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Paulo da Costa e Silva Franco de Oliveira "A BOSSA NOVA E O IMPRESSIONISMO UMA TESE DE SUPERFÍCIETese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Profº. Júlio César Valladão Diniz Co-Orientador: Profº. Yannick Seite Rio de Janeiro, Abril de 2012

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Paulo da Costa e Silva Franco de Oliveira

"A BOSSA NOVA E O IMPRESSIONISMO – UMA TESE DE SUPERFÍCIE”

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientador: Profº. Júlio César Valladão Diniz

Co-Orientador: Profº. Yannick Seite

Rio de Janeiro, Abril de 2012

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Paulo da Costa e Silva Franco de Oliveira

"A BOSSA NOVA E O IMPRESSIONISMO – UMA TESE DE SUPERFÍCIE”

Defesa de Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Letras do Departamento de Letras do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profº. Júlio Cesar Valladão Diniz

Orientador Departamento de Letras – PUC-Rio

Profº. Yannick Seite Co-Orientador

Université Paris VII

Profº Frederico Oliveira Coelho Departamento de Letras – PUC-Rio

Profª Claudia Neiva de Matos UFF

Profº Christophe Bident Amiens

Profº Miguel Jost Ramos CCE/PUC-Rio

Profa. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial do Centro de Teologia

e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 16 de abril de 2012

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total

ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do

autor e do orientador.

Paulo da Costa e Silva Franco de Oliveira

Graduou-se em Comunicação Social pela PUC-Rio, é

mestre também em Comunicação Social. Pesquisador e

músico, assinou o texto do livro Bossa Nova: Um

Retrato em Branco e Preto, publicado pela editora PUC-

Rio, em 2008. É também Pesquisador Titular do Núcleo

de Estudos em Literatura e Música (NELIM) da PUC–

Rio. Em 2009 ministrou o curso Som Nosso de Cada Dia

pela Coordenação Central de Extensão (CCE), também

da PUC–Rio. Atualmente é diretor da Rádio Batuta, um

projeto do Instituto Moreira Salles. Ficha Catalográfica

CDD: 400

Oliveira, Paulo da Costa e Silva Franco de “A Bossa Nova e o Impressionismo – Uma Tese de Superfície” / Paulo da Costa e Silva Franco de Oliveira ; orientador: Júlio César Valladão Diniz. – 2012. 245 f. : 30 cm Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, 2012. Inclui bibliografia 1. Letras – Teses. 2. Canção brasileira. 3. Impressionismo. 4. Bossa Nova. 5. Debussy. 6. Tom Jobim. 7. João Gilberto. I. Diniz, Júlio César Valladão. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.

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Dedico esta tese ao meu estimado avô Antônio

Franco de Oliveira, falecido pouco antes de minha

defesa. Dedico-a também às minhas duas mães: uma

paulista, e outra baiana.

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Agradecimentos

Pelo respaldo institucional, agradeço ao programa de pós-graduação do

departamento de letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e à

Université Paris 7.

Meus agradecimentos mais do que sinceros aos meus dois orientadores. Ao

professor e amigo Júlio Diniz, pela confiança e pelo apoio incondicional. Ao

professor Yannick Séité, pela afabilidade e pelas palavras encorajadoras.

Agradeço também a todos aqueles que direta ou indiretamente fizeram parte dessa

jornada. Amigos, colegas, familiares, professores e todos aqueles com quem

mantive algum tipo de interlocução. Entre eles estão: Miqueli Michetti, Daniel

Andrade, Alexandre Freitas, Francisco Bosco, Marina Garcia, Aïxa Barat, Denise

Schittine, Alex Leite, Jacques Fux, Gladson Dalmonech, Rodrigo Tupinambá,

Flavia Raphaella, Ulisses Figueiredo e Felipe Botelho.

Gostaria de agradecer aos professores que estiveram presentes em minha banca:

prof. Claudia Neiva, prof. Christophe Bident, prof. Frederico Coelho, prof.

Miguel Jost – muito obrigado por terem aceitado o convite para participar de

minha banca. Devo acrescentar, a título de singela homenagem, a doída presença

da ausência da professora Santuza Naves. Inicialmente confirmada em minha

banca e já de posse de minha tese, Santuza faleceu a menos de duas semanas de

minha defesa. Lamento com grande pesar a ausência dessa generosa interlocutora,

figura central e incontornável para todos aqueles que decidiram estudar a canção

popular brasileira no âmbito acadêmico.

Agradeço ao programa Capes/Cofecub, do qual fui bolsista no exterior por um

período de um ano e meio - período fundamental no desenvolvimento de meu

trabalho, durante o qual residi em Paris. Agradeço também ao CNPQ, pela

concessão de uma bolsa de pesquisa durante o último ano de minha tese – bolsa

que me garantiu a necessária paz de espírito e mínima condição material para que

pudesse levar a bom termo a escrita de minha tese.

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Resumo

Oliveira, Paulo da Costa e Silva Franco de; Diniz, Júlio César Valladão. “A

Bossa Nova e o Impressionismo – Uma Tese de Superfície”. Rio de

Janeiro, 2012. 245p. Tese de Doutorado – Departamento de Letras,

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Criada no formato tese-ensaio, O Impressionismo e a Bossa Nova – Uma

Tese de Superfície propõe um amplo mosaico no qual distintos e distantes campos

de conhecimento, que geralmente andam separados, possam interagir de maneira

fluida e livremente concatenada. Utilizando-se de dados de áreas como teoria da

canção, história cultural, psicologia cognitiva, musicologia, crítica de arte,

neurociência e biologia evolutiva, entre outros, o trabalho estrutura-se a partir de

três quadros multifacetados, a um só tempo autônomos e complementares. No

primeiro quadro são abordados temas relacionados à dimensão melódica e linear

da música, em sua relação com a memória e a percepção do tempo. Obras de Tom

Jobim são postas em evidência e ajudam a iluminar o caráter eminentemente

melódico da canção popular, ao passo que revelam seu teor próprio de inovação

em relação ao passado e definem seu lugar na tradição da canção brasileira. No

segundo quadro o foco é transferido para o papel da harmonia e da dimensão

propriamente vertical da música, dimensão que diz respeito ao impacto

instantâneo no tempo. Além de uma longa introdução sobre a mudança do

discurso harmônico na música européia do século XIX, são também discutidos a

ênfase nas sensações mais diretas, em detrimento de uma visão narrativa e linear,

e o modo como tal deslocamento pode ser visto como ponto de aproximação não

apenas entre a música de Claude Debussy e a pintura de Claude Monet

(Impressionismo) mas também com o novo estilo criado por Tom Jobim e João

Gilberto no Brasil (Bossa Nova). O terceiro e último quadro se propõe a lançar

um novo enfoque sobre a dimensão rítmica da música brasileira, ampliando, à luz

de estudos recentes, e tendo a música de Tom Jobim e João Gilberto como

principal parâmetro comparativo, o entendimento de sua relação com o corpo, a

língua, e a própria ideia de formação cultural do país.

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Palavras-Chave

Canção Brasileira; Impressionismo; Bossa Nova; Debussy; Tom Jobim;

João Gilberto.

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Résumé

Oliveira, Paulo da Costa e Silva Franco de; Diniz, Júlio César Valladão

(directeur); Séité, Yannick (co-directeur). ‘L’Impressionnisme et la Bossa

Nova – Une Thèse de Surface’. Rio de Janeiro, 2012. 245p. Thèse de

Doctorat – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio

de Janeiro.

L’Impressionnisme et la Bossa Nova – une Thèse de Surface se présente comme

une vaste mosaïque dans laquelle des champs disciplinaires divers et éloignés les uns des

autres peuvent interagir d'une façon harmonieuse et libre. Sollicitant des données issues

de domaines comme la théorie de la chanson, l'histoire culturelle, la psychologie

cognitive, la musicologie, la critique d'art, les neurosciences et la biologie de l’évolution,

parmi d'autres, le travail est structuré en trois parties qui sont à la fois autonomes et

complémentaires. Dans la première sont abordés des thèmes liés à la dimension

mélodique et linéaire de la musique ; à sa relation avec la mémoire et la perception du

temps. Les œuvres de Tom Jobim servent alors de modèles nous permettant de mettre en

lumière le caractère éminemment mélodique de la chanson commerciale. En tentant de

définir la place qu’occupe cet artiste dans la tradition de la chanson brésilienne on met

également en évidence le caractère innovant d’une œuvre qui rompt avec le passé. Dans

la deuxième partie, le regard se déplace vers le rôle de l'harmonie et sur la dimension

verticale dans la musique, dimension responsable de son impact instantané sur l’auditeur.

En plus d'une longue introduction sur le changement du discours harmonique qui s’est

opéré dans la musique européenne du XIXe siècle, on met l'accent sur l’importance des

sensations les plus directes dans la tradition musicale moderne, au rebours d'une vision

qui en privilégie les dimensions narratives et linéaires. On montre ensuite comment, à la

faveur d’un tel déplacement, il devient possible d’opérer un rapprochement non

seulement entre la musique de Claude Debussy et la peinture de Claude Monet

(l’Impressionnisme), mais aussi entre l’art de ces derniers et le nouveau style créé par

Tom Jobim et João Gilberto au Brésil (la Bossa Nova). Dans la troisième et dernière

partie du travail, on propose un regard nouveau sur la dimension rythmique de la musique

brésilienne. L’objectif est ici un élargissement, à la lumière d'études récentes, de la

compréhension de la relation du rythme avec le corps (l'organisme), avec la langue et

avec l’idée d’une formation culturelle. Dans cette partie, la musique de Tom Jobim et de

João Gilberto demeure le principal paramètre comparatif.

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Mots-clé

Musique Brésilienne ; Impressionnisme ; Bossa Nova ; Debussy ; Tom

Jobim ; João Gilberto.

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Sumário

1. Introdução 11

2. Quadro 1 – Melodia, tempo e memória 16

3. Quadro 2 – Harmonia, sensação e espaço 79

4. Quadro 3 – Ritmo, corpo e movimento 154

5. Conclusão 227

6. Referências Bibliográficas 238

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1 Introdução

O presente texto pode ser definido como tese/ensaio. Tese, porque trata-se,

muito obviamente, de um trabalho de conclusão para a obtenção do título de

doutor; ensaio, porque há nele suficiente espaço para digressões, fugas,

aproximações livres, intuições ligeiras, inserções abruptas, tudo o que geralmente

costuma ser excluído do gênero mais convencionalmente entendido como tese,

mas que encontra na forma-ensaio (que já teve dias de maior prestígio na

academia) um terreno acolhedor. Claro está que não há qualquer julgamento de

valor nisso. A forma-ensaio tem seu conjunto de leis próprias e seria injusto

insinuar que o ensaio é o lócus da livre articulação de ideias, do jogo lúdico de

associações, das digressões que bastam pelo interesse que provocam em si,

enquanto a tese seria caracterizada por um maior rigor demonstrativo e por regras

restritivas que trabalhariam no sentido de uma uniformização da linguagem e,

sobretudo, na manutenção de um centro focal. E aqui toco no principal ponto que

me leva a definir este trabalho como tese/ensaio: menos na linguagem do que num

certo descompromisso em relação ao objeto. Embora anunciados pelo título, o

Impressionismo e a Bossa Nova são personagens que vão e voltam; somem para

depois reaparecer; encontram-se lá pelo meio da história, dialogando com maior

intensidade, para depois se ausentarem novamente, sumindo na bruma, como

pedaços de melodia que recuam diante de acordes coloridos, gordos, deixando-nos

com a contemplação pura do cenário harmônico. Não é a tese que gira em torno

dos objetos da comparação, lançando luz sobre suas infinitas facetas, mas os

objetos que transitam em torno da tese, como planetas inseridos num sistema

solar. Daí também a pouca preocupação em delimitar com nitidez os contornos de

temas tão vastos, optando-se por uma compreensão menos detalhada, mais

genérica, dos objetos em questão.

Para que tudo isso não se tornasse demasiadamente frouxo, para que as

digressões não desaguassem num princípio de entropia, era necessário delimitar

alguns pontos estruturais básicos. Daí veio a divisão em forma de tríptico, cada

um deles salientando um aspecto clássico da reflexão musical. Digo “da reflexão”

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porque sabemos que na prática não há distinção entre melodia, harmonia e ritmo.

Estão absolutamente integrados no fenômeno musical. Mas como eixos

conceituais básicos não apenas são, desde muito, largamente utilizados como

continuam sendo os mais aptos a análises e interpretações. E por um motivo

básico: são mais facilmente quantificáveis e respondem de modo mais claro por

funções estruturais e sintáticas na construção dos estilos musicais. Um elemento

como o timbre, embora seja a primeira qualidade sonora a ser reconhecida por

nossa memória (se ouço um acorde e um ataque de voz já identifico o estilo Bossa

Nova, muito antes de reconhecer de que canção se trata), dificilmente chega a

formar estruturas significantes. Tampouco se articula em relações internas capazes

de formar pelo menos o esboço de um sistema de forças, de uma hierarquia

sintática. Sendo assim, tomei os elementos mais consagrados da análise musical

como pilares centrais do edifício do texto.

A esses pilares, incorporei conceitos que traziam as relações

preponderantes, os vínculos mais profundos desses eixos estruturais com a

percepção humana. Desse modo, a melodia está mais fortemente ligada com a

memória, com a reconstrução linear de uma seqüência, embora também provoque

sensações verticais, instantâneas, e não raro seja também capaz de nos fazer

dançar, com seu balanço rítmico. A harmonia, por sua vez, atinge uma liberdade

sonora inédita com Debussy, tendo sua dimensão de sensação pronunciada como

nunca antes, mas nem por isso deixa de participar de uma linha discursiva, com

seus antes e depois, seus encadeamentos mais ou menos prováveis, estruturados

em constante relação com a lógica da harmonia funcional, assim como continua

sendo um elemento central na própria definição rítmica de uma música – não

posso deixar de mencionar aqui o fato estranho, misterioso, de que acordes

menores frequentemente soam mais “lentos” do que acordes maiores, mesmo

quando no relógio possuem a mesma duração, da mesma forma que acordes com

fraca definição tonal são capazes de cavar vazios no interior do fluxo musical,

alterando a percepção que se tem do tempo de uma música. Por fim, mesmo que o

ritmo seja a própria essência da música (talvez da vida humana, mesmo), estando

presente em todas, absolutamente todas as suas dimensões como indutor de

sentidos, às vezes sua presença torna-se tão extrema que ele salta à frente,

ganhando intensa adesão corporal. É quando a música sequer parece estar sendo

dirigida aos ouvidos, muito menos ao entendimento consciente, racional, e

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tampouco à memória, mas a essa unidade maior que condiciona e produz o

próprio “eu”: o corpo.

A essas duplas – melodia/memória, harmonia/sensação, ritmo/corpo –

acrescentei ainda desdobramentos conceituais quase inevitáveis, expressos pela

adição de mais uma palavra. Tornaram-se tríades dentro do tríptico. Sendo assim,

melodia e memória remetem diretamente a uma apreensão mais linear do tempo,

da mesma forma que harmonia e sensação apontam para o interessante problema

da dimensão propriamente espacial da música, e ritmo e corpo nos levam ao

princípio de movimento – sonoro e corporal. Os termos são muito amplos, as

definições muito fluidas, exageradamente abertas, e talvez até (por que não?)

intercambiáveis. Melodia/memória/tempo, harmonia/sensação/espaço,

ritmo/corpo/movimento, poderiam ser embaralhados sem perder a pertinência. O

primeiro quadro bem poderia ser, por exemplo, melodia/corpo/espaço; o segundo,

ritmo/sensação/tempo, e por aí vai. Mas talvez fosse mesmo necessário que a

arquitetura do texto fosse projetada sobre um plano muito genérico, pois só assim

haveria certa liberdade do trânsito de ideias e intuições dentro da tese/ensaio.

Cria-se com isso uma malha flexível, um reticulado com as diretrizes conceituais

de cada ensaio servindo como pilares que são atravessados horizontalmente pelo

Impressionismo e pela Bossa Nova. Tal estrutura de fundo também permitiria,

talvez, que campos de conhecimento tradicionalmente muito distantes entre si

fossem aproximados e - pretensão máxima - postos em interação, como elementos

químicos reagindo no interior de um tubo de ensaio. Perde-se em inteireza e

coerência o que se ganha em maleabilidade. Mesmo que água e óleo jamais

venham a se misturar, nem por isso deixam de formar interessantes e sinuosas

formas, com bolhas, áreas de transição, densidades distintas e inesperados matizes

de cor.

Uma vez definida a arquitetura, as referências foram sendo trazidas, tendo

como limite óbvio o próprio alcance dos meus estudos. É como se houvesse um

imenso tabuleiro com casas vazias a serem preenchidas. O time escolhido, se não

é suficientemente vasto, tem pelo menos a virtude de ser bastante variado.

Escritores (Proust, Baudelaire), filósofos (Santo Agostinho, Nietzsche),

musicólogos (Lorenzo Mammì, Leonard B. Meyer, Stefan Jarocinsky, David

Huron), neuroscientistas (António Damásio, Rodolfo Llinàs), paleontólogos

(Steven Mithen, Bruce Richman), lingüistas (Luiz Tatit, Alison Wray), pintores

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(Monet, Matisse), historiadores e críticos de arte (Argan, Gombrich), para não

mencionar todos os músicos citados, aparecem com certo destaque ao longo desta

tese/ensaio que, apesar da aparência que lembra um mosaico, possui também um

fio condutor, capaz de amarrá-la por dentro.

Atrás da estrutura acima descrita, haveria, portanto, uma unidade maior que

religa e traz um sentido mais amplo aos três quadros. Como o próprio termo

“tríptico” sugere, os ensaios são a um só tempo autônomos e interdependentes.

Geram, contudo, uma espécie de efeito de conjunto. Mais do que formular

questões bem definidas, mais do que defender argumentos precisos, fazem um

balanço indireto de minha experiência, de minhas reflexões e vivências como

músico e pesquisador da canção brasileira – e, nesse sentido, a tese é

profundamente ensaística, testemunha do percurso nem sempre coerente do meu

pensamento ao longo dos últimos quatro anos. A relação entre Impressionismo e

Bossa Nova (aparentemente o tema oficial, como sugere o título) torna-se,

portanto, uma espécie de “estudo de caso” inserido no contexto maior de

indagações teóricas mais amplas.

Como o leitor poderá perceber, conforme for adentrando o espaço

arquitetônico do texto, parte dessas indagações é perpassada pelo tema dos

universais no ato de apreensão musical. Embora seja na maior parte do tempo

mantido como pano de fundo, a aproximação com tal tema se me tornou

praticamente inevitável no período de um ano e meio em que passei na França. E

isso porque, sendo músico, pude colher de perto alguns efeitos recorrentes

causados por determinada linhagem da música popular brasileira sobre pessoas

que tinham muito pouco contato com outros aspectos de nossa cultura. Não falo

exatamente dos franceses, mas de nacionalidades bem mais distantes de nosso

universo cultural, com uma quantidade de contatos históricos infinitamente

menor. Em outras palavras, pude ver um pouco do efeito causado por essa

linhagem da canção (que será melhor definida no fim do escrito) quando

radicalmente deslocada de seu contexto original. Os significantes sonoros,

musicais e linguísticos, agindo com pouco ou nenhum recurso exterior de

codificação cultural. Dialogando de modo mais intenso com aspectos intrínsecos

da apreensão humana da música, ao mesmo tempo em que comunicavam o

conteúdo específico e puramente sensorial de determinada formulação cultural, da

fabulação de determinado povo inserido em determinada época. Capazes de gerar,

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talvez, como sugere Baudelaire ao falar da música puramente instrumental de

Wagner, “ideias análogas em cérebros diferentes”.

O que para mim se tornou claro foi a capacidade de comunicação da música

popular brasileira. Sua capacidade de ir além das fronteiras culturais e tocar

também em outros horizontes - a música de Tom Jobim e João Gilberto, a Bossa

Nova em sua essência, talvez tenha representado o momento de maior evidência

disso. E tocar de um modo específico, gerando um tipo de “compreensão” que

parece depender apenas da existência de um corpo humano modelado por milhões

de anos de evolução. Em um mundo com a troca de informações e de bens

simbólicos cada vez mais acelerada, rarefeita, onde não há tempo para a

reconstrução mínima dos ditos contextos originais, talvez seja mais do que nunca

dessa forma que a música brasileira vem sendo experimentada fora do país: fluxos

de significantes sonoros, encontros e desencontros de linguagens e referências,

associações imprevistas, relações dinâmicas tecidas com memória mais imediata,

palavras que valem pelos sons e texturas que geram, capazes de produzir um

significado aberto, apenas intuído. João Gilberto tocando para um público de

japoneses (e será que podemos dizer que os japoneses não entendem a música de

João Gilberto?).

Sei de quão espinhoso e complexo é o tema, e que tal universalismo é

evidentemente poluído, posto que a Bossa Nova participa também, e de modo

intenso, da tradição da música ocidental. A aproximação dela com a música de

Claude Debussy, na segunda parte, e sua própria relação com a música americana,

dão testemunho disso. Mas não creio que todo o problema se esgote por aí. Pelo

contrário: acho que ele apenas começa aí. Parte do esforço deste trabalho foi

exercido na direção de lançar sobre a música brasileira que foi produzida em

determinado caldo cultural de determinada época um olhar menos exclusivamente

culturalista. Os dados históricos e sociais dialogando com teorias recentes não

apenas sobre os modos de percepção do mundo, mas sobre os modos de introjeção

do mundo pelo ser humano. Sobre as relações cruciais entre o vasto e imemorial

tempo biológico e o curto tempo histórico.

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2 Quadro 1 – Melodia, tempo e memória

No principal romance de Proust as descrições musicais estão diretamente

vinculadas à paixão, ao tempo e à memória. Ou seja, aos grandes temas de Em

Busca do Tempo Perdido. O que mais fascina nessas descrições é o caráter

dinâmico apresentado por elas - são, de certo modo, descrições “abertas”. Elas

mudam no tempo: a mesma música, ouvida em diferentes momentos, torna-se

também ela diferente. Mudam também de acordo com o personagem que as

absorve: nem todos conseguem extrair da experiência estética tudo o que ela tem

para oferecer. Esse caráter dinâmico, capaz de sempre manter uma dose de

indefinição na elaboração da trama, parece diretamente ligado aos mecanismos da

memória, à instabilidade e à inexatidão que lhes são próprias. É por isso que ao

longo do romance a verruga de Albertine, amante do narrador, migra do queixo

para os lábios, e daí para a bochecha.

Se a ficção de Proust explora o modo como o tempo modifica a memória, o

ciclo se fecha com a própria música: porque o papel crucial desempenhado pela

música no romance vem do fato de que ela representa um modelo perfeito da

memória involuntária – a principal pedra de toque da saga do narrador, o

acontecimento íntimo capaz de conectar o fluxo desbaratado da vida numa

totalidade e assim reconstituir a natureza fugidia do tempo. “A música”, notou

Samuel Beckett, “é o elemento catalisador na obra de Proust” – o eixo

fundamental do desenvolvimento do romance. Ela mimetiza em seu próprio

desenvolvimento temático o mecanismo da memória involuntária, realizando em

sua estrutura o modelo ideal de obra a ser criada. Um modelo capaz de respeitar a

individualidade dos personagens e motivos, e, ao mesmo tempo, de transcendê-los

e integrá-los numa unidade maior. Uma obra total que tem por objetivo “reunir

diversas individualidades”. Proust parece ter enxergado primeiramente em

Richard Wagner esse modelo. Numa música que “jamais volta atrás, mas que

utiliza sempre os mesmos motivos, os mesmos recursos de base para alcançar um

desenvolvimento contínuo a um só tempo extremamente coeso e extremamente

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livre”.1 O tema da superioridade da linguagem musical torna-se, desse modo,

intimamente ligado a uma ideia de unidade da obra. Porque as ligações entre

frases musicais análogas em peças distintas, assim como as analogias entre frases

no desenvolvimento da mesma obra sugerem de modo nítido uma “metáfora

musical da memória involuntária”. Para que pudesse servir como modelo literário

era necessário que a música fosse vista como uma linguagem particular, com

especificidades próprias que outros tipos de arte parecem não possuir. A chave,

como foi sugerido, está na relação que esta mantém com a memória. Seu alcance

metafórico, contudo, parece ir além. Jean-Jacques Nattiez sugere que “a música

mimetiza a vida e prefigura o trabalho que deve empreender o romancista para

juntar os cacos de sua experiência em um todo único e organizado, porque ela

funciona como a memória involuntária”.2 É a partir daí que Proust começa a

elaborar, dentro do romance, uma pequena teoria da penetração perceptiva da

obra musical.3

Essa teoria reflete sobre o processo através do qual a memória e a

inteligência passam a mediar a fruição musical. Basicamente, Proust distingue

três fases distintas na percepção de uma obra. Essas fases vão sendo descritas de

acordo com as audições espaçadas de uma mesma peça – a sonata de Vinteiul – e

através da experiência subjetiva de dois personagens – Swann, e o próprio

narrador do romance. A primeira fase diz respeito ao momento inicial do embate

com a obra. Os sentidos são bombardeados de estímulos e a memória ainda não é

capaz de ordenar a matéria sonora. O resultado é uma percepção difusa, vaga,

nebulosa, formada por um fluxo contínuo de sensações inefáveis, pouco definidas.

Notas que se esvaem antes que as sensações possam ser cabalmente formadas na

consciência, sendo logo sucedidas pelas notas seguintes ou mesmo simultâneas.

Não podendo a atenção abarcar o inteiro da obra, um princípio de seleção se ergue

e destaca, do meio da massa sonora, a famosa pequena frase – o anúncio de uma

ordem linear, um desenho. A melhor descrição dessa primeira fase nos é dada no

momento em que Swann ouve uma parte da Sonata no salão dos Verdurin, num

arranjo para piano: “Primeiro, só lhe agradara a qualidade material dos sons

empregados pelos instrumentos. E depois fora um grande prazer quando, por

1 Cf. Pierre Boulez, Points de Repère, Paris, Christian Bourgois Editeur, 1981, p.66.

2 Cf. Jean Jacques Nattiez, Proust Musicien, Paris, Christian Bourgois Éditeur, 1999, p.127.

3 Ver, nesse sentido, Jean Jacques Nattiez, op. Cit., p. 80-90.

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baixo da linha do violino, tênue, resistente, densa e dominante, vira de súbito

tentar erguer-se num líquido marulho a massa da parte do piano, multiforme,

indivisa, plana e entrechocada como a malva agitação das ondas que o luar

encanta e bemoliza. Mas em certo momento, sem que pudesse distinguir

nitidamente um contorno, dar um nome ao que lhe agradava, subitamente

fascinado, procurara recolher a frase ou a harmonia - não o sabia ele próprio - que

passava e lhe abria mais amplamente a alma, como certos perfumes de rosas,

circulando no ar úmido da noite, têm a propriedade de nos dilatar as narinas”.4

Para Proust, impressões assim tão confusas, inteiramente irredutíveis a

qualquer outra ordem de impressões, “são talvez as únicas puramente musicais” –

uma impressão sine materia, como o próprio escritor define. No caráter vago

dessa descrição, em sua falta de contornos, assim como na utilização de metáforas

associadas ao mar – “líquido marulho”, “malva agitação das ondas” – Nattiez

notou uma relação direta com a música de Debussy: “Proust décrit cette première

audition de la Sonate exactement comme il le ferait d'une œuvre de Debussy, à la

fois en raison du caractère fragmentaire, subtil et frissonnant du matériau

sonore ”.5 Uma sensação semelhante a essa de estar perdido no meio da matéria

sonora foi também sentida por muitos daqueles que escutaram a execução da

primeira obra madura de Debussy, em 1890, a obra que faria colar nele a etiqueta

de impressionista: o Prélude à l’après-midi d’un faune. Ela foi descrita por

espectadores estupefatos como “música sem melodia”, composta mais por

manchas sonoras do que propriamente por um encadeamento temático – daí sua

comparação com o impressionismo pictórico que a precedeu. Durante muito

tempo (talvez até hoje), Debussy foi visto dessa forma – Adorno enxergou em sua

música “uma justaposição de cores e superfícies, como a de um quadro”.6 O

importante é notar que, para o personagem Swann, o caráter vago e desconexo da

impressão inicial é superado somente quando seus sentidos passam a ancorar-se

no trecho melódico da pequena frase. É através dessa breve sucessão de notas que

se cria o princípio de ordem necessário para integrar a inteligência racional e a

memória na escuta, possibilitando a passagem para a segunda fase da percepção

4 Cf. Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: No Caminho de Swann, São Paulo, Globo,

2006, p. 262. 5 Jean-Jacques Nattiez, op. Cit., p.93 – “Em razão do caráter fragmentário, sutil e movediço do

material sonoro, Proust descreve essa primeira audição da Sonata exatamente como ele faria se

estivesse descrevendo uma obra de Debussy”. (Tradução livre) 6 Cf. Theodor Adorno, Filosofia da Nova Música, São Paulo, Perspectiva, 2007, p.144.

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É desse modo que a música sai do plano das sensações indescritíveis e

começa a ganhar contornos mais nítidos. Ainda durante a primeira audição da

Sonata no salão dos Verdurin, quando a pequena frase retorna, Swann já conta

com uma “transcrição sumária e provisória” que sua memória havia feito dela. A

impressão que retorna já não é mais inapreensível: “Ele lhe concebia a extensão,

os grupos simétricos, a grafia, o valor expressivo; tinha diante de si essa coisa que

não é mais música pura, que é desenho, arquitetura, pensamento, tudo o que nos

torna possível recordar a música”.7 Fica claro, a essa altura, que a entrada ativa da

memória muda inteiramente as bases do jogo musical. Ela torna os contornos

musicais discerníveis, pois os livra do “disfarce uniforme da novidade”. O próprio

narrador, tomando como base a mesma sonata, irá refletir sobre isso num

momento posterior do romance:

Probablement, ce qui fait défaut, la première fois, ce n'est pas la compréhension,

mais la, mémoire. Car la nôtre relativement à la complexité des impressions

auxquelles elle a à faire face pendant que nous écoutons, est infirme (...). Ces

impressions multiples, la mémoire n'est pas capable de nous en fournir

immédiatement le souvenir. Mais celui-ci se forme en elle peu à peu (…).8 (Apud.,

Jean-Jacques Nattiez, op.cit.., 86)

A partir desse ponto, a música torna-se uma linguagem capaz de descrever.

Num estágio intermediário, esse caráter descritivo a aproxima rapidamente da

pintura – a pequena frase chega a evocar os interiores do holandês Pieter de

Hooch. Logo depois ela adquire um estatuto quase linguístico. Torna-se

praticamente capaz de falar com Swann (“apaziguadora e murmurada como um

perfume, dizendo-lhe o que tinha a dizer, e de que ele perscrutava todas as

palavras, lamentando vê-las fugirem tão depressa”)9, de transmitir-lhe ideias

(“Swann tinha os motivos musicais por verdadeiras ideias”). Algumas notas com

significados cambiantes, fugidios, às quais o personagem confere diferentes

sentidos, segundo a evolução dos seus sentimentos. Ainda que a codificação não

pudesse ser resolvida em raciocínios, “a frase de Vinteuil, como determinado

tema de Tristão, por exemplo, que nos representa também certa aquisição

7 Cf. Marcel Proust, op. Cit., p.263 (grifo meu)

8 “Provavelmente, o que nos falta na primeira vez não é a compreensão, mas a memória. Porque a

nossa, diante da complexidade das impressões que ela deve dar conta enquanto escutamos, é

relativamente impotente(...)” (tradução livre) (Apud., Jean-Jacques Nattiez, op.cit.., 86) 9 Cf. Marcel Proust, op. Cit., p.418.

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sentimental, havia esposado a nossa condição mortal e adquirido algo de humano

que era assaz comovedor”.10

Não à toa Nattiez associa essa fase da percepção musical com a figura de

Wagner, e com o pendor narrativo de sua linguagem musical. Wagner é, segundo

Claude Lévi-Strauss, o músico do mito – aquele que “codifica suas mensagens a

partir de elementos que são já da ordem da narrativa”.11 Desse modo, Swann

transforma a pequena frase numa etiqueta musical. Sua perspectiva, o alcance de

sua visão, torna-se meramente associativo. Um acessório figurativo capaz de

evocar as belezas do amor nascente, no começo, e depois as sombras do amor

moribundo. Do mesmo modo em que boa parte do fascínio que os quadros antigos

despertam nele passa pela identificação desses retratos com pessoas “reais” que

transitam no seu mundo cotidiano – Odette, que a princípio ele achava pouco

atraente, só se torna verdadeiramente desejável quando é descoberto seu

equivalente pictórico num quadro do “grande Sandro Boticelli”. Somente assim

ela se torna digna do amor de Swann – subitamente enobrecida pela pátina da

história e da grande tradição do passado. “Para Swann, amador de arte, a pequena

frase de Vinteuil age frequentemente como uma placa associada à paisagem do

bosque de Boulogne, ao rosto e ao personagem de Odette: é como se ela trouxesse

para Swann a segurança de que o bosque de Boulogne foi efetivamente seu

território e Odette sua posse”, escrevem Deleuze e Guattari.12

Swann tornara-se capaz de identificar na própria matéria musical aquilo que

correspondia aos sentimentos que ele lhe associava. O que Proust nos mostra é o

mecanismo de funcionamento simbólico da música. O fato musical considerado

não como um dado imediato, mas como o fruto de uma construção elaborada pela

inteligência ao longo do processo perceptivo: “...na realidade ele sabia que ele

raciocinava assim não sobre a frase em si, mais sobre os simples valores

substituídos pela comodidade de sua inteligência à misteriosa entidade que ele

havia capturado”. É essa substituição associativa que permite à pequena frase

tornar-se o “hino nacional” do seu amor por Odette. Ganha, desse modo, a

significação do contexto amoroso no qual Swann havia travado conhecimento

com ela. E quando esse amor fenece, ela passa a remetê-lo a dados e situações

10

Cf. Idem, Ibidem, p.420. 11

Cf. José Miguel Wisnik, O Som e o Sentido, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p.170. 12

Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia vol.4 ( Acerca do

Ritornelo), São Paulo, Editora 34, 1997, p.126.

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insignificantes pertencentes ao mesmo momento passado. Mas o poder

significante da pequena frase não se esgota nisso: ao mesmo tempo em que é

testemunha da fragilidade do seu amor, possui uma dimensão própria, como se, no

fundo, não fosse tocada pela situação contingente que levou Swann a apreciá-la.

Ao conquistar uma autonomia cada vez maior, transforma-se num verdadeiro

leitmotif.

Deleuze e Guattari sugerem que,

Proust, precisamente, foi um dos primeiros a destacar esta vida do motivo

wagneriano: ao invés de o motivo estar ligado a um personagem que aparece, é

cada aparição do motivo que constitui ela própria um personagem rítmico, ‘na

plenitude de uma música que efetivamente tantas músicas preenchem, e da qual

cada uma delas é um ser’. E não é por acaso que o aprendizado de La recherche

persegue uma descoberta análoga a propósito das pequenas frases de Vinteuil: elas

não remetem a uma paisagem, mas levam e desenvolvem em si paisagens que não

existem mais fora.13

Ao instaurar a partir de si mesma uma realidade própria que já não mais

depende de referências exteriores, o trecho melódico torna-se capaz de trazer para

Swann uma revelação, um alargamento da compreensão para o qual, sem ela, ele

jamais estaria apto. “Ela logo lhe insinuara peculiares volúpias, que nunca lhe

ocorreram antes de ouvi-la, que só ela lhe poderia ensinar, e sentiu por aquela

frase como que um amor desconhecido”.14 Mas ainda que Swann consiga por

vezes intuir o potencial de revelação contido no trecho melódico, sua

compreensão é incapaz de tocar esse núcleo. A cada descrição da Sonata, e de

modo cada vez mais intenso, Proust sugere uma dimensão transcendente na

direção da qual Swann poderia se dirigir, mas a qual ele no fundo jamais

alcançará:

Também esse amor por uma frase musical pareceu um instante que devia trazer a

Swann alguma possibilidade de renovação.(...) Swann achava em si, na lembrança

da frase que ouvira, nas sonatas que mandara tocar para ver se acaso a descobriria,

a presença de uma dessas realidades invisíveis em que deixara de crer e às quais

sentia de novo o desejo e quase a força de consagrar a vida, como se a música

tivesse uma espécie de influência eletiva sobre a secura moral de que sofria.15

Caberá ao Narrador dar o passo seguinte na compreensão da Sonata e

adentrar assim a terceira fase da percepção musical: a fase na qual são

13

Idem, p.127. 14

Cf. Marcel Proust, op. Cit., p.263. 15

Cf. Idem, Ibidem, p.263-4.

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ultrapassadas as contingências descritivas e quase linguísticas da música para

revelar-se, por trás delas, a ideia de uma obra essencial, profunda, absoluta. Na

estética proustiana o absoluto situa-se além da inteligência. Em sua pequena

teoria da percepção musical, o escritor francês descreve o trabalho da inteligência

que aos poucos se destaca da razão, da racionalidade, para atingir um estado de

contemplação pura no qual se revela a essência da vida. O estatuto linguístico da

música será definitivamente ultrapassado no momento em que ela tiver atingido

sua plena dimensão transcendente. Nesse momento, não estamos mais diante de

um quadro descritivo, de placas ou etiquetas, mas de um jogo puramente musical

de formas abstratas, onde as contingências exteriores foram apagadas. É

justamente isso o que deixa transparecer as descrições que o narrador faz do

Septour de Vinteuil, sua obra final, da qual a pequena frase arquetípica é apenas

uma das partes:

Si ces êtres (les deux motifs) s’affrontaient, c’était débarrassés de leur corps

physique, de leur apparence, de leur nom, et trouvant chez moi un spectateur

intérieur – insoucieux lui aussi des noms et du particulier – pour l’intéresser à leur

combat immatériel et dynamique et en suivre avec passion les péripéties sonores.16

A música é finalmente assimilada em sua pureza e transcendência próprias,

irredutíveis a qualquer outra linguagem. Platonicamente, volta ao estado de ideia

pura – sine materia - mas que não se deixa confundir com as abstrações da razão.

A visão de Proust ancora-se na estética de Schopenhauer, para quem a música

seria, justamente, capaz de pintar tudo aquilo que recusa a ser integrado nas

abstrações da razão:

A generalidade da música em nada se parece com a generalidade oca da abstração;

ela é de uma outra natureza; ela se alia a uma precisão e a uma claridade absolutas.

O compositor nos revela a essência íntima do mundo, ele se faz intérprete da

sabedoria mais profunda, e numa língua que a sua razão não compreende (...). (Apud., Jean Jacques Nattiez, op.cit..., p.147)

Para Schopenhauer a música também é, como as outras artes, uma

representação, mas ao ir além de uma descrição precisa do mundo, ela torna-se

16

“Se esses seres (os dois motivos) se enfrentavam, é porque haviam se livrado de seus corpos

físicos, de suas aparências, de seus nomes, encontrando em mim um espectador interior –

despreocupado ele também dos nomes e do particular – capaz de se interessar por aquele combate

imaterial e dinâmico e de seguir com paixão as peripécias sonoras”. (Apud., Jean-Jacques Nattiez,

op.cit.., p.131) (Tradução Livre)

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representação imediata da essência – daí a sua diferença e seu lugar privilegiado

na hierarquia das artes, tanto para ele quanto para Proust, que exige que a

literatura a alcance, fazendo da própria música o seu modelo. O que buscam os

dois é atingir a essência além dos fenômenos.17

Nessa terceira fase da percepção, Nattiez encontra um paralelo nas obras

tardias de Beethoven – sobretudo nos seus quartetos. O musicólogo aponta para o

fato de que as etapas de penetração perceptiva da teoria de Proust – da percepção

pura de uma música vagamente descritiva, passando pelo trabalho da inteligência

que lhe permite adquirir contornos mais precisos, transformando as frases

musicais em verdadeiras ideias, até que ela seja, ao se ultrapassar a razão,

finalmente apreendida em toda a sua pureza transcendente – são dispostas numa

ordem inversa à da cronologia histórica: Debussy, Wagner, Beethoven. Creio,

contudo, que seria apressado enxergar nisso uma disposição hierárquica da parte

de Proust – mesmo porque o escritor não é tão explícito nessas associações.

Antes, parece que elas decorrem de uma identificação dos estágios da percepção

com tendências do tipo de escuta suscitada pela linguagem específica de cada um

desses compositores. Debussy tendendo para a sensação pura, algo indefinida,

mais próxima das visões espaciais – superfícies, cheiros e cores - do que do

encadeamento temporal. Tal como acontece num primeiro contato com uma obra

que ainda não conhecemos, ou quando nos falta o primeiro elemento sobre o qual

se apóia a memória: a melodia. Wagner, ao contrário, ressaltando a autonomia dos

leitmotiven, decodificando-os em sentidos narrativos, ideias – a música tornando-

se capaz de descrever, de comunicar conteúdos que lhe são externos. E último

Beethoven, músico que, embora pertencesse ao contexto clássico, tentava apontar

para fora dele tornando as fissuras e descontinuidades do código tonal cada vez

mais aparentes, manifestas – fazendo delas a matéria de base de sua obra tardia.

Como sugere José Miguel Wisnik “a ‘obra de maturidade’ de Beethoven oscila

entre a máscara de convenção que ela parece aceitar como à morte, e as feridas

pelas quais se insurge contra esta, e que se inscrevem na sua textura estranha

17

O próprio Proust escreveria numa carta: “A essência da música é despertar em nós um fundo

misterioso (e que não pode ser exprimido pela literatura e nem pelos modos de expressão

acabados, que se servem ou de palavras, e por consequencia de ideias, coisas determinadas, ou de

objetos determinados – pintura, escultura) de nossa alma, que começa lá onde o acabado e todas as

artes que tem por objeto o acabado terminam, lá onde a ciência termina, e que podemos por isso

mesmo chamar de religioso”. (Apud., Jean Jacques Nattiez, op.cit..., p.147)

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cheia de cortes, desníveis, falésias, falhas abertas”.18 Foi o primeiro grande músico

da tradição clássica a tentar talvez transcender as codificações da linguagem tonal

sobre a qual assentava-se essa mesma tradição – buscando assim atingir uma

espécie de linguagem absoluta da música (e, em certo sentido, Wagner e Debussy

seguem a trilha de Beethoven).

...

É bastante notável na sensibilidade de Proust o modo como os sons podem

ser reveladores. Frequentemente o escritor está atento para o modo de entonação

do que é dito, apontando para o plano propriamente sonoro da língua. O perfil

psicológico de um dos personagens da trama é descrito, entre outras coisas, pelo

jeito com que pronuncia as consoantes:

Ao falar, saíam-lhe as palavras num balbucio verdadeiramente delicioso, pois se

via que isso denotava menos um defeito da língua que uma qualidade da alma,

como que um resto de inocência da primeira infância, que ele jamais perdera.

Todas as consoantes que não podia pronunciar correspondiam a outras tantas

durezas de que era incapaz na vida.19

Como bem notou Jean-Jacques Nattiez, Proust praticou uma abordagem

perceptiva da música, não-objetiva, que ancorava-se nos efeitos diversos que ela

produzia e nas ideias que suscitava.20 Ao refletir sobre ela, cria uma pequena

teoria da percepção musical. As incríveis descrições sinestésicas do prazer

musical, e o papel que elas exercem na condução narrativa são emolduradas por

uma visada cognitivista. Artista e cientista parecem unificados em sua prosa – “a

sensação está para o escritor como a experimentação para o cientista”.21 Há algo

que ultrapassa a particularidade dos casos específicos e remete constantemente a

uma compreensão mais abrangente sobre os mecanismos impessoais que estão por

trás da experiência subjetiva. Temos assim um detalhado mapa do caminho feito

pela música na mente de Swann, que, mesmo apontando para um modo de

funcionamento psicológico mais amplo, não se deixa reduzir a um modelo – não

se cristaliza num quadro explicativo.

18

Cf. José Miguel Wisnik, op.cit..., p.157. 19

Cf. Marcel Proust, op.cit..., p.256. 20

Ver Jean-Jacques Nattiez, op.cit.., p.34. 21

Apud. Jonah Lehrer, Proust Foi um Neurocientista, Rio de Janeiro, Editora Best Seller, 2009,

p.124.

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Talvez o destaque da música dentro da Recherche, não apenas como objeto

de reflexão mas também como modelo de estruturação da própria obra, deva-se

muito simplesmente ao fato de que, dentre as artes, é ela a que se relaciona de

modo mais forte e visceral com a memória. No sentido de que ela se impõe com

muita força à lembrança; associa-se com ela; muitas vezes torna-se a chave

principal que abre grandes complexos rememorativos, condensações que se

traduzem em intraduzíveis estados de alma. Aquela música que lembra a

totalidade indefinível de uma determinada época, pessoa ou situação. É certo que

todas as artes utilizam-se da memória, mas somente a música parece fazer da

própria memória o seu plano de existência, o seu principal local de trabalho.

Porque, de certo modo, a música necessita da memória para se realizar. Os gregos

certamente sabiam disso. A música - musiké téchneé – é a arte das musas, e as

musas são filhas de Mnemosine, a deusa da Memória. A palavra musa vem de

mousa, que em grego significa palavra cantada. Ou seja, a palavra cantada, a

palavra que mais claramente se sustenta sobre as qualidades musicais da língua

falada, é filha da Memória.

Isso abre caminho para duas percepções básicas. A primeira, muitas vezes

esquecida, é de que a base e a referência primeira da música foi, e continua sendo,

a voz humana. Isso nos leva para um passado longínquo, onde os elos que uniam

música e língua eram mais nítidos. Por muitos séculos a música do Ocidente foi

essencialmente cantada, e somente depois tornou-se “puramente” instrumental.

Talvez a tendência profunda seja a de escutarmos os próprios instrumentos como

vozes humanas estilizadas. A frase musical ouvida por Swann, embora executada

por um violino, possui o apelo e o chamado de uma voz humana. É percebida

como voz. Como voz que lhe comunica alguma coisa. Muito possivelmente em

função do timbre e da altura do instrumento foi identificada como voz feminina –

e daí as descrições nitidamente femininas que lhe são conferidas, como a da

passante de Baudelaire. Isso também está diretamente relacionado ao fato de que,

assim como acontece na fala, essa voz propõe um discurso que se desenrola

linearmente no tempo. Solitária e desenvolvendo-se em sucessão horizontal, ela

tem o caráter nitidamente melódico. A segunda percepção deriva da própria

etimologia de mousa, no sentido de que a palavra cantada, estabilizada em seus

contornos melódicos e recorrências rítmicas, pode ser mais facilmente

memorizada. Os gregos cantavam seus poemas épicos injetando neles melodia,

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rima e ritmo, para que se tornassem mais facilmente recordáveis. São as

qualidades mais propriamente musicais que facilitam a relação entre a palavra

cantada e a memória. Enquanto a fala tende ao esquecimento, uma vez captado o

seu conteúdo informativo, quando tentamos aprender uma canção a melodia

impõe-se com notável facilidade na recordação. Quase sempre aprende-se a

melodia com estranha rapidez, enquanto a letra exige um lento trabalho da

memória. Quando não se sabe a letra, é possível recompor a melodia da canção

com sílabas soltas ou palavras aleatórias. Temos uma imensa aptidão para reter

padrões sonoros ditos musicais.

Talvez tenha sido esse vínculo privilegiado que une música e memória a

principal causa de seu bem sucedido casamento com o pensamento de Proust. Isso

está intimamente associado com a própria representação do tempo dentro do

romance. Como escritor, Proust está muito mais interessado na dimensão

psicológica do tempo do que propriamente numa engrenagem narrativa baseada

em acontecimentos exteriores. Está mais interessado na sua elasticidade, na

resistência fugidia de uma forma que não se deixa captar, e na possibilidade de

transpor isso para a própria estrutura do romance. É uma constante da Recherche:

cavar imensos buracos de tempo em brechas aparentemente mínimas de espaço

narrativo. Isso pode acontecer no interior mesmo de uma frase, abrindo nela uma

janela que revela, vista de seu interior, uma imensa paisagem exterior. Algumas

frases que chegam a criar um nível de complexidade que pode ser comparado ao

inteiro da obra – como se a forma geral pudesse ser flagrada em cada um dos seus

componentes individuais. Frases de estrutura arborescente, que vão subdividindo-

se em galhos, que por sua subdividem-se em outros galhos e assim em diante - a

realização da Recherche está ligada à invenção de qualquer coisa equivalente ao

princípio de entropia”, o princípio da desordem crescente postulado pela segunda

lei da termodinâmica. O misterioso efeito do instante musical, a modificação que

ele fatalmente opera no modo de sentir o tempo, são desse modo mimetizados

dentro da lógica do encadeamento linear e silencioso da palavra escrita. Com

ferramentas próprias de sua arte, Proust está alterando cadências, gerando ritmos,

manipulando o tempo da narrativa. O que se capta, sobretudo, são os traços

deixados por ela na vida mental de Swann. Daí o tempo ser dilatado. Os

movimentos melódicos encontrando respostas em sensações inusitadas, induzindo

associações, preenchendo e modificando realidades, desencadeando inúmeras

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percepções sobre o estado atual, suscitando lembranças passadas, projetando

possíveis futuros, transitando entre os diversos tempos que compõem a

consciência.

Ora, outra não é a matéria prima da música, definida por Lévi Strauss como

“máquina de suprimir o tempo”. Tal como Proust, também o antropólogo francês

tomou a música como modelo para o seu trabalho, no caso a análise dos mitos. E

o fez após verificar “que em música tinham sido colocados problemas de

construção análogos aos que a análise dos mitos levantara, e para os quais a

música já tinha inventado soluções”.22 Formas musicais como a sonata, a sinfonia,

a cantata, a fuga e o prelúdio ofereciam uma diversidade de modelos de

construção de relações e de sentidos que, de certo modo, ocupavam um lugar

intermediário entre o pensamento lógico e a percepção estética. Eram modos de

pensar. Na ótica de Lévi-Strauss, os mitos não são formados por simples

conteúdos narrativos, mas por agregados semânticos feitos de paralelismos

contrapontísticos, de ressonâncias harmônicas que possibilitam uma leitura a um

só tempo linear e simultânea, como acontece na música. O sentido não está apenas

no fio “melódico”, na horizontalidade da sucessão, mas surge, antes, dos

agrupamentos verticais, “harmônicos”, de dos planos contrapontísticos. A música

oferecia um tecido relacional para o encadeamento de motivos que ia além da

linearidade, do mero encadeamento de personagens e ações.23 Não à toa, Wagner

seria por ele aclamado como “pai irrecusável da análise estrutural dos mitos”.

Para Lévi-Strauss, a música era uma linguagem distinta de todas as outras, e

a única que reúne as características contraditórias de ser a um só tempo inteligível

e intraduzível. A narrativa mitológica – transmitida oralmente, muitas vezes de

forma cantada, com a recitação geralmente acompanhada de disciplinas corporais,

como não poder bocejar ou se sentar – compartilha com a música, e daí o

isomorfismo que compatibiliza os dois sistemas, o fato de que ambas “acionam

naqueles que as escutam estruturas mentais comuns”. Mito e música são, desse

22

Cf. Claude Lévi-Strauss, O Cru e o Cozido, São Paulo, Cosac & Naify, 2004, p.34. 23

Sobre esse ponto escreveu José Miguel Wisnik: “Nos séculos XVI e XVII, diz Lévi-Strauss, a

narrativa mítica, deslocada pelo discurso científico, perde o seu vigor estrutural, investido na trama

das suas correspondências, e se divide em literatura e música. O mito cindido teria migrado para o

romance, através dos seus conteúdos agora desconstelados, e para a música, onde reviveria ao

imprimir a forma cerrada da fuga à polifonia tonal. Assim, no período tonal, “tudo se passa como

se a música e a literatura dividissem entre si a herança do mito”, ficando uma com os personagens

e a ação, e a outra com o tecido relacional através do qual se encadeiam os motivos”. (José Miguel

Wisnik, op.cit.., p.166)

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modo, linguagens que transcendem o plano da linguagem articulada, mas que

necessitam, como esta e ao contrário da pintura, de uma dimensão temporal para

se manifestarem.

A relação com o tempo, no entanto, é construída de modo muito particular:

“tudo se passa como se a música e a mitologia só precisassem do tempo para

infligir-lhe um desmentido. Ambas são, na verdade, máquinas de suprimir o

tempo. Abaixo dos sons e dos ritmos, a música opera sobre um terreno bruto, que

é o tempo fisiológico do ouvinte; tempo irremediavelmente diacrônico porque

irreversível, do qual ela transmuta, no entanto, o segmento que foi consagrado a

escutá-la numa totalidade sincrônica e fechada sobre si mesma. A audição da obra

musical, em razão de sua organização interna, imobiliza, portanto, o tempo que

passa; como uma toalha fustigada pelo vento, atinge-o e dobra-o. De modo que ao

ouvirmos música, e enquanto a escutamos, atingimos uma espécie de

imortalidade”. Acima de tudo, o estruturalista reconhece na música – “o grande

mistério da ciência dos homens” – algo que outras linguagens artísticas não

possuem: o poder extraordinário “de agir simultaneamente sobre o espírito e sobre

os sentidos, de mover ao mesmo tempo as ideias e as emoções, de fundi-las numa

corrente em que elas deixam de existir lado a lado, a não ser como testemunhas e

correspondentes”.24 Operando a um só tempo e intensamente sobre duas grades –

uma fisiológica e outra cultural – ela ousa ir mais longe do que as outras artes

tanto do lado cultura quanto do lado da natureza.

Nota-se com certa facilidade a filiação do pensamento musical de Lévi-

Strauss nas reflexões de Proust – que por sua vez têm como base a filosofia

estética de Schopenhauer. Em ambos a música ocupa um lugar à parte entre as

demais artes, desvelando-se como linguagem desencarnada capaz de falar sem

designar, de dizer o indizível. Linguagem que depende do tempo, que desdobra-se

sobre ele, mas parece dele escapar. E que, ao fazê-lo, atinge uma essência em

estado puro – que experimentamos como “uma espécie de imortalidade”. Como

sugeriu Nattiez, “C'est Lévi-Strauss qui, à notre époque, donnera à cette vision de

24

Cf. Claude Lévi-Strauss, op.cit.., p.48.

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29

la musique le prolongement le plus radical de l'investigation proustienne: pour lui,

la musique, comme le mythe, est une machine à supprimer le temps”.25

...

Aparentemente o princípio musical mais elementar, o mais facilmente

rememorável, é a melodia. O grande centro de significado da sonata de Vinteuil

está na pequena frase. No trecho de melodia que, embora percebido em relação

com o entorno musical, parece trazer em si um significado específico, uma

mensagem. É o trecho sucessivo e linear de alturas sonoras o que nossos ouvidos

ocidentais apreendem primeiro e com maior prontidão. É daí que costumamos

extrair a maior parte do sentido musical. Nessa tradição, a própria dimensão

rítmica está contida na melodia, na duração das notas. É possível, contudo, que

essa tendência melódica seja uma constante em todas as culturas, algo que

acontece como um desdobramento natural do primado da “música vocal”. Os pais

intuitivamente reforçam o perfil melódico da fala – tornando a voz mais aguda,

abrindo exageradamente as vogais, mudando a própria cadência das frases – na

hora de se dirigir a o recém-nascido. Musicalizam, por assim dizer, a fala e os

gestos para desenvolver o universo emotivo do bebê e preparar o terreno para uma

posterior aquisição da linguagem. A produção de uma fala musicalizada

especialmente destinada à comunicação com bebês (e também com animais de

estimação), foi observada em distintas culturas, como traço comum da

vocalização humana. Bebês escutam a voz dos pais como um fluxo melódico

contínuo, e não como encadeamento de palavras. Respondem fisiologicamente de

modo mais significativo aos estímulos do canto materno do que propriamente ao

seu discurso falado. Nesse contexto, a melodia é a mensagem, e a relação humana

com ela parece ter origem remota na monodia da voz materna interagindo com o

bebê. É como se houvesse, por trás das diferentes línguas, uma única e mesma

“música de fundo”.26

25

“(...) é Lévi-Strauss que, em nossa época, dará a essa visão da música o prolongamento mais

radical da investigação proustiana: para ele, a música, como o mito, é uma máquina de suprimir o

tempo”. (Jean-Jacques Nattiez, op.cit.., p.148) (Tradução Livre) 26

Ver, nesse sentido, Steven Mithen, The Singing Neanderthals, London, The Harvard University

Press, 2006, p.72.

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30

Algumas teorias que postulam que foi da necessidade de comunicação entre

a mãe e sua cria que veio a pressão evolutiva que conduziria na direção da

comunicação humana e da linguagem. Modificações corporais decorrentes do

bipedalismo, como o estreitamento da bacia, reduziram o período de gestação do

feto no corpo materno. Os bebês nasciam ainda muito dependentes de suas mães,

que permaneciam muito mais tempo em função destes. Falar cada vez mais com

os bebês era um jeito que a mãe tinha de afastar-se momentaneamente para

exercer funções como, por exemplo, colher frutas, sem contudo perder o contato

com eles – fazendo com que eles não se sentissem abandonados. A simples

presença da voz materna entoando perfis melódicos, numa espécie de fala cantada

(ou de musi-língua) reconfortava esses bebês; servia como se fora uma espécie de

carícia sonora.27 Tudo isso indica o significado profundo da melodia cantada

como instrumento de cuidado e reconforto – um conector afetivo que une mãe e

filho(a). Que estabelece uma dimensão, ainda que frágil, de amparo e de proteção.

Isso pode ser traduzido no efeito calmante da melodia, indicado por Nietzsche

como parte da própria etimologia de melos.28 Efeito que age como um princípio de

ordem erigido contra o caos. De fato, canções de ninar cantadas por vozes

femininas ampliam significativamente o desenvolvimento da amamentação de

bebês, desenvolvimento que pode ser medido por um considerável aumento de

peso do recém-nascido. Talvez não seja destituído de significado o fato de que nas

mais distantes culturas essas canções de ninar apresentam um espantoso grau de

similaridade no que diz respeito à cadência, tempo, intensidade e registro médio.29

Pode ser que o primado vocal da monodia e o favorecimento da percepção

linear melódica, seja fruto da capacidade limitada da atenção humana, que,

embora possua grande rapidez de deslocamento de foco – pode mudar de objeto

num átimo de segundo – costuma operar sobre um ponto único. Em outras

palavras, precisamos eleger o foco principal de nossa atenção, o ponto para o qual

ela converge com mais precisão, sutileza e consciência. Outros parâmetros

evidentemente também são percebidos, mas em um nível inferior de atenção

consciente, funcionando mais como fundo. Não é à toa que, em meio a uma

27

Sobre o conceito de musi-língua ver o artigo “The ‘Musilanguage’ Model of Music”, In. Nils L.

Wallin, Björn Merker, Steven Brown, The Origins of Music, London, The MIT Press, 2000, p.271-

301. 28

Ver Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, § 84. 29

Ver Leonard Bernstein, The Unanswered Question: Six Talks at Harvard by Leonard Bernstein,

DVD, v.1.

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verdadeira massa sonora, é a pequena ordenação de um motivo melódico o que

capta a atenção de Swann. Para o ouvinte médio treinado na tradição musical

européia, a melodia é o trilho que conduz a atenção através da escuta. Os demais

elementos funcionam mais como paisagem de fundo, geralmente tão mais

percebida quanto mais familiar se torna o fio condutor melódico. É possível que

haja nisso uma relação com a própria estrutura da memória. De fato, a julgar pelas

impressões, a memória melódica é a mais presente entre a grande maioria dos

ouvintes. E a tal ponto que parece funcionar de modo muitas vezes involuntário.

Em diversas ocasiões a percepção melódica é tão forte, tão enraizada, que mesmo

a despeito de nossa vontade ela parece registrar na memória as “pequenas frases”

que nos chegam aos ouvidos a todo momento.

É possível detestar uma melodia e ser, contudo, infectado por ela. Vermes

melódicos (ear worms) impõem-se sobre a memória ao fazer uso de uma estrutura

mental já existente. Colocam essa estrutura para trabalhar à nossa revelia. Não é

nenhuma novidade o fato de que grande parte da atividade mental ocorre não sob

as luzes principais de nossa consciência, mas na penumbra dos bastidores. Os

sentidos captam muito mais informação do que somos capazes de enquadrar na

estreita janela da atenção consciente. Grande parte da relação com a música hoje é

feita a partir de uma escuta de fundo na qual a atenção não toma parte. Há um

trabalho oculto no sentido de selecionar aquilo que chega até essa janela, o que

entrará em foco para nós. A memória de longo termo participa dessa dinâmica,

dispondo eventualmente conteúdos assimilados. Mas o próprio acesso a essa

memória de longo termo tem suas leis próprias. O impacto emocional seria um

caminho – eventos únicos que foram muito marcantes tendem as ser lembrados

para o resto da vida. A outra via viria da repetição.

De algum modo os vermes melódicos encontram um caminho fácil para se

criar no mecanismo da memória. Entram pelas bordas da atenção para logo se

tornarem um ruído de fundo. Utilizam-se da dinâmica de loop da memória de

curto termo para serem logo incorporados na de longa duração. Criam ali imensas

teias de associação e, ao menor descuido dos seguranças, invadem o palco da

atenção. É desse modo que, mesmo sem nunca ter prestado atenção a uma

determinada música, de repente sua cabeça pode ser tomada por ela. Esses

“parasitas imateriais” revelam o componente maquinal de nosso funcionamento

mental. Lembra a cena de uma criança que roda para trás o pedal bicicleta,

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produzindo aquele barulho da correia desencaixada sem contudo produzir

qualquer movimento, qualquer mudança de paisagem. É quando a música

apresenta o seu potencial de hipnose letárgica, que conduz não ao transe nem ao

êxtase, mas à loucura. Também Oliver Sacks notou a qualidade coercitiva

presente no fato de que uma melodia banal ou mesmo detestável seja capaz de

roubar a cena de nossa vida mental: “a música entrou e subverteu uma parte do

cérebro, forçando-o a disparar de maneira repetitiva e autônoma (como pode

ocorrer com um tique ou uma convulsão)”.30 Num primeiro momento pode até

haver uma dose de prazer. Mas logo depois esse prazer é substituído pela presença

indesejada de algo que obstrui o caminho dos pensamentos, que retorna em

qualquer brecha de silêncio para martelar, em eterna repetição, o motivo fácil e

vazio. Não há propriamente um trabalho ativo da mente; não podemos sequer

falar da concentração e do envolvimento causados pela atenção; apenas da

ocupação parasitária de estruturas musicais congênitas. A resultante não é o

prazer, nem a satisfação, mas o cansaço, o tédio, e não raro a irritação. É como se

a mente tivesse se apropriado de algo que ela própria rejeita e despreza, mas do

qual no entanto não consegue se livrar.

Músicas que se encaixam nesse quadro primam pela facilidade com que são

prontamente assimiladas pela memória. Muito por conta disso elas são o

equivalente sonoro dos personagens “planos” da literatura: personagens

simplesmente sem espessura, sem qualquer grau de complexidade, que não se

desenvolvem ao longo da história, totalmente identificados com tipos ideais –

clones de estruturas já plenamente assimiladas. Sob uma outra ótica, o poeta

latino Cícero captou a essência dessas obras que capturam com muita rapidez o

nosso gosto, aprisionando numa ratoeira os nossos sentidos, mas que, findo o

prazer inicial, logo tornam-se cansativas:

Il est difficile d’expliquer pourquoi les objets dont notre sensibilité est le plus

agréablement touchée, et qui, au premier aspect, font sur elle l’impression la plus

profonde, sont également ceux qui, lê plus rapidement, provoquent en nous une

sorte de dégoût et de satiété qui nous en écarté. 31

(Phaidon, 2003, p.604)

30

Cf. Oliver Sacks, Alucinações Musicais, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p.51. 31

“É difícil explicar porque os objetos dos quais nossa sensibilidade é mais agradavelmente

tocada, e que, num primeiro momento, exercem sobre ela a impressão mais profunda, são também

aqueles que mais rapidamente provocam em nós um tipo de desgosto e de saciedade que nos

afastam deles.(...) Os perfumes muito fortes e muito penetrantes nos seduzem por muito menos

tempo do que os perfumes sóbrios que nós usamos e preferimos àqueles que parecem exalar mais

o odor de cera do que de açafrão. Também o tato logo se cansaria de uma superfície mole e polida.

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Haveria, contudo, uma situação inversa: músicas que exigiriam um tempo

maior de assimilação. Que necessitam de um maior trabalho da inteligência

sensível, e que, por conta disso, ofereceriam também maiores recompensas por

sua fruição. “Les parfums très fort et três pénétrants nous charment moins

longtemps que les parfums sobres dont nous usons et l’on préfère ce qui semble

sentir la cire plutôt que le safran. Le toucher se fatiguerait aussi d’une surface

molle et polie. Le goût lui-même, celui de nos sens qui nous apporte le plus de

jouissances et celui qui aime avant tout la douceur, comme il est prompt à rejeter

avec dédain ce qui est trop doux! Qui peut supporter longtemps une boisson ou un

aliment doux? Dans les deux cas, au contraire, ce qui flatte discrètement le palais

échappe le plus facilement à la satiété. Ainsi, en toutes choses, la satiété est la

compagne immédiate du plaisir le plus vif”.

O que nos chama a atenção no pensamento de Cícero também aparece de

modo bastante claro em Proust: o caráter versátil da apreciação estética. Aquilo

que, à primeira audição nos parece agradável poderá muito rapidamente tornar-se

tedioso, extenuante. Talvez de forma mais perceptível e intensa na música, o fato

é que nossa percepção é sempre dinâmica – muda com o tempo, de acordo com a

ocasião, com o momento no qual se escuta. O que à primeira audição nos parece

confuso, mesmo estranho, pode mais tarde tornar-se um verdadeiro deleite:

Au sein de chacune de ces œuvres-là (…) ce sont les parties les moins précieuses

qu'on perçoit d'abord (...). Il nous reste à aimer telle phrase que son ordre, trop

nouveau pour offrir à notre esprit rien que confusion, nous avait rendue,

indiscernable et gardée intacte (...). Nous l'aimerons r plus longtemps que les

autres, parce que nous aurons plus longtemps que les autres, parce que nous aurons

mis plus longtemps à l'aimer.32

(Apud., Jean-Jacques Nattiez, op.cit.., p.90)

Uma situação como essa descrita por Proust se dá, por exemplo, quando a melodia

deixa apenas uma sutil e agradável lembrança, menos dela mesma, de sua forma,

do que da sensação por ela causada. Lembrança que tentamos mediante vãs

O paladar mesmo, aquele que, dentre os nossos sentidos, é o que mais nos traz prazeres, e aquele

que ama antes de tudo a doçura – como ele rejeita com prontidão o que é muito doce! Quem pode

suportar por muito tempo uma bebida ou um alimento doce? Nos dois casos, ao contrário, aquilo

que agrada discretamente ao palato foge mais facilmente à saciedade. Assim, em todas as coisas, a

saciedade é a companheira imediata do prazer mais vivo”. (Ernst Gombrich, Gombrich:

l’Essentiel, Paris, Phaidon, 2003, p.604) (Tradução Livre) 32

“No fundo de cada uma dessas obras (...), são sempre as partes menos preciosas que percebemos

primeiramente (...). No fim, amaremos tal frase cuja ordem, deveras nova para oferecer ao nosso

espírito algo mais do que confusão, havia deixado indiscernível e guardada intacta (...). Nós a

amaremos por mais tempo do que às outras, porque teremos levado mais tempo para amá-la.”

(Apud., Jean-Jacques Nattiez, op.cit.., p.90) (Tradução Livre)

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esforços recuperar inteiramente, e que prepara um fundo de expectativa cuja a

grande função parece a de aumentar a dose de prazer a ser proporcionado na

ocasião do próximo encontro. São melodias que não se impõem de forma invasiva

sobre a nossa vida mental, em exaustiva e mecânica repetição, mas que antes

oferecem um desafio à nossa inteligência, que, capturada, passa ela própria a

desejar um reencontro com o objeto, na ânsia de poder captura-lo por inteiro.

Nesse caso, a memória não é mais apenas a morada de um hóspede indesejado,

mas condição para decifrar o conteúdo de uma obra. Foi o que Proust relatou com

brilho em sua teoria das fases de penetração perceptiva nas grande obras de arte:

não podendo ser captadas numa única vez, necessitam por isso mesmo da

repetição. Necessitam ser progressivamente integradas à memória.

O importante é notar que, nesse caso, ao prazer do interesse inicial pela

sucessão sonora, soma-se o da própria expectativa e da lembrança. Ao ouvir uma

canção pela segunda vez, somamos ao sentido estrito da escuta aquele de uma

comparação entre o evento sonoro e os traços muito fracos e hesitantes que a

memória fornece. O prazer é ampliado, posto que embalado por um duplo

movimento dos sentidos e da memória. Lembrança tênue, que engaja a mente num

movimento de busca para recompor algo que insiste em lhe escapar. Se Swann

tivesse captado inteiramente a melodia logo no momento de sua primeira escuta,

pouco ou nenhum teria sido o seu prazer ao reescutá-la no salão dos Verdurin. As

grandes melodias parecem ser aquelas que, ao mesmo tempo em que são capazes

de produzir uma forte impressão inicial, jamais se deixam aprisionar totalmente.

Elas impõem a cada escuta novos desafios para a mente, como se jamais fosse

possível (ou fosse muito mais difícil) representá-las de forma absolutamente

inteira na memória. Delas, como escreveu Proust, a memória faz “fac-símiles”

sumários. Por isso, mesmo quando surradas, vítimas de uso abusivo, como

geralmente costuma acontecer com as grandes melodias, são ainda capazes de

conservar algum poder de encantamento – de revelação.

Outro ponto fundamental que concorre para o prestígio da dimensão

monódica da música diz respeito à facilidade com a qual uma melodia é

reproduzida no próprio corpo individual. É principalmente sobre esse ponto que

se apóia a forma ancestral da canção – da melodia casada com a palavra e apoiada

sobre o instrumento comum da voz. Algo em sua essência íntima parece apontar

para a vontade de ser cantada o máximo possível. Há, certamente, um caminho

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tortuoso, complexo, composto pela resultante de inúmeras forças, que faz com que

uma canção torne-se uma espécie de monumento sônico de determinada época e

cultura, e muitas vezes para além delas – o poderoso emblema sonoro de uma

aspiração, ou de uma postura de vida, ou de uma utopia histórica, ou de algo

mesmo indefinível. Mas há também a vocação íntima que parece própria ao

objeto-canção, e que muitas vezes constitui uma de suas mais altas aspirações: o

desejo de literalmente cair na boca do mundo. O pendor fácil, irresistível, para a

propagação espontânea e para a popularidade. Para a dominação consentida do

maior número possível de ouvidos e mentes. De ser incorporada e atualizada por

aqueles que travaram contato com ela. Pela predominância melódica, pela duração

mais curta, pelo envolvimento com a própria linguagem verbal, acionando áreas

adicionais de armazenamento no cérebro e associações mais definidas, e, talvez

mais do que tudo, pela facilidade de reprodução, a canção é a realização sonora

que mais confortavelmente se ajusta na proporção da memória humana. Ela

aponta pra isso – quer ser memória!33

Para atualizar uma sinfonia, são necessários muitos instrumentos e muitos

instrumentistas tecnicamente competentes. Com apenas um fio de voz uma canção

ganha existência sonora. Essa facilidade gera algo de intrinsecamente agregador

na experiência da canção no Ocidente. Seu potencial de realização no corpo é

maior do que aquele das músicas puramente instrumentais. Talvez muito por

conta disso elas tenham se tornado símbolos de grandes ideais coletivos (os hinos

patrióticos são canções). Os compositores costumam ser extremamente sensíveis a

isso. Machado de Assis já falava em seu “O Homem Célebre” da “consagração do

assovio de rua”. Antes mesmo de tornar-se famoso como compositor, Vinícius de

Moraes lembrava-se da alegria sentida quando por acaso ouviu uma de suas

melodias ser assoviada por um estranho na rua. Numa de suas crônicas nos anos

1960, Nelson Rodrigues vai exaltar A Banda de Chico Buarque dizendo que

“desde sua primeira audição, a Banda se instalou na História. O povo não

assobiava mais. Voltou a assobiar por causa do Chico...”. Numa sociedade em que

cada vez mais foi demarcada a linha que separa músicos de não-músicos, ela

33

Obviamente esse é um comentário poético que se refere à tradição ocidental e moderna de

canções que possuem uma forma minimamente estabelecida – ou seja, à tradição daquilo que

chamamos propriamente de “canção”. Não se aplica, portanto, a todas a tradições vocais de outras

culturas humanas. As texturas polifônicas do pigmeus, por exemplo, são vocalizações individuais

baseadas em improvisos. Mas embora não haja a definição melódica e individualizada de “uma

canção”, ainda assim ela cumpre um papel no sentido de agregar a comunidade.

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operou um certo relaxamento, trazendo um aspecto de “atividade comunitária”.

Em sua época de maior sucesso, nos anos 1960, os Beatles eram apenas os

“mestres-de-cerimônia” do verdadeiro espetáculo: aquele que era dado pelos fãs.

Acontecia algo parecido nos shows dos Los Hermanos, no Rio de Janeiro do

século XXI. O curioso é que com isso mudam também os critérios de avaliação.

Numa sala de concerto, com público silencioso, pesa sobre os músicos a exigência

da performance. Num show desses, é outra a natureza da experiência musical –

geralmente mais dionisíaca e brutal. Isso tornou-se uma verdadeira constante da

música popular do século XX e certamente contribuiu como um dos fatores de seu

avassalador sucesso. Milhares de pessoas cantando a mesma música. Mas nem

precisam ser tantos: basta que a canção escape do seu autor e comece a ganhar

vida própria.

Algumas raras canções conseguem ir tão fundo na memória de um povo,

que terminam por mudar a perspectiva estética e existencial de toda uma geração,

por redefinir o próprio limite e o alcance do que se entende por canção. No Brasil

dos anos 1950, a claridade afetiva, o conforto e a intimidade a um só tempo leves

e profundos de Chega de Saudade, gravada com a voz e o violão de João Gilberto

e arranjo de Tom Jobim, marcaram para sempre o destino da música popular aqui

feita. Aquilo era muito mais do que uma simples canção comercial. Era quase a

realização sonora de um ideal de vida. Praticamente todos os grandes cantores e

compositores que despontariam na década seguinte como ícones da MPB, foram

tocados por ela. Quase todos lembram-se exatamente do momento em que a

ouviram pela primeira vez. Era o marco inicial da Bossa Nova. “A bossa nova nos

arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delícias para minha

inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança de estágio

cultural que nos levou a rever o nosso gosto, nosso acervo e – o que é mais

importante – as nossas possibilidades”, escreveu Caetano Veloso. A partir dali,

“passara-se a levar muito a sério a música popular no Brasil”.34 Era o choque da

novidade.

Mas não era apenas isso. O modo como a canção de Tom Jobim e Vinícius

de Moraes conseguiu se impor sobre a memória coletiva brasileira como

portadora de um significado que a ultrapassava, que remetia para conteúdos que a

34

Cf. Caetano Veloso, Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p.47.

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princípio pareciam não estar ao alcance de uma mera canção, permanece

revelador da misteriosa força sintética que dela emana. Chega de Saudade é um

dos pontos mais luminosos e concentrados da cultura brasileira no século XX. Ao

mesmo tempo, é só uma canção. Muito por influência dela, aprendi a tocar violão.

Ao executá-la eu mesmo, pude enxergá-la por dentro. Cada acorde era uma

espécie de ambiente próprio, de atmosfera sonora criada sobre e para a melodia.

Tocar Chega de Saudade no violão – o instrumento no qual ela foi composta – me

fez pela primeira vez perceber a singular arquitetura das composições de Tom

Jobim. Arquitetura na qual ainda que a melodia (em profunda interação com a

letra) permaneça como eixo estrutural da canção, a harmonia ganha um plano

expressivo próprio, diferenciado mas jamais autônomo, que vai muito além das

fórmulas e encadeamentos puramente funcionais. Ela estabelece um outro tipo de

relação com a melodia, sem que esta seja, em momento algum, deslocada de sua

posição central. Muito dessa hipertrofia da dimensão harmônica, em seu

casamento perfeito com a tradição melódica da música popular brasileira,

monofônica mesmo, foi construída com base nas elaborações sutis que marcam a

música de Debussy. Nela, Tom encontraria um modelo privilegiado para criar o

delicado intimismo urbano da Bossa Nova.

...

Boa parte da diversidade artística pode ser vista como a exploração refinada

de capacidades sensoriais que extrapolam em muito suas funções originais mais

diretamente associadas aos princípios de manutenção da vida e de adaptação

biológica. O filósofo Henri Bergson escreveu que “os poetas nos sugerem coisas

que a linguagem não foi feita para exprimir”. Quando ouvimos com atenção uma

música ou observamos detidamente um quadro estamos primeiramente

preparando fisiologicamente o nosso organismo para uma utilização muito

apurada de nossas faculdades sensoriais. De certo modo, a atenção modifica a

própria percepção, preparando as condições orgânicas necessárias para a produção

de sentimentos, emoções e sensações intensas. Entramos assim numa situação

diferenciada de contemplação estética. Ela começa com a crença no significado e

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na vitalidade de tal experiência.35 O grau de concentração atingido com isso,

acrescido do próprio júbilo estético, produzem uma alteração do estado mental

que não precisa ser comprovada nem científica nem filosoficamente: é algo que

experimentamos diante de coisas que atravessam os nossos sentidos e nos atingem

em profundidade. Parece haver nisso algum sentido de ausência – no caso de

Schopenhauer, ausência da Vontade, da dor e da finitude, culminando na

contemplação pura da eternidade. Ou, talvez mais do que ausência, o sentido

misterioso de uma super-presença – o rompimento do feitiço da individuação

restabelecendo o sentimento místico de uma unidade perdida, um retorno ao uno

primordial, ao seio da natureza, como propusera Nietzsche.36 Ou ainda a

“imortalidade” que experimentamos ao ouvir música, como propôs Lévi-Strauss.

Pode ser que tenha sido essa capacidade de modificar o estado ordinário da

consciência, de conduzir a uma espécie de transe, o que fez com que no

cristianismo fosse conferido à arte uma capacidade de revelação e um valor de

transcendência que possivelmente eram ignorados pelos antigos. Embora a vida

dos antigos fosse continuamente permeada pelo sagrado, a arte tinha uma função

catártica, de purificação.37 Sua função era abrir espaço para que o sagrado se

manifestasse, mas ela não se confundia com ele. Indo além do aspecto claramente

repressor, em sua ânsia de se diferenciar dos cultos pagãos, o cristianismo foi aos

poucos investindo na arte a aura do sagrado, culminando, no século XVIII, na

ideia de que a arte eleva a alma. Esse mesmo curso histórico gerou a noção de que

o ato de contemplação estética deveria assumir um caráter análogo ao da prece

religiosa – é nesse momento que se instaura, para a fruição de obras de arte, o

mesmo princípio de silenciosa e reverente imobilidade que passou a marcar, no

fim da Idade Média, o ambiente das igrejas.38 Dá-se então, no contexto da música

35

Ver Leonard B. Meyer, Emotion and Meaning in Music, London, The University of Chicago

Press, 1956, p.74. Sobre isso, escreve Leonard B. Meyer: “For the attention given to a work of art

is a direct product of the belief in the significance and vitality of aesthetic experience. And

attention not only focuses our minds upon the musical work but also modifies perception itself,

since ‘when the organism is active, at a high degree of vigilance... it will produce good

articulation; when it is passive, in a low state of vigilance, it will produce uniformity”. 36

Ver Friedrich Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, São Paulo, Companhia das Letras, 1992,

§2. 37

Ver Lorenzo Mammì, “Deus Cantor”, In. Arte e Pensamento, org. Adauto Novaes, São Paulo,

Companhia das Letras, 1994, p.49. 38

No início do século XVI os reformadores introduziram mudanças fundamentais no terreno da

religião. Outrora da mesma origem cultural de seus “rebanhos”, os pastores reformistas julgaram

promíscuo o ambiente da igreja, onde realizavam-se cultos festivos regados à bebidas e danças;

passaram a almejar de ora em diante “um clero ‘culto’: mais do que os católicos, os sacerdotes

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sacra européia, a passagem de uma escuta participativa para uma escuta

contemplativa. Cria-se uma divisão mais nítida entre os executantes da música e

os espectadores. É evidente a filiação do ideal romântico do artista como

emissário divino, com essa concepção da arte como portadora da aura do sagrado.

Tampouco é difícil adivinhar o elo que une tal concepção com o pensamento

estético de Schopenhauer a Nietzsche, de Proust a Lévi-Strauss.

Antes desses pensadores, contudo, foi Santo Agostinho (354-430) quem nos

presenteou com uma das mais belas teorias sobre a música e a memória, e uma

das mais sagazes tentativas de abordar a qualidade sine materia da impressão

musical. O pensamento do Bispo já demonstrava o lugar de honra ocupado pela

melodia na tradição musical do Ocidente. Em Agostinho, o papel da memória na

apreensão da forma musical, ou antes o modo como a memória constitui o próprio

plano do acontecimento musical, assim como as ligações profundas e sutis que

embalam as duas instâncias, ganhou uma engenhosa e clara (para não dizer

brilhante) formulação. A música, junto com a métrica e a própria língua,

funcionava para o santo como instrumento de investigação metafísica. Através

dela, podia-se ter acesso à própria natureza do tempo – um dos grandes núcleos

reflexivos de sua obra. Não um acesso direto, evidentemente: Agostinho parecia

não acreditar numa intuição direta do tempo. Este, contudo, poderia ser intuído

através da música.

O fio condutor do argumento de Agostinho se dá pela reflexão a respeito da

forma musical. Afinal, como conceber uma forma que não está no espaço, e sim

no tempo? Para ele, a música constituía a ciência da boa modulatio (scientia bene

modulandi) – sendo modulatio “qualquer movimento bem-proporcionado que

tenha seu fim em si mesmo. Em termos modernos: qualquer movimento belo que

tenha finalidade estética”.39 No pensamento do santo, música e dança são

indissociáveis, constituindo uma única coisa, e a forma mais pura da música era o

movimento sonoro, ou seja, a melodia. Para Agostinho, a especificidade da

melodia é que ela surgia sem o suporte de uma matéria preexistente. Desse modo,

protestantes tenderam a ser universitários de formação (...) Assim, o pároco que dançava, que se

mascarava, que fazia piadas no púlpito, foi substituído pelo sacerdote sério, educado e distante”. E

a igreja tornou-se um ambiente de concentrado silêncio. Nota-se, com isso, um inequívoco

movimento de separação entre as esferas da vida social, culminando também na separação entre

uma música litúrgica cristã e uma música pagã. (Cf. José Carlos Rodrigues, O Corpo na História,

Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 1999, p.38) 39

Cf. Lorenzo Mammì, op. Cit., p.44.

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não possuía um deslocamento no espaço (como acontece com os objetos

materiais), nem contava com uma causa no tempo. A melodia seria, portanto,

simultaneamente produtora de sua matéria e de sua forma. O problema é que se a

forma da melodia não está no espaço, ela está no tempo - um tempo feito de

momentos sucessivos. No fundo, o tempo é inapreensível, pois é algo que vive

desaparecendo; não pode ser matematicamente medido. A esse respeito, vale a

pena citar um trecho do livro XI de suas Confissões, no qual Agostinho expõe

parte de sua doutrina do tempo e problematiza seu caráter fugidio. Não à toa, o

ponto de partida é a experiência auditiva: “Supõe, por exemplo, que a voz de um

corpo começa a ressoar, ecoa, continua a ecoar e cala-se. Fez-se silêncio... a voz

esmoreceu... já não é voz. Era futura antes de ecoar e não podia ser medida porque

ainda não existia, e agora também não é possível medi-la porque já se calou.

Nesses instantes em que ressoava era comensurável, porque então existia uma

coisa suscetível de ser medida. Mas mesmo nesses momentos não era estável. Ia

esmorecendo e passava. Não seria por acaso esta instabilidade ou movimento o

que a tornava mensurável? Com efeito, ao esmorecer, estendia-se por um espaço

de tempo pretérito onde seria possível medi-la, já que o presente não tem

nenhuma extensão. Porém, se então era possível medi-la, suponhamos que outra

voz começou a ressoar e ainda ressoa numa vibração contínua e de igual

intensidade. Meçamo-la enquanto ela ressoa, pois, desde que cesse de vibrar, já

será pretérita e não a poderemos medir. Meçamo-la por conseguinte e calculemos

a sua duração. Todavia, ainda soa, e não a podemos avaliar senão desde o seu

princípio - em que começou a ressoar - até o fim, quando emudecer, porque todo o

intervalo se mede desde um certo ponto até um limite determinado. Por este

motivo, a voz que ainda não terminou não é suscetível de ser comensurada, de

modo que possamos calcular a sua longa ou breve duração. Nem podemos afirmar

que seja igual a alguma outra, ou que a sua relação seja simples ou dupla, nem

estabelecer qualquer outra proporção. Logo que essa voz cesse, fica destituída de

existência. Então, de que modo poderá ser avaliada? Com efeito, medimos os

tempos, mas não os que ainda não existem ou já passaram, nem os que não têm

duração alguma, nem os que não têm limites. Não medimos, por conseguinte, os

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tempos futuros nem os passados, nem os presentes, nem os que estão passando.

Contudo, medimos os tempos!”40

A forma musical existe, portanto, inserida no fluxo das durações sonoras – é

no plano do tempo que ela se movimenta. E, sendo feito de momentos sucessivos,

onde cada um deles desaparece para deixar lugar ao momento seguinte, como

poderíamos então conceber a forma – uma vez que ela é, na definição do próprio

santo, a relação das partes com o todo? Como apreender esse todo, em sua relação

com os elementos que o formam, justamente se as partes parecem jamais habitar

simultaneamente, digamos, o mesmo espaço de tempo. Se elas jamais permitem

uma visão ampla, panorâmica, que nos traria a apreensão do objeto inteiro – o

conjunto de todas as relações que o compõem. É como se, numa galeria de

pintura, estivéssemos condenados a enxergar quadros imensos sempre a apenas

um palmo de distância. O nariz praticamente colado na tela. A visão limitada de

uma parte logo sendo substituída pela visão também limitada da parte seguinte.

Como ter acesso à visão integrada do quadro inteiro? Em Agostinho, o

pensamento sobre a forma da música deságua na própria reflexão sobre a forma

do tempo. A grande pergunta é se é possível falar de uma forma no tempo, assim

como se fala de uma forma no espaço.

Desde o século XIX que se questiona se o tempo possui um estatuto tão

primordial quanto o espaço. Se a nossa percepção das formas e estruturas

temporais seria tão intuitiva e imediata quanto nossas percepções espaciais. Ernst

Cassirer argumentou que, de fato, tendemos a apreender estruturas temporais

apenas de modo indireto, através de análogos espaciais.41 Viria daí que todas as

nossas expressões para falar do tempo foram tomadas de empréstimo do

vocabulário que se utiliza para se referir ao espaço. Por isso podemos falar de

intervalo de tempo; do tempo como reta infinita; ou do tempo curvo de Einstein.

Ainda mais recentemente, Paul Ricoeur também afirmou ser impossível obter uma

apreensão imediata do tempo – ou, segundo uma expressão do próprio autor, uma

fenomenologia pura do tempo.42 Para ele a produção da série temporal se dá

através da atividade humana de construção de um enredo. Somente quando postos

dentro de uma narrativa que os ordena, que lhes dá liga e sentido, os eventos

40

Cf. Santo Agostinho, Confissões, São Paulo, Editora Nova Cultural, 2004, Livro XI, xxvii 41

Ver Ernst Cassirer, Filosofia das Formas Simbólicas, São Paulo, Editora Martins Fontes, 2001,

3 vols, v.I, p.210-225. 42

Ver Paul Ricoeur, Tempo e Narrativa, São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011, 3 vols., v.III

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geram uma percepção temporal. Se Cassirer nos oferece um modelo espacial do

tempo, Ricoeur apresenta um modelo narrativo. Embora tampouco acreditasse

numa intuição imediata do tempo, Santo Agostinho oferece uma solução que não

é nem espacial e tampouco narrativa, mas musical. Para o bispo de Hipona, o

tempo se assemelha à música. Isso equivale a dizer que o tempo é pensado através

da experiência auditiva. A música – e a melodia, o puro movimento sonoro, de

forma ainda mais concentrada – reproduz o modo de funcionamento do próprio

tempo. É cantando que efetivamente se dá forma ao tempo. Sendo assim, o espaço

serve de metáfora para a música, que serve de metáfora para o próprio tempo.

Essa forma nada mais é do que uma série de momentos sucessivos

unificados por uma tensão interna. Agostinho vê no fluxo temporal de uma

pequena melodia uma grande alegoria do próprio movimento do tempo humano

(dentro de sua concepção religiosa): do sopro divino que a tudo criou indo até o

juízo final. Como o título do ensaio de Lorenzo Mammì, quem criou o mundo foi,

justamente, um Deus cantor. Quando ele começou a cantar, começou a história

humana. Antes da Criação não havia tempo, pois a eternidade é um presente

imutável, sem tensão para o futuro, nem lembrança do passado. Desse modo, o

tempo existe porque existe o pecado. Tivesse a alma ficado com Deus, sem ter

sido atraída pelo mundo, continuaríamos pairando na eternidade. A história

termina com o fim da música, no juízo final. “A história do mundo é a canção

cantada por Deus. Sua forma melódica nos parece caótica porque não a

conhecemos por inteiro”, afirma Mammì.43 Uma vez iniciado, o tempo não pode

ser abolido por um ato de vontade. Por sermos apenas um ponto dessa vasta

melodia, ponto que logo é sucedido por outro, não possuímos uma apreensão de

sua forma geral. Tampouco sabemos para onde nos encaminha essa melodia. Só

quem o sabe é o cantor: Deus. E sabe porque a traz guardada consigo.

Na interpretação de Santo Agostinho, portanto, a forma do tempo será

definida como uma tensão interna que unifica uma série de eventos; um

movimento no tempo, originado por um ato de vontade e direcionado para algo. A

série de eventos é, desse modo, uma cadeia de causas e efeitos decorrentes de um

ato da vontade. Cada nota é puxada em direção à nota seguinte. É também o ato

da vontade que confere aos eventos uma direção, pois confere a eles uma

43

Cf. Lorenzo Mammì, op.cit.., p.51.

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43

intenção. Para Agostinho, é o próprio movimento da alma que produz o tempo.

Sua explicação introduz assim um elemento psicológico estranho à tradição

neoplatônica – que pretendia que o tempo e o universo fossem gerados por

emanação do princípio único e eterno. Pois Deus conferiu à alma a liberdade de se

dirigir para Ele ou para o Mundo. Com isso, pôs em movimento o eterno presente

da eternidade. Tornou-o sucessão. Desse modo, cada série temporal é uma cadeia

de consequências de um movimento da alma, de uma escolha. O ato com que a

alma se põe em movimento (quando, por exemplo, começa a cantar uma melodia),

criando assim uma série temporal, é indicado na expressão intention animi.

Se, contudo, o que define o tempo é seu caráter transitório, fugidio; se o

presente não tem espessura nem extensão, sendo apenas uma tensão entre não ser

ainda e já não ser; deve haver então algum local da nossa alma onde o tempo se

transforma numa extensão espacial. Somente ali ele poderia ser medido – ter sua

extensão calculada. Somente ali poderíamos finalmente enxergar formas no

tempo. Ali: onde a linha melódica, que na realidade física é apenas “um contínuo

desmanchar-se de sons sucessivos”44, finalmente encontra repouso e dá-se a

conhecer em sua forma inteira. O problema da forma musical é, desse modo,

associado ao da memória. Porque aquele que canta sabe a forma da melodia,

mesmo que esta forma nunca esteja inteiramente presente nos sons que vão sendo

pronunciados.

A forma, nesse caso, é uma espécie de tensão (intentio) que puxa cada nota em

direção à seguinte. Só na última nota a forma se acaba, mas também acaba, se

esgota, porque não há mais tensão. A melodia esvanece e se deposita na memória,

como tensão potencial que pode ser revitalizada quando recomeço a cantar.45

O fundamental é notar que toda essa discussão ancora-se numa espécie de

formalismo musical que desde muito cedo tornou-se o vetor dominante da música

no Ocidente. Durante o longo período da Idade Média a música de cunho religioso

passa a articular-se cada vez mais em torno de obras individuais. Isto é, de obras

que guardam um caráter próprio, sendo únicas, e que devem ser reproduzidas do

modo mais fiel possível – ainda mais quando se pensa no seu caráter sagrado,

demandando maior controle. Contribui para isso o desenvolvimento da notação

musical moderna, já baseada na nomenclatura de alturas relativas, com os neumas

44

Cf. Idem, Ibidem, p.52. 45

Cf. Idem, Ibidem, p.49.

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indicando o contorno aproximado das melodias do canto litúrgico e cumprindo,

portanto, o importante papel de suporte para a memória.46 Por conta disso, há

uma profunda mudança na concepção musical do Ocidente europeu. Ela irá se

distanciar, assim, das raízes comuns que a remetem, como o resto de sua cultura,

ao grupo indo-europeu, ao qual também se filiam os antigos gregos. Muito pouco

restou dessa raiz comum. Os traços dessa filiação sobrevivem apenas como

sombras distantes em nossos hábitos musicais. De fato, os gregos parecem ter sido

grandes teóricos musicais, mas raramente escreviam música. O motivo disso jaz

numa concepção distinta do evento musical. Para eles, a composição e a

improvisação eram vistas como uma manifestação efêmera de uma ordem

permanente, que era dada pela proporção dos intervalos e das durações. Essa

ordem, por sua vez, reconduzia a um nível de ordenamento ainda superior: o dos

movimentos cíclicos, como a música mundana das esferas ou a música humana do

organismo vivo. A primeira garantia a relação da música com uma verdade

superior, a segunda, com um ethos – os sentimentos e ações humanas que a

acompanhavam.

Com o termo ethos os gregos denominavam o caráter próprio dos modos.

Em cada um deles enxergava-se uma qualidade mimética e uma tendência ética

capaz de infundir ânimo, de potencializar virtudes do corpo e do espírito.

Associavam-se diretamente, através do próprio nome, a uma determinada região

ou povo – constituindo, portanto, um território sonoro. Dessa forma, o modo

dórico (que se forma pela distribuição de intervalos que vão de mi a mi) evoca ou

reproduz o caráter viril dos lacedemonianos, ligando-se tradicionalmente à

solenidade, enquanto o frígio (de ré a ré) trazia ares orientais e era por sua ligado

ao dionisismo (acreditava-se que Dioniso tinha vindo da Ásia).47 A vinculação da

música a uma ordem permanente e superior fazia com que a própria experiência

musical decorresse em função do sistema – ou seja, dos modos. As execuções

serviam como atualização desses modos, manipulações temporárias que

evocavam qualidades e efeitos psicossomáticos que lhes eram próprios. Tinham

uma função catártica, purificadora. Punham em equilíbrio o corpo, colocando-o

em fase com a ordem cósmica, e assim preparavam o terreno para a aparição do

46

Ver, nesse sentido, Don Michael Randel, The Harvard Dictionary of Music, Cambridge, The

Belknap Press of Harvard University Press, 2003, p.566. 47

Ver Roberto Machado, O Nascimento do Trágico, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2006, cap.

VI.

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divino. Mediante a música passava-se da esfera humana a uma esfera superior. A

composição, a realização musical, eram feitas de acordo com regras que lembram,

por exemplo, um jogo de xadrez: o que conta é o jogo, e não cada partida.

O que ocorreu no Ocidente europeu foi, justamente, um distanciamento

dessa perspectiva. Quase uma inversão. Ao invés das obras existirem em função

dos sistemas são os sistemas musicais que passam cada vez mais a existir e a se

justificar em função das obras. Isso é tão claro que uma única obra – a obra-prima

– poderá ser capaz de mudar as regras de um sistema. Há um processo de

individuação das peças musicais. Valorizadas em sua singularidade, cresce

também a tendência ao registro e à conservação dessas obras, sobretudo no âmbito

religioso. O canto gregoriano, música vocal monofônica e composta de uma única

melodia (monódica), e que persiste como música cristã por excelência durante

séculos - praticamente do começo da Idade Média até quase seu fim, quando a

polifonia finalmente é introduzida nos ofícios das cristandade, passando a

conviver com ele – marca o longo processo de distanciamento da antiga

concepção grega em relação àquela que predominará na Europa. Trata-se,

simplificando-se bastante o imenso arco histórico que marca a sua existência, do

aproveitamento da organização sonora dos antigos modos gregos dentro da lógica

da autonomia das obras – de uma visão mais formalista da própria música. A

partida torna-se, desse jeito, mais importante do que o jogo. Outro dado

extremamente importante é que “o canto gregoriano desvia a música modal do

domínio do pulso para o predomínio das alturas – a melodia vem para o primeiro

plano (e onde a instância rítmica não terá mais a autonomia e a centralidade que

tinha antes, servindo agora de suporte para as melodias harmonizadas)”.48 É

sintomático o fato de que por mais de três séculos a notação neumatica não

indicasse com alguma precisão as durações das notas. Somente a partir do século

XIII alguns tipos de neumas, denominados ligaduras, passaram a ser empregados

para indicar durações baseadas em “modos rítmicos”.49 Começava assim, com

grande atraso em relação às alturas melódicas, a definição precisa das durações na

notação ocidental.

48

Cf. José Miguel Wisnik, op.cit.., p.42. 49

Padrões de ordem temporal concebidos pelos teóricos da escola polifônica de Notre Dame. São

destacados seis modos, cada qual com suas características de entrada e também de combinação

entre notas longas e notas curtas. Ver Don Michael Randel, op.cit.., p.521.

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O reino da melodia – dos motivos, temas, leitmotiven – como principal

agente condutor da experiência musical parece ter durado muitos séculos. Santo

Agostinho viveu na virada do século IV para o V, no tempo da monofonia –

melodia sem acompanhamento – muito antes do estabelecimento do sistema tonal,

com sua trama harmônica, verticalizada. Muito antes, também, do

desenvolvimento da polifonia, com seu jogo de paralelismos e simultaneidades.

Isso quer dizer que sua visão musical é, de certo modo, plana, linear. Baseada em

sucessões causais, e nitidamente orientada para um fim – teleológica, portanto.

Essa visão está em profunda consonância com a própria percepção histórica da

doutrina cristã, o tempo humano sendo concebido como um princípio-meio-fim.

Ela é, se quisermos assim dizer, meloscêntrica – uma única melodia como o

grande núcleo significante da experiência musical. Nesse sentido, é provável que

não tenha havido grandes mudanças dos tempos de Santo Agostinho para cá.

Talvez seja possível dizer que o grosso da experiência musical da humanidade

ainda é eminentemente guiado pela percepção da melodia. A ponto de sequer ser

necessário fazer uma diferenciação entre os termos música e melodia.

Curiosamente, no mesmo momento em que a música erudita erodia cada vez mais

a consistência do material melódico, na virada do século XIX para o XX, o reino

da melodia reafirmava a sua força através da música popular. A música popular

foi e tem sido o reino da melodia por excelência. Ou então houve imensas

mudanças, mas, em decorrência de um desenvolvimento temporal em forma de

arco, voltamos a tocar o mesmo ponto remoto do passado – um ponto no qual o

mais avançado é também o mais primitivo, e vice-versa.50

50

Muito da visão modernista (grosso modo), e também muitas das realizações da arte moderna,

apóiam-se nesse anacronismo. Dos escritos de Oswald de Andrade às pinturas de Picasso. É

também esta a tese principal de O Som e o Sentido, ao tentar refazer por um ângulo novo todo o

percurso da música Ocidental como sendo o caminho que leva da gradativa eliminação dos ruídos

até a sucessiva reincorporação musical dos mesmos. Ou seja: um percurso circular, mas não no

sentido de voltar exatamente ao ponto de partida, e sim de “desrecalcar” e possibilitar uma nova

abertura para o que fora outrora descartado. Um retorno no qual se traz a bagagem acumulada de

séculos de, num certo sentido, negações e descobertas. No caso do livro de José Miguel Wisnik,

esse ruídos vão dos intervalos proscritos na Idade Média (trítono) até o retorno pulsante da violência rítmica, ou, mais precisamente, da revalorização expressiva da dimensão

rítmica, que havia permanecido, digamos, atrofiada, ou no mínimo subserviente aos

outros parâmetros do som. Os demônios da música que a liturgia medieval se esforça para

recalcar moram, antes de mais nada, “nos ritmos dançantes e nos timbres múltiplos,

concebidos aqui como ruído, além do trítono”.(Cf. José Miguel Wisnik, op.cit.., p.42)

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Voltando ao pensamento musical de Agostinho, nele a memória é justamente esse

local onde o tempo se aquieta na extensão estática de um eterno presente – tempo

e espaço convergindo numa única dimensão. É ali também que o passado ganha

superfície de contato com o presente da atenção atual e com o futuro da

expectativa. Como nos sugere a leitura de Lorenzo Mammì, o percurso reflexivo

de Santo Agostinho o leva a conceber o tempo como o cruzamento simultâneo e

contínuo de três atitudes espirituais: lembrar, prestar atenção, esperar. É isso o que

fazemos incessantemente, a cada momento. Cada momento é a um só tempo

passado, presente e futuro. “Quando começo a cantar eu pretendo chegar ao fim

da melodia, e por isso começo a tragar a melodia do futuro, onde a expectativa a

coloca, para o passado, onde encontra repouso na memória. O ato da atenção

presente se torna, assim, ainda uma vez, um ato intencional, portanto um ato

direcionado. A forma do tempo é, antes de mais nada, direção”.51 O termo

extensio animi indica a presença simultânea das três medidas temporais na alma:

attentio animi é a atenção genérica, ato da consciência que se liga ao sentimento

do presente, em contraposição à memória, que é o sentimento do passado, e à

expectatio, que é o sentimento do futuro.

Mais do que ser um simples reservatório, ou mero local de repouso, parece-

me que muito da força da reflexão de Santo Agostinho vem do fato de que a

memória é concebida como base e trampolim das expectativas que embalam o

fluxo musical – que lhe conferem direção. Ou seja: projeta-se a um só tempo na

direção do passado e na direção do futuro. Constitui-se, desse modo, como algo

intrínseco ao expectatio. É a partir dela que se forma o fundo de expectativas que

embalam a escuta. Esse ponto de vista coincide com o argumento geral de um

clássico da musicologia, Emotion and Meaning in Music, o primeiro livro a

mergulhar em profundidade no papel desempenhado pela expectativa, pela

antecipação de eventos futuros, na escuta musical. Seriam esses vitais sentimentos

antecipatórios, que nos fazem esperar algo, elementos essenciais do impacto

emocional que a música provoca em nós. As peças principais na complexa

maquinaria mental posta em andamento através da experiência sonora,

responsável por captar a atenção e excitar a alma (cérebro). Desnecessário dizer

51

Cf. Lorenzo Mammì, op.cit.., p.53.

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que a condição necessária para a criação dessas expectativas está, justamente, na

memória.

Without thought and memory ther could be no musical experience. Because they

are the foundation for expectation, an understanding of the way in wich thought

and memory operate throws light both upon the mechanism of expectation itself

and upon the relation of prior experience to expectation.52

(Meyer, 1956, p.87)

Também para ele é a memória que proporciona a moldura geral que permeia

a experiência musical. Ela é uma força na organização da escuta, capaz de

direcionar a atenção, de criar padrões de previsibilidade e atitudes de busca. Ela

nos conecta com as experiências passadas e nos informa, assim, e ainda que

geralmente disso não tenhamos consciência, o que “esperar” de determinada

experiência musical.

Retornando novamente a Santo Agostinho, parece que a melodia que ainda

está por ser cantada já reside inteira, espacializada, em algum canto da alma; que

está sendo tragada do futuro-da-memória para ser continuamente reconduzida ao

passado-da-memória. O local onde essa complexa operação torna-se perceptível,

onde adquire concretude, é no presente da atenção: o brevíssimo e frágil espaço

onde os sons ganham realidade física, vibrando no ar. Depois disso, tornam-se

novamente passado. Para Agostinho é exatamente esse caráter transitório do

tempo, sua constante indefinição entre ser e já não mais ser, que leva o

pensamento a conceber, ou imaginar, um local estático, onde o presente eterno

finalmente possibilita que a forma do tempo possa ser apreendida. Meyer segue

um raciocínio parecido: para ele, a expectativa também está intimamente

vinculada com a memória, pois ao ouvirmos determinada obra musical

organizamos nossa experiência e nossas expectativas tanto nos termos do passado

de uma peça particular, que começa logo depois que o primeiro estímulo é ouvido

e consequentemente tornado passado, quanto nos termos de nossas memórias mais

antigas relacionadas a experiências musicais relevantes.

Tal capacidade de organização e sua relação intricada com a memória

constitui um dos pilares fundamentais de nossa dinâmica perceptual – uma forma

básica de derivarmos sentidos e relações de nossa experiência do mundo. A

52

“Sem o pensamento e sem a memória não haveria experiência musical. Porque são estes os

fundamentos da expectativa, o entendimento dos caminhos pelos quais operam pensamento e

memória pode lançar luz sobre o próprio mecanismo da expectativa, assim como sobre sua relação

com a experiência passada”. (Cf. Leonard B. Meyer, Emotion and Meaning in Music, p.87)

(Tradução Livre)

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onipresença da música, dos enfeites e dos adornos visuais, e das narrativas

mitológicas em todas as sociedades humanas, e as provas arqueológicas que

constatam o caráter remoto dessas manifestações, fazem pensar no fato de que

talvez elas sejam um desdobramento natural, quiçá necessário do surgimento da

mente simbólica. Ou que os sentidos de fruição estética, ainda que inicialmente

ligados a funções ritualísticas associadas a importantes princípios de coesão e

colaboração social entre os primeiros hominídeos, possuam uma justificativa

biológica ainda pouco esclarecida. Ou ainda que no fundo, quando disso se trata,

de que sequer faz sentido uma diferenciação entre biológico e cultural. As duas

dimensões correriam em paralelo. Acidentes da evolução, acasos ocorridos na

replicação dos códigos genéticos, regulados pela pressão do meio externo, no

sentido da lógica adaptativa de Darwin, teriam criados novas propensões e

capacidades. Outros acasos podem ter lançado a centelha inicial que desencadeou

um processo de desenvolvimento – o verdadeiro salto que constituiu o surgimento

do pensamento simbólico. Modos que estão inscritos na lenta história evolutiva de

nossa espécie.

Desse modo, uma considerável parcela da audição refere-se a reflexos

inatos. Assim como acontece com todos os outros animais que possuem alguma

sensibilidade para o som, a fisiologia humana é alterada ao ouvir um ruído que

ultrapasse uma determinada faixa média de potência. Imediatamente o corpo

torna-se alerta. A interpretação instintiva é a de que a uma grande intensidade

sonora corresponde uma grande liberação de energia. Algo que pode colocar o

organismo numa situação de perigo – diante de um grande predador ou de algum

acontecimento natural potencialmente perigoso. De modo parecido, sons não-

familiares ou inesperados solicitam imediatamente a visão e o reconhecimento -

viramos imediatamente a cabeça na direção da fonte sonora.53 São reações

espontâneas que revelam o papel evolutivo da audição no sentido de orientar

espacialmente e tornar o ser vivo preparado diante de situações que o coloquem

em risco. O ouvido dá sinais de alerta, informa sobre eventos no mundo que

possam ter alguma relevância para o organismo. Ao ser informado, o organismo

pode então prever a melhor ação a ser executada. A audição está, desse modo,

53

Há muitos experimentos com recém-nascidos que tendem a comprovar a reação espontânea a

sons com os quais a criança ainda não se acostumou. Ver David Huron, Sweet Anticipation: Music

and the Psychology of the Expectation, London, The MIT Press, 2007, cap.VII.

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intimamente ligada à formação de expectativas e de estados fisiológicos ligados a

determinadas ações (como lutar, fugir ou ficar paralisado). Se ouço passos no

corredor vindo na direção de minha sala, sei que em pouco tempo alguém irá bater

à porta. A informação sonora me permite prever o evento futuro.

Ao ouvir música, trabalhamos o tempo todo com esse tipo de previsão e

com as expectativas que a acompanham. Parte considerável do prazer suscitado

pela música vem da confirmação ou negação das expectativas que embalam nossa

escuta musical. Essas expectativas são geradas por um ininterrupto trabalho de

previsão realizado pela mente: “One of the deepest, one of the most general

functions of living organisms is to look ahead, to produce future”, escreveu o

biólogo molecular François Jacob.54 Isso quer dizer que por trás de todos os

processos perceptivos está a predição – a expectativa útil de eventos que ainda

não ocorreram. O cérebro especula incessantemente sobre o futuro, sobre que é

mais provável de acontecer. A capacidade de antecipar mentalmente os

acontecimentos, de prever e preparar o organismo para ações futuras está na base

do funcionamento cerebral. Constitui o núcleo de um mecanismo básico de

proteção. “Prediction is at the heart of this basic protective mechanism.

Prediction, almost continually operative at conscious and reflex levels, is

pervasive throughout most, if not all, levels of brain function”.55

E a tal ponto que

o cérebro criou mecanismos para recompensar previsões acertadas, e também

para punir previsões erradas. A escuta musical está muito vinculada a esse

mecanismo de previsão. Leonard B. Meyer notou que “o significado evidente é

condicionado pelo significado hipotético” – que “a relação atual entre o gesto e

sua consequencia é sempre considerada sob a luz da relação esperada”.56 Ou seja:

um jogo mental de expectativas, jogado por um cérebro que não cessa de fazer

previsões, de tentar antecipar os acontecimentos futuros.

54

“Uma das mais profundas, uma das mais genéricas funções do organismo vivo é olhar adiante,

produzir futuro”. (Cf. François Jacob, The Possible and the Actual, Seattle, University of

Washington Press, 1994, p.32) (Tradução Livre – grifo meu) 55

“A predição está no centro desse mecanismo básico de proteção. Quase sempre operando

continuamente no nível da consciência e dos reflexos, o mecanismo de predição é encontrado em

quase todos, senão em todos os níveis da função cerebral”. (Cf. Rodolfo Llinàs, I of the Vortex:

From Neurons to Self, London, The MIT Press, 2001, Kindle Edition, Location 391) (Tradução

Livre) 56

“Evident meaning is colored and conditioned by hypothetical meaning. For the actual

relationship between the gesture and its consequent is always considered in the light of the expected relationship”. (Cf. Leonard B. Meyer, op.cit.., p.38) (No corpo do texto, tradução livre)

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51

Mas enquanto os reflexos respondem por apenas uma pequena parcela de

nossa experiência auditiva do mundo – dentro da qual incluo a própria música -

não parece haver dúvida de que o aprendizado fornece a principal moldura dessa

experiência. A maior parte das expectativas sonoras e dos próprios sentidos que se

pode auferir dos sons – musicais ou não – são aprendidas através da exposição a

determinado ambiente sonoro. Dependem, portanto, de um contexto específico.

Mas é preciso lembrar que o aprendizado modifica a microestrutura física do

cérebro, órgão que, por sua vez, é geneticamente predisposto a isso – a famosa

plasticidade cerebral. Desse modo, ele está encravado na própria biologia, torna-

se estrutural, condiciona nossas reações em um nível não-consciente; torna-se

uma espécie de instinto adquirido.

No caso da música, como já foi sugerido, tais expectativas são criadas a

partir de experiências passadas, depositadas na memória de longo-termo. São

frutos do aprendizado. Meyer as descreve como “um produto das respostas do

hábito desenvolvido em conexão com estilos musicais particulares e com os

modos da percepção humana, cognição e resposta – as leis psicológicas da vida

mental”. Familiaridade com gêneros musicais gera previsões mais acuradas e

menos incertas. É necessário haver uma convenção como base para a geração de

variadas respostas emocionais. Essas respostas se dão não apenas através da

confirmação das expectativas, mas, sobretudo, quando uma expectativa – ou

tendência a responder – ativada pelo estímulo musical é temporariamente inibida

ou permanentemente bloqueada. Ou seja, quando o esperado cede lugar ao

inesperado, que, no entanto, não se confunde com a surpresa – pois o inesperado é

o virtualmente possível dentro das regras do jogo, embora com baixa

probabilidade de ocorrência, ao passo que a surpresa é um fator externo que

quebra a dinâmica do jogo. São as violações de expectativa, que apontam para o

inesperado, grandes responsáveis pelo impacto emocional de uma obra musical

(embora, obviamente, não sejam as únicas). É sempre uma ruptura da ordem o que

chama a nossa atenção. A mente necessita ser levada a buscar algo, a

compreender alguma coisa que falta, e não apenas ser passivamente estimulada

por sons e imagens. Cérebros gozam diante de desafios e não apenas ao ser

confortavelmente empanturrados de estímulos. Na experiência estética, há sempre

uma tensão entre as redundâncias esperadas da continuidade e um novo passo na

ordem ou na desordem que atrai a nossa atenção. O historiador da arte Ernst

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Gombrich disse que uma grande obra de arte “encontra em nós um equilíbrio sutil

entre o que nos parece muito evidente e o que nos parece muito difícil”.57

A maior parte de nossas expectativas musicais são aprendidas através da

mera exposição a um determinado ambiente sonoro. Isso quer dizer que estamos

continuamente sintonizados com a frequência dos estímulos nesse ambiente. Com

a percepção de padrões que se repetem. É possível que sejam em grande parte

aprendidas através de um processo puramente estatístico.58 Em boa parte é essa

interação que possibilita que um número grande de ouvintes responda de modo

pelo menos similar a determinado tipo de música. É ela que possibilita a criação

de culturas musicais. Que permite que a experiência musical consiga falar a um só

tempo a um horizonte coletivo e a um horizonte individual. Essa sensibilidade

para a frequência de ocorrência de padrões de estímulos, sejam visuais, olfativos,

táteis ou auditivos, vem sendo há algum tempo observada não apenas na espécie

humana, mas em diversas outras espécies animais. Dela deriva um efeito que é

bastante revelador e biologicamente relevante: com o aumento da exposição a um

determinado estímulo, acelera-se a velocidade de seu processamento mental.59 Ou

seja, estímulos familiares, sejam eles quais forem, são mais rapidamente

processados por nossas mentes do que aqueles que não são familiares.

Há, desse modo, uma predisposição natural para nos sentirmos mais

confortáveis com – e inconscientemente preferirmos – aquilo que de algum modo

já conhecemos. E conhecer significa também possuir um domínio maior sobre os

desdobramentos futuros de algo. Pois o que esperamos reflete simplesmente

aquilo que experimentamos com mais frequência no passado. Quando assisto a

um jogo de futebol, posso não saber ainda qual será o placar final. Mas sei que a

partida é dividida em dois tempos de aproximadamente quarenta e cinco minutos

cada (pois já vi outras partidas). Sei também que são onze jogadores de cada lado,

57

“Je pense vraiment qu’une grande oeuvre d’art rencontre en nous un equilibre subtil entre ce qui

nous paraît trop évident et ce qui nos paraît trop difficile”. (Cf. Didier Eribon, Ce Que L’Image

Nous Dit – Entretien avec Ernst Gombrich, Paris, Éditions Cartouche, 2009, p.217) 58

Aqui, estou seguindo a linha de pensamento proposta por David Huron. Ela opõe-se àquela

encampada por Leonard B. Meyer ao questionar os princípios de organização mental que a Gestalt

considerava como inatos: “In light of Paul von Hippel’s work, we can see that these listener

expectations are better regarded as inductive approximations of underlying objective patterns of

musical organization rather than innate Gestalt Principles. Moreover, the most likely origin of

these inductive heuristics is through the mechanism of statistical learning”.(Cf. David Huron,

op.cit.., p.97) 59

Esse é o princípio da lei Hick-Hyman, elaborada nos anos 1950 de modo independente por

W.E.Hick (Cambridge University) e por Ray Hyman (Johns Hopkins University).(Ver David

Huron, op.cit.., p.63)

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mais um juiz em campo. Se conheço com profundidade os times que irão jogar,

posso começar a prever com maior probabilidade de acerto os resultados mais

prováveis, quem irá vencer. Se o artilheiro do campeonato está em campo, posso

mesmo imaginar quem vai marcar o gol (pois já vi vários gols desse mesmo

artilheiro). Quanto mais conhecido e familiar for o objeto, mais refinada será a

previsão. O desdobramento natural disso é que expectativas precisas facilitam a

percepção. Porque o propósito biológico da predição é justamente nos tornar

melhor preparados para reagir de modo físico e mental aos estímulos do mundo

externo. Isso quer dizer que nossa percepção se torna mais afiada diante de algo

com o qual temos alguma intimidade. Um verdadeiro fã de futebol enxerga numa

partida coisas que passam totalmente despercebidas a alguém que não tenha o

hábito, ou que simplesmente não se interessa pelo esporte – de certo modo, sua

percepção é ampliada.

Da contínua exposição a determinado ambiente sonoro - que inclui não

apenas o quadro de uma lógica musical mas também os sons da língua - vão sendo

formadas representações mentais, que são os schemas. Schemas podem ser muito

sumariamente definidos como “uma pré-concepção mental do habitual curso dos

eventos”.60 Ou seja: a moldura para a formação de expectativas futuras. Várias de

nossas ações cotidianas são conduzidas dentro da lógica dos schemas. Quando

saio para jantar, sei que chegando ao restaurante o garçom irá me indicar uma

mesa; depois, vai trazer o cardápio; posteriormente trará a comida e, no fim, a

conta. Esse é o curso habitual dos eventos associados ao schema-restaurante. Ele

incorpora as expectativas das sucessivas etapas que o definem temporalmente.

Quando acabo a sobremesa, preparo-me para pedir a conta ao garçom. Não

preciso me angustiar perguntando a mim mesmo – o que devo fazer agora? Após

tantas idas a restaurantes, minha memória de longo termo acabou por formar um

schema no qual situações análogas do passado condicionam, guiam, fornecem a

moldura do comportamento presente. Muita energia é poupada no processo, e a

60

Cabe aqui uma definição mais alentada dos schemas: “Thus schemas are large networks of

memories with potential associative connections. When particular scenes or events in the

environment trigger our expectations, some of these memory networks become semiactivated;

these semiactivated memories may enter our peripheral consciousness as a ‘feeling’ of what is

about to happen. Schemas in the form of musical patterns and styles are largely responsible for our

feelings of expectation while listening to a piece of music. This feeling usually stays on the fringes

of the focus of consciousness. In some instances, however, we may see or hear what we expect,

rather than what is ‘really’ there”. (Cf. Bob Snyder, Music and Memory, London, The MIT Press,

2000, p.96)

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eventual obstrução do fluxo encadeado de etapas (no meu schema eu ia pagar com

cartão de crédito, mas o restaurante não aceita cartão) gera um estado de alerta, de

atenção concentrada – com óbvio desgaste de energia. O processo geralmente se

dá de modo inconsciente.

No caso da música, tanto em crianças como em adultos, o schema

assemelha-se a um grande quadro de probabilidades que articulam a sucessão de

notas num sistema musical. Se ouço uma determinada sequência de notas, intuo

qual será a mais provável nota a aparecer na sequência (o desdobramento),

baseado na experiência passada de contextos semelhantes. Tal intuição não se dá

numa direção única (será essa a nota a seguir!), mas compreende também outras

notas possíveis, mas com menor probabilidade. Aquelas que não se encaixarem

em nenhum percentual de chance, que estiverem fora da probabilidade gerada

pelas experiências passadas, fora do schema empregado, serão ditas erradas, fora

do lugar ou simplesmente desafinadas. Mas se essas mesmas notas erradas

começarem a ser adotadas com maior frequência, poderão então ser incorporadas

ao estilo, ganhando seu pequeno quinhão de probabilidade. Tornar-se-ão mais

agradáveis aos ouvidos já acostumados. E isso acontece não apenas com a

sucessão de notas individuais de uma melodia, mas também com seqüências

harmônicas. Aquelas que são empregadas com ainda maior ênfase, tornam-se

clichês – alto grau de probabilidade - como a cadência dominante-tônica para a

música tonal. No barroco de Bach, a cadência IV-V ocorria num maior número de

vezes, e era portanto a mais esperada entre ouvintes com familiaridade nesse

estilo. Para aqueles familiarizados com o reggae jamaicano, a cadência mais

comum era, ao contrário, V-IV. Acontece também em relação à organização

propriamente temporal da música. A subdivisão métrica predominantemente

binária do compasso europeu, com os acentos coincidindo sobre os pulso ímpares

(1,3,5), é um exemplo de schema de previsão para eventos temporais – schemas

rítmicos.

É preciso ter claro, contudo, que esses padrões sonoros são representações

mentais. Os cérebros não armazenam o som em si, como se fossem fonogramas

gravados. Ao invés disso, ele interpreta, destila, representa o som. Cria códigos

mentais que existem como padrões biológicos reais, que fixaram residência em

algum canto da cabeça. No nível mais elementar da percepção sonora, no aparelho

auditivo, as frequências sonoras excitam diferentes locais da membrana basilar, no

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ouvido interno. Cada um desses locais está associado a diferentes neurônios

sensoriais, que disparam de acordo com os estímulos recebidos, formando no

cérebro um verdadeiro mapeamento sonoro. É a chamada representação

tonotópica, um tipo de codificação sonora que pode ser observada em diversos

locais do sistema auditivo, inclusive na parte do córtex cerebral responsável pela

audição.61 Uma segunda representação sobrepõe-se a essa. Nela, são codificados a

periodicidade (que definirá a altura do som) e os padrões formados pelos

estímulos dos diversos neurônios auditivos. A tendência é que esses neurônios

disparem em sincronia com as frequências que estimulam o tímpano.

Grosso modo, somente a partir dessas informações poderá o cérebro formar

a representação de uma altura sonora definida. O estímulo mecânico dos

neurônios dos nervos auditivos é sucessivamente interpretado, decodificado, até

ser devolvido para nossa consciência como sensação subjetiva – uma qualia.

Qualia acompanha todas as sensações conscientemente experimentadas, inclusive

as sonoras. Trata-se de um termo para designar o sentimento subjetivo que

acompanha as experiências sensoriais. No caso dos sons musicais, boa parte do

efeito que causam em nós vem do papel que desempenham eles dentro dos

schemas culturalmente assimilados. Quer dizer, vem do modo como a memória

vai filtrar esses sons e remetê-los a experiências musicais passadas. Um som

isolado ou uma série de sons não possuem em si, como puro fenômeno físico,

qualquer significado. Eles ganham sentido somente na medida em que apontam,

indicam ou implicam alguma coisa que os ultrapassa. Somente ao serem

incorporados nas molduras da memória é que os sons musicais começam a tornar-

se capazes de, como escreveu Baudelaire ainda no século XIX, “suscitar ideias

análogas em cérebros diferentes”.62 É esse encaixe que vai dizer, por exemplo, se

um som é tenso ou se gera a sensação de repouso e resolução, porque esse tipo de

percepção é relacional, só pode ser feita quando o som em questão é comparado

61

“The auditory cortex also has a tonotopic map, with low to high tones stretched out across the

cortical surface. In this sense, the brain also contains a ‘map’ of different pitches, and different

areas of the brain respond to different pitches. Pitch is so important that the brain represents it

directly; unlike almost any other musical attribute, we could place electrodes in the brain and be

able to determine what pitches were being played to a person just by looking at the brain activity.

And although music is based on pitch relations rather than absolute pitch values, it is,

paradoxically, these absolute pitch values that the brain is paying attention to throughout its

different stages of processing”. (Cf. Daniel Levitin, This is your Brain on Music: Understanding a

Human Obsession, London, Atlantic Books, 2007, p.29) 62

Cf. Charles Baudelaire, Richard Wagner e ‘Tannhäuser’ em Paris, São Paulo, Editora

Imaginário: Editora da Universidade de São Paulo, 1990, p.39.

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com outros sons; ao passo que a percepção da textura timbrística, se um timbre

parece áspero ou macio, liga-se mais a uma sensação imediata, menos mediada

pelo quadro da experiência e da memória, e portanto menos sujeita a variáveis

culturais. De todo modo, é justamente o qualia que irá responder em boa parte

pela tensão e direção mencionadas por Santo Agostinho na condução do

movimento sonoro. São inúmeros os filtros que vão apreendendo e codificando o

puro estímulo elétrico inicial. Que o transformam em algo que significa. Dos mais

elementares, como o mapa frequencial no córtex, até os schemas aprendidos

através da exposição contínua a um determinado ambiente sonoro.

E também as expectativas implicam algum tipo de representação mental,

pois baseiam-se em um jeito específico de aproximação, em um modo de

enquadrar e organizar a seqüência sonora que possibilita formar previsões. No

casos das representações mentais relacionadas ao campo das alturas (que

permitem uma organização sonora através de escalas relacionais de frequência,

um som situando-se, por exemplo, num relação de 1/2, como no caso da oitava),

mais diretamente à melodia, podemos ter diferentes codificações possíveis. Uma

que avalia o estímulo sonoro dentro do schema de uma determinada escala (esse é

o quinto grau, a dominante, de um modo maior); outro que refere-se à posição

métrica do estímulo no contexto de uma grade temporal, o momento em que o

estímulo é desencadeado; outro que avalia a relação intervalar com o estímulo

anterior, interpretando a direção melódica; outro que codifica a duração do

estímulo, e assim por diante. Essas representações correlacionam-se na

codificação mental da música. Mas nem todas recebem o mesmo grau de atenção.

Se uma das principais funções do cérebro é fazer previsões (e a expectativa

efetivamente é um processo mental onipresente, pois estamos constantemente

antecipando o futuro), isso significa que o foco principal, não podendo contemplar

todas as representações simultaneamente, deverá privilegiar algumas em

detrimento de outras.

O sistema auditivo é espontaneamente capaz de gerar várias representações

simultâneas. Aquelas que se revelarem mais úteis na previsão de eventos futuros

são preservadas e reforçadas, enquanto as menos úteis atrofiam. As representações

mentais estão sendo continuamente avaliadas quanto aos seus potenciais de

predição. Isso sugere que diferentes representações mentais estão continuamente

competindo, e que esta é a norma da nossa vida mental. Haveria, portanto, uma

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espécie de darwinismo neural: representações competindo entre si de acordo com

os princípios darwinianos aplicados aos padrões de organização neural.63 Foi

sugerido que é essa dinâmica de competição interna um dos principais fatores

responsáveis pela flexibilidade ou evidente plasticidade do cérebro. Pois ao

formar expectativas, um cérebro normal manteria múltiplas representações

concorrentes. Se, ao contrário, ele se fixasse em apenas uma, isso significaria que

o cérebro teria atingido a quase infalibilidade em seus vaticínios sobre o mundo.

Ou que a representação foi incorporada no código genético. Ou ainda que o

cérebro tornou-se patologicamente estruturado.

Representações são usadas para se fazer predições; o resultado dessas

predições (se são afiadas ou falhas) irá selecionar as melhores representações.

Uma boa representação mental seria aquela que consegue capturar ou pelos

menos aproximar algum princípio organizacional útil, presente no ambiente que

circunda o animal. Isso quer dizer que, sendo redes neurais que existem

verdadeiramente como padrões biológicos em cérebros individuais, as

representações mais favorecidas serão aquelas que se aproximarem mais das

estruturas que efetivamente organizam o ambiente externo. Desse modo, a

organização cerebral reflete a organização do mundo auditivo. É por isso que, no

caso da música, a predominância de algumas representações sobre as outras é uma

função do ambiente sonoro no qual reside o ouvinte. Diferentes ambientes

auditivos geram diferentes representações mentais para o som. Mesmo cada

ouvinte terá um histórico de escuta diferenciado, no qual algumas representações

tornaram-se mais bem sucedidas do que outras. A organização precisa difere de

acordo com o caso específico de cada córtex. É como se fossem diversas plantas

de casa. Todas as casas teriam cozinha, sala, quarto, banheiro, mas ainda assim as

plantas seriam diferentes entre si. Na hora de decodificar o som, cada um de nós

guarda uma combinação de expectativas baseadas em representações que tendem

a ser diferencialmente favorecidas de acordo com o contexto e com o histórico da

pessoa. A mais importante delas, contudo, quando se enfoca a percepção das

alturas sonoras em ouvintes ocidentais, é aquela ligada aos graus das escalas.64

63

O grande idealizador do darwinismo neural foi o nobel Gerald Edelman (para mais detalhes, ver

David Huron, op.cit.., p.108) 64

David Huron sugere informalmente que as expectativas relacionadas ao campo das alturas

(ouvinte ocidental) seriam a soma aproximada de, digamos, 70% em função do grau da escala,

15% da função harmônica, e 10% do contorno melódico.(ver David Huron, op.cit.., p. 110)

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Isso lança luz sobre o papel crucial das escalas na organização da

experiência musical. E também sobre o modo de percepção das sucessões sonoras

– daquilo que chamamos de melodia. São os modos os grandes responsáveis pela

geração da tensão interna que unifica os eventos sonoros no tempo – como nos diz

Santo Agostinho. A tensão interna que puxa uma nota na direção da outra,

criando redes de relações entre elas, formando um verdadeiro sistema de forças –

notas imantadas por pólos de atração, “apontando” para determinada direção.

Sistema que, por sua vez, indica uma tendência, fazendo com que a tônica seja

associada a uma ideia de estabilidade e repouso e que a sensível suscite um forte

sentimento de desconforto de uma nota de transição que puxa para outra. Isso nos

remete diretamente ao qualia dos graus da escala. Ao espinhento e velho

problema de uma semântica dos intervalos musicais.65 A um certo caráter próprio

de que são investidos os sons quando postos no contexto de um sistema musical.

E esse caráter, se por um lado ancora-se no plano da experiência cultural,

por outro também está intimamente vinculado a processos perceptivos que, de

certo modo, possibilitam que os sons adquiram significados musicais. A esse

respeito, o primeiro ponto a ser considerado é que as representações mentais

parecem favorecer relações de vizinhança sobre relações de distância. Tal

preferência segue um princípio de escolhas que tendam a simplificar o trabalho de

apreensão mental, reduzir a dose de esforço exigido. Relações de vizinhança são

mais adequadas porque permitem ao cérebro reduzir o tamanho da memória

temporal. É mais fácil guardar dois eventos sucessivos na memória de curto-termo

do que eventos que estão mais distanciados temporalmente. Numa linha de

estados consecutivos A,B,C,D... será mais fácil reconhecer relações de estados

vizinhos (A e B, ou B e C...) do que de estados distantes (A e D). O que está se

poupando é o trabalho da memória. Um segundo ponto diz respeito a preferência

por representações que tendam a se fixar nos eventos auditivos. Ao ouvir uma

seqüência sonora, tendemos a focar a atenção mais nos sons em si do que na

distância que os separam. Isso não quer dizer que essas distâncias não são

apreendidas, apenas que a representação delas não ocupa lugar destacado no

quadro mental. Há uma tendência para economizar o número de operações

necessárias na hora de decodificar determinado estado. Nossa primeira disposição

65

Ver, nesse sentido, José Miguel Wisnik, O Som e o Sentido, p.64-65.

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direciona-se, portanto, aos eventos sonoros. Somos especialmente sensíveis ao

começo dos estímulos – no caso da música, ao ataque das notas.66

Isso decorre de uma importante função mental, que no campo da percepção

os estudiosos denominam de perceptual binding. Quando percebemos um objeto,

diferentes partes do cérebro participam no cálculo das diversas propriedades do

objeto. No caso da visão, a cor é processada separadamente da forma, e o próprio

reconhecimento do objeto (acionado através da memória semântica) se dá em

outra instância cerebral. No entanto, quando vemos uma cadeira, a experiência

fenomênica é unificada: forma, cor, nome, e todas as outras propriedades aderem

a um único objeto. Algo similar acontece com a audição. Quando ouvimos um

som, altura e timbre não são experimentados como coisas separadas. O som nos

vem inteiro. Propriedades como intensidade, altura, localização e timbre formam

um único evento-objeto. O cérebro junto tudo num pacote único, integrado.

Decorre disso um efeito interessante na percepção dos intervalos melódicos: eles

não são percebidos como algo que substitui as duas notas, que ocupa o espaço

entre dois sons separados, mas, justamente, como uma qualidade que, numa

sequencia temporal, adere ao segundo estímulo. Tendemos a pensar o intervalo

como a relação entre duas notas. Mas talvez ele fosse melhor descrito como um

modo distinto de abordar uma única nota. Ou seja, a qualidade do que definimos

como intervalo melódico é antes uma propriedade que adere à segunda nota. É o

modo como a segunda nota se projeta trazendo em si a marca da primeira. É nesse

contexto que a percepção do presente tende a trazer incorporada em si uma

qualidade do passado.

Tal dinâmica perceptiva seria o substrato comum que de certo modo

possibilita a formação dos diversos schemas melódicos que são as escalas próprias

de cada cultura. O próprio fato de que um ouvinte pode considerar uma mesma

frequência sonora como servindo a diferentes funções tonais (pode ser a

dominante numa música e sensível na outra) já é indicativo de que os graus da

escala são um fenômeno cognitivo, e não puramente perceptual. É o modo como a

mente interpreta sons que existem fisicamente, e não como esses sons estão no

mundo. Isso só é possível através da incrível sensibilidade da mente para os

diferentes contextos. Os cérebros respondem de forma maravilhosamente

66

Ver Daniel Levitin, op.cit.., p.53-54.

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contextual. No Ocidente, a linguagem tonal representa um princípio

organizacional profundo, capaz de modelar uma vasta gama de detalhes musicais.

Trata-se de um schema psicológico incorporado aos cérebros através de repetidas

exposições a determinado desenhos sonoros. Os traços da escuta de obras

individuais somando-se na mente para formar as bases de um modelo de predição.

O guarda-chuva no qual abrigam-se quase todos os demais schemas menores que

dizem respeito aos estilos específicos. Ouvintes que se formaram nessa tradição

tendem a experimentar qualias semelhantes em seus traços gerais.

De todo modo, sejam de boa ou má qualidade, impressiona a facilidade com

que certas melodias conseguem marcar nossa memória. Como conseguem

prontamente captar a nossa atenção e ganhar uma ressonância interna específica,

movimentando o campo associativo de cada pessoa. Não me parece um simples

acaso o fato de que, na hora de descrever os memes, nos anos 1970, Richard

Dawkins tenha escolhido como um dos principais exemplos justamente a

transmissão de trechos melódicos. Ele começa sua elaboração da ideia dos memes

citando o trabalho de P.F.Jenkins sobre o canto de um pássaro que habita as ilhas

da Nova Zelândia. Numa determinada ilha, os pássaros possuíam nove “canções”

diferentes, e cada macho cantava apenas uma ou algumas delas. Dividiam-se,

desse modo, em grupos de dialetos – grupos com territórios vizinhos podiam

dividir o mesmo dialeto, emitindo canções iguais. A descoberta de Jenkins, relata

Dawkins, foi a de que os padrões melódicos não eram herdados geneticamente,

mas transmitidos, aprendidos de pai para filho: “Cada jovem macho

provavelmente adotava, por imitação, canções de aves dos territórios vizinhos, de

forma análoga ao que se passa com a linguagem humana. Durante a maior parte

do tempo em que Jerkins permaneceu lá, havia um número limitado de canções na

ilha, uma espécie de ‘pool de canções’, do qual cada jovem macho extraía o seu

pequeno repertório. Mas, ocasionalmente, Jenkins tinha o privilégio de

testemunhar a ‘invenção’ de uma canção nova, que ocorria através de um erro de

imitação de uma canção antiga”.67 Ou seja, tal como acontece no caso dos genes, a

transmissão cultural seria essencialmente conservadora, mas sujeita a “acidentes”

(imitações erradas) que poderiam dar origem a uma forma de “evolução”. O

interessante na ideia dos memes é que ela traz para as áreas mais insuspeitadas o

67

Cf. Richard Dawkins, O Gene Egoísta, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.326.

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filtro de um “processo de seleção”: “Trata-se da lei segundo a qual toda a vida

evolui pela sobrevivência diferencial das entidades replicadoras. O gene, a

molécula de DNA, é por acaso a entidade replicadora mais comum no nosso

planeta. Pode ser que existam outras. Se existirem, desde que algumas condições

sejam satisfeitas, elas tenderão, quase inevitavelmente, a tornar-se a base de um

processo evolutivo”.68

Da vontade de aplicar o esquema do “darwinismo universal” ao campo da

cultura veio o conceito do meme, que seria, justamente, a unidade cultural de

replicação, variação e seleção. Falar de um “darwinismo universal”, termo

também cunhado pelo próprio Richard Dawkins, significa dizer que os princípios

darwinianos da evolução biológica (que podem ser resumidos a grosso modo na

equação: Evolução = replicação + variação + seleção + isolamento de populações)

são válidos para todos os processos evolucionários, quaisquer que sejam suas

particularidades. Ainda que muitas peças não tenham encontrado seu lugar

apropriado (pode ser que jamais sejam encontrados) para a nossa compreensão, o

grande quebra-cabeças, ou mosaico da evolução seria, de acordo com essa

moldura teórica, regido pelas mesmas leis. Sendo assim, tudo deve encontrar uma

justificativa na longínqua história evolutiva – em seu lento processo de

transformação e acumulação. Inclusive a linguagem e a música. Duas

manifestações que operam sobre uma base biológica comum a toda a espécie, mas

que ainda assim constituem artefatos culturais que estão continuamente se

modificando.69

Sendo assim, os memes seriam replicadores culturais, de um modo parecido

como os genes são replicadores de DNA. Algo capaz de evoluir, mas por meio

não genéticos. Podemos descrevê-los como uma espécie de unidade de

informação que passa de um cérebro para outro durante o processo de transmissão

cultural. Se tomarmos as culturas como sendo sistemas de fenômenos conceituais

simbolicamente codificados, transmitidos social e historicamente através dos seres

humanos, percebemos que, no caso de nossa espécie, à via da herança biológica,

genética, veio a somar-se uma outra: a da herança cultural. Um sistema duplo de

transmissão e transformação de informação: genético e cultural. Este último, por

68

Cf. Idem, Ibidem, p.329. 69

A música não se constitui como realidade unificada e homogênea. Por isso sua própria definição

torna-se um tanto vaga – “música” é um termo genérico que abarca práticas muito distintas. Em

muitas culturas sequer existe uma palavra específica para designar o que entendemos por tal.

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sua vez, distinto e parcialmente independente do sistema de herança genética, mas

também ele sujeito à lei da perpétua transformação que pautou a evolução

biológica. A diferença é que enquanto a evolução biológica é essencialmente

darwiniana, ou seja, nela não há transmissão de características adquiridas ao longo

da vida, a evolução cultural parece ser bastante lamarckiana, no sentido de que

informações adquiridas a cada geração podem ser transmitidas na íntegra para a

geração seguinte. Se assim quisermos, podemos dizer que, com a emergência da

cultura, Lamarck sobrepôs-se a Darwin no percurso evolutivo do homo sapiens. É

preciso, contudo, notar que os dois mecanismos de seleção, conservação e

transmissão das informações (biológicas e culturais) funcionam de modo bastante

distinto. As mutações responsáveis pela introdução de variações no genótipo e

que tornaram a evolução possível, são frutos do acaso. Do tortuoso e imemorial

percurso feito de erros e acertos com que os organismos foram tornando-se cada

vez mais adaptados ao meio. Um percurso que, enquanto houver vida na Terra,

jamais chegará ao seu fim. Não há qualquer indicação de direção nesse caminho:

as coisas acontecem ao acaso e são conservadas na medida em que ajustam-se ao

interesse da preservação dos organismos. Na medida em que oferecem alguma

vantagem adaptativa. A evolução deve ser olhada não como um movimento

ordenado, orientado em determinado sentido, mas como um grande bricolage. De

modo bastante diferente, conquanto a variação cultural também seja pautada por

forças erráticas, muitas vezes ela acontece de maneira direcionada. Ciência e

tecnologia são dois bons exemplos de evolução direcionada, uma vez que o

desenvolvimento de ambas se deu pela busca de soluções cada vez mais

satisfatórias a determinados problemas – soluções que eram verificadas através do

modelo de tentativa e erro.

Voltando aos memes de Dawkins, é preciso lembrar que foi o próprio

Darwin quem primeiro tentou estender o princípio do darwinismo universal para o

fenômeno cultural, na tentativa de explicar o processo de transformação das

línguas como algo que ocorria de forma análoga à evolução das espécies vivas.70

Mas com uma grande diferença: a de velocidade. Foram-se mais de dois milhões

70

A tentativa se deu numa significativa passagem de The Descent of Man, and Selection in

Relation to Sex (1874), na qual ele sugeriu que a formação e transformação das línguas ocorria de

forma análoga à evolução das espécies vivas: “The formation of different languages ando f distinct

species, and the proofs that both have been developed through a gradual process, are curiously

parallel”.(Apud., Nils L. Wallin, Björn Merker, Steven Brown, op. Cit., p. 166)

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de anos desde o aparecimento da primeira espécie da linhagem homo. A julgar

pelos vestígios arqueológicos, somente de aproximadamente setenta mil anos para

cá os homo sapiens modernos – oriundos da linhagem homo - começaram a dar

mostras de comportamento simbólico – códigos marcados em pedras, pinturas

rupestres, vestígios de ritos religiosos e de instrumentos musicais. Foram

necessários centenas de milhares de anos (milhões) para que a espécie

conseguisse desenvolver uma linguagem composicional, que podia ser

subdividida e rearticulada em infinitos significados novos, imaginados.

No entanto, uma vez que esse tipo de linguagem foi criado, a história da

transformação humana entrou no domínio de outro tipo de temporalidade. Assim

que findou a última Era do Gelo, há dez mil anos atrás, a agricultura foi inventada

em diferentes partes ao redor do globo. Surgiram as primeiras cidades e

civilizações. Novas técnicas de adaptação ao meio. Houve uma profunda mudança

no modo de vida dos seres humanos, que reflete a emergência de uma nova

temporalidade. Temporalidade regida pela rapidez da transmissão cultural. Porque

os memes são muito mais velozes do que os replicadores genéticos. Do ponto de

vista genético, os portugueses que desembarcaram no Brasil, e também os índios

que aqui se encontravam, são idênticos a nós. Mas a cultura que traziam e mesmo

a língua que falavam já está bastante distante da nossa. A cultura pode, e muitas

vezes muda, numa velocidade estonteante, se comparada à da mudança genética.

Para Dawkins somente será possível entender a evolução do homem

moderno no momento em que for abandonada a ideia do gene como base única

para o nosso pensamento evolutivo. Seu argumento é de que desde a sopa

primordial, quando surgiram as condições necessárias para o surgimento das

primeiras moléculas que podiam fazer cópias de si mesmas, que os próprios

replicadores passaram a conduzir o processo. Por mais de 3 bilhões de anos o

DNA liderou solitariamente esse processo. Mas no momento em que, por seleção

de genes, a evolução antiga produziu os cérebros, “ela forneceu o ‘caldo’ em que

se originaram os primeiros memes”. Os memes que não se replicam, simplesmente

ficam para trás, são esquecidos, descartados. Como no caso dos genes, há um pool

de memes, no qual somente os mais bem-sucedidos são capazes de sobreviver e

perpetuar-se no tempo. São três as qualidades que determinam um elevado grau

de sobrevivência para esses replicadores: longevidade, fecundidade e fidelidade

da cópia. E, talvez não à toa, utiliza como exemplo nada menos do que uma

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melodia popular: “Se o meme for uma melodia popular, a sua difusão no pool de

memes pode ser medida pelo número de pessoas que a assobiam pelas ruas”.71 Os

memes possuem uma estranha capacidade de entranhar-se na memória. Tratam-se

de sistemas interrelacionais nos quais torna-se mesmo difícil especular qual seria

a mínima parte. Se uma única frase melódica é suficientemente marcante e

memorável, então ela poderá ser definida como um meme, que existe dentro de

uma peça musical maior. Talvez esses módulos sejam definidos pela própria

dinâmica e capacidade de armazenamento da memória. A pequena frase de

Vienteuil é um meme musical que faz parte do conjunto maior da sinfonia à qual

pertence.

Deve vir daí parte da satisfação sentida por compositores que escutam

inadvertidamente suas músicas assoviadas por estranhos: não tanto o sucesso

pessoal, mas a sensação de se ter criado um objeto poderoso, capaz de se propagar

fisicamente nos corpos, como uma espécie de epidemia. Um quadro está na

parede. Pode ser leiloado, mas jamais será plenamente possuído. Ele sempre

existirá fora. Uma melodia só existe se for possuída. Só existe realmente ao ser

incorporada. Só existe dentro. A satisfação do criador, nesse caso, está em ver que

sua criação foi absorvida, que já faz parte do outro. Para conseguir tal façanha, ela

teve que de algum modo chamar a atenção para si; se destacar e ser escolhida (por

inúmeros possíveis motivos) dentre um conjunto de outras melodias. Conjunto

que não para de crescer. Compositores de melodias, e todo compositor de canção

o é em certa medida, não desejam tanto prêmios ou matérias de jornal. Desejam,

antes de mais nada, que suas músicas sejam cantadas. Tendem a tornar-se figuras

um pouco melancólicas quando isso não acontece. Sabem que o implacável

esquecimento os espreita.

Imagino o cenário que se estabeleceu com a difusão da rádio no Brasil, nas

primeiras décadas do século XX. A música tornando-se objeto de consumo,

destacando-se do anonimato da tradição pré-urbana para ganhar a marca da

autoria, para ganhar um valor de venda. A demanda constante por novas canções

alimentando um sistema produtivo azeitado, precocemente profissionalizado

dentro do quadro geral brasileiro, incentivando cada vez mais os compositores.

Com a profissionalização, cresce também a concorrência. As canções lutam por

71

Cf. Richard Dawkins, O Gene Egoísta, op.cit.., p. 333.

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espaço nas rádios. Começam a ser premiados os êxitos individuais. Estilos de

extração rural e sem assinatura, como o samba, muitas vezes formados por

sucessivas camadas de improvisos coletivos, cristalizam sua forma antes aberta

em registros de pauta e também em registros sonoros. O memes melódicos já não

contam apenas com a memória biológica – podem agora ampliar seu alcance e

longevidade com a “memória exterior” que os novos registros técnicos do som

propiciaram. Nesse momento, a forma da canção popular torna-se mais definida e

fechada. As melodias que antes eram criadas por puro e descompromissado

prazer, passam a valer dinheiro.

Cria-se, portanto, um contexto que favorece cada vez mais o talento

individual, a capacidade que um artista tem em singularizar-se, em destacar-se dos

demais impondo seu estilo próprio. Um contexto que, de certo modo, incentiva a

diferença. Há um aspecto de crescente competição artística que certamente

influenciou os destinos da nascente música popular brasileira.72 O rádio, nas

palavras de Antonio Risério, tornou-se “o tambor tribal”. Ampliou muito o

alcance das melodias. A própria linguagem da canção vai sendo forjada,

construída, em constante contato com o ouvinte, testada passo a passo. Numa

visita ao Rio de Janeiro em 1939, auge da famosa Era do Rádio, Mário de

Andrade observava que “as pessoas do povo escutavam com uma verdadeira

religiosidade as músicas novas”, e que “não há casa de música, ou rádio de porta

comercial que não tenha sempre uma notável aglomeração de povo”. Na mesma

crônica, o musicólogo ensaia uma singela interpretação sobre o motivo de

tamanha devoção do povo carioca às canções de rádio: “E agora sei bem, nem é

tanto o prazer da música que as prende, quanto a necessidade quase vital para elas,

de decorar os textos novos”.73 A nascente canção urbana acertava em cheio no

veio da tradição oral brasileira. A canção brasileira, tal como a conhecemos,

surgiu no despontar do século XX atendendo aos anseios de uma população que

se caracterizou por desenvolver práticas ágrafas. Atuando no seio de um povo

72

O historiador da arte Ernst Gombrich chama a atenção para o fato de que não se deve deixar

muito de lado as forças que movem e incentivam a produção artística em determinado período

histórico: « Je ne citerais pas ces témoignages si je n’étais pas persuadé de l’intérêt de cette

explication sociologique de l’excellence artistique. Ce qui en ressort de manière implicite, c’est

surtout l’importance d’un public critique, d’un public de connaisseurs doués de discernement et

dont les exigences obligent l’artiste à se surpasser. En effet, quand on parle de tradition, il ne faut

pas oublier le rôle du consommateur, du patron ou du client, élément important de l’équation ».

(Cf. Didier Eribon, Ce Que L’Image Nous Dit – Entretien avec Ernst Gombrich, p.364) 73

Cf. Mário de Andrade, Música, Doce Música, São Paulo/Brasília, Martins/INL, 1972, p.280.

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eminentemente iletrado, ela fisgava ouvintes não apenas pelo texto, tampouco

apenas pela música, mas pela junção dos dois no organismo autosuficiente da

palavra cantada. A canção urbana inventava-se como linguagem, utilizando-se

espontaneamente de todo o arcabouço da tradição folclórica e rural, assim como

das influências que o próprio cenário urbano oferecia. As experimentações que

alimentaram o processo de formação e consolidação dessa música de rádio e

disco, escaparam de qualquer controle ideológico, e que tampouco se avistou,

como seria desejável, uma maior presença da cultura erudita européia no jogo

criativo. Parece que o fator mais importante, o critério de maior peso nesse

processo, foi o poder de fascínio das canções.

Seguindo a concepção dos memes e os exemplos musicais propostos por

Dawkins, assim como as observações de Mário de Andrade, somos levados a

perceber o imenso potencial de contágio da melodia cantada, associada a palavra,

e sua enorme eficiência enquanto meio de transmissão cultural. No fluxo dessas

ideias podemos também imaginar uma espécie de “darwinismo melódico”. Somos

diariamente submetidos a um grande número de melodias. Onde quer que

estejamos, há um fundo musical. Ligamos o rádio do carro e somos

bombardeados de canções. Nos intervalos dos programas de televisão, trechos de

músicas acompanham os comerciais. Se saímos à noite, melodias estão presentes

em quase todos os lugares. Ainda que de modo não-consciente pode-se ouvir,

num espaço de duas ou três horas, uma verdadeira enxurrada de melodias. Apenas

algumas poucas conseguem verdadeiramente se impor sobre nossa memória. Se,

na reprodução sexuada, a competição dos genes se dá particularmente com os

próprios alelos – que disputam o mesmo lócus no cromossomo - entre os memes a

competição se dá de outro modo. No cérebro humano o que estes parecem

disputar é espaço, e, mais do que tudo, tempo. Porque “o tempo é, possivelmente,

um fator limitante mais importante do que o espaço de armazenamento e é objeto

de forte competição. O cérebro humano e o corpo por ele controlado não podem

fazer mais do que uma ou duas coisas ao mesmo tempo. Se um meme dominar a

atenção de um cérebro humano, tem de fazê-lo à custa de memes ‘rivais’”.74

Se comparado com o número total, podemos dizer que pouquíssimas

melodias ganham algum relevo afetivo junto a nós – pouquíssimas associam-se,

74

Cf. Richard Dawkins, op. Cit., p.337.

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dentro de nós, a emoções mais profundas e duradouras. A maior parte das

melodias que ouvimos nos toca de modo apenas superficial. Roçam de leve nossa

sensibilidade. Algumas, contudo, atingem o almejado sucesso. São cortejadas por

um público imenso. Cantaroladas por bocas distraídas nas ruas, nos ônibus, nas

filas dos bancos e dentro dos banheiros. Tornam-se trilhas sonoras de narrativas

pessoais. Mas nem por isso conseguem vencer a prova do tempo. Do sucesso ao

esquecimento o caminho pode ser bem curto. “Alguns memes, assim como ocorre

com alguns genes, atingem um sucesso brilhante num prazo muito curto,

espalhando-se rapidamente, mas não têm longa duração no pool de memes”,

esclarece Richard Dawkins.75 A longevidade é, portanto, um fator decisivo para a

sobrevivência deles. Logo são substituídas por novas melodias. Ficam

irremediavelmente associadas ao passado. Passam a valer mais pelo que trazem de

recordação extra-musical do que pelo prazer que ainda são capazes de

proporcionar.

É difícil avaliar o quanto realmente se gosta de uma canção (o quanto ela é

boa) quando ela traz entranhada em seu tecido a lembrança difusa de uma época,

de uma fase da vida, uma viagem, um amor. Muitas boas (e também más) canções

tiveram esse destino. E é possível que seja um dos destinos mais nobres a que

pode aspirar uma canção. Vivem num limbo, de onde são eventualmente retiradas

menos para ser fruídas do que para servir de trampolim da memória. Literalmente

matamos a saudade, para depois jogá-la novamente no limbo do esquecimento. O

que acontece então quando uma canção consegue extrapolar essa etiquetas de

época e contexto? Quando torna-se o signo de algo que aparentemente desafia a

própria passagem do tempo? Quando é experimentada com entusiasmo presente

por sucessivas gerações? O que acontece quando uma canção simplesmente não

envelhece? Quando parece tornar-se uma canção (melodia) de todos os tempos?

Seguindo a trilha dessas indagações, talvez seja possível pensar em obras

como Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, no Carinhoso, de Pixinguinha, na

Chega de Saudade e na Garota de Ipanema, de Tom e Vinícius – canções que se

tornaram verdadeiros emblemas sonoros. Que tiveram sua origem temporal

rasuradas por um número sem conta de regravações, e que por alguma qualidade

específica continuam se propagando no tempo e no espaço da memória humana.

75

Cf. Idem, Ibidem, p.333.

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Um “meme-ideia” é uma espécie de entidade capaz de ser transmitida de um

cérebro a outro. A cultura é composta por inúmeros complexos de memes –

conjuntos com muitas subdivisões. Memes que associam-se e promovem-se

mutuamente, gerando complexos de memes co-adaptados. Ao meme de Deus (um

dos mais bem sucedidos, segundo Dawkins) ligou-se o do diabo, por um motivo

simples: porque os dois se fortalecem mutuamente, favorecendo assim a

sobrevivência um do outro no pool de memes. “A seleção favorece os memes que

exploram o seu ambiente cultural em proveito próprio. Esse ambiente cultural

consiste em outros memes que também são objetos de seleção. O pool de memes,

portanto, passa a ter atributos de um conjunto evolutivo estável que os novos

memes dificilmente conseguem invadir”.76 Desse modo, um culto organizado, com

seu conjunto de crenças, arquitetura, rituais, leis e música específica pode ser

visto como conjunto co-adaptado e estável composto por memes que se

promoveriam mutuamente. Talvez a canção de Ary Barroso (assim com as de

Jobim e Pixinguinha) tenha se associado ao meme-ideia de uma projeção utópica

do Brasil. É quando uma canção (ou um grupo de canções) torna-se capaz de

arrastar em seu tecido sonoro significados individuais e coletivos que vão muito

além de si mesma – quando as canções começam a adentrar o território do mito,

tornando-se mensageiras de algo maior. Quando entranham-se no próprio destino

de uma cultura. Num ensaio já clássico, Lorenzo Mammì escreveu o que muitos

parecem ter sentido, e outros ainda sentem: que “a bossa nova não foi apenas o

produto de um momento feliz da história brasileira. Ela é aquele momento feliz,

sua eternização, e com isso a possibilidade perpétua de retomar os fios

interrompidos. Enquanto linguagem artística, mesmo que esteja ligada a um

processo histórico que fracassou, seu êxito independe daquele fracasso. Nela, a

hipótese não realizada se torna fundamento, ponto de partida de qualquer hipótese

futura”.77

...

Muito do mistério da música vem da qualidade fugidia do objeto sonoro; da

sua quase impossibilidade de conservação perfeita. Como já foi dito, ouvimos

76

Cf. Idem, Ibidem, p.340 77

Cf. Lorenzo Mammì, “João Gilberto e o Projeto Utópico da Bossa Nova”, In. Revista Novos

Estudos (Cebrap), n34, nov. 1992, p.64.

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também com os ouvidos da memória. E a memória definitivamente não é

confiável. Pois modifica incessantemente o que guarda. O episódio guardado na

lembrança – aquele que, justamente, constitui uma página de sua autobiografia

pessoal, que você narra para si mesmo – e que os estudiosos chamam de memória

episódica, seria modificado a cada acesso.78 Quanto mais vezes acessada, mais ela

é modificada. Triste sina a da memória: quanto mais nela se confia, maior será sua

propensão a mentir; maior o seu potencial de traição. É por isso que, ligando a

evocação ao gosto muito específico de uma madeleine, nas primeiras páginas da

Recherche, Proust consegue fazer uma ponte mais direta e fidedigna com o

passado. E não apenas porque aqui estamos falando de sua teoria do poder único

da memória involuntária – em contraposição com a palidez evocativa da memória

voluntária. Mas porque a memória acessada por Swann no início do livro havia

permanecido praticamente intacta; não fora empobrecida pelo uso; consevava-se

muito próxima ao acontecimento em si; fresca, explodindo em cores e detalhes; e,

por sua vivacidade, capaz de colar o presente ao passado. O sentido que lhe

servira de gatilho, o paladar, passara um longuíssimo tempo sem ser acionado

daquela maneira específica – ativado numa rede associativa tão definida, que

finalmente lhe proporcionou um acesso privilegiado ao “passado”. Novamente

estimulado pelo gosto da madeleine esquecida, desencadeou em todos as direções

imensas teias de lembranças ligadas ao episódio, permitindo que Swann tirasse de

uma xícara de chá “o imenso edifício da lembrança” – como escreveu Beckett. A

memória pode ser comparada a uma grande malha. Os estímulos sensoriais são

combinados e fundidos em único construto perceptual. Há uma força de atração

que os magnetiza. Funcionam, no cérebro, como padrões inteiros, relacionando

simultaneamente diferentes componentes sensoriais. Ainda que distintas

sensações estejam associadas a diferentes áreas do córtex, que muitas vezes

sequer comunicam-se espacialmente, essas áreas são temporalmente ativadas em

conjunto, evocando o padrão inteiro – desfiam assim a rede de associações,

78

Bob Snyder define a memória episódica nos seguintes termos: “A type of long-term memory for

specific events, in a specific time order, and in relation to the self. Episodic memories are

autobiographical, whereas general knowledge, another type of long-term memory, is not. Episodic

memory records events as they happen to us. Because, however, remembering is itself an event,

episodic memories are copied when they are recollected, and the copy replaces the original. This

makes our episodic memories vulnerable to various kinds of transformations and distortions,

especially through their interaction with our semantic memory (conceptual) categories and

schemas. In a piece of music, episodic memories would be of the details of the sound of particular

passages of music and their time order”. (Cf. Bob Snyder, Music and Memory, op.cit.., p.258)

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recriando inteiramente um determinado construto interno.79 A ressonância

neuronal é capaz de recombina-los em nossas cabeças. Como se fossem

verdadeiros acordes musicais. É desse jeito que um cheiro pode ser capaz de

trazer a lembrança de algum lugar, de alguém, de uma ação ou sentimento, ou de

um momento específico de nossa vida.

O grande inimigo desse tipo de memória, portanto, é o hábito. A mente

irrequieta e excitada volta-se com tanta intensidade sobre eles, que logo suas

linhas nítidas vão sendo borradas, gerando uma visão mais esfumaçada, a

sensação estranha de algo que é, a um só tempo, próximo e distante. Memórias

episódicas são facilmente distorcidas. Transformam-se incessantemente através do

ato de rememorar e também de recontar. Corresponde menos ao evento passado

do que a própria memória de recontar o evento. Ou seja: não há como diferenciar

entre a memória, e a memória dessa memória.80 É ilusão achar que lembramos

“melhor” de coisas que nos marcaram. Lembramos, certamente, mais vezes, mas

não necessariamente com melhor definição e fidedignidade. Nesses casos, mais do

que descrever uma cena realista, a lembrança parece entrar na esfera do mito –

algo suspenso, cujo localização exata já não conseguimos mais precisar. Algo que,

por isso mesmo, parece destacado do fluxo mais ou menos homogêneo de nossas

vivências cotidianas.

A música também articula-se com a memória episódica. É inegável seu

poder rememorativo. Podemos ter, como o narrador de Proust com a madeleine,

uma experiência mais precisa – uma espécie de “experiência em primeiro grau” -,

ao escutarmos, por exemplo, uma canção que nos remete a um acontecimento

específico. Outras vezes, tal música pode apenas nos remeter a uma determinada

época por nós vivenciada, ou a um conjunto mais vago de situações que tornaram-

se unificadas de algum modo (uma viagem, o começo de uma relação amorosa).

Mas também a capacidade que tal peça musical tem de nos remeter a experiências

específicas será inversamente proporcional ao seu grau de presença em nossa

vida. Quanto mais esquecida for determinada peça musical, maior será o seu

potencial de evocação ao ser novamente atualizada para os nossos sentidos.

79

O neuroscientista António Damásio escreveu que “o fato de que percebemos mediante uma

interação, e não com uma receptividade passiva, é o segredo do “efeito proustiano” na memória, a

razão pela qual frequentemente recordamos contextos e não coisas isoladas”.(Cf. António

Damásio, E o Cérebro Criou o Homem, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p.170) 80

Ver, nesse sentido, David Huron, op.cit.., p.221.

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71

Se a memória modifica o que guarda, a pergunta óbvia será: o que acontece

com a melodia que habita a memória? Leonard Meyer tentou responder a isso

tomando como base alguns princípios da gestalt, principalmente o axioma

fundamental que é a lei de Prägnanz. Segundo essa lei, a organização psicológica

sempre vai tender para as condições mais favoráveis possíveis, condições que

abarcam propriedades como regularidade, simetria e simplicidade.81 Ou seja, a

mente busca armazenar informações do modo mais confortável possível.

Confortável para ela. No sentido de que se acomodem do melhor modo possível

dentro de estruturas ideais, que formam uma espécie de molde perceptivo que a

mente utiliza para apreender eventos externos. Essas estruturas são os schemas

aos quais já nos referimos, aprendidos intuitivamente através da exposição

contínua a determinada linguagem musical, e que formam a base para uma

percepção qualificada dos estilos musicais. É quando o ouvinte aprende as regras

de determinado jogo musical e se torna apto a avalia-lo sob uma perspectiva mais

apurada, podemos mesmo dizer, de maior competência. O termo competência,

nesse sentido, está intimamente associado a maior capacidade de fazer previsões

sobre a sucessão musical – de prever com mais acuidade o desenho do movimento

musical. Desse modo, os schemas não são apenas molduras para a percepção, mas

oferecem também um modelo de armazenamento das melodias na memória.

Esses schemas são formados através da propensão mental em apreender

padrões de regularidade daquilo que os sentidos captam a partir de suas próprias

características perceptuais, dentro dos seus limites fisiológicos, e a partir disso

criar um modelo ideal. Quanto mais próximos desse modelo, mais confortáveis se

tornam os objetos/eventos pela mente percebidos. Daí a lei de Prägnanz. Meyer

argumenta que a presença de tais leis (ou tendências) não necessariamente quer

dizer que a organização psicológica de determinado objeto será satisfatória. Há

mesmo um efeito negativo na adequação perfeita: o objeto demasiadamente

encaixado, cômodo, tende a causar sobre a mente um efeito de relativa

indiferença, algo semelhante ao tédio. Mentes precisam e gostam, sentem prazer

em ser desafiadas. O objeto que não oferece qualquer risco, que apresenta-se

apenas como a confirmação de relações já internalizadas, de encadeamentos ultra

previsíveis, não são capazes de excitar os sentidos. Pois seria justamente essa falta

81

Ver Leonard B. Meyer, Emotion and Meaning in Music, p.89-90.

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de satisfação com a organização psicológica a responsável pelo surgimento

daquilo que Meyer chama de “modos naturais de expectativa”. Porque a mente

constantemente trabalha no sentido da completude e estabilidade das formas. A

tendência de agir na direção da regularidade e da simplicidade na organização das

formas seria comprovada, entre outros possíveis exemplos, pelo fato de que,

quando deixado sem estímulos, próximo a um estado de independência do tempo,

um sistema tenderia a perder assimetrias e tornar-se mais regular. Desse modo,

quando a mente opera por conta própria - como ao relembrar padrões e tipos de

organização - ela tenderia a remodelar as formas no sentido de uma adequação

maior a esses princípios. Quando aplicada aos processos da memória, a lei

Prägnanz age no sentido de completar o que se apresenta incompleto, regularizar

o que se apresenta irregular, e assim por diante. Isso equivale a dizer que, de

modo geral, tendemos a lembrar das melodias como sendo mais simples do que

elas efetivamente são. Diversas vezes pude observar, no contexto informal e

amador das rodas de violão, geralmente enquanto eu próprio tocava, que as

pessoas tendem a simplificar as melodias, suprimindo delas, justamente, as partes

mais instáveis, os ditos acidentes – notas que não pertencem à escala tonal –

substituindo esses acidentes por notas menos tensas, mais confortáveis. Isso torna-

se tão mais patente quando são as canções de Tom Jobim que estão em jogo.

Porque nelas esses desvios dos modos naturais é que parecem ter se tornado a

própria norma, uma espécie de marca registrado do estilo.

São inúmeras as anedotas sobre as dificuldades sofridas pelos cantores que

atuavam no fim dos anos 1950, quando surgia a Bossa Nova, na hora de cantar

canções como Desafinado – composta por Tom e Newton Mendonça.82

Colocando à parte os profissionais, as coisas parecem não ter mudado muito:

embora seja uma canção bastante conhecida, são raras as pessoas que conseguem

cantar com justeza a sinuosa frase melódica já do primeiro verso. Nas duas

passagens pelo dó sustenido (que na letra corresponde às sílabas sublinhadas do

“se você disser que eu desafino amor), o quinto grau aumentado da tonalidade da

canção (originalmente em Fá maior), costuma ser arredondado. Na primeira vez,

segue o efeito de continuidade da direção melódica e desce para o Dó natural,

como se estivesse embalado pelo movimento geral do fluxo da melodia. Da

82

Algumas delas são narradas no livro de Ruy Castro, Chega de Saudade: A História e as

Histórias da Bossa Nova. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p.201-202.

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segunda vez, contudo, o Dó sustenido costuma ser arredondado para cima,

tornando-se Ré. Nesse caso, como há uma inversão do sentido do movimento

melódico (depois de subir durante o “que eu desafino”, a melodia desce na palavra

“amor”), a simplificação parece ocorrer no sentido não da direção, mas da

proximidade. Ou seja, o Dó sustenido desliza para a nota contígua que esteja mais

próxima à nota anteriormente tocada – no caso, a tônica em Fá. Desliza para o Ré.

É preciso notar que há um peso considerável nesses acidentes que ocorrem logo

no primeiro verso. Não podemos considerá-las simples notas de passagem.

Primeiro, porque possuem considerável valor temporal – duram o bastante para

serem percebidos como pontos autônomos de apoio da melodia, e não como

efêmeros instantes de transição. Segundo, porque são nas duas vezes articuladas

em posições métricas pouco prováveis, no pulso fraco do compasso, e na forma de

uma pequena síncope interna. O resultado é que as notas tendem a aparecer muito

mais do que apareceriam caso seguissem os padrões mais tradicionais das notas de

passagem, ou de eventuais floreios cromáticos. Isso sem falar que o Dó sustenido,

que dá o veneno da melodia, é atacado duas vezes sobre a palavra “amor”, que

situa-se justamente no fim da primeira frase melódica. Ou seja, no ponto para o

qual tradicionalmente dirigimos com mais força a nossa atenção – para o fim dos

períodos musicais. E é natural que seja assim (“isso é Bossa Nova, isso é muito

natural”).83

Pois Desafinado foi composta por causa dessas notas. Para que elas

aparecessem. No seu livro sobre a Bossa Nova, Ruy Castro narra a cena em que

Tom e Newton compõem juntos ao piano, entre intermitentes ataques de riso, essa

canção que, na sua origem, antes de tomar muitos ares de elegância nas versões de

Frank Sinatra e Ella Fitzgerald (Off-key), bem antes de alçar voo para o mundo,

parece ter sido uma sofisticada anedota musical, maldosamente dirigida aos

cantores da noite. E que assim, ao espelhar na “dificuldade” melódica o conteúdo

da própria letra (o de um cantor desafinado que, mais do que justificar a sua

deficiência diante da mulher amada, consegue transformá-la em ferramenta de

sedução, em charme), fazendo com que ambas se comentassem mutuamente,

criou uma relação de isomorfismo entre as duas. No plano da composição de

canções, da articulação do seu centro nevrálgico, a interação de melodia e letra, a

83

Sobre o modo como a atenção é naturalmente direcionada para as bordas (início e fim) da frase

melódica ver Bob Snyder, op.cit.., p.135-159.

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música de Tom e Newton representa (talvez junto com o Samba de Uma Nota Só,

de autoria da mesma dupla de compositores) um momento alto de tomada de

consciência das potencialidades da linguagem.84 Nesse sentido, Desafinado talvez

seja mais reveladora da maturidade alcançada pela canção no Brasil do que Chega

de Saudade. Para uma canção com o seu grau de complexidade musical, é mesmo

espantoso que tenha se tornado tão popular. Fez uma carreira extremamente bem

sucedida no universo jazzístico, frequentando as paradas americanas de sucesso

no saxofone de Stan Getz, tornando-se um standard mundialmente conhecido. No

Brasil, muita gente a conhece, sobretudo os versos iniciais – embora tenda a

cantá-la de modo bem mais adoçado, retirando as malícias de seus sustenidos e

com isso boa parte de sua ironia, aproximando-a de um romantismo mais singelo,

menos ácido, com menor grau de ironia. Mas, aqui, não me parece que tenha

conseguido alcançar a popularidade de Chega de Saudade. Não se trata de um

dado que possa ser objetivamente comprovado, mas tão somente de uma

observação pessoal. O fato é que quando Chega de Saudade é tocada num

ambiente coletivo (de classe média carioca, diga-se, o mesmo que deu origem à

Bossa Nova), parece uma resposta emocional mais efusiva da parte de todos os

presentes, do que acontece no caso de Desafinado. As pessoas são mais arrastadas

pela música. E talvez isso não seja apenas causado por uma possível maior

exposição à determinada música.

A letra na ponta da língua (a impressão que dá é de que, no nicho social da

classe média carioca, todo mundo sabe cantar Chega de Saudade, com exceção da

parte final da letra, com aquelas variações confusas – “pra deixar desse negócio”,

“não quero mais esse negócio”, “vamos deixar desse negócio” –, que o próprio

Caetano Veloso deixaria de lado na sua versão ao vivo), cantando em uníssono, as

pessoas são automaticamente engajadas num ritual: a canção parece levar o

acontecimento musical para algum lugar diferenciado. Diante disso, Desafinado

soa “apenas” como uma excelente (genial) canção que é muito conhecida por

todos. Mas sem o poder encantatório de Chega de Saudade. Por outro lado,

84

Considero a existência de dois modelos melódicos básicos na obra de Tom Jobim em seu

período bossanovista: o primeiro, de uma melodia que “caminha” apoiando-se preferencialmente

em notas ditas “acidentes” – notas que estão fora da escala diatônica própria a tonalidade da

canção. “Desafinado” seria uma espécie de arquétipo dessa tendência composicional. O segundo

modelo seria caracterizado por um movimento melódico mínimo (ou mesmo por uma melodia

estática). “Samba de Uma Nota Só” constituiria o arquétipo dessa família melódica. Vale notar que

os dois modelos apóiam-se sobre um uso muito sofisticado do apoio harmônico, sendo este em boa

parte oriundo da bagagem erudita de Jobim – na qual desponta o nome de Claude Debussy.

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quando tocava para amigos estrangeiros, no período em que morei na França,

sentia que Desafinado era melhor aceita - e muito por conta do simples fato de

que era mais conhecida, familiar. Sempre me coloquei essa pergunta: por que será

que Desafinado foi tão mais bem sucedida como standard internacional do que

Chega de Saudade? E, inversamente, por que será que Chega de Saudade parece

ter impregnado com mais força nossa memória coletiva, tornando-se um símbolo

musical mais forte do que Desafinado? É óbvio que existe um importante

componente histórico nisso, pois muito da aura da primeira foi uma decorrência

do fato de ter sido o marco inaugural de um novo período na música popular feita

no Brasil. Mas, ao mesmo tempo, talvez existam motivos que dizem respeito aos

distintos efeitos provocados pelas canções. Parece que Desafinado já é

perfeitamente moderna, no sentido de que já pertence inteiramente ao tempo que

ela própria anuncia naquele momento. Através da malícia leve de sua letra, de um

certo charme descolado e sofisticado da complexa melodia, da atmosfera algo

jazzística dos seus acordes, de seus jogos de metalinguagem, e da presença de

signos internacionais como a avançada máquina rolley flex, o que se revela é uma

canção perfeitamente cosmopolita. Tomou partido da novidade, do futuro, e

anunciou: “isso é Bossa Nova”! Desafinado já nasceu viajando o mundo, tirando

fotos – uma canção-turista. Tenho a impressão de que Chega de Saudade nunca

saiu do Brasil. Parece que um certo “substrato arcaico” jamais a deixou libertar-se

inteiramente do passado. Que ela permanece estacionada na esquina da história

(para usar o termo com o qual Tom Zé descreveu a revolução representada por

João Gilberto), suspensa em eterna indefinição. Nela, o eu lírico não fala

diretamente a sua amada. Expõe de cara a sua tristeza e pede que esta vá até ela(a

mulher amada), e que então diga que “sem ela não pode ser”. Depois, alegra-se (a

música modula de Ré menor para Ré maior), e, sonhador, imagina o momento em

que “se ela voltar, que coisa boa”. Ou seja: está parado, fixo. As coisas vêm e vão,

mas ele continua estático. Para trazer de volta o seu amor, dispõe de armas bem

menos sofisticadas do que a rolley flex: preces, antigas promessas de beijinhos e

carinhos sem ter fim. Nenhuma malícia.

A melodia construída em cima de intervalos de terça, com forte influência

de Villa-Lobos,85

e que Tom decidiu fazer após ouvir a faxineira de sua mãe

85

Ver, nesse sentido, Lorenzo Mammì, “Canção do Exílio”, In. Três Canções de Jobim, São

Paulo, Cosac Naify, 2004.

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assoviar uma longo melodia de choro. Compôs ao violão, em três partes, e passou

a bola para o poeta e diplomata Vinícius de Moraes. Uma vez pronta, a música

ficou mais de um ano na gaveta. Somente quando João Gilberto reapareceu, em

1957, depois de um retiro de dois anos fora do Rio de Janeiro, trazendo consigo a

famosa batida e seu inconfundível estilo interpretativo, é que ela finalmente

nasceu. No fundo, era uma composição à três. As inovações que a versão gravada

por João Gilberto trazia, e que fizeram tantas pessoas ficarem chocadas, davam-se

no contexto de elos muito nítidos com a tradição – com índices claros que

remetiam ao antigo choro carioca. Pode ser que parte do impacto emotivo

exercido por Chega de Saudade venha justamente da capacidade de encenar

simbolicamente, nas inúmeras camadas que compõem a sua forma, a ambiguidade

de fundo que marcou boa parte da auto-reflexão brasileira no século XX.

Ambiguidade que pode ser sumariamente resumida no paradoxo que Fernando

Novais definiu como centro estrutural do pensamento de Sérgio Buarque de

Hollanda a respeito do modo de inserção do Brasil na modernidade: “se o Brasil

permanece Brasil não se moderniza, se se moderniza deixa de ser Brasil”.86

Em

Chega de Saudade essa ambiguidade de fundo é transformada em tensão que dá

vitalidade ao movimento sonoro e faz despertar uma pletora de sentimentos

complexos no ouvinte: tristezas e esperanças, saudades do passado e vontade de

futuro. O caráter indefinido, algo nebuloso desse verdadeiro monumento sonoro

do Brasil do século XX seria ressaltado por Caetano Veloso nos seguintes termos:

(...) o título e a letra sugeriam uma rejeição/reinvenção da saudade, essa palavra

que é um lugar-comum na lírica luso-brasileira e um emblema da língua

portuguesa, pois, além de ser um acidente etimológico inexplicado, cobre um

campo semântico revelador de algo peculiar em nosso modo de ser. Uma

luxuriante composição cheia de lugares-comuns incomuns (...) e de novidades que

soavam como atavismos – ou experimentações que pareciam lembranças (....). Ela

era o regime geral da bossa nova, o mapa, o roteiro, a constituição.87

Acima de tudo, por seu caráter histórico, sua capacidade de encantamento,

sua presença difundida, seu grau de incorporação, e talvez por muitos outros

motivos, ela se associou, se fundiu, ainda que de modo um tanto misterioso, e

talvez vagamente identificável, em algo mais amplo e totalizante: na ideia

86

Cf. Apud., José Miguel Wisnik, Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil, São Paulo, Companhia

das Letras, 2008, p.418. 87

Cf. Caetano Veloso, op.cit.., p.222.

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longamente acalentada de uma utopia brasileira. Nesse sentido, é possível que ela

fale com mais força aos brasileiros do que aos estrangeiros.

De todo o modo, é possível que parte do poder de permanência de Chega de

Saudade e também de Desafinado – e de muitas das canções de Jobim, em geral –

esteja ligado, justamente, a essas notas mais escapadiças que a memória tende a

arredondar. Porque seriam elas capazes de preservar algo de surpreendente em

canções que já foram muitas vezes ouvidas. Pois uma vez que a forma da

memória age sobre elas no sentido da simplificação, ao escutá-las novamente

somos surpreendidos pelas zonas de complexidade, de cuja existência sequer nos

recordávamos. Mesmo que Desafinado seja uma música bastante difundida e

incorporada ao repertório comum de muita gente, seus Dós sustenidos continuam

a causar espanto. Ou seja, a canção foi armazenada em suas linhas gerais, mas

seus detalhes desviantes continuam soando surpreendentes. Porque geralmente

guardamos as formas musicais mais como “tipos ideais” do que como coisas

particulares. Conforme argumentou Leonard Meyer,

Those factors which are the immediate cause of affect and aesthetic response, the

deviations, are the very ones that either become regularized and averaged or

forgotten. For this reason they tend to surprise us, to remain deviants even after

many hearings of a work”.88

Não é preciso dizer que os schemas que utilizamos na percepção do jogo

musical não são cristalizados – eles continuam mudando ao longo da vida,

conforme ampliamos nossa bagagem de melodias ouvidas. Mas é a partir deles

que se pode diferenciar o que é usual, normal, previsível, daquilo que é

surpreendente, pouco comum, ou mesmo gritantemente absurdo. Ele estabelece,

no ato da escuta, o que é confirmação da norma, e o que é desvio. E, uma vez que

cada novo traço de memória pode ser capaz de modificar ligeiramente as normas

de condução da escuta, alterando o schema mental que emoldura a experiência

musical, a escuta repetida de uma mesma peça pode tornar-se uma nova escuta,

trazendo novas percepções e insights.

Nas canções de Jobim os desvios da norma habitual não estão presentes

apenas no desenho melódico – que é sempre o eixo estrutural de suas

88

“Esses fatores que constituem a causa imediata da afecção e da resposta estética, os desvios, são

exatamente aqueles que, ou são regularizados e normalizados ou esquecidos. Por esse motivo eles

tendem a nos surpreender, a permanecer como desviantes mesmo depois de escutarmos várias

vezes o mesmo trabalho”. (Cf. Leonard B. Meyer, op.cit.., p.90) (Tradução Livre)

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composições (“Se a forma com que o cool jazz desenvolve os temas lembra a

polifonia de Bach, e ainda mais os quartetos de Mozart, a música de Jobim pode

ser aproximada à de Chopin, que apresenta a mesma autossuficiência do canto”).89

Eles surgem também em outras esferas, principalmente na harmonia e no

encadeamento rítmico. Desse modo, sua riqueza não se esgota facilmente. Parece

que sempre há algo escondido para ser descoberto – ou redescoberto. Se os

recursos rítmicos vieram em boa parte da tradição do samba, e da feição moderna

que este ganhou com João Gilberto, os recursos harmônicos, por sua vez, parecem

deitar parte de suas raízes na formação de pianista erudito, e em sua predileção

por Claude Debussy.

89

Cf. Lorenzo Mammì, “Prefácio”. In. Cancioneiro Jobim: Obras Escolhidas, Rio de Janeiro,

Jobim Music, 2002, p.16

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3 Quadro 2 – Harmonia, sensação e espaço

Numa carta enviada a Richard Wagner, escrita em fevereiro de 1860, logo

após as primeiras (e malsucedidas) apresentações de trechos das principais obras

do compositor alemão (sobretudo Lohengrin e Tannhäuser) ao público francês,

Charles Baudelaire descreve algumas das impressões que teve ao ouvir aquela

música:

(...) o caráter que sobremaneira me impressionou foi a grandeza. Isso representa o

grande, e isso conduz ao grande. Encontrei por todas suas obras a solenidade dos

grandes ruídos, dos grandes aspectos da Natureza, e a solenidade das grandes

paixões do homem. Sentimo-nos imediatamente arrebatados e subjugados.90

O que salta à vista de modo inequívoco nas descrições de Baudelaire sobre

as obras de Wagner, além de seu caráter grandioso e sublime, é a presença de uma

qualidade de superexcitação; ou de um frenesi nervoso que jamais arrefece; de

algo que está constantemente lutando contra os seus próprios limites, algo capaz

de se auto-superar incessantemente, e que, justamente por conta disso, aproxima-

se perigosamente da desordem – do caos. No ensaio que escreveu um anos depois

de redigir a carta, Baudelaire deixa transparecer, num gesto rápido e

calculadamente natural, o vulto anônimo da massa das grandes cidades modernas

que se esconde sob a fantasia neogótica das encenações wagnerianas: "Dir-se-ia

que Wagner ama com predileção as pompas feudais, as assembléias homéricas

onde jaz uma acumulação de força vital, as multidões entusiasmadas, reservatório

de eletricidade humana, de onde o estilo heróico brota com impetuosidade

natural."91 Há, no trecho citado e, de modo mais amplo, no decorrer do ensaio,

uma passagem gradativa do ritualizado ao caótico, ampliada ainda mais pela

presença crescente de metáforas industriais, bem ao sabor do mundo moderno.

Expressões como "intensidade nervosa", "acumulação de força", "reservatório de

eletricidade", são recorrentes durante todo o texto, e apontam, sem dúvida, ao

tratamento particular da dissonância na harmonia de Wagner, ainda que

Baudelaire não possua a linguagem técnica para abordá-la com maior clareza.

90

Cf. Charles Baudelaire, op.cit.., p.21. 91

Cf. Idem, Ibidem, p.50.

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O poeta francês parece enxergar na obra de Wagner a presença de três

filiações a universos possivelmente distintos. Primeiramente, ao universo clássico,

pelo fato de que seus libretos ancoram-se fortemente em conteúdos míticos e de

que sua arte preconiza uma aliança entre diversos domínios artísticos. Baudelaire

enxerga na obra do compositor alemão “um método de construção excelente, um

espírito de ordem e de divisão que lembra a arquitetura das tragédias antigas”92 (e

tendo em vista esse comentário, soa menos abrupta a afirmação de Lévi-Strauss,

na ouverture de O Cru e o Cozido, de que Wagner é o “o pai irrecusável da

análise estrutural dos mitos”). De fato, o retorno à arte grega e a releitura das

tragédias clássicas como verdadeiros documentos filosóficos – vistas como a

representação ideal de uma beleza universal marcada por “uma nobre

simplicidade e uma serena grandeza” - é um ideal que perpassa todo o

pensamento e a cultura alemãs desde o século XVIII até o fim do século XIX – de

Winckelmann e Goethe, passando por Schiller, Shelling, Hegel e Hölderlin, até

Schopenhauer e Nietzsche. “O único meio de nos tornarmos grandes e, se

possível, inimitáveis é imitar os antigos”, escreveu Winckelmann, o grande

precursor dessa linha de pensamento. Sua fórmula paradoxal justificava-se através

da diferenciação entre imitação e cópia: a cópia constituía uma reprodução servil

e limitada, enquanto o termo imitar admitia a incorporação inteligente e ativa de

um processo de criação e de uma forma de olhar a natureza, que poderia portanto

tornar-se original.93

A filiação ao universo clássico na obra do autor de Lohengrin é, contudo,

limitada pelo fato de que ela também participa obrigatoriamente da condição

própria a seu tempo, sendo portanto mediada e redimensionada de acordo com o

espírito romântico da primeira metade do século XIX. Depois de expor o projeto

wagneriano de restauração do teatro grego, Baudelaire enxerga na figura da Vênus

do Tannhäuser (uma Vênus subterrânea, cuja gruta encantada, entre um balé de

Bacantes e um coro de Sereias, difunde uma luz rosada, como uma boite estilo

Segundo Império), um exemplo ideal da relação entre a poética do compositor e o

mundo clássico, para, então, tecer o seguinte comentário: "Os fenômenos e as

ideias que se produzem periodicamente através das épocas sempre extraem, a cada

ressurreição, o caráter complementar da variante e da circunstância. A radiosa

92

Cf. Idem, Ibidem, p.54 93

Ver Roberto Machado, O Nascimento do Trágico, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2006, p.13.

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Vênus antiga, a Afrodite nascida de branca espuma, não atravessou impunemente

as horrendas trevas da Idade Média. Ela não mais habita o Olimpo nem as

margens de um arquipélago perfumado”. Sendo assim, “os poemas de Wagner,

ainda que revelem um gosto sincero e uma perfeita inteligência da beleza clássica,

também participam, em extrema intensidade, do espírito romântico. Se fazem

pensar na grandeza de Sófocles e Ésquilo, obrigam ao mesmo tempo o espírito a

recordar os Mistérios da época mais plasticamente católica”.94

De fato, apesar do grande interesse pelas tragédias gregas, os artistas

românticos não apenas elegeram a Idade Média como ponto de identificação

capaz de exemplificar suas próprias crenças e atitudes, como também passaram a

repudiar épocas passadas que de certo modo ofendiam essas crenças,

notavelmente a mitologia clássica. Pontuava-se com atenção especial os aspectos

do passado que pudessem ser interpretados nos termos desses interesses. A Idade

Média exercia fascínio sobre os românticos pois apresentava a mesma

exuberância, inquietude e informalidade que eles exaltavam como valor e

pretendiam alcançar. Além disso, e talvez até mais importante, a arte desse

período ganhou uma aura de ingenuidade infantil – irracional, pura, natural e

ainda livre da mácula das odiadas convenções – que associava-se perfeitamente à

ideologia igualitária (de que todos os homens nasciam iguais) e era acalentada

como um dos grandes ideais românticos.95 Por outro lado, a mitologia clássica

ainda estava muito associada a antigas estruturas políticas do ancien régime – a

divisão hierárquica entre Deuses e mortais sendo relacionada por analogia com as

estruturas políticas. Associava-se também com a arte neoclássica, baseada em

regras estéticas, convenções dramáticas e práticas prosódicas vistas pelos

românticos como flagrantemente artificiais e excessivamente planejadas. Por fim,

e de modo bastante decisivo, as referências à mitologia clássica eram geralmente

evitadas porque demandavam um saber prévio para serem devidamente fruídas e

compreendidas – um saber que poderia funcionar como fator distintivo de classe e

condição social, algo abominado pela mentalidade igualitária romântica. Pois o

94

Cf. Charles Baudelaire, op.cit.., p.55. 95

Os conceitos e metáforas usados para interpretar o passado costumavam ser, contudo,

românticos. “The young Goethe under the influence of the ideas of Herder, described Gothic

architecture, in contrast to buildings constructed according to rules, as the organic product of

growth in the mind of genius”. (Cf. M.L.Abrams, Apud., Leonard B. Meyer, Style and Music:

Theory, History, and Ideology, Chicago and London, The University of Chicago Press, 1989,

p.169)

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romantismo perseguiu a utopia de uma arte que pudesse ser – como diriam os

formalistas – fruída em seus próprios termos.96 Desse modo, o panteão criado por

Wagner em suas óperas, ainda que hierárquico, era vestido por mitos nativos,

populares, ao alcance de todos – o que de certo modo casava muito bem com o

próprio ideal do nacionalismo romântico – a força do homem natural, puro,

impondo-se sobre as leis artificiais e sobre as convenções impostas pelos deuses

(Siegfried, o herói/gênio). Nesse contexto, Baudelaire tentará expor a aspiração

clássica que jaz escondida por trás da inequívoca e ostensiva filiação romântica de

Wagner. Filiação que se dá pela grandeza do mito, e que será posteriormente

confirmada pelo jovem Nietzsche em O Nascimento da Tragédia através de uma

reavaliação da civilização grega e da identificação de um princípio decisivo,

tempero incondicional da serenojovialidade apolínea, capaz de revitalizar

desagregando: o dionisíaco.

O próprio Wagner, ao reconhecer a impossibilidade de uma volta ao ideal

clássico, mas ao mesmo tempo afirmando a necessidade de recriar sobre aquele

modelo um novo princípio de união entre palavra e música, e uma nova totalidade

através de sua Gesamtkunstwerk, retratava-se a si mesmo como uma espécie de

herói trágico, coincidindo perfeitamente com o tipo de artista conspirador descrito

por Walter Benjamin logo no início de seu famoso ensaio sobre Baudelaire.97 Em

Ópera e Drama, o compositor alemão escreveria que,

Um indivíduo isolado é capaz, em seu impulso íntimo, de transformar a amargura

desse reconhecimento numa exaltação ébria que o leva, com a coragem da

embriaguez, a tentar a realização do impossível; porque só ele é movido por duas

forças artísticas (i.e.: a poesia e a música) às quais não pode resistir e pelas quais se

deixa levar de bom grado ao sacrifício de si mesmo.98

Somando a aspiração de realizar o impossível no real por meio de um ato

simbólico, com o imenso estardalhaço causado pelas primeiras apresentações de

seus trabalhos junto ao público francês, Baudelaire irá reconhecer em Wagner a

tradução perfeita de seu artista-herói moderno. Reconhecimento que se tornará

fundamental no posterior culto prestado ao compositor alemão pelos simbolistas.

96

Cf. Leonard B. Meyer, Style and Music: Theory, History, and Ideology, p.171. 97

Ver Walter Benjamin, Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo, Obras

Escolhidas III, São Paulo, Editora Brasiliense, 1994. 98

Cf. Apud., Lorenzo Mammì, “Richard Wagner e "Tannhäuser" em Paris”, In. Novos Estudos

Cebrap Nº 30, julho de 1991, p.243.

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83

Mas mesmo que se encaixe na forma do artista moderno, tal como

concebida por Baudelaire, é inútil procurar no autor do Anel dos Nibelungos uma

visão clara das contradições do fazer artístico moderno. A reflexão de Wagner

sobre o seu próprio trabalho difere fundamentalmente daquela de Baudelaire, e

parece mesmo que o teor moderno presente na obra do compositor alemão foi em

grande parte revelado pelo ouvido arguto do crítico e poeta francês. Porque em

Wagner as contradições que formam a própria substância do romantismo se

resolvem sempre, como por milagre, por um ato desesperado da vontade.99 É

desse modo que é recuperada, in extremis, a totalidade do absoluto romântico.

Baudelaire, contudo, concebe o mundo de outra maneira. Também sua poesia é

marcada por um profundo anseio de unidade. Mas essa unidade não é mais

atingida através de um mergulho profundo na subjetividade, ou pela via de um

sacrifício de si mesmo, e sim através da doutrina das correspondências, de um

sistema de associações capaz de interpretar o mundo como uma “floresta de

símbolos”. Ao descrever o conceito de obra de arte total proposto por Wagner,

Baudelaire vai falar que este irá conceber sua arte dramática como uma espécie de

“reunião” ou “coincidência de várias artes” (o grifo é do próprio Baudelaire). A

coincidência à qual se refere o crítico francês não se deixa, contudo, confundir

com a correspondência - que se tornaria posteriormente um dos pontos centrais da

poética simbolista. Pois esta buscava não uma reunião das artes com sua

consequente acumulação, capaz de nos conduzir a uma totalidade. A

correspondência simbolista procurava, antes, definir “um plano simbólico geral,

onde todos os sentidos possíveis, por cadeias de analogias, teriam livre

circulação”.100 Ou seja, a primeira pressupõe um somatório de efeitos e qualidades

específicas de diversas linguagens artísticas, e, no horizonte, a possibilidade de

acesso a uma totalidade; a segunda, uma possibilidade absoluta de troca (de ideias

99

As características aqui citadas como próprias ao Romantismo não são de modo algum coerentes

e fechadas. Ao contrário: parece que o próprio período em questão (que vai essencialmente da

segunda metade do século XVIII ao fim do século XIX, na Europa) notabilizou-se sobretudo por

seu caráter contraditório. No verbete “Romantic” do The New Grove Dictionary, John Warrack

cita as contradições aparentes que formam mesmo a essência do Romantismo: “ambitions for the

future mingling with dreams of the past; a determination to overthrow coupled with notalgia for

the rejected world of order and balance; fervent brotherhood yet the exaltation of the individual;

proud selfconsciousness yet the sense of acute isolation; the assertion of Man yet an ache for the

lost God”. (John Warrack, “Romantic”, The New Grove Dictionary, ed. Stanley Sadie, 16; p.141-

42) 100

Cf. Lorenzo Mammì, “Richard Wagner e "Tannhäuser" em Paris”, In. Revista Novos Estudos (Cebrap), Nº 30, Julho de 1991, p.244.

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em relação a outras ideias), um sistema infinito de equivalências (“les choses

s’étant toujours exprimés par une analogie réciproque, depuis le jour où Dieu a

proféré le monde comme une complexe et indivisible totalité”).101 Esse ponto fica

tão claro no ensaio de Baudelaire que ele chega mesmo a citar o próprio poema-

manifesto Correspondances – reproduzo aqui um trecho dele:

La Nature est un temple où vivants piliers

Laissent parfois sortir de confuses paroles;

L’homme y passe à travers des forêts de symboles

Qui l’observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se confondent

Dans une ténébreuse et profonde unité,

Vaste comme la nuit et comme la clarté,

Les parfums, les couleurs et le son se répondent.102

A possibilidade de interpretar o mundo como uma verdadeira “floresta de

símbolos” passava a exigir que se verificasse todos os campos da linguagem. Para

tanto, era necessário estabelecer um plano suficientemente genérico e abstrato que

permitisse uma total abrangência desse sistema de associações – e não mais o

ideal romântico da união das artes, tal como ainda era concebido por Wagner.

Uma vez destacadas as dimensões clássicas e românticas em Wagner, falta

ainda tratar do que o poeta francês considera como propriamente moderno na obra

do compositor alemão, e a partir daqui torna-se difícil não ler o ensaio de

Baudelaire à luz do famoso texto de Walter Benjamin. Numa passagem exemplar

em que busca definir o próprio sentido do que vem a ser modernidade, Benjamin

evoca a leitura de Baudelaire sobre Wagner:

A modernidade assinala uma época; designa, ao mesmo tempo, a força que age

nessa época e que a aproxima da antiguidade. A contragosto, e em casos contados,

Baudelaire a atribui a Hugo. Wagner, ao contrário, lhe parece a emanação sem

limites e sem falsificações dessa força. ‘Se Wagner, na escolha de seus temas e no

seu proceder dramático, se aproxima da antiguidade, torna-se, graças à sua força de

expressão apaixonada, o representante mais importante da modernidade’.103

101

Cf. Charles Baudelaire, Richard Wagner e ‘Tannhäuser’ em Paris, p.38. 102

“A Natureza é um templo vivo em que os pilares/ Deixam filtrar não raro insólitos enredos;/ O

homem o cruza em meio a um bosque de segredos/ Que ali o espreitam com seus olhos familiares./

Como ecos longos que à distância se matizam/ Numa vertiginosa e lúgubre unidade,/ Tão vasta

quanto a noite e quanto a claridade,/ Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam” (Cf. Charles

Baudelaire, As Flores do Mal, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2006, p.127) 103

Cf. Walter Benjamin, op.cit.., p.80.

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Benjamin confirma a noção de Baudelaire de que a qualidade propriamente

moderna da música de Wagner está no excesso de energia por ela produzido -

"acumulação de força", "reservatório de eletricidade". Se parece claro que a

cultura ocidental foi desde os seus primórdios marcada pela tensão entre o clamor

apolíneo do classicismo e as ameaças dionisíacas e desagregadoras do

romantismo, não surpreende que “a arte clássica” tenha sido “concebida pelos

críticos alemães como ‘beleza’”, ao passo que a “arte romântica” foi concebida

como “energia”.104

Fica claro na citação de Baudelaire (reforçada ainda pelo fato de se

encontrar dentro de um comentário de Benjamin que a confirma) que há uma

tensão de base entre os temas e o modo de apresentá-los – sendo o caráter

moderno mais associado ao último. Conforme o ensaio vai sendo desenvolvido,

há um movimento que leva da leitura do programa dos concertos até a análise das

sensações abstratas evocadas pela música do alemão. Na abertura puramente

instrumental de Lohengrin o poeta vê a libertação "das ligações com a gravidade";

a "volúpia que circula nos lugares altos"; "uma solidão com um imenso horizonte

e uma ampla luz difusa"; "a imensidão sem outro cenário senão ela própria", "um

acréscimo sempre renascente de ardor e brancura". Trata-se de uma descrição que

difere fundamentalmente daquela que consta no próprio programa da peça

(reproduzida quase na íntegra no próprio ensaio), e que fala de "espaços infinitos",

"uma legião milagrosa de anjos" que aparece aos poucos, "da luminosa aparição"

do Santo Graal, capaz de provocar uma "adoração estática", seguida por "chamas

ardentes" que abrandam o esplendor da relíquia e "o cortejo de anjos que esvanece

nas profundezas do espaço", depois de ter espargido, no coração dos homens

puros, "o divino licor".105 Difere também de uma descrição mais técnica,

publicada pelo compositor Franz Liszt dez anos antes do ensaio de Baudelaire (e

também citada por este): "(...) um éter vaporoso que se expande (...) efeito

exclusivamente confiado aos violinos, divididos em oito estantes diferentes, que,

após vários compassos de sons harmônicos, continuam nas notas mais agudas de

seus registros"; trompetes e trombones "repetem a melodia pela quarta vez, com

um clarão fascinante de cores, como se nesse instante único o santo edifício

104

“Classic art was conceived by the German critics as “beauty”; romantic art as “energy””. (Cf.

Wimsatt and Brooks, Apud., Leonard B. Meyer, op.cit.., p.135) 105

Cf. Charles Baudelaire, Richard Wagner e ‘Tannhäuser’ em Paris, p.40.

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tivesse brilhado diante de nossos olhares ofuscados, em toda a sua magnificência

luminosa e radiante"; "O transparente vapor das nuvens volta a se fechar (...) e o

trecho se encerra pelos seis primeiros compassos, tornados ainda mais etéreos".106

A descrição de Baudelaire é fundamentalmente diferente das duas outras.

Nada tem a ver o caráter literário dos programas românticos. Trata-se, de certo

modo, de uma leitura clínica da música de Wagner – não à toa ele a associa, como

já foi colocado, às "vertiginosas concepções do ópio". Ela encontra eco nos

comentários feitos por Nietzsche a respeito do seu grande desafeto – “Wagner foi

uma de minhas doenças”; “ele tornou a música doente”; “nada é mais moderno do

que esse adoecimento geral, essa tardeza e superexcitação do mecanismo

nervoso”; “no que toca a arrebatar as pessoas, isto já se relaciona com a

fisiologia”, “Wagner é uma neurose” - , embora a avaliação de fundo seja

inteiramente diferente.107 Ainda assim, os dois evocam uma qualidade que coloca

a música de Wagner num lugar muito específico dentro da tradição romântica (um

lugar que, ao mesmo tempo que a torna referência máxima desta, deixa-a

paradoxalmente meio deslocada) – como se, levando certas tendências do

romantismo às suas últimas consequencias, tivesse por fim trazido à luz resultados

imprevistos, capazes de transcender, inclusive, ideias e concepções manifestadas

pelo próprio compositor alemão. Aparentemente foi Baudelaire, o grande

farejador do moderno, quem primeiramente enxergou na música de Wagner

dimensões que a levavam além da narratividade romântica.

Em certo sentido, Wagner ocupará para o poeta francês uma posição

simétrica àquela ocupada por Eugène Delacroix, no caso da pintura. Na primeira

parte do ensaio, indagando-se sobre a possibilidade da música veicular um

significado unívoco, na intenção de “démontrer que la véritable musique suggère

des idées analogues dans des cerveaux différents”,108 Baudelaire ensaia a hipótese

de um despojamento total de todos os referenciais externos à própria música: "Na

música, como na pintura, e até mesmo na palavra escrita, que é a mais positiva das

artes, há sempre uma lacuna completada pela imaginação do ouvinte.(...) Ora, se

afastamos por um instante o concurso da plástica, do cenário, da incorporação dos

tipos imaginados em comediantes vivos e até mesmo da palavra cantada; ainda

106

Cf. Idem, Ibidem, p.40. 107

Cf. Friedrich Nietzsche, O Caso Wagner: Um Problema Para Músicos / Nietzsche Contra

Wagner: Dossiê de um Psicólogo, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, §1, 5 e 6. 108

Cf. Charles Baudelaire, op.cit.., p.38.

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permanece incontestável que, quanto mais eloquente é a música, mais a sugestão é

rápida e justa, e maior é o ensejo de que os homens sensíveis concebam ideias em

relação às que inspiravam o artista". Ainda que se possa ver nisso apenas o

prolongamento da noção acalentada durante os séculos XVIII e XIX, que via na

música instrumental a linguagem mais natural e espontânea dentre todas - imune

aos índices de classe e às mentiras da linguagem verbal, capaz de unificar a

humanidade – as rêveries de Baudelaire apontam para outro nível de percepção.

Na carta enviada a Wagner, ele serve-se de comparações emprestadas à pintura

para descrever de modo impressionante o efeito causado pela música do

compositor alemão nos termos de uma “vasta extensão de um vermelho-escuro”

que chega, gradualmente, “por todas as transições de vermelho e rosa, à

incandescência da fornalha”. Baudelaire não pára: acompanha o movimento

desenfreado e transcendente da música de Wagner para “chegar a alguma coisa de

mais ardente” e logo depois constatar que “um último foguete vem traçar um

rastro mais branco sobre o branco que lhe serve de fundo”.109

Ao passar do programa do concerto à análise de suas sensações abstratas o

gesto de Baudelaire corresponde ao movimento com que, nos Salons, ele se

afastava dos quadros de Delacroix para confundir as figurações e perceber apenas

as relações entre manchas de cor (e não deixa de ser curioso o modo como a

pintura impressionista inverte os termos da equação: a abstração surgindo não de

um gesto de distanciamento, mas através da aproximação, como se seguisse a

lógica científica do microscópio). Em ambos os casos há uma ênfase na sensação

imediata dos elementos expressivos e na capacidade que têm de afetar de modo

muito direto, e de maneira idealmente não mediada por qualquer tipo de

convenção, o nosso próprio corpo. Em última instância, Baudelaire está levando

adiante o ideal do formalismo romântico - a arte fruída em seus próprios termos,

sem interferência de regras e convenções, sem necessidade de um aprendizado

prévio, sem qualquer mediação externa, sem qualquer recurso à tradição. Uma

arte acontextual, sem passado nem história, fundada exclusivamente (ou

predominantemente) na fisiologia comum, e, portanto, igualitária na base. Para

defender seus queridos coloristas, o Baudelaire-crítico-de-arte serviu-se

generosamente de metáforas musicais, falando de pintura em termos de harmonia,

109

Cf. Idem, Ibidem, p.23.

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timbre, contraponto. Ainda assim, é possível que nunca tivesse chegado a

expressar uma ideia tão pura de cor, quanto nessa passagem em que dedica à

música de Wagner. A aparente simetria na comparação entre as duas artes é

quebrada pela ênfase muito maior, no caso da música, sobre a resposta imediata,

fisiológica, aos estímulos. Nesse sentido, não me parece que as menções

específicas ao cérebro (órgão que remete muito mais a história evolutiva do que à

cultural) e ao ópio (substância que altera os níveis de consciência mediante um

processo químico), tenham sido feitas por acaso.

Tudo leva a crer que em Richard Wagner e "Tannhäuser" em Paris,

Baudelaire começa a desenhar, aos poucos, e ainda que sob o pretexto de uma

intervenção militante a favor da recepção de Wagner na França, um novo tipo de

escuta: uma escuta posterior àquela do subjetivismo romântico.110 Que permite,

sob os efeitos das descargas nervosas, a quebra de qualquer tipo de coerência

discursiva – apontando menos para causalidades temporais do que para efeitos

imediatos, ancorados no presente - colocando assim em risco a qualidade narrativa

que marcou a maior parte da música dos séculos XVIII e XIX. Uma escuta que se

pretende puramente física, baseada no aumentar e diminuir da intensidade, da

luminosidade do som, e que irá se irmanar com uma música que parece

proporcionar sensações tão puras e intensas não porque seja capaz de atingir

camadas mais profundas do espírito, mas justamente porque permanece na

superfície, no nível das reações cerebrais imediatas, o mesmo sobre o qual atuam

as drogas. É toda uma noção de profundidade, tão cara aos românticos, que vai

sendo posta por terra. Da valorização romântica da experiência individual,

interior, idiossincrática e inominável – valorização essa que se torna

especialmente evidente no deslocamento da noção própria ao século XVIII de que

a música representava emoções (afetos) para a crença difundida no século XIX de

que a música expressava a sensibilidade do compositor – migra-se para uma

concepção de arte cada vez mais atrelada às percepções imediatas de superfície.

Não obstante o fato de negar diversas premissas da música romântica, esse

novo tipo de escuta é ele mesmo um desdobramento dela, e já vinha sendo

anunciado antes de Wagner. O novo wagnerismo casualmente inaugurado por

110

A partir dessa ideia de música, Mallarmé transformará o discurso em uma estrutura musical,

revertendo a concepção que, desde Rousseau, fazia da música uma prática discursiva. Depois,

musical será para Lévi-Strauss, a forma com que os mitos se pensam.

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Baudelaire, e que certamente exerceu grande influência sobre o meio artístico

francês da segunda metade do século XIX,111 deve, sobretudo, nos mostrar de que

modo concepções aparentemente contraditórias podem coexistir em determinados

objetos artísticos – o modo, por exemplo, como parte da obra de Wagner

representa a um só tempo o apogeu da tendência romântica para a narrativa, com

seus leitmotiven e personagens operísticos, e a via de acesso para um modo de

escuta não mais fundado na articulação discursiva linear e diacrônica, mas cada

vez mais capaz de criar sentidos a partir da imdediaticidade das sensações. Para

entender o modo como essas duas dimensões concorrem na música de Wagner, e

também como serão filtradas e recriadas por Debussy – o compositor que ofereceu

a primeira grande resposta ao imenso predomínio do músico alemão no cenário da

música erudita112 - é necessário retomar, em traços breves e bastante

simplificados, numa verdadeira teia inter-relacional, alguns dos pressupostos

básicos da estética do Romantismo.

Primeiramente, tanto a narratividade quanto a ênfase na imediaticidade das

sensações parecem decorrer de um mesmo ódio às convenções que

representavam, no domínio das artes, um equivalente para a arbitrária divisão de

classes baseada em privilégios herdados - divisão essa que marcava o universo

social do ancien régime e que tanto feria o princípio igualitário que está na base

da ideologia romântica. De acordo com Wagner, “a mais perfeita forma de arte é

111

Para o crítico e historiador Martin Jay, a defesa de Tannhäuser fetia por Baudelaire em 1861 é o

marco inicial da devoção dos simbolistas ao músico alemão, culminando na criação da Revue

Wagnérienne. O editor da publicação, Edouard Dujardin, não hesitava em dizer que a verdadeira

fonte de inspiração do movimento simbolista era dada pela filosofia e pela concepção de arte

derivadas de Wagner, tendo sido a obra do músico alemão responsável por fazer com que a música

ganhasse a estima da elite intelectual francesa. Por volta de 1880, quando a Revue Wagnérienne

reunia em suas páginas, sob os mesmos princípios, simbolismo literário e impressionismo

pictórico, art wagnérienne era sinônimo de arte moderna. Nos círculos esotéricos liderados por Sâr

Peladan, Wagner era tido por iluminado, mas também em reuniões de peso cultural bem maior,

como os mardis littéraires de Mallarmé, os libretos e as obras teóricas do compositor alemão eram

lidos e comentados. (Ver Martin Jay, Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth-

Century French Thought, Califórnia, University of California Press, 1994, p.176) 112

A presença marcante de Wagner no cenário cultural francês suscitou a reação da Société

Nationale de Musique, dirigida por Saint-Saens, Gounod e Massenet. A Société procurava

encaminhar o trabalho de novos compositores no sentido da recusa sistemática às prerrogativas

wagnerianas. Tal reação alinhava-se, com efeito, à onda nacionalista e ao anti-germanismo

decorrente da derrota francesa na guerra franco-prussiana. Mas o recuo proposto pela Société

reduzia-se, no fim das contas, a repetições estilísticas no plano rítmico, e à retomada de velhas

convenções sintáticas que insistiam na ênfase melódica como eixo estrutural da música e em ideias

harmônicas igualmente estéreis; ou seja, não iam além de um academicismo retrógrado, que não

estimulava a criação de compositores preocupados com a superação dos recursos expressivos da

tonalidade. Estes, por sua vez, pareciam mais interessados nos caminhos abertos pela escola de

César Franck, que sustentava o culto a Wagner na França, do que propriamente na reação da

Société.

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aquela na qual todos os vestígios de convencionalismo foram completamente

removidos tanto do drama quanto da música”.113 Supostamente, a apreciação da

melhor música romântica, dos trabalhos dos verdadeiros gênios, devia depender

não de um gosto adquirido, mas de uma sensibilidade natural para a música. Essa

mesma ideia sustentou a noção da música como linguagem universal, para a qual

a experiência cultural, o aprendizado e a história seriam irrelevantes no seu

entendimento e compreensão. Em outras palavras, na luta incessante contra tudo o

que soasse como convencional, o Romantismo pregava o princípio de um

acontextualismo que tendia a desprezar o passado histórico, ancorando-se,

portanto, em certa imediaticidade. Não à toa, a figura da criança inocente – ainda

não afetada pelas convenções culturais e livre das distinções de classe – passa a

ser um dos principais símbolos dos ideais de acontextualismo e igualdade que

permearam o século XIX.114 De modo parecido, esses ideais estão também

entranhados na própria concepção daquilo que geralmente é denominado como

amor romântico, amor que não apenas brota espontaneamente – “Em Wagner,

escreveu Carl Dahlhaus, o amor é sempre à primeira vista”115 - mas que capta boa

parte de suas forças insurgindo-se contra barreiras que derivam, justamente, de

uma distinção social artificial, convencionada. Charles Rosen e Henry Zerner

comentam que

O ataque aos gêneros (musicais) pelos artistas românticos trai uma de suas mais

profundas ambições: a realização da “imediaticidade”, de formas de expressão

diretamente compreensíveis sem convenção e sem conhecimento prévio da

tradição. Foi sem dúvida uma ambição não-realizada, mas uma que remete a

Rousseau, a sua profunda descrença na linguagem, e ao modo como ela traía e

deformava os pensamentos e sentimentos mais profundos. Os românticos

almejavam a uma arte que pudesse falar de uma só vez e a todos. O ataque ao

113

Cf. Apud., Leonard B. Meyer, Style and Music: Theory, History, and Ideology, p.167 114

O acontextualismo é definido por Leonard B.Meyer nos seguintes termos: “Despite the fact that

political beliefs and attitudes gave it force and direction, Romanticism did not include an explicit

program of social change. Nevertheless the rejection of the older order profoundly affected

ideology. One of the most important consequences of this rejection was the emphatic denial of the

relevance of origins and contexts. In the ancien régime, artificialities of birth and lineage

established one's position in society and determined benefits and rights available to each

individual. The new ideology not only repudiated such hereditary privileges, but insisted on the

irrelevance of all origins, lineages, and contextual connections whatsoever. In heritance was to be

replaced by inherence-an inherence that was at once natural and necessary. This significant and

continuing tenet of Romanticism I will call acontextualism”. (Cf. Leonard B. Meyer, Style and

Music: Theory, History, and Ideology, p. 167) 115

Leonard B. Meyer, op.cit.., p. 186.

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sistema de gêneros é um ataque dirigido a uma tradição que tornou a

inteligibilidade dependente da bagagem de conhecimento...116

O corolário dessa visão foi a construção de uma crença segundo a qual as

obras de arte poderiam ser compreendidas por meio de uma “observação

científica”, posto que eram baseadas em princípios universais de validade

universal. Uma crença na existência de bases puramente naturais, e, portanto,

universais para a música, e que prevaleceria na psicologia, na teoria e na estética

da música durante os séculos XIX e XX. Desse modo, tanto Helmholtz quanto

mais tarde os primeiros psicólogos buscavam explicar o poder da música nos

termos de estímulos acústicos que seriam independentes da dimensão histórica e

também das diferenças locais, uma vez que eram naturais. Ao mesmo tempo, os

princípios de autoridade, antes tidos como estáveis, transmitidos de geração a

geração, passam a ser cada vez mais vistos com desconfiança, tornando-se a

experiência a verdadeira fonte da sabedoria. Nesse contexto, a linguagem, por seu

caráter puramente convencionado, será em parte depreciada, encorajando a visão

da música (sobretudo a instrumental) como arte exemplar – visão que se tornará

predominante entre os simbolistas franceses (como na máxima de Paul Verlaine:

“de la musique avant toute chose”). A desconfiança da linguagem reverbera, por

outro lado, de modo decisivo sobre a própria estética e teoria musical: o modelo

conceitual da música como linguagem tenderá a ser substituído por outro, baseado

no crescimento orgânico. A metáfora fundamental desse modelo organicista será

aquela da semente que se desenvolve e transmuta-se num ser vegetal. (Wagner

descreveria o processo de composição de The Flying Dutchman no seguintes

termos:

Nesta peça eu involuntariamente plantei a semente temática de toda a música na

opera… Quando voltei para a composição, a imagem temática que eu havia

concebido bastante involuntariamente espalhou-se por todo o drama numa teia

completa, perfeita; tudo o que tive que fazer foi permitir que os diversos germes

116

“The attack on the genres by the romantic artists betrays one of their deepest ambitions: the

achievement of "immediacy," of forms of expression directly understandable without convention

and without previous knowledge of tradition. It was no doubt an unrealized ambition, but one that

goes back to Rousseau, to his deep distrust of language, and the way it betrayed and deformed

one's inmost thoughts and feelings. The romantics wanted an art that would speak at once and to

all. The attack on the system of genres is an attack on a tradition that made intelligibility depend

upon connoisseurship. . . .” (Cf. Charles Rosen, e Henry Zerner, “The Permanent Revolution”.

New York Review of Books 26, nº 17, p. 23-30)

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temáticos contidos na baladas se desenvolvessem livremente, cada qual em sua

própria direção”).117

Havia, embutida no próprio modelo organicista, uma nova visão da

Natureza. De fato, a Natureza para a qual se voltariam os românticos não era mais

a natureza algo fixa, classificada e ordenada hierarquicamente de outros tempos,

mas algo em constante mudança e crescimento, em perpétuo desenvolvimento.

Tudo isso, por sua vez, associa-se com mudanças profundas no paradigma

biológico, acarretando a passagem de visões baseadas na hierarquia fixa de um

Ser acabado, para aquelas que tendiam a sublinhar a natureza processual do

mundo. “Nesse caso, é necessário considerar a mudança que ocorreu durante o

século dezoito nas crenças culturais sobre os mundos natural e social. A antiga

ordem concebia o mundo como hierarquia fixa e eterna, no qual cada componente

– pedras, plantas e animais; servos, cidadãos e nobreza – ocupa um lugar

predeterminado no plano divino. Durante o Iluminismo essa hierarquia fixa do Ser

cedeu caminho para visões que enfatizavam a ubiquidade da mudança e o

desenvolvimento – um mundo do vir-a-Ser. A manifestação preeminente dessa

mudança na ideologia foi, obviamente, a teoria da evolução, que recebeu sua

formulação clássica na altura da metade do século dezenove”.118

O importante é notar que a valorização do vir-a-Ser, do crescimento

orgânico e contínuo em contraposição ao equilíbrio e fechamento inequívoco do

Ser das formas clássicas, encontrou sua expressão musical na utilização de formas

abertas e de estruturas implícitas. Leornard Meyer destaca que esse vir-a-Ser

(“Becoming”) está relacionado ao constante movimento de busca, ao anseio

profundo (“yearning”) que é tão característico da música Romântica; a uma

espécie de ethos do anseio (“ethos of longing”) – o movimento incessante de algo

que nunca repousa, que jamais se realiza. Esse ethos do anseio, assim como a

tendência ao acontextualismo, fica claro, por exemplo, nas declarações de Wagner

sobre a ópera Tristão e Isolda. Como resultado da poção do amor,

117

Cf. Leonard B. Meyer, Style and Music, op.cit.., p.192. 118

“In this case, I this case, it is necessary to consider the change that occurred during the

eighteenth century in the culture's beliefs about the natural and social worlds. The old order

conceived of the world as a fixed, eternal hierarchy, each component of which - rocks, plants, and

animals; serfs, burghers, and nobility - had a preordained place in the divine plan. During the

Enlightenment this fixed hierarchy of Being gave way to views that emphasized the ubiquity of

change and development - a world of Becoming. The preeminent manifestation of this change in

ideology was, of course, the theory of evolution, which received its classic formulation toward the

middle of the nineteenth century”. (Cf. Idem, Ibidem, p.168) (Tradução Livre)

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There were no bounds to the longing, the desire, the bliss and the anguish of love:

the world, power, fame, glory, honour, chivalry, loyalty, friendship, all swept

away like chaff, an empty dream; only one thing is left alive: yearning, yearning,

insatiable desire, ever reborn-languishing and thirsting; the sole release-death,

extinction, never more to wake.119

Por outro lado, o ethos do anseio está intimamente vinculado com o a busca

pelo sublime que acompanha todo o pensamento estético romântico, não raro em

franca oposição ao conceito clássico de belo. Há uma redefinição da própria

concepção de forma, uma vez que o sublime, por basear-se em aspectos

quantitativos, tenderá a ser, no limite, amorfo; enquanto o belo se instaura,

justamente, sobre o equilíbrio e o delineamento de formas nítidas e bem definidas.

Essa busca ancora-se sobre uma base de expectativa continuamente adiada que

fornece o pano de fundo para os grandes paroxismos que marcam as apoteoses da

música romântica – quanto maior a tensão acumulada, maior o prazer da

libertação.120 De fato, na música romântica a expressão do sublime ganhou a

forma de gigantescos e cumulativos clímace - gerados ou por pontos altos de

atividade intensa e complexa (apoteoses cuidadosamente construídas), ou por

poderosas declarações de afirmação intempestiva (apoteoses surpreendentes, que

soam como um poderoso golpe do Destino).

Cria-se, através disso, um processo que, além de contínuo e sem fim, tende

a operar sem articulações claras ou descontinuidades significativas. Um processo

orgânico, gradual, que rejeita como artificiais e mecânicas as relações parte/todo

que costumam marcar as estruturas sintáticas, adotando, desse modo, estruturas

que privilegiam o desenvolvimento dos motivos. Mobilidade e abertura, ao invés

de estabilidade e fechamento (realizado, sobretudo, na forma de cadências), são

enfatizadas. Ao mesmo tempo, com o enfraquecimento da sintaxe tonal, a unidade

119

“(...) não havia barreiras para o anseio, o desejo, o êxtase e a agonia do amor: o mundo, o

poder, fama, glória, honra, bravura, lealdade, amizade, tudo voou como palha, como se fora um

sonho vazio; apenas uma única coisa permaneceu viva: anseio, anseio, desejo insaciável, sempre

renascendo-definhando em sua sede; o único consolo, a morte, a extinção, nunca mais

despertar.”(Cf. Idem, Ibidem, p. 187) (Tradução Livre) 120

Ver, nesse sentido, o já citado livro de David Huron: “A potent factor influencing the tension

response is delay. (...) the tension response increases as the moment of the predicted outcome

approaches. The goal is to be optimally prepared just before the anticipated event. If the outcome

occurs earlier than expected, then the tension response will fail to reach its potential peak. On the

other hand, if the outcome is late, then the tension response will reach a peak and may be sustained

as we wait for the presumed outcome to materialize. This delay, as a result, creates a longer and

more intense period of tension”. (Cf. David Huron, Sweet Anticipation: Music and the Psychology

of the Expectation, p.314) Ver também Leonard B.Meyer: “The greater the buildup of suspense, of

tension, the greater the emotional release upon resolution”. (Cf. Leonard B.Meyer, Emotion and

Meaning in Music, p. 28)

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interna dessas estruturas tenderá a ser uma consequencia da atualização de um

único princípio (ou semente), capaz de dar forma ao processo de Vir-a-ser da peça

musical. Sendo a composição nada mais do que a emanação de um único princípio

de base, a partir do qual todo o resto deriva, descontinuidades hierárquicas não

apenas não existem como, de modo bastante surpreendente, os próprios contrates

e diferenças, assim com as relações das partes com o todo, são consideradas como

acessórias e sem desdobramento relevante – apenas como meras manifestações,

ou acidente, que não alteram o princípio de base.

Com o enfraquecimento das relações sintáticas clássicas, que outrora

garantiam o esqueleto estrutural das obras, surge o problema da unidade. Uma das

estratégias mais usadas na tentativa de criar um sentido de unidade no imenso

edifício orgânico das peças românticas será, desse modo, a da similaridade

temática e de motivos. “Because they were similar in significant respects or were

derived from a common source (seed), seemingly disparate patterns could be

understood as forming a unified composition”.121 A similaridade de motivos e

temas propiciava, desse modo, um terreno fértil para a elaboração de narrativas

musicais: “Even in the absence of an explicit program, motivic continuity created

a kind of narrative coherence. Like the chief character in a novel, the "fortunes" of

the main motive - its development, variation, and encounters with other

"protagonists"-served as a source of constancy throughout the unfolding of the

musical process”. O ponto a ser aqui levantado é que a constância dos motivos, as

recorrências nas quais se tornam modificados mas ainda assim reconhecíveis,

termina por fornecer uma base comparativa capaz enfatizar os contrastes de

“ânimo” e “disposição” da matéria melódica. Do mesmo jeito que diferenças de

ânimo e expressões numa peça de teatro tornam-se mais patentes e incisivas

quando manifestadas no comportamento de um único protagonista, também

diferenças no ethos e na expressão de uma música são especialmente percebidos

quando um único motivo serve como a base para as sucessivas partes. Leonard B.

Meyer resumiria tal proposição nos seguintes termos:

121

Porque são similares em diversos sentidos ou porque derivam de uma fonte comum (semente),

padrões sonoros aparentemente disparatados poderiam ser entendidos como formando uma

composição unificada. Mesmo na ausência de um programa explícito, a continuidade de motivos

criava um tipo de coerência narrativa. Como o personagem principal de um romance, os ‘destinos’

do motivo principal – seus desenvolvimentos, variação, e encontros com outros ‘protagonistas’ –

servia como uma fonte de estabilidade durante o desenrolar do processo musical”. (Cf. Idem,

Ibidem, p. 201) (Tradução Livre)

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(...) in the eighteenth century, musical modes of representation were associated

with one another in terms of class relationships (various aspects of the heroic or

different facets of the pastoral, and so on); in the nineteenth century, essentially the

same modes of representation were associated with one another in terms of

narrative, developmental processes-processes specified by a program.122

De fato, a tendência para criar analogias narrativas a partir da música torna-

se evidente na inclinação de críticos, teóricos e compositores do século XIX, em

interpretar os movimentos da forma-sonata nos termos de um conflito entre um

enfático e viril primeiro tema (“masculino”) com o lirismo mais suave de um

segundo tema (“feminino”). Conflito que tende a ser resolvido num processo de

síntese que se dá na recapitulação final, quando, depois de transitar pela área da

dominante, os dois temas voltam a se encontrar na tonalidade original. Esse relato

metafórico é por sua vez alimentado pelo tipo de unidade diacrônica criada pelo

processo dialético que está na base da forma-sonata.123 Há, desse modo, uma

ênfase no eixo linear (que se apresenta sob a forma de materiais melódicos) como

fator responsável pela manutenção da unidade e da coerência das obras. Isso abriu

terreno para a criação de um simbolismo musical – um sistema extremamente

propício a servir de veículo para ideias extra-musicais, e que, de certo modo, agia

no sentido de semantizar os acontecimentos musicais. Por outro lado, o pendor

narrativo da música romântica parecia conduzir com tal força a experiência da

escuta que terminava por afastá-la da apreensão de uma qualidade mais puramente

sonora. Ou seja, o viés acentuadamente narrativo, com seu passado-presente-

futuro, aparentemente desviava o foco do ouvinte do presente da sensação.

Talvez seja por esse motivo que muitos críticos e teóricos tenham

enxergado em Debussy - com seu apelo às sensações imediatas através do cultivo

do son pur, de estruturas musicais que não mais serviam à lógica do

encadeamento linear, podendo, portanto, apresentar-se livres da cadeia causal -

um ponto de inflexão fora da grande curva da narratividade romântica. Essa visão,

que por vezes quase enxerga a estrutura linear como uma espécie de “vício

122

“(...) no século dezoito, modos musicais eram associados uns com os outros em termos de

relações de classe (vários aspectos do heróico ou diferentes facetas do pastoral, e assim por

diante); no século dezenove, essencialmente os mesmos modos de representação eram associados

uns com os outros em termos de narrativa, de desenvolvimento processual – processos

especificados por um programa”. (Cf. Idem, Ibidem, p.215) (Tradução Livre). É possível mesmo

que haja uma relação entre o caráter de mudança gradual, aberto e contínuo dos protagonistas do

gênero do romance de formação (como o Werther, de Goethe) – romances que possuem como

tema principal a própria mudança operada sobre a personalidade do herói – com a propensão

narrativa da identidade temática na música dos séculos XVIII e XIX. 123

Ver José Miguel Wisnik, O Som e o Sentido, p.150.

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musical”, e que atrela-se ao que comumente vem sendo chamado de “crise do

sistema tonal”, torna-se clara, por exemplo, na seguinte formulação de Stefan

Jarocinsky:

“Ce n’était pas seulement le destin de la V Symphonie qui «frappait aux portes de

la vie » avec ses quatre notes, ni les seuls Darstellungsmotive qui imposaient à

l’imagination des images concrètes : tout dans ce système pouvait servir de

véhicule à des contenus extra-musicaux, tout devenait sémantique. L’invasion du

langage musical par des concepts et l’éloignement de la pensée musicale de la

réalité sonore étaient souvent favorisés par la prépondérance de l’élément linéaire

dans la construction de l’œuvre. L’introduction de l’élément harmonique dans la

structure mélodique accomplie définitivement au XVIIIe siècle sur la base du

système fonctionnel majeur-mineur, ne changeait rien à cette hégémonie, puisque

en même temps faisait son apparition le système de pensée thématique basé sur la

technique d’imitation”. 124

Fosse ela um fruto da necessidade ou o desdobramento natural de

tendências anteriores, a similaridade temática tornou-se para os românticos do

século XIX (junto com as marcações dos momentos de clímax) o meio mais

eficaz de assegurar a unidade orgânica das obras diante do enfraquecimento da

sintaxe clássica convencional e de uma profusão cada vez maior de idiomas

pessoais (profusão incentivada pelas noções de individualismo e originalidade tão

caras a esse mesmo período, e que acabaram por formar verdadeiros “territórios

estilísticos”).125 A unidade alcançada via similaridade propiciava não apenas o

reconhecimento temático mas também que se aplicasse sobre ele um pensamento

causal-narrativo. Mais do que isso: sua base perceptiva era também igualitária,

pois, funcionando como reconhecimento simples da identificação por semelhança,

de sentidos provocados por meio da repetição temática (ainda que submetida a

pequenas variações), parecia não exigir um entendimento mais aprofundado das

124

“Não era apenas o destino da Quinta Sinfonia que ‘batia às portas da vida’ com suas quatro

notas, nem apenas os Darstellungsmotive impondo imagens concretas à imaginação: tudo naquele

sistema poderia servir de veículo a conteúdos extra-musicais, tudo ganhava uma qualidade

semântica. A invasão da linguagem musical por conceitos e o distanciamento do pensamento

musical da realidade sonora eram geralmente favorecidos pela preponderância do elemento linear

na construção da obra. A introdução do elemento harmônico dentro da estrutura melódica, levada a

cabo definitivamente no século XVIII sobre a base do sistema funcional maior-menor, não mudava

em nada essa hegemonia, pois ao mesmo tempo fazia a sua aparição o sistema de pensamento

temático baseado sobre a técnica da imitação”. (Cf. Stefan Jarocinski, Debussy: Impressionnisme

et Symbolisme, Paris, Éditions du Seuil, 1970, p.64) (Tradução Livre) 125

A radicalização dos idiomas pessoais, fomentada pela crença cada vez maior no valor das

experiências subjetivas e na própria arte como expressão de sentimentos profundos – em oposição

à visão da arte como jogo que se realiza por meio de regras convencionadas, que resultou, por

exemplo, na ars combinatoria do século XVII - tornou, por exemplo, mais difícil confundir as

obras de Chopin com as de Beethoven do que antes era confundir as de Mozart com as de Haydn. Enquanto as convenções da sintaxe eram enfraquecidas, os “territórios estilísticos”

tornavam-se mais demarcados.

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nuances da gramática tonal. Em outras palavras, apesar de todo o investimento em

parâmetros sonoros não-sintáticos e da busca da imediaticidade de uma resposta

que dependesse o mínimo possível de conhecimento prévio, o desenvolvimento

temático era ainda o grande eixo significante do acontecimento musical.

A unidade vinha também do fato de que os temas pareciam acomodar-se aos

próprios limites da memória, que tornava-se mais efetiva – através da repetição e

do reconhecimento da semelhança – na apreensão de peças que aumentaram

consideravelmente de duração ao longo do século XIX. Porque a unidade de

motivo possibilita uma relação direta com a obra em questão, forjada por uma

espécie de lógica intraopus – lógica fundada na estrutura interna de uma peça

única, em padrões de auto-similaridade, e não pelas convenções gerais,

aprendidas, de um estilo incorporado. O motivo único possibilitava, desse modo,

uma relação mais imediata com a música no sentido de que as expectativas e

muito dos processos de significação da escuta eram fornecidos pela própria obra

– através de sua lógica interna. Para usar termos um pouco mais técnicos, a

identificação de um tema como princípio organizador fundamental do objeto

sonoro solicitava de modo mais enfático uma memória de curto-termo, forjada no

calor da situação, no decorrer do próprio processo de escuta, capaz de criar

expectativas dinâmicas, em contraposição às expectativas esquemáticas fundadas

na memória de longo-termo que forma, justamente, a grande base para uma

fruição mais fina dos estilos.126 No horizonte ideal, cada trabalho deveria ser capaz

de fundar o seu estilo próprio, intransferível, com uma lógica exclusiva podendo

ser apreendida por qualquer ser humano (independente de classe ou origem) a

partir do próprio ato da escuta, mediante suas capacidades inatas. “At the risk of

exaggeration, it may be said that the language model for music represents a

prizing of societal constraints while the organic model celebrates the felicities of

natural constraints”. 127

126

Expectativas dinâmicas diferem no sentido de que são moldadas pela experiência imediata de

uma determinada obra, “como no caso no qual a exposição a um novo trabalho faz com que o

espectador espere passagens similares conforme o trabalho avança”. Ou seja, a memória que está

sendo ativada em maior medida não é a memória da sintaxe adquirida, mas uma memória curta

forjada na própria interação com o trabalho antes desconhecido. Ver David Huron, op.cit., p.413. 127

“Correndo o risco do exagero, talvez seja possível dizer que o modelo da música como

linguagem representa o coroamento das restrições sociais ao passo que o modelo orgânico celebra

as venturas das restrições naturais”. (Cf. Leonard B. Meyer, Style and Music: Theory, History, and

Ideology, p.192) (Tradução Livre)

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O aumento na duração das obras musicais durante o século XIX constituiu

um aspecto de suma importância, que não deve ter seu valor minimizado, e que

também diz respeito ao aspecto de imediaticidade. Havia chegado ao fim a era das

orquestras e conjuntos privados da nobreza. Os imensos salões e palácios

passaram a pertencer a história do ancien régime, assim como boa parte dos

connoisseurs aristocratas que haviam formado o público de nomes como Mozart,

Haydn e Beethoven. As mudanças do cenário de produção e fruição musicais são

bastante conhecidas: o declínio do patronato da nobreza e do clero sendo

complementado pelo grande crescimento de uma imensa classe média que, além

de acreditar no valor da arte, havia desenvolvido um gosto pela música, tudo isso

levou a uma tremenda expansão do público nas salas de concerto e casas de

ópera.128 Audiências maiores pediam espaços maiores. Espaços maiores afetaram

tanto o tamanho e a composição das orquestras (com cada vez mais

instrumentistas) e das produções operísticas quanto o tamanho e a natureza das

composições apresentadas. É possível que muitas das mudanças na organização

formal e tonal da música do século XIX possam ser traçadas a partir do aumento

na duração das peças musicais.

Com um público menos sofisticado, menos familiarizado com as regras da

sintaxe tonal, pode ter havido uma redução na capacidade de resposta a sutilezas e

nuances formais – que em boa parte dependiam da incorporação de convenções

aprendidas -, indicando uma mudança nas estratégias de composição. Isso pode

estar diretamente ligado à progressiva ênfase dada pela música ao longo do século

XIX aos ditos parâmetros secundários na formação do processo e da estrutura

musicais assim como da própria experiência auditiva. Parâmetros primários são

capazes de estabelecer relações funcionais explícitas (como tônica e dominante,

subdominante dominante, acento e pulso fraco) e tipos específicos de fechamento

(cadências autênticas ou deceptivas, ritmos masculinos ou femininos) que tornam

possível a articulação de relações hierárquicas. Por outro lado, os parâmetros

secundários articulam-se por relações de intensidade que podem ser medidas ou

contadas. Ao contrário do parâmetros ditos primários – que pertencem ao plano da

sintaxe, do aprendizado e das regras -, os parâmetros secundários seriam capazes

de forjar a experiência com uma dependência mínima de regras e convenções

128

Cf. Otto Maria Carpeaux, Uma Nova História da Música. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p.349.

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aprendidas. (Mais uma vez estamos no reino do acontextualismo e da

imediaticidade). Mesmo na ausência de estruturação sintática, a ascensão gradual

das alturas, dinâmicas de crescimento progressivo do volume, índices maiores de

velocidade e movimento tendem a sublinhar a excitação e a intensidade. De modo

inverso, alturas descendentes, dinâmicas mais macias, taxas reduzidas de

movimento e mudança são capazes de nos induzir a um estado de relaxamento,

repouso e apaziguamento.

Desse modo, ao estabelecer um continuum de estados relativos de tensão e

repouso – alto/baixo, rápido/lento, denso/exíguo – a música neles baseada poderá

cessar de existir, acabar, mas não fechar. Realiza assim, por meios sonoros, a

própria concepção de um vir-a-Ser aberto, em movimento perpétuo. Os

parâmetros secundários não podem servir de base para a construção de hierarquias

articuladas, mas apenas para hierarquias contínuas e emergentes, calcadas em

intensidades. Seriam esses, portanto, os meios “naturais” da música – em

contraposição aos meios convencionados – que se tornaram cada vez mais

importantes para a experiência musical no decorrer do século XIX. Mesmo os

emergentes mais incultos da nova classe média poderiam apreciar a força violenta

e o poder das apoteoses de Tristão e Isolda ou das grandes óperas francesas, assim

como também eram capazes de reter na memória o desenho de um único motivo,

e, através de um mecanismo de identificação e comparação, relaciona-lo a um

processo narrativo. É desse modo que a tendência narrativa caminha de mãos

dadas com uma ênfase cada vez maior no efeito instantâneo, aparentemente

natural, das sensações musicais.

De fato, a criação de uma unidade formal através do princípio de

similaridade aponta para um concepção musical mais ancorada na dinâmica

perceptiva natural do que nos procedimentos sintáticos de uma gramática

convencionada. Dito de outra forma, à medida que os românticos enfraqueciam as

articulações do discurso tonal clássico, passaram a explorar com mais intensidade

premissas básicas da dinâmica auditiva, menos permeadas pelos aspectos culturais

– como a percepção de timbres, texturas, variação de volumes, dinâmicas de

andamento e, o que é mais importante para o presente argumento, o

reconhecimento de similaridades como fator fundamental para o engajamento da

memória no ato da escuta. Através da memória, o espectador tornava-se capaz de

criar expectativas adequadas mesmo quando não possuía o domínio integral do

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código tonal – as expectativas satisfeitas, por sua vez, geravam a noção de uma

interação adequada entre público e obra, fazendo com que o evento musical

gerasse certo prazer. Esse ponto é fundamental, pois a partir da segunda metade

do século XVIII os artistas europeus tornaram-se cada vez mais dependentes do

sucesso junto ao grande público formado pela nova classe média burguesa.

O argumento cognitivista que, de certo modo, justifica a estratégia dos

compositores românticos, e também parte das mudanças na música e na escuta do

século XIX, pode ser posto nos seguintes termos:

In addition to repetition, events can be made more predictable within works by

creating passages that are similar. Where continued repetition ultimately leads to

boredom or habitutation, similarity allows elements of novelty to be introduced

that help forestall these potentially negative experiences while simultaneously

allowing some predictive accuracy. (...) For composers who aim to evoke pleasure,

the more a musical work departs from schematic conventions, the greater the

importance of repetion and self-similarity. This principle also applies to listeners:

when experiencing the music of another culture for the first time, the most

accessible works will be those that tend to be the most repetitive and self-similar.

Of course, the capacity for a work to evoke pleasure will also increase with

repeated listenings.129

Acredito que o princípio da unidade por semelhança, já praticado pelos

românticos, foi crucial no desenvolvimento do estilo maduro de Debussy. Foi ele

que lhe permitiu de certo modo, e em certos momentos, romper o fio da

linearidade temática do discurso tonal para reorganizar a experiência musical em

outro plano – geralmente através de concatenções imprevistas, organizadas não

pela lógica antecedente/consequente, mas por elipses e redes de analogias (afinal,

também as analogias operam por semelhanças).

No campo da matemática, analogia implica a equivalência de duas

proporções; na biologia, ela implica uma equivalência de funções – são análogos

dois órgãos que cumprem a mesma função, mesmo que tenham origem e estrutura

distintas. Na análise lógica, geralmente se fala de analogia de relação ou

129

“Além da repetição, eventos podem tornar-se mais previsíveis no interior das obras através da

criação de passagens semelhantes. Enquanto a repetição contínua tende a gerar tédio e

acomodação, a semelhança permite que elementos de novidade sejam introduzidos de modo a

evitar experiências potencialmente negativas, permitindo ao mesmo tempo que alguma acuidade

de previsão seja mantida. (...) Para os compositores que pretendem evocar prazer, quanto mais um

trabalho se distancia das convenções esquemáticas, maior deverá ser a importância da repetição e

da auto-semelhança. Tal princípio também deve ser aplicado aos ouvintes: quando

experimentamos a música de outra cultura pela primeira vez, mais acessíveis serão as obras que

tendem a ser as mais repetitivas e auto-semelhantes. Obviamente, a capacidade que um trabalho

tem de evocar prazer será também ampliada através de audições repetidas”. (Cf. David Huron,

op.cit.., p.367) (Tradução Livre)

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atribuição, que é quando um predicado muda parcialmente o seu significado de

acordo com o sujeito com o qual se relacional. A analogia diz respeito, portanto, a

relações de semelhança entre proporções, funções ou predicados – diz respeito às

relações dos signos entre si, e não entre signos e significados. Desse modo, as

correspondances de Baudelaire são analogias, os sentidos (paladar, olfato,

visão...) remetendo-se uns aos outros numa rede infinita de ecos, aludindo

continuamente a uma intensamente desejada, mas sempre inalcançável,

“ténébreuse et profonde unité”. Acontece que, nesse contínuo movimento de

ziguezague entre os signos, em seus inúmeros paralelismos, o que acaba

desaparecendo é o próprio significado – e aqui está Le démon de l’analogie,

proposto por Mallarmé.130 Diante da constatação da impossibilidade de se

estabelecer um elo não- arbitrário entre significante e significado, são as próprias

relações entre signos e sistemas de signos que se tornam capazes de indicar a

possibilidade de que um sentido substancial apareça no horizonte. No caso da

música, onde a relação com o significado é sempre complicada, Lorenzo Mammì

notou que a ação corrosiva das analogias incide sobre a direcionalidade, sobre a

funcionalidade sintática da composição: “É analógica uma figura desprovida de

sentido tonal definido inserida numa progressão tonal, que simule uma função

harmônica sem completá-la de fato, e provoque não tanto uma total desilusão, mas

um leve desvio, a abertura de perspectivas inesperadas (“Accords incomplets,

flottands”. “Il faut noyer le ton”. “Alors on aboutit où on veut, on sort par Ia porte

qu’on veut”). É igualmente analógico (no sentido de analogia de atribuição) um

acorde tonal inserido em um contexto que transforme radicalmente suas funções,

ainda que deixe intactas algumas de suas características. Debussy é mestre em

tirar proveito de ambas as possibilidades”.131

Não foi necessário para Debussy negar completamente a lógica tonal.

Apenas sobrepôs a esta outras lógicas possíveis, “passando através de suas malhas

130

Nesse poema (Le Démon de l’Analogie) Mallarmé descreve com um certo horror a sensação de

sentir-se cercado de signos que se remetem uns aos outros, numa rede infinita de ecos, enquanto o

sentido desapareceu (“le vide de la signification”). Ao constatar a impossibilidade de uma relação

não-arbitrária entre significante e significado, o poeta termina por confiar às próprias relações

entre signos e entre sistemas de signos, desvinculados de seu significado imediato, a possibilidade

de um sentido substancial, não meramente rotineiro, aparecer no horizonte. (Ver Stéphane

Mallarmé, Mallarmé: Poésie et Autres Textes, Paris, Éditions Gallimard, 2007, p.276) 131

Lorenzo Mammì, “O demônio da analogia : Algumas melodias juvenis de Claude Debussy “.

In. Analise Musical, São Paulo, n. 3, 1989, p. 52-67.

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ao invés de romper com ele”.132 Dois procedimentos merecem ser aqui

sublinhados, por terem sido largamente utilizados por Debussy: por um lado, a

geração da escala de tons inteiros mediante a transformação enarmônica do trítono

e, por outro lado, o emprego da 7ª de dominante com a 5ª abaixada, para criar uma

situação de desnorteamento ou de suspensão tonal. Na realidade, as duas

operações podem se reduzir a um único princípio: a substancial ambiguidade do

trítono – uma espécie de brecha estrutural própria ao sistema tonal.133 O trítono é

um dissonância incontornável, a “falha” que habita o interior da escala diatônica.

Falha que será, mediante um acordo, estabilizada no acorde de sétima dominante,

acorde que por conter dentro de si o trítono si-fá irá se tornar o grande depositário

da tensão tonal – gerando a dialética permanente da estabilidade e instabilidade

que caracteriza o sistema. Nas cadências, o intervalo formado pela sensível e a

contra-sensível (os graus VII e IV da escala maior) torna-se o elemento capaz de

indicar univocamente a tonalidade (através do deslizamento de semitom das duas

sensíveis que convertem-se na tríade maior). Ao mesmo tempo, por dividir ao

meio a oitava, o trítono torna-se igual à sua própria inversão, gerando com isso

um princípio de instabilidade, de indefinição. Desse modo, quando não aparece

em uma situação tonal (com num acorde de sétima dominante), o trítono não

define por si só qual é a sensível e qual é a contra-sensível – uma vez que não há

diferença entre o intervalo e sua inversão. Dito de outro modo, quando não conta

com pontos de referência nos quais se apoiar, o trítono indica simultaneamente

não uma, mas duas tonalidades. Passada a fase clássica da linguagem tonal –

quando todas as funções harmônicas contribuíam para reforçar os dois grandes

centros gravitacionais do sistema, a tônica e a dominante – há uma aceleração

cada vez maior dos mecanismos modulantes. As referências aos centros tonais que

orientam a composição tornam-se cada vez mais rápidas e elípticas. Dissonâncias

avulsas, acordes de sétima não preparados, alterações imprevistas no interior de

uma progressão passam a indicar, cada vez mais, tonalidades passageiras, que não

chegam a ser confirmadas por um mecanismo cadencial. Desse jeito, são cada vez

mais necessários caminhos abreviados, diretos - sinais capazes de evocar por si

sós um centro tonal. O acorde de sétima de dominante será, num primeiro

132

Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia vol.4 ( Acerca do

Ritornelo), São Paulo, Editora 34, 1997, p.169. 133

Ver, nesse sentido, a clássica análise de Prélude à l’Après-midi d’un Faune, feita por Jean

Barraqué (Jean Barraqué, Debussy, Paris, Éditions du Seuil, 1962 et 1994 p.107)

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momento, capaz de indicar sozinho a tonalidade; depois, de um modo mais

enxuto, bastará apenas o trítono nele contido.

Tirando proveito dessa brecha do sistema, sua música abre, nos pontos de

maior tensão, momentos de suspensão, janelas que revelam outras paisagens

sonoras. Ao afrouxar a lógica discursiva da tonalidade, o músico francês elabora,

de modo progressivo ao longo de sua trajetória artística, procedimentos

analógicos e de associação livre no interior do próprio tecido tonal. Talvez seja

possível dizer que as aspirações igualitárias e anti-convencionalistas, que

certamente exerceram forte influência sobre as estratégias artísticas dos músicos

românticos, atingiram um alto grau de maturação nas composições de Debussy,

que, em sua obsessão de escapar do julgo de um sistema tonal gasto, e, ao mesmo

tempo, na exigência de uma música que pudesse ser fruída de forma prazerosa,

simples e direta (“La musique doit chercher humblement à faire plaisir”),

terminou por criar alguns dos mais bem acabados exemplares de uma música

aberta, livre, definidora de suas próprias regras, guiada pelo princípio orgânico de

uma forma auto-gerada.

O gesto de Baudelaire, assim como a própria música de Wagner e a

posterior resposta de Debussy precisam ser analisados à luz da progressiva

ampliação dessas tendências que marcaram em profundidade o século XIX.

Dentro da lógica de reforço dos parâmetros secundários e da busca por um efeito

mais direto, menos permeado pela instância discursiva, a harmonia cumprirá um

papel decisivo. Ao que parece, ela será, talvez mais do que a melodia e o ritmo,

capaz de encarnar, no quadro da música européia, o encontro da dimensão

discursiva com a dimensão da sensação mais pura, menos subordinada às regras

do jogo musical. Na tradição homofônica do Ocidente, na qual a maior parte do

significado musical é retirado justamente do material melódico, a economia dos

acordes cada vez mais cumprirá a função de relativização do discurso tonal,

aumentando sua carga de ambiguidade e incerteza ao mesmo tempo em que

afirma-se ela própria como instância independente, capaz de evocar, pela simples

adição de sons verticais, sensações independentes da lógica discursiva do

encadeamento funcional clássico. Ou seja, sensações cada vez mais imediatas.

Afirmando-se cada vez mais como plano sintático autônomo no discurso tonal,

sem no entanto tornar-se ela mesma o grande eixo produtor de sentido das obras, a

harmonia tende a operar num plano mais recuado, através de enquadramentos que

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modificam a percepção do material temático – o foco principal da escuta. É difícil

não perceber o fato de que, para aqueles que não são músicos, que não possuem

uma percepção treinada, a harmonia geralmente é percebida como cenário de

fundo em relação ao motivo “protagonista”.

Essa percepção, contudo, mesmo que não ocupe o primeiro plano da escuta,

possui muitas vezes uma grande nitidez formal, capaz de situar a hierarquia tonal

de modo inequívoco – as cadências são o exemplo mais pungente disso – e,

sobretudo, de criar sentidos de encadeamento e movimento sônico. Não é difícil

perceber que, no ensaio sobre Wagner, uma boa parte da descrição de Baudelaire

refere-se, justamente, ao uso da harmonia. Embora não possua um vocabulário

técnico específico para descrevê-la, o poeta francês atribui a ela, justamente,

aquele excesso de energia que fazia a música do compositor alemão participar de

modo inequívoco da modernidade. Tal energia é apresentada sob a forma de um

movimento incessante e de um aumento contínuo de intensidade que leva

Baudelaire a conceber esse aspecto da música de Wagner não nos termos de um

desenvolvimento narrativo, nem tampouco de uma forma arquitetônica definida,

mas como uma simples impressão de cor - uma gradação que vai do vermelho ao

branco! “Geralmente essas profundas harmonias pareciam-me assemelhar-se aos

excitantes que aceleram o pulso da imaginação. (...) Há em todos os lugares algo

de arrebatado e arrebatador, algo que aspira a elevar-se mais alto, algo de

excessivo e superlativo”, escreve o poeta, fazendo da dimensão harmônica o eixo

central de sua escuta clínica.

...

É possível que tenha sido Debussy o primeiro grande músico a tirar proveito

do acorde como bloco sonoro harmônico, “considéré en premier lieu comme

spectre sonore, ensuite comme participant – éventuelement – du processus

fonctionnel”.134

Proclamando sua indiferença à gramática tonal e afirmando sua

atenção ao som, cria acordes sem qualquer direcionalidade, independentes e

desvinculados do sistema de polarizações do jogo tonal, fruídos como sonoridade

pura. Não há dúvida de que o pensamento harmônico foi um dos seus grandes

134

Cf. André Boucourechliev, Debussy: la Révolution Subtile, Paris, Librairie Arthème Fayard,

1998, p.22.

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temas de investigação ao longo da vida, tendo sido ele mesmo, antes de tudo, um

compositor da harmonia, “um estudioso da física subjacente à harmonia”, como

escreveu o crítico Alex Ross.135

Vladimir Jankélévitch irá falar de uma “sensualité

harmonique, et surtout une gourmandise de sonorités” capaz de colocar sua

música na antípoda de toda consciência infeliz e de toda subjetividade

introvertida. “Le son pur concret prenait chez lui l’importance d’un élément co-

créateur de la structure de l’œuvre, au même titre que la mélodie, le rythme et

l’harmonie”.136

Pois ele havia descoberto “o som como ação acústica elementar,

independente dos conjuntos artísticos de sons religados de acordo com o princípio

funcional”.137 Debussy estava, de fato, preocupado com a dimensão vertical da

música, com o aqui e agora da sensação sonora. Mas não apenas com isso. Dizer

que sua música é essencialmente estática – adjetivo aplicado sem grandes

problemas a boa parte do filão posterior da música francesa, de Fauré a Satie – é

retirar dela o que possui de mais misterioso, de mais inovador.

Foi comentado que a adição de cada vez mais notas dentro do acorde

(oriundas de outros modos ou simplesmente cromáticas) tendia a enfraquecer, ou

encobrir, sua função tonal.138

Dos acordes perfeitos maiores da Renascença às

sétimas, assimiladas no decorrer dos séculos XVII e XVIII, passando pelas nonas,

normalizadas entre Wagner e Debussy, até finalmente chegar ao intervalo de 11ª e

12ª incorporados na música contemporânea, houve um verdadeiro processo de

expansão das alturas, muitas vezes tido como real e inexorável evolução. Um

processo que em muitas ocasiões foi explicado de acordo com as propriedades

físicas do som: uma espécie de “escavação” que sacava e normalizava

paulatinamente - no intuito de suprir às demandas de originalidade e espanto que

decorriam da lógica evolutiva na qual embarcara a arte ocidental – os intervalos

naturais da série harmônica subjacente ao fenômeno do som. Inicialmente dotados

135

Cf. Alex Ross. O resto é ruído: escutando o século XX. São Paulo: Companhia das Letras,

2009, p.59. 136

“O som puro concreto ganhava nele a importância de um elemento co-criador da estrutura da

obra, com o mesmo valor que a melodia, o ritmo e a harmonia”. (Cf. Stefan Jarocinski, Debussy:

Impressionnisme et Symbolisme, p.65) (Tradução Livre) 137

Cf. Kurt Westphal, Apud., Stefan Jarocinski, op.cit.., p.68. 138

“Mas há outras variedades de cromatismo que colocam o sistema tonal num perigo mais ou

menos grande. Um deles vem dessas superposições de sons em acordes complexos (...). As

agregações assim obtidas são muito belas em si mesmas, mas produz-se uma espécie de diluição

de seu caráter funcional. Deixam de ter uma orientação definida, o que implica um

enfraquecimento do seu dinamismo”. (Cf. Henry Barraud. Para Compreender as Músicas de Hoje.

São Paulo: Perspectivas, 2005, p.39)

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de um certo grau de tensão, portadores de ares novidadeiros para um velho e gasto

repertório tonal, esses intervalos depois de certo tempo acabavam perdendo, pelo

uso, o seu efeito tensionante.139

Eram incorporados como norma, perdendo parte

do encantamento. Leonard Bernstein veria nisso o resultado de um caminho

trilhado no sentido de suprir cada vez mais a linguagem tonal de “ambiguidades” -

indeterminações de sentido, capazes de deixar um leve rastro de sugestão,

renovando com isso as possibilidades expressivas de um discurso já meio

surrado.140

Ao mesmo tempo, ao sobrepor cada vez mais intervalos, os acordes

acabariam por se tornar verdadeiros “buquês de notas” – “pavões sonoros” cuja

beleza imediata, concreta e singular, baseada na complexidade de suas relações

internas, solicitava de tal modo a atenção do ouvinte que terminava por desviá-la

da corrente discursiva, enfraquecendo assim toda a dinâmica tonal. Uma espécie

de aparição estática, momento fugaz de beleza e espanto, capaz de nos arremessar

para fora do fluxo da linguagem musical.

Muito do que a crítica habitualmente definiu como Impressionismo musical

diz respeito, justamente, a essa qualidade plástica de agregados sonoros

verticalizados, cada vez mais estáticos, tendendo a gerar planos espacializados

que enfatizavam a sensação sonora muito mais do que o sentido discursivo. A

noção de um estilo impressionista servirá cada vez mais para definir peças

fortemente marcadas por acordes dissonantes com grande volume de notas, nos

quais se verá um parentesco direto com a técnica da pintura impressionista, que

criava a representação através da justaposição de pequenas manchas (petites

touches) de cores variadas. De modo semelhante, o enfraquecimento do

sentimento tonal nessas peças tenderá a ser comparado com a falta de uma

perspectiva marcada nos quadros impressionistas, com sua pouca profundidade. A

própria utilização de um termo oriundo da pintura já traz em si uma série de

pressupostos e concepções arraigadas que de certo modo condicionam o tipo de

escuta usada na aproximação de tais obras. Dentre as mais importantes

concepções trazidas ao se efetuar a comparação da pintura impressionista com boa

parte da música francesa da segunda metade do século XIX podemos mencionar

pelo menos três: a qualidade estática (própria à pintura, e talvez enfatizada pela

139

Ver José Miguel Wisnik, O Som e o Sentido, p.116. 140

Ver Leonard Bernstein, The Unanswered Question: Six Talks at Harvard by Leonard

Bernstein, DVD, v.4.

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tendência à representação de paisagens estáticas entre os impressionistas, nas

quais o movimento não possui muita relevância), o forte apelo às sensações (que

vem da utilização de uma quantidade cada vez maior de cores secundárias que

formam verdadeiros acordes cromáticos) e a aparente irrelevância temática

(herdada do naturalismo e levada às últimas consequencias no Impressionismo

pictórico, mediante enquadramentos que, influenciados pela fotografia, ganham

ares cada vez mais fortuitos).

Nesse contexto, Debussy seria visto, desde a aparição de Prélude à l’Après-

midi d’un Faune, como o grande inaugurador e representante máximo do

Impressionismo musical. É possível que a própria descrição de sua obra nos

termos da pintura, muito mais do que da música, tenha servido como uma espécie

de programme que servia para orientar a fruição de uma música que desafiava as

classificações convencionais. Do mesmo jeito que, na música romântica, o

programme servia para guiar a escuta de um público menos treinado nas regras do

discurso tonal, servindo-lhe com possíveis analogias e ganchos narrativos que

pudessem facilitar a interação com a música, a comparação de Debussy com a já

consagrada escola impressionista de pintura servia também como fio condutor

para uma experiência musical nova. Não é preciso dizer que essa tendência trouxe

uma série de equívocos e simplificações na análise da obra de Debussy, mas num

momento inicial é provável que tenha servido como chave de entrada no seu

universo. Reforçada pelo conteúdo altamente imagético de seus títulos – Images,

Nuages, Des Pas Sur La Neige, Clair de Lune, para citar apenas alguns,

apanhados ao acaso – ela cumpriria também o importante papel de distanciar a

apreensão de sua música do paradigma narrativo que marcou a música romântica

e, sobretudo, a obra de Wagner. O parâmetro de comparação, embora algo

equivocado, não eram mais histórias, e sim quadros de paisagens, focados menos

nas ações humanas do que nas sensações dos jogos de luz.

Essa mudança, como não poderia deixar de ser, deveria ser compreendida

em relação a Wagner. Era preciso fazer um balanço justo do que havia não apenas

de ruptura, mas também de herança em relação ao mestre alemão. Já em 1941,

Schoenberg declararia em conferência feita na Universidade da Califórnia que “a

harmonia de Wagner havia causado uma reviravolta da lógica e da potência

construtiva da harmonia. Uma das consequencias desse estado de coisas foi o uso

dito impressionista das harmonias, que encontramos sobretudo em Debussy.

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Destituídas de significação construtiva, essas harmonias servem amiúde a um

objetivo ‘colorista’, elas buscam exprimir uma atmosfera e imagens. Ora, as

atmosferas e as imagens, sendo elas de origem extra-musical, tornam-se assim

elementos construtivos incorporando-se finalmente às funções musicais”.141 A

visão de Schoenberg reverbera naquela exposta por Adorno em seu clássico livro

Filosofia da Nova Música, quando, depois de afirmar que Stravinski aprendeu do

Impressionismo a lição da “atemporalidade” musical, comenta especificamente o

estilo de Debussy: “O ouvido deve orientar-se de maneira diferente para

compreender exatamente Debussy, para entendê-lo, não como um processo de

tensões e resoluções, mas como uma justaposição de cores e superfícies, como a

de um quadro. Tecnicamente torna isso possível, em primeiro lugar, o que Kurt

Westphal definiu como harmonia ‘privada de funções’. Ao invés de expressar

tensões de graus harmônicos, desprendem-se de vez em quando complexos

harmônicos estáticos em si mesmos e permutáveis no tempo”.142 Nas mãos de

Schoenberg e Adorno a música de Debussy torna-se aparentemente frívola,

superficial na pior acepção do termo – “o colorido é excessivo e se impõe aos

complexos harmônicos”, dirá Adorno. O importante é notar o modo como

nenhuma das duas críticas dá conta, ao analisar a música de Debussy, de sua

dimensão de articulação sintática, capaz de conduzir o movimento sonoro de

acordo com uma lógica que não era exatamente aquela que predominava no

desenvolvimento wagneriano – e de que talvez seja justamente este o ponto mais

fecundo e inventivo do seu estilo. Uma lógica que seria descrita por Pierre Boulez

como “pulverização elíptica da linguagem”, capaz de destruir a organização

formal pré-existente à obra (a dos schemas melódicos e harmônicos, por

exemplo). Mas mesmo sem atentar para essa outra dimensão de reconstrução do

sentido musical, mesmo que tenham reduzido a música de Debussy ao chavão de

uma “estética das sensações”, nem Schoenberg nem Adorno deixaram de enxergar

o modo como ela se relacionava com o uso da harmonia feito pelo mais influente

compositor alemão da segunda metade do século XIX.

No ano de 1890, Debussy relatava numa carta, entre estupefato e desafiado,

que “é Tristão que atravanca o caminho de nosso trabalho” – “não vejo o que

pode ser feito para além de Tristão”. Em dois anos consecutivos ele havia feito a

141

Citado em Stefan Jarocinski, Debussy: Impressionnisme et Symbolisme, p.35 (grifo meu) 142

Cf. Theodor Adorno, Filosofia da Nova Música, p.145.

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peregrinação a Bayreuth. Numa outra ocasião, faria o seguinte comentário sobre

Tristão e Isolda, a ópera tida como verdadeiro epítome do Romantismo musical:

“c’est décidément la plus belle chose que je connaisse (...)”.143 Sabia tocá-la

inteira em versão para piano.144 “No composer of this period came to know and

understand the music of Wagner better than Claude Debussy, and nobody was to

find a better means of escape”.145 Depois da hostilidade inicial contra Wagner (e

da consequente intervenção de Baudelaire), veio um período de imensa paixão por

sua obra, paixão que beirava a mania e que tomou um verdadeiro vulto sobre os

novos compositores franceses. De fato, parece que a partir de Debussy e Fauré a

música francesa reutiliza muitas das harmonias wagnerianas. Elimina delas,

contudo, qualquer resquício de concatenação necessária, reduzindo-as a mônadas

auto-suficientes, interligadas apenas por analogias. Traz desse maneira uma

qualidade mais puramente estática que aparentemente não existia em Wagner. Ao

mesmo tempo, a mitologia e a estética do compositor alemão passam, na França

dos simbolistas, por um radical processo de esquematização e estilização que as

afasta das suas raízes românticas. Em Wagner, o acorde dissonante, raramente se

resolve por completo numa consonância; nunca deixa, porém, de simular uma

resolução, através de infinitas mediações, sem jamais alcançar um ponto de

repouso. Criando uma densidade cromática na qual a resolução da dissonância é

sempre adiada, a regra na qual uma nota dissonante tende a se resolver, ou

“corrigir-se”, acaba tornando-se parte de um longo e arrastado processo no qual o

acorde que deveria servir como resolução torna-se ele próprio o motor de uma

nova dissonância, afastando novamente o horizonte resolutivo. Vem daí a

sensação de movimento contínuo que forma a base de sua “linguagem do anseio”:

uma harmonia tensa tenderia a resolver-se sobre outra harmonia tensa, e assim por

diante, adiando repetidamente o momento da “chegada” – ou do “gozo” da

consonância proporcionada por uma tônica que efetivamente completa a cadência

e “resolve” o jogo musical.146

143

Cf. Claude Debussy, Correspondance (1872-1918), Paris, Éditions Gallimard, 2005, p.62 144

Ver Jean Barraqué, Debussy, p.121. 145

“Nenhum compositor desse período chegou a conhecer e a compreender a música de Wagner

melhor do que Claude Debussy, e nenhum conseguiria encontrar os meios melhores para dela

escapar”. (Cf. Paul Roberts, Claude Debussy, New York, Phaidon Press, 2008, p.81) (Tradução

Livre) 146

O termo original - “the language of longing” – foi cunhado por John Freeman. Ver: Freeman,

J.W. (1992). “The Language of Longing: Only at the Final Cadences does “Parsifal” Resolve Its

Musical Question”. In. Opera News 56 (Marh 28), p.26-29.

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Do ponto de vista psicológico, a música de Wagner tende a re-atualizar

continuamente a tensão que naturalmente antecede a realização de algo previsto.

Com Wagner, “vemos o que parece ser a primeira tentativa sustentada para

sistematicamente frustrar as expectativas – para consistentemente não dar aos

ouvintes o que eles esperam”.147 O ouvinte é, por assim dizer, aprisionado num

estado perpétuo de expectativa irrealizada – atado ao movimento de uma ânsia

que jamais se consuma. Grande parte desse jogo, que primeiramente atiça para

depois negar a expectativa, realiza-se sobre suas harmonias cromáticas, e,

especialmente, sobre a manipulação dos gestos clássicos da cadência simples. E

isso porque é justamente na cadência em que a previsibilidade musical torna-se

mais clara e segura – é onde o ouvinte tem mais certeza do que esperar como

desdobramento, tornando-se então excitado diante de ver suas expectativas serem

confirmadas. A tensão psicológica tende a ser aumentada quando se atrasa os

resultados esperados. Quanto maior for a expectativa, maior será o efeito do

atraso. Especialmente em seus últimos trabalhos, Wagner fez de tudo para evitar,

suspender, suprimir ou retardar a resolução cadencial. O compositor alemão usa o

clichê como matéria bruta para seu jogo psicológico com o ouvinte. Não há

pontos de repouso – a tônica, quando aparece, vem disfarçada através de

inversões. Wagner precisa dela para evocar no ouvinte o schema apropriado capaz

de suscitar o “sentimento da tonalidade”; o disfarce, contudo, é necessário para

manter a experiência de instabilidade psicológica. A dominante, por outro lado,

geralmente aparece de forma clara e facilmente reconhecível, pois é a

responsável por despertar o forte sentido de antecipação e tendência que emana de

sua música. “Wagner seems to love every aspect of the classical cadence except

three: the resolution, the persistent reinforcing of a single key area, and the

tendency to interrupt the musical flow. In short, Wagner is attracted to the strong

‘tending’ quality of cadential patterns, but repulsed by the evoking of closure or

repose”.148

É notável a semelhança de tal procedimento com a concepção, pregada pela

ideologia romântica, de um vir-a-Ser em constante processo. Algo muito forte,

147

Cf. David Huron, Sweet Anticipation: Music and the Psychology of the Expectation, p.333. 148

“Wagner parece amar cada aspecto da cadência clássica, com exceção de três: a resolução, o

reforço persistente de uma única tonalidade, e a tendência a interromper o fluxo musical.

Resumindo, Wagner é atraído pela forte qualidade ‘direcional’ dos padrões cadenciais, mas

repelido pela ideia de fechamento ou repouso”. (Cf. David Huron, op.cit.., p.338) (Tradução Livre)

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contudo, está por trás desse Vir-a-ser, arrastando-o com força em determinada

direção: é a ideia de um sentido resolutivo, de um retorno a uma unidade perdida,

a um fim, a um ápice de realização total que justifique a tremenda angústia da

espera. Na música de Wagner, o processo indica de modo nítido a trilha que

conduz a determinado ponto. A noção romântica de uma obra a ser realizada

como um processo orgânico, gradual e necessário, estava intimamente ligada ao

pensamento de que esse mesmo processo era direcionado para uma realização, um

objetivo a ser alcançado. Tal visão também estava presente na teoria biológica do

século XIX, como deixa claro a seguinte passagem de François Jacob:

The very idea of organization, hereafter implicit in the definition of a living

organism, is inconceivable without the postulate of a goal identified with life: a

goal no longer imposed from without, but which has its origin in the organization

itself. It is the notion of organization, of wholeness, which makes finality

necessary, to the degree that structure is inseparable from its purposes.149

Talvez seja pertinente apontar que uma das grandes diferenças que separa a

música de Debussy daquela de Wagner, não está exatamente no fato de uma ser

estática enquanto a outra se movimenta de modo frenético, mas sim de que

enquanto uma faz da promessa da realização de um objetivo seu grande motor de

desenvolvimento, o centro polarizador da matéria sonora, capaz de determinar

uma direção para o movimento sônico, a outra irá encarnar um processo que não

mais aponta em um sentido único, mas que pulveriza-se em fragmentos estáticos

ou apontados em diversas direções, mas que de todo modo não estão conectados

linearmente. De fato, muitas peças de Debussy se aproximam de verdadeiras

emaranhados sonoros, malhas fluidas onde não se consegue captar o motivo.

Conforme seu estilo maduro vai se desenvolvendo há uma tendência cada vez

maior a “pulverizar” os fios temáticos, de maneira que eles passem a se articular

por uma lógica associativa, não-linear – procedimento que atinge um ponto

culminante em suas obras tardias, como o balé Jeux e as peças para piano Blanc et

Noir.150 Ao contrário do que ainda acontecia em Wagner, as composições tendem

149

“A ideia mesmo de uma organização, a partir de então implícita na definição do organismo

vivo, é inconcebível sem o postulado de uma meta identificada com a vida: uma meta não mais

imposta de fora, mas que tem a sua origem na própria organização. É a noção de organização, de

completude, que faz com que a finalidade seja necessária, e isso ao ponto de tornar a estrutura

inseparável de seus propósitos”. (Cf. Apud., Leonard B. Meyer, Style and Music: Theory, History,

and Ideology, p.196) (Tradução Livre) 150

Ver, nesse sentido, o trabalho de Marianne Wheeldon, Debussy’s Late Style. Bloomington,

Indiana University Press, 2009.

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a ser articuladas por complexas redes de analogias, por inesperados movimentos

associativos, e não mais como o desdobramento lógico de um princípio temático

de base. As articulações tonais clássicas não foram totalmente excluídas de sua

estranha arquitetura - são antes forças que podem ser a qualquer momento

ativadas, trazidas para o jogo musical, e logo depois desligadas. Desse modo, o

foco é muitas vezes desviado do desenvolvimento melódico único para as

sensações harmônicas, para o colorido timbrístico de suas dissonâncias

congeladas, de seus accords flottands.

Ao renunciar à harmonia funcional e ao contraponto - os dois principais

fatores de coesão de que podia dispor, e por meio dos quais a obra se articulava

em uma série de relações de causa e efeito, antecedente e consequente – Debussy

cria uma estrutura na qual o modo pelo qual as partes se relacionam não é mais

hierárquico, e que, por não mais pressupor um antes e um depois, torna-se algo

semelhante à livre associação de ideias. Ou seja, ao contrário do que acontece na

música romântica em geral, no caso do compositor francês já não é mais possível

pensar a composição como série de consequencias lógicas de um único

pressuposto, como se fosse o desdobramento de uma melodia infinita ou como o

resultado de uma única concatenação de acordes. Ao mesmo tempo, sua sintaxe

própria, que escapa continuamente às explicações dos analistas, não se deixa

reduzir à repetição, justaposição e superposição de elementos heterogêneos,

enrijecidos em formulações estáticas, como acontece, por exemplo, no caso de

Satie e do primeiro Stravinski. Na obra de Debussy, as várias passagens

combinando tons inteiros com relações cromáticas, muitas vezes seguidas de

tríades diminutas, indicam uma forte dinâmica processual, mas sem um objetivo

tonal propriamente dito – sem que uma nota particular ou um acorde específico

estabeleça o ponto de fechamento ou chegada da seqüência musical. Trata-se de

uma qualidade diferente de articulação sintática, capaz de criar outra dinâmica de

movimento: um movimento livre da gravidade, que não mais indica uma direção

contínua, com todas as relações linearmente encadeadas que lhe são próprias.151

151

Passagens com essa dinâmica de movimento são encontradas, por exemplo, em Nuages, ou na

seção intermediária de L’Après-midi d’Un Faune, quando o esquema melódico do tema da flauta é

recriado de modo estilizado, remetendo mesmo a uma espécie de “improvisação” em tons inteiros

(o que levou Leonard Bernstein a indicá-lo como o primeiro uso de escala atonal na música

européia – ver The Unanswered Question: Six Talks at Harvard by Leonard Bernstein, DVD,

Vol.4). De maneira ainda mais intensa é essa a dinâmica que perpassa o movimento

descentralizado de uma peça como Voiles, peça sem um pólo de atração bem definido e sem a

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113

É preciso saber, desse modo, de que maneira essa dinâmica é criada. Uma

intuição profunda do modo como Debussy assimilou a música de Wagner aparece

no mesmo livro de Adorno, e vale a pena ser citada:

A natureza adinâmica da música francesa pode talvez fazer-se remontar a seu

inimigo declarado, Wagner, a quem contudo se costuma censurar uma dinâmica

insaciável. Já em Wagner o decurso musical é, mais de uma vez, um mero

deslocamento. E dali deriva a técnica temática de Debussy, que repete sem

desenvolvimento sucessões sonoras muito simples.152

O material melódico da época de Wagner já é enrijecido demais para

permitir um desenvolvimento real, no sentido clássico. As células temáticas não

se transformam, apesar do grande movimento harmônico. Em outras palavras, há

uma circulação contínua da tensão, sem que essa tensão consiga, em momento

algum, ter uma influência efetiva sobre o grupo de motivos que constitui o

conjunto da obra. É o que Adorno chama, pela sua expressividade sem função, de

"caráter da subjetividade autárquica".

Quando aplicado à música francesa fin-de-siècle, o comentário de Adorno

parece forçado, uma vez que parte das obras de Satie e Fauré, que certamente

contribuíram para encaminhá-la na direção da estaticidade, só podem ser

relacionadas a Wagner como pura negação – sendo muito mais justo associá-las

ao filão da música modal que passa a caracterizar a cultura musical francesa no

fim do século XIX.153 Mas quando refere-se exclusivamente a Debussy, a

observação de Adorno torna-se realmente sugestiva. De fato, as harmonias de

Debussy não podem ser explicadas apenas nos termos de uma contaminação entre

elementos modais e tonais, nem tampouco como simples contraposição ao

cromatismo de Wagner. Torna-se claro desde muito cedo em sua obra, e cada vez

mais à medida que seu estilo vai amadurecendo, que Debussy de modo algum

abandona o cromatismo, mas, antes, o absorve e desativa.

Os gregos, bem como as músicas orientais, já conheciam o cromatismo, que

era usado, conforme indica a própria etimologia do termo (que vem de chromos:

cor) como efeito puramente expressivo, capaz de alterar a coloração do modo. Na

música europeia ele passará a ser encontrado de forma sistemática somente a

definição de direção propiciada pelas notas sensíveis, inteiramente composta sobre a escala de tons

inteiros. 152

Cf. Teodor Adorno, op.cit.., p.145. 153

Ver, nesse sentido, Lorenzo Mammì, “O demônio da analogia : Algumas melodias juvenis de

Claude Debussy “, p.59.

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partir da segunda metade do século XVI, sendo utilizado para estabelecer os tons

vizinhos e para as cadências. Desde os corais de Bach, contudo, o cromatismo

será reservado à expressão do trágico e do doloroso, revestindo-se de um caráter

dramático. Aparecendo com pouca frequência na época clássica (o período de

maior estabilidade e clareza sintática do sistema tonal), sendo encontrado no mais

das vezes como elemento de passagem em partes virtuosísticas, seu emprego

ganhará um novo fôlego na fase madura de Beethoven, onde relações cromáticas

cada vez mais tensas abrem as portas do período romântico. Wagner fará do uso

abundante do cromatismo modulante não apenas uma das marcas de seu estilo,

mas o próprio motor da música no Ocidente, culminando no que Boulez define

como “era cromática contemporânea”.154 Continuar o caminho de Wagner no

sentido de um aumento de complexidade do contraponto cromático seria a

“trajetória natural” dessa tradição (foi o que de fato fizeram compositores como

Mahler, Strauss e Schoenberg – este último, ao abrir as portas para o pensamento

atonal, “encarava sua incursão pela atonalidade como inevitável consequencia do

que viera antes”, sendo impossível “resistir ao imperativo histórico” de explorar

novos domínios da harmonia e de superar, através da constituição de um novo

sistema, a anarquia formal desencadeada pelo cromatismo).155 Mas ainda que sua

obra questionasse a normatividade da harmonia funcional, nem por isso Wagner

perdia o vínculo com o sistema tonal, uma vez que ainda recorria aos expedientes

dramáticos da condução de vozes do contraponto clássico, às regras fundamentais

da contigüidade, de movimento direcionado e de relações harmônicas estritas.

Desse modo, mesmo com o progressivo afastamento das tríades (fundamento

mesmo do sistema diatônico), já anunciado por Wagner e levado às últimas

consequencias por seus principais herdeiros, era ainda possível manter nas obras

musicais uma forte coerência estrutural e direcional. Ou seja, mesmo que o

cromatismo modulante de Wagner chegasse a enfraquecer a ideia de uma

tonalidade principal, ele não havia necessariamente perdido o “sentimento

tonal”.156

154

Ver Pierre Boulez, Apontamentos de Aprendiz, São Paulo, Perspectiva, 2008, p.259. 155

Cf. Paul Griffiths, A Música Moderna, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1987, p.25. 156

Com base nessas ideias David Huron vai defender a tese de que a música de Schoenberg não é

propriamente atonal, mas sim “contra-tonal”, uma vez que ela explora diretamente os schemas

tonais que fazem parte da bagagem psíquica do ouvinte ocidental médio. Nesse sentido, ver David

Huron, Sweet Anticipation: Music and the Psychology of the Expectation, p.339-344.

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O caso de Debussy é outro. Nele, o “sentimento tonal” pode ser ativado ou

desativado. Ao basear a sua música no que Pierre Boulez definiu como “relações

cromáticas ampliadas”, com seus acordes não-resolvidos e progressões livres

fundadas em complexas relações cromáticas – através do emprego da escala de

tons inteiros ou de acordes com numerosas terças superpostas e também acordes

de quartas – ele agia diretamente sobre a coerência estrutural e direcional que

caracteriza o quadro da tonalidade clássica.157 Mais do que agregados

heterogêneos formando elementos puramente estáticos, as figuras harmônicas que

utiliza são interpretáveis como dissonâncias congeladas, sem qualquer direção e

sem qualquer capacidade de resolução – estruturas imóveis que são extraídas

justamente dos pontos em que o movimento cromático tardo-romântico parecia

mais convulsivo.158 Momentos de suspensão temporal criados em contraste com

passagens de grande agitação e movimento tonais – muitas vezes o estilo de

Debussy abarca numa única obra temporalidades e qualidades de movimento

diversas, a unidade sendo mantida pela elaboração de procedimentos analógicos e

de associação no interior do tecido tonal. É uma tendência que pode ser

encontrada no Prélude à l’Après-midi d’un Faune, em La Mer - e também em

157

Ver Pierre Boulez, op.cit.., p.259. 158

Para que figuras extáticas pudessem ser extraídas de Wagner, contudo, era necessário que essa

estaticidade já estivesse de certo modo presente em sua obra, pelo menos em potência. Como

observou Adorno, modulação e desenvolvimento estão dissociados na escrita musical do

compositor alemão. Tudo acontece como se fosse uma grande farsa, uma pirueta musical: a

constante modulação torna-se um falso movimento que não chega propriamente a modificar o

evento musical, como acontecia no caso dos clássicos. Mas além disso, talvez seja possível

reconhecer sinais de atrofia na estrutura harmônica em si, desconsiderando sua relação com a

matéria melódica. Numa análise da famosa ouverture de Tristão e Isolda, Lorenzo Mammì levanta

a hipótese de uma paradoxal “progressão estática”, “não só porque o acorde final corresponde

àquele de partida, mas sobretudo porque, nesse ínterim, não fomos concretamente a parte alguma.

Aludir a todas as tonalidades significa não realizar nenhuma. O Lá Menor não é enunciado

explicitamente nunca, mas de Lá Menor não saímos em momento algum”.(Cf. Lorenzo Mammì,

“O demônio da analogia : Algumas melodias juvenis de Claude Debussy”, p. 55) Tudo isso nos

leva a uma conclusão a princípio contraditória: de que o caráter aparentemente estático da música

de Debussy deriva do movimento aparentemente excessivo da música de Wagner. Jarocinski cita,

no livro que mais contribui para livrar o compositor francês do rótulo de impressionista e

aproximá-lo do simbolismo, o ponto de vista de Ernst Kurth como um dos mais influentes sobre a

maneira de compreender não apenas o papel e o alcance do compositor francês na história da

música ocidental, mas também o modo como, apesar da imensa diferença de resultado final, seu

estilo deriva ele próprio do estilo de Wagner: “En partant du principe que le développement de la

forme musicale dépend au fond d’une énergie psychique immanente qui trouble constamment,

voire, rompt et détruit le système rationalisé et fonctionnel d’harmonie, Kurt démontrait que

l’énergie cynétique représentée par la mélodie avait atteint son apogée avec la musique des

romantiques, pour se transformer de plus en plus, à partir de Tristan, en une énergie potentielle,

facilement assimilée par la sonorité pure à caractère coloriste; cette tendance culminerait enfin dans la musique de Debussy. Kurth arrivait à la conclusion suivante : “Le chemin de Debussy

passe par Wagner, bien que lui-même (…) ait pris pour but d’affranchir la musique de l’influence

de Wagner””.(Cf. Stefan Jarocinski, op.cit.., p.34)

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tantos dos seus prelúdios para piano. Seu anti-wagnerismo difere daquele de seus

contemporâneos; é antes uma superação do que uma recusa. O próprio Adorno

havia indicado isso, ao notar que, apesar das técnicas de espacialização dos planos

e da construção de modelos temáticos atomizados, Debussy conseguia preservar a

sensação orgânica de uma temporalidade subjetivamente perceptível, que o

teórico alemão chamaria de “bergsonismo musical”, enquanto que, mediante

justaposições e montagens rítmicas que abandonam a ideia de transição,

Stravinsky realizava a dissolução métrica do tempo musical. Ao libertar a música

da cadeia do fluxo tonal (sem, contudo, eliminá-lo), ele apresenta blocos

harmônicos que serão percebidos, primeiramente, como espectros sonoros, como

sensações puras, e apenas num segundo instante, e eventualmente, como peças do

processo funcional. Vem daí a famosa formulação de Pierre Boulez, de que, com

Debussy, “le mouvant, l’instant font irruption dans la musique (...)”.159

Em Debussy, cada harmonia conserva a marca de sua função tonal, ou de

suas possíveis funções, mas essas podem não ocorrer de fato; ser evitadas ou

suspensas, até que a aproximação de dois acordes, uma determinada linha

melódica, a retomada de um ritmo as despertem subitamente. A harmonia de

Debussy tem o desconexo andamento dos sonhos, mas, tal como os sonhos, não

chega a ser arbitrária. A ela se poderia aplicar a observação de Mallarmé sobre a

poesia francesa de sua época: “Je connais qu’un jeu, séduisant, se mène avec les

fragments de l’ancien vers reconnaissables, à l’éluder ou le découvrir, plutôt

qu’un sutbite trouvaille, du tout au tout, étrangère”.160 Ao intensificar certas

linhas de força lançadas pela estética do Romantismo – acontextualismo,

organicismo e imediaticidade – Debussy terminou por converter o ideal narrativo

de Wagner, com seus leitmotiven (verdadeiras etiquetas musicais) e seu passado-

presente-futuro bem marcados, numa aposta na suspensão temporal, no valor da

sensação e do instante. Em sua música não há espaço para grandes narrativas e a

própria concepção de tema torna-se quase irrelevante. Mesmo quando trabalha em

cima de um texto narrativo (como em sua única ópera, Pélleas et Mélisande), seu

interesse maior está nos desvãos das almas dos personagens, e não em colocar a

música para narrar uma história. Nesse sentido, Debussy marca uma ruptura

159

Cf. Pierre Boulez, Encyclopédie de la musique, Paris, Fasquelle, 1957, p.127. 160

Cf. Stéphane Mallarmé, “Crise du Vers”, In. Mallarmé: Poésie et Autres Textes, Paris, Librairie

Générale Française, 2005, p. 352.

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considerável com o imaginário romântico, rememorativo por excelência, abrindo

um novo caminho para a modernidade musical (um outro caminho seria aberto

pelos atonalistas).161 Uma modernidade baseada na singularidade de uma forma

cada vez mais auto-gerada e de “um tempo musical que ignora os fantasmas

herdados do classicismo, simetria, periodicidade, unidade, continuidade,

esquemas e categorias”, operando dessa maneira uma “reavaliação mesmo da

noção de forma e de sua percepção”.162

...

“Debussy fez uma revolução no acorde”, comentou João Gilberto numa

entrevista.163 Tom Jobim, por sua vez, diria que “Villa-Lobos e Debussy são

influências profundas em minha cabeça”.164 Há praticamente um consenso entre

críticos e especialistas da música brasileira de que Tom e João foram os principais

responsáveis pelo surgimento da bossa nova, no fim dos anos 1950. Em que

pesem os muitos precursores – e esses precursores passam de certo modo a

“existir” somente quando iluminados pelo nascimento de uma nova forma musical

–, e também os distintos caminhos que os dois tomariam posteriormente, tudo

indica que houve, naquele momento específico, uma convergência ou uma fina

simbiose entre os anseios estético dos dois. Tornaram-se, por assim dizer, a frente

e o verso de uma moeda única: a bossa nova. O pesquisador Luiz Tatit a dividiu

num gesto “intenso” – que se encerra no arco histórico que vai de 1958 até mais

ou menos 1963 – e num gesto “extenso” - que, transcendendo a curta duração do

movimento, tornou-se uma baliza para a criação da música popular moderna no

Brasil. Se o primeiro “gesto” diz respeito a todos os atores da bossa nova, o

161

Paul Griffiths enumera os três compositores que forneceram o paradigma musical da

modernidade: “É claro que somente em análise superficial se poderia separar os elementos

harmônicos, rítmicos e formais – intervalos, tempo e estrutura – de uma peça musical: eles são

interdependentes, e inevitavelmente Schoenberg, Stravisnky e Debussy inovaram em cada uma

dessas frentes. Foram todavia a harmonia de Schoenberg, o ritmo de Stravinsky e a forma de

Debussy que maior interesse despertaram e mais importância tiveram para os compositores no

decorrer do século”. (Cf. Paul Griffiths, A Música Moderna, p.38) 162

Cf. André Boucourechliev, Debussy: la Révolution Subtile, p.14. 163

Depoimento de João Gilbeto a Mario Sergio Conti – “A viagem de João”, In. Folha de S. Paulo

(caderno Ilustrada), 20 de julho de 2000, p. E 6. 164

Entrevista presente em Almir Chediak, Songbook Tom Jobim v.2, Rio de Janeiro, Lumiar

Editora, 1991, p.14.

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segundo se resume aos gênios de Tom Jobim e João Gilberto.165 Simplificando

um pouco os termos dessa complexa equação, é possível dizer que enquanto João

propiciou uma nova estrutura capaz de oferecer uma síntese do passado e um

novo parâmetro para a organização e produção de música popular, Tom Jobim

forneceu o conteúdo que colocava em funcionamento essa nova estrutura: novas

canções. Na realidade, canções que já eram compostas de acordo com as

premissas da nova organização sonora criada por João Gilberto, e que, desse

modo, tinham por “objetivo” justamente explorar suas possibilidades e limites. Ou

seja, canções que tendiam a tornar ainda mais explícitas as especificidades

daquela nova estrutura. Tanto foi assim que, sendo eminentemente intérprete, das

163 faixas gravadas por João Gilberto, 54 eram de autoria de Jobim.

Que os dois músicos façam referência direta a Debussy aponta para aquele

que certamente é um dos traços mais importantes da bossa nova: a sofisticação de

sua concepção harmônica. Há, evidentemente, a suma importância que teve a

nova organização rítmica trazida pelo violão de João Gilberto, e são inúmeros os

depoimentos nesse sentido. O biógrafo Ruy Castro, por exemplo, conta sobre o

momento em que Tom Jobim ouviu pela primeira vez a batida de João Gilberto –

que realizava no instrumento de cordas uma “síntese aberta”, cambiante, dos

diversos padrões que se sobrepunham na polirritmia dos tradicionais conjuntos de

samba – e de como passou a compor canções para aquele novo jeito tocar.166 O

próprio Jobim declararia isso nos seguintes termos: “Eu tinha uma série de

sambas-canções de pareceria com (Newton) Mendonça, mas a chegada do João

abriu novas perspectivas, o ritmo que João trouxe.(...) E isso, naturalmente, abriu

para mim um outro ponto de vista que iria me levar ao ‘Samba de Uma Nota Só’ e

outras manifestações da Bossa Nova”. E também descreveria a revolução rítmica

de João de forma simples e direta: “O grande salto do samba-canção para Bossa-

Nova foi essa batida do João. O samba sempre teve muito acompanhamento você

tocando tudo ao mesmo tempo não deixa os espaços. Você acaba criando uma

zoeira que mais parece um mar de ressaca. O que nós fizemos ali com o João foi

tirar as coisas, criar espaços, dissecar, despojar, economizar”.167 Mas acontece

165

Para maior esclarecimento sobre a distinção feita por Tatit entre bossa nova “intensa” e

“extensa”, ver Luiz Tatit, O Século da Canção, São Paulo, Ateliê Editorial, 2004, p. 179. 166

Ver Ruy Castro, Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova, p.161-163. 167

Cf. Zuza Homem de Mello, Eis Aqui os Bossa Nova, São Paulo, Editora Martins Fontes, 2008,

p.34 e 46.

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que, na própria economia musical, a nova organização rítmica do violão de João

teve como um dos seus principais efeitos o de libertar a harmonia. Dito de outro

modo, a estilização do samba resultou em novo arranjo temporal que abria

espaços no interior da canção, espaços nos quais podiam brilhar de modo cada vez

mais expressivo os novos acordes da bossa nova.

Com o terreno devidamente liberado, Jobim passou a plantar o seu pomar de

acordes - Havia espaço para eles - e tornou-se, como ele próprio diria, um

compositor da harmonia: “Minha música é essencialmente harmônica. Sempre

procurei a harmonia. Parece que eu tentei harmonizar o mundo”. 168 Nesse

contexto, e dada a formação de pianista erudito do Maestro, não devemos

estranhar a presença constante de Debussy em declarações suas, tais como:

“Quando esse pessoal dizia que a harmonia da bossa nova era americana, eu

achava engraçado, porque essa mesma harmonia já estava em Debussy. Não era

americana coisa nenhuma. Chamar o acorde de nona de invenção americana é um

absurdo. Esses acordes de décima primeira, décima terceira, alteradas com

tensões, com adendos, com notas acrescentadas, isso aí você não pode chamar de

americano”.169Não sem razão, Tom reivindica a influência direta da harmonia do

Impressionismo francês, adquirida diretamente por ele através dos seus estudos de

piano, e que também está na base do próprio jazz americano. Segundo Alex Ross,

o germe de um modernismo alternativo, deixado por Debussy, “chegaria à

maturidade na música desadornada, de base popular, alegria jazzística e

desenvolvimento automático dos anos 20”.170 Essa mesma afirmação pode se

desdobrar no encontro que esse mesmo germe teve de forma intensa com a música

popular brasileira do final dos anos 1950, e que deu ao mundo a bossa nova.

Forçando um pouco a comparação entre manifestações um tanto distantes

no tempo e no espaço, talvez seja possível dizer que da mesma forma que

Debussy desdramatizou as harmonias de Wagner, fazendo com que perdessem a

direcionalidade e a concatenação narrativa e pudessem assim ser fruídas como

sonoridade pura, também Tom Jobim e João Gilberto pegaram a harmonia do jazz

e retiraram dela parte de sua tensão, criando um estado de suspensão em que o

168

Retirado de: Márcia Cezimbra, Tessy Callado, Tárik de Souza (org.), Tons Sobre Tons, Rio de

Janeiro, Editora Revan, 1995, p.52. 169

Cf. Almir Chediak, op. Cit, p.14. 170

Cf. Alex Ross. O resto é ruído: escutando o século XX, p.59.

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próprio jogo da sonoridade não precisa ir para lugar nenhum. Há, contudo, uma

proximidade técnica de fundo que une a bossa nova e o jazz. Se levarmos em

conta que grande parte da harmonia da bossa nova vem de Tom Jobim, e que uma

de suas grandes fontes nesse sentido foi Debussy – como ele próprio afirmou

diversas vezes – e de que o mesmo compositor francês está base de boa parte do

jazz, temos dois estilos que, de certo modo, dividem a mesma filiação harmônica.

Só que enquanto o jazz injetou uma forte dose de movimento nos acordes,

dramatizando-os novamente, em Tom e João sentimos novamente uma busca mais

intensa do prazer da harmonia como timbre, do acorde como cor solta, sem

nenhuma outra finalidade. Em outras palavras, enquanto o jazz de certo modo

dramatizou a harmonia do Impressionismo francês, a bossa nova a utilizou de

modo mais próximo ao do próprio Debussy – e talvez, certamente no caso de João

Gilberto, e provavelmente em algum grau também no caso de Tom Jobim, ela

tenha no fundo “desdramatizado” o que o jazz havia “redramatizado”. Ou seja,

Tom e João fizeram um pouco com o jazz o que Debussy havia feito com Wagner.

Ou seja, trata-se de transcender a tonalidade a partir da própria tonalidade. E

isso sem perder de vista valores clássicos franceses, como clareza, elegância e

graça. Valores esses que se identificam à perfeição com o estilo musical criado

por Tom, João e Vinicius. Nos dois casos, buscava-se uma expressão mais

concisa, comedida e enxuta como alternativa ao esgotamento dos arroubos

românticos. A bossa nova parece ter sido a recriação de uma cultura periférica,

marcadamente expansiva, de matriz barroca, repleta de arroubos dionisíacos e

com estigmas de exotismo, nos termos lúcidos desses valores. Ela divide com o

impressionismo francês diversos pontos em comum que não me parecem

meramente casuais – o anseio por uma beleza leve e menos dramática, a ênfase

nas sensações ao invés da emoções, o esvaziamento temático e narrativo, a

vontade de se deslocar da grandiloquência romântica para a esfera íntima do ser, o

desejo de discrição – que, portanto, merecem ser melhor explorados. Se Debussy

tentava contornar o beco sem saída diante do qual Wagner deixou a música tonal,

Tom, João e Vinicius buscavam novo frescor numa música popular saturada pelos

excessos melosos dos sambas-canções.

Talvez outro fator importante e que pode nos ajudar a entender a porta de

entrada e o alcance da influência que Debussy teria mais tarde no Brasil, seja a

presença marcante do piano na música popular a partir do início do século XX. E

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o que não faltava no Rio de Janeiro do fim do século XIX e início dos século XX

eram pianos. A então capital federal seria mesmo apelidada de “cidade dos

pianos”. A presença imponente do instrumento de design retilíneo, com ares de

máquina tecnológica, operado por teclas e pedais, filho moderno dos órgãos de

igreja, riquíssimo em sons simultâneos e em ressonâncias, com invejáveis

projeção e volume - numa época sem microfone - e que incorporava em sua

própria arquitetura, de modo claro e visual, a própria história do desenvolvimento

da linguagem tonal – na divisão da oitava em doze semitons e na separação entre

teclas brancas e negras -, a presença do instrumento roubou a cena no Rio de

Janeiro. Tornou-se uma espécie de móvel obrigatório nas salas das famílias mais

abastadas. Índice de civilização. De refinamento. Da vontade de estar em sintonia

com as últimas modas da Europa. Nos saraus, era o maioral.171 De todo modo,

valsas, polcas e maxixes, as modas e danças de salão do século XIX, chegavam

aos lares urbanos em partituras para piano.172

Talvez seja plausível supor que parte da influência de Debussy na música

popular do Brasil tenha vindo no bojo do enorme prestígio alcançado pelo

instrumento no século XIX e que coincide com a formação de uma linhagem de

pianistas com “um pé no erudito e outro no popular”. Linhagem que basicamente

começa com Ernesto Nazareth e passa depois por nomes como Radamés Gnatalli

171

O pesquisador Hermano Vianna nos lembra que, mesmo a novidade do piano ocupando o lugar

de honra nessas reuniões, no fim da noite tudo acabava em modinhas cantadas ao som da boa e

velha viola (“Tampouco o violão foi totalmente afastado dos saraus familiares cariocas, apesar de

toda a tendência re-europeizante do piano”), o que nos revela um pouco da dinâmica de

convivência e interação de tradições distintas no contexto brasileiro. (Ver Hermano Vianna, O

Mistério do Samba, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995, p.40-44) 172

O célebre conto “Um Homem Célebre”, de Machado de Assis, recria a atmosfera e o uso da

música popular, bem como sua dinâmica de divulgação. E também coloca em evidência o lugar

central do piano na transmutação da polca em maxixe, gênero que está na base do moderno samba

carioca. É quando o jeito sincopado da rítmica de fundo africano começa a se infiltrar na estrutura

melódico-harmônica européia, modificando profundamente o seu ethos. O corpo do piano, com

sua sonoridade e seu jeito específico, e sua bem consolidada reputação, será um dos locais

privilegiados desse encontro, dessa espécie de fusão entre distintas tradições musicais. E a figura

do pianista Ernesto Nazareth torna-se o primeiro marco evidente do início não apenas de uma

tradição de compositores populares no Brasil mas também o marco de uma linhagem de músicos

populares diretamente ligados ao piano. Situados, pela formação e afinidade com o instrumento

par excellence da música clássica do século XIX, entre a ambição do erudito e a sedução

irresistível do popular. Tocando em bailes, saraus, teatros de revista, e, mais tarde, nas salas de

cinema. Muitos sofrendo do mal que José Miguel Wisnik batizou, em homenagem ao personagem

de Machado de Assis, como “complexo de Pestana”. Mas funcionando como verdadeiras pontes

entre mundos aparentemente distantes. Pontes erigidas entre a rítmica africana e a harmonia

européia; entre a música escrita das partituras e a música ancorada na oralidade; entre o esnobismo

dos salões elegantes e a informalidade vulgar, natural e expansiva das ruas. Ver, nesse sentido, José Miguel Wisnik, “Machado Maxixe”, In Sem Receita: Ensaios e Canções, São Paulo,

Publifolha, 2004.

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e Antonio Carlos Jobim. E isto porque, tendo o piano como denominador comum,

e, de modo geral, contando esses músicos com o acesso às informações musicais

da Europa, e sobretudo da França, criou-se, por assim dizer, uma via mais direta

para a influência e para a troca mútua de informações musicais entre as esferas do

erudito e do popular. Cito José Miguel Wisnik citando Mário de Andrade que cita

Brasílio Itiberê: “Vale lembrar que a música de Nazareth, como anota Mário de

Andrade citando Brasílio Itiberê, resulta da síntese realizada pelos ‘pianeiros’,

músicos ‘que se alugavam para tocar nos assustados da pequena burguesia e em

seguida nas salas de espera dos primeiros cinemas’, fundindo lundus e fados,

danças de origem popular negra e polcas e habaneiras importadas, transferindo a

música de uma camada social a outra, ao mesmo tempo que convertiam formas

vocais em formas tipicamente instrumentais (notar que o pianismo das peças de

Nazareth, tão afins do instrumento, incorpora também traços instrumentais do

violão, da flauta, do cavaquinho, do ofcleide)”.173

Em 1908 ocorreu a primeira apresentação de Prélude à l’Après-midi d’un

Faune no Rio de Janeiro, então capital federal do Brasil. A absorção da música de

Debussy foi muito rápida – houve um quase que imediato efeito de

reconhecimento num país culturalmente colonizado e que tinha a França na conta

de um modelo de civilização a ser imitado, reproduzido, copiado em terras

tropicais. Tudo isso seria devidamente notado pouco mais de dez anos depois por

Darius Milhaud, em pequeno artigo escrito para a recém-fundada Revue Musicale,

em 1920. Nele, um espantado Milhaud falava abertamente para o público europeu

sobre a orientação marcadamente debussysta dos músicos brasileiros: “A curva

traçada pela evolução da música na França depois de Wagner se reproduz

exatamente igual do outro lado da Terra. Cada movimento, cada tendência

encontra um eco no hemisfério sul. Por vezes as influências são compartilhadas:

M. Vincent d’Indy e a Schola servem de modelo aos compositores argentinos e

chilenos. Enquanto no Brasil a orientação é nitidamente debussysta e

impressionista”. Milhaud nos revela também outros dados da presença francesa:

“O papela da França na cultura musical brasileira é certamente preponderante.

Graças aos compositores Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald, todos os dois

tendo sido diretores do Conservatório do Rio de Janeiro, a biblioteca desse

173

Cf. José Miguel Wisnik, “Entre o Erudito e o Popular”, In. Da Antropofagia a Brasília – Brasil,

1920-1950, São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p.303.

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estabelecimento possui todas as partituras de orquestra de Debussy e de todo o

Groupe de la S.M.I. ou da Schola, assim como todas as obras publicadas do

senhor Satie”. Mais adiante, ainda no mesmo artigo, o compositor nos fala um

pouco dos concertos que presenciou no Brasil, também fortemente marcados pela

presença francesa. Comenta que a música que estava sendo feita na Áustria e na

Alemanha era praticamente desconhecida por aqui, assim como o movimento

levado a cabo por Schoenberg – que só chegaria ao Brasil depois da Segunda

Guerra, pelas mãos de Hans Joachin Koellreuter, um dos professores de Tom

Jobim. Francesas eram as peças da maior parte das programações dos concertos;

franceses eram os livros de partituras que abarrotavam as bibliotecas do

conservatório do Rio - partituras de Debussy, Ravel, Satie -; francês, e mais

especificamente debussysta, era a orientação de estilo seguida pela maioria dos

jovens músicos brasileiros dos anos 1920.

...

Seria, contudo, um tanto equivocado insinuar que Tom é o responsável pela

harmonia enquanto João é o responsável pelo ritmo. Em João Gilberto a

preocupação harmônica é um fator essencial em seu estilo e em suas recriações

musicais. De posse de procedimentos estéticos da alta cultura, junto com um

domínio absoluto da já consolidada linguagem da canção popular, os dois

criariam (junto com João Gilberto) uma “nova tecnologia da canção”: um novo

modo de compatibilizar letra e música, e de abrir a forma-canção a novas

experimentações que, a um só tempo, testavam e construíam seus contornos e

limites. Pode-se dizer que a nova música de Tom, João e Vinicius, mais clara e

definida, teve como um de seus principais efeitos aparar as arestas da música

popular brasileira. Por um lado, a marcação binária do samba será acomodada

num compasso quaternário mais macio e maleável, ao mesmo tempo em que os

ataques dos acordes (num procedimento típico do jazz) passam muitas vezes a

preceder o bordão que, por fazer amiúde parte de um acorde invertido, não traz o

“chão” da tônica. Mas a contribuição de João Gilberto não se esgota na criação da

famosa batida. O cantor baiano elabora também um novo modo de encaixar a voz

no encadeamento harmônico/rítmico. Ora adiantando o canto em relação ao pulso

sincopado do violão, ora o atrasando, João descola a melodia da marcação rítmica,

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criando um fraseado flutuante, levíssimo, que se desenvolve independente da base

rítmica e harmônica.

João Gilberto respeitou a matriz essencialmente lírica e melódica da música

brasileira, na qual a comunicação do conteúdo da letra se dá através do maior

respeito possível a um “original melódico”. Não há na canção brasileira uma

tradição de improviso melódico – como há, por exemplo, na tradição americana.

Por algum motivo, as melodias tornaram-se intocáveis, devendo ser a todo custo

respeitadas. O intérprete que modifica o material melódico (com floreios ou

improvisos) está simplesmente “cantando errado”; ou então “não sabe a canção de

cor”. Desse modo, uma tendência desde cedo avultou em nossa música: não se

podia mexer propriamente nas notas, modificar as alturas e os contornos, mas era

permitido e desejável que o cantor exprimisse sua singularidade improvisando

com o ritmo da melodia. Era sobretudo na divisão rítmica, no jeito de organizar

temporalmente a melodia, de mexer com o ataque e a duração das notas, que um

cantor como Mário Reis diferenciava-se de outro como Francisco Alves ou Sílvio

Caldas. Essa tendência ganhará sua versão moderna, além de sua confirmação

máxima, no fraseado solto, flutuante de João Gilberto. Mas a partir dele e de Tom

Jobim, outro elemento passou a também influenciar de modo crescente a

percepção melódica: a própria harmonia.

João Gilberto e Tom Jobim constituem um fato novo na canção brasileira

não apenas porque trouxeram para a dimensão harmônica uma expressividade que

ela poucas vezes conheceu, mas porque conseguiram o efeito inédito de soldar

melodia e harmonia em uma única entidade, um único ser. Nos dois casos, não é

mais possível separá-las. Por isso, há algo que é da ordem da sensação mas que

passa a desempenhar um papel cada vez mais fundamental nas composições de

Jobim e nas interpretações de João. Tal como já ocorria em Debussy, a busca da

sensação pura em João também está ligada a mecanismos que desligam o fluxo de

encadeamento da harmonia funcional. Há uma queda geral do impulso energético

da tonalidade, resultando daí que os acordes não parecem exatamente implicarem-

se uns nos outros. Mas uma vez que são postos em sequência percebe-se

facilmente que há uma lógica implícita na concatenação deles. No fundo, a

estrutura harmônica que cerca – mas não apóia – a melodia é bastante simples. O

que acontece é que João amplia o tecido de transição entre os principais pólos

diatônicos. A maioria dos acordes usados por João são acordes de passagem, com

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pouca dinâmica funcional, que não necessariamente sustentam a melodia.

Geralmente, um acorde de transição desloca-se para outro que não

necessariamente apresenta uma situação harmônica definida, mas que, no mais

das vezes, apresenta também o caráter ambíguo do acorde de transição. Um

acorde de passagem dá lugar a outro acorde de passagem. Figuras de transição

encaixadas por semelhanças e contiguidades (para não dizer analogias),

deslizando, transformando-se maciamente umas nas outras – como se, ao invés de

se desenvolver através de uma única seqüência de acordes, a canção se desse

mediante a transmutação de um único acorde numa seqüência. Apesar do

constante cromatismo da linha do baixo e dos deslizamentos das vozes internas,

não há propriamente modulação. Tampouco há momentos de ênfase marcada nas

regiões da tônica e da dominante. Os acordes aparecem meio transfigurados,

muitas vezes com notas da tríade básica omitidas, subentendidas.

O foco de nossa atenção é dirigido justamente para os momentos de

indefinição do jogo harmônico (acordes de passagem), o que ajuda a ressaltar o

sentido de suspensão causado por sua música. Ao mesmo tempo, pousos

intermediários funcionam como tônicas passageiras que de certo modo permitem

algum sentido de orientação mas não representam um fechamento formal, uma

linha de chegada. É como se fossem tônicas falsas funcionando como pequenos

marcos sinalizadores dos longos períodos de transição – estão mais para uma

qualidade específica de sensação e apenas em segundo plano ocupam o lugar de

figuras sintáticas de um discurso. Com isso, há um abrandamento das expectativas

que embalam uma escuta primordialmente baseada na lógica antecedente-

consequente, favorecendo uma situação na qual os acordes despontem como

sonoridade mais livre. Por outro lado, como esse tecido de transição torna-se

ampliado, muitas vezes encontramos elipses inesperadas em seu interior, a

transição levando não para o acorde que parecia indicar no começo, mas para

outro que despontou como horizonte no meio do próprio processo. É como se no

desenrolar de um raciocínio despontasse uma outra ideia, parecendo mais atraente

e promissora, passasse então a indicar uma nova direção do pensamento. O tempo

harmônico – assim como o tempo melódico e rítmico – é, desse modo, bastante

maleável, elástico, o tempo da rêverie, da divagação.

O importante é o contraste e a complemento que esses acordes oferecem ao

sentido melódico. Num famoso ensaio, o musicólogo Lorenzo Mammì ressalta a

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semelhança de procedimento do cantor com Debussy: “Não podemos dizer que o

canto de João Gilberto se apóie sobre os acordes do acompanhamento. Muitas

vezes, o que se ouve é o contrário, acordes pendurados no canto como roupas no

fio de um varal. Na música erudita, a composição mais próxima a esse estilo é o

Prélude à l’après-midi d’un faune, de Debussy, sobretudo a primeira parte, onde a

melodia é harmonizada repetidas vezes com acordes diferentes, que mudam de cor

sem mudar seu sentido”.174 O jeito com que João Gilberto repete a mesma melodia

várias vezes modificando continuamente os acordes do acompanhamento aponta

para uma exploração da sensação harmônica em sua sutil relação com o material

melódico. Há uma relativização da própria balança figura/fundo entre esses dois

elementos. Valem pelo timbre, pela região sonora que ocupam, pela maneira

como abrigam a voz. É um trabalho que se dá no nível do detalhe e que visa tirar

proveito do que há de diferença naquilo que à primeira vista parece igual. Muitas

vezes acordes iguais aparecem realizados em diferentes regiões do braço do

violão, ou invertidos em novas configurações hierárquicas. A tonalidade muitas

vezes é expandida pelo uso, dentro da estrutura diatônica, de modos antigos –

reminiscências muito presentes, por exemplo, na música da região nordeste do

Brasil, justamente de onde veio João Gilberto. Ao mesmo tempo, a voz foi

construída de modo a se aproximar do timbre do próprio violão, a ponto de quase

poder se confundir com ele.175 A balança figura/fundo à qual me referi no

parágrafo acima é assim relativizada, igualada, perdendo por vezes parte do

sentido. A voz passa então a habitar no interior do acorde, ela está dentro dele.

Desse modo, a própria melodia, ao atacar num timbre muito próximo ao do

instrumento notas que foram propositalmente omitidas do acorde de

acompanhamento, torna-se parte do ambiente harmônico – torna-se ela também

sensação verticalizada. Há, desse jeito, um enfraquecimento da nossa capacidade

de foco, de nossa habilidade de discernir e distinguir os elementos, pois estes

embaralham-se frequentemente.176 Por outro lado, a compressão do espectro

174

Cf. Lorenzo Mammì, João Gilberto e o Projeto Utópico da Bossa Nova, p.66. 175

A evidência da “construção de uma voz” em João Gilberto é facilmente verificável através da

audição de seus primeiros registros como solista – no 78 rotações com Quando Ela Sai e Meia

Luz, gravado em 1952 – quando seu estilo ainda era uma cópia bastante fiel do canto romântico

(embora já bastante moderno) de Orlando Silva. A intenção, contudo, de aproximar o próprio

timbre da voz do timbre do violão me foi comunicada pela pesquisadora Edinha Diniz, que, amiga

pessoal de João, me disse ter ouvido uma declaração dessa intenção vinda do próprio cantor. 176

Argumentando sobre a diluição das fronteiras entre música popular e música erudita no século

XX, e, ao mesmo tempo, atentando para a conservação da distinção entre estrutura profunda e

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sonoro no registro médio do violão e também da voz faz com que, em franca

oposição àquilo que se pode vagamente definir como estilo romântico, João

trabalhe em torno de nuances próximos, e não de contrastes.

Na verdade, João está jogando nosso foco sobre parâmetros secundários do

jogo musical, parâmetros que resistem a uma apreensão mais nítida, que fogem

aos schemas incorporados pela memória de longo-termo e que pertencem,

portanto, ao domínio das sensações mais imediatas. É como se ele nos

aprisionasse na primeira fase da penetração perceptiva proposta por Proust – a

fase com a qual o escritor identifica, justamente, a música de Debussy. Depois de

repetidas audições, e embora tenhamos na memória a melodia que João está

cantando, sua forma permanece inapreensível - “insaisissable”. Ao descrever o

caminho percorrido pelos estímulos sonoros, dos nervos auditivos passando por

diversas estações intermediárias do cérebro, responsáveis pela decodificação dos

sinais e pela reconstituição num único construto perceptual, num processo em

grande parte inconsciente, Bob Snyder atenta para o fato de que uma parte

considerável daquilo que percebemos nos chega ao foco da atenção consciente

sem passar pela memória de longo termo. São de certo modo os “resíduos da

percepção”, ou “nuances”, que não se encaixam na grade esquemática da

memória. São percebidos, sentidos, mas não são classificados pela memória e

nem costumam ser armazenados por ela – para isso são necessárias muitas

audições de uma mesma gravação, na qual os detalhes congelados possam ser

gradualmente absorvidos e guardados na memória.177 Na hora de lembrar de uma

determinada música, cantada por determinado cantor, tendemos a deixar de lado o

barulho que em determinado momento sua respiração causou, ou o pequeno

arranhado na garganta ao pronunciar uma vogal mais alongada, ou o jeito peculiar

estrutura de superfície (sem que esse último termo seja visto de modo pejorativo), José Miguel

Wisnik cita João Gilberto como exemplo de “superação da oposição entre o profundo e o

superficial”. O argumento de Wisnik parece bem próximo daquele que aqui proponho – a saber, de

que, em João, o canto participa a um só tempo da dimensão horizontal/melódica e da dimensão

vertical/harmônica – quando ressalta que “O canto de João Gilberto trabalha sobre um repertório

tonal popular ‘comum’, mas através de uma rede precisa de nuances mínimas em múltiplos níveis

(entoativos, rítmicos, timbrísticos, harmônicos, contraponto voz/instrumento), que supõem uma

leitura vertical dos bastidores da canção”. (Cf. José Miguel Wisnik, O Som e o Sentido, p.226) 177

Sobre a dificuldade em memorizar as “nuances” escreve Bob Snyder: “An important aspect of

nuances is that, under normal circumstances, they cannot be easily remembered by listeners (...).

Because category structure is a basic feature of explicit long-term memory, nuanced information,

which bypasses this type of memory, is difficult to remember: it is ‘ineffable’. This is probably the

major reason why recordings, which freeze the details of particular performances, can be listened

to many times and continue to seem vital and interesting”. (Cf. Bob Snyder, Music and Memory,

p.87)

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com que naquela gravação uma consoante específica foi dita. O que acontece, no

mais das vezes, é que lembramos da forma filtrada e recomposta por nossos

schemas mentais. Embora presentes nas etapas iniciais do processo de percepção,

as “nuances” parecem ausentes, ou excluídas das etapas de categorização

conceitual dos estímulos recebidos. Como já foi escrito, a memória tende a

compactar a informação dentro de moldes que são formados através da interação

com um ambiente sonoro. O dados são de certa maneira simplificados, e

raramente as percepções residuais são evocadas, e talvez por isso mantenham

acesa, mesmo depois de muitas repetições, a sua capacidade de surpreender.

Obviamente, todas as músicas contam com essa dimensão. A diferença, no

caso de João, é que ela torna-se não mais “aquilo que sobra”, mas passa a ser o

próprio plano para a elaboração de sua riqueza estilística. De certo modo, sem

remeter aos arquivos da memória, tornam-se sensações ligadas ao instante

imediato da escuta. Cria com isso uma arte extremamente envolvida em sutilezas

atmosféricas. As sensações colocam um problema novo para a memória. Embora

sejam sua condição inicial, elas estão de certo modo na antípoda do

reconhecimento. Quanto mais (re)conhecemos algo, quanto mais esse algo nos é

familiar, menor tenderá a ser a percepção do conteúdo que foge ao

reconhecimento – a sensação. É necessário um esforço monumental e uma dose

grande de estranhamento (re-desconhecimento) para se recuperar a riqueza

perceptiva (composta por sensações e por ideias que ainda não foram

completamente domadas pela consciência) de coisas que já nos são familiares.

Porque o reconhecimento e o hábito simplesmente nos liberam da atenção

sensorial e nos trazem para o reino da memória. É de certo modo preciso

enfraquecer a identificação pela memória para tornar-se mais focado, mais aberto

e mais receptivo à sensação. Esse enfraquecimento pode se dar pela via da

ausência de conhecimento que temos, por exemplo, quando ouvimos uma peça

musical pela primeira vez – o primeiro estágio da teoria proustiana, como já

vimos. Mas pode se dar também pela via inversa, quando se parte da própria

memória consolidada para se alcançar novamente, a partir dela, o terreno das

sensações.

Muitas vezes é justamente isso o que faz João Gilberto. Desativa a memória

através da sua própria saturação. A canção que já conhecemos de cor e que, uma

vez acionadas suas primeiras notas, tendemos a reproduzir com facilidade, torna-

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se o ponto de partida para que sejamos, a partir do familiar, reconduzidos à

expressividade dos detalhes. Não mais preocupados com a operação mental de

incorporar uma linha melódica, a atenção é direcionada para aquilo que

justamente tende a escapar aos schemas da memória: a elaboração de diversos

registros de timbre no espaço de uma mesma canção (em Retrato em Branco e

Preto); o jeito específico de cantar determinada vogal (como nas gravações de

State); a definição propositalmente nítida de um conjunto de consoantes que

conferem à canção uma textura de fundo peculiar (Pra Que Discutir com

Madame); a colocação e a captação do ruído da respiração como contraponto

rítmico (Saudade da Bahia, Doralice, Desafinado), o modo de reorganizar as

durações da melodia em relação à métrica da canção, de modo a enfatizar a

sensação rítmica que dela decorre; a nova economia de espaços que faz com que

no decurso de longas frases cantadas em legato (há uma grande presença

horizontal da voz no estilo de João) surjam “vãos” nos quais os acordes

despontam soltos, como se fossem ambientes desabitados, fruídos em si. Ao

cotejar a percepção de nossa atenção presente com o conteúdo de nossa memória

João coloca uma lupa em nossos ouvidos e joga o foco sobre aquilo que

denominei como “resíduos”.

Pode-se argumentar que é isso que ocorre em qualquer re-encenação de um

trabalho conhecido. Sim, certamente. O problema é o que se vê através de tal lupa,

de que modo ela consegue revelar um material suficientemente rico a ponto de

manter nossa atenção acesa. Porque a operação da memória pode muito

facilmente voltar novamente sobre si mesma e iniciar uma viagem sobre os

conteúdos associativos de praxe, provocando assim uma queda da percepção

presente e um desvio decisivo da dimensão dos detalhes – é o que acontece, por

exemplo, quando público e artista cantam em uníssono, ou quando uma canção

nos leva simplesmente a rememorar. Colocar a ênfase sobre a qualidade

expressiva do que geralmente tende a ser considerado como residual e fazer disso

sua própria matéria de trabalho é algo totalmente estranho à cultura do jazz e que

traria para ela uma vertigem do infinitesimal que não lhe é própria. É preciso que

esse mundo seja rico; que ele consiga, por sua profusão de detalhes e movimentos,

cativar a nossa atenção tanto quanto o quadro mais amplo e geral da obra. A

passagem entre as duas dimensões de escuta em João – do plano geral para o

detalhe – remete um pouco ao movimento que se faz diante de um quadro

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impressionista, quando se passa da identificação de uma paisagem figurativa para

o jogo de manchas abstratas reagindo entre si. A um palmo do quadro, vemos

pinceladas azuis, pontuadas por tons de amarelo e até por áreas gritantes de

vermelho. Sabemos, no entanto, que justamente aquela parte do quadro representa

o mar, ou uma lagoa, e de algum modo há um sentido de estranhamento, de

revelação, em saber que o pintor usou a cor vermelha na representação de algo

que, desde a infância, aprendemos ser azul. E, no entanto, quando nos afastamos

novamente para vislumbrar a totalidade do quadro, é o azul do mar que prevalece.

Há, desse modo, um jogo sutil entre memória, reconhecimento e a sensação mais

puramente abstrata, uma instância interferindo continuamente na outra (de certo

modo, a pintura abstrata ficou apenas com a sensação, rompendo com as outras

duas).

Talvez seja possível pensar que o tipo de escuta propiciada pela música de

João também funcione um pouco nesses termos. A memória serve apenas como

base comparativa para um trabalho que se dá em outra esfera e que tem como

principal característica justamente o seu poder de resistir a ser incorporado por

esta. É por isso que as canções gravadas por João resistem a inúmeras audições –

são capazes de revelar a cada nova escuta novos tesouros escondidos. Sua

dimensão mais rica está em algo que é da ordem das impressões, que não pode ser

capturado com nitidez pela memória, que permanece vago e indefinível mesmo

depois de repetidas audições. O fato de João Gilberto ter gravado pelo menos

cinco vezes Chega de Saudade sem alterar seus parâmetros principais –

andamento, melodia, ritmo, letra –mas apenas operando pequenas modificações

revela o seu modo peculiar de pensar a música. Eventualmente, um acorde ou

outro são adicionados, trazendo um novo colorido à sucessão melódica. A canção

já tão conhecida por nós subitamente reaparece, vaga e indefinível, extremamente

escapadiça, e no entanto reconhecível e objetiva. Quando ela se vai, deixa para

trás a impressão de algo que não pode ser totalmente apreendido, algo que é da

ordem da sensação. É como se nossa capacidade de atenção, o espaço de atividade

da pequena janela da consciência fosse demasiado curto para abarcar num só

lance todos os acontecimentos que se dão simultaneamente em sua música. Isso

parece ser um fato novo dentro da história da canção brasileira. Pois ao mesmo

tempo que João é um grande cultor da primazia melódica, de sua auto-suficiência,

ao mesmo tempo sua música apresenta uma densa malha de acontecimentos

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paralelos – rítmicos, contrapontísticos, polifônicos, timbrísticos – que estão

sempre na iminência de roubar o foco à melodia. Como escrevi anteriormente, há

uma relativização da balança figura-fundo que, numa tradição de canto popular

eminentemente melódica e monódica, me parece ser um acontecimento inédito.

Sem romper totalmente com a primazia da linearidade melódica, Tom e João

criam uma forma musical na qual cada detalhe é um acontecimento em si, digno

de atenção, mas que ao mesmo tempo forma um objeto sonoro único, integrado,

que mesmo depois de ter sua linha-guia devidamente processada pela memória (a

canção em seu estado mais básico), persiste em grande parte como sensação.

Sucessões atmosféricas que resistem a ser totalmente incorporadas pelos schemas

da memória – do mesmo jeito que não se consegue criar uma imagem mental clara

do emaranhado de cores e manchas sem contorno preciso que constituem a base

de muitos quadros de pintores impressionistas como, por exemplo, Claude Monet.

No limite, tanto no caso de João como no caso de Tom (mas revelado de

modo mais nítido nas interpretações do primeiro), estamos diante de uma forma

que transita entre ser homofonia e ser polifonia. Talvez não seja de todo

irrelevante o fato de que ambos tinham enorme admiração pelos conjuntos vocais

que se tornaram uma coqueluche no Brasil do início dos anos 1950. Muito

influenciados pelos grupos vocais americanos (The Pied Pipers, Mel Tones), os

conjuntos brasileiros (Garotos da Lua, Anjos do Inferno) representavam nessa

época o que havia de mais sofisticado na música do país. É preciso lembrar que

não houve no Brasil - como houve, por exemplo, nos Estados Unidos - uma

tradição de canto polifônico religioso. Havia, na Era do Rádio dos anos 1930,

quando realmente se estabelece a canção urbana e moderna no Brasil, coros de

fundo que pontuavam com a voz principal. Mas estes eram apenas agregados de

vozes em uníssono, que valiam pelo somatório timbrístico e pelo volume e

qualidade coletivas, mas que não chegavam a gerar linhas paralelas de canto. As

vozes não “abriam” nem criavam tensões polifônicas. Nos Estados Unidos, por

outro lado, encontra-se desde cedo, nos cantos dos trabalhos litúrgicos que estão

na base do blues e do jazz, uma forte tendência para a polifonia, que irá permear

continuamente a música comercial americana do século XX. Isso não quer dizer,

obviamente, que a canção americana seja sempre polifônica. Mas mesmo os

pequenos arranjos de vozes de cantores folk e a própria constituição polifônica de

boa parte do jazz nos remete a essa concepção musical de fundo que difere

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decisivamente da tendência mais puramente lírica e monódica (homofônica) da

música brasileira.

Não deixa de ser curioso o fato de que na fase mais intensa da bossa nova –

os três primeiros Long Play’s de João, arranjados por Jobim – não há qualquer

tipo de multiplicação de voz. Embora uma das paixões do jovem Tom fosse

harmonizar vozes e o próprio João tenha começado sua carreira de cantor num

grupo vocal (Garotos da Lua), há nos discos desse período clássico da Bossa

Nova apenas uma única e solitária voz cantando. Talvez isso decorra um pouco do

seu caráter mais individualizado, mais protegido em ambientes menores, nos

apartamentos de Copacabana; mais introspectivo – a figura mítica do solitário

João, tocando de pijama no quarto, sendo o emblema disso. Ao mesmo tempo,

não se trata apenas de uma escolha: parece, antes, uma exigência do próprio estilo

de João. Para acompanhá-lo cantando é preciso ir além, incorporando na memória

a profusão de pequenas alterações que ele opera incessantemente no ritmo da

melodia, e que diz respeito a uma única gravação. É um trabalho árduo, que

requer muitas audições para afinar a precisão, e difere bastante daquele que quase

espontaneamente temos ao decorar uma melodia qualquer. Enquanto Jobim voltou

aos arranjos vocais, afirmando, de certo modo, o caráter coletivista de sua música

e de sua personalidade, João mergulhou cada vez mais fundo na introspecção de

sua voz solitária, trancado num apartamento, praticamente isolado do mundo. É

possível, contudo, que a técnica de condução de vozes dos conjuntos vocais tenha

sido incorporada na própria estrutura dos acordes de seu violão. Se repararmos

com cuidado, ouviremos o modo como João consegue, mesmo atacando as notas

em conjunto (acordes em cacho), eqüalizá-las de modo diferente. Ao conferir

mais brilho e ênfase a certas notas específicas dentro do acorde, ele sublinha a

seqüência harmônica não apenas como bloco vertical, mas também como

condução melódica paralela, horizontal, portanto polifônica. Geralmente são

enfatizados pequenos trechos melódicos, trechos simples que na maioria das vezes

representam pequenas seqüências cromáticas descendentes e também ajudam a

justificar os próprios encaixes harmônicos através da condução das vozes internas,

muito mais do que pela tradicional sintaxe funcional. Articulando-se

continuamente com o canto, os acordes transitam entre ser agregados de notas

estáticas, que valem mais pelo colorido sonoro, e vozes internas que caminham

horizontalmente. Trata-se de um outro jeito de elaborar o fluxo harmônico.

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É difícil encontrar outra tradição de canto melódico, de forma-canção, com

tamanha volúpia harmônica. Em João Gilberto, e também em Jobim, não há como

dissociar a harmonia do elemento melódico. Os dois estão atados numa única

coisa. A sensação total e indefinível que se depreende do conjunto decorre de um

trabalho obsessivo em cima de peças específicas, como se o intérprete tentasse

achar a seqüência harmônica perfeita que está encavilhada na própria melodia da

canção – e ao trazê-la à tona as duas voltassem a se unir para todo o sempre. Não

há mais, como havia quase sempre nos cantores anteriores a ele, uma distinção

nítida entre o plano da voz melódica e o plano do acompanhamento. Aquilo que

antes era apenas uma linha melódica correndo por cima de, no mais das vezes,

preenchimentos harmônicos, torna-se parte de uma alquimia sonora mais ampla e

complexa, que abarca cada vez mais a sensação dos agregados sonoros como

parte constituinte de um sentido maior.

Mais uma vez devo reiterar que a compreensão dessa dimensão em João

Gilberto passa também por Tom Jobim, e vice-versa. Desde seus primeiros

trabalhos, como a Valsa Sentimental (que mais tarde ganhou letra de Chico

Buarque e tornou-se Imagina), Tom revelou seu imenso dom para a

harmonização. Mas ali naquele caso, tratava-se ainda de um estudo para piano, no

qual se detectam com facilidade as influências de sua formação erudita –

sobretudo Chopin e Debussy. Quando, contudo, Tom começou a compor canções

para o rádio, de maneira cada vez mais profissional, embora já apresentasse traços

marcadamente pessoais, suas músicas possuíam uma estrutura harmônica bastante

convencional, em perfeita consonância com os padrões da época. Teresa da Praia,

de 1954, seu primeiro grande sucesso, traz acordes com alterações pequenas

(sétimas aumentadas) e encadeados em saltos de quarta e quinta – não há ainda

sequer suas famosas linhas cromáticas de condução do baixo reduzido ao

esqueleto.

Acontece que por volta de 1956 inicia-se aparentemente um período de

profunda mudança em sua maneira de compor. Foi quando Tom criou as canções

do musical Orfeu da Conceição, representado no Teatro Municipal178, marco

178

O Teatro Municipal era então o mais importante teatro da então Capital Federal do Brasil. Com

projeto arquitetônico diretamente inspirado no de Charles Garnier para o Opéra de Paris Garnier,

havia sido inaugurado em 1909 com um discurso proferido em francês pelo eminente poeta

parnasiano Olavo Bilac. Na frente do teatro, pairava uma estátua de Frédéric Chopin. Creio que

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inicial de sua parceria com o poeta e diplomata Vinicius de Moraes, e talvez o

impulso de partida daquilo que viria a se chamar bossa nova. Adaptando o mito

clássico de Orfeu e Eurídice para o contexto contemporâneo e tropical das favelas

cariocas o espetáculo trazia o anseio de “unir Brasil e Grécia” – anseio este que

surgiu em meados dos anos 1940, quando Vinicius teve a ideia de escrever a peça,

e que foi abraçado com devoção apaixonada pelo então novato Antonio Carlos

Jobim. Nota-se em tal movimento a vontade de submeter um material de origem

extremamente popular (a canção urbana) a um tratamento ultra-sofisticado. Em

certo sentido, a ideologia igualitária e cosmopolita dos anos 1950, mas ainda

empenhada na construção de um nacionalismo popular e na afirmação de uma

singularidade brasileira, invertia os termos da lógica do primeiro Modernismo dos

anos 1920 e 1930. Ao invés de tomar a matéria popular como base para

formulações eruditas – como havia feito, por exemplo, Villa-Lobos – partia do

próprio substrato popular para “enriquecê-lo”, ou “sofisticá-lo”, mediante

procedimentos estilísticos oriundos do universo erudito.

Não se tratava mais de alargar as possibilidades da música de concerto

através da incorporação de elementos autóctones das tradições regionais – como

desejava Mário de Andrade, o grande mentor do primeiro Modernismo, e como

também o fariam Darius Milhaud e Villa-Lobos – mas de trabalhar diretamente

sobre uma linguagem de cunho popular injetando nela procedimentos oriundos do

universo erudito.179 Foi desse modo que, se Vinicius trouxe para os morros

cariocas o mito grego de Orfeu e Eurídice, Tom, ao elaborar as melodias da trilha

sonora, injetou modos gregos nos sambas-canções e valsas de sabor brasileiro. Em

suma, realizou no plano musical o que Vinicius havia feito no plano narrativo (o

mesmo procedimento de inserção de modos antigos ou não-ocidentais na

linguagem tonal seria também realizado por Debussy). Da parceria de Tom e

Vinícius saíram, entre 1956-57, canções em que já se pode notar de modo mais

nítido a marca do requinte harmônico tão próprio a Jobim (Se Todos Fossem

Iguais a Você, Modinha, A Felicidade). Requinte que acompanha também a

elaboração de linhas melódicas sinuosas, modulantes e assimétricas que,

nada mais há a dizer sobre a extensão da influência francesa no Rio de Janeiro do início do século

XX. 179

Para maiores esclarecimentos sobre a visão dos modernistas brasileiros dos anos 1920 e 1930 a

respeito da manipulação de temas folclóricos dentro do quadro, dos moldes da música clássica

européia, ver Luiz Tatit, O Século da Canção, Cotia, Ateliê Editorial, 2004, p.35-41.

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evoluindo passo a passo, aproximam-se do registro da fala, tornando-se, portanto,

confortavelmente cantáveis.

Também Chega de Saudade está entre as músicas desse período. Composta

logo após o espetáculo, ficou engavetada até o dia em que Tom Jobim reencontrou

João Gilberto. Este retornava ao Rio de Janeiro depois de passar quase dois anos

fora da cidade. Com um início de carreira bastante atribulado, permeado por

inúmeros insucessos, João havia sido incentivado a passar uma temporada em

Porto Alegre. A temporada estendeu-se na casa de sua irmã em Diamantina, onde

ele passava os dias tocando violão dentro do quarto, de pijama, ou no banheiro,

testando na caixa de ressonância revestida de azulejos as possibilidades de sua

estética minimalista.180 Depois, passou ainda por Juazeiro e Salvador, na Bahia,

antes de voltar para o Rio de Janeiro, em 1957. Quando voltou, mudou num passe

de mágica toda a linguagem da canção popular brasileira. Trazia na bagagem um

novo modo de condução rítmica no violão, uma síntese do samba que era enxuta,

flexível e aberta a variações pessoais. Junto com isso, consolidava um estilo de

canto absolutamente desdramatizado, que contrastava com a derramada e

romântica da maior parte dos cantores da época. Há uma vasta bibliografia sobre o

impacto da volta de João no meio musical do Rio de Janeiro – cidade que era o

grande centro produtor e difusor da música comercial da época. O importante é

notar que foi somente ao tomar conhecimento da “batida do João” – após receber

uma visita do próprio João em sua casa181 - que Tom Jobim não apenas sacou da

gaveta Chega de Saudade (que ali havia permanecido por mais de um ano), como

também modificou sua maneira de compor ao tomar como base aquela nova

organização rítmica.

A nova organização rítmica proposta pelo violão de João Gilberto criou

mais espaço para os acordes e possibilitou que Jobim desenvolvesse seu estilo na

direção de um minimalismo melódico apoiado sobre uma complexidade

harmônica que não conhecia paralelos na esfera da canção comercial brasileira.

Da mesma forma que João havia criado uma simbiose entre melodia-harmonia-

ritmo através do ser único de seu “canto & violão”, Tom fortaleceu os elos que

uniam melodia e harmonia a tal ponto que muitas de suas canções praticamente

180

Ver, nesse sentido, o capítulo 7 – intitulado “Em Busca do Ego Perdido” - de Ruy Castro,

Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova, p.133 181

O episódio do reencontro de Tom Jobim e João Gilberto (que já se conheciam

superficialmente) é narrado no livro de Ruy Castro, op.cit.., p.160.

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“inexistem” quando não são acompanhadas pelo devido complemento harmônico.

A primeira intuição a respeito disso parece ter surgido num ensaio escrito por

Brasil Rocha Brito nos anos 1960. Rocha Brito notava que ao lembrarmos de uma

melodia de Jobim estamos simultaneamente, e ainda que disso não tenhamos

consciência, lembrando dos acordes que a acompanham.182 Talvez seja possível

dizer que, mais do que a lembrança dos acordes, criamos a lembrança das

atmosferas sonoras e das sensações que cercam a melodia. Canções como

Corcovado, Samba de Uma Nota Só e Fotografia possuem seções melódicas tão

sumariamente reduzidas – girando em torno de duas, quando não de apenas uma

única nota – que o sentido deve ser necessariamente complementado pela

dimensão harmônica. Embora boa parte dos acordes usados possam ser lidos

como “acordes de passagem”, eles exercem uma função estrutural na interação

com a melodia. Não podem ser, desse modo, simplificados; as alterações de

sextas, sétimas e nonas não dizem somente respeito ao estilo harmônico, mas são

instâncias determinantes na definição do sentido melódico. Alteram a percepção

que temos dele.

Uma análise mais apressada desses fatores poderia levar a conclusão de que

a extrema concisão melódica que marcou muitas das canções de Jobim no período

áureo da bossa nova – mais ou menos entre 1958 e 1963 – servia, acima de tudo,

para ressaltar o enriquecimento e alargamento do tecido harmônico no universo da

música popular. A melodia sem nenhum desenvolvimento seria, desse modo,

apenas um pretexto para que se lançasse luz sobre os novos acordes - acordes que

passaram a ganhar maior destaque dentro da nova economia rítmica trazida pelo

violão de João. Sucede, no entanto, que essas melodias jamais foram destacadas

desse jogo harmônico; pelo contrário, foram afetadas e de certo modo

transformadas por ele, mas também garantiram boa parte de sua articulação.

Como elementos de repetição estática, frequentemente reiterados, tornaram-se

núcleos estruturais fortemente delineados em sua dinâmica interna, servindo como

o eixo a partir do qual organiza-se uma sucessão de acordes sintaticamente

frouxos. A melodia mínima tornou-se o principal fator a garantir a coesão de uma

182

“As melodias pouco variadas, insistindo na reiteração de uma mesma nota ou figuração

melódica (transposta em alturas ou não), não pretendem vida autônoma: ainda quando as

cantarolamos ou assobiamos, inconscientemente estamos imaginando ouvir a melodia ligada à

estrutura harmônica correspondente”. (Cf. Brasil Rocha Brito, “Bossa Nova”, In. Balanço da

Bossa e Outras Bossas: Antologia Crítica da Moderna Música Popular Brasileira, São Paulo,

Perspectiva, 2005, p.30)

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estrutura harmônica sintaticamente enfraquecida, ao mesmo tempo em que recebe

desta nuances de sentido que aumentam o seu impacto emotivo, sua capacidade

sugestiva. Isso permitiu que se mantivesse a força da dimensão linear e melódica

da canção, da tradição da palavra cantada à brasileira, ao mesmo tempo que

enfatizava a interferência decisiva da sensação dos acordes sobre essa dimensão.

Em Jobim, a composição geralmente se estrutura a partir do desdobramento

de uma célula mínima que projeta diferentes caminhos harmônicos e jamais

retorna sobre si mesma (o mais corrente entre os compositores populares é

justamente o oposto: organizar a canção em torno de um ciclo harmônico mais ou

menos fechado, que vai sendo preenchido pela melodia). Lorenzo Mammì

chamou a atenção para a singularidade desse modo de criar e para as semelhanças

que ele nutre com procedimentos da música clássica.183 É na maneira de construir

que Tom mais se aproxima de seus mestres do universo erudito. De Villa-Lobos,

nas extensas linhas melódicas feitas da transposição de pequenos intervalos para

cima e para baixo, como em Chega de Saudade e Sabiá. De Chopin, no fato de

colocar a melodia como centro estrutural da composição. De Debussy, na

complexidade e no uso da harmonia. Desde sua Rêverie para piano, passando por

Prélude à l’Après Midi d’Un Faune e por Nuages, entre outras, é comum ouvir o

compositor francês brincando de repetir pequenas frases ou esquemas melódicos

sob diferentes luzes harmônicas. A memória dinâmica reconhece a presença do

mesmo tema que retorna acompanhado de sensações harmônicas diferentes. Não

se trata mais da busca por um complemento de tensão que aponta para novos e

mais distantes horizontes resolutivos - como em Wagner – mas tão somente de

enquadrar de modo diferente um cenário já conhecido.

Estamos falando aqui de um Debussy um pouco menos pulverizado do que

aquele que transparece em Jeux, quando as repetições, embora existentes e

necessárias, são muito mais dispersas e variadas, estabelecendo um vínculo mais

tênue e trabalhoso com a memória. O Debussy do qual foi beber Jobim está mais

próximo de uma concepção melódica horizontal, como a que transparece em

muitas de suas peças para piano, como La Fille aux Cheveux de Lin (do primeiro

livro de prelúdios), o Clair de Lune (Suíte bergamasque) ou Bruyères (do segundo

livro de prelúdios) e que relacionam-se com a própria importância que o canto

183

Ver Lorenzo Mammì, “Prefácio”, In. Cancioneiro Jobim: Obras Escolhidas, 2002.

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teve em seu pensamento musical. De fato, alguns estudiosos notaram que quase

todas a inovações harmônicas de Debussy apareceram pela primeira vez nas obras

vocais (suas mélodies) escritas sobre os versos de poetas simbolistas franceses –

como Verlaine, Mallarmé e o precursor Baudelaire. Foi na tentativa de musicar

esses poemas, buscando estruturas harmônicas e sintáticas de algum modo

comparáveis com os procedimentos desses literatos – elipses, livre associação de

ideias, substituições inesperadas de vocábulos -, que Debussy foi, aos poucos,

forjando um estilo próprio, capaz de combater as “dimensões e a falta de leveza

germânicas”.184 Concorreu para isso uma sensibilidade rara para as relações entre

palavra e música – a base das lieder e da forma canção.185 Vem daí a tendência a

aproximá-lo mais dos simbolistas do que dos impressionistas. Mas ainda quando

harmonizava sobre temas melódicos e palavras, Debussy estava empenhado no

equilíbrio delicado entre continuidade linear e irrupção do instante, entre

encadeamentos e suspensões, no modo como a sensação se inseria nesse jogo.

Tom Jobim estava atento para tudo isso. Foi buscar no compositor francês

uma das fontes para construir o delicado intimismo urbano da bossa nova. Assim

como em Debussy as melodias não mais precisavam contorcer-se em espirais

ascendentes rumo a um objetivo infinito, como acontecia em Wagner, em Jobim

elas não precisavam mais buscar os picos de tensão tão comuns a tradição

romântica do samba-canção que dominou o cenário da música popular nos anos

1940 e 1950. Não precisavam mais correr em direção a alturas cada vez maiores

em busca de pungentes efeitos dramáticos. Podiam, ao invés disso, manter-se na

superfície e ser enriquecidas pela sensação dos acordes, de modo muito

semelhante ao que acontecia com a matéria melódica em algumas peças de

Debussy. A inserção da complexidade harmônica de Jobim no seio da música

popular foi como a inauguração de uma nova dimensão expressiva em nossa

canção – que já existia, mas nunca havia sido empregada com tamanha

profundidade e consciência. Ou, por outra, um investimento na dimensão vertical

da canção, aquela que diz respeito não ao desenvolvimento da melodia no tempo,

184

DEBUSSY, Claude. Monsieur Croche e outros ensaios sobre música. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1989, p.255. 185

“(...) la présence de développements, la juxtaposition de sections et les présentations différentes

du thème initial font du Prélude à l’après-midi d’un faune un amalgame de formes connues, une

fusion de acquisitions de la forme sonate (développement), de la construction par sections du lied

(milieu), et des procédés de la variation. Comme dans la forme lied, le milieu est indépendant des

deux autres volets, ici symétriques, qui l’entourent”. (Cf. Jean Barraqué. Debussy, p.108)

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mas ao impacto do acorde no instante. É o próprio Tom quem explica, de acordo

com suas influências eruditas, esse dois eixos: “O Bach é mais horizontal, o

Debussy é mais vertical. Quer dizer: o Bach não está preocupado com o acorde;

está preocupado com o passado, presente e futuro. Stravinsky, muitas vezes, está

mais preocupado com a verticalidade, com o aqui-agora. A música, como diz

Stravinsky, é uma arte crônica. Para você ter uma melodia, tem que ter passado,

presente e futuro. Agora, para tocar um acorde, é instantâneo. É como uma

pintura”.186

Esse investimento na dimensão vertical da música, mais focada na sensação

do instante do que no encadeamento passado-presente-futuro, é facilmente

percebido nas composições de Jobim, com sua atmosfera harmônica diáfana,

recheada de acordes sem muita definição tonal (acordes diminutos, acordes com

sétima e quinta bemolizada), e de notas melódicas que evitam enfatizar os centros

harmônicos - assim como acontece em seus arranjos, com frequência baseados em

instrumentos de sopro de ataque pouco definido, como a flauta. Parece, contudo,

ganhar sua realização mais plena nas interpretações do próprio João Gilberto.

Nele, o valor expressivo dos acordes é continuamente contrabalançado pelo fluxo

horizontal da voz, pelo seu compromisso com a comunicação do conteúdo lírico

da canção. Há um diálogo constante entre a movimentação dos elementos vocais e

a condução ritmítca/harmônica do violão. Se a melodia apresenta uma alta dose de

agitação, seja através de constantes mudanças nas alturas (melodias que

caminham muito), seja por uma intensa ativação rítmica (não há mudança na

altura, mas ataques reiterados separados por pequenos intervalos de tempo), o

violão tende a manter uma atividade mais pausada e uniforme, como se não

quisesse competir com o canto. Outras vezes, quando o próprio canto torna-se

mais rarefeito ou estável, o instrumento de cordas aumenta sua movimentação,

ampliando o número de acordes usados nas seqüências e aumentando sua variação

rítmica – alternando células rítmicas em torno da baliza estável do bordão. Nesses

momentos, os acordes praticamente saltam para o primeiro plano, a condução das

vozes internas ganhando certa primazia sobre a voz melódica principal. Mas há

também momentos em que tanto o violão quanto a voz apresentam uma baixa taxa

186

Cf. Almir Chediak. Songbook Noel Rosa, v.3, Rio de Janeiro, Lumiar Editora, 1991, p.14-18.

(grifo meu)

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de atividade. Muitas vezes, acordes permanecem estacionados por vários

compassos, como atmosferas embaladas somente pelo pulso sincopado das três

notas atacadas pelo indicador, médio e anular, e pelo bordão regular e hipnótico

executado pelo polegar. Geralmente são acordes com baixa dinâmica tonal, que

por si só tendem a permanecer estáticos.

Talvez o primeiro grande exemplo desse tipo de procedimento esteja na

primeira gravação de Aos Pés da Cruz. Se comparada com a gravação clássica de

Orlando Silva (grande ídolo de João), percebemos nitidamente o modo como

nesta versão a introdução, com naipes de metal reproduzindo um trecho da

melodia, é substituída por uma entrada ao som de um único acorde de violão que,

sem indicar qualquer direção, nos lança numa temporalidade suspensa. Outro

exemplo talvez ainda mais indicativo nos é dado pelo modo como João desativa a

própria seqüência harmônica original que está no início de Chega de Saudade,

substituindo-a, mais uma vez, pela transição de acordes com maior tempo de

duração. São momentos extremamente contemplativos, nos quais experimentamos

com maior intensidade a temporalidade suspensa que caracteriza a bossa nova.

Dessa temporalidade deriva parte de sua leveza. Uma leveza mais calcada na

sensação de um tempo dilatado e vazio (no sentido de descarregado, ocioso,

jamais ansioso) do que no encadeamento narrativo – seguindo um pouco a

sugestão de Jobim, mais pintura do que história.

Há, na música de Jobim e de João no período da Bossa Nova, uma

serenidade de ponto de vista – como se o mundo estivesse provisoriamente

resolvido, e o presente finalmente pudesse ser fruído em toda a sua plenitude - que

não apenas a aproxima curiosamente da placidez da pintura impressionista, mas

também faz entrever nela uma qualidade mais eminentemente clássica. O termo

“clássico” deve ser mais uma vez entendido em contraposição ao termo

“romântico”. De modo nada fortuito, o crítico e historiador Giulio Carlo Argan

utilizou a pintura impressionista como ponto de partida para pensar a relação entre

essas duas vertentes no universo da arte moderna. Seu argumento é de que, uma

vez que a pintura impressionista mudou radicalmente as premissas, as condições e

as finalidades do trabalho artístico, colocava-se então o problema da avaliação de

sua dimensão histórica. Era preciso esclarecer se o “impressionismo orientava-se

por uma tendência clássica ou romântica, ou se resolvia (e como) a antítese destas

duas posições, não mais consideradas como situações históricas determinadas e

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sim como eternas polaridades do espírito humano”.187 Clássico e romântico

referem-se a duas grandes fases da história da arte: mundo Greco-romano e

Renascimento versus arte cristã da Idade Média. Nesse sentido, o clássico é

descrito nos termos de uma arte que propõe a representação de uma concepção

positiva do mundo, em sua totalidade espaço-temporal. Na base dessa concepção

estaria uma relação harmônica, integrada, entre o homem mediterrâneo e a

natureza circundante. Uma certa noção de equilíbrio, de resolução e síntese,

costuma marcar a estética baseada nesses preceitos.

O romantismo, por outro lado, seria marcado pela consciência profunda e

trágica do divórcio entre homem e natureza. Consciência esta que avulta,

sobretudo, no homem setentrional, para quem a natureza se constitui como força

obscura e ameaçadora. O resultado desse divórcio talvez seja o aguçamento do

subjetivismo, a imersão fascinada do sujeito em seus próprios desvãos. Não mais

tendo o mundo externo como aliado, ele se compraz com as descobertas e as

delícias do mundo interior. Permanece, contudo, o anseio profundo da unidade

perdida, anseio que na estética romântica será muitas vezes permeado pelo signo

do desespero. Não o equilíbrio, mas a busca da máxima tensão. Pois é através dela

que se consegue, numa resolução mística, recuperar o paraíso perdido da unidade

com o mundo. Sendo assim, excesso e tensão são marcas fundamentais do

romantismo.

Obviamente, as divisões são bem mais dinâmicas e fluidas, o que nos

permite reconhecer aspectos clássicos num artista marcadamente romântico –

como Baudelaire fez em relação a Wagner – e vice-versa, e até reconhecer artistas

que participam com igual intensidade das duas tendências – como talvez seja o

caso do próprio Baudelaire. Mas como linhas gerais de concepções de mundo que

de algum modo se traduzem sensivelmente através da arte, a distinção ampla e

esquemática entre clássico e romântico pode ajudar a revelar as matrizes da

sensibilidade de determinada época e lugar, de determinada cultura. É desse

modo, por exemplo, que Argan avalia o surgimento simultâneo do fauvismo e do

expressionismo, no início do século XX. Apesar de terem em comum a premissa

histórica do impressionismo, as duas correntes “refletem o contraste de fundo

entre a cultura francesa e cultura alemã, entre um eterno classicismo e um eterno

187

Cf. Giulio Carlo Argan, “As Fontes da Arte Moderna”, In. Novos Estudos(Cebrap), Nº18, set.

1987, p.50. (grifo meu)

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romantismo”. Como princípio comum às duas correntes temos a sensação, que se

expressa no uso da cor pura, e torna-se definidora da condição existencial, do ser-

no-mundo do homem moderno. Mas enquanto os fauves aspiram pela resolução

sem resíduos das ressoantes áreas de cor nas duas dimensões do quadro, em “uma

espécie de exaltação pânica, uma apropriação total da realidade”, como sugere

Argan, para os expressionistas a violência das sensações é o signo de profundos e

convulsivos complexos. Filhos de Van Gogh e Munch, eles revelam “aquela visão

deformada, aquela sensação exasperada e furiosa, aquele juízo severo sobre as

coisas do mundo”, “produto de antigos terrores, de culpas longínquas e obscuras

repressões”. O historiador emprega então a distinção que Maurice Denis havia

proposto a respeito dos Nabis: enquanto a deformação dos fauves é objetiva, a dos

expressionistas é subjetiva. O que indica também a óbvia associação que muitas

vezes se fez entre romantismo e profundidade (emocional, psíquica, etc);

classicismo e superficialidade.

É possível que uma parte dessa comparação também seja válida para o caso

da música. Vimos que o percurso traçado pelos românticos a partir do século

XVIII já indicava uma ênfase cada vez maior nos parâmetros secundários como

instâncias de articulação do sentido musical. Estruturas emergentes e contínuas –

e que enfatizavam, baseadas num modelo organicista, a mudança, o crescimento,

o desenvolvimento e a abertura - tendiam a substituir a discontinuidade

hierárquica que caracterizava a sintaxe clássica. A imediaticidade das sensações

(timbres, texturas, dinâmicas de volume, adição de notas harmônicas que valem

pelo mero efeito sonoro, etc...) passa a integrar com mais força o discurso tonal

clássico, muitas vezes sobrepondo-se a ele, minando-o vagarosamente por dentro.

Mas se em Wagner a sensação ainda constitui um meio a mais para se atingir o

paroxismo da tensão e do estado de desespero, do clímax que leva ao sublime e

culmina na unidade final, em Debussy ela tende a se desvincular de tal função.

Tende a servir a propósitos bastante diferentes.

Assim como aconteceu com o uso da cor pura, princípio comum que teve

resultados essencialmente diferentes nos fauves e nos expressionistas, a qualidade

e o papel da sensação serão redefinidos na música de Debussy, tendendo a ser

incorporados dentro de uma concepção estética que difere fundamentalmente

daquela do romantismo. E, nesse sentido, não deixa de ser curioso o fato de que a

serenidade que caracteriza o ponto de vista da bossa nova esteja muito mais para

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os quadros de, digamos, Henri Matisse (que Argan considerava , do que para

aqueles de Van Gogh e Munch. Numa comparação livre, é possível notar como os

interiores de Matisse - com suas janelas emoldurando e trazendo para a esfera

íntima o mundo externo, sua profusão de cores puras e excitadas resolvendo-se

estranhamente em cálida e plácida atmosfera interior - poderiam ser perfeitamente

habitados por músicas como Corcovado e Fotografia. As mesmas sensações das

cores puras que, no caso de Munch, servem para ampliar o efeito dramático de um

quadro como O grito, em Matisse serão usadas para fazer com que a pintura se

torne, em suas próprias palavras, “uma poltrona confortável” - e, de fato, em seus

interiores as figuras humanas estão sempre sentadas ou deitadas, em momentos de

íntimo aconchego e devaneio, de prazeroso ócio contemplativo.

É possível que houvesse nesse modo de “re-harmonizar” as sensações,

presente tanto em Debussy quanto em Matisse, uma busca por leveza e frescor

expressivos que de certo modo também pautou a bossa nova de Tom e João, em

sua reação aos excessos sentimentais e estilísticos do samba-canção que passou a

dominar as rádios a partir de meados da década de 1940. Algo do delicado espaço

de muitas peças de Debussy parece ter sido incorporado na criação do novo

intimismo urbano proposto pela bossa nova. Os desafios musicais enfrentados

eram de algum modo semelhantes. Se Debussy, contudo, reivindicava, em cartas e

artigos, a retomada de certas qualidades da tradição do classicismo francês (“J’ai

surtout cherché à redevenir français”; “A música francesa é clareza, elegância,

declamação simples e natural”)188, combatendo o espírito teutônico de Wagner

pela afirmação de uma essência francesa, Tom e João representavam uma linha de

exceção no quadro cultural brasileiro. De fato, um dos motivos de fascínio (e de

repúdio) da bossa nova está no contraste criado entre sua rigorosa contenção

musical, que prima pela discrição e sutileza, e a propensão algo carnavalizante,

dionisíaca, de muitas das nossas manifestações culturais.

Pouco importa, para o presente argumento, o teor de simplificação

mistificadora embutido na ideia de uma cultura francesa que prima pela clareza e

pela elegância discreta, ou de uma qualidade essencialmente brasileira baseada na

exuberância corporal, no exagero e na embriaguez extática. Pouco importa se o

mito é de fato verificável em todas as instâncias da realidade, se não passa de uma

188

Cf. Claude Debussy, op. Cit, p.241.

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fabulação, se é totalizante ou se permite exceções... Importa antes sua existência

como vetor histórico, como poderoso pano de fundo, como tônica da complexa e

variada trama cultural de uma determinada época. Apoiando-se no vetor

classicista francês, Debussy pôde melhor justificar suas investidas contra o que

havia de excessivo na tradição wagneriana. De modo inverso, colocando-se na

antípoda da concepção dominante de um Brasil épico - do Estado Novo de

Vargas, dos sambas “sinfonizados” de Ary Barroso, do Maracanã, das obras

faraônicas de Brasília -, a bossa nova de Tom e João deu origem a uma versão

algo diminuta, íntima, solar e discreta, da modernização pela qual passava o país

no fim dos anos 1950. Ainda que sua revolução musical tenha se baseado em

grande parte na retomada da raiz entoativa que animava os sambas da Era de

Ouro, assim como em seu balanço, a reformulação do Brasil contida na música de

Tom e João era, apesar de sua plácida aparência, profunda e violenta, uma vez que

contrariava clichês já bastante incorporados.189

A aspereza do batuque de samba, as letras debochadas das marchinhas, os

excessos de gesto e cores do carnaval, o gosto da retórica pomposa, o tutti-frutti

hat de Carmen Miranda e os dribles de Garrincha, soavam demasiadamente

expansivos e distantes do canto pequeno de João Gilberto ou da timidez de Nara

Leão. Apoiado em suas vastas extensões territoriais, na pujança de sua natureza, e

oscilando constantemente entre os estigmas de país colonizado e condenado ao

atraso, e a utópica promessa da realização de uma nova humanidade - preso no

círculo vicioso entre os extremos da euforia e da depressão - o Brasil parecia mais

fortemente associado a imagens de eloqüência e exagero. Além disso, as

manifestações tidas como as mais típicas e espontâneas de nossa cultura

indicavam um gosto pela curva, pela voluta e pelos excessos, que remontava a

uma sensibilidade barroca. E não à toa, pois como sublinha Antonio Risério, “os

nossos processos sincréticos tiveram seus dias inaugurais em pleno império da

189

Numa palestra proferida no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o compositor Caetano

Veloso descreveria a potencial violência que se escondia por trás da aparente placidez da Bossa

Nova nos seguintes termos: “Espero, ao contrário, poder convencer os aqui presentes de que, do

ponto de vista dos que fizeram o tropicalismo, a bossa nova de João Gilberto e Antônio Carlos

Jobim significava violência, rebelião, revolução e também olhar em profundidade e largueza,

sentir com intensidade e coragem, querer com decisão. E tudo isso implica enfrentar os horrores de

nossa condição: ninguém compõe Chega de Saudade, ninguém chega àquela batida de violão sem

conhecer não apenas os esplendores, mas também as misérias da alma humana”. (Cf. Caetano

Veloso, O Mundo Não é Chato, (Eucanaã Ferraz org.), São Paulo, Companhia das letras, 2005,

p.47)

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cultura e da sensibilidade barrocas, que, atravessando como linha de fogo o arco

dos séculos, marcariam para sempre as criações brasileiras. Na arquitetura, nas

artes plásticas, na música, na literatura, na culinária, no carnaval, no cinema, no

futebol”.190 O próprio Tom Jobim faria uma contraposição entre o caráter

extremamente contido de parte das melodias bossanovistas e a matriz barroca à

qual se filiavam a maioria das canções no Brasil: “Na parte melódica houve

também diferenças sérias com o que se vinha fazendo, houve um certo abandono

do barroco brasileiro, por assim dizer. Do barroco que tinha o choro, a seresta.

Não é propriamente um desprezo a isso. A introdução de Chega de Saudade, por

exemplo, é barroca, tem aquele desenho meio de seresta. Mas ao mesmo tempo o

Desafinado e a Nota Só (Samba de Uma Nota Só) reagem contra isso”.191

Não admira, portanto, que os traços clássicos de clareza e elegância

(entendida, no contexto francês, como quase sinônimo de discrição), reivindicados

e frequentemente realizados por Debussy, tenham encontrado em Tom Jobim e

em João Gilberto um caminho de entrada e de bem-sucedida fusão com o rico

material da música popular brasileira. Se o Brasil já era de certo modo debussysta

na limitada esfera da música de concerto, como notou Darius Milhaud nos anos

1920, com Tom e João parte dessa linhagem atravessaria, em inesperado

florescimento e impecável síntese (e obviamente temperada pelas informações

musicais próprias ao seu tempo), o universo da canção comercial. Delicados

acordes desdramatizados, valorizados sobretudo por sua beleza plástica, tornaram-

se parte fundamental de uma música de interior, bastante atmosférica,

introspectiva, lírica, “enxuta porque derramada pra dentro”.192 E, de certo modo, a

poética das letras das canções feitas nesse período seguiu a mesma tendência anti-

dramática e anti-narrativa que parecia emanar do próprio tecido musical.

O que literalmente salta à vista nas letras dessas canções é a abundância de

signos visuais. Signos capazes de criar, mais do que metáforas, encaixes e

associações para os olhos. Algumas delas lembram verdadeiras pinturas sonoras.

Em Fotografia, por exemplo, com letra e música de Jobim, o narrador comenta

que o olhar da mulher cortejada parece “acompanhar a cor do mar” diante das

190

Cf. Antonio Risério, A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros, São Paulo, Ed. 34, 2007, p.

248. 191

Cf. Zuza Homem de Mello, op.cit.., p.97. 192

Expressão empregada por Chico Buarque na abertura do Songbook dedicado a Tom Jobim.

Ver: Almir Chediak. Songbook Tom Jobim Vol.1, Rio de Janeiro, Lumiar Editora, 1991.

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mudanças de luz que ocorrem na transição do dia para a noite. A letra não desvela

propriamente a narrativa de uma conquista amorosa, mas quadros estáticos e

descritivos de uma situação (fotografias), que se articulam perfeitamente com a

ambiência harmônica algo flou. O tempo surge como sucessão de instantes

suspensos, conectados com a circularidade dos ciclos naturais, ao invés da

linearidade cronológica e rememorativa dos sambas-canções. Esta cede lugar ao

predomínio da elipse e da descrição de situações como modo de construção de

sentido. O foco da canção muitas vezes é mais direcionado para o cenário do

acontecimento do que para o acontecimento em si, que nada mais é, como coloca

a própria letra, do que “aquela velha história de um desejo”. É possível ver na

transição contínua entre o olhar e o mar, descrita pela letra, como se fossem os

dois feitos da mesma matéria, a tentativa de restaurar uma temporalidade onde os

tempos humanos se encontram em fase com o tempos da natureza, numa

continuidade macia e harmoniosa. É uma aspiração recorrente na bossa nova, que

pode ser flagrada em muitos dos seus sucessos: a mulher que passa reproduzindo

o balanço das ondas, em Garota de Ipanema; a quantidade de “peixinhos a nadar

no mar” servindo de parâmetro para a demonstração afetiva dos “beijinhos que

darei na sua boca”, em Chega de Saudade (essa e a anterior com letra de Vinícius

de Moraes); o barquinho que desliza no macio azul do mar enquanto a tarde cai,

como se ambos estivessem conectados a uma só engrenagem de espaço-tempo

(letra de Ronaldo Bôscoli). É uma unidade próxima daquela que se encontra nos

quadros impressionistas, onde a ausência de contornos e a utilização da pincelada

de cor como estrutura básica faz com que todos os elementos representados sejam

constituídos por um mesmo princípio, por uma mesma substância. Perde-se em

distinção e profundidade, ganha-se em integração de superfície.

Do mesmo modo, em Corcovado, as divagações descritivas e melancólicas

da voz que canta são subitamente interrompidas pela constatação de que “da

janela vê-se o Corcovado e o Redentor, que lindo!”. Mais uma vez, a narração

sentimental cede lugar ao impacto crescente da sensação do instante. Emoldurada

pela janela, como um quadro, a paisagem participa intensamente do chamado para

a felicidade que a canção propõe. Ela, de fato, compõe o ambiente íntimo dos

sonhos, junto com o “cantinho” e o “violão”. São borradas as fronteiras entre

interior e exterior – o morro do Corcovado está fora e dentro. Ao mesmo tempo,

sugere-se a definição de um ponto de vista urbano que efetivamente domestica o

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entorno, fazendo com que a monumentalidade de uma montanha passe a caber na

esfera íntima. A linguagem da bossa nova é totalmente refratária a representações

de grandiosidade e eloqüência.

É curioso que a intensificação da relação com a paisagem aconteça

justamente em um momento de intenso crescimento urbano da cidade do Rio.

Pode ser que haja algo de compensatório nisso – a natureza ameaçada pela

modernização migra e sobrevive no universo simbólico da canção. É possível que

algo semelhante tenha ocorrido com a representação da paisagem entre os pintores

impressionistas. A atmosfera cada vez mais comprimida e asfixiante de cidades

que desde meados do século XIX já conviviam com um alto grau de urbanização,

como Paris e Londres, acabava por tornar o ar puro e amplidão espacial dos

campos mais intensamente estimulantes. A necessidade de alívio da rotina e

densidade urbanas trouxe ao campo e às montanhas uma comoção que eles

outrora desconheciam. O caráter algo compensatório da representação da natureza

na pintura impressionista seria notado também por Lévi-Strauss, para quem o

“enobrecimento (...) pictórico de paisagens dos arredores” devia-se não apenas a

um novo olhar capaz de revelar o belo onde antes se via apenas banalidade, mas

“sobretudo porque as grandes paisagens que inspiraram Poussin são cada vez

menos acessíveis aos homens do século XIX. Muito em breve elas não existirão

mais”.193 A “modéstia” nas escolhas temáticas dos impressionistas seria, portanto,

não apenas uma escolha de território artístico, a demarcação de uma diferença em

relação ao passado, mas também o reflexo da nova relação de domínio do homem

sobre a natureza – domínio que resulta cada vez mais na paulatina destruição do

meio ambiente, na destruição mesmo dos grandes temas pictóricos de outrora.

Mas se o homem do século XX passaria a viver num mundo que comportava um

número cada vez menor de recantos de natureza protegida - tão caros aos

impressionistas – talvez seja possível dizer que no século XIX ainda havia uma

possibilidade de equilíbrio. No caso da Bossa Nova, a realização estética de

semelhante equilíbrio falava de uma experiência urbana bastante singular,

específica de cidades como o Rio de Janeiro, onde a aliança entre paisagem

natural e paisagem urbana é muito forte, amalgamando-se ambas em constantes

193

Cf. Georges Charbonnier, Entretiens Avec Claude Lévi-Strauss, Paris, Les Belles Lettres, 2010,

p.132.

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indefinições entre uma e outra, acenando para uma possibilidade de equilíbrio

perfeito entre natureza e cultura (aspiração clássica?).

Na Europa do século XIX a percepção da natureza foi mais aberta e variada

do que em qualquer época anterior, enriquecida não apenas por viagens, mas

também pelas experiências de poetas, pintores e naturalistas. Há uma considerável

mudança entre a experiência da natureza entre os românticos e aquela que se

encontra nos quadros de Monet. Para Monet e os impressionistas a natureza era o

local estético destinado ao deleite visual de homens despreocupados, e não mais a

força descomunal e ameaçadora de outrora. Ao invés de causadora de angústias e

medos, fonte de prazer e bem-estar. A escolha por lugares iluminados pelo sol,

com flores e vegetação, com casas brancas circundadas pela água azul traziam

“elementos de um gosto comum no prazer desfrutado no mundo ao ar livre,

respondendo a um apetite por brilho, espaço e liberdade”.194 Essa relação mais

positiva e aberta com o meio ambiente revela-se, sobretudo, nos quadros que

tematizam o mar. A relação com a água e com o mar pode mesmo ser tomada

como ponto de contato entre a pintura impressionista, a música de Debussy e a

bossa nova. Foi o jogo das luzes sobre a superfície d’água que sugeriu aos

impressionistas a nova técnica pictórica. Reduzido em suas dimensões, o mar

desses pintores está sempre manso e receptivo - é o espelho do céu, por onde bem

poderia deslizar o barquinho da bossa nova.

A obsessão de Monet pela água o levaria, ao longo do tempo, a ampliar

consideravelmente sua presença nos quadros. Em sua última fase, a das grandes

Ninféias, a superfície da tela é quase que inteiramente coberta pela representação

de lagos, tangenciando a abstração. Resta pouco espaço para os demais elementos

da paisagem. Em seu trajeto impressionista, Monet se depara com a

impossibilidade de copiar a natureza. Sua pintura começa então a dedicar-se à

criação de símbolos – uma síntese dos elementos formais do mundo visível

(linhas, planos e cores) e da subjetividade do artista. Nele, o impressionismo

reencontra o simbolismo; e a representação da água ganha novos significados

espirituais.

Já Debussy parece também querer incorporar a fluidez e o comportamento

deslizante e orgânico da água em suas próprias composições. Tudo o que é

194

Cf. Meyer Schapiro, Impressionismo: reflexões e percepções, São Paulo, Cosac & Naify, 2002,

p.109.

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ambíguo, flexível, sem forma definida, lhe interessa. De Reflets dans l’eau, da

série Images, passando por La Mer e chegando a sublimação da água nas não

menos impalpáveis Nuages, da série Nocturnes, uma presença líquida perpassa

sua obra. E não apenas nas indicações dos títulos, mas, sobretudo, na construção

de comportamentos musicais que, baseados em formas livres, não se deixam

prever, modificando-se organicamente, mas mantendo, ainda assim, uma unidade.

Liquida também nos parece a forma de sua música.

Nem é preciso lembrar que, do mesmo modo, a bossa nova ficará

fortemente associada à presença da água e do mar. Antes dela, não eram muito

comuns as referências a este último mar na música popular carioca. Noel Rosa

fala, em O X do Problema, da “areia de Copacabana”, bairro também presente

como “princesinha do mar” na canção homônima de João de Barro e Alberto

Ribeiro, nos anos 1940. Fora isso, não há muitos outros exemplos. Mas a

tendência a incorporar a paisagem à beira-mar carioca nas letras e no jeito das

canções já aparece no primeiro sucesso de Jobim, Teresa da Praia (1953). Pouco

depois, confirma-se em Sinfonia do Rio de Janeiro - outra parceria com Billy

Blanco. Parece que a bossa nova colocou a música urbana carioca a caminho do

mar. E o motivo parece ter raízes históricas: é nos anos 1940-50 que toma impulso

a formação de uma cultura litorânea no Rio de Janeiro, dos passeios pelo calçadão

da praia, dos banhos de mar e dos apartamentos de classe média em Copacabana.

Ao não definir contornos precisos entre a paisagem externa e o universo interior

dos afetos humanos, a bossa nova acena para uma nova relação entre homem e

paisagem natural, que impregnava o modo de vida de uma burguesia carioca que

se voltava para as praias da Zona Sul.

É desse modo que a temporalidade apressada dos “50 anos em 5” do

desenvolvimentismo de JK, a ânsia de intenso progresso material num curto

prazo, a vontade de pular etapas e atingir com rapidez o futuro, convivem com a

temporalidade estática de uma paisagem cada vez mais incorporada ao modo de

vida da cidade. O aumento da frota de veículos e da velocidade da vida urbana

convivem com o nascimento de uma “civilização de praia” que incorpora o tempo

suspenso da então pouco habitada Ipanema ao seu caráter mais íntimo. É o terreno

fértil para o nascimento de utopias, como a “modernidade leve”, proposta por

Lorenzo Mammì, capaz de conciliar o tempo cronometrado da modernidade

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produtiva com o tempo vazio e positivamente ocioso de um paraíso edênico à

beira-mar.195

Essa mesma contemplação desinteressada de uma “inútil paisagem”, que

aponta para um tempo vazio, fora das constrições do cotidiano produtivo de uma

cidade moderna, também se faz presente nas pinturas impressionistas. É comum

encontrar no interior desses quadros figuras humanas que nada mais fazem do que

olhar a paisagem, espelhando o ato do pintor e do próprio observador da tela. São

representações de figuras humanas estáticas, concentradas apenas na volúpia de

olhar. O que está em jogo é o próprio ato de contemplar.

Ronaldo Bôscoli descreveu a bossa nova como “o grande feriado”. Isso

aponta não apenas para o momento histórico feliz pelo qual o Brasil passava, mas

também para a serenidade do ponto de vista instaurado pela música de Tom e

João, com seu tempo afetivo e indefinido, em tudo oposto ao tempo do relógio e

dos compromissos. Do modo muito semelhante, os quadros impressionistas foram

descritos por Meyer Schapiro como trazendo o ponto de vista de um turista

parisiense de férias: “Nos quadros impressionistas, as agradáveis ocasiões

estéticas no ambiente público, com suas conotações de prazer e liberdade,

tornaram-se os temas principais da arte.(...) na segunda metade do século XIX,

uma parte cada vez maior da vida pessoal do público voltou-se ao deleite da

natureza e do espetáculo urbano. A atitude estética tornou-se para muitos um

ingrediente indispensável de seu modo de vida, um símbolo e, até mesmo, o

suporte de uma ideologia que, ao afirmar a liberdade do indivíduo, teve uma

penetração crítica, às vezes polêmica, afirmando o valor dos sentidos e seus

prazeres em oposição a uma moral tradicional ou visão religiosa de seu valor

inferior”. 196

Uma concepção temporal está embutida nessa atitude diante da paisagem. A

contemplação exige por si só um hiato, uma suspensão temporal. Talvez as séries

de pinturas feitas sobre um mesmo tema revelem de forma mais clara a concepção

do tempo no impressionismo. A mais célebre delas foi a que Monet fez sobre a

catedral de Rouen, em 1894. Pintada sob diferentes luzes em diversos horários do

dia, e com pequenas mudanças de enquadramento, a série é um dos mais bem

acabados exemplos da aspiração impressionista de “exprimir a sensação visual em

195

Ver Lorenzo Mammì, “Prefácio”, In. Cancioneiro Jobim: Obras Escolhidas, p.18. 196

Cf. Meyer Schapiro, op.cit.., p.100.

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sua absoluta imediaticidade”.197 Mas justamente por se constituir numa série, uma

sucessão linear de quadros, ela acaba por depor de forma clara sobre a descoberta

da natureza e do mundo como devir, como eterna mudança. Não tendo mais como

finalidade a representação dos eternos valores religiosos e morais, esses pintores

lançaram-se na sensação do efêmero, forjando uma poética do instante. Este,

como algo insubstituível, ganha espessura, pois jamais voltará a ser. Como tudo o

que existe inclui-se nesse estatuto, de agora em diante qualquer coisa é passível do

interesse de um pintor.

Se os impressionistas desenvolveram uma técnica pictórica rápida, que

ansiava por captar o momento presente em toda a sua fugacidade, essas séries

podem ser tomadas como pequenas narrativas do instante. Mas ao contrário do

que sucedia nas narrativas românticas, aqui o encadeamento é mais frouxo,

formado por elipses incertas e cambiáveis, sem indicação de causa e efeito (nada

acontece nos quadros) e sem direcionalidade. Meyer Schapiro escreve que “o

momento nos quadros de Monet não é parte de um processo direto no tempo, não

tem clímax, nenhuma comoção; e não pede nenhuma interpretação. Não assinala

um estado ou consequencia da vontade humana que nos foi solicitado

compreender”.198 De fato, Monet pintou a catedral em horários meio indefinidos,

o que faz com que a ordem dos quadros possa ser modificada sem qualquer

prejuízo do fluxo temporal. Noções como início, meio e fim tornam-se incertas.

Mas tampouco se pode falar de puro congelamento. O que há é uma

tentativa de captar no espaço bidimensional da tela o próprio fluxo contínuo do

tempo, não pelo mecanismo narrativo convencional, que começa a ser desativado

com o Realismo de Courbet, mas através de sua ação sobre um elemento estático.

Ação esta que coloca em xeque a própria identidade fixa desse elemento: a

catedral de Rouen torna-se diferente em cada quadro, pois o tempo agiu sobre ela.

A luz de cada momento do dia não é apenas uma contingência passageira e

exterior a um objeto imutável: ela modifica profundamente seu caráter, participa

dele. Por outro lado, as diferenças sutis de enquadramento atentam para o outro

lado da moeda: ainda que a catedral permanecesse a mesma, jamais

conseguiríamos repetir exatamente o ponto de vista. Em outras palavras: jamais se

visita o mesmo lugar duas vezes. Os mares e lagos do impressionismo deságuam

197

Cf. Giulio Argan, Arte Moderna, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.98. 198

Cf. Meyer Schapiro, op.cit.., p.205-206.

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no rio de Heráclito. Muda a natureza e muda o observador – que não mais pode

ser destacado dela. Do mesmo modo, não há realidade fora da percepção humana,

e essa descoberta determina, em grande parte, o fim do ciclo histórico da pintura

impressionista.

Importa-me ressaltar que a dinâmica temporal de Monet é construída sobre a

tensão entre o caráter progressivo do tempo e a permanência estática de um

elemento – que embora incessantemente modificado, permanece reconhecível. O

resultado é contraditório: a repetição provando a própria impossibilidade de

repetição. Ora, essa mesma concepção está no âmago da música de Tom e João,

na qual “a impossibilidade de repetição” e a “renúncia, portanto, ao domínio do

tempo” foi uma descoberta fundamental.199 E o caminho que leva até ela passa

também pelo desenvolvimento do estilo maduro de Debussy. Uma pista nos é

dada pelo comentário de Mammì: “É tentando combinar a modulação contínua de

Wagner com as repetições obsessivas de alguns poemas de Les Fleurs Du Mal

(Cinq Poèmes de Baudelaire, 1889), muito mais do que por uma súbita influência

exótica, que Debussy alcançará um estilo pessoal”. Em Prélude à l’après-midi

d’un faune, o tema de flauta que perpassa toda a composição é harmonizado de

diferentes formas, ganhando, a cada vez, novas cores e luzes – como a catedral de

Monet. O mesmo acontece com o tema de Nuages, da série dos Nocturnes – como

se fosse a mesma nuvem, modificando-se com o vento, mas conservando sua

unidade. Dizer a mesma coisa duas vezes, mas de modo diferente, é um dos traços

definidores não apenas do estilo de Debussy, mas também de Tom Jobim. Pois

nele, “mesmo quando os motivos são análogos, temos a nítida impressão de que

estão sempre evoluindo por caminhos sonoros diversos, pois a alteração e a

variedade de seus acordes de apoio transformam as funções harmônicas das notas

idênticas, fazendo-as soar como “outras”.200

Embora suas músicas quase sempre sigam a estrutura clássica A-B-A, o

retorno à primeira parte nunca é o retorno do mesmo. Quanto mais sumário e

simplificado for o material melódico, mais patente fica esse modo de construir.

Samba de Uma Nota Só, Fotografia e Corcovado são espécies de testamentos

disso, todas elas com longas sessões apoiadas sobre melodias feitas com uma ou

199

Cf. Lorenzo Mammì, “Canção do Exílio”, In. Três Canções de Tom Jobim, São Paulo, Cosac

Naify, 2004, p.28. 200

Cf. Luiz Tatit , “Canção do Exílio”. In. Três Canções de Tom Jobim, São Paulo, Cosac Naify,

2004, p.77.

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duas notas apenas. Melodias que, sem a harmonia, ficam praticamente destituídas

de significado – harmonias que não podem ser simplificadas sem que se altere

drasticamente o sentido da composição. Nas canções de Tom Jobim, os acordes

longe de serem um adorno, assumem funções estruturais que interferem

diretamente no sentido melódico. Também nele encontramos um investimento na

dimensão vertical da canção, aquela que diz respeito não ao desenvolvimento da

melodia no tempo, mas ao impacto do acorde no instante.

João Gilberto, por sua vez, não apenas re-harmoniza as canções,

enriquecendo-as com acordes de modo que cada repetição se conduza por

caminhos diferentes, como também recria, com rubatos e legatos, a estrutura

métrica do canto, colocando o continuum melódico ora em fase, ora em

defasagem com a batida sincopada do violão - criando, desse modo, uma sensação

de diferenciação do mesmo análoga àquela que encontramos nas séries de Monet.

É como se escutássemos o lento trabalho do tempo no interior das coisas, em seu

eterno fluxo, mudando-as incessantemente.

Em diferentes contextos e épocas, diferentes linguagens falam da figura

ideal do homem moderno, definido pela autenticidade das próprias experiências, e

da sensação como base da condição existencial, do ser-no-mundo desse homem.

Os termos do discurso tendem a ser, nos casos mencionados, marcados por uma

luminosidade positiva e por uma leveza e superficialidade que de certo modo

diferem da profundidade sentimental e da tensão românticas. Como na música de

Tom e João, também na pintura impressionista e na música de Debussy o culto da

lembrança cede lugar à delícia do instante, na impossibilidade melancólica da

repetição. Chega de Saudade.

...

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4 Quadro 3 – Ritmo, movimento e corpo

Antes de mais nada, a cultura escrava manifestava-se através do som. Era no

plano dos ouvidos, talvez mais do que em qualquer outro, que se notava com

força a presença africana nas Américas. Era também na dimensão imaterial dos

sons que esses escravos, uma vez despojados de praticamente todos os pertences

que poderiam trazer de sua terra natal, podiam buscar algum sentimento de

familiaridade e refúgio daquela nova e hostil realidade. Principalmente através da

música. É natural, portanto, para os escravos que chegaram ao Novo Mundo, que

o canto tenha sido, desde sempre, um meio de arregimentar forças. Forças de

resistência, que traziam um sentido de ordem, pertencimento e prazer à

dilacerante experiência da escravidão. Que refundavam o princípio de unidade e

soberania sobre um corpo que não mais pertence ao seu portador. Um corpo que

foi convertido em mercadoria; desumanizado; que tornou-se objeto de venda, de

troca, ventre reprodutor gerador de mais riqueza; máquina descartável,

incansavelmente submetida ao extenuante trabalho da lavoura.

A vinda de africanos como escravos para o Novo Mundo foi também o

encontro não apenas de distintos universos sonoros, mas de distintas formas de

conceber a música. Enquanto passeava nos arredores de New Orleans numa tarde

de domingo em 1819, o engenheiro e arquiteto Benjamin Latrobe ouviu de

repente “o barulho mais extraordinário, que eu achei que viesse de algum moinho

de cavalos, os cavalos pisando no piso de madeira”. Orientando-se para a fonte

sonora, Latrobe chegou a uma área aberta nas adjacências da cidade, onde mais ou

menos quinhentos negros formavam grupos circulares, no meio dos quais

escravos instrumentistas tocavam, enquanto o restante das pessoas dançava. Era a

famosa Congo Square, local que havia sido liberado para que pudessem, nos dias

de domingo, produzir em paz seus sons e danças. As descrições de Latrobe falam

de uma percussão “abominavelmente alta”, acompanhada de um “estranho” e

“detestável” canto. “Nunca vi nada mais brutalmente selvagem, e ao mesmo

tempo tão tolo e estúpido quanto esta exibição”. Eram ouvidos formados na

tradição européia entrando em choque direto com um pensamento musical

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inteiramente diferente. E não apenas musical: inteiramente diferente também era a

maneira de conceber o próprio manejo sonoro da língua, maneira que foi de certa

forma adaptada no modo de dizer a língua do povo dominador. No caso da

América do Norte, a inventividade dos falantes africanos diante de uma nova

língua ganha clareza didática na figura dos “black preachers”, pregadores que

encarnavam verdadeiros arquétipos dos “black man-of-words”. Através deles

escutava-se, dentro de outro contexto, as pirotecnias verbais, a destreza

persuasiva e a riqueza expressiva dos contadores africanos. De modo que a

antropóloga Zora Neale Hurston batizaria a esses africanos como “lords of

sounds”.

Mas enquanto os escravos puderam cantar, podemos dizer que houve pelo

menos a possibilidade de resistência. Se a maior parte do dia passavam

trabalhando, há consideráveis evidências de que o trabalho não era visto por eles

como solitária e silenciosa tarefa. Na lavoura da cana, nas plantações de tabaco,

colhendo algodão, cozinhando e realizando afazeres domésticos, no trabalho de

estiva nos portos, cantando hollers na plantações de milho. Os sons que

emanavam nos dias de lavagem de roupa - o barulho feito pelas crianças enquanto

batiam as roupas com bastão, juntando-se ao canto das negras, e que podia ser

ouvido a mais de uma milha de distância. “Foi o negro quem animou a vida

doméstica do brasileiro de sua maior alegria – os negros trabalhando sempre

cantando: seus cantos de trabalho, tanto quanto os de xangô, os de festa, os de

ninar menino pequeno, encheram de alegria africana a vida brasileira”, escreveu

Gilberto Freyre.201

Cada possível atividade tendia a ser acompanhada por cantos. Sobretudo

aquelas que apresentavam certo caráter repetitivo. O motivo é simples: em geral,

as culturas africanas apresentam uma superabundância de atividade musical.

“Uma aldeia que não possui música organizada, ou negligencia práticas de canto,

percussão, ou dança comunitária, é dita uma aldeia morta”.202 Raras são as

ocasiões em que a música não está presente. A simbiose profunda entre música e

vida constitui um traço comum da imensa diversidade cultural na África. O

201

Cf. Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, Rio de Janeiro, Record, 2000, p.513. 202

“A village that has no organized music or neglects community singing, drumming, or dancing

is said to be dead”. A frase é do eminente musicólogo africano J.H.Kwabena Nketia, e foi citada

no livro de John Miller Chernoff, African Rhythm and African Sensibility: Aesthetics and Social

Action in African Musical Idioms, Chicago and London, The University of Chicago Press, 1979,

p.36.

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alcance e a diversidade dos tipos de música soam surpreendentes aos ouvidos

ocidentais.203 Na República do Benin existem canções específicas para quando a

criança perde seu primeiro dente de leite. Entre os Hausas da Nigéria, jovens

chegam a pagar músicos profissionais para que componham canções que ajudem a

cortejar suas amantes ou insultar os seus rivais. Crianças ashanti cantam músicas

especiais para não fazer xixi na cama. Remadores hútus, em Ruanda e no Burundi,

irão cantar uma canção diferente conforme remam a favor ou contra a correnteza.

São inúmeros os exemplos encontrados na literatura especializada. Todos

apontam para a onipresença e para a importância da música na vida dessas

sociedades. Para o engajamento de toda a comunidade no ato coletivo de fazer

música. Sem participação não há significado musical: “a música da África nos

convida a participar da construção de uma comunidade”.204 Um complexo ritual

de vida se realiza pela invocação contínua de cantos e danças.205

A palavra cantada acompanhou de modo intenso o dia-a-dia dos escravos,

em todas as suas esferas. Ganhou relevo e evidência na monótona paisagem

sonora da escravidão rural. Uma atriz americana branca, esposa de rico

fazendeiro, conta ter visto, em 1830, num rio na Georgia, um barco que seria

conduzido por oito negros. Quando os escravos começaram a remar, ela ouviu

“erguer-se um coro, todos eles cantando em uníssono e em perfeita sincronia com

o movimento das remadas, até que as vozes e os remos não fossem mais ouvidos

devido a distância”. Mais ou menos na mesma época um viajante inglês que

passava também no sul dos Estados Unidos, notava os escravos que conduziam

galeras “todos cantando canções em coro, reguladas pelos movimentos de seus

remos”.206 O ritmo do canto acompanhava o ritmo do próprio trabalho. O ritmo do

trabalho transformando-se em música. Sempre que escravos eram impelidos a

203

Ver John Miller Chernoff, op.cit.., p.34. 204

Outra passagem do livro de Chernoff corrobora esse ponto de vista e vale a pena ser aqui

reproduzida: “This community dimension is perhaps the essential aspect of African music. For

instance, several authorities cite hand-clapping as the most prevalent means of musical expression

in Africa, becaus they do not want to distinguish the audience from the musicians at a musical

event”. (Cf., John Miller Chernoff, op.cit.., p.23 e 33) 205

O pesquisador José Ramos Tinhorão escreveria que “O fato de na África Ocidental todos os

atos do dia-a-dia regerem-se por vontade sobrenatural, o que subordinava os homens a constantes

encantamentos e sortilégios, levou os africanos a desenvolverem um complexo ritual de vida que

exigia, para praticamente cada ação desempenhada, uma invocação especial, através de cantos ou

danças”. (Cf. José Ramos Tinhorão, O Som dos Negros no Brasil – Cantos, Danças, Folguedos:

Origens, São Paulo, Editora 34, 2008, p.123) 206

Cf. Shane White, Graham White, The Sounds of Slavery: Discovering African American

History Through Songs, Sermons, and Speech, Boston, Beacon Press, 2006, p. XVI.

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realizar tarefas repetitivas e invariavelmente tediosas, preferiam fazê-lo ao som de

suas canções, do mesmo modo como faziam seus pais e avós na África. O canto

de mulheres ao ritmo do ato de moer.

O ritmo está intimamente ligado ao movimento. Ele inaugura uma direção e

um sentido para este. Um movimento que não para de enriquecer suas relações

internas, e de gerar mais e mais movimento. É por isso que ele é muito mais do

que uma forma de arregimentar forças, de gerar energia, do que propriamente um

desperdício. Talvez por causa disso, desde os primórdios da humanidade, em

diversas culturas, o ritmo tenha sido cultuado como divindade. Nos cânticos

rituais e também nos cantos profanos mais antigos partia-se do pressuposto de que

o ritmo exercia uma espécie de ajuda mágica. Ele predispunha positivamente as

entidades a ajudarem os homens em suas ações. Nietzsche escreveu que “o ritmo é

uma coação; ele gera um invencível desejo de aderir, de ceder; não somente os

pés, a própria alma segue o compasso – provavelmente, as pessoas concluíram,

também a alma dos deuses!”.207 Canta-se para se concentrar energias para o

trabalho. Canta-se para se concentrar forças capazes de reforçar o elo com o

mundo. Canta-se para se poder descansar em paz. Na alegria ou na tristeza, de

esperança ou de dor, o canto é sempre de júbilo.

Estruturando-se por ciclos de recorrência, o ritmo tende ao equilíbrio

instável e a continuidade. É a divergência, a quebra da regularidade, que é

propriamente rítmica. Mas para que isso ocorra ela necessita ser recortada sobre

um fundo métrico constante. O ritmo é o que se mantém no meio entre a

possibilidade do máximo desvio e a lembrança da referencia uniformemente ideal.

Os gregos derivaram a palavra ritmo de reo – fluir. Com isso, abriam espaço para

abarcar o que havia de ordenação temporal em eventos não-periódicos e

irregulares, como os ruídos de uma cascata. Abriam a experiência para fenômenos

aparentemente imperfeitos. Os latinos, em significativo erro de tradução, acharam

que ritmus provinha de aritmus. Congelaram assim o ritmo em regularidade pura,

aritmética, numérica. Estrutura limpidamente ordenada, equilibrada, simétrica.

Retiraram o que nela havia de imprevisível e feroz, de refratário ao controle da

razão matemática, e do pensamento analítico. Foi essa visão de ritmo que imperou

no desenvolvimento da música religiosa ocidental. Ela tendeu a domesticar o

207

Cf. Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, §85.

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ritmo. Ele, que era a manifestação mais pura do elo que une música e corpo. Ele,

que aparentemente não passava pela cabeça. Que parecia agir diretamente sobre as

partes que liturgia católica considerava como sendo as menos nobres. Cintura,

pernas, tornozelos e pés. Não há música sem ritmo. Mas há música em que a

dimensão rítmica torna-se tão discreta e atrofiada que acaba abrindo mão de

grande parte de suas potencialidades como geradora de sentido.

Na África, a música não se distanciou do corpo. Instrumentistas

complementam os ritmos tocados com marcações corporais – tocam como se

estivessem dançando. Num famoso ensaio, John Miller Chernoff argumenta que

se perguntarmos a um africano se ele “compreende” certo tipo de música, ele dirá

que sim se souber o tipo de dança que a acompanha. O etnomusicólogo John

Blacking também notou que “entre os Venda, habilidades em música e dança

eram tão inextricavelmente relacionadas que, por exemplo, se um homem Venda

dizia ‘eu posso tocar tshikona’, isso queria dizer que ele podia também dançar, e

se uma garota dizia ‘eu dancei tschigombela’, é porque ela também podia cantar e

tocar os tambores”.208 Sabemos que há uma imensa diversidade cultural e musical

na África. Mesmo assim, com algumas poucas exceções, podemos dizer que “a

música africana deve ser concebida como música para a dança, embora a ‘dança’

possa ser de um tipo inteiramente mental”.209 Trata-se de um princípio comum,

presente na grande maioria das tradições musicais do continente. Com a vinda dos

escravos africanos para o Novo Mundo, a música chegou integrada no próprio

corpo. Trouxeram para as Américas a primazia do ritmo. Em geral, na tradição

musical do Ocidente, o ritmo é algo a ser seguido, e é amplamente determinado

em relação à melodia, ou mesmo definido como um aspecto dela. Embora

indispensável, no mais das vezes ele é secundário em ênfase e complexidade em

relação ao demais elementos. A música move-se através da harmonia e da

melodia. É na progressão sonora de notas e acordes que normalmente

reconhecemos a beleza. Ao ritmo cabe o papel de duração de fundo. Na música

africana essa sensibilidade é praticamente invertida. Seu princípio estruturante é a

208

“In Venda, skills in music and dancing were so inextricably linked that if, for example, a Venda

man said “I can play tshikona,” he meant that he could also dance it, and if a girl said “I danced

tshigombela,” she could also sing and play drums”. (Cf. John Blacking, Music, Culture &

Experience: Selected Papers of John Balcking, Chicago and London, The University of Chicago

Press, 1995, p.234) 209

“Essentially, this simply means that African music, with few exceptions, is to be regarded as

music for the dance, although the ‘dance’ involved may be entirely a mental one”. (Cf. John Miller

Chernoff, op.cit.., p.50)

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colisão e o conflito de ritmos. “O ritmo é para o africano o que a harmonia é para

os europeus, e é na complexa trama de padrões rítmicos contrastantes que ele

encontra o mais alto grau de satisfação estética”.210 Para os ouvidos europeus essa

diferença fundamental muitas vezes soou como violência. Para os africanos, ela

era força vital.

O funcionamento corporal é gerido por ritmos. O próprio corpo pode ser

visto como um grande sistema de ritmos – sistemas interconectados de

organização temporal. Parece haver um elo invisível, uma cadeia misteriosa, que

une todos os ritmos existentes – como se estes se rebatessem e respondessem

continuamente uns aos outros. Não apenas os ritmos dos órgãos internos que

compõem o edifício humano, e que determinam os ciclos da digestão, do sono, do

sonho, do sexo. Mas também os complexos ritmos das ações – o movimento

coordenado entre diversos músculos organizados pela batuta de módulos rítmicos

cerebrais, que os regem na realização de verdadeiros concertos corporais. Pessoas

sãs possuem um poderoso senso interno de ritmo, com o qual a música dialoga o

tempo todo. Um distúrbio nessa organização interior pode causar sérias

dificuldades motoras, em ações básicas como andar e falar, e uma espécie de

desarmonia nos movimentos. Em casos como esse o estímulo externo de um som

gerando uma batida uniforme, ajuda a restabelecer uma ordem temporal

necessária para coordenar os movimentos. A ausência do metrônomo interno é

compensada pela orientação via estímulos auditivos.211 O ritmo é um princípio de

ordem num corpo complexo que, sem ele, tenderia a tornar-se completamente

inviável, caótico. Todos os mamíferos respondem ao sentido temporal de uma

recorrência que forma um padrão rítmico. Porque esse padrão está inscrito no

próprio corpo.

Dentre os parâmetros musicais, a sensação rítmica é aparentemente aquela

que ocorre de modo mais direto no corpo. A que parece menos dependente de

uma decodificação cultural. Como se fosse o principal elo com aquilo que John

Blacking definiu como “biogramática” – suporte comum da música no corpo da

espécie, corpo que atravessa e transcende as especificidades culturais, que se

210

Cf. Apud. Idem, Ibidem, p.40. (Ver também, no mesmo texto de Chernoff, argumento sobre a

generalização do ritmo como traço marcante da música africana apesar de imensa diversidade

cultural presente no continente.) 211

Pacientes de Parkinson também são beneficiados por um batimento externo. Ver, nesse sentido,

a experiência descrita em Steven Mithen, op.cit.., p.150.

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coloca além das diferenças. A biogramática que diz respeito ao conjunto de

capacidades sensoriais e cognitivas que os seres humanos estão predispostos a

usar na comunicação não-verbal. Blacking sugere a existência de uma

“ressonância cognitiva supracultural”, segundo a qual diferentes compositores,

ouvintes e sistemas musicais utilizariam como base de suas experiências, em

determinados níveis, os mesmos modos “musicais” de pensamento. Uma

biogramática “musical” do corpo humano.212 “When the grammar of music

coincides with the grammar of a particular person’s body, cognitive resonance can

be felt and apprehended partly because of learned social experience. But when the

grammar of music coincides with the ‘musical’ biogrammar of the human body,

in the most general sense, cognitive resonance can be felt and apprehended

regardless of specific social experiences”.213 Para Blacking, seria possível uma

apreensão intuitiva da música, possibilitada pelo fato de que tanto quem cria,

quanto quem executa ou quem ouve possui a mesma “inteligência” e

“competência” musicais inatas. E o corpo constitui evidentemente o locus dessa

experiência. Não como recepção passiva, mas como recriação ativa.

A apreciação da natureza rítmica e harmônica dos movimentos humanos são

cruciais na compreensão de nossas mais profundas aptidões musicais. Basta olhar

em volta, pessoas caminhando nas ruas, indo para o trabalho, absortas em

atividades solitárias, misturando-se na multidão, conversando entre si,

colaborando em algum trabalho coletivo: o corpo humano construído para andar

em duas pernas, cadenciado por uma pulsação constante de fundo, que funciona

como base constante de organização de nossa atividade no tempo. Por sobre essa

base é que se constroem os inúmeros e variados ritmos que nos habitam.

Enquanto as pernas alternam-se em movimento cadenciado as cadeiras balançam

e reforçam os acentos rítmicos, que por sua vez são secundado pelo movimento

dos ombros, que por sua vez apóiam a variação pendular dos braços, todas as

articulações concorrendo para o equilíbrio total da estrutura. E no alto, a cabeça,

com movimentos autônomos, como se fosse uma torre destacada da batida dos

212

Ao colocar a palavra “música” entre aspas, Blacking chamava a atenção para a indefinição que

cerca o termo, suas diversas acepções a depender das diferenças culturais. Ao mesmo tempo,

enfatizava também o que há de comum na diversidade de experiências em torno da música,

religando-as com aptidões humanas profundas. 213

“Quando a gramática da música coincide com a biogramática ‘musical’ do corpo humano, no

sentido mais geral, uma ressonância cognitiva pode ser sentida e apreendida independente de

experiências sociais específicas”. (Cf. John Blacking, op.cit.., p.240) (Tradução Livre)

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pés, portadora de uma temporalidade autônoma. Enquanto andamos, a cabeça

livremente se vira para os lados, para o alto, paralisa-se com olhos arregalados; a

boca mastiga algum alimento, ou engaja-se numa conversação, boceja lentamente;

as mãos então decidem interagir e gesticulam com movimentos articulados,

enfáticos, largos ou curtos, às vezes com pausas atônitas ou interrogativas, tudo

coordenado em ritmos fluídos, macios.

A multiplicidade de impulsos semi-independentes que compõem a

movimentação humana formam, por si sós, uma polirritmia complexa e não

obstante harmônica. Rudolf Laban, um dos mais influentes escritores e

pensadores do movimento humano, exaltou a sua expressividade nas seguintes

palavras: “The astonishing structure of the body and the amazing actions it can

perform are some of the greatest miracles of existence. Each phase of movement,

every small transference of weight, every single gesture of any part of the body

reveals some feature of our inner life”.214 Vida interior e vida exterior espelham-se

mutuamente; o espírito vive na própria carne, e vice-versa. Imagine o efeito

causado pelos movimentos de negros que dançavam na Congo Square, em

meados do século XIX, diante de corpos criados na tradição puritana. Ou as rodas

de batuque, feitas ao cair da noite nos engenhos do nordeste brasileiro, quando os

senhores faziam dançar as escravas mais lindas, para exibir diante de todos suas

amantes negras.215 Som e movimento transformando-se numa só coisa. A música e

a dança revelando sua origem comum no próprio desenvolvimento do corpo – o

grande palco da encenação.

Os ritmos são contagiosos. Apontam para uma das características mais

marcantes da espécie humana: sua tendência natural para imitar movimentos e

ações ritmadas – para reproduzi-los em nós mesmos. Somos impelidos a entrar em

comunhão com eles, a entrar em fase.216 De uma hora para outra, quando nos

214

“A formidável estrutura do corpo e as incríveis ações que ele é capaz de executar são alguns

dos maiores milagres da existência. Cada fase do movimento, cada pequena transferência de peso,

cada simples gesto de qualquer parte do corpo revela algum aspecto de nossa vida interior”. (Cf.

Steven Mithen, op.cit.., p.156) 215

Ver Carlos Sandroni, Feitiço Decente: Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-

1933), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2008, p.107. 216

As redes neurais responsáveis pelo processamento da música estendem-se para além do córtex,

ativando áreas que possuem uma história evolutiva mais antiga. Melodia e ritmo são lidos em

diferentes áreas. A primeira parece estimular igualmente os dois hemisférios. E também, em

menor grau, o cerebelo. O processamento do ritmo, contudo, embora também se faça pela

ativação de outras áreas do cérebro, concentra-se sobretudo no cerebelo. É complexa a geografia

que traduz notas em abstratos códigos áudio-motores. O envolvimento privilegiado do estímulo

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damos conta, estamos batendo palmas, estalando dedos, fazendo marcações com

os pés; dançando. Um tipo de interação é rapidamente solicitada. “O desejo de

repetir parece ser um impulso básico e forte em todos os seres humanos,

particularmente em bebês e crianças”, argumenta Bruce Richman.217 É através da

imitação que se dá, desde tenra idade, a maior parte do aprendizado cultural. É

desse modo que o imenso repertório vai sendo aos poucos internalizado. “Esse

impulso de repetir joga as pessoas dentro da linguagem e dentro das interações

vocais com os outros”. Crianças reproduzem incessantemente trechos inteiros de

diálogos que ouviram na escola, pedaços de canções, expressões melodicamente

entoadas. O impulso de imitar possui imensa importância no processo de

aquisição da fala. Uma boa parte do aprendizado da linguagem na criança é

alcançado através da imitação vocal. Trata-se de uma força que faz com que os

seres humanos tornem-se em mantenham-se envolvidos na atividade discursiva e

na interação com os outros. Como se houvesse, para além das palavras, um outro

discurso mais puramente sonoro, abstrato, mas tão crucial quanto.

Tais comportamentos imitativos não são, contudo, um privilégio somente

dos seres humanos. Muitos outros animais o praticam: filhotes de leão aprendem

boa parte das estratégias de caça observando o comportamento dos leões adultos;

muitos pássaros já nascem com a propensão para o canto inscrita no cérebro, mas

as variações melódicas específicas de seu grupo são aprendidas por imitação;

macacos vêem, macacos fazem igual. Não basta ver: é preciso copiar, realizar no

próprio corpo aquilo que se percebe. É preciso de certo modo casar a imagem

externa com a imagem interna.218 Fazer eco, afinar aquilo que nos chega pelos

sentidos com manifestações e comandos internos que representam as ações. De

certo modo, não há compreensão sem a participação do corpo. Os significados

emergem na carne, nos ossos e no sangue de nossa experiência corporal. Seus

mecanismos se estendem muito além da capacidade para a linguagem. Como

argumentaram o filósofo Mark Johnson e o musicólogo Steve Larson,

“Philosophical reflection on music has often assumed that music is some kind of

‘language’. There is a strong tendency among philosophers and music theorists to

rítmico com o cerebelo, contudo, talvez nos indique seu poder de gerar respostas motoras mais

diretas, menos mediadas pelas camadas mais recentes do córtex e da consciência. Quiçá, inclusive,

menos dependentes de memórias aprendidas. 217

Cf. Nils L. Wallin, Björn Merker, Steven Brown, The Origins of Music, p.311. 218

O tema dos “neurônios-espelho” será desenvolvido mais adiante, neste mesmo ensaio.

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think that our ‘primary’ experience of meaning is in language, so that whatever

meaning music has must be measured against linguistic meaning”.219 De acordo

com essa linha de pensamento o próprio significado linguístico tende a ser visto

como algo objetivamente referencial, completamente independente da natureza de

nossos corpos.220

De certo modo, evocando as palavras de Bergson, “a existência de que

estamos mais certos e que melhor conhecemos é incontestavelmente a nossa”.221 A

experiência do sentido é inseparável de nossa existência física. Entendimento e

experiência estão intimamente conectados com nossa constituição corporal, com

nossas capacidades sensório-motoras e com nossa arquitetura emocional. Para

serem “compreendidas”, as ideias mais abstratas precisam, ainda que

longinquamente, ancorar-se nos dados concretos que constituem a experiência

básica de estar no mundo, da interação do organismo com o ambiente no qual

vive. A constituição de um plano interno, de uma sabedoria implícita e pré-

conceitual, que constitui, justamente, a experiência direta de nossos próprios

corpos. Como capacidade humana, a música é uma atividade cognitiva e afetiva

do corpo específico de nossa espécie. Em última instância é a partir dele que os

sentidos são criados. É nele onde tudo começa.

...

219

“A refelexão filosófica sobre a música geralmente assume que a música é um tipo de

‘linguagem’. Há uma forte tendência entre filósofos e teóricos da música em pensar que a nossa

‘principal’ experiência de significação esteja na linguagem, de modo que qualquer significado

musical tenha que ser avaliado nos termos do significado linguístico”. (Cf. Mark Johnson and

Steve Larson, “’Something In The Way She Moves’ – Metaphors of Musical Motion”, In.

Metaphor and Symbol, 18, Nº2, p.80) (Tradução Livre) 220

Steven Mithen cita em seu livro exemplos de pesquisas sobre sinestesia sonora que colocam em

xeque, ou pelo menos fazem repensar, a arbitrariedade pura da relação entre significante e

significa na língua. Mithen cita as pesquisas comparativas de Otto Jespersen, e a hipótese de que

“the sound (i) comes to be easily associated with small, and (u,o,a) sounds with bigger things”.

Haveria, portanto, uma ligação (uma analogia) entre o movimento físico que cria determinado som

no corpo e atributos físicos daquilo que está sendo nomeado. O autor complementa: “Onomatopeia

and sound synaesthesia may not be the only universal principles at work in the naming of animals.

The bird names of the huambisa tend to have a relatively large number of segments of acoustically

high frequency, which appear to denote quick and rapid motion, or what Berlin called “birdness”.

In contrast, fish names have lower frequency segments – connotations of smooth, slow, continuous

flow – ‘fishness’”. (Cf. Steven Mithen, op.cit.., p.170-171) 221

Cf. Henri Bergson, Memória e Vida: Textos Escolhidos por Gilles Deleuze, São Paulo, Martins

Fontes, 2006, p.1.

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Mudanças na anatomia, nos hábitos alimentares e na vida social entre 6 e 2

milhões de anos atrás parecem ter tido um imenso impacto nos modos e sistemas

de comunicação dos primeiros homens. Talvez o ponto mais importante no

impulso decisivo que o desenvolvimento humano tomaria nesse período, criando

assim as condições necessárias para a futura aquisição da linguagem moderna, da

mente simbólica e do desenvolvimento musical, tenha sido, justamente, o fato de

eles terem se erguido para andar sobre duas pernas. Nada teria um impacto tão

profundo no desenvolvimento musical dos primeiros humanóides. Foi a partir

disso que modificaram profundamente suas anatomias e ganharam então uma

nova perspectiva de apreensão do mundo. Pois ao que tudo indica, a origem do

bipedalismo teve profundas implicações para a evolução da inteligência e da

linguagem.

Demorou muito tempo para que os hominídeos se erguessem sobre duas

pernas. Há seis milhões de anos, nossos ancestrais distantes ainda habitavam

ambientes de mata fechada. Herbívoros, passavam a maior parte do tempo no topo

das árvores. Viviam em pequenos grupos. Locomoviam-se diferente de nós, com

outros movimentos. O corpo equilibrava-se por outros eixos de força. A espinha

dorsal encaixava na parte detrás do crânio, facilitando o direcionamento da cabeça

para o alto – para os galhos nos quais deviam se agarrar. A escápula era torcida

para frente, o que possibilitava manter o braço levantado por muito mais tempo e

trazia o necessário apoio para os movimentos de alavanca. Eram seres que

movimentavam-se muito mais na vertical do que na horizontal. Dispunham de

outros ritmos, de outros mecanismos de balanço. Há aproximadamente dois

milhões de anos atrás começou uma grande mudança que colocaria as forças

evolutivas no sentido de favorecer os seres mais adaptados ao deslocamento por

terra. Um série de abruptas mudanças climáticas devastou o ambiente no qual

viviam os primeiros hominídeos. Um imenso resfriamento e escassez de chuvas

fizeram secar as florestas africanas. É possível que relâmpagos tenham

contribuído para grandes incêndios que devastaram a mata. Havia pouca comida

após o fogo. Populações animais começaram a sumir. Quando as gramíneas

começavam a reaparecer, os animais de pasto que conseguiram sobreviver

desenvolviam-se rapidamente. Após vários séculos as florestas ressurgiam, com

temperaturas mais baixas e animais mais adaptados.

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Tudo leva a crer que os antepassados dos humanos modernos sobreviveram

a muitos episódios como esse. Caso o resfriamento e a seca tivessem acontecido

num intervalo muito maior de tempo, deixando tempo suficiente para que as

florestas pudessem se transformar gradualmente, esses hominídeos não teriam

sofrido tanto. Espécies vegetais mais adaptadas ao frio teriam descido lentamente

dos morros para ocupar o fundo dos vales. Sucessivas gerações de hominídeos

continuariam vivendo do mesmo modo que seus pais, adaptando-se culturalmente

ao ambiente. Mas as mudanças eram abruptas. E a cada vez que ocorriam, as

populações sofriam terríveis perdas. Sobreviviam somente aqueles que

descobriram maneiras de explorar esses episódios que os outros grandes macacos

não exploraram. Há dois milhões de anos, alguns grupos desses primeiros

hominídeos (o caso do australopitecus, por exemplo) haviam se adaptado a viver

em paisagens relativamente abertas. Nas savanas da África. O acesso a alimentos

não mais estava compactado no espaço da mata fechada, mas dispersava-se sobre

longas extensões de terra. Ampliou-se, com isso, o consumo de carne entre os

hominídeos, uma fonte de energia mais concentrada. Geralmente comiam

carcaças, restos de animais mortos por outros predadores. Viviam em incessante

nomadismo. Precisavam se deslocar por grandes áreas da savana atrás de comida.

Muitas vezes debaixo de impiedoso sol. Houve uma considerável pressão

evolutiva no sentido de favorecer o bipedalismo.

O ambiente aberto das savanas, sem muitas coberturas de árvores para

fornecer proteção e possibilidade de fuga para o topo de uma delas, fez desses

hominídeos presas fáceis. Sem contar com grande agilidade, eram o alvo das

investidas sangrentas de grandes carnívoros que habitavam as savanas e também

de águias. Uma teoria possível é de que esses antigos hominídeos tenham

começado a erguer-se sobre duas pernas justamente para conseguir enxergar, por

cima da vegetação, a possível aproximação de predadores. Houve, efetivamente,

uma complexa mudança no aparelho sensorial, que ocorreu em conjunto com

modificações no design da cabeça. Os olhos foram aos poucos sendo posicionados

de modo a permitir uma visão binocular, em profundidade. A própria estrutura do

olho, em sua ligação intrínseca com o cérebro, foi remodelada no sentido de uma

adaptação mais apropriada a um ambiente que era visualmente muito distinto. Não

mais a trama de linhas verticais e fechadas da mata, com pouca profundidade de

campo, mas a projeção em perspectiva de grandes distâncias espaciais. Era

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preciso reconhecer com mais eficiência os padrões visuais daquele novo

ambiente. As fontes de alimentos e os predadores, fatores cruciais na

sobrevivência, deviam ser vistos e reconhecidos de longe, onde somente a vista

alcança. De fato, parece ter havido uma pressão seletiva que favoreceu a visão em

detrimento de outros sentidos, como, por exemplo, o olfato.

Apesar da proeminência da visão no novo ambiente, o argumento mais

persuasivo para a origem do bipedalismo envolve duas etapas distintas, cada uma

com sua pressão seletiva própria. Passar a andar sobre duas pernas exigiu um

longuíssimo processo de mutação. Exigiu também um tremendo nível de

refinamento e adaptação desde a mecânica anatômica, do tamanho dos ossos ao

funcionamento das juntas, até as mais complexas funções do sistema nervoso.

Contou com inumeráveis estágios intermediários. Num primeiro momento, os

hominídeos tornaram-se parcialmente bípedes. Com seus braços longos e fortes,

pélvis larga e falanges encurvadas, os astralopithecus eram mais adequada para

permanecer erguidos sobre duas pernas do que propriamente para caminhar sobre

duas pernas. Possuíam apenas um conjunto parcial das adaptações anatômicas

necessárias ao bipedalismo. Com base no comportamento dos chimpanzés (que

dividiu ancestrais com a linhagem dos hominídeos há aproximadamente 6 milhões

de anos), especula-se que a função desse comportamento fosse facilitar a colheita

de pequenas frutas em árvores; ou erguer-se para olhar por cima da vegetação.

A passagem para o bipedalismo pleno viria somente, como já foi dito, por

volta de dois milhões de anos atrás, com o Homo Ergaster. Ou seja: foram

necessários milhões de anos para que o homem viesse a ser integralmente bípede.

Para que aperfeiçoasse sua locomoção em duas pernas. E aqui voltamos com o

cenário de radical mudança climática que transformou inteiramente a paisagem na

África Ocidental. A teoria especula que no ambiente relativamente aberto das

savanas, ambiente com poucas árvores e poucas áreas de sombra, onde os

hominídeos precisavam se locomover por grandes distâncias, era vantajoso

reduzir a superfície corporal em contato direto com o sol. O desgaste causado pelo

calor é um problema para todos os animais que habitam a savana. Basicamente, o

cérebro começa a funcionar mal quando tem sua temperatura elevada 2ºC acima

do normal. Caminhando eretos, os hominídeos reduziam consideravelmente a área

de exposição para o topo da cabeça e ombros. Mais altos, tinham também maior

acesso às camadas de ar mais afastadas do solo, onde os ventos sopravam com

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velocidade significativamente maior, e que eram portanto mais frescas. É possível

que essa redução do desgaste pelo calor e a economia no consumo de água tenham

sido cruciais para estabelecer uma nova possibilidade de dieta alimentar, que

passou agora a abarcar o consumo de carne. Pois uma vez bípedes, podiam não

apenas percorrer maiores extensões das savanas a procura de carcaças de animais

mortos, mas fazer isso em horários de sol a pino, no qual carnívoros competidores

tendiam a descansar sob o sol.

A nova dieta alimentar, direcionada para o consumo de carne, favoreceu

mudanças anatômicas tais como a redução do tamanho dos dentes e do maxilar.

Modificou desse modo o formato e o volume da parte final do trato vocal. As

mudanças na dentição e no formato do crânio, associadas às mudanças anatômicas

decorrentes da postura ereta, fizeram com que a laringe – cavidade que abriga as

cordas vocais – fosse posicionada mais abaixo na garganta. 222 Como efeito

incidental, os sons gerados nas cordas vocais passaram a percorrer um espaço

maior dentro do corpo. Podiam, desse modo, ser mais modulados na faringe, nariz

e boca, aumentando a diversidade de sons vocais. Entre os mamíferos típicos,

incluindo os macacos – e os humanos recém-nascidos – a laringe está posicionada

alta no pescoço e a faringe é em consequencia curta, limitando a capacidade de

modular os sons vocais. Nos humanos adultos, em contraste, a laringe fica numa

posição mais baixa no pescoço, aumentando a faringe e o potencial para a

modulação das vibrações produzidas pelas cordas vocais. É a faringe muito mais

comprida dos humanos modernos que tornará possível a gama completa de sons

exigidos na fala articulada. A reverberação de ondas sonoras na garganta foi que

possibilitou a rica palheta de tons de nossa comunicação vocal. As ondas sonoras

têm passaram a interferir em outras ondas e depois ser ainda mais modeladas pela

câmara de ressonância da boca. Mudando o posicionamento da língua e dos lábios

mudava-se também o formato dessa câmara, produzindo-se ainda mais variações

sonoras.

Por conta da localização da laringe, que acaba reduzindo o comprimento da

faringe, os grandes símios possuem pouco espaço de garganta para remodelar os

sons. Tampouco possuem suficiente flexibilidade para remodelar o espaço interno

222

Aiello argumenta que a laringe baixa foi apenas uma consequencia acidental das adaptações

necessárias ao movimento sobre duas pernas, e não algo que ocorreu por conta de pressões

seletivas que privilegiavam a comunicação vocal. (Ver Steven Mithen, op.cit.., p.146)

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da boca, por conta do tamanho dos dentes e do formato da língua. Com uma

morfologia como essa torna-se significativamente mais difícil a produção de sons

vogais. É possível mesmo pensar que não apenas a localização, mas a própria

constituição da laringe teria sido modificada pela nova anatomia dos hominídeos

inteiramente bípedes. A consistência mais membranosa das cordas vocais teria

resultado em sons menos ásperos e mais melodiosos do que aqueles emitidos

anteriormente pelos australopithecus.223 Desse modo, de acidente em acidente foi

sendo moldada a sonoridade humana. O próprio surgimento da linguagem

articulada, assim como o da música, pode ser visto como o aproveitamento de

mutações aleatórias guiadas por forças seletivas que tinham originalmente outra

direção – uma espécie de oportunismo evolutivo.224 A seleção natural

capitalizando sobre uma estrutura gerada pela combinação errática de elementos

que aos poucos iam sendo adicionados. O paleantropólogo Ian Tattersall pondera

que “Um trato vocal capaz de produzir os sons da fala articulada, portanto, foi

adquirido entre os humanos mais de 1 milhão de anos antes de haver qualquer

evidência independente de que nossos antepassados estivessem falando. Está claro

que o trato vocal humano adulto não pode em sua origem ter sido uma adaptação

‘para’ a fala moderna – embora tenha dado certa vantagem no contexto de uma

forma ‘pré-linguística’ de comunicação vocal”.225

Mas para que surgisse a linguagem tal como a conhecemos hoje, a

linguagem composicional, subdividida em unidades fonéticas que somente

quando agrupadas geram sentidos, rica em variações entoativas, melódicas, capaz

de possibilitar uma outra relação com o mundo através do pensamento simbólico,

para que chegássemos a esse estágio de linguagem seria necessário mais do que

uma anatomia propícia. Mais do que cordas vocais membranosas e um percurso

das ondas sonoras dentro do corpo que possibilitasse que elas fossem

remodeladas. Era preciso, além de tudo o que já foi mencionado, um domínio

maior do próprio corpo. Um controle preciso, afinado, dos fluxos respiratórios,

dos movimentos labiais, do posicionamento da língua no interior da boca. É

223

Ver Steven Mithen, op.cit.., p.147. 224

Os biólogos utilizam o termo “exaptação” para descrever as características que aparecem em

um contexto antes de serem exploradas em outro. O exemplo clássico de exaptação que se torna

adaptação são as penas das aves. Hoje, essas estruturas são essenciais ao vôo dos pássaros, mas,

durante milhões de anos, antes de eles voarem, aparentemente elas eram usadas como isolantes

térmicos. 225

Cf. Ian Tattersall, “Como nos Tornamos Humanos”, In. Scientific American (Brasil), Edição

Especial, Nº17, p.75.

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possível que no ambiente aberto da savana os hominídeos tenham aprendido a

melhor controlar o volume de suas vocalizações para não chamar a atenção dos

predadores. Tudo isso repousava, por sua vez, sobre uma base “musical” capaz de

transmitir, através de vocalizações, os sentidos de representação do estado

emocional do falante. As intensidades e os contornos melódicos expressando

estados de medo, raiva, aflição, nojo, surpresa e alegria – as ditas emoções

“básicas”, comuns a todas as culturas humanas, alojadas no centro do cérebro,

numa das regiões com desenvolvimento mais remoto na história da evolução do

sistema nervoso, no conjunto de estruturas neurais que forma o sistema límbico.226

A base “musical” à qual me referi acima pode ser notada no fato de que macacos e

homens seguem as mesmas pistas vocais ao comunicar emoções. Sentidos de

raiva, medo e alegria são gerados por movimentos sonoros semelhantes, por uma

mesma “música” de fundo que acompanha o conteúdo sonoro. O caminho que

leva da proto-linguagem dos primeiros hominídeos – que, ao que tudo indica,

baseava-se na comunicação vocal de primatas ainda mais recuados no tempo

evolutivo227 - até a linguagem dos homens modernos passa por uma complexa teia

de causas e efeitos envolvendo relações insuspeitadas entre as diversas partes do

corpo. Passa pelo desenvolvimento recíproco de uma entidade única, indivisa: o

cérebro-corpo. Pela regulação cada vez mais fina de uma série de ritmos e

movimentos.

Provavelmente os primeiros hominídeos se comunicavam através de

locuções que tinham significados holísticos, inteiros, fechados. Que formavam um

espaço expressivo ao incorporar amplos gestos, meneios de corpo, caretas e

posteriormente talvez até gestos miméticos. Que eram fundamentalmente

melódicas, em certo sentido “musicais”. Que não subdividiam-se em unidades

significantes menores (palavras) capazes de se reagrupar e assim gerar novos

sentidos. A comunicação, desse modo, tinha um caráter mais manipulativo do que

226

“The neuroscientist Joseph LeDoux has shown that the same neural mechanisms mediate the

fear response in all sorts of animals, form pigeons and rats to cats and humans. The idea that other

animals experience similar emotions to us is not antropomorphism: it is based on sound scientific

evidence. In all mammals, including ourselves, basic emotions such as fear and anger are mediated

by a set of neural structures known as the limbic system. These include the hippocampus, the

cingulate gyrus, the anterior thalamus, and the amygdala. All these structures are tucked away in

the centre of the brain, underneath the outer layer of neural tissue known as the neocortex”. (Cf.

Dylan Evans, Emotion: a Very Short Introduction, Oxford, Oxford University Press, 2001, p.32) 227

Muitos estudos documentam continuidades no comportamento, percepção, cognição e neuro-

fisiologia entre a fala humana e comunicação vocal dos primata de hoje. Ver, nesse sentido, Steven

Mithen, op.cit.., p.149.

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referencial: era usada para gerar uma ação; para interferir diretamente na

realidade; e não para referir-se simbolicamente a uma entidade do mundo externo.

Os gritos de alerta dos macacos-vervet, por exemplo, são capazes de especificar a

ação necessária em função do tipo de predador que se aproxima. Desse modo, três

tipos vocalização indicam se os integrantes do grupo devem subir na árvore mais

próxima (caso o predador seja um leopardo), abaixar-se ou procurar abrigo para a

cabeça (águia), ou então olhar prontamente para o chão (cobra). O conteúdo

sonoro é indissociável da ação por ele gerada – não existe como imagem mental

abstrata que efetivamente refere-se ao leopardo, águia ou cobra.

Diante do novo cenário das planícies africanas, os hominídeos foram

obrigados a trabalhar cada vez mais em conjunto. Caminhando por terra, sem

poder contar tanto com a proteção das árvores, sujeitos a todos os tipos de

predadores, passaram a agrupar-se em bandos cada vez maiores. Com isso, houve

um reforço de sua dimensão de ser social. Quanto mais indivíduos há em um

grupo, mais complexa e tensa tenderá a ser a convivência. Por conta disso, houve

forte pressão seletiva no sentido do aprimoramento da comunicação vocal como

instrumento de regulação social, capaz de promover a cooperação, o entendimento

entre as várias partes. E aqui retomamos a linha direta que marca a continuidade

entre as interações vocais humanas e não-humanas. Assumir que todos esses

aspectos expressivos, seqüenciais e interativos da comunicação já encontravam-se

presentes nos primeiros estágio da evolução dos hominídeos e da linguagem

humana nos permite enxergar melhor essa continuidade. Animais tão diversos

quanto os macacos-gelada, as marsopas (uma espécie de golfiho que vive nas

águas frias do oceano Pacífico norte), as baleias orca, os lobos, os cachorros-

selvagens da África (“mabeco” em Angola), e os corvos, todos eles interagem

vocalmente entre seus grupos. Tentam repetir, às vezes casar com a máxima

precisão, o que os outros estão falando, sobrepondo as vocalizações na intenção

de entrar em fase. Buscam reproduzir o mais fielmente possível o padrão rítmico

que está sendo apresentado, repetir a batida condutora, permanecer dentro dela,

integrado, sem atravessar o ritmo do outro. Richman sugere que “para esses

animais isso faz parte de um poderoso impulso biológico para permanecer ligados

entre si e gerar um estado de sincronia comportamental com os outros”.228

228

Cf. Nils L. Wallin, Björn Merker, Steven Brown, The Origins of Music, p.310.

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Os macacos-gelada das montanhas da Etiópia interagem socialmente

seguindo em detalhes a vocalização de outros indivíduos. Muitas vezes

sincronizam suas próprias vocalizações com as de outros macacos, alternando

com eles, ou até mesmo completando diferentes padrões sonoros. Depois de oito

anos registrando e analisando as vocalizações desses macacos, Richman ficou

impressionado com a imensa variedade de ritmos e melodias que usam: “Fast

rhythms, slow rhythms, staccato rhythms, glissando rhythms; first-beat accented

rhythms, end accented rhythms; melodies that have evenly spaced musical

intervals covering a range of two or three octaves; melodies that repeat exactly,

previously produced, rising or falling musical intervals; and on and on: geladas

vocalize a profusion of rhythmic and melodic forms”.229

No fim, perguntou para

si próprio qual seria a razão para a existência de tanta variedade nessas

vocalizações. A sugestão de Richman é que provavelmente exercem a mesma

função que ritmo e melodia exercem no canto e na fala dos humanos. Mudanças

de ritmo e melodia apontam o início e o fim de uma locução, de modo a permitir

que outros macacos acompanhem o desenvolvimento da vocalização; para que

também saibam quando a vocalização está sendo diretamente dirigida a eles; e

para, finalmente, permitir que outros macacos façam suas próprias contribuições

no momento adequado. Ao mesmo tempo, mudanças no contorno melódico

indicam estados emocionais dos “falantes” em diferentes tipos de contexto social.

Essas mudanças seguem praticamente os mesmos padrões que aqueles

encontrados entre os humanos. As mesmas variações de altura e semelhantes

contornos melódicos são usados para expressar estados emocionais análogos. A

raiva, o medo e alegria do macaco-gelada podem gerar sons semelhantes àqueles

que emitimos diante das mesmas emoções básicas. As vocalizações desses

macacos frequentemente soam como uma conversa entre seres humanos. Talvez

seja possível falar de uma “herança primata” que se revela de forma nítida quando

o discurso humano torna-se saturado de emoção.

229

“Ritmos rápidos, ritmos lentos, ritmos em staccato, em glissando; ritmos acentuados na

primeira batida, ritmos acentuados no fim; melodias com intervalos musicais uniformemente

separados cobrindo um espectro de duas ou três oitavas; melodias que se repetem com exatidão,

previamente criadas, subindo ou descendo os intervalos musicais; e assim em diante: os geladas

vocalizam uma profusão formas rítmicas e melódicas.” (Cf. Apud., Steven Mithen, op.cit.., p.110)

(Tradução Livre)

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Repetindo o que o outros fazem, casando em sincronia sons e movimentos

corporais, entramos em concordância com uma ordem; sinalizamos que estamos

em sincronia comportamental com os demais. Com isso, confirmamos alianças e

pertencimentos; tacitamente anunciamos solidariedade ao grupo; acenamos com a

intenção de resolver possíveis conflitos sociais e emocionais. Num contexto de

grandes grupos e de complexa dinâmica social, como no caso dos animais citados

e também dos primeiros hominídeos - forçados a assim viver porque de outro

modo não seria possível sobreviver - as interações vocais cumpriram uma função

social decisiva. E esse impulso biológico, pelo menos no caso dos humanos,

manifesta-se sobre a forma do prazer. Se, do ponto de vista evolutivo, é vantajoso

que os grupos mantenham-se unidos, deve então haver embutidos na própria

mente mecanismos que incentivam os meios propiciadores dessa união. Cedemos

ao ritmo não necessariamente porque conscientemente queremos contribuir para

um sentimento de solidariedade e união, mas simplesmente porque sentimos

prazer com isso. Porque nossos corpos-mentes são realmente tentados a

experimentar certa organização temporal; a perder-se num contexto maior e mais

amplo; a entrar em fase com algo que nos religa a uma ordem superior, supra-

individual.

É nesse sentido que o apelo do ritmo pode trair de modo formidável ideias e

preconceitos. Tornar-se mesmo perigoso, porque exige uma perda de controle.

Uma perda de controle que, no entanto, pode ser intensamente prazerosa. Numa

sociedade, como foi, por exemplo, o caso de boa parte da sociedade Ocidental

cristã, que valoriza um intenso controle do corpo e das emoções, a ponto de fazer

disso o grande elemento diferenciador entre os indivíduos, uma presença rítmica

mais marcante, e baseada em padrões que não foram oficialmente codificados,

capaz de igualar os corpos em movimento, pode, sim, tornar-se uma ameaça. O

ritmo representa a ameaça que Dioniso faz de rasgar o fino véu da ilusão apolínea

da individuação, da diferenciação entre seres humanos. O apelo do ritmo atenta

contra tal controle. Essa ameaça torna-se ainda maior quando se constata o fato de

que os corpos dos que estão “abaixo” no edifício social parecem muito mais

preparados e sofisticados na execução dos movimentos dançantes que

acompanham o ritmo musical do que aqueles que estão “acima” (como foi um

pouco o caso do que aconteceu nos Estados Unidos e também no Brasil). Há uma

verdadeira inversão embutida nisso – em dado momento o dito “inferior” torna-se

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“superior”. A música mais fortemente ritmada, em sua relação intrínseca com o

movimento, com os padrões corporais que nela estão embutidos, real ou

virtualmente, torna-se, por assim dizer, portadora de “índices de um corpo popular

livre, de uma dominação que ainda não se deu por completo”.230 Corpo que

representa novas possibilidades de prazer sensual, físico, tornando-se inclusive

desejável aos olhos de membros de uma elite formada de acordo com os preceitos

físico-estéticos do século XIX. Creio que muito dessa dinâmica permeou a entrada

da força rítmica africana na tradição musical européia no território das Américas.

Essa força, contudo, é menos brutal ou selvagem, como muitas vezes foram

etnocentricamente descritas as tradições rítmicas africanas por ouvintes

ocidentais, e mais irresistivelmente sedutora. No início do século XX, americanos

brancos acreditaram por alguns instantes que tinha sido Nick LaRocca (branco e

picareta) o verdadeiro inventor do jazz. Puderam desse modo se lançar com ainda

maior frenesi - e menos culpa - na dança daquele novo estilo. A história registrou

a apropriação indébita como um episódio lastimável no qual mais uma vez a elite

branca tentaria usurpar as valiosas contribuições dos negros para a vida naquele

país. Mas é possível enxergar tudo isso por um outro ângulo. Talvez, no fim das

contas, a picaretagem de LaRocca tenha servido para facilitar o posterior e

praticamente inevitável triunfo do jazz. Não admitindo a sedução de algo que

trazia as marcas da ralé negra, dos ex-escravos que ocupavam o mais baixo degrau

da escada social, foi preciso que alguns grupos de elite criassem uma ilusão que

desativasse seus terríveis preconceitos e permitisse assim que seus corpos se

lançassem em um novo mundo sonoro. Com a consciência anestesiada pela

insólita mentira, puderam entregar-se de corpo e alma àquilo. Foram imantados

pelo jazz. Não se trata de mera aceitação. Foi em boa parte a partir do triunfo da

música popular que se deu a paulatina valorização da contribuição cultural dos

afro-descendentes na América do Norte.

No Brasil, um sinuoso processo de negociação entre membros de uma elite

progressista, políticos, intelectuais e artistas oriundos das camadas baixas levaria,

nos anos 1930, até a consagração do samba urbano carioca como emblema sonoro

do país, como símbolo maior de uma brasilidade popular e mestiça. Mas também

esta consagração já vinha sendo preparada em silêncio, longe dos olhos oficiais, e

230

Cf. José Miguel Wisnik, Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil, São Paulo, Companhia das

Letras, 2008, p.402.

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tornava-se cada vez mais aparente no triunfo espontâneo e avassalador da canção

comercial nas rádios, do carnaval nas ruas e do futebol como paixão popular. Boa

parte do substrato dessa canção vinha de um certo regime “malandro”, do modo

como diferentes tradições foram retrabalhadas, no contexto urbano, por uma

franja social do regime escravista, composta por homens livres que sem ser mais

escravos tampouco haviam sido integrados no novo quadro pós-abolição. José

Miguel Wisnik notou que, embora localizado num setor intervalar da sociedade

escravista, “esse regime ‘malandro’ teve o poder de se irradiar pelo conjunto

social num processo cujo caráter contagiante desafia a interpretação”.231 Antes de

Wisnik, Antonio Candido já havia sugerido que tal segmento era a expressão mais

nítida e definida da dinâmica de funcionamento de uma sociedade que “ganhou

em flexibilidade o que perdeu em inteireza e coerência” – uma sociedade que “se

abriu com maior largueza à penetração dos grupos dominados e estranhos”.232 É

sintomático que o período-chave da formatação da canção popular urbana (as

últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX) coincida com a

transição do país escravocrata para o país livre – em certo sentido, com a própria

libertação dos corpos.

...

As continuidades comportamentais entre humanos e outros animais formam

o fundo sonoro/emotivo sobre o qual seria mais tarde construído o grande edifício

da linguagem. O fundo, no entanto, permanece - ainda que passe um pouco

despercebido pela atenção que geralmente se foca sobre os conteúdos

propriamente verbais, sobre o significado simbólico da linguagem. Na música,

contudo, ele passa para o primeiro plano e pode ser notado com maior facilidade.

A história evolutiva assegurou que a mente humana se desenvolvesse para

apreciar a melodia e o ritmo, que eram a principal do processo de comunicação

antes que este fosse quase que inteiramente dominado pela linguagem.

Vocalizações conjuntas, baseadas em sincronias rítmicas intricadas, precisamente

calculadas no tempo, fosse através da dinâmica de canto e resposta ou da

231

Cf. José Miguel Wisnik, op.cit.., p.422. 232

Cf. Antonio Candido, “A Dialética da Malandragem”, In. O Discurso e a Cidade, São

Paulo/Rio de Janeiro, Duas Cidades/Ouro Sobre Azul, 2004, p.43.

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sobreposição de vozes, podiam ter o efeito de facilitar as interações sociais,

fortalecer a coesão e identidade do grupo, como se fossem “canções”. Ou

simplesmente dar vazão e/ou induzir a determinados estados emocionais.

A qualidade gregária da atividade musical nas mais diversas culturas, assim

como a constatação de que ela é primeiramente e acima de tudo uma atividade

coletiva, trouxe relevo para a justificativa evolutiva da música como sendo uma

espécie de biotecnologia da formação de grupos. Algo capaz de criar, até mais do

que manter, um poderoso senso de unidade. Meio século de pesquisas

etnomusicológicas sugerem que uma das principais funções, senão a principal

função, do ato de fazer música seja promover a cooperação, coordenação e coesão

grupais. Duas características específicas da música fazem dela uma poderosa arma

nesse sentido. Enquanto o discurso normalmente requer um dinâmica de

alternância entre os falantes, na música a simultaneidade não apenas é possível,

como desejável. Parece fazer parte de sua estrutura mais íntima e essencial. Há

nela uma qualidade fusional, capaz de permitir o agrupamento vertical do som, a

combinação sincrônica de diferentes vozes seja capaz de promover um sentido de

performance grupal e harmonização interpessoal. Da polifonia dos pigmeus do

Gabão às heterofonias das cantoras búlgaras, poucas manifestações humanas são

tão eficientes na promoção da simultaneidade. Na música os sons podem ser

fundidos e transformados numa outra coisa – as partes se unem e formam um

conjunto que é, por si só, algo diferente, maior. E sem que com isso se elimine

totalmente a singularidade das partes. De fato, na grande maioria dos casos a

música tem sido por excelência uma atividade conjunta, interativa, na qual tomam

parte, numa espécie de acordo, as mais diversas partes. Mas não é apenas sua

dimensão vertical que permite isso. Como já vimos, o próprio ritmo constitui um

artifício dos mais eficientes na coordenação de ações conjuntas, movimentos

cooperativos e trabalho de equipe.

Vem daí a comum disposição em círculo na hora de fazer música. Do

inúmeros rituais de canto e dança que se dão sobre uma circunferência de vozes

espacialmente colocadas; das primeiras rodas de samba no nordeste brasileiro,

num universo ainda rural, às rodas de violão nos apartamentos modernos da orla

carioca. Como se o universo se fechasse sobre si num princípio de ordem,

princípio ativado tanto por uma construção sonora quanto por uma organização

espacial. Uma bela descrição imaginária, baseada nos vestígios de um sítio

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arqueológico na África Oriental, do como teria sido a comunicação cotidiana dos

primeiros hominídeos nos é dada por Steven Mithen. A cena se passa há 1.6

milhões de anos atrás. Cerca de 35 hominídeos estão reunidos em um local que,

estima-se, era destinado à distribuição de alimento entre os integrantes do grupo

(foram achados no local os ossos de pelo menos vinte espécies de animais:

antílopes, girafas, babuínos, tartarugas e pássaros):

Emanating from the site would have been a variety of calls, reflecting the diversity

of activities, how these changed through the day, and the varying emotional states

of individuals and the group as a whole. One might have heard predator alarm

calls; calls relating to food availability and requests for help with butchery; mother-

infant communications; the sounds of pairs and small groups maintaining their

social bonds by communicating with melodic calls; and the vocalizations of

individuals expressing particular emotions and seeking to induce them in others.

Finally, at dusk, one should perhaps imagine synchronized vocalizations – a

communal song – that induced calm emotions in all individuals and faded away

into silence as night fell and the hominids went to sleep in the trees. 233

O período de aperfeiçoamento do movimento em duas pernas coincide

também com um grande desenvolvimento cerebral nos hominídeos. A ideia é que

a uma complexidade maior de movimentos corresponde uma maior capacidade de

comandar esses movimentos. Gastamos mais matéria cinzenta manipulando o

polegar da mão do que no controle total dos músculos do tórax e do abdômen. Ser

bípede exige um cérebro mais amplo e um sistema nervoso mais eficiente, capaz

de dar conta de um maior grau de sofisticação do aparelho sensório-motor. De um

equilíbrio e de uma organização rítmica também muito mais complexas. Com o

início das eras glaciais, há dois milhões de anos, começa um longo processo de

expansão do cérebro dos hominídeos. Até chegar ao ser humano moderno, a área

do córtex irá quadruplicar de tamanho. Steven Mithen especulou que “o impacto

do bipedalismo no modo como movemos e usamos nossos corpos, junto com o

seu impacto sobre o cérebro humano e sobre o trato vocal, pode ter iniciado a

233

“Do sítio deviam emanar uma diversidade de chamados que refletiam a variedade de atividades,

como estas modificavam-se ao longo do dia, assim como os variados estados emocionais dos

indivíduos e também do grupo como um todo. Devemos imaginar chamados alertando para a

presença de predadores; chamados destinados a informar a disponibilidade de alimento e também

demandando ajuda no ofício de extrair pedaços de carne da carcaça; comunicação entre mãe e

criança; sons vindos de pares e de pequenos grupos que mantém seus laços sociais comunicando-

se por chamados melódicos; e também as vocalizações de indivíduos expressando emoções

particulares e procurando induzi-las em outros membros do grupo. Finalmente, no findar do dia,

devemos talvez imaginar vocalizações sincronizadas – uma canção comunitária – capaz de

produzir emoções serenas em todos os indivíduos até desaparecer lentamente no silêncio,

enquanto a noite cai e os hominídeos encaminham-se para dormir nas árvores”. (Cf. Steven

Mithen, op.cit.., p.137) (Tradução Livre)

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maior revolução musical da história humana”.234 A declaração do especialista em

arqueologia cognitiva generaliza, talvez demasiadamente, o que devemos entender

por “música”. No entanto, ela faz eco com muitas das afirmações do

etnomusicólogo John Blacking, que soube reconhecer como poucos a íntima

relação da música com o movimento do corpo. O modo como ambos derivam de

uma mesma capacidade sensório-motora, de uma unidade perceptiva que integra

espaço e tempo, e do mesmo complexo corpo-mente. “Many, if not all, of music’s

essential processes may be found in the constitution of the human body and in

patterns of interaction of human bodies in society. Thus all music is structurally,

as well as functionally, folk music”, escreveu Blacking.235 E ao utilizar o termo

“folk music” não deixa de sinalizar para o modo como as tradições populares

mantiveram unidos corpo e música – o que não parece ter ocorrido na tradição

erudita européia.

De fato, tão importante quanto a evolução das juntas do joelho, de quadris

mais estreitos, de músculos glúteos mais fortes para equilibrar melhor o

movimento, o bipedalismo exigiu a evolução de mecanismos mentais capazes de

manter a coordenação rítmica dos grupos musculares. Sua complexa sinergia, a

orquestração simultânea, integrada, de diversos elementos. Exigiu um cérebro que

pudesse operar o controle temporal da complexa coordenação dos grupos

musculares envolvidos nos mais simples movimentos. Sem essa habilidade

cognitiva, o movimento perderia fluidez e naturalidade. Sem um mecanismo

adequado de ritmo interno, a mais simples ação corporal se tornaria uma

verdadeira batalha. Pessoas que eventualmente perderam tal habilidade não

conseguem sequer se concentrar, o que sugere que a coordenação rítmica também

é algo extremamente necessário para a coordenação puramente mental de ideias

abstratas. Há indícios da presença de uma via de comunicação áudio-motora no

sistema nervoso. Parâmetros sonoros teriam o poder de exercer efeito direto na

atividade dos neurônios motores da espinha dorsal. Ouvimos uma música e

234

“The impact of bipedalism on how we move and use our bodies, together with its impact on the

human brain and vocal tract, may have initiated the greatest musical revolution in human

history”.(Cf. Idem, Ibidem, p.139) 235

“Muitos, senão todos os processos essenciais da música devem ser encontrados na constituição

essencial do corpo humano e em padrões de interação dos corpos humanos em sociedade. Desse

modo toda música é estruturalmente, assim como funcionalmente, música popular (folk music)”.

(Cf. John Blacking, How Musical is Man, p.x-x1) (Tradução Livre)

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intuitivamente começamos a bater os pés e a estalar os dedos, marcando a

pulsação.

Se é verdade que todos os mamíferos respondem de alguma forma à

recorrência de uma marcação em intervalos regulares de tempo, somente os

humanos deixam-se embalar em movimentos corporais muitas vezes

inconscientes – quase como se houvesse o corpo um pendor natural e próprio para

a dança. É o que vemos e sentimos quando a música é fortemente ritmada. Em

parte, veio disso o grande contraste e choque provocado pela emergência das

músicas populares do século XX, quando novamente trouxeram o ritmo para o

primeiro plano - um efeito que parecia puramente corporal, que não passava pela

mediação do intelecto, do entendimento, e que, embora organizado, representava

um grande perigo desagregador, uma ameaça de barbárie. Os musicólogos

americanos chamam a esse efeito de “entrainment” – algo capaz de arrastar.

Importante é notar que os chimpanzés, nossos parentes vivos mais próximos, não

exibem o mesmo tipo de resposta corporal. Não são movidos pela música humana.

Talvez a ausência de bipedalismo pleno entre eles signifique também a ausência

desse fenômeno corporal, desse modo específico de ser afetado pela música.

Tudo leva a crer que conforme nossos ancestrais foram se transformando em

seres bípedes também suas capacidade musicais inerentes foram sendo

transformadas. Libertaram as mãos e os braços da função locomotora. O próprio

torso tornou-se mais independente dos membros inferiores. Passaram a operar

simultaneamente com uma quantidade maior de sistemas rítmicos. O novo grau de

controle motor exigido para o movimento em duas pernas, junto com o

desenvolvimento de um ritmo interno, de habilidades para inconscientemente

marcar o tempo aumentaram, a partir do Homo Ergaster, nosso potencial para a

gesticulação e para a linguagem corporal. Ampliaram também o potencial para a

expressão vocal e para a música. Colocando em outras palavras, e tomando

emprestada a reflexão do psicólogo musical John Sloboda, música é a

incorporação/encarnação do mundo físico em movimento.236 Morasse o homem na

lua, submetido a outras leis físicas, e/ou tivesse ele outro tipo de corpo, com

outras possibilidades de movimento e diferente estrutura, sua música seria

completamente diferente.

236

Em inglês o termo seria “embodiment”. Ver, nesse sentido, Steven Mithen, op.cit.., p.24.

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No que diz respeito ao corpo, tudo parece intimamente ligado e tudo se

conecta ao movimento. Os sentidos são sistemas perceptuais compreendidos em

sua própria arquitetura funcional. Existem a partir deste, com base nele. Nossa

percepção visual, por exemplo, e também a dos animais, está anexada, acoplada

ao próprio movimento. Ela existe por causa do movimento; existe em movimento

– mesmo quando estamos “parados”, o que no sentido estrito jamais acontece.

Trata-se de uma reconstrução do mundo a partir do fluxo de informações que

resultam do movimento. De certo modo, mesmo os pensamentos – padrões de

atividade espaço-temporal que formam códigos no cérebro – podem ser

considerados como “movimentos” que ainda não se realizaram (e que talvez

jamais se realizem). É desse modo que o aprimoramento sensório-motor pode

estar na base do desenvolvimento de funções intelectuais aparentemente abstratas,

ditas superiores, como a sintaxe, o planejamento lógico, os jogos com regras, e a

própria música. Como se essas faculdades tivessem um núcleo comum que, uma

vez aprimorado, se desdobraria no avanço insuspeitado de outras faculdades a ele

ligadas. Dito de outro modo, é como se esse núcleo representasse um tipo de

inteligência maior, una, que integra todas as pontas do corpo, e da qual a música

seria um dos desdobramentos mais refinados. A música, capaz de reintegrar

novamente os cacos de inteligências dispersas no monolito único do ser. O

neurofisiologista Willian H. Calvin sugere que na base desse núcleo comum

estaria a paixão humana por reunir coisas e formar conjuntos: palavras em frases,

notas em melodias, passos em danças, narrativas em jogos com regras

precedentes. Sugere também que,

Por mais improvável que a ideia pareça, o planejamento de movimentos balísticos

por parte do cérebro pode ter promovido a linguagem, a música e a inteligência.

Tais movimentos são ações extremamente rápidas dos membros, as quais, uma vez

iniciadas, não podem ser modificadas. Bater um prego com um martelo é um

exemplo. Os grandes macacos só têm versões elementares dos movimentos

balísticos de braço nos quais os humanos são especialistas – martelar, golpear e

arremessar.237

No contexto de radicais mudanças climáticas promovidas pelas eras

glaciais, aprimorar a capacidade de caçar e de construir ferramentas eram

contribuições preciosas às estratégias de sobrevivência desses hominídeos. Isso

exigia um domínio cada vez mais apurado do corpo. Da interação profunda entre

237

Cf. Willian H. Calvin, op.cit.., p.88.

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corpo e pensamento. Exigia movimentos precisos e seqüenciados. Movimentos

que deviam ser previamente planejados pelo cérebro. Martelar uma pedra maior

sobre uma veio rochoso, para dele extrair afiadas lâminas de pedra capazes de

destacar a carne dos ossos de um animal morto exige coordenação. Exige o

planejamento da seqüência exata da ativação de dezenas de músculos. Controle da

força. Capacidade de observação. Descobertas arqueológicas recentes mostram

que há 40.000 mil anos atrás os humanos pré-modernos já fabricavam lanças de

madeira.238 Deviam usá-las como armas de caça para abater grandes mamíferos -

cavalos, cervos, talvez até elefantes. O arremesso dessas lanças exigia uma

coreografia ainda mais complexa entre as capacidades de previsão e o controle

apurado dos movimentos do corpo. Um cálculo integrado, intuitivo, entre a

antecipação do evento e a atividade necessária. Assim como faz um gato, que

salta para pegar um passarinho já tendo previsto um pequeno deslocamento da ave

– salta, portanto, mirando não exatamente onde o passarinho se encontra na hora

do pulo, mas um pouco à frente, para que o deslocamento deste vá de encontro às

suas garras. De modo semelhante, no caso da caça com lanças, a dificuldade é

ampliada pela brevidade da janela de lançamento – o intervalo de tempo dentro do

qual o projétil tem possibilidade de atingir o alvo. Se dobra a distância do caçador

em relação ao cavalo que corre à frente, a janela de lançamento torna-se oito

vezes mais estreita. Um novo nível de precisão é exigido, uma superior

capacidade de planejamento mental. Um planejamento que vai demandar a

atividade de 64 vezes mais neurônios. Neurônios que “funcionam como

mecanismos de sincronização independentes trabalhando em conjunto, como um

coro de cantores medievais recitando um cantochão em uníssono”.239 Uma vez

iniciado o movimento, o braço não mais pode ser detido. É tudo tão rápido que é

preciso haver um cálculo prévio da seqüência exata de contrações musculares.

Depois de planejada, a execução do movimento vai exigir uma coreografia rítmica

perfeita.

Possivelmente alguns dos mecanismos neurais que elaboram tais

movimentos complexos contribuíram também para facilitar outros tipos de

planejamento e de ação. A destreza apurada dos movimentos balísticos poderia,

238

A descoberta arqueológica das mais antigas lanças de madeira foram feitas em 1995, num sítio

ao sul da Alemanha. Ver Steven Mithen, op.cit.., p.160. 239

Cf. Willian H. Calvin, op.cit.., p.89.

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desse modo, refletir-se num acréscimo de habilidade dos próprios movimentos da

boca, por exemplo, já que ambos derivam da mesma capacidade motora.

Acidentalmente, amplia-se o dom da fala, a possibilidade de produzir sons cada

vez mais complexos, trabalhados, ricos e variados. Era o corpo inteiro que ia se

afinando, tornando-se mais sutil e nuançado em seus movimentos. Quando

falamos do movimento, estamos também nos referindo à capacidade de realizar

longas seqüências espaço-temporais. A um maior controle rítmico do corpo

equivale também uma apreensão mais ordenada do tempo, uma ampliação da

própria memória. O aprendizado do corpo reverbera por caminhos inesperados.

Willian Calvin chega a sugerir a existência de um seqüenciador comum aos

movimentos da mão e à linguagem; há evidências que apontam para a

especialização cortical da faculdade de sequenciamento. É possível que

seqüências maiores de movimentos corporais coordenados tenham também

permitido seqüências discursivas mais longas, unificadas talvez por padrões

rítmicos recorrentes. No centro da área especializada em linguagem está uma

região ligada à audição de seqüências sonoras, que parece igualmente envolvida

na produção de seqüências de movimentos que abrangem o rosto e a boca,

inclusive daqueles que não estão envolvidos na linguagem. Ao que tudo indica, o

“córtex da linguagem”, como geralmente é definido, possui uma função muito

mais generalizada do que se pensava. Ele está envolvido em seqüências de

sensações e movimentos nas mãos e na boca.

Tudo isso deve ter produzido vocalizações cada vez mais expressivas,

moduladas por uma gama crescente de sons que resultavam da fineza de

movimentos da língua e dos lábios - movimentos que por sua vez eram burilados

em ações como morder, lamber, chupar. Vocalizações mais ritmicamente

marcadas, capazes de se expandir temporalmente em padrões mais articulados,

melhor definidos, adequados tanto ao fôlego médio dos indivíduos quanto às

limitações da memória. Vocalizações aptas a dar conta de um leque cada vez mais

matizado de emoções coletivas e individuais. Padrões mais interativos, passíveis

de serem recordados e socialmente fixados através da repetição, transformando-se

em fórmulas significantes, gerando os conteúdos holísticos que devem ter

permeado boa parte da comunicação pré-linguística – antes da subdivisão em

unidades menores que podiam rearticular-se em novos significados, e que acabou

gerando a linguagem composicional. Fórmulas holísticas que não podem ser

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decompostas em partes que possuam, por si só, um significado (como acontece a

uma frase que pode ser decomposta em palavras com significado próprio); que

sugerem um significado ligado à totalidade sonora e cumprem uma função social,

representando ações concretas e acontecimentos específicos.

Talvez os mantras indianos possam nos trazer uma ideia das fórmulas

holísticas que possivelmente foram usadas por nosso antepassados. Os mantras

são expressões relativamente fixas que não possuem qualquer significado ou

estrutura gramatical. Longas seqüências sonoras memorizadas, passadas de

geração para geração, utilizadas para fins específicos da vida humana. São

seqüências sonoras capazes de “criar transformação”. Fórmulas vocais nonsense,

que prescindem totalmente das palavras, e cujo sentido está na totalidade sonora

do que aquilo representa. Transmitidos do mestre ao pupilo, para que possam

manter a sua eficácia simbólica, os mantras exigem não apenas uma correta

pronuncia das vocalizações, mas também o ritmo correto, a variação melódica

adequada e a postura corporal necessária. Os mantras budistas são, desse modo,

fórmulas fixas que pouco ou nada mudaram em séculos de existência. Algo que,

com base em nossas categorias habituais, não pode ser definido nem como música

nem como linguagem. É possível que assim tenha sido os primórdios da

comunicação humana, algo parecido com uma musilíngua.240 De modo

semelhante, o significado do canto sem significado aparente dos Havasupai para

bloquear veneno de cobra é propiciar a cura de um ferimento. Nele também não

há palavras, mas agregados de sons produzidos vocalmente e reproduzidos do

modo mais exato possível. O sentido está na fórmula inteira, na unidade do corpo

sonoro e em sua eficácia simbólica (para usar um termo de Lévi-Strauss). “A

eficácia persuasiva do rito depende aí do significante, a música da língua, tanto ou

mais do que dos seus conteúdos”.241

Parece que no desenvolvimento da linguagem foram somando-se,

acumulando-se sucessivas dimensões expressivas, mais do que substituindo-se.

Remanescentes vivos de antigas práticas vocais foram desse modo retidos e

dispostos lado a lado com aquilo que aparentemente constitui a parte mais recente.

De fato, todas as línguas trazem até hoje exemplares desse intrigante tipo de

240

Ver, Steven Brown, “The ‘Musilanguage’ Model of Music”, In. Nils L. Wallin, Björn Merker,

Steven Brown, The Origins of Music, p.271-300. 241

Cf. José Miguel Wisnik, O Som e o Sentido, p.92.

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fórmula vocal nonsense. Fórmulas que iam aos poucos sendo memorizadas e

socialmente codificadas. Aquelas que conseguiam de certo modo transcender a

dimensão de sons puramente emotivos, que acompanhavam os estados de espírito,

e refinavam o seu sentido, tornavam a linguagem um pouco mais específica. Essas

fórmulas ainda podem ser encontradas, por exemplo, nas brincadeiras infantis –

no “uni-duni-tê, sala-mê-min-guê” e na “ado-lê-ta” das crianças brasileiras; ou no

“eeney-miney-mo”, cantado por crianças anglofônicas. Longas seqüências

sonoras cuja função é contar os potenciais participantes de determinado jogo, ou

efetuar uma espécie de ritual para escolher ou eliminar um dos jogadores. O

significado está na seqüência inteira. Ninguém sabe ao certo de onde vieram essas

fórmulas. Também elas parecem atravessar o tempo. Tampouco parece haver

nelas qualquer vestígio de cultura – elas são profundamente impessoais e nos

remetem diretamente ao tempo dilatado da infância (uma infância qualquer).

Algumas vezes, essas fórmulas incorporam palavras existentes, reconhecíveis,

mas retiram delas qualquer tipo de coerência, pois o que interessa é a sonoridade

pura – o sentido faz-se quase como se fora um acidente, no caso, um acidente

engraçado. Geralmente as crianças costumam cantar unidas em uníssono (às vezes

de mãos dadas, formando círculos), de modo perfeitamente sincronizado; as

fórmulas são chaves de acesso ao grupo, de pertencimento e de instauração da

atmosfera da brincadeira. E, para que funcionem dessa maneira, precisam ser

decoradas.

A força dessas fórmulas venha de sua capacidade de permanência na

memória. E essa permanência é tornada possível pela redundância poética que

apresentam. Pela recorrência de padrões, pelos ritmos, que facilitam a sua

apreensão e memorização. São essas feições, que nelas se apresentam de modo

muito mais marcado do que na fala normal, os elementos responsáveis por atá-las

mais fortemente por dentro, criando uma forte ligação entre as partes, de modo

que, uma vez que começamos a fala-las, temos a impressão de que somos

arrastados até o fim. “A huge amount of alliteration, rhyme, parallelism of

rhythms and forms help them stick together and be memorable as whole units.

Obviously, such poetic redundancy was quite crucial for the earliest fixed

formulas”.242 O que está sendo sublinhado é a imensa riqueza expressiva que

242

“Uma imensa quantidade de aliterações, rimas, paralelismo de ritmos e formas ajudam com que

elas mantenham-se unidas e sejam lembradas como unidades inteiras. Obviamente, tal redundância

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surge com o refinamento rítmico do corpo e que já estava na base do próprio

desenvolvimento da linguagem moderna. Riqueza que deve ter gerado uma

comunicação vocal polifônica, ritmada, multimodal, expressiva, holística e

colaborativa entre os primeiros homens. E que hoje continua como cor subjacente,

capaz de trazer luz e textura ao frio império das palavras abstratas.

Essas fórmulas holísticas, contudo, não parecem ser apenas reminiscências

de um passado longínquo da comunicação humana – passado que sobreviveria,

por exemplo, nos mantras ou em vocalizações nonsense. Alguns linguistas

argumentam que elas formariam mesmo a base de nossa comunicação até os dias

de hoje. Que sem elas, jamais seria possível acompanhar o ritmo, a rapidez de

uma conversa atual. Ainda que o poder criativo da linguagem certamente venha

de sua natureza composicional, da combinação gramatical de palavras, grande

parte de nossa comunicação acontece por meio de locuções holísticas. Se

pensarmos bem, geralmente falamos sem muito esforço, como se as seqüências

das palavras já nos fossem dadas de antemão. Do mesmo modo, geralmente não

precisamos esperar o término de uma frase falada para antecipar o seu significado

e já preparar uma resposta. Também no diálogo, como na música, nossa

capacidade de previsão está sendo frequentemente acionada. Muitos jogos de

linguagem, como algumas piadas, trabalham justamente sobre essa expectativa,

contrariando-a numa inversão de sentido – o ponto alto da torção quase sempre se

dá no fim da locução. Se prestarmos mais atenção em conversas com muitos

falantes, veremos também que nelas há uma grande quantidade de repetições.

Sobreposições de falas, gestos, modulações de intensidade e altura formam uma

densa malha sonora. As repetições costumam gerar ritmo e também ajudar na

previsibilidade. E, ao contrário do que acontece no caso da música, os ritmos da

fala são previsíveis, mas não-periódicos.

Realmente, as pessoas não falam respeitando uma estrutura de compasso,

batendo a tônica nos tempos fortes. São raras as seqüências em que isso acontece.

E, no entanto, o discurso normal exibe certa previsibilidade dos padrões

temporais. É possível prever intuitivamente como se organiza sua forma temporal.

Todas as línguas exibem padrões de duração e de ênfase silábicas sem os quais

sua pronuncia torna-se não apenas artificial, mas difícil de entender. Um ritmo

poética foi absolutamente crucial para as primeiras fórmulas fixadas”. (Cf. Bruce Richman, In.

Nils L. Wallin, Björn Merker, Steven Brown, op.cit.., p.311) (Tradução Livre)

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próprio que contribui ativamente para a percepção da língua, que a torna mais

previsível e confortável. David Huron explica que “a dificuldade de

processamento é um dos sintomas da expectativa imprecisa. Ouvintes esperam

que os aspectos temporais do discurso se conformem aos padrões convencionais

de discurso – mesmo que esses padrões não necessariamente sejam de natureza

periódica”.243 A correspondência de expectativas entre quem fala e quem ouve

pode gerar sincronia. Essa sincronia rítmica e interativa é crucial para que as

pessoas possam prever e entender os fluxos comunicativos e os movimentos dos

outros. Quando algo engraçado é contado, todos riem ao mesmo tempo, pois

estavam pulsando em fase. Se duas pessoas falam a mesma fórmula verbal

concomitantemente no meio disso, revela-se uma espécie de concordância; cria-se

um princípio de empatia.

A velocidade e a fluência de grande parte das conversas que temos em nosso

dia a dia pressupõe, de certa maneira, a existência de verdadeiras fórmulas

verbais, blocos inteiros de palavras, que, embora possam ser decompostos em

unidades menores, tendem a ser usados como locuções inteiras – significados

compactados. Quer dizer que tendemos a nos comunicar a maior parte do tempo

por locuções holísticas abertas, de estrutura pré-moldada – “oi, tudo bem?”, “o

que é que houve?”, “o próximo, por favor!”. Locuções que funcionam como

estruturas abertas, com espaços passíveis de serem preenchidos por variações de

sentido – “eu quero ir pra casa”/ “eu preciso ir pra casa”/ “eu adoraria ir pra

casa”.244 E que, por já virem previamente montadas, podem ser retiradas com

grande agilidade, sem que seja necessária a aplicação de regras gramaticais – sem

que para isso seja preciso um extenuante trabalho mental. Lembra um processo de

montagem, no qual agregados de palavras ganham sucessão temporal, criando

sentidos. A utilização de fórmulas preexistentes, que podem ser manipuladas e

reconstruídas de variadas maneiras, constitui também um dos principais

dispositivos de redundância do discurso musical, junto com a repetição e o alto

nível de previsibilidade do que está por acontecer.245 Há um verdadeiro baú de

243

“Processing difficulty is one of the symptons of inaccurate expectation. Listeners expect the

temporal features of speech to conform to conventional speech patterns – even though these

patterns may not be periodic in nature”. (Cf. David Huron, op.cit.., p.188) 244

Para melhor iluminar o trabalho mental de articulação da fala, a lingüista Alison Wray cunhou

o conceito de formulaic phrases - “prestored in multiword units for quick retrieval, with no need to

apply grammatical rules”. Ver Steven Mithen, op.cit.., p.277. 245

Ver, nesse sentido, Bruce Richman, op.cit.., p.304.

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temas, riffs, motivos e padrões rítmicos e melódicos que funcionam um pouco

como as fórmulas utilizadas no discurso verbal. São espécies de diretrizes de

estilo – esquemas, linhas gerais que no mais das vezes embora alteradas nos

detalhes costumam obedecer a premissas mais amplas. Padrões que, ao serem

trazidos para dentro da composição musical, ajudam a gerar as bases de boa parte

das expectativas que conduzem a escuta. Desse modo, tanto a música quanto a

fala tiram proveito de nossa paixão por reunir coisas.

Num certo sentido, a evolução esteve (está) muito mais próxima do falante

que fala com capacidade de encantamento, de impacto emocional, de fascínio e

inteligência rítmica, daquele que revela de modo mais nítido que todo discurso é

um discurso do corpo inteiro, do que da monotonia fria e tediosa de um orador

insípido. De fato, uma intensa expressividade emocional devia estar na origem da

comunicação vocal desde os seus primórdios. Talvez seja necessário ir além do

sentido pragmático da comunicação, como se ela sempre almejasse uma ação, um

resultado. Pois para além do sentido das palavras, a vocalização humana parece

ter um fim em si mesma. Seu objetivo é simplesmente criar laços, manter as

pessoas juntas, envolvidas numa atividade comum. E podemos dizer que é da

fruição das qualidades “musicais” da fala que brota uma considerável dose do

prazer da conversa. Falar, simplesmente falar e ouvir: a vocalização por si só

parece ser uma das principais forças de conexão entre as pessoas. Se perdemos um

pouco a sensibilidade para notar esse rio submerso que corre sob o sentido

imediato e mais pragmático do discurso, é porque aparentemente passamos a focar

demasiadamente a atenção sobre as palavras – como se estas fossem entidades

abstratas(talvez pudéssemos dizer que são as canções que recuperam o esquecido

prazer sonoro das palavras, transitando entre o signo mental e o gozo sensual dos

sons puros, retomando o vínculo ancestral com as vocalizações dos primeiros

hominídeos). Não devemos esquecer que também as palavras estão inseridas na

grande performance corporal que é o ato de falar. É através da combinação de

diferentes gestos vocais de expressão emocional, gestos cotidianamente usados,

que podemos ter uma ideia aproximada do imenso e sofisticado repertório natural

de matérias vocais inicialmente disponíveis para serem usadas na linguagem

socialmente construída.

Para melhor apreciar as diversas dimensões que se entrelaçam e se

completam na fala moderna, e seus vínculos profundos com as mesmas

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capacidades que fazem de nós seres extremamente musicais, será necessário

seguir o princípio segundo o qual é da complexidade que vem a complexidade.

Devemos seguir o princípio segundo o qual na base de comportamentos

complicados como a linguagem humana estão não a pobreza de recursos,

milagrosamente convertida em potencialidade nova, mas a própria riqueza e

diversidade. Seja sob o ponto de vista da biologia ou da cultura, é preciso pensar

que a complexidade sempre vem de outra complexidade que a antecede, uma

complexidade que operava num espaço distinto. Jamais surge do nada. O que nos

afasta da versão caricatural dos primeiros hominídeos grunhindo e apontando para

os objetos. A versão comum de que a linguagem começou com locuções

monossilábicas, isoladas, espécies de proto-palavras, não consegue explicar como

foi que essas unidades separadas foram depois unidas em longas e fluentes

seqüências. “There are good reasons for assuming that each feature of many-

voiced talking represents primary, original features of human spoken

vocalizations and not later developments. The long sequences that occur today can

only have come from a history of people producing long sequences. People must

have been quite adept at producing such sequences quite fluently from a very

early time.(...) In addition, rhythmic complexity must have come from previous

rhythmic complexity. The incredibly intricate rhythmic forms of speech and

speech interaction that occur when many voices converse must have come from a

long history of intricate control and many-voiced interaction of rhythms”.246 O ato

da fala seria, desse modo, uma atividade motora. Os lançamentos acurados teriam

ajudado os hominídeos a melhor sobreviver aos episódios de resfriamento nos

trópicos. Ao criar uma tecnologia da caça, teria também os tornado mais

adaptados ao inverno em zona temperada. Tornaram-se mais adaptados à

diversidade climática do planeta. Podiam migrar com mais facilidade para outras

regiões. É possível que o planejamento das atividades de caça tenha servido de

incentivo para potencializar a capacidade de comunicação entre esses primeiros

homens. Há um percurso óbvio que leva da projeção mental da palavra à sua

246

“Existem boas razões para supor que cada aspecto da fala multi-vocal representa aspectos

primários, originais, da vocalização humana, e não desenvolvimentos posteriores. As longas

seqüências que ocorrem hoje só podem ter vindo da história de pessoas que produziam longas

seqüências. Essas pessoas devem ter sido aptas a produzir tais seqüências de modo bastante fluente

desde tempos muito remotos.(...) Além do mais, a complexidade rítmica deve ter vindo de uma

complexidade rítmica anterior. As incrivelmente intrincadas formas rítmicas do discurso e a

interação que ocorre quando muitas vozes conversam deve ter vindo de uma longa história de

intrincado controle e interação multi-vocal de ritmos”. (Cf. Bruce Richman, op.cit.., p.309)

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realização concreta através da mecânica corporal. É quando ela ganha o peso da

carne.

Mas há também um percurso reverso, através do qual o próprio movimento

do corpo reflete-se nas ideias, na capacidade cognitiva, no pensamento. Nietzsche

foi um dos pensadores que trouxe essa problemática para o centro da filosofia.

Dizia não acreditar em nenhum pensamento no qual não tivessem tomado parte os

músculos. Era um pensador peripatético, que costumava colher boa parte de suas

reflexões durante caminhadas. Rejeitava enfaticamente qualquer distinção entre

corpo e alma, tentando acabar com a divisão habitualmente feita pela filosofia

desde Platão. Tencionava reabilitar o corpo, aviltado pela tradição cristã como

porta para o pecado. Perdido, desqualificado diante de uma alma que poderia

ainda se salvar. Nietzsche inverte o jogo. O corpo torna-se o ponto de partida. A

filosofia passa a ser vista como a transposição do estado fisiológico do filósofo

em pensamento puro.247 Ou seja, ela nasce no corpo do filósofo – os conteúdos

mentais são projeções dos estados do organismo. A consciência é apenas um

acessório, um instrumento, um sintoma de algo mais rico e vivo: o corpo, não

apenas superior mas também anterior à própria consciência. É preciso pensar que

grande parte de nossa vida corre sem a necessidade de uma reflexão consciente.248

E é justamente no corpo que o pensamento recebe sua informação, que encontra o

seu modelo. Os pensamentos e apreciações de valor sendo expressões de impulsos

profundos, de uma vida vasta que se desenrola fora do alcance da pequena janela

da consciência. “Para Nietzsche, o homem se insere na vida pelo seu corpo. O

corpo é que é o centro da interpretação e organização do mundo. O corpo é

247

“(...) precisamente essa arte da transfiguração é filosofia. A nós, filósofos, não nos é dado

distinguir entre corpo e alma, como faz o povo, e menos ainda diferenciar alma de espírito. Não

somos batráquios pensantes, não somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas

– temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes

maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e

fatalidade que há em nós. Viver – isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e

flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo”. (Cf.

Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, prefácio, §3) 248

A pesquisador Rosa Dias escreve que “para Nietzsche, mesmo o pensamento mais abstrato é

secretamente conduzido pelos impulsos. É legítimo considerar que mesmo a metafísica e

particularmente as respostas que ela dá à questão do valor da existência são sintomas de

constituições corporais próprias a determinados indivíduos, de sua abundância e de sua potência

vitais, de sua soberania na história ou, ao contrário, de suas indisposições, de seu esgotamento, de

seu empobrecimento, de seu pressentimento do fim, de sua vontade de acabar”. (Cf. Rosa Dias,

Nietzsche, Vida Como Obra de Arte, Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 2011, p.53)

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pensador”.249 No seu Zaratustra, o filósofo alemão chega a escrever que “a alma é

somente uma palavra para alguma coisa no corpo”.

Dada a centralidade do corpo em seu pensamento, não espanta que

Nietzsche tenha reconhecido com profundidade a força do ritmo. Que tenha

enxergado nele (e na música em geral) um elemento essencial na reintegração

alma-corpo. Era o ritmo o responsável por fazer com que, através da dança, o

corpo se transformasse em música, se unificasse com ela, e que, assim, afetasse a

própria alma. Escreveu o pensador alemão que “muito antes que houvesse filósofo

atribuía-se à música o poder de desafogar os afetos, purificar a alma, abrandar a

ferocia animi (ferocidade do ânimo) – e isto precisamente pelo ritmo na música.

Quando era perdida a justa tensão e harmonia da alma, era preciso dançar,

seguindo a cadência do cantor – era a receita dessa terapia. “Com ela Terpandro

pacificou um tumulto, Empédocles acalmou um doido enfurecido e Dâmon

purificou um jovem que definhava de amor; com ela também foram tratados os

deuses enraivecidos e ávidos de vingança”.250

Não deixa de ser interessante notar o modo como as reflexões de Nietzsche

a esse respeito encontram ressonância em alguns pensamentos elaborados no

campo da neurociência. Recentemente, em 2010, Antônio Damásio escreveu que

“o corpo e o cérebro ligam-se”. Que temos nosso corpo na mente. Mais: que o

cérebro introduziu o corpo como um conteúdo do processo mental. Que graças a

ele, o corpo tornou-se um tema natural da mente. Que há uma incessante

comunicação de mão dupla entre os dois. A ideia que eu gostaria de enfatizar é

que de algum modo o corpo não apenas influencia, mas está no pensamento – é

constitutivo dele. Que um modo diferente de usar os músculos, de construir a

presença corporal, de distribuir ritmicamente as ações seria capaz de gerar

também distintos modos de pensar, de olhar e criar o mundo. Nietzsche intuiu

isso. Nos aconselhou em Ecce Homo a “não dar crença ao pensamento não

nascido ao ar livre, de movimentos livres – no qual também os músculos não

festejem”.251 Criou a famosa figura de um filósofo dançarino, de modo a sublinhar

as relações entre os movimentos que regem a unidade da vida – o movimento do

corpo transmitindo-se ao movimento do pensamento, e vice-versa. Essa mesma

249

Cf. Rosa Dias, op.cit.., p.50 (grifo meu) 250

Cf. Friedrich Nietzsche, op.cit.., p.112. 251

Cf. Friedrich Nietzsche, Ecce Homo: Como Alguém se Torna o que é, São Paulo, Companhia

das Letras, 1995, §2.

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imbricação foi evocada por Damásio nos termos de uma “dança interativa

contínua” entre corpo e cérebro. “Pensamentos implementados no cérebro podem

induzir estados emocionais que são implementados no corpo, enquanto este pode

mudar a paisagem cerebral e, assim, a base para os pensamentos. Os estados

cerebrais, que correspondem a certos estados mentais, levam à ocorrência de

determinados estados corporais; os estados do corpo são então mapeados no

cérebro e incorporados aos estados mentais correntes”. Ou seja, um ciclo sem fim.

...

Os aspectos mais estáveis do corpo são representados no cérebro como

mapas que contribuem com imagens para a mente. Da repetição de experiências

físicas desde o momento em que nascemos, definidas pelos padrões dinâmicos de

interação do corpo humano com o ambiente, formam-se as estruturas cognitivas

mais elementares que serão a base de nossos sistemas conceituais. Essas

estruturas cognitivas são espécies de “imagens” mentais que situam-se em algum

lugar entre o concreto, específico das imagens visuais, e a abstração dos conceitos

(a partir daqui, sempre que eu quiser me referir a elas colocarei a palavra

“imagem” em itálico). Diferem das imagens visuais e dos conceitos abstratos pelo

fato de que podem trazer, embutido nelas, um componente cinestésico (sentido

pelo qual se percebem os movimentos musculares, o peso e a posição dos

membros), sendo capazes de representar sensações musculares em relação a

determinadas experiências (Einstein chamava a essas imagens de “imagens

musculares”). Ou seja, as imagens podem evocar uma “impressão” física

particular. Nosso entendimento de conceitos como “dentro” e “fora”, de imagens

que representam sentidos de orientação espacial como “no alto” e “embaixo”,

assim como o encadeamento causal entre eventos, não é puramente linguístico.

Ele vem acompanhado dessas imagens genéricas, esquemáticas, que não se

confundem com a imagem específica de algo. Para fazer sentido, as imagens

solicitam uma espécie de “espaço” imaginário, uma geografia interna.

A ideia que está presente Damásio, e também nos escritos de Rodolfo

Llinàs, é que “o tipo especial de imagens mentais do corpo produzidas nas

estruturas cerebrais mapeadoras do corpo constitui o protosself, que prenuncia o

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self”.252 Desse modo, as estruturas cerebrais que formam a base de nossa

consciência, de nosso próprio self, não são apenas referentes ao corpo. Antes, elas

são ligadas a ele de um modo inextricável. É sobre o corpo que se assenta o

núcleo mais profundo de nossa própria noção de eu.253 Não há uma fronteira nítida

separando corpo e cérebro. A mente é construída pelo cérebro não a partir do

córtex evolutivamente mais recente, mas a partir do tronco cerebral superior, uma

parte mais antiga e também presente em muitas outras espécies. Uma parte que,

como diz Damásio, está “eternamente ligada ao corpo”. E não somente à

regulação de seus funcionamentos internos – células agrupando-se em tecidos,

tecidos agrupando-se em órgãos, órgãos agrupando-se em sistemas - mas também

à locomoção e interação desse corpo com o mundo externo. A consciência é o

percurso que vai do nível mais difuso e elementar ao mais complexo. Somos a

soma da convivência de estados conscientes e não conscientes. O conhecimento

oculto da complexa gestão da vida precedeu o pensamento consciente sobre esse

conhecimento. Aquilo que definimos como eu, o self consciente, pode ser

definido como a voz que sintetiza a multidão de vozes de um grande coletivo de

vontades que é o corpo.

Na base dessa arquitetura está o elemento fundamental do sistema nervoso:

o neurônio. O neurônio é a célula nervosa cujo atributo singular é a capacidade de

mudar o estado de outras células. Usam seus sinais elétricos ou químicos para

influenciar outras células. Se a célula em questão é uma fibra muscular, ocorre

então o movimento. De fato, os neurônios existem em benefício dessas outras

células. Em seres multicelulares, eles assistem à gestão da vida no corpo.

Regulam-na. Os bilhões de neurônios do cérebro são capazes de tecer trilhões de

contatos sinápticos. Organizam-se em circuitos microscópicos. Esses circuitos

252

Damásio resume sua teoria das “etapas” do self do seguinte modo: “O self é construído em

passos distintos e tem seu alicerce no protosself. O primeiro passo é a geração de sentimentos

primordiais, os sentimentos elementares da existência que surgem espontaneamente do protosself.

O seguinte é o self central. O self central refere-se à ação – especificamente, às relações entre o

organismo e os objetos. O self central manifesta-se em uma seqüência de imagens que descrevem

um objeto do qual o protosself está se ocupando e pelo qual o protosself, incluindo seus

sentimentos primordiais, está sendo modificado. Finalmente, temos o self autobiográfico. Esse self

é definido como o conhecimento biográfico relacionado ao passado e ao futuro antevisto. As

múltiplas imagens que em conjunto definem uma biografia geram pulsos de self central, cujo

agregado constitui o self autobiográfico”. (Cf. António Damásio, op.cit.., p.38) 253

“Notavelmente, as estruturas cruciais de mapeamento corporal e de formação de imagens estão

localizadas abaixo do nível do córtex cerebral, em uma região conhecida como tronco cerebral

superior. Essa é uma parte antiga do cérebro, encontrada também em muitas outras espécies”. (Cf.

António Damásio, Idem, p.36)

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combinam-se em circuitos cada vez maiores, formando redes ou sistemas.

Compõem, desse modo, padrões momentâneos de interação. Na arquitetura

cerebral, os macrofenômenos do sistema são construídos a partir de

microfenômenos. António Damásio argumenta que aquilo que chamamos de

mente (mind), no sentido mais amplo do termo, seria o produto dessa atividade

neuronal. A visão aqui é contrária à tradicional divisão entre corpo e mente

proposta por Descartes. Ela contraria nossa intuição imediata de que as efêmeras e

voláteis atividades da mente não têm extensão física. A hipótese monista de

Damásio é de que os fenômenos mentais são equivalentes a certos tipos de

fenômenos cerebrais – ou seja, possuem uma base física. Não há separação entre

uma substância mental e outra biológica. A mente herda a atividade do tecido

cerebral. Os padrões momentâneos representam fenômenos e objetos que estão

fora do cérebro – no corpo ou no mundo exterior. Mas voltam-se também sobre si

mesmos: representam o próprio processamento cerebral desses padrões.

Nos estudos da neurociência, esses padrões representativos são

denominados de mapas. Alguns são mais concretos, outros mais abstratos; alguns

são refinados, outros são toscos. O cérebro mapeia incessantemente. Mapeia o

mundo ao redor e também a sua própria atividade. Isso quer dizer que os mapas

são formados de fora para dentro. Na interação do corpo com objetos, pessoas,

lugares. Ou seja: somente através da mediação do corpo torna-se o cérebro capaz

de mapear o mundo externo. Somente assim os sinais do mundo podem adentrá-

lo. Somente através de suas fronteiras. Da pele. Das sondas sensoriais

especializadas, como ouvidos e olhos. “O corpo interage com o meio circundante,

e as mudanças causadas no corpo pela interação são mapeadas no cérebro”.254

Quando mapeia, o cérebro informa a si. E o mapeamento começa,

justamente, direcionado ao próprio corpo que contém o cérebro. Em cérebros

complexos como o nosso, os mapas conseguem descrever o corpo e suas ações de

modo tão refinado que somos capazes de “imaginar” a forma dos nossos membros

e suas posição no espaço. Mas aqui acontece algo diferente: embora seja

mapeado, o corpo jamais perde contato com o mapeador, o cérebro. E desse modo

as imagens mapeadas do corpo influenciam permanentemente esse mesmo corpo.

254

Cf. António Damásio, Idem, p.121.

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O próprio ato de mapear muda o objeto mapeado. Cria-se com isso uma interação

dinâmica que difere do caso no qual o objeto mapeado é externo ao corpo.

Em nossas mentes, tais mapas são vivenciados como imagens. Estas são o

principal meio circulante da mente. Como já foi dito, o termo imagem não se

restringe às imagens visuais. Tudo aquilo que é originado em nossos sentidos

formam imagens. Elas podem ser auditivas, táteis, e mesmo viscerais (a sensação

que se tem em partes internas do corpo). Mais do que isso, elas parecem

incorporar uma dimensão motora. Porque os sentidos servem ao movimento.

Rodolfo Llinàs as denomina mais detalhadamente de imagens sensório-motoras:

“a conjunção ou reunião de todos os estímulos sensoriais relevantes para gerar um

estado funcional específico que pode eventualmente resultar em ação”.255 É desse

modo que, mais do que mapear os estados que estão ocorrendo no momento, o

cérebro é capaz de mudar o corpo e até de simular estados corporais que ainda

não ocorreram. Essa simulação antecipada permite reduzir o tempo de

processamento de informação e poupa assim energia. No caso do sentido da visão,

quando estruturas motoras estão prestes a executar um movimento, precisam

“informar as estruturas visuais da consequencia provável desse movimento no que

respeita ao deslocamento espacial”.256 Desse modo, a simulação serve como uma

espécie de aviso: ela permite que a região visual possa prever a consequencia do

movimento que está prestes a ser realizado e se preparar assim para facilitar a

transição de foco, evitando que a imagem torne-se borrada. Boa parte das

previsões feitas pelo cérebro seguem a mesma finalidade.

Das representações mais elementares do corpo, o self irá depois referir-se à

ação – às relações entre os organismos e os objetos. A relação imbricada entre os

mundos interno e externo. Uma mente criada para executar movimentos.

Movimentos cada vez mais complexos, refinados pelos surgimento dos músculos

estriados que hoje usamos para andar e falar. O sistema nervoso é um

equipamento biológico exclusivo dos seres que se locomovem ativamente. Plantas

não precisam de sistema nervoso.

255

“When using the term sensorimotor image, I mean something more than visual imagery. I refer

to the conjunction or binding of all relevant sensory input to produce a discreet functional state

that ultimately may result in action”. (Cf. Rodolfo Llinàs, op.cit.., location 96) 256

Cf. António Damásio, op.cit.., p.98.

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The nervous system has evolved to provide a plan, one composed of goal-oriented,

mostly short-lived predictions verified by moment-to-moment sensory input. This

allows a creature to move actively in a direction according to an internal

reckoning—a transient sensorimotor image—of what may be outside.257

É o movimento organizado que termina por gerar a mente.

Levando ao limite a ideia de uma interação simbiótica, circular, entre

mente-self-corpo-cérebro, ação e mapas, movimentos e mente formam um único

vórtice. O mapeamento, que ocorre de fora para dentro, tampouco é uma

transferência passiva para o interior do cérebro. Porque o cérebro não é uma

tabula rasa. Criou, no longo processo evolutivo, estruturas que lhe permitem

melhor lidar com o imenso manancial de informação que lhe chega através dos

sentidos. Desse modo, ele contribui ativamente para emular o mundo externo.

Para, num certo sentido, montá-lo dentro de si. Isso quer dizer que tudo o que está

fora do cérebro é imitado em suas redes neuronais. Do corpo propriamente dito a

tudo mais que nos circunda – objetos, pessoas, lugares e eventos -, tudo é imitado.

Porque “o cérebro tem a capacidade de representar aspectos da estrutura das

coisas e eventos não pertencentes ao cérebro, o que inclui as ações executadas por

nosso organismo e seus componentes, como os membros, partes do aparelho

fonador etc”.258 Damásio sugere que a própria estrutura do cérebro, com seu

reticulado vertical, seria “ideal para representações topográficas explícitas de

objetos e ações”.259 Há mesmo uma fidelidade de correspondência entre padrões

mapeados no cérebro e os objetos reais que serviram de base para esse

mapeamento. Observando o córtex visual de macacos, pesquisadores chegaram a

constatar que havia uma forte correlação entre a estrutura física de um estímulo

visual e o padrão neuronal por ela gerado. Uma cruz dispararia um padrão de

algum modo análogo à sua forma, enquanto um círculo despertaria uma atividade

diferente, mais afim com sua estrutura formal.

De modo semelhante, já foi observado que as alturas sonoras (as

frequências) também são representadas diretamente no cérebro. Ou seja, um

mesmo som ativa o mesmo circuito no córtex auditivo. A estrutura desse

257

“O sistema nervoso se desenvolveu para fornecer um plano de ação, um plano feito de

pequenas previsões verificada a cada momento através dos estímulos sensoriais. Isso permite que a

criatura possa mover-se ativamente em determinada direção de acordo com uma avaliação interna

– através de uma imagem sensório-motor passageira – do que deve se o meio externo”. (Cf.

Rodolfo Llinàs, Idem, location 358) 258

Cf. António Damásio, op.cit.., p.88. 259

Cf. Idem, Ibidem, p.90.

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mapeamento está inscrita no próprio corpo, na estrutura tonotópica da cóclea, no

ouvido interno. Ali, dentro da rampa espiralada, as células ciliadas movem-se sob

o balanço da energia sonora, amplificada pela estrutura da orelha e pelo líquido do

ouvido interno que conduz os impulsos. De fato, a orelha lembra um pequeno

aquário – as vibrações sonoras são peixes nadando nele. A disposição das células

ciliadas é ordenada de modo a responder diretamente às frequências sonoras que

compõem o espectro possível de nossa audição. As frequências mais altas, os

agudos, estão na base da rampa. Conforme a subimos, encontramos as células que

respondem às frequências mais baixas. Cria-se, desse modo, um mapa espacial de

tons possíveis, ordenados por frequências. O movimento das células ciliadas

provoca uma corrente elétrica captada pelo terminal axonal de um neurônio.

Começa uma longa cadeia de sinalizações – que passa por vários núcleos de

memória, de filtros adquiridos, culturais – até desaguar na representação final do

som que escutamos. Ou seja: visuais, auditivas, ou de qualquer outra procedência,

as imagens são experimentadas diretamente - mas somente pelos possuidores da

mente na qual ocorrem. Ainda que possamos observar a tendência a uma

reprodução direta no córtex, nenhum observador exterior pode ter acesso ao modo

como as imagens realmente são experimentadas pela mente. O que levou Rodolfo

Llinas a dizer que há, na relação entre cérebro e mundo externo, uma relação de

isomorfismo mas não de homomorfismo.

O importante é notar que tudo isso acontece no contexto do movimento. Os

mapas resultam da atividade momentânea de grupos de neurônios que formam

padrões no espaço e no tempo. Esses padrões se distinguem de um fundo,

digamos assim, formado por neurônio inativos. São mapas instáveis, ultra-

flexíveis, que mudam continuamente para refletir as mudanças no interior do

corpo e no mundo à nossa volta. Mudanças decorrentes do fato de que estamos –

tudo está - continuamente em movimento. Mapas que são vivenciados como

imagens transitórias, formadas nas regiões sensoriais e motoras do cérebro. É

preciso notar que os mapas e as imagens não param de ser formados, mesmo

quando não estamos conscientes deles. Há, incessantemente, um trabalho sendo

feito nos bastidores. Capaz de influenciar nosso pensamento e nossas ações.

Mapas e imagens podem também ser gravados na memória, trazidos de volta por

associação ou pela imaginação. Revividos no corpo. Fazem com que nossa

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existência seja a combinação fluida, inapreensível, de fenômenos em curso e

imagens evocadas.

O jogo se torna ainda mais complicado quando pensamos que existem

disposições verticais de neurônios, em regiões mais profundas do córtex que

também formam mapas. Os três tipos de mapas – visual, auditivo e somático –

possuem registro espacial. Encaixam-se uns nos outros. Suas informações são

sobrepostas de modo tão preciso que os dados da visão correspondem aos da

audição, ou ao estado do corpo. Verdadeiros acordes mentais, literalmente dando

corpo à multidão de sensações que experimentamos a cada momento. Imagens de

estímulos do mundo externo sobrepondo-se à imagens de componentes do corpo

que sente. Visões, formas, cores, timbres, padrões rítmicos, sensações táteis,

misturando-se com sensações das articulações, dos músculos, das vísceras. Há

uma incrível perspectiva de integração nisso – integração que se faz ainda maior

porque seus resultados podem conduzir ao sistema motor. Sentidos e movimentos

trançados para gerar uma ação eficaz. Fazendo dialogar diferentes partes do

sistema nervoso – tronco cerebral, medula espinhal, tálamo e córtex cerebral.

É preciso notar que a integração capaz de unificar a “multidão de

sensações” que experimentamos a cada instante – o próprio caráter inapreensível

de nosso estar no mundo – ocorre não apenas através de um encaixe espacial

desses mapas, mas ocorria também através de uma dimensão temporal – rítmica.

De fato, para que haja uma coordenação afinada de diferentes sinais externos dos

sentidos, para que esses sinais não se percam no turbilhão do cérebro, mas

mantenham-se juntos enquanto são processados, não basta haver apenas uma

organização espacial das redes neuronais. Os complexos mapas construídos em

diversos locais do cérebro precisam ser relacionados em conjuntos coerentes. Faz-

se necessária, portanto, uma coordenação temporal. Essa coordenação é

responsável pelo surgimento de estados mentais – o resultado de uma vasta

sinalização recursiva que envolve várias regiões do sistema nervoso. Circuitos de

diferentes regiões do cérebro ressoam uns com os outros, como cigarras numa

noite de verão. Entram em fase. Sincronizam-se. Para indicar alguma combinação

de características, os neurônios precisam trabalhar juntos sincronizando suas taxas

de disparo – o ritmo de sua atividade elétrica. Ao formar imagens perceptuais, os

diversos neurônios envolvidos que estão em regiões espacialmente separadas

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mostram oscilações sincronizadas.260 Diferentes grupos de neurônios capazes de

apresentar comportamentos oscilatórios “percebem” ou decodificam diferentes

aspectos de um mesmo sinal vindo do exterior. Podem então juntar seus esforços

ressoando em fase uns com ou outros – gerando uma coerência oscilatória. É daí

que vem a primeira grande abstração gerada pela mente: a ilusão da unidade; os

diversos sentidos sincronizados para a geração de uma integração perceptual. O

ritmo é, portanto, um grande meio de comunicação e organização do próprio

cérebro. Redes neurais afastadas no espaço, podem ligar-se por meio de uma

atividade organizada no tempo. Para isso, contudo, é preciso um relógio interno

capaz de orquestrar essa grande sincronização. Uma pulsação de base, a partir da

qual se constroem as variações rítmicas.

Essa pulsação de base parece ser gerada pelas propriedades oscilatórias

intrínsecas dos neurônios. A simultaneidade da atividade neural torna-se possível

graças a atividade elétrica oscilatória. “Muitos tipos de neurônios no sistema

nervoso são dotados de tipos particulares de atividade elétrica intrínseca que os

imbui de propriedades funcionais específicas”.261 De fato, a simultaneidade da

atividade neural parece ser o mais difundido modo de operação do cérebro. A

oscilação neural provê o meio para que essa simultaneidade ocorra de modo

organizado, previsível, quando não contínuo. É o relógio interno que todos nós

possuímos.Trata-se de uma dinâmica de variação da voltagem que ocorre na

membrana dessas células. A voltagem oscila em movimento sinusoidal, como as

pequenas ondas geradas por uma pedra que cai sobre a água parada de um lago.

Quando a distância temporal entre essas pequenas ondas é reduzida, amplia-se a

frequência dos disparos, da atividade elétrica do neurônio. Oscilando em fase, os

neurônios trabalham juntos de modo amplificado, através de uma dinâmica de

ressonância. Mas nem todos os neurônios ressoam o tempo todo. Pois uma de

suas propriedades cruciais é justamente poder ligar-se ou desligar-se do modo

oscilatório no qual se engajam. Isso permite que a ressonância ocorra de modo

passageiro entre diferentes grupos de neurônios em diferentes momentos.

260

O neurocientista Wolf Singer foi o primeiro a demonstrar isso em cérebros de macacos. Ver

António Damásio, op.cit.., p.116. 261

“Many of the types of neurons in the nervous system are endowed with particular types of

intrinsic electrical activity that imbue them with particular functional properties. Such electrical

activity is manifested as variations in the minute voltage across the cell’s enveloping membrane.

This voltage may oscillate in a manner similar to the traveling, sinusoidal waves that we see as

gentle ripples in calm water, and are weakly chaotic”. (Cf. Rodolfo Llinàs, op.cit.., location 220).

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Somente assim são eles capazes de representar uma realidade que muda

incessantemente. Tudo isso gera agilidade temporal no sistema e também aponta

para o modo de operação descontínuo do cérebro. Em certo sentido, do ponto de

vista do processamento de informação, o cérebro não está o tempo todo online.

Antes, possui uma dinâmica pulsátil.

Essa dinâmica reflete-se no tremor fisiológico que forma a grade temporal

de todos os movimentos do corpo. Tremor que experimentamos quando tentamos

ficar totalmente parados. Mas que também sublinha todas as nossas ações, sem

que tenhamos consciência disso. Uma pulsação de fundo entre 8 e 12Hz, uma

oscilação rítmica altamente regular, que promove uma organização de base para

todo o sistema. A melodia cinética determinada não pelos músculos, como

geralmente se pensa, mas pelo próprio centro de controle no cérebro.262 Um

tremor associado com o impulso inicial dos movimentos – que começam em fase

com ele - e também com a direção destes (movimentos dirigidos para cima são

iniciados durante a fase ascendente do tremor).263 Há muito já se sabe disso:

apesar da ilusão de continuidade, os movimentos são descontínuos. Séries de

contrações musculares separadas – de modo a se encaixarem nessa grade

temporal, na dinâmica pulsátil do próprio sistema nervoso.264 O controle pulsátil

“lineariza” a população não-linear e independente de elementos neurais

assegurando uma resposta uniforme, coerente e articulada. Muitas vezes os

262

Sobre isso, escreve Rodolfo Llinàs: “The stretch reflex is a simple, negative feedback

mechanism involving a muscle fiber and its associated segmental spinal cord circuitry; when a

muscle is passively stretched this compensatory reflex causes a subsequent contraction. From the

latency of this reflex (from stretch to contraction) that these authors calculated, they were able to

conclude that the reflex could not explain the timing of the tremor components seen in the above

study. Hence, Wessberg and Vallbo (1995) suggested that the drive causing these periodic

components must derive from brain structures higher than the spinal cord”. (Cf. Idem, Ibidem,

location 538) 263

“We see that the underlying nature of movement is not as smooth and continuous as our

voluntary movements appear; rather, the execution of movement is a discontinuous series of

muscle twitches, the periodicity of which is highly regular. Furthermore, this physiological tremor

is apparent even at rest (when we are not actively making movements). Indeed, the tremor is

highly associated with movement onset and movement direction. For instance, upward movements

are initiated during the ascending phase of physiological tremor”. (Cf. Idem, Ibidem, location 545) 264

Pesquisadores notaram que as discontinuidades fisiológicas nos movimentos voluntários eram

de certo modo independentes da velocidade do movimento e da eventual carga imposta ao membro em ação. A taxa máxima de movimento voluntário repetitivo não pode exceder a taxa do

tremor fisiológico do músculo. Este tremor rítmico perdura inalterado em sua periodicidade,

independente da velocidade do movimento ou mesmo do fato de não haver qualquer tipo de

movimento ou força agindo sobre o músculo. A respeito disso, Llinàs faz a seguinte observação:

“In the last 15 years or so, it has become clear that the 8–12 Hz rhythmicity of physiological

tremor is observed not only during voluntary movement, but also, and perhaps to a greater extent,

during maintained posture and in supported limbs at rest”. (Cf. Idem, Ibidem, location 531)

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neurônios motores a serem recrutados para determinado movimento estão

separados por muitas vértebras. A simultaneidade é tão importante para a

integração perceptual que, dadas as diferentes distâncias percorridas pelos

estímulos vindos das antenas sensoriais, o corpo chega a regular com precisão a

velocidade de condução desses estímulos para que cheguem juntos no córtex.

Trata-se de uma afinação temporal que visa a sincronia. De modo semelhante

ocorre a sincronia motora.

O mecanismo pulsátil desempenha então um papel unificador, capaz de

sincronizar essas atividades neurais e motoras. Por fim, um sistema de controle

periódico é também capaz de unificar temporalmente os estímulos que entram e os

comandos gerados pelo próprio cérebro. “In other words, this type of control

system might enhance the ability of sensory inputs and descending motor

commands to be integrated within the functioning motor apparatus as a whole”.265

Da oscilação elétrica dos neurônios aos tremores da carne o que vai se revelando é

a organização temporal que unifica o corpo dentro de uma mesma entidade

rítmica. Uma sincronização mútua através do ritmo. É difícil não enxergar na

própria música um desdobramento natural dessa intricada produção de tempos

internos.

A perspectiva de integração dos mapas no cérebro pode ir ainda mais longe,

abarcando também o próprio pensamento conceitual. Ao contrário do que

acontece com a linguagem, as imagens não são arbitrárias, pois representam

experiências colhidas diretamente das categorias perceptuais. Acredita-se que os

bebês desenvolvem essas imagens como suas primeiras representações de mundo.

A função original delas seria conectar entre si as seqüências motoras, para, a partir

disso, começar a formular uma representação coerente do mundo físico. Elas

surgem diretamente das experiências físicas que temos muito antes da aquisição

da linguagem. É sobre o modelo a priori da experiência do espaço físico que se

constroem “espaços” conceituais. Fazem a ponte entre nossas experiências

perceptuais e a criação de conceitos. O que nos interessa, nesse ensaio, é que as

imagens servem de referência para a compreensão de ideias abstratas como o

tempo, e, através dele, da própria música. Para que elementos e estruturas de

265

“Em outras palavras, esse tipo de sistema de controle pode ampliar a habilidade de integração

dos estímulos sensoriais e dos comandos motores vindos do sistema nervoso dentro do

funcionamento do aparelho motor como um todo”. (Cf. Idem, Ibidem, location 573) (Tradução

Livre)

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nosso “esquema espacial” sejam aplicados sobre outros campos da experiência é

necessário criar um espaço metafórico. E a metáfora, nesse sentido, não

necessariamente se dá por uma manifestação da linguagem. Não está limitada a

literatura. As redes associativas podem conectar domínios que não

necessariamente se articulam através da linguagem. Conexões entre quaisquer

tipos de experiências ou memórias em áreas totalmente diferentes da experiência

humana, como no sistema de “correspondances” dos simbolistas. Um jeito de

experimentar uma coisa nos termos de outra. Determinada experiência atual, ou

mesmo uma lembrança, pode se conectar com memórias sonoras, olfativas, táteis,

ou mesmo com as ditas memórias implícitas (memórias de longo termo cujos

conteúdos não estão disponíveis à consciência, como por exemplo as memórias de

habilidades físicas, ou então a memória que guarda autonomamente a distribuição

espacial dos objetos em determinado ambiente),266 tomando a forma de

representações perceptuais básicas. Como já foi dito, o importante é notar que

esse cruzamento de campos de experiência não ocorre de forma arbitrária, mas

está fundado em estruturas cognitivas incorporadas em nossa própria experiência

física. Para entender conceitos abstratos precisamos referenciá-los

metaforicamente nos termos de algo mais concreto. Desse modo, sistemas de

metáforas conceituais podem surgir de imagens pré-conceituais, assim como

diferentes tipos de espaços conceituais podem ser metaforicamente estruturados

ao se referir novamente às mesmas imagens de onde vieram. Talvez haja, como

no poema de Baudelaire, um misterioso fundo comum, através do qual seria

possível alcançar uma “unidade profunda”.

É desse modo que o hábito familiar de conceber as propriedades do tempo

como sendo análogas às do espaço funda-se nas próprias experiências corporais

dos movimentos físicos. Em metáforas espaciais que não são meros jogos de

palavras, mas que guardam ligação estreita com as imagens sensório-motoras às

quais venho me referindo. De fato, antes de Ernest Cassirer falar do vocabulário

espacial que usamos na apreensão do tempo, Bergson já havia notado que

projetamos o tempo no espaço, e expressamos a duração nos termos da extensão.

Desse modo, existem dois tipos básicos de metáforas espaciais para se referir ao

tempo: a metáfora do tempo que se move e a do observador que se move. Em

266

Ver, nesse sentido, Bob Snyder, Music and Memory, p.259.

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ambas é o nosso corpo que define a referência do movimento. Na primeira, somos

um ponto estático, e o tempo passa sobre nós. Seu aniversário está chegando. O

fim de semana passou voando. O esquema espacial coloca o observador ancorado

no aqui e agora (presente), olhando numa direção fixa (futuro), e com aquilo que

já passou (passado) às suas costas. Um outro conjunto de metáforas emerge

quando é o observador que passa a se movimentar, ao invés do próprio tempo.

Muda-se o esquema espacial. Dizemos: Já estamos no meio de abril. Ou: Levarei

quatro anos para fazer o doutorado. O tempo torna-se uma distância a ser

percorrida.

Esses dois conjuntos de metáforas utilizadas para se referir ao tempo serão

cruciais no entendimento e na própria percepção da música enquanto movimento.

O movimento musical efetivamente é algum tipo de movimento metafórico que

acontece dentro de um espaço metafórico. Não há, portanto, como conceitualizar

o movimento musical sem recorrer a metáforas. Sendo assim, o modo como

concebemos o movimento e o espaço musicais passa a herdar a lógica interna

dessas metáforas. A ideia é de que trazemos a sabedoria implícita da experiência

sensorial do movimento físico (com suas “imagens”) para a própria experiência

musical via metáfora. A conclusão é lógica: se a fonte para a compreensão do

movimento musical for o movimento no espaço, então o modo como aprendemos

sobre o espaço e sobre o movimento físico deve ser fundamental na maneira como

experimentamos e pensamos sobre o movimento musical. Também sua lógica

baseia-se na lógica espacial do movimento físico.267 É difícil imaginar o

movimento musical se não houvesse movimento físico. Parece que somente é

possível experimentar a sensação de movimento musical por conta da experiência

e do entendimento incorporados do movimento físico. E aprendemos sobre o

movimento no espaço de três formas básicas: vemos objetos se moverem;

movemos nosso corpo; e sentimos nosso corpo ser movido por forças externas.

Dessas três experiências básicas, diretamente corporais, não-conceituais e pré-

reflexivas, nasce o amplo domínio do nosso conhecimento sobre o movimento.

A partir desse conhecimento serão criados três conjuntos de metáforas que

utilizamos para conceitualizar o movimento musical. Uma vez que o movimento

267

Sigo aqui a linha de pensamento proposta por Mark Johnson, no que diz respeito às suas

metáforas conceituais. Ver Mark Johnson, The Meaning of the Body: Aesthetics of Human

Understanding, Chicago, The University of Chicago Press, 2007.

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musical, assim como o movimento físico, se dá através do tempo, as duas

metáforas temporais a que me referi acima são incorporadas ao conjunto. Da

experiência de ver os objetos se moverem nasce a metáfora de uma música que se

move. Para onde está indo essa melodia?, pergunta o músico. Agora vai passar

uma nuvem, dizia Tom Jobim, abrindo espaço para um acorde mais tenso na

harmonia. Quando falamos da música nesses termos queremos dizer que nossa

experiência da escuta musical compartilha algo com a experiência de ver os

objetos se movimentando no espaço físico. Os ouvidos tornam-se olhos. A

metáfora nos leva a conceber a música como um objeto sonoro que se movimenta

num espaço musical. Como acontece com o tempo que se move, somos os

observadores estáticos de um acontecimento que se desdobra no presente da

atenção. Diante de nós, o futuro da melodia que ainda está por vir; atrás, o

passado da melodia que repousa na memória. Retirando-se as implicações

teológicas, lembra bastante o modelo de Santo Agostinho.268 A própria ideia de

um movimento melódico no tempo é uma metáfora. Para que ela funcione, é

preciso ligar sucessivos e distintos eventos sonoros, e criar a noção metafórica de

que eles representam uma única entidade que está se movendo em determinada

direção. É como olhar para painéis com lâmpadas que acendem em diferentes

momentos e criam, assim, a impressão de que um único ponto luminoso está em

movimento. A melodia torna-se uma andarilha, percebida como um elemento

único em contínuo estado de movimento, e não como o que de fato é: uma

sucessão de acontecimentos sonoros distintos.

O que unifica esses eventos sonoros numa única melodia que se movimenta

são parâmetros de proximidade e similaridade que tendem a agrupar os sons já

nos primeiros estágios da percepção. Tendem a examinar as propriedades mais

estáveis dos sons e associa-los como provenientes de fontes específicas. Para isso,

identificam padrões de recorrência e também e também o posicionamento

espacial. É isso que gera uma certa identidade necessária para um melhor

reconhecimento do ambiente externo. Dificilmente perceberíamos como entidade

íntegra e coerente, capaz de gerar a ideia de algo que se transforma sem perder a

268

O próprio tratamento que Santo Agostinho confere à música encaixa-se nessa categoria. A

noção de uma trajetória linear da música, que desenvolve-se nota a nota na direção de um ponto

final – da melodia como modelo reduzido da grande narrativa do mundo – revela muito da

mentalidade histórica, do caráter teleológico da doutrina cristã, mas também aponta para

“imagens” construídas a partir da experiência física comum a todos os seres humanos, usadas

metaforicamente para compreender e criar música.

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identidade, uma sucessão sonora na qual cada nota fosse tocada de modo

desordenado por um instrumento diferente. A primeira nota sendo atacada por um

trombone, a segunda por um violino, a terceira por um cavaquinho, e assim por

diante. Ainda que as notas estivessem contida dentro do campo de forças de uma

escala, a tendência maior seria percebê-las como momentos autônomos, e não

como uma seqüência melódica coesa.

Mas se a música é um objeto que se movimenta, nossa experiência nos diz

que o movimento se dá através de um caminho, que ele traça um percurso. O

tempo todo segmentamos nossos deslocamentos como indo de um ponto a outro.

Vou da casa ao trabalho. Do trabalho ao restaurante. Na música, projetamos

metaforicamente a experiência desses “percursos” utilizando termos como

passagem musical. Também essas passagens se articulam na tensão entre

movimento (partida) e repouso (chegada). Podem formar trajetórias melódicas.

Ou caminhos harmônicos. Existem dois sentidos metafóricos para o movimento

musical: um relaciona-se com as alturas e o outro com o ritmo. Como a

experiência do movimento físico está diretamente associada com a mudança, o

movimento melódico muitas vezes será criado através da mudança de um ou mais

parâmetros. No caso da melodia, o parâmetro das alturas talvez seja o mais

prontamente notado, uma vez que a capacidade de interpretar diretamente a

frequência sonora é um dos atributos mais antigos do cérebro. Quanto maior a

quantidade de mudanças, mais forte a sensação de movimento. É o que acontece,

por exemplo, com as melodias infinitas de Wagner - frases musicais espiraladas,

que raramente estacionam sobre uma única nota. O que acontece, nesse caso, é

que Wagner apresenta um movimento ininterrupto que parece não chegar a lugar

nenhum. Contraria desse jeito o esquema clássico da organização das obras tonais

como agrupamentos de frases que formam ciclos intermediários de movimento e

algum descanso – como se, para trilhar o percurso inteiro, o objeto sonoro

necessitasse de pequenos intervalos de descanso, intervalos durante os quais

pudesse respirar um pouco.

Na melodia infinita de Wagner praticamente não há descanso. O ritmo

geralmente mantém-se como a pulsação de fundo sobre a qual se articula o

deslocamento contínuo das alturas melódicas. Como é a praxe de nossa vida

mental, a atenção é automaticamente desviada para o que muda, deixando o

parâmetro que se mantém constante fora da janela da consciência atenta. É através

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dessa artimanha que o compositor alemão cria a sensação de movimento

convulsivo que emana de suas construções sonoras – movimento que não é

segmentado, organizado, por eventuais pausas que funcionam como verdadeiros

marcos nos caminhos que percorremos. De fato, a música de Wagner muitas vezes

parece ter um efeito desnorteante, criando uma confusa figura no espaço musical.

Wagner torna-se convulso, frenético, num sentido que vai muito além da simples

adjetivação. É daí que vem o comentário de Baudelaire, que viu na música do

mestre alemão um imenso “reservatório de eletricidade humana”. Essas metáforas

efetivamente remetem às imagens físicas, ao elemento cinestésico nelas presente,

e nos fazem realmente experimentar o movimento de uma seqüência sonora.

Stravinsky diria que “a obra de Wagner responde a uma tendência que não é

propriamente uma desordem, mas que trata de suprir a uma falta de ordem. O

sistema da melodia infinita traduz perfeitamente essa tendência. Trata-se do

perpétuo devir de uma música que não tinha nenhum motivo para começar, assim

como não tem nenhum motivo para terminar”. Stravinsky está chamando a

atenção para a perda de controle sobre a matéria sonora – perda que se reflete

sobre “a retórica e as vociferações da Tetralogia” – para o derramamento

excessivo. Para o modo como, na música de Wagner, o movimento torna-se de tal

modo desenfreado que ameaça fazer ruir a própria arquitetura musical.

Porque estacionar numa nota representa de certo modo uma espécie de não-

mudança, e portanto de imobilidade. David Huron notou que, para o ouvinte

ocidental, a tendência maior é esperar que uma melodia se desenvolva como

alternância de graus no sistema da escala; ou seja, que ela de certo modo caminhe.

Ao caminhar, o objeto sonoro estaria também submetido às forças musicais

decorrentes da própria dinâmica tonal – forças que seriam análogas às forças

físicas, como a gravidade, a inércia e o magnetismo. A melodia que se mantém

sobre um único grau tende, desse modo, a passar a impressão de não-movimento.

Essa impressão pode, sim, gerar um grau tensão que decorre, justamente, da

expectativa de tentar prever o momento no qual essa melodia (percebida como

objeto) começará finalmente a se movimentar. Um jeito de gerar movimento por

sobre uma única nota estacionada seria, nesse caso, injetando ritmo nela. Ou

então, já que a melodia não anda, poderia haver um jeito de criar a impressão de

movimento através do movimento da paisagem, do cenário – ou seja, da

harmonia. Como uma espécie de recurso cênico no qual, através de roldanas e

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manivelas, o movimento do cenário trouxesse a impressão de que é o ator que se

movimenta. Do Samba de Uma Nota Só à Águas de Março, Tom Jobim foi um

mestre na construção desse tipo de engrenagem musical. A sensação de

movimento decorrendo da constante mudança do cenário harmônico e da própria

incorporação do recorte rítmico do samba no corpo da melodia. Criou com isso

um modelo de melodia preguiçosa. Melodias que percorrem o mundo sem sair de

casa. Mais ou menos como, no fundo, ele próprio gostaria de ter feito.

A dimensão do ritmo da melodia aponta também para o fato de que não

apenas há um objeto que se movimenta e um caminho a ser percorrido. Há

também o jeito de se movimentar. Nossa experiência de ver as coisas no mundo

nos transmite o sentido da diferença no modo como os diversos objetos se

movimentam no espaço físico. Objetos movem-se rápida ou lentamente. De modo

delicado, macio, ou abrupto; com gentileza fluida ou forçadamente. A metáfora da

música que se move nos indica uma noção de velocidade. Tradicionalmente, usa-

se o termo tempo para descrever essa velocidade. Falamos também do andamento

da música. Quando nos referimos à melodia propriamente, dizemos que ela

desenvolve-se passo a passo, por grau contíguos, ou então a partir de grandes

saltos intervalares. Virtualmente qualquer conceito de uma forma particular de

movimento físico pode ser aplicado a música. Muitas vezes dizemos que o bom

samba balança, no sentido de que ele equilibra-se delicadamente nos altos e

baixos de um movimento ondulante. De fato, nas próprias letras das canções

brasileiras mais marcadas por uma rítmica de extração africana, como é o caso do

samba, literalmente abundam metáforas corporais que referem-se ao modo como

percebemos o próprio movimento da música. Ou por outra, que, através de

metáforas conceituais, remetem uns aos outros os padrões de movimento que

formam o quadro maior de um sistema cultural. É desse modo, por exemplo, que

podemos usar a palavra ginga para conceitualizar o movimento abstrato de uma

melodia ou de um padrão rítmico, transportando uma metáfora muito específica

de um jeito de movimentar o corpo para o campo sonoro da música.

Mais uma vez devo reforçar que isso não é apenas um mero jogo de

palavras – palavras incorpóreas, puramente abstratas - mas algo que traz em si a

memória direta de um conhecimento corporal implícito, de imagens internas. Que

nos faz associar de modo não arbitrário a sucessão temporal de uma série de

notas com a sucessão espaço-temporal do corpo de um jogador de futebol que

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vimos gingar diante do zagueiro adversário. Ou a ginga de um capoeirista que

simula determinado golpe para, no momentum exato, disparar outro. Ou ainda o

gingado de um dançarino de samba numa gafieira – o meneio corporal que engana

a parceira com sua manha de ilusionista. Como objeto sonoro, a melodia também

é capaz de “gingar” aos nossos ouvidos, de nos driblar com seu movimento. O

trânsito de metáforas conceituais relacionadas ao movimento no espaço traz

consigo não apenas palavras, mas lógicas internas e imagens corporais. Indica

também o modo como são vivenciadas as experiências musicais em determinada

cultura. O modo como cada cultura desenvolveu especificamente a potencialidade

inata para a comunicação através de padrões sonoros. Talvez haja, conforme

sugeriu John Blacking, um “modo musical de pensamento e de ação”. Modo que é

não-verbal, pré-linguístico, e que pode, inclusive, manifestar-se em outras

atividades humanas além da música, e até mesmo na organização de ideias

verbais. Que faria parte de um conjunto mais amplo de capacidades sensoriais e

cognitivas comuns à espécie humana.

Isso aponta também para a possibilidade de que as pessoas possam fazer

conexões entre experiências musicais e não-musicais sem necessariamente passar

por regras culturais específicas; sem que essas conexões sejam sempre

socialmente convencionadas. “A possibilidade de que símbolos musicais possam

ser transformados em outros símbolos, e vice-versa, sem a mediação da

convenção social”.269 Um jeito como o uso de símbolos musicais ajuda não apenas

a refletir, mas também a criar padrões de sociedade e cultura. Talvez seja possível

pensar num plano mais recuado no qual dialogam, misturam-se, fundem-se, os

padrões sensórios-motores que formam a pulsação de fundo de um determinado

conjunto sócio-cultural. Um plano no qual os diversos ritmos que regem a vida

humana responderiam uns aos outros. A base, e talvez a justificativa para um

pensamento como esse, está na premissa de que esses “padrões de movimento do

corpo” (que, na realidade, são muito mais do que isso, pois articulam-se com o

próprio funcionamento dos sentidos) estão no cerne de todas as atividades

humanas, sejam elas físicas ou mentais. O corpo humano é uma entidade rítmica –

uma extensa rede de padrões sensório-motores que culminam na própria

emergência da consciência (entendida aqui como qualidade de estar cônscio). Se

269

Cf. John Blacking, Music, Culture & Experience: Selected Papers of John Balcking, p.236.

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deixarmos de lado as falsas dicotomias entre espírito e corpo, razão e emoção,

pensamento e sentimento, poderemos talvez conceber o modo como esses padrões

estão, mesmo, na base do grande complexo físico-mental que é nossa existência.

Correndo o risco de simplificar demasiadamente o raciocínio, podemos dizer que

muitos dos efeitos da cultura, de um certo modo de estar no mundo, realizam-se

sobre a maneira como esses “ritmos” são lapidados; o modo como ganham uma

certa qualidade de estilo. Como acomodam toda a cadência do cotidiano,

infiltrando-se nas relações humanas e deixando impressas no ar linhas de

movimento; desenhos corporais; nos conformando por dentro e depois retornando

a nós através dos nossos sentidos – pela visão, audição, tato. Os ritmos de dentro

espelhando os ritmos de fora; os ritmos de fora ecoando nos ritmos de dentro. Não

pretendo com isso estabelecer relações apressadas, explicando uma coisa através

de outra, nem tampouco submeter tudo a uma essência una. Quero apenas

salientar o grau de porosidade, de indefinição fluida, e de possibilidade de

contaminação mútua que caracteriza uma boa parte dos movimentos concretos

que compõem as ações humanas.

No campo da canção isso torna-se muito claro, uma vez que ela está na

interseção entre a fala e a música. Luiz Tatit vem mostrando ao longo dos últimos

anos a maneira como compositores de canção apropriam-se de contornos e

tendências melódicas presentes na própria língua cotidiana para criar melodias

convincentes, capazes de comunicar com persuasão o conteúdo das letras.270

Evidencia assim o modo como a canção tende a apoiar-se sobre a prosódia – a

música da fala -, potencializando desse modo sua capacidade comunicativa.

Comentando pesquisas estatísticas que mostram ligações entre os padrões

rítmicos da prosódia com padrões rítmicos de musicas instrumentais (o modo

como melodias feitas por músicos criados na língua inglesa apresentam maior

grau de recorrência de padrões rítmicos que estão presentes na prosódia inglesa,

se comparadas com melodias feitas por músicos falantes do francês), David Huron

levanta a possibilidade de um aprendizado estatístico desses padrões rítmicos

pelos integrantes de determinada comunidade linguística. E, a partir disso, de uma

influência direta desses padrões em todos os fenômenos rítmicos gerados pelos

270

O lingüista Luiz Tatit também propôs esse parentesco mais estreito da canção com a fala, ao

criar o conceito de entoação. Retomarei mais adiante tal conceito. (Ver Luiz Tatit, O Cancionista:

Composição de Canções no Brasil, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2002, p.9)

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membros dessa comunidade.271 Embora o comentário e o exemplo estejam

circunscritos na esfera do som, Huron vai além e especula: “Whatever the origin

of these patterns, rhythmic influences may be much more pervasive than we think.

The way we move our bodies may influence the experience of rhythm, and

common rhythms may influence the way we move. (…) On the other hand,

pervasive rhythms within a culture may affect the way people move”.272

Basta ter alguma sensibilidade para conseguir enxergar esses ritmos

pulsando. Depois de um ano e meio em Paris, não pude deixar de notar como, nas

ruas do Rio de Janeiro, as pessoas andavam de modo diferente. Movimentavam-se

de outra forma, com outros desenhos no tempo e no espaço. Obedeciam a outro

relógio. Dependendo da parte da cidade em que estava, percebia sub-variações no

jeito de corpo. Também o horário do dia influenciava na disposição dos ritmos -

para não mencionar o papel exercido pelo clima na modelagem dos movimentos

do corpo. Poucos dias depois de ter voltado da França, lembro-me de ter visto um

grupo de adolescentes, jovens negras e mulatas, numa calçada do Rio. Algumas

delas carregavam pequenos tabuleiros com balas e doces para vender nos sinais.

Deviam ser umas oito ou dez. Formavam uma espécie de organismo único –

andavam cadenciadas, seguindo um ritmo geral extremamente flexível, aberto a

variações individuais. Não havia no grupo uma única linha reta. A marcação,

embora fosse rítmica e pudesse ter seu princípio de ordem intuído, era não-

periódica – não estava submetida a uma recorrência do tempo forte, a uma

estrutura regular. Pelo contrário: eram pura elasticidade. O somatório de uma série

de acentos - pequenas gargalhadas, breves células rítmicas dos chinelos raspando

no chão, a ondulação dos quadris, súbitas paradas em stacatto, paradas que depois

retornavam macias no fluxo do conjunto. Uma espécie de bagunça organizada,

regida por um princípio ordenador mais sutil, menos evidente, e também menos

impositivo, menos castrador. A impressão geral era de uma relação sinuosa com o

espaço, de corpos em contínuo estado de expansão, algo que transmitia uma ideia

pouco palpável e pouco definível, mas nem por isso menos eloqüente, de uma

quase insuportável liberdade.

271

Ver David Huron, op.cit.., p.189. 272

“Qualquer que seja a origem desses padrões, influências rítmicas devem ser muito mais

espalhadas do que pensamos. O jeito como movimentamos nossos corpos deve influenciar a

experiência do ritmo, e ritmos comuns devem influenciar o jeito como nos movimentamos. (...)

ritmos difusos em uma cultura podem alterar o modo como as pessoas se movem”. (Cf. Idem,

Ibidem, p.190) (Tradução Livre)

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Para mim, que não havia visto nada parecido na França, nem mesmo nos

quartiers com grande presença africana, e que acabara de voltar com olhos

bastante esquecidos dessa música de rua do Rio, aquilo ganhou uma imensa

nitidez. Maltrapilhas andarilhas com exorbitantes umbigos de fora, desabrochadas

em agressiva lascívia na flor da idade, aquecidas pelo ardente sol dos trópicos,

ecoando aos berros e gargalhadas uma aparente indiferença ao que lhes vinha de

fora, aquelas meninas encarnavam em movimento e em ritmo o saldo de uma

experiência humana específica. Experiência única. Levada adiante pela

capacidade que os corpos têm de influenciar-se mutuamente, de espelharem-se

uns aos outros, de, através da imitação, experimentarem, com base na experiência

alheia, novos modos de estar no mundo. Aqueles movimentos pareciam por si só

capazes de gerar alegria. E esse é um dos aspectos mais misteriosos de certa

parcela da experiência brasileira: a imensa alegria corporal que dela emana.273

Uma alegria rítmica, exercida em movimento, que parece ter a si própria como

fim. Que, no contexto de uma sociabilidade informal, em seu longo processo de

contatos e contágios (como parece ter sido o caso no Rio de Janeiro urbano do

século XIX até meados do século XX)274, trouxe um tempero diferente para a

tradicional melancolia lusitana. Que, nessa transfusão, foi aos poucos coalhando

de sincopas africanas a estrutura quadrada da polca européia. Modificando-a por

dentro. Formando as bases daquilo que viria a se transformar no moderno samba

urbano carioca. O mistério está no fato de que os principais grupos responsáveis

por trazer essa alegria rítmica tenham sido exatamente aqueles que eram

273

Num livro relativamente recente (Aqui Ninguém é Branco), a pesquisadora Liv Sovik destaca a

centralidade do corpo e o humor como dois dos traços mais definidores de uma suposta identidade

brasileira. Para melhor iluminar o primeiro ponto, e chamar também a atenção para a linha de

pensamento que o tomou como elemento central na definição do Brasil, Sovik cita um trecho de

uma carta do modernista Mário de Andrade endereçada ao jovem poeta Carlos Drummond de

Andrade: “Mas havia uma negra moça que dançava melhor do os outros. (...) Dançava com

religião. Não olhava para nenhum lado. Vivia a dança. E era sublime. (...) Aquela negra me

ensinou o que milhões, milhões é exagero, muitos livros não me ensinaram. Ela me ensinou a

felicidade”. (Cf. Apud., Liv Sovik, Aqui Ninguém é Branco, Rio de Janeiro, Aeroplano, 2009, p.

113) 274

Ao que parece o traçado urbano do antigo Rio de Janeiro, de extração medieval lusitana e

propensão labiríntica, e não renascentista (de traçado hipodâmico), muito contribuiu para

expressar claramente e mesmo condicionar um convívio indisciplinado e condescendente. A

disposição da cidade do Rio, com profundas raízes no urbanismo islâmico, criou uma cidade gregária e não apenas anexadora ou somatória. Que expressava um estilo de vida indisciplinado e

promíscuo. Um tipo de cidade que favoreceu “a visão e a vivência do outro”, e que seria

redefinido com a chegada da Corte, em 1808, e a consequente adoção de um modelo francês

(retilíneo e segregador) de urbanismo. (Ver Antonio Risério, A Utopia Brasileira e os Movimentos

Negros, p.238)

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socialmente mais desfavorecidos. A parte mais oprimida. Um desdobramento da

mesma escravidão que, nas palavras de Joaquim Nabuco, povoou a natureza

virgem do país “como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos,

suas legendas, seus encantamentos”, insuflando-lhe sua “alma infantil, suas

tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração,

suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte...”.275 O que traz uma

tonalidade trágica para essa experiência – o gozo existencial surgindo em meio à

miséria e à opressão – a centralidade corporal impondo-se com seu gozo próprio,

sua falta de lógica, com “sua felicidade sem dia seguinte”.

Deve ter sido uma percepção semelhante àquela que tive vendo as meninas

desfilando pelas ruas, só que muito mais intensa, o que levou Pier Paolo Pasolini a

nos definir, depois de uma visita ao Rio de Janeiro, em 1971, como “a pátria

desgraçada devotada sem escolha à felicidade”.276 No que pesem as inúmeras e

complexas possibilidades de leituras ideológicas, sociológicas, políticas,

antropológicas, sobre a centralidade do corpo em nossa vida social, ou sobre a

possibilidade de transmutação da dor em prazer como traço determinante e

afirmativo da experiência brasileira, com todas as tradicionais controvérsias que o

assunto gera, gostaria de manter o foco no movimento das meninas. Pois o fato é

elas traziam inscrito nos próprios corpos uma inteligência e uma musicalidade

impressionantes. Falo aqui das meninas como um episódio por mim presenciado

que traz a força da experiência vivida. Mas refiro-me ao conjunto mais amplo de

padrões corporais que formam, em parte, o estilo de um determinado quadro

cultural.

Creio ser de suma importância a apreciação da natureza rítmica e harmônica

das nuances desses movimentos corporais cotidianos. Eles estão na base do

complexo música-dança. E podem ter sido infiltrados por esse mesmo complexo.

Infiltraram-se também na capoeira. E da capoeira, infiltraram-se talvez no futebol,

quando “os descendentes dos bailarinos da navalha e da faca como que se vêm

sublimado nos bailarinos da bola, isto é, da bola de foot-ball, do tipo dos nosso

jogadores mais dionisíacos como o preto Leônidas; os passos do samba se

arredondando na dança antes baiana que africana, dançada pela artista Carmen

275

Cf. Joaquim Nabuco, In. Evaldo Cabral de Mello (org.), Essencial: Joaquim Nabuco, São

Paulo, Companhia das Letras, 2010, p.25. 276

Cf. Apud., José Miguel Wisnik, Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil, São Paulo, p.417.

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Miranda sob os aplausos de requintadas platéias internacionais (...)”, como sugere

Gilberto Freyre.277 Ou nas belas palavras do dramaturgo Nelson Rodrigues para

descrever o refinado estilo do craque negromestiço Didi: “numa simples ginga de

Didi, há toda uma nostalgia de gafieiras eternas”.278 São divagações poéticas

baseadas nas percepções da dança corporal, da dinâmica de ritmos e movimentos

que estão na base do samba de gafieira, da capoeira e do modo específico de se

jogar futebol no Brasil. Ritmos rebatendo-se continuamente, afetando distintas

esferas. Entre elas, a da própria atividade musical. Por sua estreita relação com o

corpo, a música pode ser mesmo definida como uma sucessão de gestos audíveis.

Não haveria, portanto, certo grau de verdade na declaração de Noel Rosa de

que “o samba foi inspirado no pisar da morena carioca”?279 Ou na resposta de João

Gilberto à pergunta de Ronaldo Bôscoli sobre de onde ele havia tirado a famosa

batida de violão que está na base da Bossa Nova - “Deve ter sido quando eu era

menino em Juazeiro. As lavadeiras levavam roupa no cesto para lavar no rio e

desciam até lá com um suíngue danado. Eu tapava os ouvidos e só ‘ouvia’ aquele

negócio, ‘squintim, squintim’... A cadência sincopada das lavadeiras me inspirou

esse ritmo da Bossa Nova. Acho que foi por aí...” - ?280 Não uma verdade

propriamente histórica, porque tais versões são evidentes elaborações míticas.

Mas uma verdade mais profunda, que coloca a música como parte de algo maior,

parte de um verdadeiro sistema de movimentos e ritmos, de relações espaço-

temporais que formam a substância de base (padrões que se repetem) de

determinada experiência, de determinada lógica cultural. Ou mais simplesmente,

um jeito de corpo.

O movimento não é apenas experimentado como algo externo. Usamos

nossos corpos para nos movimentarmos nós mesmos. Dessa experiência, e da

metáfora do observador que se move no tempo, surge um outro tipo de

conceitualização da música, não como objeto que se movimenta, mas como

paisagem a ser visitada. Um espaço abstrato, tridimensional, através do qual se

move o ouvinte. Não mais o ponto estático, é o ouvinte que embarca numa espécie

277

Cf. Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos: Decadência do Patriarcado Rural e

Desenvolvimento do Urbano, São Paulo, Global Editora, 15ª ed., p.657. 278

Cf. Nelson Rodrigues, A Pátria em Chuteiras: Novas Crônicas de Futebol, São Paulo,

Companhia das Letras, 1994, p.133. 279

Cf. Apud., Walter Garcia, Bim-Bom: A Contradição Sem Conflitos de João Gilberto, São

Paulo, Paz e Terra, 1999, p.134. 280

Cf. Luiz Carlos Maciel, Ângela Chaves, Eles e Eu: Memórias de Ronaldo Bôscoli, Rio de

Janeiro, Nova Fronteira, 1994, p.89.

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de jornada pelo caminho musical que define uma peça particular. O presente é

representado pelo o que se ouve agora, enquanto quilo que já foi ouvido é

conceitualizado como pontos da paisagem que ficaram para trás, às costas. Partes

que ainda não foram ouvidas são pontos futuros que serão posteriormente

encontrados pelo caminho. A diferença de perspectiva em relação à metáfora da

música que se move é clara: aqui, o ouvinte é participante do evento musical.

Podemos igualmente utilizar o termo passagem musical, mas num sentido

diferente, mais benjaminiano, se assim quisermos. Também muda o sentido do

termo arquitetura musical, pois aqui estamos efetivamente dentro do prédio. A

melodia infinita de Wagner deixa de ser a figura de uma espiral para ganhar uma

qualidade vertiginosa, como um caminho tortuoso que se percorre em grande

velocidade. Os acordes do acompanhamento tornam-se ambientes sonoros,

cômodos que formam o interior da arquitetura musical.

Há ainda uma terceira maneira fundamental de experimentar o movimento

físico, maneira que também se reflete sobre a experiência musical. Além de

vermos os objetos movendo-se e de movermos nós próprios nossos corpos, somos

também movidos por substâncias físicas e entidades, como a água e o vento, e

também por grandes objetos. De fato, grandes objetos nos movem de um ponto a

outro. É uma experiência bastante presente nos primeiros anos de vida. A mãe

retira o bebê do berço e o leva para a banheira. De lá, para o carrinho. Quando

transpomos isso através de metáforas para a música, é ela mesma que se torna

essa força capaz de nos mover. E uma vez que é vista como força, ela será capaz

de causar efeitos sobre o ouvinte. De acordo com a metáfora, o local físico é

substituído pela ideia de um estado emocional. Mark Johnson argumenta que a

noção de que existem “forças musicais” é um caso especial - que se dá por

“extensão metafórica” – do que ele próprio chama de “Local de Estrutura de

Evento”.281 De acordo com essa metáfora, “estados” são “locais”, isto é, lugares

metafóricos nos quais uma entidade pode estar, como por exemplo quando se diz

“ela está em coma há duas semanas”; ou “fulano caiu em depressão”. Mudanças

de estado são entendidas como o deslocamento de um estado-local para outro, e

tais movimentos são causados por forças que movem determinada entidade de um

ponto a outro (“pressões psicológicas me levaram a beber”; ou, “acontecimentos

281

“Location Event Structure” – ver Mark Johnson and Steve Larson, op.cit.., p.95.

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inesperados me fizeram mudar de rumo”). Desse modo, os estados são locais, as

causas são forças físicas, e o princípio de causalidade é o movimento forçado.

Transferindo esse conjunto de metáforas para a experiência musical, temos

um quadro no qual a própria música torna-se uma força capaz de mover o ouvinte

de um local (estado) para outro (estado diferente). De fato, há uma forte crença no

poder da música, algo que parece muito presente em diversas tradições.

Acreditamos piamente nisso e muitas vezes mesmo utilizamos voluntariamente a

música no sentido de nos conduzir, nos levar até determinado estado de espírito.

Tiramos proveito do seu potencial para manipular o nosso próprio humor, e

também o dos outros. Outras vezes somos atingidos pelas forças musicais sem

qualquer consentimento – “essa música mexeu comigo”; “aquela canção me

tocou”.

No caso brasileiro são muitos os exemplos de samba que tematizam em suas

letras esse poder. Sobretudo quando o tipo de música em questão possui pegada

rítmica, apelo corporal. Irá se falar de um “samba feiticeiro” que “mexe com a

gente”, “que zomba da gente”; como se fosse uma força geradora de alegria.

Força misteriosa, que age diretamente sobre os corpos, despertando-os com seus

ritmos ondulantes; “que deixa gente mole”, pois “quando se samba todo mundo

bole”; força capaz de nos colocar em estado de transe hipnótico, esquecido de nós

mesmos; capaz de congregar, de promover o gratificante sentido de pertencimento

e de unidade comunitária através do efeito que W.H.McNeill definiu como “perda

de contorno” (boundary loss) – a maneira como a atividade musical conjunta leva

a um “esfumaçamento da auto-consciência e ao aumento do sentido de

camaradagem entre todos aqueles que compartilham a dança”.282 (O que faz dela

um poderoso instrumento de coesão e uma eficaz arma de resistência contra a

opressão de grupos externos). Algo parecido com o efeito dionisíaco proposto por

Nietzsche: novamente a música como força capaz de apagar a ilusão da

individualidade e reconectar o sujeito com uma ordem superior; de reconduzi-lo

ao seio da natureza. O samba: entidade cósmica capaz de fazer “dançar os galhos

do arvoredo” e que “faz a lua nascer mais cedo”.283

282

“A blurring of self-awareness and the heightening of fellow feeling with all who share in

dance” (Cf. Apud. Steven Mithen, op.cit.., p.209) 283

Versos do clássico samba de Noel Rosa, Feitiço da Vila.

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Enfim, são essas metáforas algumas das ferramentas conceituais que usamos

para entender o mundo. Para senti-lo e expressá-lo do modo mais profundo

possível, cravado na carne. Como não usa-las para entender também a música?

Ora, se um dos aspectos da música seria, justamente, sua capacidade de projetar

ideias abstratas, é natural que as “imagens” sejam acionadas na compreensão

dessas ideias. E talvez retornem a nós na forma de metáforas. Sem que, contudo,

essas metáforas venham a ter seus significados cristalizados, fechados. Elas

jamais descrevem a música em si. Diferentes culturas muitas vezes usam

diferentes metáforas para descrever experiências semelhantes. O povo Kaluli, da

Nova Guiné, descreve o ato de cantar uma melodia através de um complexo

sistema de metáforas baseadas em quedas-d’água. Esses sistema parece menos

abstrato do que o nosso para referir-se ao campo das alturas, mas, ao mesmo

tempo, trabalha com noções semelhantes às nossas, ao enfatizar os movimentos de

ascensão e declínio. Baseiam-se muito simplesmente na influência da gravidade.

Os integrantes da tribo africana dos Venda descrevem a relação das alturas das

notas como “maiores” ou “menores”, ao invés de “mais altas” ou “mais baixas”.

Os gregos antigos as definiam como “afiadas” ou “pesadas”, e os índios Suyá, do

Xingú, utilizam os termos “novo” e “velho”. São metáforas que, cada qual a sua

maneira, ajudam o ouvinte de uma determinada cultura a melhor “imaginar” as

estruturas musicais.

...

A interação entre corpo e mente é tão profunda, que em seres de cérebro

mais elaborado, conjuntos integrados de neurônios “finalmente passaram a imitar

a estrutura de partes do corpo ao qual pertencem. Acabaram representando o

estado do corpo, literalmente mapeando o corpo para o qual trabalham e

constituindo uma espécie de substituto virtual, um dublê neural”.284 Em outras

palavras, o grande tema dos neurônios é o próprio corpo. E a incessante referência

ao corpo é a característica distintiva dos circuitos neuronais e do cérebro.

284

Damásio também sugere que “curiosamente, o fato de que o corpo é o tema dos neurônios e do

cérebro também sugere o modo como o mundo externo poderia ser mapeado no cérebro e na

mente”. (Cf. António Damásio, op.cit.., p.57)

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Mas tudo isso vai ainda além do cérebro imitador que mencionei algumas

páginas acima. Vai além do cérebro capaz de simular estados do próprio corpo.

Ao que tudo indica, o cérebro é capaz de simular em si estados corporais de

outros indivíduos. Não se trata apenas de imitar realmente – trata-se de

experimentar virtualmente a experiência de corpos que estão fora. E o grande

dispositivo de simulação dos estados do corpo no cérebro são os chamados

neurônios-espelho. Foram feitas experiências em que macacos com eletrodos

conectados ao cérebro observavam os movimentos de um ser humano. Quando

uma ação como um movimento de mão era vista pelos macacos, partes do cérebro

responsáveis pelos movimentos de mão dos macacos eram ativadas, ainda que

estes permanecessem parados. Ou seja: o movimento não era observado apenas

como puro padrão visual, mas também experimentado como imagem pré-motora;

experimentado como se fosse o próprio macaco que estivesse movendo a mão. Os

mapas cerebrais do corpo simulando um estado corporal que está presente em

outro corpo. Ou seja: sentimos em nós mesmos os estados corporais dos outros.

“As explicações sobre a existência dos neurônios-espelho ressaltam o possível

papel que eles podem ter para nos permitir entender as ações de outros colocando-

nos em um estado corporal comparável. Quando observamos uma ação em outro

indivíduo, nosso cérebro capaz de sentir o corpo adota o estado corporal que

teríamos caso nós mesmo estivéssemos executando essa ação, e muito

provavelmente ele faz isso não por meio de padrões sensoriais passivos, mas de

uma pré-ativação de estruturas motoras – torna-se pronto para ação, mas ainda

sem permissão para agir – e, em alguns casos, por meio de uma ativação motora

real”.285

Para os pesquisadores que os revelaram, os neurônios-espelho representam

o elo entre o emissor e o receptor, pré-requisito necessário para qualquer tipo de

comunicação.286 Localizados na área de Broca, famosa por sua relação com a

linguagem, pela geração dos aspectos motores da vocalização, eles compõem a

base para o comportamento imitativo nos humanos, especialmente no que diz

respeito à fala – à aquisição de gestos orais que formam as unidades fundamentais

do discurso humano(crianças copiam as ações motoras de seus pais para produzir

sons semelhantes). É possível que a capacidade comunicativa dos humanos tenha

285

Cf. Idem, Ibidem, p.137. 286

Ver Steven Mithen, op.cit.., p.131.

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dependido da progressiva evolução desse sistema de espelhamento. Mas os

neurônios- espelho apontam para uma dimensão de comunicação que vai além da

pura linguagem verbal, das imagens visuais ou da inferência lógica. Apontam para

um entendimento corporal mais profundo que, em si, incorpora a dimensão da fala

– e não vice-versa.

Tudo isso nos traz de volta para o tema dos conteúdos corporais da cultura.

Sobre as especificidades de seus movimentos. A permeabilidade contagiosa dos

ritmos que a compõem. Sua capacidade de espelhamento e pregnância nas

diversas esferas da vida. Imersos numa determinada cultura, sendo continuamente

afetados por “jeitos de corpo”, trejeitos, movimentos, sonoridades da fala,

dinâmicas de relação, construímos como que uma espécie de schema corporal –

para retomar um conceito utilizado nos ensaios anteriores – que certamente é uma

decorrência da conformação que uma cultura opera na entidade do corpo. Um

schema corporal que permite inúmeras variações individuais, mas que sempre se

apóia nas linhas-guias de um quadro maior. Uma resultante ampla, aberta, e no

entanto com um desenho reconhecível. Ao ver aquelas meninas passando, de certo

modo, eu intui uma espécie de padrão rítmico de movimento que, por me parecer

muito presente no Rio de Janeiro, configura-se como um traço de estilo. Estilo na

definição que nos é dada por Leonard B. Meyer: “Style is a replication of

patterning, whether in human behavior or in the artifacts produced by human

behavior, that results from a series of choices made within some set of

constraints”.287

Esse movimento está presente no próprio ritmo da fala, da língua viva,

física, articulada por tecidos e músculos. Não podemos esquecer que a fala, a

vocalização, é também uma atividade motora. Através dela (da língua falada) algo

maior se revela, e que diz respeito ao nosso modo de organizar a experiência. As

fórmulas sugeridas por Alison Wray não são apenas ideias soltas, mas realizações

físicas concretas, fruto da articulação conjugada e complexa, refinada, de

músculos no tempo. Isso, como já foi dito, aponta para um padrão modular de

algumas atividades motoras, tanto do ponto de vista funcional quanto

organizacional. Diz respeito à forte tendência que o cérebro tem em criar módulos

287

“Estilo é uma replicação de padrões, seja no comportamento humano ou em artefatos

produzidos pelo comportamento humano, que resulta de uma série de escolhas feitas dentro de

algum conjunto de regras”. (Cf. Leonard B.Meyer, Style and Music: Theory, History, and

Ideology, p.3) (Tradução Livre)

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de ação que simplificam e reduzem a carga informacional gerada pela execução. É

quando o corpo realmente aprende alguma coisa e a executa de modo quase

automático, sem muita intervenção da consciência. Andamos sem precisar pensar

nisso – nossa atenção pode se voltar para outra coisa qualquer enquanto o

movimento é executado. Do mesmo modo, quando comecei a tocar violão, sentia

minha atenção inteiramente absorvida no ato de coordenar a posição dos dedos no

braço do instrumento; na regulagem da força necessária que pressionar as cordas e

gerar sons distintos; na sincronização disso com os cinco dedos da mão direita,

que conduzem o ritmo; no encaixe disso tudo com a voz. A concentração exigida

era tamanha, que seria impossível fazer qualquer outra coisa ao mesmo tempo.

Uma vez que esses padrões iam sendo incorporados, passavam a exigir menos

atenção e esforço. Tornavam-se mais automáticos. Uma simples sinalização de

intenção e todo o movimento já vinha inteiro, acabado, temporalmente realizado.

Mas esses mesmos padrões motores, por sua vez, ancoravam-se em outros

padrões previamente incorporados. Uma arquitetura organizada em módulos

funcionais, módulos que se sobrepõem e, ao faze-lo, produzem novos e mais

complexos padrões de movimento corporal.

Isso sugere que talvez esteja certa a reflexão de John Blacking sobre o modo

como a própria estrutura de um instrumento é capaz de sob vários aspectos

influenciar a música que se faz: “(...) we know much about the theory and practice

of harmony in the European ‘art’ music of the nineteenth century, but when we

analyze the music of Hector Berlioz it is useful to know that he often worked out

harmonic procedures on a guitar, and that the structure of the instrument

influenced many of his chord sequences”.288 E não é só a estrutura do instrumento,

mas também o modo como o corpo se relaciona com ele. Toda a relação entre as

estruturas de movimento de nossa anatomia e o objeto que irá produzir a música.

De maneira parecida, György Ligeti defendeu Chopin como sendo o melhor

compositor para piano, pois nele “a sensação tátil possui um papel quase tão

288

“(...) sabemos muito sobre a teoria e a prática da harmonia na música ‘artística’ européia do

século XIX, mas quando analizamos a música de Hector Berlioz é útil saber que ele muitas vezes

trabalhava os procedimentos harmônicos no violão, e que a estrutura do instrumento influenciou

muitas de suas seqüências de acordes”. (Cf. John Blacking, How Musical is Man, p.21) (Tradução

Livre)

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crucial quanto a dimensão acústica”.289 É possível que, no caso da música feita no

Brasil, o papel desempenhado pelo violão como instrumento dominante tenha

influenciado de modo decisivo o próprio modo de se fazer música. E que isso

derive não apenas de parâmetros de timbre, textura, potência sonora, mas também

da estrutura física do instrumento e da relação que este tece com o corpo de quem

o toca. A Bossa Nova é o diálogo intenso entre o piano de Jobim – e a tradição

que vem de Ernesto Nazaré e os salões cariocas do século XIX, e que permitiu

também trazer para o contexto da música popular brasileira o universo sonoro de

Debussy – e o violão de João Gilberto – com a tradição que vem desde a viola de

arame de Domingos Caldas Barbosa, passando por nomes como Garoto e Dorival

Caymmi.

O que deve ser notado, contudo, é que aprendemos a tocar um instrumento

através da incorporação paulatina de módulos motores, do aprendizado e da

memorização de padrões de movimento. De modo geral, esses padrões motores

foram batizados por Rodolfo Llinàs de Fixed Action Patterns (FAP) e definidos

como “conjuntos de padrões motores bem definidos, ‘fitas motoras’ já prontas,

que quando acionadas produzem movimentos bem definidos e coordenados:

tentativas de fuga, andar, engolir, os aspectos inatos do canto dos pássaros, e

coisas afins”.290 As FAPs representam um padrão de organização funcional de

nosso sistema nervoso central. Uma organização em módulos de movimentos

capaz de acionar diversos grupos musculares e sinergias – músculos trabalhando

em conjunto, através da relação entre flexores e extensores, para produzir

determinado movimento - exigidas para movimentos estereotípicos, dos mais

simples aos mais complexos. Imagine, se precisássemos dedicar nossa atenção à

complexa sinergia muscular toda vez que fossemos nos deslocar andando de um

ponto a outro? As fitas motoras nos liberam desse trabalho de a cada vez

reinventar a roda. Ao apresentar módulos de ativação muscular já pré-

determinados, nos poupam também do tempo que perderíamos em escolher entre

todas as inúmeras combinações possíveis de movimento muscular a ser adotado.

289

“Frédéric Chopin est un pianiste chez lequel la sensation tactile joue un rôle presque égal à la

dimension acoustique”. (Cf. Claude-Henri Chouard, L’Oreille Musicienne: Les Chemins de la

Musique de l’Oreille au Cerveau, Paris, Gallimar, 2009, p.57) (Tradução Livre) 290

“Fixed action patterns (FAPs) are sets of well-defined motor patterns, ready-made “motor

tapes” as it were, that when switched on produce well-defined and coordinated movements: the

escape response, walking, swallowing, the prewired aspects of bird songs, and the like”. (Cf.

Rodolfo Llinàs, op.cit.., location 2039) (Tradução Livre)

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Reduzem um pouco o nosso campo de escolha, tornando-o mais confortável, sem

com isso nos impedir de modificar e readaptar os movimentos. Nos ajudam

sobretudo quando a ação possui um caráter ritmicamente marcado, circular.291

Desse modo, as fitas motoras (FAPs) representam um aspecto da atividade

intrínseca da própria mente. O ato de andar, em si, não depende de estímulos

sensoriais. O movimento, mesmo o movimento organizado, é intrinsecamente

gerado. A ideia é de que a função do sistema nervoso é capaz de operar sozinha, e

de que os sentidos servem somente como reguladores de uma atividade motora

interna. Eles modulam, mais do que informam, esse sistema intrínseco. Na base

desse sistema está a atividade elétrica de neurônios na espinha dorsal e no tronco

cerebral – neurônios que regulam tanto os processos respiratórios quanto a

locomoção. Essa linha de raciocínio sobre a execução do movimento difere

frontalmente daquela defendida por Willian James no fim do século XIX. Para

James, o modus operandi do sistema nervoso central era fundamentalmente

reflexológico. O cérebro seria um complexo sistema de recepção e resposta

(input/output) governado pelas exigências temporárias do mundo externo. Um

sistema que funcionava na base de respostas a estímulos externos constantes. Um

sistema passivo, portanto.

A linha de pensamento de James seria confrontada por aquela de Graham

Brown, que preconizava, de modo contrário, um sistema organizado sobre uma

base autoreferencial. Que não é apenas um receptor, mas também gerador ativo de

padrões que não necessariamente dependem de estímulos externos. O sistema

pode operar sozinho. O cérebro sequer precisa de um fluxo contínuo de

informações sensoriais para gerar percepções. As informações dos sentidos

291

Outra citação do livro de Llinàs pode ajudar a iluminar ainda mais a definição das fitas

motoras: “(...)motor FAPs represent a naturally selected functional organization of the central

nervous system, one slanted toward computational efficiency. These “plug and play” modules,

when activated or released, automatically call to order the various muscle groups and synergies

required for a stereotypical movement execution, from the simple to the complex. The

computational efficiency, the reader will recall, is attained by the preset automaticity of these

modules of function: the brain does not have to reinvent the wheel, from a neuronal circuit

(connectivity) perspective, each and every time a particular routine movement is required of the

body by circumstance. This allows the central nervous system to put its mind to other things, so to

speak. The effectors of FAPs are the motor neurons and the muscles whose contractions the motor

neurons drive. Put another way, generated from the internal functional geometry within the basal

ganglia is a translation into expression through the functional geometry of how the body can and

needs to move, given the momentary (internal and/or external) context”. (Cf. Idem, Ibidem,

location 3335)

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servem somente para modular contextualmente essas percepções.292 Talvez o

grande exemplo dessa vida intrínseca do cérebro seja o estado cognitivo dos

sonhos. Um estado cognitivo que não mais diz respeito a uma realidade externa,

pois não é mais modulado pelos sentidos. Liberto da tirania dos sentidos, o

sistema gera “tempestades elétricas” intrínsecas, capazes de criar novos mundos.

O substrato desse estado são as próprias experiências do passado armazenadas na

memória e a dinâmica de trabalho do próprio cérebro. Um pouco como acontece

quando simplesmente somos absorvidos pelo próprio pensamento e quase

esquecemos da existência de um mundo exterior. Ou como acontece quando

somos capturados por uma música e nossa atenção é arremessadas para outros

confins do universo mental.

Desse modo, segundo a linha de Brown, se vejo se aproximar um buraco na

direção na qual caminho, meus sentidos me alertam, minha atenção é rapidamente

solicitada, e refaço minha trajetória baseado nas informações fornecidas pela

visão. Uma vez iniciado no sistema motor superior, e sofrendo alguns pequenos

ajustes para contemplar dados como o tipo de terreno no qual andamos, o ritmo do

nosso caminhar passa a ser conduzido pelo circuito nervoso da medula espinhal.

Uma espécie de piloto automático é ligado. Na base das fitas motoras estão as

redes neuronais que geram esses movimentos estereotípicos, normalmente

rítmicos, relativamente constantes. Essas redes geram o padrão neural de atividade

que dirige FAPs evidentes, como é o movimento de andar.

As FAPs sublinham todos os movimentos voluntários. Llinàs argumenta

que, com o tempo, a própria vocalização virou uma FAP. Estranhamente, sua

teoria se combina com a de Wray: às fórmulas mais ou menos prontas que

utilizamos para construir sentenças no dia a dia, sem muito pensar nelas,

equivalem a fitas motoras. Pensamos uma sentença e já estamos com sua

execução física engatilhada, como imagem pré-motora pronta para ser disparada –

fisicamente realizada. Tudo isso nos traz de volta os elos mais profundos entre

emoções e vocalizações – o elo que teria formado a base da comunicação

melodiosa e holística dos primeiros hominídeos. Para a existência de uma

“prosódia biológica” – capaz de possibilitar certo grau de comunicação mesmo

entre humanos e outros mamíferos. “These are representations of the internal

292

Sobre o modo de ação contextual do cérebro ver Oliver Sacks, “O último hippie”, In. Um

Antropólogo em Marte, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

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abstractions such as emotions and intentions. So a prosodic event is an abstraction

coupled with a motor expression that conveys to another animal what its internal

state is like at that moment”.293 Com as modificações do corpo humano ao longo

da evolução, trazendo um aumento do grau de intencionalidade e das capacidades

prosódicas, o novo sistema usou e ampliou as FAPs de vocalização, tirando

partido da cada vez maior capacidade de produzir padrões sonoros.

Os argumentos de Llinàs que associam as vocalizações com padrões

motores fixos, modulares, são ainda mais fortalecidos por casos de patologias

como a síndrome de Tourette e o mal de Parkinson. Doenças neurológicas que

afetam os gânglios basais, um conjunto de núcleos subcorticais intimamente

relacionados com as atividades motoras do cérebro. Llinàs propõe que ali são

geradas as FAPs mais complexas. “In fact, the activity in the basal ganglia is

running all the time, playing motor patterns and snippets of motor patterns

amongst and between themselves—and because of the odd, reentrant inhibitory

connectivity amongst and between these nuclei, they seem to act as a continuous,

random, motor pattern noise generator”.294 De certo modo, as fitas motoras são

liberadas. Primeiramente como potência virtual, depois como imagem pré-

motora, e finalmente autorizadas a serem atualizadas como movimento. A

síndrome de Tourette age justamente sobre o aspecto inibitório dessa dinâmica. A

destruição parcial dos gânglios basais, nesse caso, geram uma liberação contínua

de tipos específicos de fitas motoras. O sujeito torna-se hipercinético: tamborila

sem cessar os dedos, mexe continuamente e sem motivo os braços, fala

incessantemente (muitas vezes palavrões). No caso do mal de Parkinson são as

próprias fitas motoras que vão sendo apagadas, desconstruindo aos poucos, de

cima para baixo, a grande catedral dos movimentos mais complexos até os mais

elementares.295

293

“Essas são representações de abstrações internas como as emoções e as intenções. Desse modo,

o evento prosódico é uma abstração acoplada a uma expressão motora que transmite para outro

animal qual é o estado interno do emissor naquele momento”. (Cf. Rodolfo Llinàs, op.cit..,

location 3458) (Tradução Livre) 294

“De fato, os gânglios basais vivem em atividade ininterrupta, tocando padrões motores e

trechos de padrões motores entre, e também no meio deles – e por causa da curiosa e recursiva

conectividade por entre e no meio desses núcleos, eles parecem agir como um contínuo e

randômico gerador de ruídos de padrões motores”. (Cf. Rodolfo Llinàs, op.cit.., location 2600)

(Tradução Livre) 295

“Neuropathology of these nuclei may be viewed as either producing an excess of FAPs, as in

Tourette’s syndrome, or as a defect with the eventual loss of them, as seen in Parkinson’s

syndrome. In the case of people with Tourette’s syndrome, where there is diagnosed partial

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Mas o principal episódio clínico utilizado por Llinàs para argumentar que as

vocalizações tornaram-se também FAPs vem de um caso batizado de “palavras

sem mente”. Um derrame fulminante destruiu quase que inteiramente o cérebro de

um paciente, salvo os gânglios basais e a área de Broca, no córtex. Também uma

parte do tálamo foi poupada, de modo que essas três partes mantiveram algum

grau de conexão. Depois de vinte anos de coma e de imagens cerebrais que

comprovam que o cérebro está funcionalmente morto, o paciente, em estado

vegetativo, ocasionalmente emite palavras. Aparentemente foi o único módulo

funcional do sistema nervoso que conseguiu sobreviver. “Nesse caso, a geração de

palavras é uma propriedade intrínseca do cérebro”.296 Isso mostra que alguns

circuitos são capazes de sustentar uma expressão motora “modular”, que articula

um complexo sistema de realização. Para serem ditas, palavras precisam de

ativação fonológica apropriada. Da articulação temporal de vários músculos,

como o diafragma, além das cordas vocais. Com isso, Llinàs sugere que os

eventos pré-motores que levam à expressão da linguagem são em todos os

sentidos iguais aos eventos pré-motores que precedem qualquer movimento

executado com um propósito definido. Ora, ao que me parece isso nos leva de

volta para a intuição de David Huron, mencionada algumas páginas atrás: a saber,

de que as influências rítmicas são bem mais espalhadas do que geralmente

pensamos. Ritmos comuns presentes no corpo influenciando o modo como nos

movemos, dançamos, fazemos música e falamos. Misturando-se, infiltrando-se,

contagiando-se uns aos outros. As fitas motoras representam um elo entre eles.

Ritmos presentes nos padrões fixos de ação que estão na base de todos os

movimentos voluntários do corpo.

Como o próprio nome aponta, esses padrões são ditos “fixos” porque

representam uma forma estereotipada e sem muita variação não apenas no âmbito

do indivíduo, mas em todos os indivíduos da espécie. Llinàs argumenta que “essa

fixidez pode ser vista desde o mais simples ao mais complexo padrão motor”.

Tudo bem. Mas é preciso pensar também que existem variações dentro dessa

destruction of the basal ganglia, there is an abnormal, continuous liberation of very particular types

of FAPs. These patients are characterized by continuous drumming of their fingers, continuous

talking, continuous arm movement, and the continuous inability to stay quiet; in a word, the

typical hyperkinetic individual”. (Cf. Idem, Ibidem, location 2167) 296

“This again reaffirms that the nervous system appears very much to be organized in functional

modules. In this case, word generation is an intrinsic property of the brain”. (Cf. Idem, Ibidem,

location 2346)

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fixidez. Que mesmo os movimentos estereotípicos podem apresentar nuanças,

alongamentos, cadências e desenhos diferentes. De um lado, isso pode e deve se

relacionar com aspectos da anatomia própria de cada pessoa e também do padrão

anatômico de determinado grupo humano. Partindo do indivíduo, já nascemos

com uma extensa memória genética, com uma imensa quantidade de sabedoria

sensório-motora que deriva do complicado sistema elétrico que a evolução

colocou em nossos cérebros. Uma memória que ocorre na ausência de

experiências sensoriais. Memórias que se incrustaram no código genético através

de uma miríade de pequenas mutações ocorridas no genoma desde tempos

imemoriais, trazidas à luz pela seleção natural. Um bebê já nasce com os

movimentos das mãos, dos pés e de boca – os circuitos já estão lá, ativos. As

estruturas funcionais e as FAPs de base já existem. Sem contar com todos os

outros movimentos involuntários internos que compõem o organismo.

Basicamente o que ocorre com o desenvolvimento é que esses circuitos são aos

poucos afinados, ao mesmo tempo em que certas áreas do cérebro desenvolvem-

se. Mas eles já estavam lá. Em um certo sentido, já somos ao nascer.

Por outro lado, viremos a ser. Porque o corpo não é estático, e sim eterno

devir. E os sistema inteiro precisa adaptar-se às grandes mudanças impostas ao

nosso corpo durante não apenas o período em que nos desenvolvemos e viramos

adultos, mas também às grandes desconstruções do envelhecimento. O sistema

nervoso precisa seguir continuamente o corpo. Sua grande habilidade é poder

modificar-se incessantemente através da experiência. Durante o desenvolvimento

o sistema nervoso não sabe o quão alto você vai ser ou o quão distanciados um do

outro seus olhos estarão: ele precisa adaptar-se funcionalmente a um corpo que ele

nunca ‘viu’ antes. É nesse sentido que, quando olhados com olhar mais fino,

corpos diferentes geram movimentos que, apesar da dinâmica estereotípica,

guardam algum grau de diferença. Na adaptação exigida pelo seu próprio corpo,

pode ser que, sem muita consciência disso, uma mulher baixa de quadris largos

caminhe de forma diferente do que uma mulher alta de quadris estreitos. Acontece

que as fitas motoras podem ser não apenas aprendidas, mas também modificadas

pela experiência. E disso resulta que a mulher alta de quadris estreitos, julgando

mais elegante o movimento ondulado da mulher baixa de quadris largos, passe a

intencionalmente imita-lo no seu próprio caminhar. Reorganiza desse modo suas

relações corporais internas. É o que vemos, por exemplo, e feito de outro modo,

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no jeito de desfilar das manequins – jeito propositalmente balançado, aprendido.

Uma vontade, um aspecto cultural, se impôs sobre a lógica do movimento

corporal.

É possível, contudo, que na base disso haja também um complexo jogo de

propensões da própria anatomia. Da relação direta entre o cérebro e certas

particularidades do formato dos corpos. E não apenas no âmbito individual. Em

outro nível, há um corpo médio, meio abstrato, que apresenta uma espécie de

soma total de determinado grupo humano. Resultado de um diálogo incessante,

confuso, ancestral, entre o corpo e a cultura. Diferenças anatômicas não entre

indivíduos, mas entre populações. Algo que tem a ver também com a reprodução

desses padrões dentro da cultura. E isso até chegar num ponto em que nem mais

se consegue distinguir entre os dois. Não há qualquer viés determinista nesse

pensamento. Todos sabemos da existência de uma história cultural do corpo. Do

modo como o próprio corpo é incessantemente recriado pela cultura através dos

tempos. E assim é de fato. Mas não é apenas isso. Parece haver uma dimensão

mais puramente física que também contribui para o desenho final desses padrões

de movimento. Para toda a esfera rítmica, corporal, sobre a qual se apóia a

existência. Para a forma como se constroem as tais fitas motoras propostas por

Llinàs. E que, por sua vez, é também capaz de gerar diferenças culturais. A

equação é simples: a cultura age sobre o corpo; mas também o corpo age sobre a

cultura. A separação entre os dois é muito mais uma necessidade conceitual, uma

precaução ideológica, um tabu histórico ou um cuidado intelectual do que uma

realidade. No fundo, os dois são indissociáveis.

Comentando o estilo específico de jogo criado pela seleção canarinho, o

antropólogo Antônio Risério declarou que “o povo brasileiro reinventou o futebol

com a inteligência corporal específica de sua formação etnocultural”. E que se

dando tal recriação em horizonte barroco, na interseção da sensibilidade trazida

pelo colonizador português, seria possível falar de uma “escola barroco-mestiça

de futebol”.297 Gilberto Freyre chega a referir-se especificamente a um tipo de pé

caracteristicamente brasileiro, mestiço, “pé pequeno que o mulato tem certo garbo

em contrastar com o grandalhão, do português, do inglês, do negro, do alemão”. E

cria a partir disso uma relação entre a proporção anatômica do membro físico com

297

Ver Francisco Bosco, Sergio Cohn (org.), Encontros: Antônio Risério, Rio de janeiro, Azougue

Editorial, 2009, p.119.

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a dança corporal diferenciada que marca certo movimento de corpo que iria se

infiltrar em diversas esferas da vida brasileira: “O pé ágil mas delicado do

capoeira, do dançarino de samba, do jogador de foot-ball pela técnica brasileira

antes de dança dionisíaca do que de jogo britanicamente apolíneo”.298

Em um livro específico sobre a relação entre o futebol e o Brasil, em que

também estão presentes a música popular e a literatura como espécies de entes

próximos, o ensaísta José Miguel Wisnik nos convida a “admitirmos com

simplicidade a constatação não excludente nem generalizante, mas

desmistificadora e a cada vez singular, de que afrodescendentes manifestaram a

manifestam uma extraordinária prontidão esportiva e musical, que veio a ter um

papel decisivo na constituição cultural do Brasil moderno”.299 Sublinhei a palavra

prontidão para com isso indicar que Wisnik a tomou de empréstimo dos versos do

compositor Noel Rosa: “O samba, a prontidão e outras bossas/ são nossas coisas/

são coisas nossas”. Algumas páginas antes, o próprio Wisnik cita um artigo de

Hans Ulrich Gumbrecht no qual o pensador alemão afirma que “saber se as

virtudes do futebol brasileiro (...) têm realmente algo a ver com a componente

africana dessa cultura, como Gilberto Freyre sugeriu na alvorada histórica da

glória futebolística nacional, constitui (...) problema” que “nos conduz

inevitavelmente para as proximidades de uma zona intelectualmente tabu, na qual

– por bons motivos, por motivos quase políticos – eu não gostaria de tocar

aqui”.300 Wisnik esclarece no fim da citação que o próprio Gumbrecht explicitaria,

durante um debate realizado em São Paulo, que o “tabu” referia-se ao

reconhecimento da especial prontidão dos afrodescendentes para o futebol e a

dança.

Enfim, trata-se de um terreno minado. Um terreno no qual conflitos raciais

acumulados e abertos, dissimulados ou escancarados, presentes ou passados,

jogam uma terrível sombra de desconfiança sobre qualquer pensamento que não

seja explicitamente destinado ao reconhecimento da condição desfavorecida dos

afrodescendentes no Brasil (passada e presente) ou ao reconhecimento e

valorização de suas contribuições culturais para o país. Como imenso laboratório

de mestiçagem genética e cultural no Novo Mundo, como grande centro

298

Cf. Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos, p.739. 299

Cf. José Miguel Wisnik, Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil, p.229. 300

Cf. José Miguel Wisnik, op.cit.., p.227.

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planetário de cruzamentos raciais, é possível supor que nesse caldeirão de

contatos e contágios tenham nascido novos “tipos de corpos”. E aqui utilizo o

termo corpo num sentido mais amplo, que não se deixa definir de forma

cristalizada pelas classificações científicas. Um sentido que compreende e abarca

o que denominamos por cultura. Corpo não apenas biológico, mas também corpo

histórico possível. Uma conjunção de ambos. Um emaranhado de tecidos,

movimentos, ritmos, mucosas, sons, rasuras, lembranças há muito esquecidas,

predisposições ancestrais e significados sociais urgentes. Corpos ritmados, sempre

em movimento. Como aqueles que vislumbrei nas meninas que andavam numa

rua do Rio de Janeiro.

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5 Conclusão

Um dos meus hobbies, enquanto morei Paris, tem sido acompanhar as

notícias que a imprensa francesa divulga sobre o meu país. A impressão que

tenho, olhando jornais e revistas, é de que a França está de olho no Brasil. Não sei

se a Europa toda está de olho no Brasil, mas a França está. Há uma oferta

crescente de informações sobre o país tropical. Com a proximidade das eleições

presidenciais, pude ver numa única semana pelo menos três importantes revistas

francesas dedicarem suas matérias de capa ao Brasil, em manchetes como “Brésil:

un géant s’impose”, ou “Brésil: le Nouvel Eldorado”.301 A tônica do olhar francês,

como se pode notar, é otimista - uma aposta renovada e esperançosa na

capacidade e na vez do Brasil em ocupar um lugar mais expressivo no mundo. O

otimismo da mídia internacional reverbera na imprensa brasileira, onde é comum

o leitor deparar-se com expressões auspiciosas – como “a grande chance” ou

“oportunidade histórica” - para designar as expectativas que cercam o momento

do país.

Não pretendo entrar no complexo detalhamento dos fatores que nos

contextos local e mundial possibilitaram a recente emergência brasileira. Limito-

me apenas a constatar que a ideia de um maior peso econômico do Brasil no

contexto global associa-se quase sempre, e muitas vezes de modo um tanto

confuso, com o poder de fascínio exercido por sua cultura diante de olhos e

ouvidos europeus. Há uma expressão risonha e simpática diante de quase tudo o

que concerne o país. Um filme francês recente, batizado com o nome da famosa

praia carioca de Copacabana, nos pode dar uma melhor ideia sobre o lugar

reservado ao país no imaginário daqui. Apesar do nome e das referências claras ao

Brasil, não há uma única imagem dele projetada na tela. O Brasil não ganha

materialidade. Ele é apenas uma espécie de devaneio: o paraíso imaginado, vago,

para onde a protagonista dirige seus sonhos e anseios de felicidade quando a

monótona realidade da classe média francesa – materialmente resolvida e

301

Ver as revistas “Le Monde Diplomatique”, Brésil un Géant s’impose – Hors-Série, nov. 2010, e

“Le Point”, Brésil: le Nouvel Eldorado, maio 2010.

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existencialmente esvaziada – lhe cansa o espírito. É lá, naquele país imaginado,

que se encontram o calor humano, a alegria, a liberdade do corpo e a pulsão de

vida que tanto lhe fazem falta num cotidiano de indiferença individualista e de

frieza humana burocratizada.

Se faço esta introdução é porque quero ressaltar que o aumento da presença

econômica brasileira não é apenas saudado como a mera chegada de mais um

competidor de peso no mercado mundial. Ao que parece, ele carrega também a

marca da expectativa em algo mais – que não se confunde com a simples e vulgar

liderança econômica. Que abarca aspectos mais profundos da existência humana.

Em recente passagem pela França, o cineasta Cacá Diegues percebeu o clima que

cerca o momento brasileiro: “Hoje, quando a opinião pública local julga a França

decadente, a Europa em grave crise e o mundo à beira do desastre, o Brasil surge

para ela como uma nova esperança de alguma coisa que não conhece, mas

presume existir. E, para garantir a vigência concreta desse sonho, somam, às

estatísticas positivas que possuem sobre nós, o impressionante carisma de um

presidente que nos devolveu, a nós mesmos e ao mundo, o valor simbólico do

país, perdido desde a ditadura militar”.302 Embora constantemente bombardeada

pelas notícias dos inúmeros fracassos de um lugar que, nas palavras do general De

Gaulle, “não é um país sério”, a velha utopia parece atualizar-se no imaginário

francês cada vez que indícios palpáveis sugerem que é chegada a hora e a vez do

Brasil.

Não pretendo fazer a genealogia da utopia-Brasil. Os rapports entre França

e Brasil remetem desde a expedição de Nicolas de Villegagnon, em 1504,

passando pelos ensaios de Michel de Montaigne, os textos filosóficos de Jean-

Jacques Rousseau, as pinturas de Jean-Baptiste Debret, e muitos, muitos outros

nomes importantes que, de um modo ou de outro contribuíram para a formação de

um imaginário sobre o país. Apenas constato a existência (ou permanência) dessa

aura utópica, e o fato de que a música popular parece ter se tornado o veículo por

excelência de sua projeção mundo afora. E isso fica patente no filme Copacabana.

Nele, como já disse, não vemos qualquer imagem do país latino-americano. O

detalhe é significativo. Pois os indícios da utopia-Brasil nos chegam pelos

ouvidos, por meio das canções que compõem a trilha sonora. Não são visões do

302

Cf. Cacá Diegues, “Um Amor Antigo”, In. Jornal O Globo, edição de 08/10/2010.

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paraíso, mas mensagens sonoras, ecos sussurrados de uma longínqua terra da

felicidade. Deveríamos falar de um imaginário auditivo, ou de uma visão sonora.

Estou querendo chamar a atenção para o modo rico e pouco usual em que o país

se dá a conhecer (ou a ser imaginado) pelos ouvidos. Isso me remete à famosa

crítica de Nietzsche quanto a hegemonia dos olhos como órgãos por excelência do

conhecimento humano. Ao que me parece, o Brasil exige não apenas olhos, mas

também ouvidos bem abertos. Um país de ainda escassa cultura visual, que

possuía até há bem pouco tempo altas taxas de analfabetismo, e que mesmo

depois de alfabetizado lê pouco. E que, talvez por conta disso, constituiu-se

predominantemente sob o domínio da oralidade. A palavra aérea impondo-se

sobre a palavra escrita. Os sentidos de pertencimento constituindo-se sobretudo

em torno de sons. O ouvido e a memória oral ocupando lugar de destaque nas

subjetividades e na dinâmica da vida social.

A partir dos anos 1920, essa propensão oralizante irá ganhar um tremendo

impulso com os novos meios de comunicação de massa, culminando na Era do

Rádio, que coincide com o desenvolvimento do samba carioca e do carnaval de

rua. Tudo isso forma um rico caleidoscópio que se vincula ainda com o

crescimento e as reformas urbanísticas do Rio de Janeiro, então capital. Através

de um complexo processo de negociações entre diversos agentes sociais, o samba

deixará de ser perseguido nos terreiros para ser alçado à condição de emblema

nacional, símbolo de uma nova cultura urbana, popular e moderna. É nesse

momento que a canção toma para si a tarefa de definir o que é brasileiro. Noel

Rosa dirá, numa canção dos anos 1930, que “o samba, a prontidão e outras bossas

são coisas nossas”. Na década seguinte, será a vez de Dorival Caymmi afirmar

que “quem não gosta de samba, bom sujeito não é”. Como filha do novo Brasil

urbano do século XX, a canção popular tem seu DNA profundamente marcado

pelos genes de uma utopia nacional-popular, formulada por intelectuais

progressistas dos anos 1920 e 1930 e encampada por toda a nação. Em outras

palavras: o Brasil é desde sempre o grande tema da canção popular moderna.

Muito daquilo que habitualmente entendemos por “brasileiro” deve-se a ela.

Grande parte de sua força – e talvez também seu limite – concentra-se sobre esse

ponto. Certamente essa canção já vinha sendo gestada desde muito antes. Mas

acontece que no século XX ela mergulhou tão fundo nessa espécie de mito

fundacional, que terminou por se confundir com ele. Ou seja: tornou-se ele.

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O curioso é notar como ela segue – e não raro antecipa – os movimentos de

redefinição da auto-imagem do país. No plano intelectual, a publicação de Casa

Grande & Senzala, em 1933, talvez tenha sido o fato mais determinante na

inauguração de um novo paradigma para a compreensão do Brasil. Depois de

longamente desqualificado pelo cientificismo europeu do século XIX, o país

cultural e racialmente mestiço faz as pazes consigo próprio. Virando o recalque de

ponta-cabeça, Freyre extraiu dos venenos da colonização escravista o remédio da

civilização original dos trópicos. Vendo nossos estigmas pelo seu próprio avesso,

possibilitou uma espécie de reencontro do Brasil consigo mesmo – uma liberação

de forças recalcadas, através da aceitação auspiciosa das marcas e estigmas de um

escravismo mal admitido. O ideal do país mestiço tornou-se o primeiro mito a

poder ser adaptado às aspirações progressistas do Brasil moderno.

Para que tão violenta operação simbólica penetrasse em profundidade o

tecido social e adentrasse o terreno mitológico, era imprescindível o auxílio de

manifestações culturais com maior pregnância junto ao povo. As mentes mais

atentas e avançadas desse momento logo perceberam o imenso potencial da

canção. Mário de Andrade e Gilberto Freyre consideraram-na prontamente como

a arte par excellence do país. Quando o ritmo sincopado do samba torna-se

emblema nacional, participando inclusive de formulações monumentais sobre o

país, ele está nos falando de um imaginário que passou a incorporar os traços

culturais de extração afro-brasileira como dados positivos na construção de sua

auto-imagem. Como vetor importante na formação de um povo que, a partir desse

momento, não apenas é “um povo misturado, mas um povo que gosta muito de ser

misturado” - como disse o presidente Lula no discurso de candidatura do Brasil

para sediar as olimpíadas de 2016. Apesar de calcado numa impostura histórica –

que abolia com a descontração do mito o amargo passado brasileiro – esse ideal

criou a possibilidade da projeção de uma imagem positiva do país para si mesmo,

da instauração de um amor próprio que unificava simbolicamente toda a nação, da

fundação de um mito moderno: o de um país unificado pelo afeto, indiferente aos

matizes de cor de pele, construído sob o signo do encontro, da dança e da alegria.

E isso, diga-se, num momento em que racistas fanáticos preparavam-se para

destruir a Europa com a Segunda Guerra.

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Interessa-me saber de que modo determinada linhagem da música brasileira

guarda em suas camadas mais profundas os sentidos dessa utopia que venho aqui

apontando. E de que modo esses sentidos são experimentados e compreendidos

pelas culturas não-brasileiras. Para melhor definir a linhagem musical à qual me

refiro, torna-se necessário fazer um deslocamento para o fim dos anos 1950. É

nesse momento que, embalado por uma forte onda de crescimento econômico

apoiado no desenvolvimentismo do governo Juscelino Kubitschek, o país passa

por um rápido processo de modernização. Extremamente complexo e abrangente

em suas implicações, esse processo reacende a chama utópica dos anos 1930. Só

que muda radicalmente o seu sentido.

A utopia do “Brasil mestiço” dos anos 1930 volta-se para o presente – para

a afirmação do que ele já é. O efeito utópico está no fato de que esta valorização

gera também uma série de expectativas sobre o lugar a ser ocupado pelo país no

contexto mundial. Ela expõe o anseio profundo de um país que queria ser sujeito

da história, e de modo original. Num recente ensaio sobre Casa Grande &

Senzala, o crítico literário Benjamin Moser comenta a respeito de Gilberto Freyre

que “toda a sua obra reflete uma profunda necessidade emocional de acreditar que

o Brasil (e Portugal, por extensão) era especial. Ele nunca perdeu o poderoso

desejo de banir o sentimento de inferioridade nacional que o atormentara na

juventude. Sua defesa da sociedade miscigenada, sob essa luz, não era uma

reivindicação progressista. Não se tratava do que o Brasil devia ou podia ser, mas

de uma justificativa do que ele era”.303

Embora permaneça a “profunda necessidade emocional de acreditar que o

Brasil era especial”, a reivindicação do seu lugar no mundo ganha, no fim dos

anos 1950, um novo sentido progressista, que muda o significado do impulso

utópico. Vem daí o comentário de Caetano Veloso, de que o Brasil ainda há de

merecer a Bossa Nova. Nela, projeta-se a ideia – e a exigência - de um país

superior a si próprio. O importante é notar que essa mudança de sentido será

cifrada em modificações ocorridas no próprio código da música popular. É por

isso que Chico Buarque resumiu sua história no século XX do seguinte modo:

“Noel Rosa formatou essa música nos anos 1930. Ela vigora até os anos 1950 e aí

303

Cf. Benjamin Moser, “A Tragicomédia de Apipucos: Ecos do Lusotropicalismo, do Texas a

Portugal e Angola”, In. Folha de São Paulo, edição de 11/07/2010.

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vem a bossa nova, que remodela tudo – e pronto”.304 Ou seja: Chico destaca os

dois momentos cruciais na formulação da linguagem da canção popular urbana, e

estes coincidem exatamente com os dois momentos mais radiantes da construção

de uma utopia brasileira no século XX. Tom Jobim e João Gilberto de alguma

forma sabiam disso. Olharam para trás e reconheceram uma linguagem já

amadurecida, com considerável espessura, mas que, para entrar em sintonia com

as novas necessidades do Brasil, precisava erigir uma ponte com o presente e o

mundo – tornar-se cosmopolita. Depois de um período de relativo anacronismo

durante quase toda a década de 1950, a Bossa Nova recolocou a música popular

como elemento central na composição e veiculação da nova imagem que o país

oferecia ao mundo: a imagem de um país que não era apenas sedutor pelo

exotismo de suas paisagens e tambores, ou pelo tutti-frutti hat de Carmen

Miranda, mas relevante pelo projeto modernizante que propunha. Nela, o mito

épico, carnavalizante e exótico do país mestiço transmuta-se em algo diferente.

Como diz Lorenzo Mammì, “O país entrava na era dos consumos sem ter passado

pela fase heróica e sombria da industrialização. Por um breve momento encarnou

a esperança de uma modernidade leve – lúdica e eficiente como um drible de Pelé,

natural e culta como um jardim de Burle Marx, exata e solta como uma melodia

de Bossa Nova. Tom Jobim foi a expressão mais popular, e provavelmente a mais

adequada, dessa ambição”.305 Há uma mudança de foco sobre o modo de inserção

brasileira no mundo. Este torna-se mais ambicioso, passa a mirar o futuro.

Talvez não seja exagero dizer que, assim como Casa Grande & Senzala, a

Bossa Nova redimensionou o que pensávamos sobre nós próprios – tendo

alargado tremendamente os limites de nossas possibilidades, daquilo que

pensamos ser capazes, e, consequentemente, de nossas responsabilidades. Isso foi

sentido com excitação febril pela geração posterior à de Jobim e João Gilberto.

Tom Zé resumiria o valor do Tropicalismo “a sua coragem de gritar que não

podemos fugir às responsabilidades criadas por João Gilberto e Tom Jobim”. No

encarte de um dos seus discos dos anos 1980, Caetano Veloso escreveu que a arte

de João Gilberto “transformou toda a cultura e mesmo toda a vida dos

brasileiros”. A partir da Bossa Nova, Caetano passa a ver a “instância da música

304

Cf. Chico Buarque (entrevista concedida a Fernando de Barros e Silva), “O Tempo e o Artista”,

In. Folha de São Paulo, edição de 26/12/2004. 305

Cf. Lorenzo Mammì, “Prefácio”, In. In. Cancioneiro Jobim: Obras Escolhidas, p.18.

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popular” como determinante de nossa “verdade dada e criável”.306 O samba é visto

como um projeto de Brasil – ou, por isso mesmo, como um projeto de mundo

através do Brasil. O samba: não uma tradição cristalizada a ser defendida, mas um

projeto que se quer realizar. “O samba ainda vai nascer”, “o samba ainda não

chegou” – “pai do prazer, filho da dor” – o anúncio e a exigência da realização

futura de algo que ainda não se cumpriu.

Foi a Bossa Nova que tornou esteticamente possível a formulação desse

“dever de grandeza” propagado pelos tropicalistas. Com ela, mais do que nunca, a

música popular passou a manter uma relação ambígua com o destino do país –

onde o não-realizado realiza-se como canção. Seria esse o substrato da Era dos

Festivais, nos anos 1960. É difícil ter hoje uma noção clara do impacto que teve o

sucesso mundial da Bossa Nova para um país cuja cultura e a vida social se

deparavam a cada momento com os estigmas do subdesenvolvimento. Como disse

Tom Zé, “No início de 58 o Brasil era um anônimo país exportador de matéria-

prima. Num fenômeno jamais conhecido na história antiga ou na modernidade,

terminou o ano exportando arte”.307 A Bossa Nova lançou a música popular

brasileira em um novo patamar. Atualizou-a com o momento histórico, trouxe-lhe

uma nova força dinâmica, fortaleceu sua vocação para cruzar e dissipar fronteiras,

- entre erudito e popular, nacional e estrangeiro - realizando sínteses bem-

sucedidas entre a linguagem do samba e as últimas informações sonoras vindas de

outras tradições musicais. Sua linguagem e sua visão de mundo estão

profundamente marcadas pela ideia (espécie de otimismo trágico) de uma entrada

desimpedida e leve do Brasil no capitalismo avançado. “Minha música é

essencialmente harmônica, disse Tom Jobim. Sempre procurei a harmonia. Parece

que eu tentei harmonizar o mundo. O que é evidentemente uma utopia. (...) No

entanto, minhas músicas são executadas no mundo inteiro. O mundo inteiro gosta,

mas o mundo inteiro não é utópico. O que é utópico é o Brasil. O Brasil é a

grande utopia. É o paraíso”.308

Há ainda um ponto que eu gostaria de destacar. Porque nele, creio, reside

considerável parte da singularidade da música brasileira. Ele diz respeito ao

profundo vínculo que ela mantém com a língua falada. Foi o linguista Luiz Tatit

306

Ver Guilherme Wisnik, Caetano Veloso, São Paulo, Publifolha, 2005, p.122. 307

Cf. Tom Zé, Tropicalista Lenta Luta, São Paulo, Publifolha, 2003, p.131. 308

Cf. Tom Jobim, In. Tons Sobre Tons, p.52.

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quem melhor atentou para o fato, ressaltando que os momentos de maior força

persuasiva da música popular são justamente aqueles em que ela permanece mais

colada aos movimentos da língua. “A grandeza do gesto oral do cancionista, diz

ele, está em criar uma obra perene com os mesmos recursos utilizados para a

produção efêmera da fala cotidiana”. Seu maior recurso é o “processo entoativo

que estende a fala ao canto. Ou, numa orientação mais rigorosa, que produz a fala

no canto”.309 Nesse sentido, compor uma canção é procurar uma dicção

convincente que elimine a fronteira entre o falar e o cantar. Trata-se de buscar o

espaço muito preciso onde uma língua encontra uma voz. Ninguém perseguiu

com tanto afinco esse espaço quanto João Gilberto. Sua aspiração é “colher a

articulação com que a melodia se destaca da palavra, mas ainda manter uma

ligação necessária com ela” – “encontrar o momento exato em que o canto

adquire forma própria, sem que esta seja outra coisa além da forma do falar,

sublimada” – manejar o canto na tangente da fala, de modo a “garantir ao verso a

essência musical e ao canto o ser poesia”.310 E tudo isso, tendo como matéria-

prima a prosódia natural do português mestiço do Brasil. Uma língua cheia de

“liquescências”, “isto é, sonoridades fluidas, cujos início e fim não podem ser

definidos com clareza. Uma língua, portanto, que resiste às marcações rígidas,

tentando arredondá-las”. O latim mal-falado que se transforma no português, e

que será recriado no longo e profundo contato com as línguas indígenas do

continente americano e, sobretudo, com as línguas dos escravos africanos.

Com o início do tráfico entre Brasil e África, já na primeira metade do

século XVI nota-se a confluência de línguas negro-africanas com o português

europeu antigo. Foram cerca de cinco milhões de falantes africanos trazidos para

o Brasil para substituir o trabalho escravo ameríndio, ao longo de

aproximadamente quatro séculos. O contexto de relativo isolamento social e

territorial em que foi mantida a colônia pelo monopólio do comércio externo

brasileiro feito por Portugal até 1808, condicionou um ambiente de vida que,

embora altamente hierarquizado e submetido à degradante dinâmica social da

escravidão, revelou-se sob muitos aspectos bastante poroso, maleável, fusional e

aberto à diferença – criando um povo dado a contatos e contágios. Numa das mais

309

Cf. Luiz Tatit, O Cancionista: Composição de Canções no Brasil, São Paulo, Editora da

Universidade de São Paulo, 2002, p.9. 310

Cf. Lorenzo Mammì, “João Gilberto e o Projeto Utópico da Bossa Nova”, p.66.

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belas passagens de Casa-Grande & Senzala, Freyre destaca o papel da escrava

doméstica como privilegiada interseção entre universos culturais e emocionais

distintos:

A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida:

machucou-as, tirou-lhas as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca

do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que no norte do

Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo. (...)

Amolecimento que se deu em grande parte pela ação da ama negra junto à criança;

do escravo preto junto ao filho do senhor branco.311

Acrescente-se a isso o peso numérico do contingente de negros e afro-

descendentes no Brasil, superando o número de portugueses e outros europeus. O

censo de 1823 apontou 75% de negros e mestiços no total da população brasileira.

Em 1850, o Rio de Janeiro contava com 80.000 escravos sobre 200.000 habitantes

– a maior concentração urbana de escravos desde a antiguidade, com nos informa

o historiador Luiz Felipe de Alencastro. Praticamente no mesmo período, 1860, o

número de escravos em New Orleans não passava de 15 mil. Obviamente, esse é

um dado vergonhoso para o Brasil. Como é vergonhoso o fato de que fomos o

último país independente das Américas a abolir a escravidão. Mas tudo isso não

deixa de indicar a amplitude de uma presença africana que logo se fez sentir em

todos os setores de nossa vida material e afetiva. Essa presença se realizou por

meio de comidas, novas plantas, objetos, batuques, danças, crenças e cantigas.

Mas também de modo menos óbvio, e talvez até mais profundo, por meio da

incorporação de maneiras de pensar, de sentir, de representar o mundo e o destino,

inscritas no próprio corpo da língua. Inscritas no ritmo e na sonoridade do falar

brasileiro. Na amplidão descansada e afetuosa de seus amplos espaços vocálicos.

Na dinâmica própria de sons e silêncios. Na textura fônica de uma série de

vocábulos bantos que, de tão entranhados em nossa vida, nem mais nos

lembramos de sua procedência. Vocábulos que já traziam consigo, formas de

pensar, valores. No deslizar macio das consoantes nasais e líqüidas, que abrem

regiões de transição indefinidas entre as vogais que as precedem e aquelas que as

sucedem. Na tendência a reforçar os acentos, sobretudo quando há uma seqüência

de monossílabos. Uma presença cifrada no movimento sincopado de nossa

prosódia cotidiana. Há, pulsando no corpo da língua, uma memória viva, inscrita

nos significantes corporais e sonoros, cifrada no que Wisnik definiu como “o

311

Cf. Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, p.387.

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lugar fora das ideias” – “vetor inconsciente por meio do qual o substrato histórico

e atávico da escravidão se reinventou de forma elíptica, artística e lúdica”.312

Essa, me parece, tem sido a matéria-prima por excelência dos músicos

populares no Brasil. O trabalho de João Gilberto (e dos melhores cancionistas

brasileiros) se dá, justamente, em cima dessa herança. Os índices do passado da

formação brasileira estão profundamente incorporados em sua revolução musical.

Ao contrário do que acontecia nos anos 1930, aqui eles não mais necessitam de

uma formulação temática explícita – como o “Brasil brasileiro, mulato inzoneiro”,

de Ary Barroso – pois já estão inscritos no próprio tecido da linguagem. Eles

encontram-se na radicalização maleável do caráter suspensivo do samba, que

caracteriza sua famosa batida de violão – espécie de miniaturização da polirritmia

de uma bateria de escola de samba. Encontram-se também na sua forma de cantar,

sublinhando com uma consciência extraordinária os dois caracteres básicos e

complementares da prosódia brasileira: a articulação frouxa e a acentuação

marcada. Seu nacionalismo tem outra natureza – sua utopia segue outro caminho.

É evidente que o passado escravista deixou marcas de sua violência e arbítrio em

muitas manifestações da cultura brasileira. Mas a Bossa Nova foi como a

sublimação de tudo isso. Sua positividade solar transformou em luz essas nódoas

sombrias. Nela, o passado está presente, mas já não pesa. E, sem pesar, abre a

cortina do futuro. Situa-se na antípoda “da sede do real”, da verve denunciativa,

do olhar épico sobre a miséria, que marcavam o movimento do Cinema Novo na

mesma época. Como bem disse Mammì - usando uma fórmula de Stendhal para

definir a beleza – a Bossa Nova é “promessa de felicidade”.

Talvez Freyre tenha algum razão ao colocar a nascente da poesia e da

música brasileiras na boca do culumin que servia de intermediário entre índios e

brancos no período da catequese; ou na boca do menino da casa grande,

africanizado pelo afeto e pela língua da ama negra; ou na boca dos ladinos – filhos

de escravos que logo cedo aprendiam a falar rudimentos de português e

participavam de duas comunidades linguísticas diferenciadas: a casa-grande e a

senzala. Talvez essa filiação ao universo da infância, ao afeto maternal, ao que se

conservou de doçura em meio ao cruel cenário de uma sociedade duramente

escravocrata, talvez isso tenha tingido nossa língua de alguma modulação

312

Cf. José Miguel Wisnik, Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil, p.405.

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profunda de afeto íntimo e ideal, que encontra uma via de escoamento e de

máxima realização estética pela voz da canção. Mesmo para quem não entende a

língua portuguesa, algo desse afeto é transmitido pelo simples conteúdo sonoro

dessas músicas. Vem daí a linhagem à qual me refiro ao longo deste escrito. Ela

pode ser percebida em Noel, Sinhô, Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Chico

Buarque, Paulinho da Viola, e em tantos e tantos outros músicos brasileiros. É

esse vínculo profundo com a língua que parece também diferenciar a Bossa Nova

de outra tradição a respeito da qual ela foi em diversas ocasiões acusada de

plagiaria: a do jazz. “A principal diferença entre a escrita de Jobim e a dos

compositores norte-americanos”, escreve Mammì, “está justamente nessa

primazia do canto e, através do canto, da fala”.313

A música popular não é, contudo, um mero reflexo da língua. Na superfície

onde se roçam palavra e som, a canção desvela e cria o próprio corpo da língua.

Ela é aquilo que Roland Barthes definiu como “espaço de prazer, de gozo, espaço

em que a linguagem é trabalhada para nada, isto é, na perversão”.314 Em outras

palavras: a canção oferece um exercício puramente estético da língua, que,

trabalhada na volúpia de seus sons significantes, é, por si só, capaz de criar novos

modos de existência. Tudo isso decorre de uma identificação tão profunda entre

homem e linguagem que trabalhar a linguagem é trabalhar o próprio homem. É

preciso pensar um pouco como Nietzsche: que os sons têm ideias, e de que

“acostumar-se com determinados sons é algo que influi profundamente no caráter:

- adquire-se logo as palavras e locuções e, por fim, também os pensamentos

próprios desses sons”!315 Pode ser uma utopia pessoal, mas quando penso na frase

de Nietzsche, penso no “potencial de contágio” da música brasileira... Conheci

alguns estrangeiros que decidiram visitar pessoalmente o país não por causa de

uma foto, uma matéria de jornal ou um filme, mas por causa de uma canção.

FIM

313

Cf. Lorenzo Mammì, “Prefácio”, p.15 314

Cf. Roland Barthes, “O Grão da Voz”, In. O óbvio e o obtuso, Rio de Janeiro, Nova Fronteira,

1990, p.128 315

Cf. Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, § 104

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