mishima tinha dezesseis anos. E vinte, quando,

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    sombra dos cogumelos atmicos de Hiroshima e Nagasaki, o

    Japo se rendeu, depois de anos de vitrias, senhor do Extremo

    Oriente. O Imprio do Sol Nascente foi ocupado, a seguir, pelos

    Estados Unidos, que desmilitarizaram o pas e incluram-no emsua esfera de influncia, depois de obrigar o Imperador, at ali um

    deus, a proclamar sua humanidade e apoiar uma Constituio

    que introduzia bruscamente as instituies parlamentares anglo-

    saxs num pas ainda meio feudal, apesar da industrializao.

    Esse foi o quadro em que Yukio Mishima se tornou

    adulto, um mundo estraalhado, uma cultura estuprada, um

    campo de runas, algo comparvel ao Mxico dos aztecas, depois

    da vitria de Cortez.

    A obsesso pela morte tem razes nesse quadro histrico

    e na tradio da sua classe social, na qual o seppuku, o suicdio

    ritual harakiri, sempre foi distino e privilgio de casta: tamanha

    a rigidez das relaes sociais no Japo tradicional que os conflitos

    no permitiam negociaes nem compromissos, exigindo a puraauto-eliminao dos envolvidos. Nisso, o Japo nico: no h

    paralelos em nenhuma civilizao humana de uma

    institucionalizao to radical do suicdio. Nisso, a soluo final de

    Mishima se distingue, essencialmente, do suicdio de um

    Maiakovski ou de um Iessinin. De Drieu La Rochelle (parecido

    com ele, em tantos traos). De Stephan Zweig. De Virgnia Wolf.

    De Van Gogh. Hart Crane. De Walter Benjamin. De Ganga Zumba.

    A auto-imolao, para ele, era uma obra de arte, algo a

    ser preparado, saboreado por antecipao, a chave de ouro de

    uma vida, um clmax.

    Ou, para falar em jargo freudiano, um orgasmo de

    Tnatos.

    Para a morte, Mishima se preparou, treinando halteres,

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    desenvolvendo os msculos, treinando artes marciais,

    desenvolvendo ao mximo suas potencialidades, enquanto

    matria.

    Quando a lmina, fazendo um L, entrou em sua barriga,naquela tarde de 1970, no Quartel General de Tquio, a morte,

    longamente namorada, recebia um presente rgio: um corpo

    atleticamente perfeito, pleno, no auge de sua forma e de sua fora,

    como ele queria. E uma mente lcida, cultivada, perfeitamente

    sabedora do que fazia.

    Em Sol e Ao, acompanhamos a luta minuciosa de

    Mishima para ultrapassar as contradies entre corpo e esprito.

    E, com ele, aprendemos que s a morte supera, para

    sempre, essa contradio.

    4

    Literatura um conceito (ou preconceito) ocidental

    moderno, uma categoria europia, baseada na produo textualda Frana, principalmente com a concorrncia, meio discrepante,

    da tradio anglo-sax, milionria de valores e performances

    textuais. Outras literaturas da Europa, a espanhola, a alem, a

    italiana, a russa, apesar de cumes insuperveis, sempre ficaram

    como coisa ligeiramente perifrica e subsidiria. Quantos gnios e

    obras-primas no ficaram desconhecidos e obscuros apenas

    porque tiveram a desgraa de acontecer em hngaro, em sueco,

    em galico, em albans, em idisch, em polons, em galego, em

    finlands, em holands, em tcheco, em portugus...

    Como avaliar, valorar, com critrios ocidentais,

    francocntricos, obra de uma literatura to remota e autnoma

    quanto a japonesa, devedora, em muita coisa, da literatura

    chinesa, mas autctone na criao de formas como o N e o haiku,

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    exclusivamente nipnicas?

    Classicismo. Barroco. Neo-classicismo. Romantismo.

    Realismo. Parnasianismo. Naturalismo. Simbolismo. Vanguardas e

    modernidade. Esse quadro histrico nos to cmodo quanto umchinelo velho. E baseia-se na evoluo da literatura francesa.

    Quando abordamos a literatura japonesa, porm, esse

    esqueminha mental que mediterrnea e subterraneamente, dirige

    nossa lgica, simplesmente no funciona.

    Depois de 1867, abertura dos portos com a Era Meiji, o

    Japo sofreu o impacto literrio de algumas novidades ocidentais.

    Mas s o realismo-naturalismo representou novidade mesmo. A

    literatura japonesa em geral de carter meio lrico, meio

    fantstico, do teatro fico, da poesia ao dirio (gnero maior, no

    Japo).

    Com seu credo de literatura colada vida cotidiana

    imediata, o realismo-naturalismo trazia a pobreza essencial do

    projeto de vida burgus para dentro da literatura: o realismo-naturalismo o triunfo da razo burguesa, contbil, pragmtica,

    imediatista, imanente.

    Os textos de Mishima respiram um outro tempo

    cultural.

    Sol e Ao no sabemos dizer se poesia ou prosa, livro

    de memrias ou ensaio filosfico, confisses de uma mscara que

    traz por trs de si outra mscara, outra mscara, outra, mscaras

    sobre mscaras.

    Seu andamento lembra Sendas de Oku, e outros dirios

    do grande haikaisista Bash (sc. XVII). A diferena que, em

    Bash, h tristeza e melancolia por trs da beleza.

    Em Mishima, h desespero.

    O desespero pessoal. O desespero coletivo da derrota na

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    guerra.

    Um desespero que quer chegar perto da vida, to perto

    quanto chegou do corao do samurai aquela lmina, naquele dia

    de novembro de 1970.

    5

    Sol e Ao , basicamente, a reflexo de um poeta e atleta

    sobre as relaes entre o corpo e a mente. Entre o fundo e a

    superfcie. O dentro e o fora. A vida mental e a existncia

    corprea.

    Para ns, ocidentais do sculo XX, esse tipo de reflexo

    no pode deixar de lembrar as conquistas da Fenomenologia, as

    catedrais conceptuais de Husserl, Valry, Sartre ou Merleau-

    Ponty, horas e horas de cerrado raciocnio metdico tentando

    flagrar, com exatido, os misteriosos matrimnios e divrcios entre

    o exterior e o interior, as fraquezas onipotentes do Eu que pensa e

    a selvagem liberdade do mundo que pensado.Mas que diferena entre as teias puramente lgicas dos

    mestres ocidentais e o percurso de Sensei Mishima!

    O esprito dos ocidentaispensa a matria, o Fora.

    Num gesto muito mais genial, porque mais global,

    essencialmente radical, Mishima resolve o problema

    transformando seu esprito em matria, matria pensante,

    inteligente, quando se entrega de corpo e alma prtica do kend,

    do karat e do halterofilismo.

    Para fazer isso, Mishima nem precisou sair de casa.

    Essa sabedoria o Japo j tinha, sob a forma de Bushi-d, o

    caminho do guerreiro, aquele cdigo global de postura e

    comportamento que caracterizava a casta samurai (e que, de um

    jeito ou de outro, acabou por impregnar a mentalidade de todos os

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    japoneses em geral). Um dia, no Japo, o maior dos mestres de

    haikai sentenciou:

    NO SIGAM AS PEGADAS DOS ANTIGOS.

    PROCUREM OS QUE ELES PROCURARAM

    No melhor estilo oriental, Mishima apenas descobriu

    sozinho o tesouro que estava enterrado debaixo dos seus ps.

    6

    Vrgulas. Dois pontos. Ponto de interrogao. De excla-

    mao. Travesso. Aspas. Essas coisas gutenberguianas no

    existem no japons clssico, onde as frases no comeam com

    maiscula nem terminam com ponto final. Saem do nada e s

    terminam diante do vazio zen da pgina, como se todas as frases

    terminassem num precipcio de reticncias.

    A mente nipnica se move num universo material regido

    por leis distintas das que regem nosso mundo textual econceptual.

    Mal conseguimos conceber um universo textual onde as

    marcaes grficas consagradas pela imprensa no tm vigncia:

    no texto japons nem h espao separando cada palavra,

    continuum ininterrupto como na fala, slaba aps slaba forando

    jogos de palavras, ressonncias, ecos colidindo, palavras e

    sentidos se acavalando em polinmios vaporosos.

    Com a ocidentalizao depois da Era Meiji (1867), o

    Japo adotou as convenes da imprensa gutenberguiana, na

    medida do possvel. Mishima um japons do sculo XX, at

    muito influenciado por leituras de escritores do Ocidente (Novalis,

    Amiel, Yeats, caro!). Mas o estilo dos movimentos do seu

    pensamento acusa um acentuado sabor nipnico.

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    As categorias da lgica de Aristteles, hoje sabemos,

    eram apenas as categorias da lngua grega. Outra a lgicade

    quem pensa em japons.

    A lngua japonesa, por sua prpria natureza, favorece oslongos perodos, com muitos gerndios, ligados, em subordinao,

    por uma mquina de conjunes que no correspondem

    exatamente aos nossos mas, porque, se, logo, embora,

    por isso. E nessa mquina que se monta qualquer lgica, esse

    sinnimo de sintaxe.

    Penso nisso ao tentar, desconcertado, acompanhar em

    Sol e Ao, a lgica peculiar com que Mishima sai de um

    pensamento para o outro, de um fato para uma concluso, de

    uma premissa para sua conseqncia. At que ponto esse meu

    desconcerto vem das singularidades da lngua e da lgica

    japonesas, at que ponto vem do prprio Mishima, no sei ao

    certo.

    De qualquer forma, quem quer que j tenha estudadouma lngua muito antiga ou muito remota sabe que no existe

    uma lgica universal sobre a qual as lnguas se conformariam

    mais ou menos: cada idioma (ou famlia de lnguas) postula uma

    lgica particular, exclusiva, intransfervel, um mini-universo

    fechado de significados.

    Palavras como problema, ironia, lgica, natureza,

    hiptese, culpa, honra, forma, contradio, essncia,

    conceito, abstrato, causa, efeito, ordem, para ns to

    bvias e indispensveis para pensar o mundo e a vida, so apenas

    conceitos greco-latinos, ocidentais, mediterrneos, e podem no

    ter equivalentes em outros sistemas lingsticos-culturais2.

    2 Conceitos so artefatos, coisas (coisas no esto sujeitas a traduo):Pscoa, filosofia, alienao, ying, yang, zen, jazz, totem (do

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    ojibua, lngua pele-vermelha), tabu (do polinsio), jihad, mitzvah,faslnefas, milagre, ax, domingo, panema, esprit de corps,romntico, jri, guilate, missa, dengo, xod, harakiri.

    Qual nossa possibilidade, por exemplo, de traduo do

    conceito snscrito-hindu de karma?

    Em hebraico antigo, havia uma forma verbal que

    representava, ao mesmo tempo, o pretrito e o futuro. Ainda em

    hebraico, a mesma palavra dabar designa palavra e coisa:

    como vivenciar um mundo em que palavra e coisa se dizem com a

    mesma palavra (ou a mesma coisa?)

    E que dizer das lnguas, como o chins, ou o tupi, onde

    no existe o verbo ser?

    O nico esperanto, senhores, a tecnologia industrial.

    Toda traduo, de certa forma, uma impossibilidade,

    sempre uma agresso, um ato de violncia, uma brutalidade: toda

    a mensagem deveria ser deixada em paz no idioma em que foi

    concebida.

    7

    No volume El Informe de Brodia, Jorge Luis Borges tem

    um conto, La Seora Mayor, que me lembra muito o destino que

    contemplou Yukio Mishima. Ou foi o destino de Mishima que me

    lembrou La Seora Mayor? Borgeanamente, prefiro no saber.

    La Seora Mayor a fbula de Maria Justina Rubio de

    Juregui, filha de um coronel que lutou nas guerras da

    Independncia argentina.

    No dia 14 de janeiro de 1941, ela completaria cem anos,

    la nica hija de guerreros de la Independencia que no haba muerto

    an, no dizer do mais inventivo ficcionista que a Amrica Latina j

    produziu.

    Nesse centenariamente festivo dia, autoridades, amigos

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    e patriotas resolvem dar uma festa para celebrar, com grande

    concurso da imprensa, muitos brindes e discursos fervendo de

    civismo e histria ptria. Passados alguns dias, arrasada de tanta

    emoo, La Seora Mayor veio a falecer, la ltima vctima, dizBorges, de uma batalha que aconteceu no Peru, h quase cem

    anos atrs.

    Mishima, suicidando-se em 1970, a ltima baixa do

    Exrcito Imperial Japons da Segunda Guerra Mundial, a guerra

    que ele, samurai, quis lutar, mas, infelizmente, era jovem demais

    na poca. Quando Mishima pratica harakiri, o mundo que ele

    defende j , h muito tempo, um universo de fantasmas: o Japo

    um dos pases capitalistas mais avanados, altamente

    industrializado, norte-americanizado e desmilitarizado,

    dependendo dos Estados Unidos at para sua defesa externa.

    Para essa morte-protesto, morte de mrtir, morte de

    monge budista se queimando vivo no Vietn, Mishima se preparou

    durante muitos anos. Anos de vergonha e humilhao. Dedegradao nacional e raiva impotente. De dio surdo e dentes

    cerrados. Anos de estupro, invaso e ocupao.

    Anos de muito texto, romances, contos, peas de teatro.

    Mas, sobretudo, anos de sol e de ao: anos de halteres,

    de milhares de quilmetros corridos, de flexes, de apoio de frente

    sobre o solo, de suor saindo com a fora com que sai o sangue de

    uma veia cortada.

    De morte, no. Sol e Ao uma afirmao da vida. De

    uma vida to tensa e to forte que s o Fim poderia ser o

    Significado.

    Nem venham com esquemas Freud-psicanalticos sobre

    a obsesso de Mishima pelo suicdio. De que valem esses

    esquemas no interior de um grupo social onde o suicdio no um

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    fenmeno patolgico, uma carncia, mas o sinal de uma plenitude,

    como entre os antigos filsofos esticos gregos e romanos, que

    viam na auto-imolao uma afirmao dos poderes da conscincia

    sobre os acasos do destino? Narcisimo. Sadismo. Masoquismo.Reacionarismo. As palavrinhas terminadas em ismo com que

    tentamos dar algum sentido nossa pobre vida feita de alguns

    lucros e vagas esperanas no fazem nenhum efeito quando

    batem nos msculos poderosos de Sensei Mishima.

    Guevaras, Mishimas: mortos, somos invencveis.

    8

    Em Mishima, o percurso de busca, tateando no escuro

    entre a noite do pensamento e os reflexos do sol no ao das

    espadas e halteres, entre o doentio da razo pura e os esplendores

    da pele bronzeada e dos msculos conduzidos a seu mximo

    desenvolvimento, em Mishima, esse percurso de procura casa, s

    mil maravilhas, com as sinuosidades da lngua japonesa que, aocontrrio da chinesa, dura, seca e simtrica, parece se comprazer

    em caprichosos meandros de vaporosas sinuosidades de incenso,

    donde extrai sua beleza especfica, uma formosura, digamos

    assim, olfativa, atmosfrica, ambiental, em fluida luta contra a

    morte que o conceito puro representa.

    O texto de Mishima todo perfumado de parece-me, tive

    a impresso de que poderia sentir, nada mais me restava a no ser

    entregar-me necessidade de vir a pensar que, formulaes

    extremamente mediatizadas, cautelosas, especulares, refraes

    como que gasosas, muito mais complexas do que a brusquido

    totalitria de um o homem uma paixo intil, a religio o pio do

    povo, o Estado sou eu, de Sartre, Marx ou Lus XIV, o estilo

    ocidental de emitir o conceito, lapidar conciso herdada da dura

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    lex sed lex do latim, idioma de legisladores e administradores,

    nossa me e superego.

    O que Mishima apresenta no uma generalidade.

    uma experincia pessoal, intransfervel como uma dor de dente,como parar de fumar, como querer ser maior que si mesmo.

    Sol e Ao: a luta com as palavras. A luta com as armas.

    A luta consigo mesmo. A luta contra o destino. O Amor pelo sol.

    O texto/testamento do samurai est altura do gesto.

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    lennon rindo

    business man

    make as many business

    as you can

    you will never know

    who i am

    your mother

    says no

    your father

    says never

    youl never know

    how the strawberry fields

    il will be forever

    (Caprichos e Relaxos)

    1

    que pode

    um pobre rapaz pobre fazer

    a no ser

    cantar numa banda de rock?

    (Mick Jagger, dos Rolling Stones, Street Fighting Man)

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    Este livro so dois, Lennon On His Own Write, de 1964 e

    A Spaniard In The Works, publicado em 1965, estranhas

    miscelneas de textos de natureza vria, flash-contos, esboos de

    peas, poemas nonsense, acompanhados de desenhos, todosmarcados por extrema criatividade de linguagem, conduzida ao

    absurdo por um humor sarcstico e cnico.

    Quando os escreveu, John estava frente de uma

    banda inglesa de rock, os Quarrymen, agora The Beatles,

    trocadilho que ele inventou, montando beetles, besouros, em

    ingls, com beat, batida de percusso, e, certamente, beat

    generation, beatniks.

    Nesse momento, Lennon recebia, direta e pessoalmente,

    o impacto da criatividade de Bob Dylan, msico, escritor e

    desenhista como ele.

    Com Dylan, um judeu novayorquino muito mais

    sofisticado intelectualmente que ele, John aprendeu isso e as

    coisas, ouvindo Dylan, descobri que letra de msica no precisaser papo furado, confessou o beatle que, no princpio, assinava

    letras que diziam apenas I Want To Hold Your Hand ou She

    Loves You.

    Estava a caminho, e no bom caminho, o poeta que ia

    fazer, a seguir, a maior parte das letras e versos dos LPs Rubber

    Soul, Revolver, Abbey Road, e, sobretudo de Sergeant Peppers

    Lonely Hearts Club Band. E, da, partiria para o vo solitrio de

    Imagine, Mind Games, at o maravilhoso e fatdico Double Fantasy.

    Lennon foi figura de proa numa gerao que produziu,

    entre os msicos populares, algumas de suas melhores cabeas

    (Dylan, Zappa, Jim Morrison, Bob Marley; no Brasil, Caetano

    Veloso, Gilberto Gil; e no mundo?), msicos e ao mesmo tempo,

    pensadores da coisa da cultura, ligados ao sentido das

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    transformaes, artistas abertos a outras artes, agitadores

    culturais, bons de som, de poesia e de conceito.

    Os dois livros do beatle ocupam lugar especial no

    quadro da criao textual da segunda metade do sculo XX. Pelalinguagem, seus textos remetem a James Joyce, o mais radical

    dos prosadores do sculo, o Joyce das inovaes de Ulysses e das

    montagens de palavras do Finnegans Wake. Assim que saram, os

    livros de Lennon foram traduzidos para vrias lnguas. E consta

    at que, na Finlndia, traduziu-os o prprio tradutor finlndes de

    Ulysses.

    O walrus, porm, declarou que, quando os escreveu,

    no conhecia Joyce. Sua fonte maior de influncia era o Lewis

    Carrol, da Alice no Pas das Maravilhas e Atravs do Espelho,

    influncia fundamental sobre Joyce.

    A ser verdade essa declarao, Lennon saiu da mesma

    fonte do pai do Wake.

    Daquele bizarro professor de matemtica que gostava defotografar menininhas, tinha o estranho hbito de acasalar

    palavras em hbridos que chamou de portmanteau words,

    palavras-valise, palavras-montagem. E escrevia como se fosse o

    senhor de todas as lgicas.

    2

    o humor a vitria do ego

    sobre o princpio da realidade

    (Freud)

    quem no tem senso de humor

    nunca vai entender a dialtica

    (Brecht)

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    O humor da linguagem, trao muito ingls de Lennon e

    o grande obstculo para o tradutor, depende de alguns recursos-

    chave. Principalmente, o estranhamento do lugar-comum atravsda alterao da expresso idiomtica. Mas tambm atravs do

    bizarro e do inesperado na lgica ficcional.

    Alm disso, John muito chegado numa de alterar, a

    seu babel prazer, a grafia das palavras, criana que estivesse

    brincando de grudar uma letra, ou tirar, ou trocar as letras das

    palavras. Este efeito, no humor televisivo brasileiro, a

    especialidade de Renato Arago, o maior palhao brasileiro vivo,

    exmio em arrancar as gargalhadas que se d diante da

    informao nova, com uma alterao arbitrria do modo de dizer

    as palavras, graa fontica do Didi dos Trapalhes.

    Como amostra de estranhamento do lugar-comum,

    valha o prprio ttulo dos dois livros de Lennon. No primeiro,

    Lennon On His Own Write, acontece a superposio de duasexpresses: in his own right, no seu direito, e in his own

    writting, com seu prprio punho, montagem que procurei traduzir

    para Lennon Com Sua Prpria Letra. No segundo, o jogo ainda

    mais complexo: A Spaniard In The Works, Um Espanhol Nas

    Obras, , na realidade, uma corruptela da expresso idiomtica

    a spanner in the works, ao p da letra, uma chave-de-fenda nos

    mecanismos, mas que designa uma dificuldade sbita, um

    obstculo que no estava nos planos. Alguma coisa que tem que

    ver com as origens da palavra francesa sabotage. Em francs,

    sabot tamanco. E sabotar, na origem, jogar um tamanco

    para danificar o mecanismo de uma mquina. Tanto a expresso

    inglesa a spanner in the works, quanto a sabotagem francesa

    pertencem ao mundo da Revoluo Industrial, e trazem

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    conotaes de luta de classes, ludditas, entre operrios, os

    patres e suas mquinas1.

    1A partir do nome John Ludd, que teria destrudo mquinas txteis por voltade 1780, a expresso ludditas designou os membros de um movimentooperrio ingls (1811) que se organizou para destruir as mquinas dasfbricas onde trabalhavam, j que elas provocaram o desemprego e adiminuio da qualidade dos produtos.

    A spanner in the works: (botar) Formiga no Pudim (de

    algum), uma mosca na sopa, por essa voc no esperava, uma

    pedra no caminho?

    Alice Ruiz, por fim, me tirou do impasse, propondo o

    imbatvel (unbeatable!) Um Atrapalho no Trabalho.

    3

    O especfico do discurso de Lennon parece ser uma

    subverso sistemtica dos cdigos de registro da escritura, bem

    dentro do juvenil esprito de quebra-quebra que caracterizou osanos 60.

    John no escreve errado: ele, moleque, escreve erros.

    E subverte a grafia dos vocbulos, introduzindo neles rudos

    arbitrrios, grafitti, deformando a gestalt ortogrfica das palavras

    deixando subsentidos se infiltrarem pelos interstcios das frases.

    Uma escrita fria, nos termos de MacLuhan, uma escrita porosa,

    como a TV, que convida participao.

    Em Um Atrapalho no Trabalho, prosa-pop, prosa da era

    da TV, do VT clips, VTVTTVTVTVVTTT &tc, arte de arte, o beatle

    faz gato e sapato das receitas de todos os gneros, excomunga os

    lugares-comuns. E, trapalho, atrapalha todo o andamento do

    trabalho: uma gota da baba de Dad, no comportamento textual

    do Working Class Hero.Nenhuma frmula verbal escapa da verve cnica e

  • 8/13/2019 Paulo Leminski - Anseios Crpticos 2 (rev)

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    sarcstica daquele que escandalizou o mundo ao dizer, somos

    mais populares que Jesus Cristo.

    O conto. A anedota. O poema. A estria da carochinha.

    De detetive. A pea de teatro. A carta do leitor. A entrevista. Oanncio. A frase de TV. A notcia de jornal. A cano de ninar. Um

    Atrapalho caleidoscpio de todas as formas verbais imaginveis,

    erodidas e erotizadas como pardia.

    Mas o humor do Nowhere Manno um bom humor.

    a graa que nasce do azedume (no h sexo na prosa

    de Lennon).

    Em suas fulminantes anedotas, sempre tendentes a

    estados cagenos, crepusculares, na fronteira entre o inteligvel e

    o ininteligvel (Dividido Davi, Os Famosos Cinco Atravs das

    Runas de Eagora, Linda Linda Cremilda, Mr. Boris Norris,

    Elerico e Eurique), o desfecho sempre trgico ou melanclico,

    com toques s vezes sdicos e mrbidos, teratolgicos.

    O beatle mximo era, hoje sabemos, um maiorabandonado, aquela pessoa profundamente insegura, poo de

    angstias, atingida no corao e na cabea pela sbita idolatria

    mundial em escala nunca vista.

    4

    For the benefit of Mr. Kite

    there will be a show tonight on trampoline.

    The Hendersons will all be there

    late of Pablo Fanques Fairwhat a scene

    (Being for the benefit of Mr. Kite, LP SgtPeppers)

    O universo ficcional do fool on the Hill est super-

    povoado de nomes prprios, onoma-personagens que s existem

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    porque tm um apelido, como se o beatle quisesse encher seu

    mundo de gente, dando uma festa textual, criaes da fantasia de

    Lennon, nomes burlescos, portando segundos sentidos,

    trocadilhos onomsticos, rabelaisianos.Sua traduo oferece problemas particulares.

    Diante de mim, duas opes extremas: traduzi-los todos

    ou mant-los na ntegra, em ingls.

    Nada impede que se verta Judro Bathingpor Germano

    Amano ou Large John Saliverpor Z Grando Gouveia.

    O problema que, traduzindo todos os nomes, o texto ia

    ficar brasileiro demais,jaguno, perdendo um sabor britnico que

    essencial em Lennon.

    Sa da dificuldade optando pela soluo mdia: ora

    traduzir, ora no traduzir os nomes prprios, o que s acrescenta

    estranheza a estes textos nvios.

    Tenho certeza que Lennon aprovaria minha deciso.

    Afinal, para ele que estou tendo esse trabalho todo.

    5

    Mal e mal possumos os rudimentos de uma teoria

    da traduo, de um modelo de como funciona a mente quando

    passa de uma lngua a outra. A o falar da tentativa de traduo ao

    ingls de um conceito filosfico chins, o lingista I. A. Richards fez

    a seguinte observao: possvel que aqui estejamos em presena

    do tipo mais complexo de evento at agora ocorrido na histria do

    universo.

    (Georg Steiner, Extraterritorial)

    Casos-limite como o da prosa de Lennon foram o

    emprego de uma modalidade particular de traduo. A co-criao.

  • 8/13/2019 Paulo Leminski - Anseios Crpticos 2 (rev)

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    A trans-criao, diria Haroldo de Campos. Nesses casos, uma

    traduo apenas pelo sentido a pior das traies. Para fazer

    justia ao teor de surpresa do texto original, precisa descriar e

    reproduzir os efeitos materiais, gerando anlogos, universossgnicos instavelmente paralelos, ora secantes, ora tangentes,

    figura original.

    O que as lnguas tm de mais prprio intraduzvel,

    como a poesia, a poesia dos povos, suas expresses idiomticas,

    aquelas que ou voc entende no original, ou adeus.

    Poesia, afinal, no tem sinnimo.

    Tradues criativas, re-criaes, so as mais idneas (e

    enriquecedoras) quando devidamente acompanhadas de cotejos

    entre o texto de origem e o texto de chegada.

    O ideal sempre, como aqui, uma edio bilinge, uma

    pedra da Rosetta.

    Em Um Atrapalho, reduzi a um mnimo as notas ao p

    da pgina para no tirar a fluncia da leitura nem o leve espritojuvenil que anima a criatividade primitivado beatle.

    Quem acompanhar, porm, o original com este anlogo,

    vai ver que no pulei por cima de nenhuma dificuldade, achando

    jeito de passar para o brasileiro todo e qualquer efeito do texto de

    Lennon.

    6

    ... its like a portmanteau... there are two meanings

    packed up in one word. Assim definiu Lewis Humpty Dumpty

    Carroll (1832-1898), seu inventor, a portmanteau word, a

    superpalavra com dois sentidos vivendo dentro dela.

    Portmanteau, em ingls, designa uma valise de couro,

    com dois compartimentos.

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    E a traduo para o portugus da expresso

    lewiscarrolliana exigiria coisas como palavra-valise, palavra-

    double-face, palavra-porta-palavra. Com portmanteau words,

    Carrol comps o Jabberwocky2, poema onde um verdadeiroesprito ldico infantil se manifesta atravs da mais elevada

    inventividade de linguagem (Through the Looking Glass, caps. 1 e

    6).

    2Jabberwocky (ou jabberwock) montagem cunhada por Carroll, a partir de jabber, tagarelar, falar uma lngua misturando-lhe palavras de outra, e umderivado da antiga palavra anglo-sax wocon, fruto, rebento. O poema queAlice leu no Livro-Espelho, sereia, vem desafiando a percia de tradutores devrias lnguas, a comear pelo nome, o nome-nume-totem do portmanteau. Naverso alem de Robert Scott (1872), Jabberwocky Der Jammerwoch. Naverso francesa de Warrin (1931), Le Jaseroque. Nem faltou uma translaopara o latim por um erudito de Oxford, onde o prodigioso monstro se chamaGaberboccbus.

    Em portugus, temos a sorte de dispor da perfeita transcriao deAugusto de Campos, quando o Jabberwocky vestiu as cores da lngua deCames sob o nome de Jaguadarte(agora, musicado por Arrigo Barnab). Deminha parte, proponho: murmurilho (murmurar + andarilho, de walk,andar), balbulonge, urrofruto, tragarelva. Com oJabberwocky, AntoninArtaud teve uma relao freudiana de amorrepulsa. Artaud chegou a comear

    a traduo de LArve et LAume, como ele verteu Jabberwocky:Il tait roparant, e les vliqueux tarands

    Allainet en gibroyant et en brimbulkdriquant...No passou da primeira estrofe. Artaud perdeu. E declarou: Nunca

    gostei desse poema, que sempre me pareceu de um infantilismo afetado...,(...) o Jabberwocky no tem alma.

    Natural esse desentendimento. Afinal, Artaud era um esquizo-paranide. Carroll, apenas, um neurtico.

    Alice enfrenta Jabberwocky, ou Jammerwoch, ou Jaseroque,Jaguadarte, ou Gaberbocchus, ou Urrofruto, o monstro da linguagem quefaltou no Manual de Zoologia Fantstica de Jorge Lus Borges (gravura de John

    Teniel para o texto original de Through the Looking Glass, traduo deSebastio Uchoa Leite, ed. Fontana/Summus, 1977).

    A primeira estrofe, na trans-criao de Augusto de

    Campos,

    Era briluz. As lesmolisas touvas

    Roldavam e relviam nos gramulvos.

    Estavam mimsicais as pintalouvas,E os momirratos davam grilvos,

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    d bem uma idia do que uma palavraportmanteau em ao. No

    primeiro verso, em ingls, deslesmolisa, a palavra slithy,

    montagem de lithe, gil e simy, viscoso (Carrol pega, alhures,

    as palavras snake, cobra, e shark, tubaro, e monta a palavrasnazrk, onde as duas imagens ocupam o mesmo lugar no espao-

    tempo).

    No tenho notcia de antecedentes para isso em

    qualquer literatura. Como recurso, a palavra-montagem parece ser

    uma inveno de Lewis Carroll.

    O princpio de sntese e velocidade que ela representa

    tem muito a ver com a velocidade das mquinas da Revoluo

    Industrial, que explode na Inglaterra no sculo XIX.

    Convm acrescentar que a lngua inglesa sempre teve

    uma tendncia natural para a produo desses hbridos. A

    filologia desconfia, inclusive, que o verbo bash, por exemplo,

    amassar, resulta do cruzamento dos verbos bang, percutir e

    smash, esmagar. O verbo clash seria o encontro dos verbos clange crash. Flurry, agitao, um misto de fluster, excitao, e

    hurry, apressado.

    A imprensa londrina do incio do sculo cunhou a

    palavra-montagem smog, mistura de smoke, fumaa, e fog,

    neblina, para designar a espessa nebulosidade que envolveu a

    capital da Inglaterra na poca. E a palavra pegou e ficou.

    O verbo chortle, rir alto, uma palavra-montagem de

    Carrol (chuckle sobre snort), que o uso e os dicionrios adotaram e

    legitimaram.

    Portmanteau motel, onde o motel e o hotel se

    encontram como duas paralelas, infinito mistrio do amor entre

    sons e sentidos.

    Entre ns, palavras como salafrrio, barafunda,

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    estapafrdio, geringona, espalhafato, escalafobtico,

    lambisgia, sorumbticoparecem apontar para essa direo.

    Se, no Brasil, espcie relativamente nova como recurso

    literrio, a palavra-montagem no rara na linguagem popular,oral, no linguajar despoliciado, na fala, na gria, lugares onde ela

    uma das maneiras que a lngua utiliza para enriquecer seu

    vocabulrio.

    Estramblico, na fala brasileira, designa alguma coisa

    fora das normas, estranho, esquisito, singular, bizarro,

    extravagante, irreal.

    Vem do italiano strambotico, de strambotto, o terceto a

    mais que se acrescentava a um soneto completo para continuar-

    lhe o sentido. E a quebra da mtrica.

    No Brasil, aclimatado, o vocbulo italiano sofreu a

    interferncia de uma srie bola, e virou o portmanteau natural

    estramblico.

    O fenmeno da etimologia popular responsvel porum bom nmero de palavras-valise naturais. Na palavra

    sumitrio, comum na zona rural, percebe-se que o falante

    vinculou cemitrio, palavra grega estranha ao seu universo

    verbal, ao verbo sumir, que lhe familiar e cotidiano.

    As parlendas infantis e a liberdade carnavalesca da

    linguagem jocosa criam outros. Para causar riso, gente do povo

    deforma observarem urubu-servar.

    Presunto, a palavra da gria policial carioca para

    designar o prisioneiro executado por Esquadres da Morte, um

    sinistroportmanteau de presoe defunto.

    Boflia mulher feia, misto de bofecom Oflia.

    E a montagem de palavras cada vez mais corriqueira

    na onomstica popular brasileira, onde Florisvaldo filho de

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    Florisbela e Oswaldo, Claudionor, filho de Cludio e Leonor,

    Divonei, filho de Diva e Nei.

    Hoje, por fim, seria infinito enumerar todas as palavras-

    montagem que do nome a produtos industriais, empresas,estabelecimentos comerciais, servios especiais, reparties

    pblicas, programas de rdio e TV, LPs, shows, as coisas do

    mundo urbano-industrial.

    Ver as montagens que a publicidade cria todo dia:

    tranqilometragem, primavero, sexacional.

    A palavra-montagem mais natural do que uma

    mente conservadora poderia imaginar.

    Montagens por justaposio (lado a lado) so recurso

    comum nas lnguas indo-europias. Em snscrito, possvel

    montar superpalavras de at 20 componentes. O grego clssico, se

    no chega a tanto, permite a montagem de palavras com at cinco

    componentes. Em latim, o comedigrafo Plauto pode cunhar

    superpalavras como thesaurocrypsonichocrysides, e outras tovastas. quase proverbial a capacidade da lngua alem de

    permitir a montagem de compostos complexos como

    weitanschauungenwahlverwandtschaften para dizer afinidades

    eletivas entre as vises do mundo.

    As lnguas neolatinas no herdaram essa riqueza (que j

    no era muito forte em latim). O italiano, o francs, o espanhol, o

    portugus so lnguas analticas, onde essas macrocombinaes

    de palavras soam estranhas e artificiais.

    Mas, em todos esses casos, trata-se de montagens por

    justaposio.

    Ora, um portmanteau uma montagem por

    superposio (sobre-impresso).

    Duas palavras so projetadas uma dentro da outra,

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    produzindo uma terceira, nova totalidade, uma unidade

    poemtica.

    Entra muito de acaso e de sorte na confeco de um

    portmanteau feliz.Tudo depende das possibilidades sonoras e semnticas

    da lngua com que se lida.

    Nesse sentido, o portmanteau compartilha o destino da

    rima e do tracadilho, dois efeitos rigidamente determinados,

    idiomaticamente falando.

    Quando monto insensatisfeito, dependo da existncia

    em portugus das palavras insensato e satisfeito, e das

    coincidncias sonoras que apresentam. Ou quando fao

    universrio, plnico, opstolo, fecundrio, guerrilhotina,

    arquvoco, pornomenores, manusgrito, estratejitria,

    redondavia, hospitlculo, rodopiria, empenhasco,

    demoqutrico, ativitudes, gritantesco, ostranauta,

    literatorturas, cometalinguagem, obgestos.Para encontrar algo parecido, tem que procurar na

    literatura japonesa, onde um efeito chamado kakekotoba, palavra

    pendurada, desempenha papel nobre na poesia lrica e na

    linguagem do teatro N.

    O kakotoba no , exatamente, um trocadilho. mais a

    passagem de uma palavra por dentro de outra palavra, nela

    deixando seu perfume. Sua lembrana. Sua saudade.(Bash A

    Lgrima do Peixe, Paulo Leminski, p. 39).

    Na expresso shiranmi por exemplo, brancas ondas,

    em japons, uma mente nipnica pode captar uma aluso a

    shirnu, desconhecido, ou a namida, lgrimas, num s gesto de

    leitura.

    No kakekotoba, o processo de dupla (ou tripla) leitura

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    natural, produzido pelo prprio modo de ser da lngua japonesa.

    J o portmanteau um artefato, um produto do fazer

    humano, como um poema, como o mnimo poema que .

    Neste sculo, Joyce viria a empregar a inveno deCarroll como o principal recurso de linguagem do Finnegans

    Wake, a Work in Progress, sua monsterpiece, onde pontificam

    camibalistics, aeropagods, brasilikerks, allbegeneses, joyicity e

    outros portentos de linguagem, produzidos aos milhares pela

    inesgotvel criatividade verbal do gnio irlands.

    A spaniard in the works in progress, saindo diretamente

    de Carroll e do Jabberwocky,John Lennon trouxe oportmanteau

    das culminncias mximas de alta literatura rara para as

    plancies da culturapop. Umportmanteau beat. Ou beatle.

    Na prtica textual brasileira, a histria do portmanteau

    pode muito bem comear com o sex appeal-genrio Oswald de

    Andrade, das nada tris-tris-tristes Memrias Sentimentais de

    Joo Miramar. Ganha status de jaguno poliglota com ohipostrlico Guimares Rosa das engenhingonas,

    persquitos, malandrajos, descrevivendo. Resqucios de ouro

    no auritabirano Drummond da Lio de Coisas ou do poema Os

    Materiais da Vida. A histria atinge o clmax com os

    equivocbulosda poesia concreta paulista (que influenciou Lio

    de Coisas). As trans-criaes de trechos do Finnegans Wake, feitas

    pelos Irmos Campos. O Livro das Galxias, de Haroldo de

    Campos (servissalrio, cabaleulstico, sobrescravo). E

    desgua na msica popular em letras do acrilrico Caetano

    Veloso (Outras Palavras, homenina nelparas de felicidadania) e

    de Gilberto Gil, tantas vezes zanzibrbaro, duas vezes Gil,

    anfbio Loguned.

    Em 1975, publiquei o Catatau, monlogo cartesiano,

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    que me tomou oito anos, onde o portmanteau desempenha papel

    principal.

    Nem preciso ser profeta para sentir que a palavra-

    porta-palavra veio pra ficar, um recurso afim era dacompresso da informao, das micro-clulas portadoras de

    macro-informao, das distncias mnimas em velocidades

    mximas. Zune algo de informtico-eletrnico nesse recurso, que

    a retrica e a estilstica antigas no conheceram, espcie de

    retrato verbal (hologrfico) da nossa poca.

    Quanto a Caroll, sua prtica do portmanteau no pode

    ser distinguida de outras singularidades deste padre-matemtico-

    fotgrafo. Deste reverendo que desenhava figuras que, de ponta-

    cabea, davam outro desenho. Escrevia cartas no espelho, ao

    contrrio. Ou as comeavam pela ltima palavra, a penltima, a

    antepenltima, e assim por diante, s avessas, na direo

    contrria.

    Enxadrista, Carroll (ou Dodgson) era muito hbil emprestidigitao. Colecionava caixinhas de msica que adorava

    tocar de trs para diante. E espelhos com defeito, que

    deformassem a imagem.

    Como matemtico, gostava de tratar classes nulas(um

    conjunto sem membros) como coisas existentes: ningum, para

    Carroll, podia ser um personagem.

    Uma mente de vanguarda, modernssima, perdida (ou

    achada?) na Inglaterra vitoriana.

    7

    Muita coisa do esprito infantil e jocoso de Carroll, de

    Joyce e de Lennon est ligada a duas formas da literatura oral

    inglesa: as nursery rhymes e o limerick.

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    Nursery rhymes so poemas ou histrias metrificadas

    para crianas.

    Hickory,dickory,dock,

    The mouse ran up the clock.

    The clock struck one,

    Themouse ran down,

    Hickory, dickory, dock.

    Ou:

    Pat-a-cake, pat-a-cake, bakers man,

    Bake me a cake as fast as you can.

    O limerick um pequeno poema humorstico, de cinco

    linhas, esquema de rimas normalmente AABBA, com uma

    semntica em grau de nonsense.

    There was a young lady of Riga,Who rode with the smile of a tiger.

    They returned from the ride

    With the lady inside,

    And the smile on the face of the tiger.

    Neste limerick, o duplo sentido (double-entendre) o

    prprio tema:

    There was an old man at Boulogne

    Who sang a most topical song,

    It wasnt the words

    Which frightened the birds,

    But the horrible double-entendre.

    Limerick, nome de uma regio da Irlanda, foi dado a essa

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    forma a partir de um espcime que comea dizendo

    Will you come up to Limerick?,

    dito ou cantado em ocasies festivas, comilanas ou bebedeiras.

    Desse esprito de saudvel nonsense, saem os poemas,que emergem, aqui e ali, ao longo de Um Atrapalho.

    Ora, s o sentido pode ser traduzido. O sem-sentido

    opaco como uma escultura abstrata, um passo de dana ou um

    happening, coisas que s significam a si mesmas.

    Felizmente, poetry is to inspire, disse Bob Dylan.

    Do nonsense de Lennon, s vezes em puro grau zero de

    sentido, extra apenas a espessa noite semntica que presidiu

    minhas transcriaes, braadas desesperadas do nadador que

    afunda nas confusas guas do in-significaldo.

    s vezes uma sombra de mtodo atravessa a loucura de

    Lennon.

    Em The Faulty Bagnose, A Falsa Amordaa,

    vislumbra-se um clima de crtica hipocrisia eclesistica, pelasaluses religiosas que cercam o Mungle (pilgriffs, religeorge,

    bless, bless the loaf, give us thisbe our daily tit).

    A estratgia do tradutor, nesses casos, pegar o esprito

    geral da coisa e se atirar de cabea na aventura, pedindo socorro,

    aqui e ali, a uma palavra, um conceito, um jogo de palavras do

    original.

    Foi o que fiz, fiel, infiel, irregular mtrica regular dos

    contra-sensos poticos do beatle, onde a lgica substituda

    altura por valores puramente rtmicos e musicais.

    8

    Do primeiro para o segundo livro, Lennon parece

    radicalizar seus processos (palavras-montagem, deformaes