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Paulo da Costa e Silva Franco de Oliveira
"A BOSSA NOVA E O IMPRESSIONISMO – UMA TESE DE SUPERFÍCIE”
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientador: Profº. Júlio César Valladão Diniz
Co-Orientador: Profº. Yannick Seite
Rio de Janeiro, Abril de 2012
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Paulo da Costa e Silva Franco de Oliveira
"A BOSSA NOVA E O IMPRESSIONISMO – UMA TESE DE SUPERFÍCIE”
Defesa de Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Letras do Departamento de Letras do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profº. Júlio Cesar Valladão Diniz
Orientador Departamento de Letras – PUC-Rio
Profº. Yannick Seite Co-Orientador
Université Paris VII
Profº Frederico Oliveira Coelho Departamento de Letras – PUC-Rio
Profª Claudia Neiva de Matos UFF
Profº Christophe Bident Amiens
Profº Miguel Jost Ramos CCE/PUC-Rio
Profa. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 16 de abril de 2012
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do
autor e do orientador.
Paulo da Costa e Silva Franco de Oliveira
Graduou-se em Comunicação Social pela PUC-Rio, é
mestre também em Comunicação Social. Pesquisador e
músico, assinou o texto do livro Bossa Nova: Um
Retrato em Branco e Preto, publicado pela editora PUC-
Rio, em 2008. É também Pesquisador Titular do Núcleo
de Estudos em Literatura e Música (NELIM) da PUC–
Rio. Em 2009 ministrou o curso Som Nosso de Cada Dia
pela Coordenação Central de Extensão (CCE), também
da PUC–Rio. Atualmente é diretor da Rádio Batuta, um
projeto do Instituto Moreira Salles. Ficha Catalográfica
CDD: 400
Oliveira, Paulo da Costa e Silva Franco de “A Bossa Nova e o Impressionismo – Uma Tese de Superfície” / Paulo da Costa e Silva Franco de Oliveira ; orientador: Júlio César Valladão Diniz. – 2012. 245 f. : 30 cm Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, 2012. Inclui bibliografia 1. Letras – Teses. 2. Canção brasileira. 3. Impressionismo. 4. Bossa Nova. 5. Debussy. 6. Tom Jobim. 7. João Gilberto. I. Diniz, Júlio César Valladão. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.
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Dedico esta tese ao meu estimado avô Antônio
Franco de Oliveira, falecido pouco antes de minha
defesa. Dedico-a também às minhas duas mães: uma
paulista, e outra baiana.
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Agradecimentos
Pelo respaldo institucional, agradeço ao programa de pós-graduação do
departamento de letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e à
Université Paris 7.
Meus agradecimentos mais do que sinceros aos meus dois orientadores. Ao
professor e amigo Júlio Diniz, pela confiança e pelo apoio incondicional. Ao
professor Yannick Séité, pela afabilidade e pelas palavras encorajadoras.
Agradeço também a todos aqueles que direta ou indiretamente fizeram parte dessa
jornada. Amigos, colegas, familiares, professores e todos aqueles com quem
mantive algum tipo de interlocução. Entre eles estão: Miqueli Michetti, Daniel
Andrade, Alexandre Freitas, Francisco Bosco, Marina Garcia, Aïxa Barat, Denise
Schittine, Alex Leite, Jacques Fux, Gladson Dalmonech, Rodrigo Tupinambá,
Flavia Raphaella, Ulisses Figueiredo e Felipe Botelho.
Gostaria de agradecer aos professores que estiveram presentes em minha banca:
prof. Claudia Neiva, prof. Christophe Bident, prof. Frederico Coelho, prof.
Miguel Jost – muito obrigado por terem aceitado o convite para participar de
minha banca. Devo acrescentar, a título de singela homenagem, a doída presença
da ausência da professora Santuza Naves. Inicialmente confirmada em minha
banca e já de posse de minha tese, Santuza faleceu a menos de duas semanas de
minha defesa. Lamento com grande pesar a ausência dessa generosa interlocutora,
figura central e incontornável para todos aqueles que decidiram estudar a canção
popular brasileira no âmbito acadêmico.
Agradeço ao programa Capes/Cofecub, do qual fui bolsista no exterior por um
período de um ano e meio - período fundamental no desenvolvimento de meu
trabalho, durante o qual residi em Paris. Agradeço também ao CNPQ, pela
concessão de uma bolsa de pesquisa durante o último ano de minha tese – bolsa
que me garantiu a necessária paz de espírito e mínima condição material para que
pudesse levar a bom termo a escrita de minha tese.
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Resumo
Oliveira, Paulo da Costa e Silva Franco de; Diniz, Júlio César Valladão. “A
Bossa Nova e o Impressionismo – Uma Tese de Superfície”. Rio de
Janeiro, 2012. 245p. Tese de Doutorado – Departamento de Letras,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Criada no formato tese-ensaio, O Impressionismo e a Bossa Nova – Uma
Tese de Superfície propõe um amplo mosaico no qual distintos e distantes campos
de conhecimento, que geralmente andam separados, possam interagir de maneira
fluida e livremente concatenada. Utilizando-se de dados de áreas como teoria da
canção, história cultural, psicologia cognitiva, musicologia, crítica de arte,
neurociência e biologia evolutiva, entre outros, o trabalho estrutura-se a partir de
três quadros multifacetados, a um só tempo autônomos e complementares. No
primeiro quadro são abordados temas relacionados à dimensão melódica e linear
da música, em sua relação com a memória e a percepção do tempo. Obras de Tom
Jobim são postas em evidência e ajudam a iluminar o caráter eminentemente
melódico da canção popular, ao passo que revelam seu teor próprio de inovação
em relação ao passado e definem seu lugar na tradição da canção brasileira. No
segundo quadro o foco é transferido para o papel da harmonia e da dimensão
propriamente vertical da música, dimensão que diz respeito ao impacto
instantâneo no tempo. Além de uma longa introdução sobre a mudança do
discurso harmônico na música européia do século XIX, são também discutidos a
ênfase nas sensações mais diretas, em detrimento de uma visão narrativa e linear,
e o modo como tal deslocamento pode ser visto como ponto de aproximação não
apenas entre a música de Claude Debussy e a pintura de Claude Monet
(Impressionismo) mas também com o novo estilo criado por Tom Jobim e João
Gilberto no Brasil (Bossa Nova). O terceiro e último quadro se propõe a lançar
um novo enfoque sobre a dimensão rítmica da música brasileira, ampliando, à luz
de estudos recentes, e tendo a música de Tom Jobim e João Gilberto como
principal parâmetro comparativo, o entendimento de sua relação com o corpo, a
língua, e a própria ideia de formação cultural do país.
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Palavras-Chave
Canção Brasileira; Impressionismo; Bossa Nova; Debussy; Tom Jobim;
João Gilberto.
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Résumé
Oliveira, Paulo da Costa e Silva Franco de; Diniz, Júlio César Valladão
(directeur); Séité, Yannick (co-directeur). ‘L’Impressionnisme et la Bossa
Nova – Une Thèse de Surface’. Rio de Janeiro, 2012. 245p. Thèse de
Doctorat – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro.
L’Impressionnisme et la Bossa Nova – une Thèse de Surface se présente comme
une vaste mosaïque dans laquelle des champs disciplinaires divers et éloignés les uns des
autres peuvent interagir d'une façon harmonieuse et libre. Sollicitant des données issues
de domaines comme la théorie de la chanson, l'histoire culturelle, la psychologie
cognitive, la musicologie, la critique d'art, les neurosciences et la biologie de l’évolution,
parmi d'autres, le travail est structuré en trois parties qui sont à la fois autonomes et
complémentaires. Dans la première sont abordés des thèmes liés à la dimension
mélodique et linéaire de la musique ; à sa relation avec la mémoire et la perception du
temps. Les œuvres de Tom Jobim servent alors de modèles nous permettant de mettre en
lumière le caractère éminemment mélodique de la chanson commerciale. En tentant de
définir la place qu’occupe cet artiste dans la tradition de la chanson brésilienne on met
également en évidence le caractère innovant d’une œuvre qui rompt avec le passé. Dans
la deuxième partie, le regard se déplace vers le rôle de l'harmonie et sur la dimension
verticale dans la musique, dimension responsable de son impact instantané sur l’auditeur.
En plus d'une longue introduction sur le changement du discours harmonique qui s’est
opéré dans la musique européenne du XIXe siècle, on met l'accent sur l’importance des
sensations les plus directes dans la tradition musicale moderne, au rebours d'une vision
qui en privilégie les dimensions narratives et linéaires. On montre ensuite comment, à la
faveur d’un tel déplacement, il devient possible d’opérer un rapprochement non
seulement entre la musique de Claude Debussy et la peinture de Claude Monet
(l’Impressionnisme), mais aussi entre l’art de ces derniers et le nouveau style créé par
Tom Jobim et João Gilberto au Brésil (la Bossa Nova). Dans la troisième et dernière
partie du travail, on propose un regard nouveau sur la dimension rythmique de la musique
brésilienne. L’objectif est ici un élargissement, à la lumière d'études récentes, de la
compréhension de la relation du rythme avec le corps (l'organisme), avec la langue et
avec l’idée d’une formation culturelle. Dans cette partie, la musique de Tom Jobim et de
João Gilberto demeure le principal paramètre comparatif.
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Mots-clé
Musique Brésilienne ; Impressionnisme ; Bossa Nova ; Debussy ; Tom
Jobim ; João Gilberto.
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Sumário
1. Introdução 11
2. Quadro 1 – Melodia, tempo e memória 16
3. Quadro 2 – Harmonia, sensação e espaço 79
4. Quadro 3 – Ritmo, corpo e movimento 154
5. Conclusão 227
6. Referências Bibliográficas 238
1 Introdução
O presente texto pode ser definido como tese/ensaio. Tese, porque trata-se,
muito obviamente, de um trabalho de conclusão para a obtenção do título de
doutor; ensaio, porque há nele suficiente espaço para digressões, fugas,
aproximações livres, intuições ligeiras, inserções abruptas, tudo o que geralmente
costuma ser excluído do gênero mais convencionalmente entendido como tese,
mas que encontra na forma-ensaio (que já teve dias de maior prestígio na
academia) um terreno acolhedor. Claro está que não há qualquer julgamento de
valor nisso. A forma-ensaio tem seu conjunto de leis próprias e seria injusto
insinuar que o ensaio é o lócus da livre articulação de ideias, do jogo lúdico de
associações, das digressões que bastam pelo interesse que provocam em si,
enquanto a tese seria caracterizada por um maior rigor demonstrativo e por regras
restritivas que trabalhariam no sentido de uma uniformização da linguagem e,
sobretudo, na manutenção de um centro focal. E aqui toco no principal ponto que
me leva a definir este trabalho como tese/ensaio: menos na linguagem do que num
certo descompromisso em relação ao objeto. Embora anunciados pelo título, o
Impressionismo e a Bossa Nova são personagens que vão e voltam; somem para
depois reaparecer; encontram-se lá pelo meio da história, dialogando com maior
intensidade, para depois se ausentarem novamente, sumindo na bruma, como
pedaços de melodia que recuam diante de acordes coloridos, gordos, deixando-nos
com a contemplação pura do cenário harmônico. Não é a tese que gira em torno
dos objetos da comparação, lançando luz sobre suas infinitas facetas, mas os
objetos que transitam em torno da tese, como planetas inseridos num sistema
solar. Daí também a pouca preocupação em delimitar com nitidez os contornos de
temas tão vastos, optando-se por uma compreensão menos detalhada, mais
genérica, dos objetos em questão.
Para que tudo isso não se tornasse demasiadamente frouxo, para que as
digressões não desaguassem num princípio de entropia, era necessário delimitar
alguns pontos estruturais básicos. Daí veio a divisão em forma de tríptico, cada
um deles salientando um aspecto clássico da reflexão musical. Digo “da reflexão”
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porque sabemos que na prática não há distinção entre melodia, harmonia e ritmo.
Estão absolutamente integrados no fenômeno musical. Mas como eixos
conceituais básicos não apenas são, desde muito, largamente utilizados como
continuam sendo os mais aptos a análises e interpretações. E por um motivo
básico: são mais facilmente quantificáveis e respondem de modo mais claro por
funções estruturais e sintáticas na construção dos estilos musicais. Um elemento
como o timbre, embora seja a primeira qualidade sonora a ser reconhecida por
nossa memória (se ouço um acorde e um ataque de voz já identifico o estilo Bossa
Nova, muito antes de reconhecer de que canção se trata), dificilmente chega a
formar estruturas significantes. Tampouco se articula em relações internas capazes
de formar pelo menos o esboço de um sistema de forças, de uma hierarquia
sintática. Sendo assim, tomei os elementos mais consagrados da análise musical
como pilares centrais do edifício do texto.
A esses pilares, incorporei conceitos que traziam as relações
preponderantes, os vínculos mais profundos desses eixos estruturais com a
percepção humana. Desse modo, a melodia está mais fortemente ligada com a
memória, com a reconstrução linear de uma seqüência, embora também provoque
sensações verticais, instantâneas, e não raro seja também capaz de nos fazer
dançar, com seu balanço rítmico. A harmonia, por sua vez, atinge uma liberdade
sonora inédita com Debussy, tendo sua dimensão de sensação pronunciada como
nunca antes, mas nem por isso deixa de participar de uma linha discursiva, com
seus antes e depois, seus encadeamentos mais ou menos prováveis, estruturados
em constante relação com a lógica da harmonia funcional, assim como continua
sendo um elemento central na própria definição rítmica de uma música – não
posso deixar de mencionar aqui o fato estranho, misterioso, de que acordes
menores frequentemente soam mais “lentos” do que acordes maiores, mesmo
quando no relógio possuem a mesma duração, da mesma forma que acordes com
fraca definição tonal são capazes de cavar vazios no interior do fluxo musical,
alterando a percepção que se tem do tempo de uma música. Por fim, mesmo que o
ritmo seja a própria essência da música (talvez da vida humana, mesmo), estando
presente em todas, absolutamente todas as suas dimensões como indutor de
sentidos, às vezes sua presença torna-se tão extrema que ele salta à frente,
ganhando intensa adesão corporal. É quando a música sequer parece estar sendo
dirigida aos ouvidos, muito menos ao entendimento consciente, racional, e
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tampouco à memória, mas a essa unidade maior que condiciona e produz o
próprio “eu”: o corpo.
A essas duplas – melodia/memória, harmonia/sensação, ritmo/corpo –
acrescentei ainda desdobramentos conceituais quase inevitáveis, expressos pela
adição de mais uma palavra. Tornaram-se tríades dentro do tríptico. Sendo assim,
melodia e memória remetem diretamente a uma apreensão mais linear do tempo,
da mesma forma que harmonia e sensação apontam para o interessante problema
da dimensão propriamente espacial da música, e ritmo e corpo nos levam ao
princípio de movimento – sonoro e corporal. Os termos são muito amplos, as
definições muito fluidas, exageradamente abertas, e talvez até (por que não?)
intercambiáveis. Melodia/memória/tempo, harmonia/sensação/espaço,
ritmo/corpo/movimento, poderiam ser embaralhados sem perder a pertinência. O
primeiro quadro bem poderia ser, por exemplo, melodia/corpo/espaço; o segundo,
ritmo/sensação/tempo, e por aí vai. Mas talvez fosse mesmo necessário que a
arquitetura do texto fosse projetada sobre um plano muito genérico, pois só assim
haveria certa liberdade do trânsito de ideias e intuições dentro da tese/ensaio.
Cria-se com isso uma malha flexível, um reticulado com as diretrizes conceituais
de cada ensaio servindo como pilares que são atravessados horizontalmente pelo
Impressionismo e pela Bossa Nova. Tal estrutura de fundo também permitiria,
talvez, que campos de conhecimento tradicionalmente muito distantes entre si
fossem aproximados e - pretensão máxima - postos em interação, como elementos
químicos reagindo no interior de um tubo de ensaio. Perde-se em inteireza e
coerência o que se ganha em maleabilidade. Mesmo que água e óleo jamais
venham a se misturar, nem por isso deixam de formar interessantes e sinuosas
formas, com bolhas, áreas de transição, densidades distintas e inesperados matizes
de cor.
Uma vez definida a arquitetura, as referências foram sendo trazidas, tendo
como limite óbvio o próprio alcance dos meus estudos. É como se houvesse um
imenso tabuleiro com casas vazias a serem preenchidas. O time escolhido, se não
é suficientemente vasto, tem pelo menos a virtude de ser bastante variado.
Escritores (Proust, Baudelaire), filósofos (Santo Agostinho, Nietzsche),
musicólogos (Lorenzo Mammì, Leonard B. Meyer, Stefan Jarocinsky, David
Huron), neuroscientistas (António Damásio, Rodolfo Llinàs), paleontólogos
(Steven Mithen, Bruce Richman), lingüistas (Luiz Tatit, Alison Wray), pintores
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(Monet, Matisse), historiadores e críticos de arte (Argan, Gombrich), para não
mencionar todos os músicos citados, aparecem com certo destaque ao longo desta
tese/ensaio que, apesar da aparência que lembra um mosaico, possui também um
fio condutor, capaz de amarrá-la por dentro.
Atrás da estrutura acima descrita, haveria, portanto, uma unidade maior que
religa e traz um sentido mais amplo aos três quadros. Como o próprio termo
“tríptico” sugere, os ensaios são a um só tempo autônomos e interdependentes.
Geram, contudo, uma espécie de efeito de conjunto. Mais do que formular
questões bem definidas, mais do que defender argumentos precisos, fazem um
balanço indireto de minha experiência, de minhas reflexões e vivências como
músico e pesquisador da canção brasileira – e, nesse sentido, a tese é
profundamente ensaística, testemunha do percurso nem sempre coerente do meu
pensamento ao longo dos últimos quatro anos. A relação entre Impressionismo e
Bossa Nova (aparentemente o tema oficial, como sugere o título) torna-se,
portanto, uma espécie de “estudo de caso” inserido no contexto maior de
indagações teóricas mais amplas.
Como o leitor poderá perceber, conforme for adentrando o espaço
arquitetônico do texto, parte dessas indagações é perpassada pelo tema dos
universais no ato de apreensão musical. Embora seja na maior parte do tempo
mantido como pano de fundo, a aproximação com tal tema se me tornou
praticamente inevitável no período de um ano e meio em que passei na França. E
isso porque, sendo músico, pude colher de perto alguns efeitos recorrentes
causados por determinada linhagem da música popular brasileira sobre pessoas
que tinham muito pouco contato com outros aspectos de nossa cultura. Não falo
exatamente dos franceses, mas de nacionalidades bem mais distantes de nosso
universo cultural, com uma quantidade de contatos históricos infinitamente
menor. Em outras palavras, pude ver um pouco do efeito causado por essa
linhagem da canção (que será melhor definida no fim do escrito) quando
radicalmente deslocada de seu contexto original. Os significantes sonoros,
musicais e linguísticos, agindo com pouco ou nenhum recurso exterior de
codificação cultural. Dialogando de modo mais intenso com aspectos intrínsecos
da apreensão humana da música, ao mesmo tempo em que comunicavam o
conteúdo específico e puramente sensorial de determinada formulação cultural, da
fabulação de determinado povo inserido em determinada época. Capazes de gerar,
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talvez, como sugere Baudelaire ao falar da música puramente instrumental de
Wagner, “ideias análogas em cérebros diferentes”.
O que para mim se tornou claro foi a capacidade de comunicação da música
popular brasileira. Sua capacidade de ir além das fronteiras culturais e tocar
também em outros horizontes - a música de Tom Jobim e João Gilberto, a Bossa
Nova em sua essência, talvez tenha representado o momento de maior evidência
disso. E tocar de um modo específico, gerando um tipo de “compreensão” que
parece depender apenas da existência de um corpo humano modelado por milhões
de anos de evolução. Em um mundo com a troca de informações e de bens
simbólicos cada vez mais acelerada, rarefeita, onde não há tempo para a
reconstrução mínima dos ditos contextos originais, talvez seja mais do que nunca
dessa forma que a música brasileira vem sendo experimentada fora do país: fluxos
de significantes sonoros, encontros e desencontros de linguagens e referências,
associações imprevistas, relações dinâmicas tecidas com memória mais imediata,
palavras que valem pelos sons e texturas que geram, capazes de produzir um
significado aberto, apenas intuído. João Gilberto tocando para um público de
japoneses (e será que podemos dizer que os japoneses não entendem a música de
João Gilberto?).
Sei de quão espinhoso e complexo é o tema, e que tal universalismo é
evidentemente poluído, posto que a Bossa Nova participa também, e de modo
intenso, da tradição da música ocidental. A aproximação dela com a música de
Claude Debussy, na segunda parte, e sua própria relação com a música americana,
dão testemunho disso. Mas não creio que todo o problema se esgote por aí. Pelo
contrário: acho que ele apenas começa aí. Parte do esforço deste trabalho foi
exercido na direção de lançar sobre a música brasileira que foi produzida em
determinado caldo cultural de determinada época um olhar menos exclusivamente
culturalista. Os dados históricos e sociais dialogando com teorias recentes não
apenas sobre os modos de percepção do mundo, mas sobre os modos de introjeção
do mundo pelo ser humano. Sobre as relações cruciais entre o vasto e imemorial
tempo biológico e o curto tempo histórico.
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2 Quadro 1 – Melodia, tempo e memória
No principal romance de Proust as descrições musicais estão diretamente
vinculadas à paixão, ao tempo e à memória. Ou seja, aos grandes temas de Em
Busca do Tempo Perdido. O que mais fascina nessas descrições é o caráter
dinâmico apresentado por elas - são, de certo modo, descrições “abertas”. Elas
mudam no tempo: a mesma música, ouvida em diferentes momentos, torna-se
também ela diferente. Mudam também de acordo com o personagem que as
absorve: nem todos conseguem extrair da experiência estética tudo o que ela tem
para oferecer. Esse caráter dinâmico, capaz de sempre manter uma dose de
indefinição na elaboração da trama, parece diretamente ligado aos mecanismos da
memória, à instabilidade e à inexatidão que lhes são próprias. É por isso que ao
longo do romance a verruga de Albertine, amante do narrador, migra do queixo
para os lábios, e daí para a bochecha.
Se a ficção de Proust explora o modo como o tempo modifica a memória, o
ciclo se fecha com a própria música: porque o papel crucial desempenhado pela
música no romance vem do fato de que ela representa um modelo perfeito da
memória involuntária – a principal pedra de toque da saga do narrador, o
acontecimento íntimo capaz de conectar o fluxo desbaratado da vida numa
totalidade e assim reconstituir a natureza fugidia do tempo. “A música”, notou
Samuel Beckett, “é o elemento catalisador na obra de Proust” – o eixo
fundamental do desenvolvimento do romance. Ela mimetiza em seu próprio
desenvolvimento temático o mecanismo da memória involuntária, realizando em
sua estrutura o modelo ideal de obra a ser criada. Um modelo capaz de respeitar a
individualidade dos personagens e motivos, e, ao mesmo tempo, de transcendê-los
e integrá-los numa unidade maior. Uma obra total que tem por objetivo “reunir
diversas individualidades”. Proust parece ter enxergado primeiramente em
Richard Wagner esse modelo. Numa música que “jamais volta atrás, mas que
utiliza sempre os mesmos motivos, os mesmos recursos de base para alcançar um
desenvolvimento contínuo a um só tempo extremamente coeso e extremamente
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livre”.1 O tema da superioridade da linguagem musical torna-se, desse modo,
intimamente ligado a uma ideia de unidade da obra. Porque as ligações entre
frases musicais análogas em peças distintas, assim como as analogias entre frases
no desenvolvimento da mesma obra sugerem de modo nítido uma “metáfora
musical da memória involuntária”. Para que pudesse servir como modelo literário
era necessário que a música fosse vista como uma linguagem particular, com
especificidades próprias que outros tipos de arte parecem não possuir. A chave,
como foi sugerido, está na relação que esta mantém com a memória. Seu alcance
metafórico, contudo, parece ir além. Jean-Jacques Nattiez sugere que “a música
mimetiza a vida e prefigura o trabalho que deve empreender o romancista para
juntar os cacos de sua experiência em um todo único e organizado, porque ela
funciona como a memória involuntária”.2 É a partir daí que Proust começa a
elaborar, dentro do romance, uma pequena teoria da penetração perceptiva da
obra musical.3
Essa teoria reflete sobre o processo através do qual a memória e a
inteligência passam a mediar a fruição musical. Basicamente, Proust distingue
três fases distintas na percepção de uma obra. Essas fases vão sendo descritas de
acordo com as audições espaçadas de uma mesma peça – a sonata de Vinteiul – e
através da experiência subjetiva de dois personagens – Swann, e o próprio
narrador do romance. A primeira fase diz respeito ao momento inicial do embate
com a obra. Os sentidos são bombardeados de estímulos e a memória ainda não é
capaz de ordenar a matéria sonora. O resultado é uma percepção difusa, vaga,
nebulosa, formada por um fluxo contínuo de sensações inefáveis, pouco definidas.
Notas que se esvaem antes que as sensações possam ser cabalmente formadas na
consciência, sendo logo sucedidas pelas notas seguintes ou mesmo simultâneas.
Não podendo a atenção abarcar o inteiro da obra, um princípio de seleção se ergue
e destaca, do meio da massa sonora, a famosa pequena frase – o anúncio de uma
ordem linear, um desenho. A melhor descrição dessa primeira fase nos é dada no
momento em que Swann ouve uma parte da Sonata no salão dos Verdurin, num
arranjo para piano: “Primeiro, só lhe agradara a qualidade material dos sons
empregados pelos instrumentos. E depois fora um grande prazer quando, por
1 Cf. Pierre Boulez, Points de Repère, Paris, Christian Bourgois Editeur, 1981, p.66.
2 Cf. Jean Jacques Nattiez, Proust Musicien, Paris, Christian Bourgois Éditeur, 1999, p.127.
3 Ver, nesse sentido, Jean Jacques Nattiez, op. Cit., p. 80-90.
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baixo da linha do violino, tênue, resistente, densa e dominante, vira de súbito
tentar erguer-se num líquido marulho a massa da parte do piano, multiforme,
indivisa, plana e entrechocada como a malva agitação das ondas que o luar
encanta e bemoliza. Mas em certo momento, sem que pudesse distinguir
nitidamente um contorno, dar um nome ao que lhe agradava, subitamente
fascinado, procurara recolher a frase ou a harmonia - não o sabia ele próprio - que
passava e lhe abria mais amplamente a alma, como certos perfumes de rosas,
circulando no ar úmido da noite, têm a propriedade de nos dilatar as narinas”.4
Para Proust, impressões assim tão confusas, inteiramente irredutíveis a
qualquer outra ordem de impressões, “são talvez as únicas puramente musicais” –
uma impressão sine materia, como o próprio escritor define. No caráter vago
dessa descrição, em sua falta de contornos, assim como na utilização de metáforas
associadas ao mar – “líquido marulho”, “malva agitação das ondas” – Nattiez
notou uma relação direta com a música de Debussy: “Proust décrit cette première
audition de la Sonate exactement comme il le ferait d'une œuvre de Debussy, à la
fois en raison du caractère fragmentaire, subtil et frissonnant du matériau
sonore ”.5 Uma sensação semelhante a essa de estar perdido no meio da matéria
sonora foi também sentida por muitos daqueles que escutaram a execução da
primeira obra madura de Debussy, em 1890, a obra que faria colar nele a etiqueta
de impressionista: o Prélude à l’après-midi d’un faune. Ela foi descrita por
espectadores estupefatos como “música sem melodia”, composta mais por
manchas sonoras do que propriamente por um encadeamento temático – daí sua
comparação com o impressionismo pictórico que a precedeu. Durante muito
tempo (talvez até hoje), Debussy foi visto dessa forma – Adorno enxergou em sua
música “uma justaposição de cores e superfícies, como a de um quadro”.6 O
importante é notar que, para o personagem Swann, o caráter vago e desconexo da
impressão inicial é superado somente quando seus sentidos passam a ancorar-se
no trecho melódico da pequena frase. É através dessa breve sucessão de notas que
se cria o princípio de ordem necessário para integrar a inteligência racional e a
memória na escuta, possibilitando a passagem para a segunda fase da percepção
4 Cf. Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: No Caminho de Swann, São Paulo, Globo,
2006, p. 262. 5 Jean-Jacques Nattiez, op. Cit., p.93 – “Em razão do caráter fragmentário, sutil e movediço do
material sonoro, Proust descreve essa primeira audição da Sonata exatamente como ele faria se
estivesse descrevendo uma obra de Debussy”. (Tradução livre) 6 Cf. Theodor Adorno, Filosofia da Nova Música, São Paulo, Perspectiva, 2007, p.144.
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É desse modo que a música sai do plano das sensações indescritíveis e
começa a ganhar contornos mais nítidos. Ainda durante a primeira audição da
Sonata no salão dos Verdurin, quando a pequena frase retorna, Swann já conta
com uma “transcrição sumária e provisória” que sua memória havia feito dela. A
impressão que retorna já não é mais inapreensível: “Ele lhe concebia a extensão,
os grupos simétricos, a grafia, o valor expressivo; tinha diante de si essa coisa que
não é mais música pura, que é desenho, arquitetura, pensamento, tudo o que nos
torna possível recordar a música”.7 Fica claro, a essa altura, que a entrada ativa da
memória muda inteiramente as bases do jogo musical. Ela torna os contornos
musicais discerníveis, pois os livra do “disfarce uniforme da novidade”. O próprio
narrador, tomando como base a mesma sonata, irá refletir sobre isso num
momento posterior do romance:
Probablement, ce qui fait défaut, la première fois, ce n'est pas la compréhension,
mais la, mémoire. Car la nôtre relativement à la complexité des impressions
auxquelles elle a à faire face pendant que nous écoutons, est infirme (...). Ces
impressions multiples, la mémoire n'est pas capable de nous en fournir
immédiatement le souvenir. Mais celui-ci se forme en elle peu à peu (…).8 (Apud.,
Jean-Jacques Nattiez, op.cit.., 86)
A partir desse ponto, a música torna-se uma linguagem capaz de descrever.
Num estágio intermediário, esse caráter descritivo a aproxima rapidamente da
pintura – a pequena frase chega a evocar os interiores do holandês Pieter de
Hooch. Logo depois ela adquire um estatuto quase linguístico. Torna-se
praticamente capaz de falar com Swann (“apaziguadora e murmurada como um
perfume, dizendo-lhe o que tinha a dizer, e de que ele perscrutava todas as
palavras, lamentando vê-las fugirem tão depressa”)9, de transmitir-lhe ideias
(“Swann tinha os motivos musicais por verdadeiras ideias”). Algumas notas com
significados cambiantes, fugidios, às quais o personagem confere diferentes
sentidos, segundo a evolução dos seus sentimentos. Ainda que a codificação não
pudesse ser resolvida em raciocínios, “a frase de Vinteuil, como determinado
tema de Tristão, por exemplo, que nos representa também certa aquisição
7 Cf. Marcel Proust, op. Cit., p.263 (grifo meu)
8 “Provavelmente, o que nos falta na primeira vez não é a compreensão, mas a memória. Porque a
nossa, diante da complexidade das impressões que ela deve dar conta enquanto escutamos, é
relativamente impotente(...)” (tradução livre) (Apud., Jean-Jacques Nattiez, op.cit.., 86) 9 Cf. Marcel Proust, op. Cit., p.418.
20
sentimental, havia esposado a nossa condição mortal e adquirido algo de humano
que era assaz comovedor”.10
Não à toa Nattiez associa essa fase da percepção musical com a figura de
Wagner, e com o pendor narrativo de sua linguagem musical. Wagner é, segundo
Claude Lévi-Strauss, o músico do mito – aquele que “codifica suas mensagens a
partir de elementos que são já da ordem da narrativa”.11 Desse modo, Swann
transforma a pequena frase numa etiqueta musical. Sua perspectiva, o alcance de
sua visão, torna-se meramente associativo. Um acessório figurativo capaz de
evocar as belezas do amor nascente, no começo, e depois as sombras do amor
moribundo. Do mesmo modo em que boa parte do fascínio que os quadros antigos
despertam nele passa pela identificação desses retratos com pessoas “reais” que
transitam no seu mundo cotidiano – Odette, que a princípio ele achava pouco
atraente, só se torna verdadeiramente desejável quando é descoberto seu
equivalente pictórico num quadro do “grande Sandro Boticelli”. Somente assim
ela se torna digna do amor de Swann – subitamente enobrecida pela pátina da
história e da grande tradição do passado. “Para Swann, amador de arte, a pequena
frase de Vinteuil age frequentemente como uma placa associada à paisagem do
bosque de Boulogne, ao rosto e ao personagem de Odette: é como se ela trouxesse
para Swann a segurança de que o bosque de Boulogne foi efetivamente seu
território e Odette sua posse”, escrevem Deleuze e Guattari.12
Swann tornara-se capaz de identificar na própria matéria musical aquilo que
correspondia aos sentimentos que ele lhe associava. O que Proust nos mostra é o
mecanismo de funcionamento simbólico da música. O fato musical considerado
não como um dado imediato, mas como o fruto de uma construção elaborada pela
inteligência ao longo do processo perceptivo: “...na realidade ele sabia que ele
raciocinava assim não sobre a frase em si, mais sobre os simples valores
substituídos pela comodidade de sua inteligência à misteriosa entidade que ele
havia capturado”. É essa substituição associativa que permite à pequena frase
tornar-se o “hino nacional” do seu amor por Odette. Ganha, desse modo, a
significação do contexto amoroso no qual Swann havia travado conhecimento
com ela. E quando esse amor fenece, ela passa a remetê-lo a dados e situações
10
Cf. Idem, Ibidem, p.420. 11
Cf. José Miguel Wisnik, O Som e o Sentido, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p.170. 12
Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia vol.4 ( Acerca do
Ritornelo), São Paulo, Editora 34, 1997, p.126.
21
insignificantes pertencentes ao mesmo momento passado. Mas o poder
significante da pequena frase não se esgota nisso: ao mesmo tempo em que é
testemunha da fragilidade do seu amor, possui uma dimensão própria, como se, no
fundo, não fosse tocada pela situação contingente que levou Swann a apreciá-la.
Ao conquistar uma autonomia cada vez maior, transforma-se num verdadeiro
leitmotif.
Deleuze e Guattari sugerem que,
Proust, precisamente, foi um dos primeiros a destacar esta vida do motivo
wagneriano: ao invés de o motivo estar ligado a um personagem que aparece, é
cada aparição do motivo que constitui ela própria um personagem rítmico, ‘na
plenitude de uma música que efetivamente tantas músicas preenchem, e da qual
cada uma delas é um ser’. E não é por acaso que o aprendizado de La recherche
persegue uma descoberta análoga a propósito das pequenas frases de Vinteuil: elas
não remetem a uma paisagem, mas levam e desenvolvem em si paisagens que não
existem mais fora.13
Ao instaurar a partir de si mesma uma realidade própria que já não mais
depende de referências exteriores, o trecho melódico torna-se capaz de trazer para
Swann uma revelação, um alargamento da compreensão para o qual, sem ela, ele
jamais estaria apto. “Ela logo lhe insinuara peculiares volúpias, que nunca lhe
ocorreram antes de ouvi-la, que só ela lhe poderia ensinar, e sentiu por aquela
frase como que um amor desconhecido”.14 Mas ainda que Swann consiga por
vezes intuir o potencial de revelação contido no trecho melódico, sua
compreensão é incapaz de tocar esse núcleo. A cada descrição da Sonata, e de
modo cada vez mais intenso, Proust sugere uma dimensão transcendente na
direção da qual Swann poderia se dirigir, mas a qual ele no fundo jamais
alcançará:
Também esse amor por uma frase musical pareceu um instante que devia trazer a
Swann alguma possibilidade de renovação.(...) Swann achava em si, na lembrança
da frase que ouvira, nas sonatas que mandara tocar para ver se acaso a descobriria,
a presença de uma dessas realidades invisíveis em que deixara de crer e às quais
sentia de novo o desejo e quase a força de consagrar a vida, como se a música
tivesse uma espécie de influência eletiva sobre a secura moral de que sofria.15
Caberá ao Narrador dar o passo seguinte na compreensão da Sonata e
adentrar assim a terceira fase da percepção musical: a fase na qual são
13
Idem, p.127. 14
Cf. Marcel Proust, op. Cit., p.263. 15
Cf. Idem, Ibidem, p.263-4.
22
ultrapassadas as contingências descritivas e quase linguísticas da música para
revelar-se, por trás delas, a ideia de uma obra essencial, profunda, absoluta. Na
estética proustiana o absoluto situa-se além da inteligência. Em sua pequena
teoria da percepção musical, o escritor francês descreve o trabalho da inteligência
que aos poucos se destaca da razão, da racionalidade, para atingir um estado de
contemplação pura no qual se revela a essência da vida. O estatuto linguístico da
música será definitivamente ultrapassado no momento em que ela tiver atingido
sua plena dimensão transcendente. Nesse momento, não estamos mais diante de
um quadro descritivo, de placas ou etiquetas, mas de um jogo puramente musical
de formas abstratas, onde as contingências exteriores foram apagadas. É
justamente isso o que deixa transparecer as descrições que o narrador faz do
Septour de Vinteuil, sua obra final, da qual a pequena frase arquetípica é apenas
uma das partes:
Si ces êtres (les deux motifs) s’affrontaient, c’était débarrassés de leur corps
physique, de leur apparence, de leur nom, et trouvant chez moi un spectateur
intérieur – insoucieux lui aussi des noms et du particulier – pour l’intéresser à leur
combat immatériel et dynamique et en suivre avec passion les péripéties sonores.16
A música é finalmente assimilada em sua pureza e transcendência próprias,
irredutíveis a qualquer outra linguagem. Platonicamente, volta ao estado de ideia
pura – sine materia - mas que não se deixa confundir com as abstrações da razão.
A visão de Proust ancora-se na estética de Schopenhauer, para quem a música
seria, justamente, capaz de pintar tudo aquilo que recusa a ser integrado nas
abstrações da razão:
A generalidade da música em nada se parece com a generalidade oca da abstração;
ela é de uma outra natureza; ela se alia a uma precisão e a uma claridade absolutas.
O compositor nos revela a essência íntima do mundo, ele se faz intérprete da
sabedoria mais profunda, e numa língua que a sua razão não compreende (...). (Apud., Jean Jacques Nattiez, op.cit..., p.147)
Para Schopenhauer a música também é, como as outras artes, uma
representação, mas ao ir além de uma descrição precisa do mundo, ela torna-se
16
“Se esses seres (os dois motivos) se enfrentavam, é porque haviam se livrado de seus corpos
físicos, de suas aparências, de seus nomes, encontrando em mim um espectador interior –
despreocupado ele também dos nomes e do particular – capaz de se interessar por aquele combate
imaterial e dinâmico e de seguir com paixão as peripécias sonoras”. (Apud., Jean-Jacques Nattiez,
op.cit.., p.131) (Tradução Livre)
23
representação imediata da essência – daí a sua diferença e seu lugar privilegiado
na hierarquia das artes, tanto para ele quanto para Proust, que exige que a
literatura a alcance, fazendo da própria música o seu modelo. O que buscam os
dois é atingir a essência além dos fenômenos.17
Nessa terceira fase da percepção, Nattiez encontra um paralelo nas obras
tardias de Beethoven – sobretudo nos seus quartetos. O musicólogo aponta para o
fato de que as etapas de penetração perceptiva da teoria de Proust – da percepção
pura de uma música vagamente descritiva, passando pelo trabalho da inteligência
que lhe permite adquirir contornos mais precisos, transformando as frases
musicais em verdadeiras ideias, até que ela seja, ao se ultrapassar a razão,
finalmente apreendida em toda a sua pureza transcendente – são dispostas numa
ordem inversa à da cronologia histórica: Debussy, Wagner, Beethoven. Creio,
contudo, que seria apressado enxergar nisso uma disposição hierárquica da parte
de Proust – mesmo porque o escritor não é tão explícito nessas associações.
Antes, parece que elas decorrem de uma identificação dos estágios da percepção
com tendências do tipo de escuta suscitada pela linguagem específica de cada um
desses compositores. Debussy tendendo para a sensação pura, algo indefinida,
mais próxima das visões espaciais – superfícies, cheiros e cores - do que do
encadeamento temporal. Tal como acontece num primeiro contato com uma obra
que ainda não conhecemos, ou quando nos falta o primeiro elemento sobre o qual
se apóia a memória: a melodia. Wagner, ao contrário, ressaltando a autonomia dos
leitmotiven, decodificando-os em sentidos narrativos, ideias – a música tornando-
se capaz de descrever, de comunicar conteúdos que lhe são externos. E último
Beethoven, músico que, embora pertencesse ao contexto clássico, tentava apontar
para fora dele tornando as fissuras e descontinuidades do código tonal cada vez
mais aparentes, manifestas – fazendo delas a matéria de base de sua obra tardia.
Como sugere José Miguel Wisnik “a ‘obra de maturidade’ de Beethoven oscila
entre a máscara de convenção que ela parece aceitar como à morte, e as feridas
pelas quais se insurge contra esta, e que se inscrevem na sua textura estranha
17
O próprio Proust escreveria numa carta: “A essência da música é despertar em nós um fundo
misterioso (e que não pode ser exprimido pela literatura e nem pelos modos de expressão
acabados, que se servem ou de palavras, e por consequencia de ideias, coisas determinadas, ou de
objetos determinados – pintura, escultura) de nossa alma, que começa lá onde o acabado e todas as
artes que tem por objeto o acabado terminam, lá onde a ciência termina, e que podemos por isso
mesmo chamar de religioso”. (Apud., Jean Jacques Nattiez, op.cit..., p.147)
24
cheia de cortes, desníveis, falésias, falhas abertas”.18 Foi o primeiro grande músico
da tradição clássica a tentar talvez transcender as codificações da linguagem tonal
sobre a qual assentava-se essa mesma tradição – buscando assim atingir uma
espécie de linguagem absoluta da música (e, em certo sentido, Wagner e Debussy
seguem a trilha de Beethoven).
...
É bastante notável na sensibilidade de Proust o modo como os sons podem
ser reveladores. Frequentemente o escritor está atento para o modo de entonação
do que é dito, apontando para o plano propriamente sonoro da língua. O perfil
psicológico de um dos personagens da trama é descrito, entre outras coisas, pelo
jeito com que pronuncia as consoantes:
Ao falar, saíam-lhe as palavras num balbucio verdadeiramente delicioso, pois se
via que isso denotava menos um defeito da língua que uma qualidade da alma,
como que um resto de inocência da primeira infância, que ele jamais perdera.
Todas as consoantes que não podia pronunciar correspondiam a outras tantas
durezas de que era incapaz na vida.19
Como bem notou Jean-Jacques Nattiez, Proust praticou uma abordagem
perceptiva da música, não-objetiva, que ancorava-se nos efeitos diversos que ela
produzia e nas ideias que suscitava.20 Ao refletir sobre ela, cria uma pequena
teoria da percepção musical. As incríveis descrições sinestésicas do prazer
musical, e o papel que elas exercem na condução narrativa são emolduradas por
uma visada cognitivista. Artista e cientista parecem unificados em sua prosa – “a
sensação está para o escritor como a experimentação para o cientista”.21 Há algo
que ultrapassa a particularidade dos casos específicos e remete constantemente a
uma compreensão mais abrangente sobre os mecanismos impessoais que estão por
trás da experiência subjetiva. Temos assim um detalhado mapa do caminho feito
pela música na mente de Swann, que, mesmo apontando para um modo de
funcionamento psicológico mais amplo, não se deixa reduzir a um modelo – não
se cristaliza num quadro explicativo.
18
Cf. José Miguel Wisnik, op.cit..., p.157. 19
Cf. Marcel Proust, op.cit..., p.256. 20
Ver Jean-Jacques Nattiez, op.cit.., p.34. 21
Apud. Jonah Lehrer, Proust Foi um Neurocientista, Rio de Janeiro, Editora Best Seller, 2009,
p.124.
25
Talvez o destaque da música dentro da Recherche, não apenas como objeto
de reflexão mas também como modelo de estruturação da própria obra, deva-se
muito simplesmente ao fato de que, dentre as artes, é ela a que se relaciona de
modo mais forte e visceral com a memória. No sentido de que ela se impõe com
muita força à lembrança; associa-se com ela; muitas vezes torna-se a chave
principal que abre grandes complexos rememorativos, condensações que se
traduzem em intraduzíveis estados de alma. Aquela música que lembra a
totalidade indefinível de uma determinada época, pessoa ou situação. É certo que
todas as artes utilizam-se da memória, mas somente a música parece fazer da
própria memória o seu plano de existência, o seu principal local de trabalho.
Porque, de certo modo, a música necessita da memória para se realizar. Os gregos
certamente sabiam disso. A música - musiké téchneé – é a arte das musas, e as
musas são filhas de Mnemosine, a deusa da Memória. A palavra musa vem de
mousa, que em grego significa palavra cantada. Ou seja, a palavra cantada, a
palavra que mais claramente se sustenta sobre as qualidades musicais da língua
falada, é filha da Memória.
Isso abre caminho para duas percepções básicas. A primeira, muitas vezes
esquecida, é de que a base e a referência primeira da música foi, e continua sendo,
a voz humana. Isso nos leva para um passado longínquo, onde os elos que uniam
música e língua eram mais nítidos. Por muitos séculos a música do Ocidente foi
essencialmente cantada, e somente depois tornou-se “puramente” instrumental.
Talvez a tendência profunda seja a de escutarmos os próprios instrumentos como
vozes humanas estilizadas. A frase musical ouvida por Swann, embora executada
por um violino, possui o apelo e o chamado de uma voz humana. É percebida
como voz. Como voz que lhe comunica alguma coisa. Muito possivelmente em
função do timbre e da altura do instrumento foi identificada como voz feminina –
e daí as descrições nitidamente femininas que lhe são conferidas, como a da
passante de Baudelaire. Isso também está diretamente relacionado ao fato de que,
assim como acontece na fala, essa voz propõe um discurso que se desenrola
linearmente no tempo. Solitária e desenvolvendo-se em sucessão horizontal, ela
tem o caráter nitidamente melódico. A segunda percepção deriva da própria
etimologia de mousa, no sentido de que a palavra cantada, estabilizada em seus
contornos melódicos e recorrências rítmicas, pode ser mais facilmente
memorizada. Os gregos cantavam seus poemas épicos injetando neles melodia,
26
rima e ritmo, para que se tornassem mais facilmente recordáveis. São as
qualidades mais propriamente musicais que facilitam a relação entre a palavra
cantada e a memória. Enquanto a fala tende ao esquecimento, uma vez captado o
seu conteúdo informativo, quando tentamos aprender uma canção a melodia
impõe-se com notável facilidade na recordação. Quase sempre aprende-se a
melodia com estranha rapidez, enquanto a letra exige um lento trabalho da
memória. Quando não se sabe a letra, é possível recompor a melodia da canção
com sílabas soltas ou palavras aleatórias. Temos uma imensa aptidão para reter
padrões sonoros ditos musicais.
Talvez tenha sido esse vínculo privilegiado que une música e memória a
principal causa de seu bem sucedido casamento com o pensamento de Proust. Isso
está intimamente associado com a própria representação do tempo dentro do
romance. Como escritor, Proust está muito mais interessado na dimensão
psicológica do tempo do que propriamente numa engrenagem narrativa baseada
em acontecimentos exteriores. Está mais interessado na sua elasticidade, na
resistência fugidia de uma forma que não se deixa captar, e na possibilidade de
transpor isso para a própria estrutura do romance. É uma constante da Recherche:
cavar imensos buracos de tempo em brechas aparentemente mínimas de espaço
narrativo. Isso pode acontecer no interior mesmo de uma frase, abrindo nela uma
janela que revela, vista de seu interior, uma imensa paisagem exterior. Algumas
frases que chegam a criar um nível de complexidade que pode ser comparado ao
inteiro da obra – como se a forma geral pudesse ser flagrada em cada um dos seus
componentes individuais. Frases de estrutura arborescente, que vão subdividindo-
se em galhos, que por sua subdividem-se em outros galhos e assim em diante - a
realização da Recherche está ligada à invenção de qualquer coisa equivalente ao
princípio de entropia”, o princípio da desordem crescente postulado pela segunda
lei da termodinâmica. O misterioso efeito do instante musical, a modificação que
ele fatalmente opera no modo de sentir o tempo, são desse modo mimetizados
dentro da lógica do encadeamento linear e silencioso da palavra escrita. Com
ferramentas próprias de sua arte, Proust está alterando cadências, gerando ritmos,
manipulando o tempo da narrativa. O que se capta, sobretudo, são os traços
deixados por ela na vida mental de Swann. Daí o tempo ser dilatado. Os
movimentos melódicos encontrando respostas em sensações inusitadas, induzindo
associações, preenchendo e modificando realidades, desencadeando inúmeras
27
percepções sobre o estado atual, suscitando lembranças passadas, projetando
possíveis futuros, transitando entre os diversos tempos que compõem a
consciência.
Ora, outra não é a matéria prima da música, definida por Lévi Strauss como
“máquina de suprimir o tempo”. Tal como Proust, também o antropólogo francês
tomou a música como modelo para o seu trabalho, no caso a análise dos mitos. E
o fez após verificar “que em música tinham sido colocados problemas de
construção análogos aos que a análise dos mitos levantara, e para os quais a
música já tinha inventado soluções”.22 Formas musicais como a sonata, a sinfonia,
a cantata, a fuga e o prelúdio ofereciam uma diversidade de modelos de
construção de relações e de sentidos que, de certo modo, ocupavam um lugar
intermediário entre o pensamento lógico e a percepção estética. Eram modos de
pensar. Na ótica de Lévi-Strauss, os mitos não são formados por simples
conteúdos narrativos, mas por agregados semânticos feitos de paralelismos
contrapontísticos, de ressonâncias harmônicas que possibilitam uma leitura a um
só tempo linear e simultânea, como acontece na música. O sentido não está apenas
no fio “melódico”, na horizontalidade da sucessão, mas surge, antes, dos
agrupamentos verticais, “harmônicos”, de dos planos contrapontísticos. A música
oferecia um tecido relacional para o encadeamento de motivos que ia além da
linearidade, do mero encadeamento de personagens e ações.23 Não à toa, Wagner
seria por ele aclamado como “pai irrecusável da análise estrutural dos mitos”.
Para Lévi-Strauss, a música era uma linguagem distinta de todas as outras, e
a única que reúne as características contraditórias de ser a um só tempo inteligível
e intraduzível. A narrativa mitológica – transmitida oralmente, muitas vezes de
forma cantada, com a recitação geralmente acompanhada de disciplinas corporais,
como não poder bocejar ou se sentar – compartilha com a música, e daí o
isomorfismo que compatibiliza os dois sistemas, o fato de que ambas “acionam
naqueles que as escutam estruturas mentais comuns”. Mito e música são, desse
22
Cf. Claude Lévi-Strauss, O Cru e o Cozido, São Paulo, Cosac & Naify, 2004, p.34. 23
Sobre esse ponto escreveu José Miguel Wisnik: “Nos séculos XVI e XVII, diz Lévi-Strauss, a
narrativa mítica, deslocada pelo discurso científico, perde o seu vigor estrutural, investido na trama
das suas correspondências, e se divide em literatura e música. O mito cindido teria migrado para o
romance, através dos seus conteúdos agora desconstelados, e para a música, onde reviveria ao
imprimir a forma cerrada da fuga à polifonia tonal. Assim, no período tonal, “tudo se passa como
se a música e a literatura dividissem entre si a herança do mito”, ficando uma com os personagens
e a ação, e a outra com o tecido relacional através do qual se encadeiam os motivos”. (José Miguel
Wisnik, op.cit.., p.166)
28
modo, linguagens que transcendem o plano da linguagem articulada, mas que
necessitam, como esta e ao contrário da pintura, de uma dimensão temporal para
se manifestarem.
A relação com o tempo, no entanto, é construída de modo muito particular:
“tudo se passa como se a música e a mitologia só precisassem do tempo para
infligir-lhe um desmentido. Ambas são, na verdade, máquinas de suprimir o
tempo. Abaixo dos sons e dos ritmos, a música opera sobre um terreno bruto, que
é o tempo fisiológico do ouvinte; tempo irremediavelmente diacrônico porque
irreversível, do qual ela transmuta, no entanto, o segmento que foi consagrado a
escutá-la numa totalidade sincrônica e fechada sobre si mesma. A audição da obra
musical, em razão de sua organização interna, imobiliza, portanto, o tempo que
passa; como uma toalha fustigada pelo vento, atinge-o e dobra-o. De modo que ao
ouvirmos música, e enquanto a escutamos, atingimos uma espécie de
imortalidade”. Acima de tudo, o estruturalista reconhece na música – “o grande
mistério da ciência dos homens” – algo que outras linguagens artísticas não
possuem: o poder extraordinário “de agir simultaneamente sobre o espírito e sobre
os sentidos, de mover ao mesmo tempo as ideias e as emoções, de fundi-las numa
corrente em que elas deixam de existir lado a lado, a não ser como testemunhas e
correspondentes”.24 Operando a um só tempo e intensamente sobre duas grades –
uma fisiológica e outra cultural – ela ousa ir mais longe do que as outras artes
tanto do lado cultura quanto do lado da natureza.
Nota-se com certa facilidade a filiação do pensamento musical de Lévi-
Strauss nas reflexões de Proust – que por sua vez têm como base a filosofia
estética de Schopenhauer. Em ambos a música ocupa um lugar à parte entre as
demais artes, desvelando-se como linguagem desencarnada capaz de falar sem
designar, de dizer o indizível. Linguagem que depende do tempo, que desdobra-se
sobre ele, mas parece dele escapar. E que, ao fazê-lo, atinge uma essência em
estado puro – que experimentamos como “uma espécie de imortalidade”. Como
sugeriu Nattiez, “C'est Lévi-Strauss qui, à notre époque, donnera à cette vision de
24
Cf. Claude Lévi-Strauss, op.cit.., p.48.
29
la musique le prolongement le plus radical de l'investigation proustienne: pour lui,
la musique, comme le mythe, est une machine à supprimer le temps”.25
...
Aparentemente o princípio musical mais elementar, o mais facilmente
rememorável, é a melodia. O grande centro de significado da sonata de Vinteuil
está na pequena frase. No trecho de melodia que, embora percebido em relação
com o entorno musical, parece trazer em si um significado específico, uma
mensagem. É o trecho sucessivo e linear de alturas sonoras o que nossos ouvidos
ocidentais apreendem primeiro e com maior prontidão. É daí que costumamos
extrair a maior parte do sentido musical. Nessa tradição, a própria dimensão
rítmica está contida na melodia, na duração das notas. É possível, contudo, que
essa tendência melódica seja uma constante em todas as culturas, algo que
acontece como um desdobramento natural do primado da “música vocal”. Os pais
intuitivamente reforçam o perfil melódico da fala – tornando a voz mais aguda,
abrindo exageradamente as vogais, mudando a própria cadência das frases – na
hora de se dirigir a o recém-nascido. Musicalizam, por assim dizer, a fala e os
gestos para desenvolver o universo emotivo do bebê e preparar o terreno para uma
posterior aquisição da linguagem. A produção de uma fala musicalizada
especialmente destinada à comunicação com bebês (e também com animais de
estimação), foi observada em distintas culturas, como traço comum da
vocalização humana. Bebês escutam a voz dos pais como um fluxo melódico
contínuo, e não como encadeamento de palavras. Respondem fisiologicamente de
modo mais significativo aos estímulos do canto materno do que propriamente ao
seu discurso falado. Nesse contexto, a melodia é a mensagem, e a relação humana
com ela parece ter origem remota na monodia da voz materna interagindo com o
bebê. É como se houvesse, por trás das diferentes línguas, uma única e mesma
“música de fundo”.26
25
“(...) é Lévi-Strauss que, em nossa época, dará a essa visão da música o prolongamento mais
radical da investigação proustiana: para ele, a música, como o mito, é uma máquina de suprimir o
tempo”. (Jean-Jacques Nattiez, op.cit.., p.148) (Tradução Livre) 26
Ver, nesse sentido, Steven Mithen, The Singing Neanderthals, London, The Harvard University
Press, 2006, p.72.
30
Algumas teorias que postulam que foi da necessidade de comunicação entre
a mãe e sua cria que veio a pressão evolutiva que conduziria na direção da
comunicação humana e da linguagem. Modificações corporais decorrentes do
bipedalismo, como o estreitamento da bacia, reduziram o período de gestação do
feto no corpo materno. Os bebês nasciam ainda muito dependentes de suas mães,
que permaneciam muito mais tempo em função destes. Falar cada vez mais com
os bebês era um jeito que a mãe tinha de afastar-se momentaneamente para
exercer funções como, por exemplo, colher frutas, sem contudo perder o contato
com eles – fazendo com que eles não se sentissem abandonados. A simples
presença da voz materna entoando perfis melódicos, numa espécie de fala cantada
(ou de musi-língua) reconfortava esses bebês; servia como se fora uma espécie de
carícia sonora.27 Tudo isso indica o significado profundo da melodia cantada
como instrumento de cuidado e reconforto – um conector afetivo que une mãe e
filho(a). Que estabelece uma dimensão, ainda que frágil, de amparo e de proteção.
Isso pode ser traduzido no efeito calmante da melodia, indicado por Nietzsche
como parte da própria etimologia de melos.28 Efeito que age como um princípio de
ordem erigido contra o caos. De fato, canções de ninar cantadas por vozes
femininas ampliam significativamente o desenvolvimento da amamentação de
bebês, desenvolvimento que pode ser medido por um considerável aumento de
peso do recém-nascido. Talvez não seja destituído de significado o fato de que nas
mais distantes culturas essas canções de ninar apresentam um espantoso grau de
similaridade no que diz respeito à cadência, tempo, intensidade e registro médio.29
Pode ser que o primado vocal da monodia e o favorecimento da percepção
linear melódica, seja fruto da capacidade limitada da atenção humana, que,
embora possua grande rapidez de deslocamento de foco – pode mudar de objeto
num átimo de segundo – costuma operar sobre um ponto único. Em outras
palavras, precisamos eleger o foco principal de nossa atenção, o ponto para o qual
ela converge com mais precisão, sutileza e consciência. Outros parâmetros
evidentemente também são percebidos, mas em um nível inferior de atenção
consciente, funcionando mais como fundo. Não é à toa que, em meio a uma
27
Sobre o conceito de musi-língua ver o artigo “The ‘Musilanguage’ Model of Music”, In. Nils L.
Wallin, Björn Merker, Steven Brown, The Origins of Music, London, The MIT Press, 2000, p.271-
301. 28
Ver Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, § 84. 29
Ver Leonard Bernstein, The Unanswered Question: Six Talks at Harvard by Leonard Bernstein,
DVD, v.1.
31
verdadeira massa sonora, é a pequena ordenação de um motivo melódico o que
capta a atenção de Swann. Para o ouvinte médio treinado na tradição musical
européia, a melodia é o trilho que conduz a atenção através da escuta. Os demais
elementos funcionam mais como paisagem de fundo, geralmente tão mais
percebida quanto mais familiar se torna o fio condutor melódico. É possível que
haja nisso uma relação com a própria estrutura da memória. De fato, a julgar pelas
impressões, a memória melódica é a mais presente entre a grande maioria dos
ouvintes. E a tal ponto que parece funcionar de modo muitas vezes involuntário.
Em diversas ocasiões a percepção melódica é tão forte, tão enraizada, que mesmo
a despeito de nossa vontade ela parece registrar na memória as “pequenas frases”
que nos chegam aos ouvidos a todo momento.
É possível detestar uma melodia e ser, contudo, infectado por ela. Vermes
melódicos (ear worms) impõem-se sobre a memória ao fazer uso de uma estrutura
mental já existente. Colocam essa estrutura para trabalhar à nossa revelia. Não é
nenhuma novidade o fato de que grande parte da atividade mental ocorre não sob
as luzes principais de nossa consciência, mas na penumbra dos bastidores. Os
sentidos captam muito mais informação do que somos capazes de enquadrar na
estreita janela da atenção consciente. Grande parte da relação com a música hoje é
feita a partir de uma escuta de fundo na qual a atenção não toma parte. Há um
trabalho oculto no sentido de selecionar aquilo que chega até essa janela, o que
entrará em foco para nós. A memória de longo termo participa dessa dinâmica,
dispondo eventualmente conteúdos assimilados. Mas o próprio acesso a essa
memória de longo termo tem suas leis próprias. O impacto emocional seria um
caminho – eventos únicos que foram muito marcantes tendem as ser lembrados
para o resto da vida. A outra via viria da repetição.
De algum modo os vermes melódicos encontram um caminho fácil para se
criar no mecanismo da memória. Entram pelas bordas da atenção para logo se
tornarem um ruído de fundo. Utilizam-se da dinâmica de loop da memória de
curto termo para serem logo incorporados na de longa duração. Criam ali imensas
teias de associação e, ao menor descuido dos seguranças, invadem o palco da
atenção. É desse modo que, mesmo sem nunca ter prestado atenção a uma
determinada música, de repente sua cabeça pode ser tomada por ela. Esses
“parasitas imateriais” revelam o componente maquinal de nosso funcionamento
mental. Lembra a cena de uma criança que roda para trás o pedal bicicleta,
32
produzindo aquele barulho da correia desencaixada sem contudo produzir
qualquer movimento, qualquer mudança de paisagem. É quando a música
apresenta o seu potencial de hipnose letárgica, que conduz não ao transe nem ao
êxtase, mas à loucura. Também Oliver Sacks notou a qualidade coercitiva
presente no fato de que uma melodia banal ou mesmo detestável seja capaz de
roubar a cena de nossa vida mental: “a música entrou e subverteu uma parte do
cérebro, forçando-o a disparar de maneira repetitiva e autônoma (como pode
ocorrer com um tique ou uma convulsão)”.30 Num primeiro momento pode até
haver uma dose de prazer. Mas logo depois esse prazer é substituído pela presença
indesejada de algo que obstrui o caminho dos pensamentos, que retorna em
qualquer brecha de silêncio para martelar, em eterna repetição, o motivo fácil e
vazio. Não há propriamente um trabalho ativo da mente; não podemos sequer
falar da concentração e do envolvimento causados pela atenção; apenas da
ocupação parasitária de estruturas musicais congênitas. A resultante não é o
prazer, nem a satisfação, mas o cansaço, o tédio, e não raro a irritação. É como se
a mente tivesse se apropriado de algo que ela própria rejeita e despreza, mas do
qual no entanto não consegue se livrar.
Músicas que se encaixam nesse quadro primam pela facilidade com que são
prontamente assimiladas pela memória. Muito por conta disso elas são o
equivalente sonoro dos personagens “planos” da literatura: personagens
simplesmente sem espessura, sem qualquer grau de complexidade, que não se
desenvolvem ao longo da história, totalmente identificados com tipos ideais –
clones de estruturas já plenamente assimiladas. Sob uma outra ótica, o poeta
latino Cícero captou a essência dessas obras que capturam com muita rapidez o
nosso gosto, aprisionando numa ratoeira os nossos sentidos, mas que, findo o
prazer inicial, logo tornam-se cansativas:
Il est difficile d’expliquer pourquoi les objets dont notre sensibilité est le plus
agréablement touchée, et qui, au premier aspect, font sur elle l’impression la plus
profonde, sont également ceux qui, lê plus rapidement, provoquent en nous une
sorte de dégoût et de satiété qui nous en écarté. 31
(Phaidon, 2003, p.604)
30
Cf. Oliver Sacks, Alucinações Musicais, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p.51. 31
“É difícil explicar porque os objetos dos quais nossa sensibilidade é mais agradavelmente
tocada, e que, num primeiro momento, exercem sobre ela a impressão mais profunda, são também
aqueles que mais rapidamente provocam em nós um tipo de desgosto e de saciedade que nos
afastam deles.(...) Os perfumes muito fortes e muito penetrantes nos seduzem por muito menos
tempo do que os perfumes sóbrios que nós usamos e preferimos àqueles que parecem exalar mais
o odor de cera do que de açafrão. Também o tato logo se cansaria de uma superfície mole e polida.
33
Haveria, contudo, uma situação inversa: músicas que exigiriam um tempo
maior de assimilação. Que necessitam de um maior trabalho da inteligência
sensível, e que, por conta disso, ofereceriam também maiores recompensas por
sua fruição. “Les parfums très fort et três pénétrants nous charment moins
longtemps que les parfums sobres dont nous usons et l’on préfère ce qui semble
sentir la cire plutôt que le safran. Le toucher se fatiguerait aussi d’une surface
molle et polie. Le goût lui-même, celui de nos sens qui nous apporte le plus de
jouissances et celui qui aime avant tout la douceur, comme il est prompt à rejeter
avec dédain ce qui est trop doux! Qui peut supporter longtemps une boisson ou un
aliment doux? Dans les deux cas, au contraire, ce qui flatte discrètement le palais
échappe le plus facilement à la satiété. Ainsi, en toutes choses, la satiété est la
compagne immédiate du plaisir le plus vif”.
O que nos chama a atenção no pensamento de Cícero também aparece de
modo bastante claro em Proust: o caráter versátil da apreciação estética. Aquilo
que, à primeira audição nos parece agradável poderá muito rapidamente tornar-se
tedioso, extenuante. Talvez de forma mais perceptível e intensa na música, o fato
é que nossa percepção é sempre dinâmica – muda com o tempo, de acordo com a
ocasião, com o momento no qual se escuta. O que à primeira audição nos parece
confuso, mesmo estranho, pode mais tarde tornar-se um verdadeiro deleite:
Au sein de chacune de ces œuvres-là (…) ce sont les parties les moins précieuses
qu'on perçoit d'abord (...). Il nous reste à aimer telle phrase que son ordre, trop
nouveau pour offrir à notre esprit rien que confusion, nous avait rendue,
indiscernable et gardée intacte (...). Nous l'aimerons r plus longtemps que les
autres, parce que nous aurons plus longtemps que les autres, parce que nous aurons
mis plus longtemps à l'aimer.32
(Apud., Jean-Jacques Nattiez, op.cit.., p.90)
Uma situação como essa descrita por Proust se dá, por exemplo, quando a melodia
deixa apenas uma sutil e agradável lembrança, menos dela mesma, de sua forma,
do que da sensação por ela causada. Lembrança que tentamos mediante vãs
O paladar mesmo, aquele que, dentre os nossos sentidos, é o que mais nos traz prazeres, e aquele
que ama antes de tudo a doçura – como ele rejeita com prontidão o que é muito doce! Quem pode
suportar por muito tempo uma bebida ou um alimento doce? Nos dois casos, ao contrário, aquilo
que agrada discretamente ao palato foge mais facilmente à saciedade. Assim, em todas as coisas, a
saciedade é a companheira imediata do prazer mais vivo”. (Ernst Gombrich, Gombrich:
l’Essentiel, Paris, Phaidon, 2003, p.604) (Tradução Livre) 32
“No fundo de cada uma dessas obras (...), são sempre as partes menos preciosas que percebemos
primeiramente (...). No fim, amaremos tal frase cuja ordem, deveras nova para oferecer ao nosso
espírito algo mais do que confusão, havia deixado indiscernível e guardada intacta (...). Nós a
amaremos por mais tempo do que às outras, porque teremos levado mais tempo para amá-la.”
(Apud., Jean-Jacques Nattiez, op.cit.., p.90) (Tradução Livre)
34
esforços recuperar inteiramente, e que prepara um fundo de expectativa cuja a
grande função parece a de aumentar a dose de prazer a ser proporcionado na
ocasião do próximo encontro. São melodias que não se impõem de forma invasiva
sobre a nossa vida mental, em exaustiva e mecânica repetição, mas que antes
oferecem um desafio à nossa inteligência, que, capturada, passa ela própria a
desejar um reencontro com o objeto, na ânsia de poder captura-lo por inteiro.
Nesse caso, a memória não é mais apenas a morada de um hóspede indesejado,
mas condição para decifrar o conteúdo de uma obra. Foi o que Proust relatou com
brilho em sua teoria das fases de penetração perceptiva nas grande obras de arte:
não podendo ser captadas numa única vez, necessitam por isso mesmo da
repetição. Necessitam ser progressivamente integradas à memória.
O importante é notar que, nesse caso, ao prazer do interesse inicial pela
sucessão sonora, soma-se o da própria expectativa e da lembrança. Ao ouvir uma
canção pela segunda vez, somamos ao sentido estrito da escuta aquele de uma
comparação entre o evento sonoro e os traços muito fracos e hesitantes que a
memória fornece. O prazer é ampliado, posto que embalado por um duplo
movimento dos sentidos e da memória. Lembrança tênue, que engaja a mente num
movimento de busca para recompor algo que insiste em lhe escapar. Se Swann
tivesse captado inteiramente a melodia logo no momento de sua primeira escuta,
pouco ou nenhum teria sido o seu prazer ao reescutá-la no salão dos Verdurin. As
grandes melodias parecem ser aquelas que, ao mesmo tempo em que são capazes
de produzir uma forte impressão inicial, jamais se deixam aprisionar totalmente.
Elas impõem a cada escuta novos desafios para a mente, como se jamais fosse
possível (ou fosse muito mais difícil) representá-las de forma absolutamente
inteira na memória. Delas, como escreveu Proust, a memória faz “fac-símiles”
sumários. Por isso, mesmo quando surradas, vítimas de uso abusivo, como
geralmente costuma acontecer com as grandes melodias, são ainda capazes de
conservar algum poder de encantamento – de revelação.
Outro ponto fundamental que concorre para o prestígio da dimensão
monódica da música diz respeito à facilidade com a qual uma melodia é
reproduzida no próprio corpo individual. É principalmente sobre esse ponto que
se apóia a forma ancestral da canção – da melodia casada com a palavra e apoiada
sobre o instrumento comum da voz. Algo em sua essência íntima parece apontar
para a vontade de ser cantada o máximo possível. Há, certamente, um caminho
35
tortuoso, complexo, composto pela resultante de inúmeras forças, que faz com que
uma canção torne-se uma espécie de monumento sônico de determinada época e
cultura, e muitas vezes para além delas – o poderoso emblema sonoro de uma
aspiração, ou de uma postura de vida, ou de uma utopia histórica, ou de algo
mesmo indefinível. Mas há também a vocação íntima que parece própria ao
objeto-canção, e que muitas vezes constitui uma de suas mais altas aspirações: o
desejo de literalmente cair na boca do mundo. O pendor fácil, irresistível, para a
propagação espontânea e para a popularidade. Para a dominação consentida do
maior número possível de ouvidos e mentes. De ser incorporada e atualizada por
aqueles que travaram contato com ela. Pela predominância melódica, pela duração
mais curta, pelo envolvimento com a própria linguagem verbal, acionando áreas
adicionais de armazenamento no cérebro e associações mais definidas, e, talvez
mais do que tudo, pela facilidade de reprodução, a canção é a realização sonora
que mais confortavelmente se ajusta na proporção da memória humana. Ela
aponta pra isso – quer ser memória!33
Para atualizar uma sinfonia, são necessários muitos instrumentos e muitos
instrumentistas tecnicamente competentes. Com apenas um fio de voz uma canção
ganha existência sonora. Essa facilidade gera algo de intrinsecamente agregador
na experiência da canção no Ocidente. Seu potencial de realização no corpo é
maior do que aquele das músicas puramente instrumentais. Talvez muito por
conta disso elas tenham se tornado símbolos de grandes ideais coletivos (os hinos
patrióticos são canções). Os compositores costumam ser extremamente sensíveis a
isso. Machado de Assis já falava em seu “O Homem Célebre” da “consagração do
assovio de rua”. Antes mesmo de tornar-se famoso como compositor, Vinícius de
Moraes lembrava-se da alegria sentida quando por acaso ouviu uma de suas
melodias ser assoviada por um estranho na rua. Numa de suas crônicas nos anos
1960, Nelson Rodrigues vai exaltar A Banda de Chico Buarque dizendo que
“desde sua primeira audição, a Banda se instalou na História. O povo não
assobiava mais. Voltou a assobiar por causa do Chico...”. Numa sociedade em que
cada vez mais foi demarcada a linha que separa músicos de não-músicos, ela
33
Obviamente esse é um comentário poético que se refere à tradição ocidental e moderna de
canções que possuem uma forma minimamente estabelecida – ou seja, à tradição daquilo que
chamamos propriamente de “canção”. Não se aplica, portanto, a todas a tradições vocais de outras
culturas humanas. As texturas polifônicas do pigmeus, por exemplo, são vocalizações individuais
baseadas em improvisos. Mas embora não haja a definição melódica e individualizada de “uma
canção”, ainda assim ela cumpre um papel no sentido de agregar a comunidade.
36
operou um certo relaxamento, trazendo um aspecto de “atividade comunitária”.
Em sua época de maior sucesso, nos anos 1960, os Beatles eram apenas os
“mestres-de-cerimônia” do verdadeiro espetáculo: aquele que era dado pelos fãs.
Acontecia algo parecido nos shows dos Los Hermanos, no Rio de Janeiro do
século XXI. O curioso é que com isso mudam também os critérios de avaliação.
Numa sala de concerto, com público silencioso, pesa sobre os músicos a exigência
da performance. Num show desses, é outra a natureza da experiência musical –
geralmente mais dionisíaca e brutal. Isso tornou-se uma verdadeira constante da
música popular do século XX e certamente contribuiu como um dos fatores de seu
avassalador sucesso. Milhares de pessoas cantando a mesma música. Mas nem
precisam ser tantos: basta que a canção escape do seu autor e comece a ganhar
vida própria.
Algumas raras canções conseguem ir tão fundo na memória de um povo,
que terminam por mudar a perspectiva estética e existencial de toda uma geração,
por redefinir o próprio limite e o alcance do que se entende por canção. No Brasil
dos anos 1950, a claridade afetiva, o conforto e a intimidade a um só tempo leves
e profundos de Chega de Saudade, gravada com a voz e o violão de João Gilberto
e arranjo de Tom Jobim, marcaram para sempre o destino da música popular aqui
feita. Aquilo era muito mais do que uma simples canção comercial. Era quase a
realização sonora de um ideal de vida. Praticamente todos os grandes cantores e
compositores que despontariam na década seguinte como ícones da MPB, foram
tocados por ela. Quase todos lembram-se exatamente do momento em que a
ouviram pela primeira vez. Era o marco inicial da Bossa Nova. “A bossa nova nos
arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delícias para minha
inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança de estágio
cultural que nos levou a rever o nosso gosto, nosso acervo e – o que é mais
importante – as nossas possibilidades”, escreveu Caetano Veloso. A partir dali,
“passara-se a levar muito a sério a música popular no Brasil”.34 Era o choque da
novidade.
Mas não era apenas isso. O modo como a canção de Tom Jobim e Vinícius
de Moraes conseguiu se impor sobre a memória coletiva brasileira como
portadora de um significado que a ultrapassava, que remetia para conteúdos que a
34
Cf. Caetano Veloso, Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p.47.
37
princípio pareciam não estar ao alcance de uma mera canção, permanece
revelador da misteriosa força sintética que dela emana. Chega de Saudade é um
dos pontos mais luminosos e concentrados da cultura brasileira no século XX. Ao
mesmo tempo, é só uma canção. Muito por influência dela, aprendi a tocar violão.
Ao executá-la eu mesmo, pude enxergá-la por dentro. Cada acorde era uma
espécie de ambiente próprio, de atmosfera sonora criada sobre e para a melodia.
Tocar Chega de Saudade no violão – o instrumento no qual ela foi composta – me
fez pela primeira vez perceber a singular arquitetura das composições de Tom
Jobim. Arquitetura na qual ainda que a melodia (em profunda interação com a
letra) permaneça como eixo estrutural da canção, a harmonia ganha um plano
expressivo próprio, diferenciado mas jamais autônomo, que vai muito além das
fórmulas e encadeamentos puramente funcionais. Ela estabelece um outro tipo de
relação com a melodia, sem que esta seja, em momento algum, deslocada de sua
posição central. Muito dessa hipertrofia da dimensão harmônica, em seu
casamento perfeito com a tradição melódica da música popular brasileira,
monofônica mesmo, foi construída com base nas elaborações sutis que marcam a
música de Debussy. Nela, Tom encontraria um modelo privilegiado para criar o
delicado intimismo urbano da Bossa Nova.
...
Boa parte da diversidade artística pode ser vista como a exploração refinada
de capacidades sensoriais que extrapolam em muito suas funções originais mais
diretamente associadas aos princípios de manutenção da vida e de adaptação
biológica. O filósofo Henri Bergson escreveu que “os poetas nos sugerem coisas
que a linguagem não foi feita para exprimir”. Quando ouvimos com atenção uma
música ou observamos detidamente um quadro estamos primeiramente
preparando fisiologicamente o nosso organismo para uma utilização muito
apurada de nossas faculdades sensoriais. De certo modo, a atenção modifica a
própria percepção, preparando as condições orgânicas necessárias para a produção
de sentimentos, emoções e sensações intensas. Entramos assim numa situação
diferenciada de contemplação estética. Ela começa com a crença no significado e
38
na vitalidade de tal experiência.35 O grau de concentração atingido com isso,
acrescido do próprio júbilo estético, produzem uma alteração do estado mental
que não precisa ser comprovada nem científica nem filosoficamente: é algo que
experimentamos diante de coisas que atravessam os nossos sentidos e nos atingem
em profundidade. Parece haver nisso algum sentido de ausência – no caso de
Schopenhauer, ausência da Vontade, da dor e da finitude, culminando na
contemplação pura da eternidade. Ou, talvez mais do que ausência, o sentido
misterioso de uma super-presença – o rompimento do feitiço da individuação
restabelecendo o sentimento místico de uma unidade perdida, um retorno ao uno
primordial, ao seio da natureza, como propusera Nietzsche.36 Ou ainda a
“imortalidade” que experimentamos ao ouvir música, como propôs Lévi-Strauss.
Pode ser que tenha sido essa capacidade de modificar o estado ordinário da
consciência, de conduzir a uma espécie de transe, o que fez com que no
cristianismo fosse conferido à arte uma capacidade de revelação e um valor de
transcendência que possivelmente eram ignorados pelos antigos. Embora a vida
dos antigos fosse continuamente permeada pelo sagrado, a arte tinha uma função
catártica, de purificação.37 Sua função era abrir espaço para que o sagrado se
manifestasse, mas ela não se confundia com ele. Indo além do aspecto claramente
repressor, em sua ânsia de se diferenciar dos cultos pagãos, o cristianismo foi aos
poucos investindo na arte a aura do sagrado, culminando, no século XVIII, na
ideia de que a arte eleva a alma. Esse mesmo curso histórico gerou a noção de que
o ato de contemplação estética deveria assumir um caráter análogo ao da prece
religiosa – é nesse momento que se instaura, para a fruição de obras de arte, o
mesmo princípio de silenciosa e reverente imobilidade que passou a marcar, no
fim da Idade Média, o ambiente das igrejas.38 Dá-se então, no contexto da música
35
Ver Leonard B. Meyer, Emotion and Meaning in Music, London, The University of Chicago
Press, 1956, p.74. Sobre isso, escreve Leonard B. Meyer: “For the attention given to a work of art
is a direct product of the belief in the significance and vitality of aesthetic experience. And
attention not only focuses our minds upon the musical work but also modifies perception itself,
since ‘when the organism is active, at a high degree of vigilance... it will produce good
articulation; when it is passive, in a low state of vigilance, it will produce uniformity”. 36
Ver Friedrich Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, São Paulo, Companhia das Letras, 1992,
§2. 37
Ver Lorenzo Mammì, “Deus Cantor”, In. Arte e Pensamento, org. Adauto Novaes, São Paulo,
Companhia das Letras, 1994, p.49. 38
No início do século XVI os reformadores introduziram mudanças fundamentais no terreno da
religião. Outrora da mesma origem cultural de seus “rebanhos”, os pastores reformistas julgaram
promíscuo o ambiente da igreja, onde realizavam-se cultos festivos regados à bebidas e danças;
passaram a almejar de ora em diante “um clero ‘culto’: mais do que os católicos, os sacerdotes
39
sacra européia, a passagem de uma escuta participativa para uma escuta
contemplativa. Cria-se uma divisão mais nítida entre os executantes da música e
os espectadores. É evidente a filiação do ideal romântico do artista como
emissário divino, com essa concepção da arte como portadora da aura do sagrado.
Tampouco é difícil adivinhar o elo que une tal concepção com o pensamento
estético de Schopenhauer a Nietzsche, de Proust a Lévi-Strauss.
Antes desses pensadores, contudo, foi Santo Agostinho (354-430) quem nos
presenteou com uma das mais belas teorias sobre a música e a memória, e uma
das mais sagazes tentativas de abordar a qualidade sine materia da impressão
musical. O pensamento do Bispo já demonstrava o lugar de honra ocupado pela
melodia na tradição musical do Ocidente. Em Agostinho, o papel da memória na
apreensão da forma musical, ou antes o modo como a memória constitui o próprio
plano do acontecimento musical, assim como as ligações profundas e sutis que
embalam as duas instâncias, ganhou uma engenhosa e clara (para não dizer
brilhante) formulação. A música, junto com a métrica e a própria língua,
funcionava para o santo como instrumento de investigação metafísica. Através
dela, podia-se ter acesso à própria natureza do tempo – um dos grandes núcleos
reflexivos de sua obra. Não um acesso direto, evidentemente: Agostinho parecia
não acreditar numa intuição direta do tempo. Este, contudo, poderia ser intuído
através da música.
O fio condutor do argumento de Agostinho se dá pela reflexão a respeito da
forma musical. Afinal, como conceber uma forma que não está no espaço, e sim
no tempo? Para ele, a música constituía a ciência da boa modulatio (scientia bene
modulandi) – sendo modulatio “qualquer movimento bem-proporcionado que
tenha seu fim em si mesmo. Em termos modernos: qualquer movimento belo que
tenha finalidade estética”.39 No pensamento do santo, música e dança são
indissociáveis, constituindo uma única coisa, e a forma mais pura da música era o
movimento sonoro, ou seja, a melodia. Para Agostinho, a especificidade da
melodia é que ela surgia sem o suporte de uma matéria preexistente. Desse modo,
protestantes tenderam a ser universitários de formação (...) Assim, o pároco que dançava, que se
mascarava, que fazia piadas no púlpito, foi substituído pelo sacerdote sério, educado e distante”. E
a igreja tornou-se um ambiente de concentrado silêncio. Nota-se, com isso, um inequívoco
movimento de separação entre as esferas da vida social, culminando também na separação entre
uma música litúrgica cristã e uma música pagã. (Cf. José Carlos Rodrigues, O Corpo na História,
Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 1999, p.38) 39
Cf. Lorenzo Mammì, op. Cit., p.44.
40
não possuía um deslocamento no espaço (como acontece com os objetos
materiais), nem contava com uma causa no tempo. A melodia seria, portanto,
simultaneamente produtora de sua matéria e de sua forma. O problema é que se a
forma da melodia não está no espaço, ela está no tempo - um tempo feito de
momentos sucessivos. No fundo, o tempo é inapreensível, pois é algo que vive
desaparecendo; não pode ser matematicamente medido. A esse respeito, vale a
pena citar um trecho do livro XI de suas Confissões, no qual Agostinho expõe
parte de sua doutrina do tempo e problematiza seu caráter fugidio. Não à toa, o
ponto de partida é a experiência auditiva: “Supõe, por exemplo, que a voz de um
corpo começa a ressoar, ecoa, continua a ecoar e cala-se. Fez-se silêncio... a voz
esmoreceu... já não é voz. Era futura antes de ecoar e não podia ser medida porque
ainda não existia, e agora também não é possível medi-la porque já se calou.
Nesses instantes em que ressoava era comensurável, porque então existia uma
coisa suscetível de ser medida. Mas mesmo nesses momentos não era estável. Ia
esmorecendo e passava. Não seria por acaso esta instabilidade ou movimento o
que a tornava mensurável? Com efeito, ao esmorecer, estendia-se por um espaço
de tempo pretérito onde seria possível medi-la, já que o presente não tem
nenhuma extensão. Porém, se então era possível medi-la, suponhamos que outra
voz começou a ressoar e ainda ressoa numa vibração contínua e de igual
intensidade. Meçamo-la enquanto ela ressoa, pois, desde que cesse de vibrar, já
será pretérita e não a poderemos medir. Meçamo-la por conseguinte e calculemos
a sua duração. Todavia, ainda soa, e não a podemos avaliar senão desde o seu
princípio - em que começou a ressoar - até o fim, quando emudecer, porque todo o
intervalo se mede desde um certo ponto até um limite determinado. Por este
motivo, a voz que ainda não terminou não é suscetível de ser comensurada, de
modo que possamos calcular a sua longa ou breve duração. Nem podemos afirmar
que seja igual a alguma outra, ou que a sua relação seja simples ou dupla, nem
estabelecer qualquer outra proporção. Logo que essa voz cesse, fica destituída de
existência. Então, de que modo poderá ser avaliada? Com efeito, medimos os
tempos, mas não os que ainda não existem ou já passaram, nem os que não têm
duração alguma, nem os que não têm limites. Não medimos, por conseguinte, os
41
tempos futuros nem os passados, nem os presentes, nem os que estão passando.
Contudo, medimos os tempos!”40
A forma musical existe, portanto, inserida no fluxo das durações sonoras – é
no plano do tempo que ela se movimenta. E, sendo feito de momentos sucessivos,
onde cada um deles desaparece para deixar lugar ao momento seguinte, como
poderíamos então conceber a forma – uma vez que ela é, na definição do próprio
santo, a relação das partes com o todo? Como apreender esse todo, em sua relação
com os elementos que o formam, justamente se as partes parecem jamais habitar
simultaneamente, digamos, o mesmo espaço de tempo. Se elas jamais permitem
uma visão ampla, panorâmica, que nos traria a apreensão do objeto inteiro – o
conjunto de todas as relações que o compõem. É como se, numa galeria de
pintura, estivéssemos condenados a enxergar quadros imensos sempre a apenas
um palmo de distância. O nariz praticamente colado na tela. A visão limitada de
uma parte logo sendo substituída pela visão também limitada da parte seguinte.
Como ter acesso à visão integrada do quadro inteiro? Em Agostinho, o
pensamento sobre a forma da música deságua na própria reflexão sobre a forma
do tempo. A grande pergunta é se é possível falar de uma forma no tempo, assim
como se fala de uma forma no espaço.
Desde o século XIX que se questiona se o tempo possui um estatuto tão
primordial quanto o espaço. Se a nossa percepção das formas e estruturas
temporais seria tão intuitiva e imediata quanto nossas percepções espaciais. Ernst
Cassirer argumentou que, de fato, tendemos a apreender estruturas temporais
apenas de modo indireto, através de análogos espaciais.41 Viria daí que todas as
nossas expressões para falar do tempo foram tomadas de empréstimo do
vocabulário que se utiliza para se referir ao espaço. Por isso podemos falar de
intervalo de tempo; do tempo como reta infinita; ou do tempo curvo de Einstein.
Ainda mais recentemente, Paul Ricoeur também afirmou ser impossível obter uma
apreensão imediata do tempo – ou, segundo uma expressão do próprio autor, uma
fenomenologia pura do tempo.42 Para ele a produção da série temporal se dá
através da atividade humana de construção de um enredo. Somente quando postos
dentro de uma narrativa que os ordena, que lhes dá liga e sentido, os eventos
40
Cf. Santo Agostinho, Confissões, São Paulo, Editora Nova Cultural, 2004, Livro XI, xxvii 41
Ver Ernst Cassirer, Filosofia das Formas Simbólicas, São Paulo, Editora Martins Fontes, 2001,
3 vols, v.I, p.210-225. 42
Ver Paul Ricoeur, Tempo e Narrativa, São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011, 3 vols., v.III
42
geram uma percepção temporal. Se Cassirer nos oferece um modelo espacial do
tempo, Ricoeur apresenta um modelo narrativo. Embora tampouco acreditasse
numa intuição imediata do tempo, Santo Agostinho oferece uma solução que não
é nem espacial e tampouco narrativa, mas musical. Para o bispo de Hipona, o
tempo se assemelha à música. Isso equivale a dizer que o tempo é pensado através
da experiência auditiva. A música – e a melodia, o puro movimento sonoro, de
forma ainda mais concentrada – reproduz o modo de funcionamento do próprio
tempo. É cantando que efetivamente se dá forma ao tempo. Sendo assim, o espaço
serve de metáfora para a música, que serve de metáfora para o próprio tempo.
Essa forma nada mais é do que uma série de momentos sucessivos
unificados por uma tensão interna. Agostinho vê no fluxo temporal de uma
pequena melodia uma grande alegoria do próprio movimento do tempo humano
(dentro de sua concepção religiosa): do sopro divino que a tudo criou indo até o
juízo final. Como o título do ensaio de Lorenzo Mammì, quem criou o mundo foi,
justamente, um Deus cantor. Quando ele começou a cantar, começou a história
humana. Antes da Criação não havia tempo, pois a eternidade é um presente
imutável, sem tensão para o futuro, nem lembrança do passado. Desse modo, o
tempo existe porque existe o pecado. Tivesse a alma ficado com Deus, sem ter
sido atraída pelo mundo, continuaríamos pairando na eternidade. A história
termina com o fim da música, no juízo final. “A história do mundo é a canção
cantada por Deus. Sua forma melódica nos parece caótica porque não a
conhecemos por inteiro”, afirma Mammì.43 Uma vez iniciado, o tempo não pode
ser abolido por um ato de vontade. Por sermos apenas um ponto dessa vasta
melodia, ponto que logo é sucedido por outro, não possuímos uma apreensão de
sua forma geral. Tampouco sabemos para onde nos encaminha essa melodia. Só
quem o sabe é o cantor: Deus. E sabe porque a traz guardada consigo.
Na interpretação de Santo Agostinho, portanto, a forma do tempo será
definida como uma tensão interna que unifica uma série de eventos; um
movimento no tempo, originado por um ato de vontade e direcionado para algo. A
série de eventos é, desse modo, uma cadeia de causas e efeitos decorrentes de um
ato da vontade. Cada nota é puxada em direção à nota seguinte. É também o ato
da vontade que confere aos eventos uma direção, pois confere a eles uma
43
Cf. Lorenzo Mammì, op.cit.., p.51.
43
intenção. Para Agostinho, é o próprio movimento da alma que produz o tempo.
Sua explicação introduz assim um elemento psicológico estranho à tradição
neoplatônica – que pretendia que o tempo e o universo fossem gerados por
emanação do princípio único e eterno. Pois Deus conferiu à alma a liberdade de se
dirigir para Ele ou para o Mundo. Com isso, pôs em movimento o eterno presente
da eternidade. Tornou-o sucessão. Desse modo, cada série temporal é uma cadeia
de consequências de um movimento da alma, de uma escolha. O ato com que a
alma se põe em movimento (quando, por exemplo, começa a cantar uma melodia),
criando assim uma série temporal, é indicado na expressão intention animi.
Se, contudo, o que define o tempo é seu caráter transitório, fugidio; se o
presente não tem espessura nem extensão, sendo apenas uma tensão entre não ser
ainda e já não ser; deve haver então algum local da nossa alma onde o tempo se
transforma numa extensão espacial. Somente ali ele poderia ser medido – ter sua
extensão calculada. Somente ali poderíamos finalmente enxergar formas no
tempo. Ali: onde a linha melódica, que na realidade física é apenas “um contínuo
desmanchar-se de sons sucessivos”44, finalmente encontra repouso e dá-se a
conhecer em sua forma inteira. O problema da forma musical é, desse modo,
associado ao da memória. Porque aquele que canta sabe a forma da melodia,
mesmo que esta forma nunca esteja inteiramente presente nos sons que vão sendo
pronunciados.
A forma, nesse caso, é uma espécie de tensão (intentio) que puxa cada nota em
direção à seguinte. Só na última nota a forma se acaba, mas também acaba, se
esgota, porque não há mais tensão. A melodia esvanece e se deposita na memória,
como tensão potencial que pode ser revitalizada quando recomeço a cantar.45
O fundamental é notar que toda essa discussão ancora-se numa espécie de
formalismo musical que desde muito cedo tornou-se o vetor dominante da música
no Ocidente. Durante o longo período da Idade Média a música de cunho religioso
passa a articular-se cada vez mais em torno de obras individuais. Isto é, de obras
que guardam um caráter próprio, sendo únicas, e que devem ser reproduzidas do
modo mais fiel possível – ainda mais quando se pensa no seu caráter sagrado,
demandando maior controle. Contribui para isso o desenvolvimento da notação
musical moderna, já baseada na nomenclatura de alturas relativas, com os neumas
44
Cf. Idem, Ibidem, p.52. 45
Cf. Idem, Ibidem, p.49.
44
indicando o contorno aproximado das melodias do canto litúrgico e cumprindo,
portanto, o importante papel de suporte para a memória.46 Por conta disso, há
uma profunda mudança na concepção musical do Ocidente europeu. Ela irá se
distanciar, assim, das raízes comuns que a remetem, como o resto de sua cultura,
ao grupo indo-europeu, ao qual também se filiam os antigos gregos. Muito pouco
restou dessa raiz comum. Os traços dessa filiação sobrevivem apenas como
sombras distantes em nossos hábitos musicais. De fato, os gregos parecem ter sido
grandes teóricos musicais, mas raramente escreviam música. O motivo disso jaz
numa concepção distinta do evento musical. Para eles, a composição e a
improvisação eram vistas como uma manifestação efêmera de uma ordem
permanente, que era dada pela proporção dos intervalos e das durações. Essa
ordem, por sua vez, reconduzia a um nível de ordenamento ainda superior: o dos
movimentos cíclicos, como a música mundana das esferas ou a música humana do
organismo vivo. A primeira garantia a relação da música com uma verdade
superior, a segunda, com um ethos – os sentimentos e ações humanas que a
acompanhavam.
Com o termo ethos os gregos denominavam o caráter próprio dos modos.
Em cada um deles enxergava-se uma qualidade mimética e uma tendência ética
capaz de infundir ânimo, de potencializar virtudes do corpo e do espírito.
Associavam-se diretamente, através do próprio nome, a uma determinada região
ou povo – constituindo, portanto, um território sonoro. Dessa forma, o modo
dórico (que se forma pela distribuição de intervalos que vão de mi a mi) evoca ou
reproduz o caráter viril dos lacedemonianos, ligando-se tradicionalmente à
solenidade, enquanto o frígio (de ré a ré) trazia ares orientais e era por sua ligado
ao dionisismo (acreditava-se que Dioniso tinha vindo da Ásia).47 A vinculação da
música a uma ordem permanente e superior fazia com que a própria experiência
musical decorresse em função do sistema – ou seja, dos modos. As execuções
serviam como atualização desses modos, manipulações temporárias que
evocavam qualidades e efeitos psicossomáticos que lhes eram próprios. Tinham
uma função catártica, purificadora. Punham em equilíbrio o corpo, colocando-o
em fase com a ordem cósmica, e assim preparavam o terreno para a aparição do
46
Ver, nesse sentido, Don Michael Randel, The Harvard Dictionary of Music, Cambridge, The
Belknap Press of Harvard University Press, 2003, p.566. 47
Ver Roberto Machado, O Nascimento do Trágico, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2006, cap.
VI.
45
divino. Mediante a música passava-se da esfera humana a uma esfera superior. A
composição, a realização musical, eram feitas de acordo com regras que lembram,
por exemplo, um jogo de xadrez: o que conta é o jogo, e não cada partida.
O que ocorreu no Ocidente europeu foi, justamente, um distanciamento
dessa perspectiva. Quase uma inversão. Ao invés das obras existirem em função
dos sistemas são os sistemas musicais que passam cada vez mais a existir e a se
justificar em função das obras. Isso é tão claro que uma única obra – a obra-prima
– poderá ser capaz de mudar as regras de um sistema. Há um processo de
individuação das peças musicais. Valorizadas em sua singularidade, cresce
também a tendência ao registro e à conservação dessas obras, sobretudo no âmbito
religioso. O canto gregoriano, música vocal monofônica e composta de uma única
melodia (monódica), e que persiste como música cristã por excelência durante
séculos - praticamente do começo da Idade Média até quase seu fim, quando a
polifonia finalmente é introduzida nos ofícios das cristandade, passando a
conviver com ele – marca o longo processo de distanciamento da antiga
concepção grega em relação àquela que predominará na Europa. Trata-se,
simplificando-se bastante o imenso arco histórico que marca a sua existência, do
aproveitamento da organização sonora dos antigos modos gregos dentro da lógica
da autonomia das obras – de uma visão mais formalista da própria música. A
partida torna-se, desse jeito, mais importante do que o jogo. Outro dado
extremamente importante é que “o canto gregoriano desvia a música modal do
domínio do pulso para o predomínio das alturas – a melodia vem para o primeiro
plano (e onde a instância rítmica não terá mais a autonomia e a centralidade que
tinha antes, servindo agora de suporte para as melodias harmonizadas)”.48 É
sintomático o fato de que por mais de três séculos a notação neumatica não
indicasse com alguma precisão as durações das notas. Somente a partir do século
XIII alguns tipos de neumas, denominados ligaduras, passaram a ser empregados
para indicar durações baseadas em “modos rítmicos”.49 Começava assim, com
grande atraso em relação às alturas melódicas, a definição precisa das durações na
notação ocidental.
48
Cf. José Miguel Wisnik, op.cit.., p.42. 49
Padrões de ordem temporal concebidos pelos teóricos da escola polifônica de Notre Dame. São
destacados seis modos, cada qual com suas características de entrada e também de combinação
entre notas longas e notas curtas. Ver Don Michael Randel, op.cit.., p.521.
46
O reino da melodia – dos motivos, temas, leitmotiven – como principal
agente condutor da experiência musical parece ter durado muitos séculos. Santo
Agostinho viveu na virada do século IV para o V, no tempo da monofonia –
melodia sem acompanhamento – muito antes do estabelecimento do sistema tonal,
com sua trama harmônica, verticalizada. Muito antes, também, do
desenvolvimento da polifonia, com seu jogo de paralelismos e simultaneidades.
Isso quer dizer que sua visão musical é, de certo modo, plana, linear. Baseada em
sucessões causais, e nitidamente orientada para um fim – teleológica, portanto.
Essa visão está em profunda consonância com a própria percepção histórica da
doutrina cristã, o tempo humano sendo concebido como um princípio-meio-fim.
Ela é, se quisermos assim dizer, meloscêntrica – uma única melodia como o
grande núcleo significante da experiência musical. Nesse sentido, é provável que
não tenha havido grandes mudanças dos tempos de Santo Agostinho para cá.
Talvez seja possível dizer que o grosso da experiência musical da humanidade
ainda é eminentemente guiado pela percepção da melodia. A ponto de sequer ser
necessário fazer uma diferenciação entre os termos música e melodia.
Curiosamente, no mesmo momento em que a música erudita erodia cada vez mais
a consistência do material melódico, na virada do século XIX para o XX, o reino
da melodia reafirmava a sua força através da música popular. A música popular
foi e tem sido o reino da melodia por excelência. Ou então houve imensas
mudanças, mas, em decorrência de um desenvolvimento temporal em forma de
arco, voltamos a tocar o mesmo ponto remoto do passado – um ponto no qual o
mais avançado é também o mais primitivo, e vice-versa.50
50
Muito da visão modernista (grosso modo), e também muitas das realizações da arte moderna,
apóiam-se nesse anacronismo. Dos escritos de Oswald de Andrade às pinturas de Picasso. É
também esta a tese principal de O Som e o Sentido, ao tentar refazer por um ângulo novo todo o
percurso da música Ocidental como sendo o caminho que leva da gradativa eliminação dos ruídos
até a sucessiva reincorporação musical dos mesmos. Ou seja: um percurso circular, mas não no
sentido de voltar exatamente ao ponto de partida, e sim de “desrecalcar” e possibilitar uma nova
abertura para o que fora outrora descartado. Um retorno no qual se traz a bagagem acumulada de
séculos de, num certo sentido, negações e descobertas. No caso do livro de José Miguel Wisnik,
esse ruídos vão dos intervalos proscritos na Idade Média (trítono) até o retorno pulsante da violência rítmica, ou, mais precisamente, da revalorização expressiva da dimensão
rítmica, que havia permanecido, digamos, atrofiada, ou no mínimo subserviente aos
outros parâmetros do som. Os demônios da música que a liturgia medieval se esforça para
recalcar moram, antes de mais nada, “nos ritmos dançantes e nos timbres múltiplos,
concebidos aqui como ruído, além do trítono”.(Cf. José Miguel Wisnik, op.cit.., p.42)
47
Voltando ao pensamento musical de Agostinho, nele a memória é justamente esse
local onde o tempo se aquieta na extensão estática de um eterno presente – tempo
e espaço convergindo numa única dimensão. É ali também que o passado ganha
superfície de contato com o presente da atenção atual e com o futuro da
expectativa. Como nos sugere a leitura de Lorenzo Mammì, o percurso reflexivo
de Santo Agostinho o leva a conceber o tempo como o cruzamento simultâneo e
contínuo de três atitudes espirituais: lembrar, prestar atenção, esperar. É isso o que
fazemos incessantemente, a cada momento. Cada momento é a um só tempo
passado, presente e futuro. “Quando começo a cantar eu pretendo chegar ao fim
da melodia, e por isso começo a tragar a melodia do futuro, onde a expectativa a
coloca, para o passado, onde encontra repouso na memória. O ato da atenção
presente se torna, assim, ainda uma vez, um ato intencional, portanto um ato
direcionado. A forma do tempo é, antes de mais nada, direção”.51 O termo
extensio animi indica a presença simultânea das três medidas temporais na alma:
attentio animi é a atenção genérica, ato da consciência que se liga ao sentimento
do presente, em contraposição à memória, que é o sentimento do passado, e à
expectatio, que é o sentimento do futuro.
Mais do que ser um simples reservatório, ou mero local de repouso, parece-
me que muito da força da reflexão de Santo Agostinho vem do fato de que a
memória é concebida como base e trampolim das expectativas que embalam o
fluxo musical – que lhe conferem direção. Ou seja: projeta-se a um só tempo na
direção do passado e na direção do futuro. Constitui-se, desse modo, como algo
intrínseco ao expectatio. É a partir dela que se forma o fundo de expectativas que
embalam a escuta. Esse ponto de vista coincide com o argumento geral de um
clássico da musicologia, Emotion and Meaning in Music, o primeiro livro a
mergulhar em profundidade no papel desempenhado pela expectativa, pela
antecipação de eventos futuros, na escuta musical. Seriam esses vitais sentimentos
antecipatórios, que nos fazem esperar algo, elementos essenciais do impacto
emocional que a música provoca em nós. As peças principais na complexa
maquinaria mental posta em andamento através da experiência sonora,
responsável por captar a atenção e excitar a alma (cérebro). Desnecessário dizer
51
Cf. Lorenzo Mammì, op.cit.., p.53.
48
que a condição necessária para a criação dessas expectativas está, justamente, na
memória.
Without thought and memory ther could be no musical experience. Because they
are the foundation for expectation, an understanding of the way in wich thought
and memory operate throws light both upon the mechanism of expectation itself
and upon the relation of prior experience to expectation.52
(Meyer, 1956, p.87)
Também para ele é a memória que proporciona a moldura geral que permeia
a experiência musical. Ela é uma força na organização da escuta, capaz de
direcionar a atenção, de criar padrões de previsibilidade e atitudes de busca. Ela
nos conecta com as experiências passadas e nos informa, assim, e ainda que
geralmente disso não tenhamos consciência, o que “esperar” de determinada
experiência musical.
Retornando novamente a Santo Agostinho, parece que a melodia que ainda
está por ser cantada já reside inteira, espacializada, em algum canto da alma; que
está sendo tragada do futuro-da-memória para ser continuamente reconduzida ao
passado-da-memória. O local onde essa complexa operação torna-se perceptível,
onde adquire concretude, é no presente da atenção: o brevíssimo e frágil espaço
onde os sons ganham realidade física, vibrando no ar. Depois disso, tornam-se
novamente passado. Para Agostinho é exatamente esse caráter transitório do
tempo, sua constante indefinição entre ser e já não mais ser, que leva o
pensamento a conceber, ou imaginar, um local estático, onde o presente eterno
finalmente possibilita que a forma do tempo possa ser apreendida. Meyer segue
um raciocínio parecido: para ele, a expectativa também está intimamente
vinculada com a memória, pois ao ouvirmos determinada obra musical
organizamos nossa experiência e nossas expectativas tanto nos termos do passado
de uma peça particular, que começa logo depois que o primeiro estímulo é ouvido
e consequentemente tornado passado, quanto nos termos de nossas memórias mais
antigas relacionadas a experiências musicais relevantes.
Tal capacidade de organização e sua relação intricada com a memória
constitui um dos pilares fundamentais de nossa dinâmica perceptual – uma forma
básica de derivarmos sentidos e relações de nossa experiência do mundo. A
52
“Sem o pensamento e sem a memória não haveria experiência musical. Porque são estes os
fundamentos da expectativa, o entendimento dos caminhos pelos quais operam pensamento e
memória pode lançar luz sobre o próprio mecanismo da expectativa, assim como sobre sua relação
com a experiência passada”. (Cf. Leonard B. Meyer, Emotion and Meaning in Music, p.87)
(Tradução Livre)
49
onipresença da música, dos enfeites e dos adornos visuais, e das narrativas
mitológicas em todas as sociedades humanas, e as provas arqueológicas que
constatam o caráter remoto dessas manifestações, fazem pensar no fato de que
talvez elas sejam um desdobramento natural, quiçá necessário do surgimento da
mente simbólica. Ou que os sentidos de fruição estética, ainda que inicialmente
ligados a funções ritualísticas associadas a importantes princípios de coesão e
colaboração social entre os primeiros hominídeos, possuam uma justificativa
biológica ainda pouco esclarecida. Ou ainda que no fundo, quando disso se trata,
de que sequer faz sentido uma diferenciação entre biológico e cultural. As duas
dimensões correriam em paralelo. Acidentes da evolução, acasos ocorridos na
replicação dos códigos genéticos, regulados pela pressão do meio externo, no
sentido da lógica adaptativa de Darwin, teriam criados novas propensões e
capacidades. Outros acasos podem ter lançado a centelha inicial que desencadeou
um processo de desenvolvimento – o verdadeiro salto que constituiu o surgimento
do pensamento simbólico. Modos que estão inscritos na lenta história evolutiva de
nossa espécie.
Desse modo, uma considerável parcela da audição refere-se a reflexos
inatos. Assim como acontece com todos os outros animais que possuem alguma
sensibilidade para o som, a fisiologia humana é alterada ao ouvir um ruído que
ultrapasse uma determinada faixa média de potência. Imediatamente o corpo
torna-se alerta. A interpretação instintiva é a de que a uma grande intensidade
sonora corresponde uma grande liberação de energia. Algo que pode colocar o
organismo numa situação de perigo – diante de um grande predador ou de algum
acontecimento natural potencialmente perigoso. De modo parecido, sons não-
familiares ou inesperados solicitam imediatamente a visão e o reconhecimento -
viramos imediatamente a cabeça na direção da fonte sonora.53 São reações
espontâneas que revelam o papel evolutivo da audição no sentido de orientar
espacialmente e tornar o ser vivo preparado diante de situações que o coloquem
em risco. O ouvido dá sinais de alerta, informa sobre eventos no mundo que
possam ter alguma relevância para o organismo. Ao ser informado, o organismo
pode então prever a melhor ação a ser executada. A audição está, desse modo,
53
Há muitos experimentos com recém-nascidos que tendem a comprovar a reação espontânea a
sons com os quais a criança ainda não se acostumou. Ver David Huron, Sweet Anticipation: Music
and the Psychology of the Expectation, London, The MIT Press, 2007, cap.VII.
50
intimamente ligada à formação de expectativas e de estados fisiológicos ligados a
determinadas ações (como lutar, fugir ou ficar paralisado). Se ouço passos no
corredor vindo na direção de minha sala, sei que em pouco tempo alguém irá bater
à porta. A informação sonora me permite prever o evento futuro.
Ao ouvir música, trabalhamos o tempo todo com esse tipo de previsão e
com as expectativas que a acompanham. Parte considerável do prazer suscitado
pela música vem da confirmação ou negação das expectativas que embalam nossa
escuta musical. Essas expectativas são geradas por um ininterrupto trabalho de
previsão realizado pela mente: “One of the deepest, one of the most general
functions of living organisms is to look ahead, to produce future”, escreveu o
biólogo molecular François Jacob.54 Isso quer dizer que por trás de todos os
processos perceptivos está a predição – a expectativa útil de eventos que ainda
não ocorreram. O cérebro especula incessantemente sobre o futuro, sobre que é
mais provável de acontecer. A capacidade de antecipar mentalmente os
acontecimentos, de prever e preparar o organismo para ações futuras está na base
do funcionamento cerebral. Constitui o núcleo de um mecanismo básico de
proteção. “Prediction is at the heart of this basic protective mechanism.
Prediction, almost continually operative at conscious and reflex levels, is
pervasive throughout most, if not all, levels of brain function”.55
E a tal ponto que
o cérebro criou mecanismos para recompensar previsões acertadas, e também
para punir previsões erradas. A escuta musical está muito vinculada a esse
mecanismo de previsão. Leonard B. Meyer notou que “o significado evidente é
condicionado pelo significado hipotético” – que “a relação atual entre o gesto e
sua consequencia é sempre considerada sob a luz da relação esperada”.56 Ou seja:
um jogo mental de expectativas, jogado por um cérebro que não cessa de fazer
previsões, de tentar antecipar os acontecimentos futuros.
54
“Uma das mais profundas, uma das mais genéricas funções do organismo vivo é olhar adiante,
produzir futuro”. (Cf. François Jacob, The Possible and the Actual, Seattle, University of
Washington Press, 1994, p.32) (Tradução Livre – grifo meu) 55
“A predição está no centro desse mecanismo básico de proteção. Quase sempre operando
continuamente no nível da consciência e dos reflexos, o mecanismo de predição é encontrado em
quase todos, senão em todos os níveis da função cerebral”. (Cf. Rodolfo Llinàs, I of the Vortex:
From Neurons to Self, London, The MIT Press, 2001, Kindle Edition, Location 391) (Tradução
Livre) 56
“Evident meaning is colored and conditioned by hypothetical meaning. For the actual
relationship between the gesture and its consequent is always considered in the light of the expected relationship”. (Cf. Leonard B. Meyer, op.cit.., p.38) (No corpo do texto, tradução livre)
51
Mas enquanto os reflexos respondem por apenas uma pequena parcela de
nossa experiência auditiva do mundo – dentro da qual incluo a própria música -
não parece haver dúvida de que o aprendizado fornece a principal moldura dessa
experiência. A maior parte das expectativas sonoras e dos próprios sentidos que se
pode auferir dos sons – musicais ou não – são aprendidas através da exposição a
determinado ambiente sonoro. Dependem, portanto, de um contexto específico.
Mas é preciso lembrar que o aprendizado modifica a microestrutura física do
cérebro, órgão que, por sua vez, é geneticamente predisposto a isso – a famosa
plasticidade cerebral. Desse modo, ele está encravado na própria biologia, torna-
se estrutural, condiciona nossas reações em um nível não-consciente; torna-se
uma espécie de instinto adquirido.
No caso da música, como já foi sugerido, tais expectativas são criadas a
partir de experiências passadas, depositadas na memória de longo-termo. São
frutos do aprendizado. Meyer as descreve como “um produto das respostas do
hábito desenvolvido em conexão com estilos musicais particulares e com os
modos da percepção humana, cognição e resposta – as leis psicológicas da vida
mental”. Familiaridade com gêneros musicais gera previsões mais acuradas e
menos incertas. É necessário haver uma convenção como base para a geração de
variadas respostas emocionais. Essas respostas se dão não apenas através da
confirmação das expectativas, mas, sobretudo, quando uma expectativa – ou
tendência a responder – ativada pelo estímulo musical é temporariamente inibida
ou permanentemente bloqueada. Ou seja, quando o esperado cede lugar ao
inesperado, que, no entanto, não se confunde com a surpresa – pois o inesperado é
o virtualmente possível dentro das regras do jogo, embora com baixa
probabilidade de ocorrência, ao passo que a surpresa é um fator externo que
quebra a dinâmica do jogo. São as violações de expectativa, que apontam para o
inesperado, grandes responsáveis pelo impacto emocional de uma obra musical
(embora, obviamente, não sejam as únicas). É sempre uma ruptura da ordem o que
chama a nossa atenção. A mente necessita ser levada a buscar algo, a
compreender alguma coisa que falta, e não apenas ser passivamente estimulada
por sons e imagens. Cérebros gozam diante de desafios e não apenas ao ser
confortavelmente empanturrados de estímulos. Na experiência estética, há sempre
uma tensão entre as redundâncias esperadas da continuidade e um novo passo na
ordem ou na desordem que atrai a nossa atenção. O historiador da arte Ernst
52
Gombrich disse que uma grande obra de arte “encontra em nós um equilíbrio sutil
entre o que nos parece muito evidente e o que nos parece muito difícil”.57
A maior parte de nossas expectativas musicais são aprendidas através da
mera exposição a um determinado ambiente sonoro. Isso quer dizer que estamos
continuamente sintonizados com a frequência dos estímulos nesse ambiente. Com
a percepção de padrões que se repetem. É possível que sejam em grande parte
aprendidas através de um processo puramente estatístico.58 Em boa parte é essa
interação que possibilita que um número grande de ouvintes responda de modo
pelo menos similar a determinado tipo de música. É ela que possibilita a criação
de culturas musicais. Que permite que a experiência musical consiga falar a um só
tempo a um horizonte coletivo e a um horizonte individual. Essa sensibilidade
para a frequência de ocorrência de padrões de estímulos, sejam visuais, olfativos,
táteis ou auditivos, vem sendo há algum tempo observada não apenas na espécie
humana, mas em diversas outras espécies animais. Dela deriva um efeito que é
bastante revelador e biologicamente relevante: com o aumento da exposição a um
determinado estímulo, acelera-se a velocidade de seu processamento mental.59 Ou
seja, estímulos familiares, sejam eles quais forem, são mais rapidamente
processados por nossas mentes do que aqueles que não são familiares.
Há, desse modo, uma predisposição natural para nos sentirmos mais
confortáveis com – e inconscientemente preferirmos – aquilo que de algum modo
já conhecemos. E conhecer significa também possuir um domínio maior sobre os
desdobramentos futuros de algo. Pois o que esperamos reflete simplesmente
aquilo que experimentamos com mais frequência no passado. Quando assisto a
um jogo de futebol, posso não saber ainda qual será o placar final. Mas sei que a
partida é dividida em dois tempos de aproximadamente quarenta e cinco minutos
cada (pois já vi outras partidas). Sei também que são onze jogadores de cada lado,
57
“Je pense vraiment qu’une grande oeuvre d’art rencontre en nous un equilibre subtil entre ce qui
nous paraît trop évident et ce qui nos paraît trop difficile”. (Cf. Didier Eribon, Ce Que L’Image
Nous Dit – Entretien avec Ernst Gombrich, Paris, Éditions Cartouche, 2009, p.217) 58
Aqui, estou seguindo a linha de pensamento proposta por David Huron. Ela opõe-se àquela
encampada por Leonard B. Meyer ao questionar os princípios de organização mental que a Gestalt
considerava como inatos: “In light of Paul von Hippel’s work, we can see that these listener
expectations are better regarded as inductive approximations of underlying objective patterns of
musical organization rather than innate Gestalt Principles. Moreover, the most likely origin of
these inductive heuristics is through the mechanism of statistical learning”.(Cf. David Huron,
op.cit.., p.97) 59
Esse é o princípio da lei Hick-Hyman, elaborada nos anos 1950 de modo independente por
W.E.Hick (Cambridge University) e por Ray Hyman (Johns Hopkins University).(Ver David
Huron, op.cit.., p.63)
53
mais um juiz em campo. Se conheço com profundidade os times que irão jogar,
posso começar a prever com maior probabilidade de acerto os resultados mais
prováveis, quem irá vencer. Se o artilheiro do campeonato está em campo, posso
mesmo imaginar quem vai marcar o gol (pois já vi vários gols desse mesmo
artilheiro). Quanto mais conhecido e familiar for o objeto, mais refinada será a
previsão. O desdobramento natural disso é que expectativas precisas facilitam a
percepção. Porque o propósito biológico da predição é justamente nos tornar
melhor preparados para reagir de modo físico e mental aos estímulos do mundo
externo. Isso quer dizer que nossa percepção se torna mais afiada diante de algo
com o qual temos alguma intimidade. Um verdadeiro fã de futebol enxerga numa
partida coisas que passam totalmente despercebidas a alguém que não tenha o
hábito, ou que simplesmente não se interessa pelo esporte – de certo modo, sua
percepção é ampliada.
Da contínua exposição a determinado ambiente sonoro - que inclui não
apenas o quadro de uma lógica musical mas também os sons da língua - vão sendo
formadas representações mentais, que são os schemas. Schemas podem ser muito
sumariamente definidos como “uma pré-concepção mental do habitual curso dos
eventos”.60 Ou seja: a moldura para a formação de expectativas futuras. Várias de
nossas ações cotidianas são conduzidas dentro da lógica dos schemas. Quando
saio para jantar, sei que chegando ao restaurante o garçom irá me indicar uma
mesa; depois, vai trazer o cardápio; posteriormente trará a comida e, no fim, a
conta. Esse é o curso habitual dos eventos associados ao schema-restaurante. Ele
incorpora as expectativas das sucessivas etapas que o definem temporalmente.
Quando acabo a sobremesa, preparo-me para pedir a conta ao garçom. Não
preciso me angustiar perguntando a mim mesmo – o que devo fazer agora? Após
tantas idas a restaurantes, minha memória de longo termo acabou por formar um
schema no qual situações análogas do passado condicionam, guiam, fornecem a
moldura do comportamento presente. Muita energia é poupada no processo, e a
60
Cabe aqui uma definição mais alentada dos schemas: “Thus schemas are large networks of
memories with potential associative connections. When particular scenes or events in the
environment trigger our expectations, some of these memory networks become semiactivated;
these semiactivated memories may enter our peripheral consciousness as a ‘feeling’ of what is
about to happen. Schemas in the form of musical patterns and styles are largely responsible for our
feelings of expectation while listening to a piece of music. This feeling usually stays on the fringes
of the focus of consciousness. In some instances, however, we may see or hear what we expect,
rather than what is ‘really’ there”. (Cf. Bob Snyder, Music and Memory, London, The MIT Press,
2000, p.96)
54
eventual obstrução do fluxo encadeado de etapas (no meu schema eu ia pagar com
cartão de crédito, mas o restaurante não aceita cartão) gera um estado de alerta, de
atenção concentrada – com óbvio desgaste de energia. O processo geralmente se
dá de modo inconsciente.
No caso da música, tanto em crianças como em adultos, o schema
assemelha-se a um grande quadro de probabilidades que articulam a sucessão de
notas num sistema musical. Se ouço uma determinada sequência de notas, intuo
qual será a mais provável nota a aparecer na sequência (o desdobramento),
baseado na experiência passada de contextos semelhantes. Tal intuição não se dá
numa direção única (será essa a nota a seguir!), mas compreende também outras
notas possíveis, mas com menor probabilidade. Aquelas que não se encaixarem
em nenhum percentual de chance, que estiverem fora da probabilidade gerada
pelas experiências passadas, fora do schema empregado, serão ditas erradas, fora
do lugar ou simplesmente desafinadas. Mas se essas mesmas notas erradas
começarem a ser adotadas com maior frequência, poderão então ser incorporadas
ao estilo, ganhando seu pequeno quinhão de probabilidade. Tornar-se-ão mais
agradáveis aos ouvidos já acostumados. E isso acontece não apenas com a
sucessão de notas individuais de uma melodia, mas também com seqüências
harmônicas. Aquelas que são empregadas com ainda maior ênfase, tornam-se
clichês – alto grau de probabilidade - como a cadência dominante-tônica para a
música tonal. No barroco de Bach, a cadência IV-V ocorria num maior número de
vezes, e era portanto a mais esperada entre ouvintes com familiaridade nesse
estilo. Para aqueles familiarizados com o reggae jamaicano, a cadência mais
comum era, ao contrário, V-IV. Acontece também em relação à organização
propriamente temporal da música. A subdivisão métrica predominantemente
binária do compasso europeu, com os acentos coincidindo sobre os pulso ímpares
(1,3,5), é um exemplo de schema de previsão para eventos temporais – schemas
rítmicos.
É preciso ter claro, contudo, que esses padrões sonoros são representações
mentais. Os cérebros não armazenam o som em si, como se fossem fonogramas
gravados. Ao invés disso, ele interpreta, destila, representa o som. Cria códigos
mentais que existem como padrões biológicos reais, que fixaram residência em
algum canto da cabeça. No nível mais elementar da percepção sonora, no aparelho
auditivo, as frequências sonoras excitam diferentes locais da membrana basilar, no
55
ouvido interno. Cada um desses locais está associado a diferentes neurônios
sensoriais, que disparam de acordo com os estímulos recebidos, formando no
cérebro um verdadeiro mapeamento sonoro. É a chamada representação
tonotópica, um tipo de codificação sonora que pode ser observada em diversos
locais do sistema auditivo, inclusive na parte do córtex cerebral responsável pela
audição.61 Uma segunda representação sobrepõe-se a essa. Nela, são codificados a
periodicidade (que definirá a altura do som) e os padrões formados pelos
estímulos dos diversos neurônios auditivos. A tendência é que esses neurônios
disparem em sincronia com as frequências que estimulam o tímpano.
Grosso modo, somente a partir dessas informações poderá o cérebro formar
a representação de uma altura sonora definida. O estímulo mecânico dos
neurônios dos nervos auditivos é sucessivamente interpretado, decodificado, até
ser devolvido para nossa consciência como sensação subjetiva – uma qualia.
Qualia acompanha todas as sensações conscientemente experimentadas, inclusive
as sonoras. Trata-se de um termo para designar o sentimento subjetivo que
acompanha as experiências sensoriais. No caso dos sons musicais, boa parte do
efeito que causam em nós vem do papel que desempenham eles dentro dos
schemas culturalmente assimilados. Quer dizer, vem do modo como a memória
vai filtrar esses sons e remetê-los a experiências musicais passadas. Um som
isolado ou uma série de sons não possuem em si, como puro fenômeno físico,
qualquer significado. Eles ganham sentido somente na medida em que apontam,
indicam ou implicam alguma coisa que os ultrapassa. Somente ao serem
incorporados nas molduras da memória é que os sons musicais começam a tornar-
se capazes de, como escreveu Baudelaire ainda no século XIX, “suscitar ideias
análogas em cérebros diferentes”.62 É esse encaixe que vai dizer, por exemplo, se
um som é tenso ou se gera a sensação de repouso e resolução, porque esse tipo de
percepção é relacional, só pode ser feita quando o som em questão é comparado
61
“The auditory cortex also has a tonotopic map, with low to high tones stretched out across the
cortical surface. In this sense, the brain also contains a ‘map’ of different pitches, and different
areas of the brain respond to different pitches. Pitch is so important that the brain represents it
directly; unlike almost any other musical attribute, we could place electrodes in the brain and be
able to determine what pitches were being played to a person just by looking at the brain activity.
And although music is based on pitch relations rather than absolute pitch values, it is,
paradoxically, these absolute pitch values that the brain is paying attention to throughout its
different stages of processing”. (Cf. Daniel Levitin, This is your Brain on Music: Understanding a
Human Obsession, London, Atlantic Books, 2007, p.29) 62
Cf. Charles Baudelaire, Richard Wagner e ‘Tannhäuser’ em Paris, São Paulo, Editora
Imaginário: Editora da Universidade de São Paulo, 1990, p.39.
56
com outros sons; ao passo que a percepção da textura timbrística, se um timbre
parece áspero ou macio, liga-se mais a uma sensação imediata, menos mediada
pelo quadro da experiência e da memória, e portanto menos sujeita a variáveis
culturais. De todo modo, é justamente o qualia que irá responder em boa parte
pela tensão e direção mencionadas por Santo Agostinho na condução do
movimento sonoro. São inúmeros os filtros que vão apreendendo e codificando o
puro estímulo elétrico inicial. Que o transformam em algo que significa. Dos mais
elementares, como o mapa frequencial no córtex, até os schemas aprendidos
através da exposição contínua a um determinado ambiente sonoro.
E também as expectativas implicam algum tipo de representação mental,
pois baseiam-se em um jeito específico de aproximação, em um modo de
enquadrar e organizar a seqüência sonora que possibilita formar previsões. No
casos das representações mentais relacionadas ao campo das alturas (que
permitem uma organização sonora através de escalas relacionais de frequência,
um som situando-se, por exemplo, num relação de 1/2, como no caso da oitava),
mais diretamente à melodia, podemos ter diferentes codificações possíveis. Uma
que avalia o estímulo sonoro dentro do schema de uma determinada escala (esse é
o quinto grau, a dominante, de um modo maior); outro que refere-se à posição
métrica do estímulo no contexto de uma grade temporal, o momento em que o
estímulo é desencadeado; outro que avalia a relação intervalar com o estímulo
anterior, interpretando a direção melódica; outro que codifica a duração do
estímulo, e assim por diante. Essas representações correlacionam-se na
codificação mental da música. Mas nem todas recebem o mesmo grau de atenção.
Se uma das principais funções do cérebro é fazer previsões (e a expectativa
efetivamente é um processo mental onipresente, pois estamos constantemente
antecipando o futuro), isso significa que o foco principal, não podendo contemplar
todas as representações simultaneamente, deverá privilegiar algumas em
detrimento de outras.
O sistema auditivo é espontaneamente capaz de gerar várias representações
simultâneas. Aquelas que se revelarem mais úteis na previsão de eventos futuros
são preservadas e reforçadas, enquanto as menos úteis atrofiam. As representações
mentais estão sendo continuamente avaliadas quanto aos seus potenciais de
predição. Isso sugere que diferentes representações mentais estão continuamente
competindo, e que esta é a norma da nossa vida mental. Haveria, portanto, uma
57
espécie de darwinismo neural: representações competindo entre si de acordo com
os princípios darwinianos aplicados aos padrões de organização neural.63 Foi
sugerido que é essa dinâmica de competição interna um dos principais fatores
responsáveis pela flexibilidade ou evidente plasticidade do cérebro. Pois ao
formar expectativas, um cérebro normal manteria múltiplas representações
concorrentes. Se, ao contrário, ele se fixasse em apenas uma, isso significaria que
o cérebro teria atingido a quase infalibilidade em seus vaticínios sobre o mundo.
Ou que a representação foi incorporada no código genético. Ou ainda que o
cérebro tornou-se patologicamente estruturado.
Representações são usadas para se fazer predições; o resultado dessas
predições (se são afiadas ou falhas) irá selecionar as melhores representações.
Uma boa representação mental seria aquela que consegue capturar ou pelos
menos aproximar algum princípio organizacional útil, presente no ambiente que
circunda o animal. Isso quer dizer que, sendo redes neurais que existem
verdadeiramente como padrões biológicos em cérebros individuais, as
representações mais favorecidas serão aquelas que se aproximarem mais das
estruturas que efetivamente organizam o ambiente externo. Desse modo, a
organização cerebral reflete a organização do mundo auditivo. É por isso que, no
caso da música, a predominância de algumas representações sobre as outras é uma
função do ambiente sonoro no qual reside o ouvinte. Diferentes ambientes
auditivos geram diferentes representações mentais para o som. Mesmo cada
ouvinte terá um histórico de escuta diferenciado, no qual algumas representações
tornaram-se mais bem sucedidas do que outras. A organização precisa difere de
acordo com o caso específico de cada córtex. É como se fossem diversas plantas
de casa. Todas as casas teriam cozinha, sala, quarto, banheiro, mas ainda assim as
plantas seriam diferentes entre si. Na hora de decodificar o som, cada um de nós
guarda uma combinação de expectativas baseadas em representações que tendem
a ser diferencialmente favorecidas de acordo com o contexto e com o histórico da
pessoa. A mais importante delas, contudo, quando se enfoca a percepção das
alturas sonoras em ouvintes ocidentais, é aquela ligada aos graus das escalas.64
63
O grande idealizador do darwinismo neural foi o nobel Gerald Edelman (para mais detalhes, ver
David Huron, op.cit.., p.108) 64
David Huron sugere informalmente que as expectativas relacionadas ao campo das alturas
(ouvinte ocidental) seriam a soma aproximada de, digamos, 70% em função do grau da escala,
15% da função harmônica, e 10% do contorno melódico.(ver David Huron, op.cit.., p. 110)
58
Isso lança luz sobre o papel crucial das escalas na organização da
experiência musical. E também sobre o modo de percepção das sucessões sonoras
– daquilo que chamamos de melodia. São os modos os grandes responsáveis pela
geração da tensão interna que unifica os eventos sonoros no tempo – como nos diz
Santo Agostinho. A tensão interna que puxa uma nota na direção da outra,
criando redes de relações entre elas, formando um verdadeiro sistema de forças –
notas imantadas por pólos de atração, “apontando” para determinada direção.
Sistema que, por sua vez, indica uma tendência, fazendo com que a tônica seja
associada a uma ideia de estabilidade e repouso e que a sensível suscite um forte
sentimento de desconforto de uma nota de transição que puxa para outra. Isso nos
remete diretamente ao qualia dos graus da escala. Ao espinhento e velho
problema de uma semântica dos intervalos musicais.65 A um certo caráter próprio
de que são investidos os sons quando postos no contexto de um sistema musical.
E esse caráter, se por um lado ancora-se no plano da experiência cultural,
por outro também está intimamente vinculado a processos perceptivos que, de
certo modo, possibilitam que os sons adquiram significados musicais. A esse
respeito, o primeiro ponto a ser considerado é que as representações mentais
parecem favorecer relações de vizinhança sobre relações de distância. Tal
preferência segue um princípio de escolhas que tendam a simplificar o trabalho de
apreensão mental, reduzir a dose de esforço exigido. Relações de vizinhança são
mais adequadas porque permitem ao cérebro reduzir o tamanho da memória
temporal. É mais fácil guardar dois eventos sucessivos na memória de curto-termo
do que eventos que estão mais distanciados temporalmente. Numa linha de
estados consecutivos A,B,C,D... será mais fácil reconhecer relações de estados
vizinhos (A e B, ou B e C...) do que de estados distantes (A e D). O que está se
poupando é o trabalho da memória. Um segundo ponto diz respeito a preferência
por representações que tendam a se fixar nos eventos auditivos. Ao ouvir uma
seqüência sonora, tendemos a focar a atenção mais nos sons em si do que na
distância que os separam. Isso não quer dizer que essas distâncias não são
apreendidas, apenas que a representação delas não ocupa lugar destacado no
quadro mental. Há uma tendência para economizar o número de operações
necessárias na hora de decodificar determinado estado. Nossa primeira disposição
65
Ver, nesse sentido, José Miguel Wisnik, O Som e o Sentido, p.64-65.
59
direciona-se, portanto, aos eventos sonoros. Somos especialmente sensíveis ao
começo dos estímulos – no caso da música, ao ataque das notas.66
Isso decorre de uma importante função mental, que no campo da percepção
os estudiosos denominam de perceptual binding. Quando percebemos um objeto,
diferentes partes do cérebro participam no cálculo das diversas propriedades do
objeto. No caso da visão, a cor é processada separadamente da forma, e o próprio
reconhecimento do objeto (acionado através da memória semântica) se dá em
outra instância cerebral. No entanto, quando vemos uma cadeira, a experiência
fenomênica é unificada: forma, cor, nome, e todas as outras propriedades aderem
a um único objeto. Algo similar acontece com a audição. Quando ouvimos um
som, altura e timbre não são experimentados como coisas separadas. O som nos
vem inteiro. Propriedades como intensidade, altura, localização e timbre formam
um único evento-objeto. O cérebro junto tudo num pacote único, integrado.
Decorre disso um efeito interessante na percepção dos intervalos melódicos: eles
não são percebidos como algo que substitui as duas notas, que ocupa o espaço
entre dois sons separados, mas, justamente, como uma qualidade que, numa
sequencia temporal, adere ao segundo estímulo. Tendemos a pensar o intervalo
como a relação entre duas notas. Mas talvez ele fosse melhor descrito como um
modo distinto de abordar uma única nota. Ou seja, a qualidade do que definimos
como intervalo melódico é antes uma propriedade que adere à segunda nota. É o
modo como a segunda nota se projeta trazendo em si a marca da primeira. É nesse
contexto que a percepção do presente tende a trazer incorporada em si uma
qualidade do passado.
Tal dinâmica perceptiva seria o substrato comum que de certo modo
possibilita a formação dos diversos schemas melódicos que são as escalas próprias
de cada cultura. O próprio fato de que um ouvinte pode considerar uma mesma
frequência sonora como servindo a diferentes funções tonais (pode ser a
dominante numa música e sensível na outra) já é indicativo de que os graus da
escala são um fenômeno cognitivo, e não puramente perceptual. É o modo como a
mente interpreta sons que existem fisicamente, e não como esses sons estão no
mundo. Isso só é possível através da incrível sensibilidade da mente para os
diferentes contextos. Os cérebros respondem de forma maravilhosamente
66
Ver Daniel Levitin, op.cit.., p.53-54.
60
contextual. No Ocidente, a linguagem tonal representa um princípio
organizacional profundo, capaz de modelar uma vasta gama de detalhes musicais.
Trata-se de um schema psicológico incorporado aos cérebros através de repetidas
exposições a determinado desenhos sonoros. Os traços da escuta de obras
individuais somando-se na mente para formar as bases de um modelo de predição.
O guarda-chuva no qual abrigam-se quase todos os demais schemas menores que
dizem respeito aos estilos específicos. Ouvintes que se formaram nessa tradição
tendem a experimentar qualias semelhantes em seus traços gerais.
De todo modo, sejam de boa ou má qualidade, impressiona a facilidade com
que certas melodias conseguem marcar nossa memória. Como conseguem
prontamente captar a nossa atenção e ganhar uma ressonância interna específica,
movimentando o campo associativo de cada pessoa. Não me parece um simples
acaso o fato de que, na hora de descrever os memes, nos anos 1970, Richard
Dawkins tenha escolhido como um dos principais exemplos justamente a
transmissão de trechos melódicos. Ele começa sua elaboração da ideia dos memes
citando o trabalho de P.F.Jenkins sobre o canto de um pássaro que habita as ilhas
da Nova Zelândia. Numa determinada ilha, os pássaros possuíam nove “canções”
diferentes, e cada macho cantava apenas uma ou algumas delas. Dividiam-se,
desse modo, em grupos de dialetos – grupos com territórios vizinhos podiam
dividir o mesmo dialeto, emitindo canções iguais. A descoberta de Jenkins, relata
Dawkins, foi a de que os padrões melódicos não eram herdados geneticamente,
mas transmitidos, aprendidos de pai para filho: “Cada jovem macho
provavelmente adotava, por imitação, canções de aves dos territórios vizinhos, de
forma análoga ao que se passa com a linguagem humana. Durante a maior parte
do tempo em que Jerkins permaneceu lá, havia um número limitado de canções na
ilha, uma espécie de ‘pool de canções’, do qual cada jovem macho extraía o seu
pequeno repertório. Mas, ocasionalmente, Jenkins tinha o privilégio de
testemunhar a ‘invenção’ de uma canção nova, que ocorria através de um erro de
imitação de uma canção antiga”.67 Ou seja, tal como acontece no caso dos genes, a
transmissão cultural seria essencialmente conservadora, mas sujeita a “acidentes”
(imitações erradas) que poderiam dar origem a uma forma de “evolução”. O
interessante na ideia dos memes é que ela traz para as áreas mais insuspeitadas o
67
Cf. Richard Dawkins, O Gene Egoísta, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.326.
61
filtro de um “processo de seleção”: “Trata-se da lei segundo a qual toda a vida
evolui pela sobrevivência diferencial das entidades replicadoras. O gene, a
molécula de DNA, é por acaso a entidade replicadora mais comum no nosso
planeta. Pode ser que existam outras. Se existirem, desde que algumas condições
sejam satisfeitas, elas tenderão, quase inevitavelmente, a tornar-se a base de um
processo evolutivo”.68
Da vontade de aplicar o esquema do “darwinismo universal” ao campo da
cultura veio o conceito do meme, que seria, justamente, a unidade cultural de
replicação, variação e seleção. Falar de um “darwinismo universal”, termo
também cunhado pelo próprio Richard Dawkins, significa dizer que os princípios
darwinianos da evolução biológica (que podem ser resumidos a grosso modo na
equação: Evolução = replicação + variação + seleção + isolamento de populações)
são válidos para todos os processos evolucionários, quaisquer que sejam suas
particularidades. Ainda que muitas peças não tenham encontrado seu lugar
apropriado (pode ser que jamais sejam encontrados) para a nossa compreensão, o
grande quebra-cabeças, ou mosaico da evolução seria, de acordo com essa
moldura teórica, regido pelas mesmas leis. Sendo assim, tudo deve encontrar uma
justificativa na longínqua história evolutiva – em seu lento processo de
transformação e acumulação. Inclusive a linguagem e a música. Duas
manifestações que operam sobre uma base biológica comum a toda a espécie, mas
que ainda assim constituem artefatos culturais que estão continuamente se
modificando.69
Sendo assim, os memes seriam replicadores culturais, de um modo parecido
como os genes são replicadores de DNA. Algo capaz de evoluir, mas por meio
não genéticos. Podemos descrevê-los como uma espécie de unidade de
informação que passa de um cérebro para outro durante o processo de transmissão
cultural. Se tomarmos as culturas como sendo sistemas de fenômenos conceituais
simbolicamente codificados, transmitidos social e historicamente através dos seres
humanos, percebemos que, no caso de nossa espécie, à via da herança biológica,
genética, veio a somar-se uma outra: a da herança cultural. Um sistema duplo de
transmissão e transformação de informação: genético e cultural. Este último, por
68
Cf. Idem, Ibidem, p.329. 69
A música não se constitui como realidade unificada e homogênea. Por isso sua própria definição
torna-se um tanto vaga – “música” é um termo genérico que abarca práticas muito distintas. Em
muitas culturas sequer existe uma palavra específica para designar o que entendemos por tal.
62
sua vez, distinto e parcialmente independente do sistema de herança genética, mas
também ele sujeito à lei da perpétua transformação que pautou a evolução
biológica. A diferença é que enquanto a evolução biológica é essencialmente
darwiniana, ou seja, nela não há transmissão de características adquiridas ao longo
da vida, a evolução cultural parece ser bastante lamarckiana, no sentido de que
informações adquiridas a cada geração podem ser transmitidas na íntegra para a
geração seguinte. Se assim quisermos, podemos dizer que, com a emergência da
cultura, Lamarck sobrepôs-se a Darwin no percurso evolutivo do homo sapiens. É
preciso, contudo, notar que os dois mecanismos de seleção, conservação e
transmissão das informações (biológicas e culturais) funcionam de modo bastante
distinto. As mutações responsáveis pela introdução de variações no genótipo e
que tornaram a evolução possível, são frutos do acaso. Do tortuoso e imemorial
percurso feito de erros e acertos com que os organismos foram tornando-se cada
vez mais adaptados ao meio. Um percurso que, enquanto houver vida na Terra,
jamais chegará ao seu fim. Não há qualquer indicação de direção nesse caminho:
as coisas acontecem ao acaso e são conservadas na medida em que ajustam-se ao
interesse da preservação dos organismos. Na medida em que oferecem alguma
vantagem adaptativa. A evolução deve ser olhada não como um movimento
ordenado, orientado em determinado sentido, mas como um grande bricolage. De
modo bastante diferente, conquanto a variação cultural também seja pautada por
forças erráticas, muitas vezes ela acontece de maneira direcionada. Ciência e
tecnologia são dois bons exemplos de evolução direcionada, uma vez que o
desenvolvimento de ambas se deu pela busca de soluções cada vez mais
satisfatórias a determinados problemas – soluções que eram verificadas através do
modelo de tentativa e erro.
Voltando aos memes de Dawkins, é preciso lembrar que foi o próprio
Darwin quem primeiro tentou estender o princípio do darwinismo universal para o
fenômeno cultural, na tentativa de explicar o processo de transformação das
línguas como algo que ocorria de forma análoga à evolução das espécies vivas.70
Mas com uma grande diferença: a de velocidade. Foram-se mais de dois milhões
70
A tentativa se deu numa significativa passagem de The Descent of Man, and Selection in
Relation to Sex (1874), na qual ele sugeriu que a formação e transformação das línguas ocorria de
forma análoga à evolução das espécies vivas: “The formation of different languages ando f distinct
species, and the proofs that both have been developed through a gradual process, are curiously
parallel”.(Apud., Nils L. Wallin, Björn Merker, Steven Brown, op. Cit., p. 166)
63
de anos desde o aparecimento da primeira espécie da linhagem homo. A julgar
pelos vestígios arqueológicos, somente de aproximadamente setenta mil anos para
cá os homo sapiens modernos – oriundos da linhagem homo - começaram a dar
mostras de comportamento simbólico – códigos marcados em pedras, pinturas
rupestres, vestígios de ritos religiosos e de instrumentos musicais. Foram
necessários centenas de milhares de anos (milhões) para que a espécie
conseguisse desenvolver uma linguagem composicional, que podia ser
subdividida e rearticulada em infinitos significados novos, imaginados.
No entanto, uma vez que esse tipo de linguagem foi criado, a história da
transformação humana entrou no domínio de outro tipo de temporalidade. Assim
que findou a última Era do Gelo, há dez mil anos atrás, a agricultura foi inventada
em diferentes partes ao redor do globo. Surgiram as primeiras cidades e
civilizações. Novas técnicas de adaptação ao meio. Houve uma profunda mudança
no modo de vida dos seres humanos, que reflete a emergência de uma nova
temporalidade. Temporalidade regida pela rapidez da transmissão cultural. Porque
os memes são muito mais velozes do que os replicadores genéticos. Do ponto de
vista genético, os portugueses que desembarcaram no Brasil, e também os índios
que aqui se encontravam, são idênticos a nós. Mas a cultura que traziam e mesmo
a língua que falavam já está bastante distante da nossa. A cultura pode, e muitas
vezes muda, numa velocidade estonteante, se comparada à da mudança genética.
Para Dawkins somente será possível entender a evolução do homem
moderno no momento em que for abandonada a ideia do gene como base única
para o nosso pensamento evolutivo. Seu argumento é de que desde a sopa
primordial, quando surgiram as condições necessárias para o surgimento das
primeiras moléculas que podiam fazer cópias de si mesmas, que os próprios
replicadores passaram a conduzir o processo. Por mais de 3 bilhões de anos o
DNA liderou solitariamente esse processo. Mas no momento em que, por seleção
de genes, a evolução antiga produziu os cérebros, “ela forneceu o ‘caldo’ em que
se originaram os primeiros memes”. Os memes que não se replicam, simplesmente
ficam para trás, são esquecidos, descartados. Como no caso dos genes, há um pool
de memes, no qual somente os mais bem-sucedidos são capazes de sobreviver e
perpetuar-se no tempo. São três as qualidades que determinam um elevado grau
de sobrevivência para esses replicadores: longevidade, fecundidade e fidelidade
da cópia. E, talvez não à toa, utiliza como exemplo nada menos do que uma
64
melodia popular: “Se o meme for uma melodia popular, a sua difusão no pool de
memes pode ser medida pelo número de pessoas que a assobiam pelas ruas”.71 Os
memes possuem uma estranha capacidade de entranhar-se na memória. Tratam-se
de sistemas interrelacionais nos quais torna-se mesmo difícil especular qual seria
a mínima parte. Se uma única frase melódica é suficientemente marcante e
memorável, então ela poderá ser definida como um meme, que existe dentro de
uma peça musical maior. Talvez esses módulos sejam definidos pela própria
dinâmica e capacidade de armazenamento da memória. A pequena frase de
Vienteuil é um meme musical que faz parte do conjunto maior da sinfonia à qual
pertence.
Deve vir daí parte da satisfação sentida por compositores que escutam
inadvertidamente suas músicas assoviadas por estranhos: não tanto o sucesso
pessoal, mas a sensação de se ter criado um objeto poderoso, capaz de se propagar
fisicamente nos corpos, como uma espécie de epidemia. Um quadro está na
parede. Pode ser leiloado, mas jamais será plenamente possuído. Ele sempre
existirá fora. Uma melodia só existe se for possuída. Só existe realmente ao ser
incorporada. Só existe dentro. A satisfação do criador, nesse caso, está em ver que
sua criação foi absorvida, que já faz parte do outro. Para conseguir tal façanha, ela
teve que de algum modo chamar a atenção para si; se destacar e ser escolhida (por
inúmeros possíveis motivos) dentre um conjunto de outras melodias. Conjunto
que não para de crescer. Compositores de melodias, e todo compositor de canção
o é em certa medida, não desejam tanto prêmios ou matérias de jornal. Desejam,
antes de mais nada, que suas músicas sejam cantadas. Tendem a tornar-se figuras
um pouco melancólicas quando isso não acontece. Sabem que o implacável
esquecimento os espreita.
Imagino o cenário que se estabeleceu com a difusão da rádio no Brasil, nas
primeiras décadas do século XX. A música tornando-se objeto de consumo,
destacando-se do anonimato da tradição pré-urbana para ganhar a marca da
autoria, para ganhar um valor de venda. A demanda constante por novas canções
alimentando um sistema produtivo azeitado, precocemente profissionalizado
dentro do quadro geral brasileiro, incentivando cada vez mais os compositores.
Com a profissionalização, cresce também a concorrência. As canções lutam por
71
Cf. Richard Dawkins, O Gene Egoísta, op.cit.., p. 333.
65
espaço nas rádios. Começam a ser premiados os êxitos individuais. Estilos de
extração rural e sem assinatura, como o samba, muitas vezes formados por
sucessivas camadas de improvisos coletivos, cristalizam sua forma antes aberta
em registros de pauta e também em registros sonoros. O memes melódicos já não
contam apenas com a memória biológica – podem agora ampliar seu alcance e
longevidade com a “memória exterior” que os novos registros técnicos do som
propiciaram. Nesse momento, a forma da canção popular torna-se mais definida e
fechada. As melodias que antes eram criadas por puro e descompromissado
prazer, passam a valer dinheiro.
Cria-se, portanto, um contexto que favorece cada vez mais o talento
individual, a capacidade que um artista tem em singularizar-se, em destacar-se dos
demais impondo seu estilo próprio. Um contexto que, de certo modo, incentiva a
diferença. Há um aspecto de crescente competição artística que certamente
influenciou os destinos da nascente música popular brasileira.72 O rádio, nas
palavras de Antonio Risério, tornou-se “o tambor tribal”. Ampliou muito o
alcance das melodias. A própria linguagem da canção vai sendo forjada,
construída, em constante contato com o ouvinte, testada passo a passo. Numa
visita ao Rio de Janeiro em 1939, auge da famosa Era do Rádio, Mário de
Andrade observava que “as pessoas do povo escutavam com uma verdadeira
religiosidade as músicas novas”, e que “não há casa de música, ou rádio de porta
comercial que não tenha sempre uma notável aglomeração de povo”. Na mesma
crônica, o musicólogo ensaia uma singela interpretação sobre o motivo de
tamanha devoção do povo carioca às canções de rádio: “E agora sei bem, nem é
tanto o prazer da música que as prende, quanto a necessidade quase vital para elas,
de decorar os textos novos”.73 A nascente canção urbana acertava em cheio no
veio da tradição oral brasileira. A canção brasileira, tal como a conhecemos,
surgiu no despontar do século XX atendendo aos anseios de uma população que
se caracterizou por desenvolver práticas ágrafas. Atuando no seio de um povo
72
O historiador da arte Ernst Gombrich chama a atenção para o fato de que não se deve deixar
muito de lado as forças que movem e incentivam a produção artística em determinado período
histórico: « Je ne citerais pas ces témoignages si je n’étais pas persuadé de l’intérêt de cette
explication sociologique de l’excellence artistique. Ce qui en ressort de manière implicite, c’est
surtout l’importance d’un public critique, d’un public de connaisseurs doués de discernement et
dont les exigences obligent l’artiste à se surpasser. En effet, quand on parle de tradition, il ne faut
pas oublier le rôle du consommateur, du patron ou du client, élément important de l’équation ».
(Cf. Didier Eribon, Ce Que L’Image Nous Dit – Entretien avec Ernst Gombrich, p.364) 73
Cf. Mário de Andrade, Música, Doce Música, São Paulo/Brasília, Martins/INL, 1972, p.280.
66
eminentemente iletrado, ela fisgava ouvintes não apenas pelo texto, tampouco
apenas pela música, mas pela junção dos dois no organismo autosuficiente da
palavra cantada. A canção urbana inventava-se como linguagem, utilizando-se
espontaneamente de todo o arcabouço da tradição folclórica e rural, assim como
das influências que o próprio cenário urbano oferecia. As experimentações que
alimentaram o processo de formação e consolidação dessa música de rádio e
disco, escaparam de qualquer controle ideológico, e que tampouco se avistou,
como seria desejável, uma maior presença da cultura erudita européia no jogo
criativo. Parece que o fator mais importante, o critério de maior peso nesse
processo, foi o poder de fascínio das canções.
Seguindo a concepção dos memes e os exemplos musicais propostos por
Dawkins, assim como as observações de Mário de Andrade, somos levados a
perceber o imenso potencial de contágio da melodia cantada, associada a palavra,
e sua enorme eficiência enquanto meio de transmissão cultural. No fluxo dessas
ideias podemos também imaginar uma espécie de “darwinismo melódico”. Somos
diariamente submetidos a um grande número de melodias. Onde quer que
estejamos, há um fundo musical. Ligamos o rádio do carro e somos
bombardeados de canções. Nos intervalos dos programas de televisão, trechos de
músicas acompanham os comerciais. Se saímos à noite, melodias estão presentes
em quase todos os lugares. Ainda que de modo não-consciente pode-se ouvir,
num espaço de duas ou três horas, uma verdadeira enxurrada de melodias. Apenas
algumas poucas conseguem verdadeiramente se impor sobre nossa memória. Se,
na reprodução sexuada, a competição dos genes se dá particularmente com os
próprios alelos – que disputam o mesmo lócus no cromossomo - entre os memes a
competição se dá de outro modo. No cérebro humano o que estes parecem
disputar é espaço, e, mais do que tudo, tempo. Porque “o tempo é, possivelmente,
um fator limitante mais importante do que o espaço de armazenamento e é objeto
de forte competição. O cérebro humano e o corpo por ele controlado não podem
fazer mais do que uma ou duas coisas ao mesmo tempo. Se um meme dominar a
atenção de um cérebro humano, tem de fazê-lo à custa de memes ‘rivais’”.74
Se comparado com o número total, podemos dizer que pouquíssimas
melodias ganham algum relevo afetivo junto a nós – pouquíssimas associam-se,
74
Cf. Richard Dawkins, op. Cit., p.337.
67
dentro de nós, a emoções mais profundas e duradouras. A maior parte das
melodias que ouvimos nos toca de modo apenas superficial. Roçam de leve nossa
sensibilidade. Algumas, contudo, atingem o almejado sucesso. São cortejadas por
um público imenso. Cantaroladas por bocas distraídas nas ruas, nos ônibus, nas
filas dos bancos e dentro dos banheiros. Tornam-se trilhas sonoras de narrativas
pessoais. Mas nem por isso conseguem vencer a prova do tempo. Do sucesso ao
esquecimento o caminho pode ser bem curto. “Alguns memes, assim como ocorre
com alguns genes, atingem um sucesso brilhante num prazo muito curto,
espalhando-se rapidamente, mas não têm longa duração no pool de memes”,
esclarece Richard Dawkins.75 A longevidade é, portanto, um fator decisivo para a
sobrevivência deles. Logo são substituídas por novas melodias. Ficam
irremediavelmente associadas ao passado. Passam a valer mais pelo que trazem de
recordação extra-musical do que pelo prazer que ainda são capazes de
proporcionar.
É difícil avaliar o quanto realmente se gosta de uma canção (o quanto ela é
boa) quando ela traz entranhada em seu tecido a lembrança difusa de uma época,
de uma fase da vida, uma viagem, um amor. Muitas boas (e também más) canções
tiveram esse destino. E é possível que seja um dos destinos mais nobres a que
pode aspirar uma canção. Vivem num limbo, de onde são eventualmente retiradas
menos para ser fruídas do que para servir de trampolim da memória. Literalmente
matamos a saudade, para depois jogá-la novamente no limbo do esquecimento. O
que acontece então quando uma canção consegue extrapolar essa etiquetas de
época e contexto? Quando torna-se o signo de algo que aparentemente desafia a
própria passagem do tempo? Quando é experimentada com entusiasmo presente
por sucessivas gerações? O que acontece quando uma canção simplesmente não
envelhece? Quando parece tornar-se uma canção (melodia) de todos os tempos?
Seguindo a trilha dessas indagações, talvez seja possível pensar em obras
como Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, no Carinhoso, de Pixinguinha, na
Chega de Saudade e na Garota de Ipanema, de Tom e Vinícius – canções que se
tornaram verdadeiros emblemas sonoros. Que tiveram sua origem temporal
rasuradas por um número sem conta de regravações, e que por alguma qualidade
específica continuam se propagando no tempo e no espaço da memória humana.
75
Cf. Idem, Ibidem, p.333.
68
Um “meme-ideia” é uma espécie de entidade capaz de ser transmitida de um
cérebro a outro. A cultura é composta por inúmeros complexos de memes –
conjuntos com muitas subdivisões. Memes que associam-se e promovem-se
mutuamente, gerando complexos de memes co-adaptados. Ao meme de Deus (um
dos mais bem sucedidos, segundo Dawkins) ligou-se o do diabo, por um motivo
simples: porque os dois se fortalecem mutuamente, favorecendo assim a
sobrevivência um do outro no pool de memes. “A seleção favorece os memes que
exploram o seu ambiente cultural em proveito próprio. Esse ambiente cultural
consiste em outros memes que também são objetos de seleção. O pool de memes,
portanto, passa a ter atributos de um conjunto evolutivo estável que os novos
memes dificilmente conseguem invadir”.76 Desse modo, um culto organizado, com
seu conjunto de crenças, arquitetura, rituais, leis e música específica pode ser
visto como conjunto co-adaptado e estável composto por memes que se
promoveriam mutuamente. Talvez a canção de Ary Barroso (assim com as de
Jobim e Pixinguinha) tenha se associado ao meme-ideia de uma projeção utópica
do Brasil. É quando uma canção (ou um grupo de canções) torna-se capaz de
arrastar em seu tecido sonoro significados individuais e coletivos que vão muito
além de si mesma – quando as canções começam a adentrar o território do mito,
tornando-se mensageiras de algo maior. Quando entranham-se no próprio destino
de uma cultura. Num ensaio já clássico, Lorenzo Mammì escreveu o que muitos
parecem ter sentido, e outros ainda sentem: que “a bossa nova não foi apenas o
produto de um momento feliz da história brasileira. Ela é aquele momento feliz,
sua eternização, e com isso a possibilidade perpétua de retomar os fios
interrompidos. Enquanto linguagem artística, mesmo que esteja ligada a um
processo histórico que fracassou, seu êxito independe daquele fracasso. Nela, a
hipótese não realizada se torna fundamento, ponto de partida de qualquer hipótese
futura”.77
...
Muito do mistério da música vem da qualidade fugidia do objeto sonoro; da
sua quase impossibilidade de conservação perfeita. Como já foi dito, ouvimos
76
Cf. Idem, Ibidem, p.340 77
Cf. Lorenzo Mammì, “João Gilberto e o Projeto Utópico da Bossa Nova”, In. Revista Novos
Estudos (Cebrap), n34, nov. 1992, p.64.
69
também com os ouvidos da memória. E a memória definitivamente não é
confiável. Pois modifica incessantemente o que guarda. O episódio guardado na
lembrança – aquele que, justamente, constitui uma página de sua autobiografia
pessoal, que você narra para si mesmo – e que os estudiosos chamam de memória
episódica, seria modificado a cada acesso.78 Quanto mais vezes acessada, mais ela
é modificada. Triste sina a da memória: quanto mais nela se confia, maior será sua
propensão a mentir; maior o seu potencial de traição. É por isso que, ligando a
evocação ao gosto muito específico de uma madeleine, nas primeiras páginas da
Recherche, Proust consegue fazer uma ponte mais direta e fidedigna com o
passado. E não apenas porque aqui estamos falando de sua teoria do poder único
da memória involuntária – em contraposição com a palidez evocativa da memória
voluntária. Mas porque a memória acessada por Swann no início do livro havia
permanecido praticamente intacta; não fora empobrecida pelo uso; consevava-se
muito próxima ao acontecimento em si; fresca, explodindo em cores e detalhes; e,
por sua vivacidade, capaz de colar o presente ao passado. O sentido que lhe
servira de gatilho, o paladar, passara um longuíssimo tempo sem ser acionado
daquela maneira específica – ativado numa rede associativa tão definida, que
finalmente lhe proporcionou um acesso privilegiado ao “passado”. Novamente
estimulado pelo gosto da madeleine esquecida, desencadeou em todos as direções
imensas teias de lembranças ligadas ao episódio, permitindo que Swann tirasse de
uma xícara de chá “o imenso edifício da lembrança” – como escreveu Beckett. A
memória pode ser comparada a uma grande malha. Os estímulos sensoriais são
combinados e fundidos em único construto perceptual. Há uma força de atração
que os magnetiza. Funcionam, no cérebro, como padrões inteiros, relacionando
simultaneamente diferentes componentes sensoriais. Ainda que distintas
sensações estejam associadas a diferentes áreas do córtex, que muitas vezes
sequer comunicam-se espacialmente, essas áreas são temporalmente ativadas em
conjunto, evocando o padrão inteiro – desfiam assim a rede de associações,
78
Bob Snyder define a memória episódica nos seguintes termos: “A type of long-term memory for
specific events, in a specific time order, and in relation to the self. Episodic memories are
autobiographical, whereas general knowledge, another type of long-term memory, is not. Episodic
memory records events as they happen to us. Because, however, remembering is itself an event,
episodic memories are copied when they are recollected, and the copy replaces the original. This
makes our episodic memories vulnerable to various kinds of transformations and distortions,
especially through their interaction with our semantic memory (conceptual) categories and
schemas. In a piece of music, episodic memories would be of the details of the sound of particular
passages of music and their time order”. (Cf. Bob Snyder, Music and Memory, op.cit.., p.258)
70
recriando inteiramente um determinado construto interno.79 A ressonância
neuronal é capaz de recombina-los em nossas cabeças. Como se fossem
verdadeiros acordes musicais. É desse jeito que um cheiro pode ser capaz de
trazer a lembrança de algum lugar, de alguém, de uma ação ou sentimento, ou de
um momento específico de nossa vida.
O grande inimigo desse tipo de memória, portanto, é o hábito. A mente
irrequieta e excitada volta-se com tanta intensidade sobre eles, que logo suas
linhas nítidas vão sendo borradas, gerando uma visão mais esfumaçada, a
sensação estranha de algo que é, a um só tempo, próximo e distante. Memórias
episódicas são facilmente distorcidas. Transformam-se incessantemente através do
ato de rememorar e também de recontar. Corresponde menos ao evento passado
do que a própria memória de recontar o evento. Ou seja: não há como diferenciar
entre a memória, e a memória dessa memória.80 É ilusão achar que lembramos
“melhor” de coisas que nos marcaram. Lembramos, certamente, mais vezes, mas
não necessariamente com melhor definição e fidedignidade. Nesses casos, mais do
que descrever uma cena realista, a lembrança parece entrar na esfera do mito –
algo suspenso, cujo localização exata já não conseguimos mais precisar. Algo que,
por isso mesmo, parece destacado do fluxo mais ou menos homogêneo de nossas
vivências cotidianas.
A música também articula-se com a memória episódica. É inegável seu
poder rememorativo. Podemos ter, como o narrador de Proust com a madeleine,
uma experiência mais precisa – uma espécie de “experiência em primeiro grau” -,
ao escutarmos, por exemplo, uma canção que nos remete a um acontecimento
específico. Outras vezes, tal música pode apenas nos remeter a uma determinada
época por nós vivenciada, ou a um conjunto mais vago de situações que tornaram-
se unificadas de algum modo (uma viagem, o começo de uma relação amorosa).
Mas também a capacidade que tal peça musical tem de nos remeter a experiências
específicas será inversamente proporcional ao seu grau de presença em nossa
vida. Quanto mais esquecida for determinada peça musical, maior será o seu
potencial de evocação ao ser novamente atualizada para os nossos sentidos.
79
O neuroscientista António Damásio escreveu que “o fato de que percebemos mediante uma
interação, e não com uma receptividade passiva, é o segredo do “efeito proustiano” na memória, a
razão pela qual frequentemente recordamos contextos e não coisas isoladas”.(Cf. António
Damásio, E o Cérebro Criou o Homem, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p.170) 80
Ver, nesse sentido, David Huron, op.cit.., p.221.
71
Se a memória modifica o que guarda, a pergunta óbvia será: o que acontece
com a melodia que habita a memória? Leonard Meyer tentou responder a isso
tomando como base alguns princípios da gestalt, principalmente o axioma
fundamental que é a lei de Prägnanz. Segundo essa lei, a organização psicológica
sempre vai tender para as condições mais favoráveis possíveis, condições que
abarcam propriedades como regularidade, simetria e simplicidade.81 Ou seja, a
mente busca armazenar informações do modo mais confortável possível.
Confortável para ela. No sentido de que se acomodem do melhor modo possível
dentro de estruturas ideais, que formam uma espécie de molde perceptivo que a
mente utiliza para apreender eventos externos. Essas estruturas são os schemas
aos quais já nos referimos, aprendidos intuitivamente através da exposição
contínua a determinada linguagem musical, e que formam a base para uma
percepção qualificada dos estilos musicais. É quando o ouvinte aprende as regras
de determinado jogo musical e se torna apto a avalia-lo sob uma perspectiva mais
apurada, podemos mesmo dizer, de maior competência. O termo competência,
nesse sentido, está intimamente associado a maior capacidade de fazer previsões
sobre a sucessão musical – de prever com mais acuidade o desenho do movimento
musical. Desse modo, os schemas não são apenas molduras para a percepção, mas
oferecem também um modelo de armazenamento das melodias na memória.
Esses schemas são formados através da propensão mental em apreender
padrões de regularidade daquilo que os sentidos captam a partir de suas próprias
características perceptuais, dentro dos seus limites fisiológicos, e a partir disso
criar um modelo ideal. Quanto mais próximos desse modelo, mais confortáveis se
tornam os objetos/eventos pela mente percebidos. Daí a lei de Prägnanz. Meyer
argumenta que a presença de tais leis (ou tendências) não necessariamente quer
dizer que a organização psicológica de determinado objeto será satisfatória. Há
mesmo um efeito negativo na adequação perfeita: o objeto demasiadamente
encaixado, cômodo, tende a causar sobre a mente um efeito de relativa
indiferença, algo semelhante ao tédio. Mentes precisam e gostam, sentem prazer
em ser desafiadas. O objeto que não oferece qualquer risco, que apresenta-se
apenas como a confirmação de relações já internalizadas, de encadeamentos ultra
previsíveis, não são capazes de excitar os sentidos. Pois seria justamente essa falta
81
Ver Leonard B. Meyer, Emotion and Meaning in Music, p.89-90.
72
de satisfação com a organização psicológica a responsável pelo surgimento
daquilo que Meyer chama de “modos naturais de expectativa”. Porque a mente
constantemente trabalha no sentido da completude e estabilidade das formas. A
tendência de agir na direção da regularidade e da simplicidade na organização das
formas seria comprovada, entre outros possíveis exemplos, pelo fato de que,
quando deixado sem estímulos, próximo a um estado de independência do tempo,
um sistema tenderia a perder assimetrias e tornar-se mais regular. Desse modo,
quando a mente opera por conta própria - como ao relembrar padrões e tipos de
organização - ela tenderia a remodelar as formas no sentido de uma adequação
maior a esses princípios. Quando aplicada aos processos da memória, a lei
Prägnanz age no sentido de completar o que se apresenta incompleto, regularizar
o que se apresenta irregular, e assim por diante. Isso equivale a dizer que, de
modo geral, tendemos a lembrar das melodias como sendo mais simples do que
elas efetivamente são. Diversas vezes pude observar, no contexto informal e
amador das rodas de violão, geralmente enquanto eu próprio tocava, que as
pessoas tendem a simplificar as melodias, suprimindo delas, justamente, as partes
mais instáveis, os ditos acidentes – notas que não pertencem à escala tonal –
substituindo esses acidentes por notas menos tensas, mais confortáveis. Isso torna-
se tão mais patente quando são as canções de Tom Jobim que estão em jogo.
Porque nelas esses desvios dos modos naturais é que parecem ter se tornado a
própria norma, uma espécie de marca registrado do estilo.
São inúmeras as anedotas sobre as dificuldades sofridas pelos cantores que
atuavam no fim dos anos 1950, quando surgia a Bossa Nova, na hora de cantar
canções como Desafinado – composta por Tom e Newton Mendonça.82
Colocando à parte os profissionais, as coisas parecem não ter mudado muito:
embora seja uma canção bastante conhecida, são raras as pessoas que conseguem
cantar com justeza a sinuosa frase melódica já do primeiro verso. Nas duas
passagens pelo dó sustenido (que na letra corresponde às sílabas sublinhadas do
“se você disser que eu desafino amor), o quinto grau aumentado da tonalidade da
canção (originalmente em Fá maior), costuma ser arredondado. Na primeira vez,
segue o efeito de continuidade da direção melódica e desce para o Dó natural,
como se estivesse embalado pelo movimento geral do fluxo da melodia. Da
82
Algumas delas são narradas no livro de Ruy Castro, Chega de Saudade: A História e as
Histórias da Bossa Nova. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p.201-202.
73
segunda vez, contudo, o Dó sustenido costuma ser arredondado para cima,
tornando-se Ré. Nesse caso, como há uma inversão do sentido do movimento
melódico (depois de subir durante o “que eu desafino”, a melodia desce na palavra
“amor”), a simplificação parece ocorrer no sentido não da direção, mas da
proximidade. Ou seja, o Dó sustenido desliza para a nota contígua que esteja mais
próxima à nota anteriormente tocada – no caso, a tônica em Fá. Desliza para o Ré.
É preciso notar que há um peso considerável nesses acidentes que ocorrem logo
no primeiro verso. Não podemos considerá-las simples notas de passagem.
Primeiro, porque possuem considerável valor temporal – duram o bastante para
serem percebidos como pontos autônomos de apoio da melodia, e não como
efêmeros instantes de transição. Segundo, porque são nas duas vezes articuladas
em posições métricas pouco prováveis, no pulso fraco do compasso, e na forma de
uma pequena síncope interna. O resultado é que as notas tendem a aparecer muito
mais do que apareceriam caso seguissem os padrões mais tradicionais das notas de
passagem, ou de eventuais floreios cromáticos. Isso sem falar que o Dó sustenido,
que dá o veneno da melodia, é atacado duas vezes sobre a palavra “amor”, que
situa-se justamente no fim da primeira frase melódica. Ou seja, no ponto para o
qual tradicionalmente dirigimos com mais força a nossa atenção – para o fim dos
períodos musicais. E é natural que seja assim (“isso é Bossa Nova, isso é muito
natural”).83
Pois Desafinado foi composta por causa dessas notas. Para que elas
aparecessem. No seu livro sobre a Bossa Nova, Ruy Castro narra a cena em que
Tom e Newton compõem juntos ao piano, entre intermitentes ataques de riso, essa
canção que, na sua origem, antes de tomar muitos ares de elegância nas versões de
Frank Sinatra e Ella Fitzgerald (Off-key), bem antes de alçar voo para o mundo,
parece ter sido uma sofisticada anedota musical, maldosamente dirigida aos
cantores da noite. E que assim, ao espelhar na “dificuldade” melódica o conteúdo
da própria letra (o de um cantor desafinado que, mais do que justificar a sua
deficiência diante da mulher amada, consegue transformá-la em ferramenta de
sedução, em charme), fazendo com que ambas se comentassem mutuamente,
criou uma relação de isomorfismo entre as duas. No plano da composição de
canções, da articulação do seu centro nevrálgico, a interação de melodia e letra, a
83
Sobre o modo como a atenção é naturalmente direcionada para as bordas (início e fim) da frase
melódica ver Bob Snyder, op.cit.., p.135-159.
74
música de Tom e Newton representa (talvez junto com o Samba de Uma Nota Só,
de autoria da mesma dupla de compositores) um momento alto de tomada de
consciência das potencialidades da linguagem.84 Nesse sentido, Desafinado talvez
seja mais reveladora da maturidade alcançada pela canção no Brasil do que Chega
de Saudade. Para uma canção com o seu grau de complexidade musical, é mesmo
espantoso que tenha se tornado tão popular. Fez uma carreira extremamente bem
sucedida no universo jazzístico, frequentando as paradas americanas de sucesso
no saxofone de Stan Getz, tornando-se um standard mundialmente conhecido. No
Brasil, muita gente a conhece, sobretudo os versos iniciais – embora tenda a
cantá-la de modo bem mais adoçado, retirando as malícias de seus sustenidos e
com isso boa parte de sua ironia, aproximando-a de um romantismo mais singelo,
menos ácido, com menor grau de ironia. Mas, aqui, não me parece que tenha
conseguido alcançar a popularidade de Chega de Saudade. Não se trata de um
dado que possa ser objetivamente comprovado, mas tão somente de uma
observação pessoal. O fato é que quando Chega de Saudade é tocada num
ambiente coletivo (de classe média carioca, diga-se, o mesmo que deu origem à
Bossa Nova), parece uma resposta emocional mais efusiva da parte de todos os
presentes, do que acontece no caso de Desafinado. As pessoas são mais arrastadas
pela música. E talvez isso não seja apenas causado por uma possível maior
exposição à determinada música.
A letra na ponta da língua (a impressão que dá é de que, no nicho social da
classe média carioca, todo mundo sabe cantar Chega de Saudade, com exceção da
parte final da letra, com aquelas variações confusas – “pra deixar desse negócio”,
“não quero mais esse negócio”, “vamos deixar desse negócio” –, que o próprio
Caetano Veloso deixaria de lado na sua versão ao vivo), cantando em uníssono, as
pessoas são automaticamente engajadas num ritual: a canção parece levar o
acontecimento musical para algum lugar diferenciado. Diante disso, Desafinado
soa “apenas” como uma excelente (genial) canção que é muito conhecida por
todos. Mas sem o poder encantatório de Chega de Saudade. Por outro lado,
84
Considero a existência de dois modelos melódicos básicos na obra de Tom Jobim em seu
período bossanovista: o primeiro, de uma melodia que “caminha” apoiando-se preferencialmente
em notas ditas “acidentes” – notas que estão fora da escala diatônica própria a tonalidade da
canção. “Desafinado” seria uma espécie de arquétipo dessa tendência composicional. O segundo
modelo seria caracterizado por um movimento melódico mínimo (ou mesmo por uma melodia
estática). “Samba de Uma Nota Só” constituiria o arquétipo dessa família melódica. Vale notar que
os dois modelos apóiam-se sobre um uso muito sofisticado do apoio harmônico, sendo este em boa
parte oriundo da bagagem erudita de Jobim – na qual desponta o nome de Claude Debussy.
75
quando tocava para amigos estrangeiros, no período em que morei na França,
sentia que Desafinado era melhor aceita - e muito por conta do simples fato de
que era mais conhecida, familiar. Sempre me coloquei essa pergunta: por que será
que Desafinado foi tão mais bem sucedida como standard internacional do que
Chega de Saudade? E, inversamente, por que será que Chega de Saudade parece
ter impregnado com mais força nossa memória coletiva, tornando-se um símbolo
musical mais forte do que Desafinado? É óbvio que existe um importante
componente histórico nisso, pois muito da aura da primeira foi uma decorrência
do fato de ter sido o marco inaugural de um novo período na música popular feita
no Brasil. Mas, ao mesmo tempo, talvez existam motivos que dizem respeito aos
distintos efeitos provocados pelas canções. Parece que Desafinado já é
perfeitamente moderna, no sentido de que já pertence inteiramente ao tempo que
ela própria anuncia naquele momento. Através da malícia leve de sua letra, de um
certo charme descolado e sofisticado da complexa melodia, da atmosfera algo
jazzística dos seus acordes, de seus jogos de metalinguagem, e da presença de
signos internacionais como a avançada máquina rolley flex, o que se revela é uma
canção perfeitamente cosmopolita. Tomou partido da novidade, do futuro, e
anunciou: “isso é Bossa Nova”! Desafinado já nasceu viajando o mundo, tirando
fotos – uma canção-turista. Tenho a impressão de que Chega de Saudade nunca
saiu do Brasil. Parece que um certo “substrato arcaico” jamais a deixou libertar-se
inteiramente do passado. Que ela permanece estacionada na esquina da história
(para usar o termo com o qual Tom Zé descreveu a revolução representada por
João Gilberto), suspensa em eterna indefinição. Nela, o eu lírico não fala
diretamente a sua amada. Expõe de cara a sua tristeza e pede que esta vá até ela(a
mulher amada), e que então diga que “sem ela não pode ser”. Depois, alegra-se (a
música modula de Ré menor para Ré maior), e, sonhador, imagina o momento em
que “se ela voltar, que coisa boa”. Ou seja: está parado, fixo. As coisas vêm e vão,
mas ele continua estático. Para trazer de volta o seu amor, dispõe de armas bem
menos sofisticadas do que a rolley flex: preces, antigas promessas de beijinhos e
carinhos sem ter fim. Nenhuma malícia.
A melodia construída em cima de intervalos de terça, com forte influência
de Villa-Lobos,85
e que Tom decidiu fazer após ouvir a faxineira de sua mãe
85
Ver, nesse sentido, Lorenzo Mammì, “Canção do Exílio”, In. Três Canções de Jobim, São
Paulo, Cosac Naify, 2004.
76
assoviar uma longo melodia de choro. Compôs ao violão, em três partes, e passou
a bola para o poeta e diplomata Vinícius de Moraes. Uma vez pronta, a música
ficou mais de um ano na gaveta. Somente quando João Gilberto reapareceu, em
1957, depois de um retiro de dois anos fora do Rio de Janeiro, trazendo consigo a
famosa batida e seu inconfundível estilo interpretativo, é que ela finalmente
nasceu. No fundo, era uma composição à três. As inovações que a versão gravada
por João Gilberto trazia, e que fizeram tantas pessoas ficarem chocadas, davam-se
no contexto de elos muito nítidos com a tradição – com índices claros que
remetiam ao antigo choro carioca. Pode ser que parte do impacto emotivo
exercido por Chega de Saudade venha justamente da capacidade de encenar
simbolicamente, nas inúmeras camadas que compõem a sua forma, a ambiguidade
de fundo que marcou boa parte da auto-reflexão brasileira no século XX.
Ambiguidade que pode ser sumariamente resumida no paradoxo que Fernando
Novais definiu como centro estrutural do pensamento de Sérgio Buarque de
Hollanda a respeito do modo de inserção do Brasil na modernidade: “se o Brasil
permanece Brasil não se moderniza, se se moderniza deixa de ser Brasil”.86
Em
Chega de Saudade essa ambiguidade de fundo é transformada em tensão que dá
vitalidade ao movimento sonoro e faz despertar uma pletora de sentimentos
complexos no ouvinte: tristezas e esperanças, saudades do passado e vontade de
futuro. O caráter indefinido, algo nebuloso desse verdadeiro monumento sonoro
do Brasil do século XX seria ressaltado por Caetano Veloso nos seguintes termos:
(...) o título e a letra sugeriam uma rejeição/reinvenção da saudade, essa palavra
que é um lugar-comum na lírica luso-brasileira e um emblema da língua
portuguesa, pois, além de ser um acidente etimológico inexplicado, cobre um
campo semântico revelador de algo peculiar em nosso modo de ser. Uma
luxuriante composição cheia de lugares-comuns incomuns (...) e de novidades que
soavam como atavismos – ou experimentações que pareciam lembranças (....). Ela
era o regime geral da bossa nova, o mapa, o roteiro, a constituição.87
Acima de tudo, por seu caráter histórico, sua capacidade de encantamento,
sua presença difundida, seu grau de incorporação, e talvez por muitos outros
motivos, ela se associou, se fundiu, ainda que de modo um tanto misterioso, e
talvez vagamente identificável, em algo mais amplo e totalizante: na ideia
86
Cf. Apud., José Miguel Wisnik, Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil, São Paulo, Companhia
das Letras, 2008, p.418. 87
Cf. Caetano Veloso, op.cit.., p.222.
77
longamente acalentada de uma utopia brasileira. Nesse sentido, é possível que ela
fale com mais força aos brasileiros do que aos estrangeiros.
De todo o modo, é possível que parte do poder de permanência de Chega de
Saudade e também de Desafinado – e de muitas das canções de Jobim, em geral –
esteja ligado, justamente, a essas notas mais escapadiças que a memória tende a
arredondar. Porque seriam elas capazes de preservar algo de surpreendente em
canções que já foram muitas vezes ouvidas. Pois uma vez que a forma da
memória age sobre elas no sentido da simplificação, ao escutá-las novamente
somos surpreendidos pelas zonas de complexidade, de cuja existência sequer nos
recordávamos. Mesmo que Desafinado seja uma música bastante difundida e
incorporada ao repertório comum de muita gente, seus Dós sustenidos continuam
a causar espanto. Ou seja, a canção foi armazenada em suas linhas gerais, mas
seus detalhes desviantes continuam soando surpreendentes. Porque geralmente
guardamos as formas musicais mais como “tipos ideais” do que como coisas
particulares. Conforme argumentou Leonard Meyer,
Those factors which are the immediate cause of affect and aesthetic response, the
deviations, are the very ones that either become regularized and averaged or
forgotten. For this reason they tend to surprise us, to remain deviants even after
many hearings of a work”.88
Não é preciso dizer que os schemas que utilizamos na percepção do jogo
musical não são cristalizados – eles continuam mudando ao longo da vida,
conforme ampliamos nossa bagagem de melodias ouvidas. Mas é a partir deles
que se pode diferenciar o que é usual, normal, previsível, daquilo que é
surpreendente, pouco comum, ou mesmo gritantemente absurdo. Ele estabelece,
no ato da escuta, o que é confirmação da norma, e o que é desvio. E, uma vez que
cada novo traço de memória pode ser capaz de modificar ligeiramente as normas
de condução da escuta, alterando o schema mental que emoldura a experiência
musical, a escuta repetida de uma mesma peça pode tornar-se uma nova escuta,
trazendo novas percepções e insights.
Nas canções de Jobim os desvios da norma habitual não estão presentes
apenas no desenho melódico – que é sempre o eixo estrutural de suas
88
“Esses fatores que constituem a causa imediata da afecção e da resposta estética, os desvios, são
exatamente aqueles que, ou são regularizados e normalizados ou esquecidos. Por esse motivo eles
tendem a nos surpreender, a permanecer como desviantes mesmo depois de escutarmos várias
vezes o mesmo trabalho”. (Cf. Leonard B. Meyer, op.cit.., p.90) (Tradução Livre)
78
composições (“Se a forma com que o cool jazz desenvolve os temas lembra a
polifonia de Bach, e ainda mais os quartetos de Mozart, a música de Jobim pode
ser aproximada à de Chopin, que apresenta a mesma autossuficiência do canto”).89
Eles surgem também em outras esferas, principalmente na harmonia e no
encadeamento rítmico. Desse modo, sua riqueza não se esgota facilmente. Parece
que sempre há algo escondido para ser descoberto – ou redescoberto. Se os
recursos rítmicos vieram em boa parte da tradição do samba, e da feição moderna
que este ganhou com João Gilberto, os recursos harmônicos, por sua vez, parecem
deitar parte de suas raízes na formação de pianista erudito, e em sua predileção
por Claude Debussy.
89
Cf. Lorenzo Mammì, “Prefácio”. In. Cancioneiro Jobim: Obras Escolhidas, Rio de Janeiro,
Jobim Music, 2002, p.16
79
3 Quadro 2 – Harmonia, sensação e espaço
Numa carta enviada a Richard Wagner, escrita em fevereiro de 1860, logo
após as primeiras (e malsucedidas) apresentações de trechos das principais obras
do compositor alemão (sobretudo Lohengrin e Tannhäuser) ao público francês,
Charles Baudelaire descreve algumas das impressões que teve ao ouvir aquela
música:
(...) o caráter que sobremaneira me impressionou foi a grandeza. Isso representa o
grande, e isso conduz ao grande. Encontrei por todas suas obras a solenidade dos
grandes ruídos, dos grandes aspectos da Natureza, e a solenidade das grandes
paixões do homem. Sentimo-nos imediatamente arrebatados e subjugados.90
O que salta à vista de modo inequívoco nas descrições de Baudelaire sobre
as obras de Wagner, além de seu caráter grandioso e sublime, é a presença de uma
qualidade de superexcitação; ou de um frenesi nervoso que jamais arrefece; de
algo que está constantemente lutando contra os seus próprios limites, algo capaz
de se auto-superar incessantemente, e que, justamente por conta disso, aproxima-
se perigosamente da desordem – do caos. No ensaio que escreveu um anos depois
de redigir a carta, Baudelaire deixa transparecer, num gesto rápido e
calculadamente natural, o vulto anônimo da massa das grandes cidades modernas
que se esconde sob a fantasia neogótica das encenações wagnerianas: "Dir-se-ia
que Wagner ama com predileção as pompas feudais, as assembléias homéricas
onde jaz uma acumulação de força vital, as multidões entusiasmadas, reservatório
de eletricidade humana, de onde o estilo heróico brota com impetuosidade
natural."91 Há, no trecho citado e, de modo mais amplo, no decorrer do ensaio,
uma passagem gradativa do ritualizado ao caótico, ampliada ainda mais pela
presença crescente de metáforas industriais, bem ao sabor do mundo moderno.
Expressões como "intensidade nervosa", "acumulação de força", "reservatório de
eletricidade", são recorrentes durante todo o texto, e apontam, sem dúvida, ao
tratamento particular da dissonância na harmonia de Wagner, ainda que
Baudelaire não possua a linguagem técnica para abordá-la com maior clareza.
90
Cf. Charles Baudelaire, op.cit.., p.21. 91
Cf. Idem, Ibidem, p.50.
80
O poeta francês parece enxergar na obra de Wagner a presença de três
filiações a universos possivelmente distintos. Primeiramente, ao universo clássico,
pelo fato de que seus libretos ancoram-se fortemente em conteúdos míticos e de
que sua arte preconiza uma aliança entre diversos domínios artísticos. Baudelaire
enxerga na obra do compositor alemão “um método de construção excelente, um
espírito de ordem e de divisão que lembra a arquitetura das tragédias antigas”92 (e
tendo em vista esse comentário, soa menos abrupta a afirmação de Lévi-Strauss,
na ouverture de O Cru e o Cozido, de que Wagner é o “o pai irrecusável da
análise estrutural dos mitos”). De fato, o retorno à arte grega e a releitura das
tragédias clássicas como verdadeiros documentos filosóficos – vistas como a
representação ideal de uma beleza universal marcada por “uma nobre
simplicidade e uma serena grandeza” - é um ideal que perpassa todo o
pensamento e a cultura alemãs desde o século XVIII até o fim do século XIX – de
Winckelmann e Goethe, passando por Schiller, Shelling, Hegel e Hölderlin, até
Schopenhauer e Nietzsche. “O único meio de nos tornarmos grandes e, se
possível, inimitáveis é imitar os antigos”, escreveu Winckelmann, o grande
precursor dessa linha de pensamento. Sua fórmula paradoxal justificava-se através
da diferenciação entre imitação e cópia: a cópia constituía uma reprodução servil
e limitada, enquanto o termo imitar admitia a incorporação inteligente e ativa de
um processo de criação e de uma forma de olhar a natureza, que poderia portanto
tornar-se original.93
A filiação ao universo clássico na obra do autor de Lohengrin é, contudo,
limitada pelo fato de que ela também participa obrigatoriamente da condição
própria a seu tempo, sendo portanto mediada e redimensionada de acordo com o
espírito romântico da primeira metade do século XIX. Depois de expor o projeto
wagneriano de restauração do teatro grego, Baudelaire enxerga na figura da Vênus
do Tannhäuser (uma Vênus subterrânea, cuja gruta encantada, entre um balé de
Bacantes e um coro de Sereias, difunde uma luz rosada, como uma boite estilo
Segundo Império), um exemplo ideal da relação entre a poética do compositor e o
mundo clássico, para, então, tecer o seguinte comentário: "Os fenômenos e as
ideias que se produzem periodicamente através das épocas sempre extraem, a cada
ressurreição, o caráter complementar da variante e da circunstância. A radiosa
92
Cf. Idem, Ibidem, p.54 93
Ver Roberto Machado, O Nascimento do Trágico, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2006, p.13.
81
Vênus antiga, a Afrodite nascida de branca espuma, não atravessou impunemente
as horrendas trevas da Idade Média. Ela não mais habita o Olimpo nem as
margens de um arquipélago perfumado”. Sendo assim, “os poemas de Wagner,
ainda que revelem um gosto sincero e uma perfeita inteligência da beleza clássica,
também participam, em extrema intensidade, do espírito romântico. Se fazem
pensar na grandeza de Sófocles e Ésquilo, obrigam ao mesmo tempo o espírito a
recordar os Mistérios da época mais plasticamente católica”.94
De fato, apesar do grande interesse pelas tragédias gregas, os artistas
românticos não apenas elegeram a Idade Média como ponto de identificação
capaz de exemplificar suas próprias crenças e atitudes, como também passaram a
repudiar épocas passadas que de certo modo ofendiam essas crenças,
notavelmente a mitologia clássica. Pontuava-se com atenção especial os aspectos
do passado que pudessem ser interpretados nos termos desses interesses. A Idade
Média exercia fascínio sobre os românticos pois apresentava a mesma
exuberância, inquietude e informalidade que eles exaltavam como valor e
pretendiam alcançar. Além disso, e talvez até mais importante, a arte desse
período ganhou uma aura de ingenuidade infantil – irracional, pura, natural e
ainda livre da mácula das odiadas convenções – que associava-se perfeitamente à
ideologia igualitária (de que todos os homens nasciam iguais) e era acalentada
como um dos grandes ideais românticos.95 Por outro lado, a mitologia clássica
ainda estava muito associada a antigas estruturas políticas do ancien régime – a
divisão hierárquica entre Deuses e mortais sendo relacionada por analogia com as
estruturas políticas. Associava-se também com a arte neoclássica, baseada em
regras estéticas, convenções dramáticas e práticas prosódicas vistas pelos
românticos como flagrantemente artificiais e excessivamente planejadas. Por fim,
e de modo bastante decisivo, as referências à mitologia clássica eram geralmente
evitadas porque demandavam um saber prévio para serem devidamente fruídas e
compreendidas – um saber que poderia funcionar como fator distintivo de classe e
condição social, algo abominado pela mentalidade igualitária romântica. Pois o
94
Cf. Charles Baudelaire, op.cit.., p.55. 95
Os conceitos e metáforas usados para interpretar o passado costumavam ser, contudo,
românticos. “The young Goethe under the influence of the ideas of Herder, described Gothic
architecture, in contrast to buildings constructed according to rules, as the organic product of
growth in the mind of genius”. (Cf. M.L.Abrams, Apud., Leonard B. Meyer, Style and Music:
Theory, History, and Ideology, Chicago and London, The University of Chicago Press, 1989,
p.169)
82
romantismo perseguiu a utopia de uma arte que pudesse ser – como diriam os
formalistas – fruída em seus próprios termos.96 Desse modo, o panteão criado por
Wagner em suas óperas, ainda que hierárquico, era vestido por mitos nativos,
populares, ao alcance de todos – o que de certo modo casava muito bem com o
próprio ideal do nacionalismo romântico – a força do homem natural, puro,
impondo-se sobre as leis artificiais e sobre as convenções impostas pelos deuses
(Siegfried, o herói/gênio). Nesse contexto, Baudelaire tentará expor a aspiração
clássica que jaz escondida por trás da inequívoca e ostensiva filiação romântica de
Wagner. Filiação que se dá pela grandeza do mito, e que será posteriormente
confirmada pelo jovem Nietzsche em O Nascimento da Tragédia através de uma
reavaliação da civilização grega e da identificação de um princípio decisivo,
tempero incondicional da serenojovialidade apolínea, capaz de revitalizar
desagregando: o dionisíaco.
O próprio Wagner, ao reconhecer a impossibilidade de uma volta ao ideal
clássico, mas ao mesmo tempo afirmando a necessidade de recriar sobre aquele
modelo um novo princípio de união entre palavra e música, e uma nova totalidade
através de sua Gesamtkunstwerk, retratava-se a si mesmo como uma espécie de
herói trágico, coincidindo perfeitamente com o tipo de artista conspirador descrito
por Walter Benjamin logo no início de seu famoso ensaio sobre Baudelaire.97 Em
Ópera e Drama, o compositor alemão escreveria que,
Um indivíduo isolado é capaz, em seu impulso íntimo, de transformar a amargura
desse reconhecimento numa exaltação ébria que o leva, com a coragem da
embriaguez, a tentar a realização do impossível; porque só ele é movido por duas
forças artísticas (i.e.: a poesia e a música) às quais não pode resistir e pelas quais se
deixa levar de bom grado ao sacrifício de si mesmo.98
Somando a aspiração de realizar o impossível no real por meio de um ato
simbólico, com o imenso estardalhaço causado pelas primeiras apresentações de
seus trabalhos junto ao público francês, Baudelaire irá reconhecer em Wagner a
tradução perfeita de seu artista-herói moderno. Reconhecimento que se tornará
fundamental no posterior culto prestado ao compositor alemão pelos simbolistas.
96
Cf. Leonard B. Meyer, Style and Music: Theory, History, and Ideology, p.171. 97
Ver Walter Benjamin, Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo, Obras
Escolhidas III, São Paulo, Editora Brasiliense, 1994. 98
Cf. Apud., Lorenzo Mammì, “Richard Wagner e "Tannhäuser" em Paris”, In. Novos Estudos
Cebrap Nº 30, julho de 1991, p.243.
83
Mas mesmo que se encaixe na forma do artista moderno, tal como
concebida por Baudelaire, é inútil procurar no autor do Anel dos Nibelungos uma
visão clara das contradições do fazer artístico moderno. A reflexão de Wagner
sobre o seu próprio trabalho difere fundamentalmente daquela de Baudelaire, e
parece mesmo que o teor moderno presente na obra do compositor alemão foi em
grande parte revelado pelo ouvido arguto do crítico e poeta francês. Porque em
Wagner as contradições que formam a própria substância do romantismo se
resolvem sempre, como por milagre, por um ato desesperado da vontade.99 É
desse modo que é recuperada, in extremis, a totalidade do absoluto romântico.
Baudelaire, contudo, concebe o mundo de outra maneira. Também sua poesia é
marcada por um profundo anseio de unidade. Mas essa unidade não é mais
atingida através de um mergulho profundo na subjetividade, ou pela via de um
sacrifício de si mesmo, e sim através da doutrina das correspondências, de um
sistema de associações capaz de interpretar o mundo como uma “floresta de
símbolos”. Ao descrever o conceito de obra de arte total proposto por Wagner,
Baudelaire vai falar que este irá conceber sua arte dramática como uma espécie de
“reunião” ou “coincidência de várias artes” (o grifo é do próprio Baudelaire). A
coincidência à qual se refere o crítico francês não se deixa, contudo, confundir
com a correspondência - que se tornaria posteriormente um dos pontos centrais da
poética simbolista. Pois esta buscava não uma reunião das artes com sua
consequente acumulação, capaz de nos conduzir a uma totalidade. A
correspondência simbolista procurava, antes, definir “um plano simbólico geral,
onde todos os sentidos possíveis, por cadeias de analogias, teriam livre
circulação”.100 Ou seja, a primeira pressupõe um somatório de efeitos e qualidades
específicas de diversas linguagens artísticas, e, no horizonte, a possibilidade de
acesso a uma totalidade; a segunda, uma possibilidade absoluta de troca (de ideias
99
As características aqui citadas como próprias ao Romantismo não são de modo algum coerentes
e fechadas. Ao contrário: parece que o próprio período em questão (que vai essencialmente da
segunda metade do século XVIII ao fim do século XIX, na Europa) notabilizou-se sobretudo por
seu caráter contraditório. No verbete “Romantic” do The New Grove Dictionary, John Warrack
cita as contradições aparentes que formam mesmo a essência do Romantismo: “ambitions for the
future mingling with dreams of the past; a determination to overthrow coupled with notalgia for
the rejected world of order and balance; fervent brotherhood yet the exaltation of the individual;
proud selfconsciousness yet the sense of acute isolation; the assertion of Man yet an ache for the
lost God”. (John Warrack, “Romantic”, The New Grove Dictionary, ed. Stanley Sadie, 16; p.141-
42) 100
Cf. Lorenzo Mammì, “Richard Wagner e "Tannhäuser" em Paris”, In. Revista Novos Estudos (Cebrap), Nº 30, Julho de 1991, p.244.
84
em relação a outras ideias), um sistema infinito de equivalências (“les choses
s’étant toujours exprimés par une analogie réciproque, depuis le jour où Dieu a
proféré le monde comme une complexe et indivisible totalité”).101 Esse ponto fica
tão claro no ensaio de Baudelaire que ele chega mesmo a citar o próprio poema-
manifesto Correspondances – reproduzo aqui um trecho dele:
La Nature est un temple où vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L’homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l’observent avec des regards familiers.
Comme de longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et le son se répondent.102
A possibilidade de interpretar o mundo como uma verdadeira “floresta de
símbolos” passava a exigir que se verificasse todos os campos da linguagem. Para
tanto, era necessário estabelecer um plano suficientemente genérico e abstrato que
permitisse uma total abrangência desse sistema de associações – e não mais o
ideal romântico da união das artes, tal como ainda era concebido por Wagner.
Uma vez destacadas as dimensões clássicas e românticas em Wagner, falta
ainda tratar do que o poeta francês considera como propriamente moderno na obra
do compositor alemão, e a partir daqui torna-se difícil não ler o ensaio de
Baudelaire à luz do famoso texto de Walter Benjamin. Numa passagem exemplar
em que busca definir o próprio sentido do que vem a ser modernidade, Benjamin
evoca a leitura de Baudelaire sobre Wagner:
A modernidade assinala uma época; designa, ao mesmo tempo, a força que age
nessa época e que a aproxima da antiguidade. A contragosto, e em casos contados,
Baudelaire a atribui a Hugo. Wagner, ao contrário, lhe parece a emanação sem
limites e sem falsificações dessa força. ‘Se Wagner, na escolha de seus temas e no
seu proceder dramático, se aproxima da antiguidade, torna-se, graças à sua força de
expressão apaixonada, o representante mais importante da modernidade’.103
101
Cf. Charles Baudelaire, Richard Wagner e ‘Tannhäuser’ em Paris, p.38. 102
“A Natureza é um templo vivo em que os pilares/ Deixam filtrar não raro insólitos enredos;/ O
homem o cruza em meio a um bosque de segredos/ Que ali o espreitam com seus olhos familiares./
Como ecos longos que à distância se matizam/ Numa vertiginosa e lúgubre unidade,/ Tão vasta
quanto a noite e quanto a claridade,/ Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam” (Cf. Charles
Baudelaire, As Flores do Mal, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2006, p.127) 103
Cf. Walter Benjamin, op.cit.., p.80.
85
Benjamin confirma a noção de Baudelaire de que a qualidade propriamente
moderna da música de Wagner está no excesso de energia por ela produzido -
"acumulação de força", "reservatório de eletricidade". Se parece claro que a
cultura ocidental foi desde os seus primórdios marcada pela tensão entre o clamor
apolíneo do classicismo e as ameaças dionisíacas e desagregadoras do
romantismo, não surpreende que “a arte clássica” tenha sido “concebida pelos
críticos alemães como ‘beleza’”, ao passo que a “arte romântica” foi concebida
como “energia”.104
Fica claro na citação de Baudelaire (reforçada ainda pelo fato de se
encontrar dentro de um comentário de Benjamin que a confirma) que há uma
tensão de base entre os temas e o modo de apresentá-los – sendo o caráter
moderno mais associado ao último. Conforme o ensaio vai sendo desenvolvido,
há um movimento que leva da leitura do programa dos concertos até a análise das
sensações abstratas evocadas pela música do alemão. Na abertura puramente
instrumental de Lohengrin o poeta vê a libertação "das ligações com a gravidade";
a "volúpia que circula nos lugares altos"; "uma solidão com um imenso horizonte
e uma ampla luz difusa"; "a imensidão sem outro cenário senão ela própria", "um
acréscimo sempre renascente de ardor e brancura". Trata-se de uma descrição que
difere fundamentalmente daquela que consta no próprio programa da peça
(reproduzida quase na íntegra no próprio ensaio), e que fala de "espaços infinitos",
"uma legião milagrosa de anjos" que aparece aos poucos, "da luminosa aparição"
do Santo Graal, capaz de provocar uma "adoração estática", seguida por "chamas
ardentes" que abrandam o esplendor da relíquia e "o cortejo de anjos que esvanece
nas profundezas do espaço", depois de ter espargido, no coração dos homens
puros, "o divino licor".105 Difere também de uma descrição mais técnica,
publicada pelo compositor Franz Liszt dez anos antes do ensaio de Baudelaire (e
também citada por este): "(...) um éter vaporoso que se expande (...) efeito
exclusivamente confiado aos violinos, divididos em oito estantes diferentes, que,
após vários compassos de sons harmônicos, continuam nas notas mais agudas de
seus registros"; trompetes e trombones "repetem a melodia pela quarta vez, com
um clarão fascinante de cores, como se nesse instante único o santo edifício
104
“Classic art was conceived by the German critics as “beauty”; romantic art as “energy””. (Cf.
Wimsatt and Brooks, Apud., Leonard B. Meyer, op.cit.., p.135) 105
Cf. Charles Baudelaire, Richard Wagner e ‘Tannhäuser’ em Paris, p.40.
86
tivesse brilhado diante de nossos olhares ofuscados, em toda a sua magnificência
luminosa e radiante"; "O transparente vapor das nuvens volta a se fechar (...) e o
trecho se encerra pelos seis primeiros compassos, tornados ainda mais etéreos".106
A descrição de Baudelaire é fundamentalmente diferente das duas outras.
Nada tem a ver o caráter literário dos programas românticos. Trata-se, de certo
modo, de uma leitura clínica da música de Wagner – não à toa ele a associa, como
já foi colocado, às "vertiginosas concepções do ópio". Ela encontra eco nos
comentários feitos por Nietzsche a respeito do seu grande desafeto – “Wagner foi
uma de minhas doenças”; “ele tornou a música doente”; “nada é mais moderno do
que esse adoecimento geral, essa tardeza e superexcitação do mecanismo
nervoso”; “no que toca a arrebatar as pessoas, isto já se relaciona com a
fisiologia”, “Wagner é uma neurose” - , embora a avaliação de fundo seja
inteiramente diferente.107 Ainda assim, os dois evocam uma qualidade que coloca
a música de Wagner num lugar muito específico dentro da tradição romântica (um
lugar que, ao mesmo tempo que a torna referência máxima desta, deixa-a
paradoxalmente meio deslocada) – como se, levando certas tendências do
romantismo às suas últimas consequencias, tivesse por fim trazido à luz resultados
imprevistos, capazes de transcender, inclusive, ideias e concepções manifestadas
pelo próprio compositor alemão. Aparentemente foi Baudelaire, o grande
farejador do moderno, quem primeiramente enxergou na música de Wagner
dimensões que a levavam além da narratividade romântica.
Em certo sentido, Wagner ocupará para o poeta francês uma posição
simétrica àquela ocupada por Eugène Delacroix, no caso da pintura. Na primeira
parte do ensaio, indagando-se sobre a possibilidade da música veicular um
significado unívoco, na intenção de “démontrer que la véritable musique suggère
des idées analogues dans des cerveaux différents”,108 Baudelaire ensaia a hipótese
de um despojamento total de todos os referenciais externos à própria música: "Na
música, como na pintura, e até mesmo na palavra escrita, que é a mais positiva das
artes, há sempre uma lacuna completada pela imaginação do ouvinte.(...) Ora, se
afastamos por um instante o concurso da plástica, do cenário, da incorporação dos
tipos imaginados em comediantes vivos e até mesmo da palavra cantada; ainda
106
Cf. Idem, Ibidem, p.40. 107
Cf. Friedrich Nietzsche, O Caso Wagner: Um Problema Para Músicos / Nietzsche Contra
Wagner: Dossiê de um Psicólogo, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, §1, 5 e 6. 108
Cf. Charles Baudelaire, op.cit.., p.38.
87
permanece incontestável que, quanto mais eloquente é a música, mais a sugestão é
rápida e justa, e maior é o ensejo de que os homens sensíveis concebam ideias em
relação às que inspiravam o artista". Ainda que se possa ver nisso apenas o
prolongamento da noção acalentada durante os séculos XVIII e XIX, que via na
música instrumental a linguagem mais natural e espontânea dentre todas - imune
aos índices de classe e às mentiras da linguagem verbal, capaz de unificar a
humanidade – as rêveries de Baudelaire apontam para outro nível de percepção.
Na carta enviada a Wagner, ele serve-se de comparações emprestadas à pintura
para descrever de modo impressionante o efeito causado pela música do
compositor alemão nos termos de uma “vasta extensão de um vermelho-escuro”
que chega, gradualmente, “por todas as transições de vermelho e rosa, à
incandescência da fornalha”. Baudelaire não pára: acompanha o movimento
desenfreado e transcendente da música de Wagner para “chegar a alguma coisa de
mais ardente” e logo depois constatar que “um último foguete vem traçar um
rastro mais branco sobre o branco que lhe serve de fundo”.109
Ao passar do programa do concerto à análise de suas sensações abstratas o
gesto de Baudelaire corresponde ao movimento com que, nos Salons, ele se
afastava dos quadros de Delacroix para confundir as figurações e perceber apenas
as relações entre manchas de cor (e não deixa de ser curioso o modo como a
pintura impressionista inverte os termos da equação: a abstração surgindo não de
um gesto de distanciamento, mas através da aproximação, como se seguisse a
lógica científica do microscópio). Em ambos os casos há uma ênfase na sensação
imediata dos elementos expressivos e na capacidade que têm de afetar de modo
muito direto, e de maneira idealmente não mediada por qualquer tipo de
convenção, o nosso próprio corpo. Em última instância, Baudelaire está levando
adiante o ideal do formalismo romântico - a arte fruída em seus próprios termos,
sem interferência de regras e convenções, sem necessidade de um aprendizado
prévio, sem qualquer mediação externa, sem qualquer recurso à tradição. Uma
arte acontextual, sem passado nem história, fundada exclusivamente (ou
predominantemente) na fisiologia comum, e, portanto, igualitária na base. Para
defender seus queridos coloristas, o Baudelaire-crítico-de-arte serviu-se
generosamente de metáforas musicais, falando de pintura em termos de harmonia,
109
Cf. Idem, Ibidem, p.23.
88
timbre, contraponto. Ainda assim, é possível que nunca tivesse chegado a
expressar uma ideia tão pura de cor, quanto nessa passagem em que dedica à
música de Wagner. A aparente simetria na comparação entre as duas artes é
quebrada pela ênfase muito maior, no caso da música, sobre a resposta imediata,
fisiológica, aos estímulos. Nesse sentido, não me parece que as menções
específicas ao cérebro (órgão que remete muito mais a história evolutiva do que à
cultural) e ao ópio (substância que altera os níveis de consciência mediante um
processo químico), tenham sido feitas por acaso.
Tudo leva a crer que em Richard Wagner e "Tannhäuser" em Paris,
Baudelaire começa a desenhar, aos poucos, e ainda que sob o pretexto de uma
intervenção militante a favor da recepção de Wagner na França, um novo tipo de
escuta: uma escuta posterior àquela do subjetivismo romântico.110 Que permite,
sob os efeitos das descargas nervosas, a quebra de qualquer tipo de coerência
discursiva – apontando menos para causalidades temporais do que para efeitos
imediatos, ancorados no presente - colocando assim em risco a qualidade narrativa
que marcou a maior parte da música dos séculos XVIII e XIX. Uma escuta que se
pretende puramente física, baseada no aumentar e diminuir da intensidade, da
luminosidade do som, e que irá se irmanar com uma música que parece
proporcionar sensações tão puras e intensas não porque seja capaz de atingir
camadas mais profundas do espírito, mas justamente porque permanece na
superfície, no nível das reações cerebrais imediatas, o mesmo sobre o qual atuam
as drogas. É toda uma noção de profundidade, tão cara aos românticos, que vai
sendo posta por terra. Da valorização romântica da experiência individual,
interior, idiossincrática e inominável – valorização essa que se torna
especialmente evidente no deslocamento da noção própria ao século XVIII de que
a música representava emoções (afetos) para a crença difundida no século XIX de
que a música expressava a sensibilidade do compositor – migra-se para uma
concepção de arte cada vez mais atrelada às percepções imediatas de superfície.
Não obstante o fato de negar diversas premissas da música romântica, esse
novo tipo de escuta é ele mesmo um desdobramento dela, e já vinha sendo
anunciado antes de Wagner. O novo wagnerismo casualmente inaugurado por
110
A partir dessa ideia de música, Mallarmé transformará o discurso em uma estrutura musical,
revertendo a concepção que, desde Rousseau, fazia da música uma prática discursiva. Depois,
musical será para Lévi-Strauss, a forma com que os mitos se pensam.
89
Baudelaire, e que certamente exerceu grande influência sobre o meio artístico
francês da segunda metade do século XIX,111 deve, sobretudo, nos mostrar de que
modo concepções aparentemente contraditórias podem coexistir em determinados
objetos artísticos – o modo, por exemplo, como parte da obra de Wagner
representa a um só tempo o apogeu da tendência romântica para a narrativa, com
seus leitmotiven e personagens operísticos, e a via de acesso para um modo de
escuta não mais fundado na articulação discursiva linear e diacrônica, mas cada
vez mais capaz de criar sentidos a partir da imdediaticidade das sensações. Para
entender o modo como essas duas dimensões concorrem na música de Wagner, e
também como serão filtradas e recriadas por Debussy – o compositor que ofereceu
a primeira grande resposta ao imenso predomínio do músico alemão no cenário da
música erudita112 - é necessário retomar, em traços breves e bastante
simplificados, numa verdadeira teia inter-relacional, alguns dos pressupostos
básicos da estética do Romantismo.
Primeiramente, tanto a narratividade quanto a ênfase na imediaticidade das
sensações parecem decorrer de um mesmo ódio às convenções que
representavam, no domínio das artes, um equivalente para a arbitrária divisão de
classes baseada em privilégios herdados - divisão essa que marcava o universo
social do ancien régime e que tanto feria o princípio igualitário que está na base
da ideologia romântica. De acordo com Wagner, “a mais perfeita forma de arte é
111
Para o crítico e historiador Martin Jay, a defesa de Tannhäuser fetia por Baudelaire em 1861 é o
marco inicial da devoção dos simbolistas ao músico alemão, culminando na criação da Revue
Wagnérienne. O editor da publicação, Edouard Dujardin, não hesitava em dizer que a verdadeira
fonte de inspiração do movimento simbolista era dada pela filosofia e pela concepção de arte
derivadas de Wagner, tendo sido a obra do músico alemão responsável por fazer com que a música
ganhasse a estima da elite intelectual francesa. Por volta de 1880, quando a Revue Wagnérienne
reunia em suas páginas, sob os mesmos princípios, simbolismo literário e impressionismo
pictórico, art wagnérienne era sinônimo de arte moderna. Nos círculos esotéricos liderados por Sâr
Peladan, Wagner era tido por iluminado, mas também em reuniões de peso cultural bem maior,
como os mardis littéraires de Mallarmé, os libretos e as obras teóricas do compositor alemão eram
lidos e comentados. (Ver Martin Jay, Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth-
Century French Thought, Califórnia, University of California Press, 1994, p.176) 112
A presença marcante de Wagner no cenário cultural francês suscitou a reação da Société
Nationale de Musique, dirigida por Saint-Saens, Gounod e Massenet. A Société procurava
encaminhar o trabalho de novos compositores no sentido da recusa sistemática às prerrogativas
wagnerianas. Tal reação alinhava-se, com efeito, à onda nacionalista e ao anti-germanismo
decorrente da derrota francesa na guerra franco-prussiana. Mas o recuo proposto pela Société
reduzia-se, no fim das contas, a repetições estilísticas no plano rítmico, e à retomada de velhas
convenções sintáticas que insistiam na ênfase melódica como eixo estrutural da música e em ideias
harmônicas igualmente estéreis; ou seja, não iam além de um academicismo retrógrado, que não
estimulava a criação de compositores preocupados com a superação dos recursos expressivos da
tonalidade. Estes, por sua vez, pareciam mais interessados nos caminhos abertos pela escola de
César Franck, que sustentava o culto a Wagner na França, do que propriamente na reação da
Société.
90
aquela na qual todos os vestígios de convencionalismo foram completamente
removidos tanto do drama quanto da música”.113 Supostamente, a apreciação da
melhor música romântica, dos trabalhos dos verdadeiros gênios, devia depender
não de um gosto adquirido, mas de uma sensibilidade natural para a música. Essa
mesma ideia sustentou a noção da música como linguagem universal, para a qual
a experiência cultural, o aprendizado e a história seriam irrelevantes no seu
entendimento e compreensão. Em outras palavras, na luta incessante contra tudo o
que soasse como convencional, o Romantismo pregava o princípio de um
acontextualismo que tendia a desprezar o passado histórico, ancorando-se,
portanto, em certa imediaticidade. Não à toa, a figura da criança inocente – ainda
não afetada pelas convenções culturais e livre das distinções de classe – passa a
ser um dos principais símbolos dos ideais de acontextualismo e igualdade que
permearam o século XIX.114 De modo parecido, esses ideais estão também
entranhados na própria concepção daquilo que geralmente é denominado como
amor romântico, amor que não apenas brota espontaneamente – “Em Wagner,
escreveu Carl Dahlhaus, o amor é sempre à primeira vista”115 - mas que capta boa
parte de suas forças insurgindo-se contra barreiras que derivam, justamente, de
uma distinção social artificial, convencionada. Charles Rosen e Henry Zerner
comentam que
O ataque aos gêneros (musicais) pelos artistas românticos trai uma de suas mais
profundas ambições: a realização da “imediaticidade”, de formas de expressão
diretamente compreensíveis sem convenção e sem conhecimento prévio da
tradição. Foi sem dúvida uma ambição não-realizada, mas uma que remete a
Rousseau, a sua profunda descrença na linguagem, e ao modo como ela traía e
deformava os pensamentos e sentimentos mais profundos. Os românticos
almejavam a uma arte que pudesse falar de uma só vez e a todos. O ataque ao
113
Cf. Apud., Leonard B. Meyer, Style and Music: Theory, History, and Ideology, p.167 114
O acontextualismo é definido por Leonard B.Meyer nos seguintes termos: “Despite the fact that
political beliefs and attitudes gave it force and direction, Romanticism did not include an explicit
program of social change. Nevertheless the rejection of the older order profoundly affected
ideology. One of the most important consequences of this rejection was the emphatic denial of the
relevance of origins and contexts. In the ancien régime, artificialities of birth and lineage
established one's position in society and determined benefits and rights available to each
individual. The new ideology not only repudiated such hereditary privileges, but insisted on the
irrelevance of all origins, lineages, and contextual connections whatsoever. In heritance was to be
replaced by inherence-an inherence that was at once natural and necessary. This significant and
continuing tenet of Romanticism I will call acontextualism”. (Cf. Leonard B. Meyer, Style and
Music: Theory, History, and Ideology, p. 167) 115
Leonard B. Meyer, op.cit.., p. 186.
91
sistema de gêneros é um ataque dirigido a uma tradição que tornou a
inteligibilidade dependente da bagagem de conhecimento...116
O corolário dessa visão foi a construção de uma crença segundo a qual as
obras de arte poderiam ser compreendidas por meio de uma “observação
científica”, posto que eram baseadas em princípios universais de validade
universal. Uma crença na existência de bases puramente naturais, e, portanto,
universais para a música, e que prevaleceria na psicologia, na teoria e na estética
da música durante os séculos XIX e XX. Desse modo, tanto Helmholtz quanto
mais tarde os primeiros psicólogos buscavam explicar o poder da música nos
termos de estímulos acústicos que seriam independentes da dimensão histórica e
também das diferenças locais, uma vez que eram naturais. Ao mesmo tempo, os
princípios de autoridade, antes tidos como estáveis, transmitidos de geração a
geração, passam a ser cada vez mais vistos com desconfiança, tornando-se a
experiência a verdadeira fonte da sabedoria. Nesse contexto, a linguagem, por seu
caráter puramente convencionado, será em parte depreciada, encorajando a visão
da música (sobretudo a instrumental) como arte exemplar – visão que se tornará
predominante entre os simbolistas franceses (como na máxima de Paul Verlaine:
“de la musique avant toute chose”). A desconfiança da linguagem reverbera, por
outro lado, de modo decisivo sobre a própria estética e teoria musical: o modelo
conceitual da música como linguagem tenderá a ser substituído por outro, baseado
no crescimento orgânico. A metáfora fundamental desse modelo organicista será
aquela da semente que se desenvolve e transmuta-se num ser vegetal. (Wagner
descreveria o processo de composição de The Flying Dutchman no seguintes
termos:
Nesta peça eu involuntariamente plantei a semente temática de toda a música na
opera… Quando voltei para a composição, a imagem temática que eu havia
concebido bastante involuntariamente espalhou-se por todo o drama numa teia
completa, perfeita; tudo o que tive que fazer foi permitir que os diversos germes
116
“The attack on the genres by the romantic artists betrays one of their deepest ambitions: the
achievement of "immediacy," of forms of expression directly understandable without convention
and without previous knowledge of tradition. It was no doubt an unrealized ambition, but one that
goes back to Rousseau, to his deep distrust of language, and the way it betrayed and deformed
one's inmost thoughts and feelings. The romantics wanted an art that would speak at once and to
all. The attack on the system of genres is an attack on a tradition that made intelligibility depend
upon connoisseurship. . . .” (Cf. Charles Rosen, e Henry Zerner, “The Permanent Revolution”.
New York Review of Books 26, nº 17, p. 23-30)
92
temáticos contidos na baladas se desenvolvessem livremente, cada qual em sua
própria direção”).117
Havia, embutida no próprio modelo organicista, uma nova visão da
Natureza. De fato, a Natureza para a qual se voltariam os românticos não era mais
a natureza algo fixa, classificada e ordenada hierarquicamente de outros tempos,
mas algo em constante mudança e crescimento, em perpétuo desenvolvimento.
Tudo isso, por sua vez, associa-se com mudanças profundas no paradigma
biológico, acarretando a passagem de visões baseadas na hierarquia fixa de um
Ser acabado, para aquelas que tendiam a sublinhar a natureza processual do
mundo. “Nesse caso, é necessário considerar a mudança que ocorreu durante o
século dezoito nas crenças culturais sobre os mundos natural e social. A antiga
ordem concebia o mundo como hierarquia fixa e eterna, no qual cada componente
– pedras, plantas e animais; servos, cidadãos e nobreza – ocupa um lugar
predeterminado no plano divino. Durante o Iluminismo essa hierarquia fixa do Ser
cedeu caminho para visões que enfatizavam a ubiquidade da mudança e o
desenvolvimento – um mundo do vir-a-Ser. A manifestação preeminente dessa
mudança na ideologia foi, obviamente, a teoria da evolução, que recebeu sua
formulação clássica na altura da metade do século dezenove”.118
O importante é notar que a valorização do vir-a-Ser, do crescimento
orgânico e contínuo em contraposição ao equilíbrio e fechamento inequívoco do
Ser das formas clássicas, encontrou sua expressão musical na utilização de formas
abertas e de estruturas implícitas. Leornard Meyer destaca que esse vir-a-Ser
(“Becoming”) está relacionado ao constante movimento de busca, ao anseio
profundo (“yearning”) que é tão característico da música Romântica; a uma
espécie de ethos do anseio (“ethos of longing”) – o movimento incessante de algo
que nunca repousa, que jamais se realiza. Esse ethos do anseio, assim como a
tendência ao acontextualismo, fica claro, por exemplo, nas declarações de Wagner
sobre a ópera Tristão e Isolda. Como resultado da poção do amor,
117
Cf. Leonard B. Meyer, Style and Music, op.cit.., p.192. 118
“In this case, I this case, it is necessary to consider the change that occurred during the
eighteenth century in the culture's beliefs about the natural and social worlds. The old order
conceived of the world as a fixed, eternal hierarchy, each component of which - rocks, plants, and
animals; serfs, burghers, and nobility - had a preordained place in the divine plan. During the
Enlightenment this fixed hierarchy of Being gave way to views that emphasized the ubiquity of
change and development - a world of Becoming. The preeminent manifestation of this change in
ideology was, of course, the theory of evolution, which received its classic formulation toward the
middle of the nineteenth century”. (Cf. Idem, Ibidem, p.168) (Tradução Livre)
93
There were no bounds to the longing, the desire, the bliss and the anguish of love:
the world, power, fame, glory, honour, chivalry, loyalty, friendship, all swept
away like chaff, an empty dream; only one thing is left alive: yearning, yearning,
insatiable desire, ever reborn-languishing and thirsting; the sole release-death,
extinction, never more to wake.119
Por outro lado, o ethos do anseio está intimamente vinculado com o a busca
pelo sublime que acompanha todo o pensamento estético romântico, não raro em
franca oposição ao conceito clássico de belo. Há uma redefinição da própria
concepção de forma, uma vez que o sublime, por basear-se em aspectos
quantitativos, tenderá a ser, no limite, amorfo; enquanto o belo se instaura,
justamente, sobre o equilíbrio e o delineamento de formas nítidas e bem definidas.
Essa busca ancora-se sobre uma base de expectativa continuamente adiada que
fornece o pano de fundo para os grandes paroxismos que marcam as apoteoses da
música romântica – quanto maior a tensão acumulada, maior o prazer da
libertação.120 De fato, na música romântica a expressão do sublime ganhou a
forma de gigantescos e cumulativos clímace - gerados ou por pontos altos de
atividade intensa e complexa (apoteoses cuidadosamente construídas), ou por
poderosas declarações de afirmação intempestiva (apoteoses surpreendentes, que
soam como um poderoso golpe do Destino).
Cria-se, através disso, um processo que, além de contínuo e sem fim, tende
a operar sem articulações claras ou descontinuidades significativas. Um processo
orgânico, gradual, que rejeita como artificiais e mecânicas as relações parte/todo
que costumam marcar as estruturas sintáticas, adotando, desse modo, estruturas
que privilegiam o desenvolvimento dos motivos. Mobilidade e abertura, ao invés
de estabilidade e fechamento (realizado, sobretudo, na forma de cadências), são
enfatizadas. Ao mesmo tempo, com o enfraquecimento da sintaxe tonal, a unidade
119
“(...) não havia barreiras para o anseio, o desejo, o êxtase e a agonia do amor: o mundo, o
poder, fama, glória, honra, bravura, lealdade, amizade, tudo voou como palha, como se fora um
sonho vazio; apenas uma única coisa permaneceu viva: anseio, anseio, desejo insaciável, sempre
renascendo-definhando em sua sede; o único consolo, a morte, a extinção, nunca mais
despertar.”(Cf. Idem, Ibidem, p. 187) (Tradução Livre) 120
Ver, nesse sentido, o já citado livro de David Huron: “A potent factor influencing the tension
response is delay. (...) the tension response increases as the moment of the predicted outcome
approaches. The goal is to be optimally prepared just before the anticipated event. If the outcome
occurs earlier than expected, then the tension response will fail to reach its potential peak. On the
other hand, if the outcome is late, then the tension response will reach a peak and may be sustained
as we wait for the presumed outcome to materialize. This delay, as a result, creates a longer and
more intense period of tension”. (Cf. David Huron, Sweet Anticipation: Music and the Psychology
of the Expectation, p.314) Ver também Leonard B.Meyer: “The greater the buildup of suspense, of
tension, the greater the emotional release upon resolution”. (Cf. Leonard B.Meyer, Emotion and
Meaning in Music, p. 28)
94
interna dessas estruturas tenderá a ser uma consequencia da atualização de um
único princípio (ou semente), capaz de dar forma ao processo de Vir-a-ser da peça
musical. Sendo a composição nada mais do que a emanação de um único princípio
de base, a partir do qual todo o resto deriva, descontinuidades hierárquicas não
apenas não existem como, de modo bastante surpreendente, os próprios contrates
e diferenças, assim com as relações das partes com o todo, são consideradas como
acessórias e sem desdobramento relevante – apenas como meras manifestações,
ou acidente, que não alteram o princípio de base.
Com o enfraquecimento das relações sintáticas clássicas, que outrora
garantiam o esqueleto estrutural das obras, surge o problema da unidade. Uma das
estratégias mais usadas na tentativa de criar um sentido de unidade no imenso
edifício orgânico das peças românticas será, desse modo, a da similaridade
temática e de motivos. “Because they were similar in significant respects or were
derived from a common source (seed), seemingly disparate patterns could be
understood as forming a unified composition”.121 A similaridade de motivos e
temas propiciava, desse modo, um terreno fértil para a elaboração de narrativas
musicais: “Even in the absence of an explicit program, motivic continuity created
a kind of narrative coherence. Like the chief character in a novel, the "fortunes" of
the main motive - its development, variation, and encounters with other
"protagonists"-served as a source of constancy throughout the unfolding of the
musical process”. O ponto a ser aqui levantado é que a constância dos motivos, as
recorrências nas quais se tornam modificados mas ainda assim reconhecíveis,
termina por fornecer uma base comparativa capaz enfatizar os contrastes de
“ânimo” e “disposição” da matéria melódica. Do mesmo jeito que diferenças de
ânimo e expressões numa peça de teatro tornam-se mais patentes e incisivas
quando manifestadas no comportamento de um único protagonista, também
diferenças no ethos e na expressão de uma música são especialmente percebidos
quando um único motivo serve como a base para as sucessivas partes. Leonard B.
Meyer resumiria tal proposição nos seguintes termos:
121
Porque são similares em diversos sentidos ou porque derivam de uma fonte comum (semente),
padrões sonoros aparentemente disparatados poderiam ser entendidos como formando uma
composição unificada. Mesmo na ausência de um programa explícito, a continuidade de motivos
criava um tipo de coerência narrativa. Como o personagem principal de um romance, os ‘destinos’
do motivo principal – seus desenvolvimentos, variação, e encontros com outros ‘protagonistas’ –
servia como uma fonte de estabilidade durante o desenrolar do processo musical”. (Cf. Idem,
Ibidem, p. 201) (Tradução Livre)
95
(...) in the eighteenth century, musical modes of representation were associated
with one another in terms of class relationships (various aspects of the heroic or
different facets of the pastoral, and so on); in the nineteenth century, essentially the
same modes of representation were associated with one another in terms of
narrative, developmental processes-processes specified by a program.122
De fato, a tendência para criar analogias narrativas a partir da música torna-
se evidente na inclinação de críticos, teóricos e compositores do século XIX, em
interpretar os movimentos da forma-sonata nos termos de um conflito entre um
enfático e viril primeiro tema (“masculino”) com o lirismo mais suave de um
segundo tema (“feminino”). Conflito que tende a ser resolvido num processo de
síntese que se dá na recapitulação final, quando, depois de transitar pela área da
dominante, os dois temas voltam a se encontrar na tonalidade original. Esse relato
metafórico é por sua vez alimentado pelo tipo de unidade diacrônica criada pelo
processo dialético que está na base da forma-sonata.123 Há, desse modo, uma
ênfase no eixo linear (que se apresenta sob a forma de materiais melódicos) como
fator responsável pela manutenção da unidade e da coerência das obras. Isso abriu
terreno para a criação de um simbolismo musical – um sistema extremamente
propício a servir de veículo para ideias extra-musicais, e que, de certo modo, agia
no sentido de semantizar os acontecimentos musicais. Por outro lado, o pendor
narrativo da música romântica parecia conduzir com tal força a experiência da
escuta que terminava por afastá-la da apreensão de uma qualidade mais puramente
sonora. Ou seja, o viés acentuadamente narrativo, com seu passado-presente-
futuro, aparentemente desviava o foco do ouvinte do presente da sensação.
Talvez seja por esse motivo que muitos críticos e teóricos tenham
enxergado em Debussy - com seu apelo às sensações imediatas através do cultivo
do son pur, de estruturas musicais que não mais serviam à lógica do
encadeamento linear, podendo, portanto, apresentar-se livres da cadeia causal -
um ponto de inflexão fora da grande curva da narratividade romântica. Essa visão,
que por vezes quase enxerga a estrutura linear como uma espécie de “vício
122
“(...) no século dezoito, modos musicais eram associados uns com os outros em termos de
relações de classe (vários aspectos do heróico ou diferentes facetas do pastoral, e assim por
diante); no século dezenove, essencialmente os mesmos modos de representação eram associados
uns com os outros em termos de narrativa, de desenvolvimento processual – processos
especificados por um programa”. (Cf. Idem, Ibidem, p.215) (Tradução Livre). É possível mesmo
que haja uma relação entre o caráter de mudança gradual, aberto e contínuo dos protagonistas do
gênero do romance de formação (como o Werther, de Goethe) – romances que possuem como
tema principal a própria mudança operada sobre a personalidade do herói – com a propensão
narrativa da identidade temática na música dos séculos XVIII e XIX. 123
Ver José Miguel Wisnik, O Som e o Sentido, p.150.
96
musical”, e que atrela-se ao que comumente vem sendo chamado de “crise do
sistema tonal”, torna-se clara, por exemplo, na seguinte formulação de Stefan
Jarocinsky:
“Ce n’était pas seulement le destin de la V Symphonie qui «frappait aux portes de
la vie » avec ses quatre notes, ni les seuls Darstellungsmotive qui imposaient à
l’imagination des images concrètes : tout dans ce système pouvait servir de
véhicule à des contenus extra-musicaux, tout devenait sémantique. L’invasion du
langage musical par des concepts et l’éloignement de la pensée musicale de la
réalité sonore étaient souvent favorisés par la prépondérance de l’élément linéaire
dans la construction de l’œuvre. L’introduction de l’élément harmonique dans la
structure mélodique accomplie définitivement au XVIIIe siècle sur la base du
système fonctionnel majeur-mineur, ne changeait rien à cette hégémonie, puisque
en même temps faisait son apparition le système de pensée thématique basé sur la
technique d’imitation”. 124
Fosse ela um fruto da necessidade ou o desdobramento natural de
tendências anteriores, a similaridade temática tornou-se para os românticos do
século XIX (junto com as marcações dos momentos de clímax) o meio mais
eficaz de assegurar a unidade orgânica das obras diante do enfraquecimento da
sintaxe clássica convencional e de uma profusão cada vez maior de idiomas
pessoais (profusão incentivada pelas noções de individualismo e originalidade tão
caras a esse mesmo período, e que acabaram por formar verdadeiros “territórios
estilísticos”).125 A unidade alcançada via similaridade propiciava não apenas o
reconhecimento temático mas também que se aplicasse sobre ele um pensamento
causal-narrativo. Mais do que isso: sua base perceptiva era também igualitária,
pois, funcionando como reconhecimento simples da identificação por semelhança,
de sentidos provocados por meio da repetição temática (ainda que submetida a
pequenas variações), parecia não exigir um entendimento mais aprofundado das
124
“Não era apenas o destino da Quinta Sinfonia que ‘batia às portas da vida’ com suas quatro
notas, nem apenas os Darstellungsmotive impondo imagens concretas à imaginação: tudo naquele
sistema poderia servir de veículo a conteúdos extra-musicais, tudo ganhava uma qualidade
semântica. A invasão da linguagem musical por conceitos e o distanciamento do pensamento
musical da realidade sonora eram geralmente favorecidos pela preponderância do elemento linear
na construção da obra. A introdução do elemento harmônico dentro da estrutura melódica, levada a
cabo definitivamente no século XVIII sobre a base do sistema funcional maior-menor, não mudava
em nada essa hegemonia, pois ao mesmo tempo fazia a sua aparição o sistema de pensamento
temático baseado sobre a técnica da imitação”. (Cf. Stefan Jarocinski, Debussy: Impressionnisme
et Symbolisme, Paris, Éditions du Seuil, 1970, p.64) (Tradução Livre) 125
A radicalização dos idiomas pessoais, fomentada pela crença cada vez maior no valor das
experiências subjetivas e na própria arte como expressão de sentimentos profundos – em oposição
à visão da arte como jogo que se realiza por meio de regras convencionadas, que resultou, por
exemplo, na ars combinatoria do século XVII - tornou, por exemplo, mais difícil confundir as
obras de Chopin com as de Beethoven do que antes era confundir as de Mozart com as de Haydn. Enquanto as convenções da sintaxe eram enfraquecidas, os “territórios estilísticos”
tornavam-se mais demarcados.
97
nuances da gramática tonal. Em outras palavras, apesar de todo o investimento em
parâmetros sonoros não-sintáticos e da busca da imediaticidade de uma resposta
que dependesse o mínimo possível de conhecimento prévio, o desenvolvimento
temático era ainda o grande eixo significante do acontecimento musical.
A unidade vinha também do fato de que os temas pareciam acomodar-se aos
próprios limites da memória, que tornava-se mais efetiva – através da repetição e
do reconhecimento da semelhança – na apreensão de peças que aumentaram
consideravelmente de duração ao longo do século XIX. Porque a unidade de
motivo possibilita uma relação direta com a obra em questão, forjada por uma
espécie de lógica intraopus – lógica fundada na estrutura interna de uma peça
única, em padrões de auto-similaridade, e não pelas convenções gerais,
aprendidas, de um estilo incorporado. O motivo único possibilitava, desse modo,
uma relação mais imediata com a música no sentido de que as expectativas e
muito dos processos de significação da escuta eram fornecidos pela própria obra
– através de sua lógica interna. Para usar termos um pouco mais técnicos, a
identificação de um tema como princípio organizador fundamental do objeto
sonoro solicitava de modo mais enfático uma memória de curto-termo, forjada no
calor da situação, no decorrer do próprio processo de escuta, capaz de criar
expectativas dinâmicas, em contraposição às expectativas esquemáticas fundadas
na memória de longo-termo que forma, justamente, a grande base para uma
fruição mais fina dos estilos.126 No horizonte ideal, cada trabalho deveria ser capaz
de fundar o seu estilo próprio, intransferível, com uma lógica exclusiva podendo
ser apreendida por qualquer ser humano (independente de classe ou origem) a
partir do próprio ato da escuta, mediante suas capacidades inatas. “At the risk of
exaggeration, it may be said that the language model for music represents a
prizing of societal constraints while the organic model celebrates the felicities of
natural constraints”. 127
126
Expectativas dinâmicas diferem no sentido de que são moldadas pela experiência imediata de
uma determinada obra, “como no caso no qual a exposição a um novo trabalho faz com que o
espectador espere passagens similares conforme o trabalho avança”. Ou seja, a memória que está
sendo ativada em maior medida não é a memória da sintaxe adquirida, mas uma memória curta
forjada na própria interação com o trabalho antes desconhecido. Ver David Huron, op.cit., p.413. 127
“Correndo o risco do exagero, talvez seja possível dizer que o modelo da música como
linguagem representa o coroamento das restrições sociais ao passo que o modelo orgânico celebra
as venturas das restrições naturais”. (Cf. Leonard B. Meyer, Style and Music: Theory, History, and
Ideology, p.192) (Tradução Livre)
98
O aumento na duração das obras musicais durante o século XIX constituiu
um aspecto de suma importância, que não deve ter seu valor minimizado, e que
também diz respeito ao aspecto de imediaticidade. Havia chegado ao fim a era das
orquestras e conjuntos privados da nobreza. Os imensos salões e palácios
passaram a pertencer a história do ancien régime, assim como boa parte dos
connoisseurs aristocratas que haviam formado o público de nomes como Mozart,
Haydn e Beethoven. As mudanças do cenário de produção e fruição musicais são
bastante conhecidas: o declínio do patronato da nobreza e do clero sendo
complementado pelo grande crescimento de uma imensa classe média que, além
de acreditar no valor da arte, havia desenvolvido um gosto pela música, tudo isso
levou a uma tremenda expansão do público nas salas de concerto e casas de
ópera.128 Audiências maiores pediam espaços maiores. Espaços maiores afetaram
tanto o tamanho e a composição das orquestras (com cada vez mais
instrumentistas) e das produções operísticas quanto o tamanho e a natureza das
composições apresentadas. É possível que muitas das mudanças na organização
formal e tonal da música do século XIX possam ser traçadas a partir do aumento
na duração das peças musicais.
Com um público menos sofisticado, menos familiarizado com as regras da
sintaxe tonal, pode ter havido uma redução na capacidade de resposta a sutilezas e
nuances formais – que em boa parte dependiam da incorporação de convenções
aprendidas -, indicando uma mudança nas estratégias de composição. Isso pode
estar diretamente ligado à progressiva ênfase dada pela música ao longo do século
XIX aos ditos parâmetros secundários na formação do processo e da estrutura
musicais assim como da própria experiência auditiva. Parâmetros primários são
capazes de estabelecer relações funcionais explícitas (como tônica e dominante,
subdominante dominante, acento e pulso fraco) e tipos específicos de fechamento
(cadências autênticas ou deceptivas, ritmos masculinos ou femininos) que tornam
possível a articulação de relações hierárquicas. Por outro lado, os parâmetros
secundários articulam-se por relações de intensidade que podem ser medidas ou
contadas. Ao contrário do parâmetros ditos primários – que pertencem ao plano da
sintaxe, do aprendizado e das regras -, os parâmetros secundários seriam capazes
de forjar a experiência com uma dependência mínima de regras e convenções
128
Cf. Otto Maria Carpeaux, Uma Nova História da Música. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p.349.
99
aprendidas. (Mais uma vez estamos no reino do acontextualismo e da
imediaticidade). Mesmo na ausência de estruturação sintática, a ascensão gradual
das alturas, dinâmicas de crescimento progressivo do volume, índices maiores de
velocidade e movimento tendem a sublinhar a excitação e a intensidade. De modo
inverso, alturas descendentes, dinâmicas mais macias, taxas reduzidas de
movimento e mudança são capazes de nos induzir a um estado de relaxamento,
repouso e apaziguamento.
Desse modo, ao estabelecer um continuum de estados relativos de tensão e
repouso – alto/baixo, rápido/lento, denso/exíguo – a música neles baseada poderá
cessar de existir, acabar, mas não fechar. Realiza assim, por meios sonoros, a
própria concepção de um vir-a-Ser aberto, em movimento perpétuo. Os
parâmetros secundários não podem servir de base para a construção de hierarquias
articuladas, mas apenas para hierarquias contínuas e emergentes, calcadas em
intensidades. Seriam esses, portanto, os meios “naturais” da música – em
contraposição aos meios convencionados – que se tornaram cada vez mais
importantes para a experiência musical no decorrer do século XIX. Mesmo os
emergentes mais incultos da nova classe média poderiam apreciar a força violenta
e o poder das apoteoses de Tristão e Isolda ou das grandes óperas francesas, assim
como também eram capazes de reter na memória o desenho de um único motivo,
e, através de um mecanismo de identificação e comparação, relaciona-lo a um
processo narrativo. É desse modo que a tendência narrativa caminha de mãos
dadas com uma ênfase cada vez maior no efeito instantâneo, aparentemente
natural, das sensações musicais.
De fato, a criação de uma unidade formal através do princípio de
similaridade aponta para um concepção musical mais ancorada na dinâmica
perceptiva natural do que nos procedimentos sintáticos de uma gramática
convencionada. Dito de outra forma, à medida que os românticos enfraqueciam as
articulações do discurso tonal clássico, passaram a explorar com mais intensidade
premissas básicas da dinâmica auditiva, menos permeadas pelos aspectos culturais
– como a percepção de timbres, texturas, variação de volumes, dinâmicas de
andamento e, o que é mais importante para o presente argumento, o
reconhecimento de similaridades como fator fundamental para o engajamento da
memória no ato da escuta. Através da memória, o espectador tornava-se capaz de
criar expectativas adequadas mesmo quando não possuía o domínio integral do
100
código tonal – as expectativas satisfeitas, por sua vez, geravam a noção de uma
interação adequada entre público e obra, fazendo com que o evento musical
gerasse certo prazer. Esse ponto é fundamental, pois a partir da segunda metade
do século XVIII os artistas europeus tornaram-se cada vez mais dependentes do
sucesso junto ao grande público formado pela nova classe média burguesa.
O argumento cognitivista que, de certo modo, justifica a estratégia dos
compositores românticos, e também parte das mudanças na música e na escuta do
século XIX, pode ser posto nos seguintes termos:
In addition to repetition, events can be made more predictable within works by
creating passages that are similar. Where continued repetition ultimately leads to
boredom or habitutation, similarity allows elements of novelty to be introduced
that help forestall these potentially negative experiences while simultaneously
allowing some predictive accuracy. (...) For composers who aim to evoke pleasure,
the more a musical work departs from schematic conventions, the greater the
importance of repetion and self-similarity. This principle also applies to listeners:
when experiencing the music of another culture for the first time, the most
accessible works will be those that tend to be the most repetitive and self-similar.
Of course, the capacity for a work to evoke pleasure will also increase with
repeated listenings.129
Acredito que o princípio da unidade por semelhança, já praticado pelos
românticos, foi crucial no desenvolvimento do estilo maduro de Debussy. Foi ele
que lhe permitiu de certo modo, e em certos momentos, romper o fio da
linearidade temática do discurso tonal para reorganizar a experiência musical em
outro plano – geralmente através de concatenções imprevistas, organizadas não
pela lógica antecedente/consequente, mas por elipses e redes de analogias (afinal,
também as analogias operam por semelhanças).
No campo da matemática, analogia implica a equivalência de duas
proporções; na biologia, ela implica uma equivalência de funções – são análogos
dois órgãos que cumprem a mesma função, mesmo que tenham origem e estrutura
distintas. Na análise lógica, geralmente se fala de analogia de relação ou
129
“Além da repetição, eventos podem tornar-se mais previsíveis no interior das obras através da
criação de passagens semelhantes. Enquanto a repetição contínua tende a gerar tédio e
acomodação, a semelhança permite que elementos de novidade sejam introduzidos de modo a
evitar experiências potencialmente negativas, permitindo ao mesmo tempo que alguma acuidade
de previsão seja mantida. (...) Para os compositores que pretendem evocar prazer, quanto mais um
trabalho se distancia das convenções esquemáticas, maior deverá ser a importância da repetição e
da auto-semelhança. Tal princípio também deve ser aplicado aos ouvintes: quando
experimentamos a música de outra cultura pela primeira vez, mais acessíveis serão as obras que
tendem a ser as mais repetitivas e auto-semelhantes. Obviamente, a capacidade que um trabalho
tem de evocar prazer será também ampliada através de audições repetidas”. (Cf. David Huron,
op.cit.., p.367) (Tradução Livre)
101
atribuição, que é quando um predicado muda parcialmente o seu significado de
acordo com o sujeito com o qual se relacional. A analogia diz respeito, portanto, a
relações de semelhança entre proporções, funções ou predicados – diz respeito às
relações dos signos entre si, e não entre signos e significados. Desse modo, as
correspondances de Baudelaire são analogias, os sentidos (paladar, olfato,
visão...) remetendo-se uns aos outros numa rede infinita de ecos, aludindo
continuamente a uma intensamente desejada, mas sempre inalcançável,
“ténébreuse et profonde unité”. Acontece que, nesse contínuo movimento de
ziguezague entre os signos, em seus inúmeros paralelismos, o que acaba
desaparecendo é o próprio significado – e aqui está Le démon de l’analogie,
proposto por Mallarmé.130 Diante da constatação da impossibilidade de se
estabelecer um elo não- arbitrário entre significante e significado, são as próprias
relações entre signos e sistemas de signos que se tornam capazes de indicar a
possibilidade de que um sentido substancial apareça no horizonte. No caso da
música, onde a relação com o significado é sempre complicada, Lorenzo Mammì
notou que a ação corrosiva das analogias incide sobre a direcionalidade, sobre a
funcionalidade sintática da composição: “É analógica uma figura desprovida de
sentido tonal definido inserida numa progressão tonal, que simule uma função
harmônica sem completá-la de fato, e provoque não tanto uma total desilusão, mas
um leve desvio, a abertura de perspectivas inesperadas (“Accords incomplets,
flottands”. “Il faut noyer le ton”. “Alors on aboutit où on veut, on sort par Ia porte
qu’on veut”). É igualmente analógico (no sentido de analogia de atribuição) um
acorde tonal inserido em um contexto que transforme radicalmente suas funções,
ainda que deixe intactas algumas de suas características. Debussy é mestre em
tirar proveito de ambas as possibilidades”.131
Não foi necessário para Debussy negar completamente a lógica tonal.
Apenas sobrepôs a esta outras lógicas possíveis, “passando através de suas malhas
130
Nesse poema (Le Démon de l’Analogie) Mallarmé descreve com um certo horror a sensação de
sentir-se cercado de signos que se remetem uns aos outros, numa rede infinita de ecos, enquanto o
sentido desapareceu (“le vide de la signification”). Ao constatar a impossibilidade de uma relação
não-arbitrária entre significante e significado, o poeta termina por confiar às próprias relações
entre signos e entre sistemas de signos, desvinculados de seu significado imediato, a possibilidade
de um sentido substancial, não meramente rotineiro, aparecer no horizonte. (Ver Stéphane
Mallarmé, Mallarmé: Poésie et Autres Textes, Paris, Éditions Gallimard, 2007, p.276) 131
Lorenzo Mammì, “O demônio da analogia : Algumas melodias juvenis de Claude Debussy “.
In. Analise Musical, São Paulo, n. 3, 1989, p. 52-67.
102
ao invés de romper com ele”.132 Dois procedimentos merecem ser aqui
sublinhados, por terem sido largamente utilizados por Debussy: por um lado, a
geração da escala de tons inteiros mediante a transformação enarmônica do trítono
e, por outro lado, o emprego da 7ª de dominante com a 5ª abaixada, para criar uma
situação de desnorteamento ou de suspensão tonal. Na realidade, as duas
operações podem se reduzir a um único princípio: a substancial ambiguidade do
trítono – uma espécie de brecha estrutural própria ao sistema tonal.133 O trítono é
um dissonância incontornável, a “falha” que habita o interior da escala diatônica.
Falha que será, mediante um acordo, estabilizada no acorde de sétima dominante,
acorde que por conter dentro de si o trítono si-fá irá se tornar o grande depositário
da tensão tonal – gerando a dialética permanente da estabilidade e instabilidade
que caracteriza o sistema. Nas cadências, o intervalo formado pela sensível e a
contra-sensível (os graus VII e IV da escala maior) torna-se o elemento capaz de
indicar univocamente a tonalidade (através do deslizamento de semitom das duas
sensíveis que convertem-se na tríade maior). Ao mesmo tempo, por dividir ao
meio a oitava, o trítono torna-se igual à sua própria inversão, gerando com isso
um princípio de instabilidade, de indefinição. Desse modo, quando não aparece
em uma situação tonal (com num acorde de sétima dominante), o trítono não
define por si só qual é a sensível e qual é a contra-sensível – uma vez que não há
diferença entre o intervalo e sua inversão. Dito de outro modo, quando não conta
com pontos de referência nos quais se apoiar, o trítono indica simultaneamente
não uma, mas duas tonalidades. Passada a fase clássica da linguagem tonal –
quando todas as funções harmônicas contribuíam para reforçar os dois grandes
centros gravitacionais do sistema, a tônica e a dominante – há uma aceleração
cada vez maior dos mecanismos modulantes. As referências aos centros tonais que
orientam a composição tornam-se cada vez mais rápidas e elípticas. Dissonâncias
avulsas, acordes de sétima não preparados, alterações imprevistas no interior de
uma progressão passam a indicar, cada vez mais, tonalidades passageiras, que não
chegam a ser confirmadas por um mecanismo cadencial. Desse jeito, são cada vez
mais necessários caminhos abreviados, diretos - sinais capazes de evocar por si
sós um centro tonal. O acorde de sétima de dominante será, num primeiro
132
Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia vol.4 ( Acerca do
Ritornelo), São Paulo, Editora 34, 1997, p.169. 133
Ver, nesse sentido, a clássica análise de Prélude à l’Après-midi d’un Faune, feita por Jean
Barraqué (Jean Barraqué, Debussy, Paris, Éditions du Seuil, 1962 et 1994 p.107)
103
momento, capaz de indicar sozinho a tonalidade; depois, de um modo mais
enxuto, bastará apenas o trítono nele contido.
Tirando proveito dessa brecha do sistema, sua música abre, nos pontos de
maior tensão, momentos de suspensão, janelas que revelam outras paisagens
sonoras. Ao afrouxar a lógica discursiva da tonalidade, o músico francês elabora,
de modo progressivo ao longo de sua trajetória artística, procedimentos
analógicos e de associação livre no interior do próprio tecido tonal. Talvez seja
possível dizer que as aspirações igualitárias e anti-convencionalistas, que
certamente exerceram forte influência sobre as estratégias artísticas dos músicos
românticos, atingiram um alto grau de maturação nas composições de Debussy,
que, em sua obsessão de escapar do julgo de um sistema tonal gasto, e, ao mesmo
tempo, na exigência de uma música que pudesse ser fruída de forma prazerosa,
simples e direta (“La musique doit chercher humblement à faire plaisir”),
terminou por criar alguns dos mais bem acabados exemplares de uma música
aberta, livre, definidora de suas próprias regras, guiada pelo princípio orgânico de
uma forma auto-gerada.
O gesto de Baudelaire, assim como a própria música de Wagner e a
posterior resposta de Debussy precisam ser analisados à luz da progressiva
ampliação dessas tendências que marcaram em profundidade o século XIX.
Dentro da lógica de reforço dos parâmetros secundários e da busca por um efeito
mais direto, menos permeado pela instância discursiva, a harmonia cumprirá um
papel decisivo. Ao que parece, ela será, talvez mais do que a melodia e o ritmo,
capaz de encarnar, no quadro da música européia, o encontro da dimensão
discursiva com a dimensão da sensação mais pura, menos subordinada às regras
do jogo musical. Na tradição homofônica do Ocidente, na qual a maior parte do
significado musical é retirado justamente do material melódico, a economia dos
acordes cada vez mais cumprirá a função de relativização do discurso tonal,
aumentando sua carga de ambiguidade e incerteza ao mesmo tempo em que
afirma-se ela própria como instância independente, capaz de evocar, pela simples
adição de sons verticais, sensações independentes da lógica discursiva do
encadeamento funcional clássico. Ou seja, sensações cada vez mais imediatas.
Afirmando-se cada vez mais como plano sintático autônomo no discurso tonal,
sem no entanto tornar-se ela mesma o grande eixo produtor de sentido das obras, a
harmonia tende a operar num plano mais recuado, através de enquadramentos que
104
modificam a percepção do material temático – o foco principal da escuta. É difícil
não perceber o fato de que, para aqueles que não são músicos, que não possuem
uma percepção treinada, a harmonia geralmente é percebida como cenário de
fundo em relação ao motivo “protagonista”.
Essa percepção, contudo, mesmo que não ocupe o primeiro plano da escuta,
possui muitas vezes uma grande nitidez formal, capaz de situar a hierarquia tonal
de modo inequívoco – as cadências são o exemplo mais pungente disso – e,
sobretudo, de criar sentidos de encadeamento e movimento sônico. Não é difícil
perceber que, no ensaio sobre Wagner, uma boa parte da descrição de Baudelaire
refere-se, justamente, ao uso da harmonia. Embora não possua um vocabulário
técnico específico para descrevê-la, o poeta francês atribui a ela, justamente,
aquele excesso de energia que fazia a música do compositor alemão participar de
modo inequívoco da modernidade. Tal energia é apresentada sob a forma de um
movimento incessante e de um aumento contínuo de intensidade que leva
Baudelaire a conceber esse aspecto da música de Wagner não nos termos de um
desenvolvimento narrativo, nem tampouco de uma forma arquitetônica definida,
mas como uma simples impressão de cor - uma gradação que vai do vermelho ao
branco! “Geralmente essas profundas harmonias pareciam-me assemelhar-se aos
excitantes que aceleram o pulso da imaginação. (...) Há em todos os lugares algo
de arrebatado e arrebatador, algo que aspira a elevar-se mais alto, algo de
excessivo e superlativo”, escreve o poeta, fazendo da dimensão harmônica o eixo
central de sua escuta clínica.
...
É possível que tenha sido Debussy o primeiro grande músico a tirar proveito
do acorde como bloco sonoro harmônico, “considéré en premier lieu comme
spectre sonore, ensuite comme participant – éventuelement – du processus
fonctionnel”.134
Proclamando sua indiferença à gramática tonal e afirmando sua
atenção ao som, cria acordes sem qualquer direcionalidade, independentes e
desvinculados do sistema de polarizações do jogo tonal, fruídos como sonoridade
pura. Não há dúvida de que o pensamento harmônico foi um dos seus grandes
134
Cf. André Boucourechliev, Debussy: la Révolution Subtile, Paris, Librairie Arthème Fayard,
1998, p.22.
105
temas de investigação ao longo da vida, tendo sido ele mesmo, antes de tudo, um
compositor da harmonia, “um estudioso da física subjacente à harmonia”, como
escreveu o crítico Alex Ross.135
Vladimir Jankélévitch irá falar de uma “sensualité
harmonique, et surtout une gourmandise de sonorités” capaz de colocar sua
música na antípoda de toda consciência infeliz e de toda subjetividade
introvertida. “Le son pur concret prenait chez lui l’importance d’un élément co-
créateur de la structure de l’œuvre, au même titre que la mélodie, le rythme et
l’harmonie”.136
Pois ele havia descoberto “o som como ação acústica elementar,
independente dos conjuntos artísticos de sons religados de acordo com o princípio
funcional”.137 Debussy estava, de fato, preocupado com a dimensão vertical da
música, com o aqui e agora da sensação sonora. Mas não apenas com isso. Dizer
que sua música é essencialmente estática – adjetivo aplicado sem grandes
problemas a boa parte do filão posterior da música francesa, de Fauré a Satie – é
retirar dela o que possui de mais misterioso, de mais inovador.
Foi comentado que a adição de cada vez mais notas dentro do acorde
(oriundas de outros modos ou simplesmente cromáticas) tendia a enfraquecer, ou
encobrir, sua função tonal.138
Dos acordes perfeitos maiores da Renascença às
sétimas, assimiladas no decorrer dos séculos XVII e XVIII, passando pelas nonas,
normalizadas entre Wagner e Debussy, até finalmente chegar ao intervalo de 11ª e
12ª incorporados na música contemporânea, houve um verdadeiro processo de
expansão das alturas, muitas vezes tido como real e inexorável evolução. Um
processo que em muitas ocasiões foi explicado de acordo com as propriedades
físicas do som: uma espécie de “escavação” que sacava e normalizava
paulatinamente - no intuito de suprir às demandas de originalidade e espanto que
decorriam da lógica evolutiva na qual embarcara a arte ocidental – os intervalos
naturais da série harmônica subjacente ao fenômeno do som. Inicialmente dotados
135
Cf. Alex Ross. O resto é ruído: escutando o século XX. São Paulo: Companhia das Letras,
2009, p.59. 136
“O som puro concreto ganhava nele a importância de um elemento co-criador da estrutura da
obra, com o mesmo valor que a melodia, o ritmo e a harmonia”. (Cf. Stefan Jarocinski, Debussy:
Impressionnisme et Symbolisme, p.65) (Tradução Livre) 137
Cf. Kurt Westphal, Apud., Stefan Jarocinski, op.cit.., p.68. 138
“Mas há outras variedades de cromatismo que colocam o sistema tonal num perigo mais ou
menos grande. Um deles vem dessas superposições de sons em acordes complexos (...). As
agregações assim obtidas são muito belas em si mesmas, mas produz-se uma espécie de diluição
de seu caráter funcional. Deixam de ter uma orientação definida, o que implica um
enfraquecimento do seu dinamismo”. (Cf. Henry Barraud. Para Compreender as Músicas de Hoje.
São Paulo: Perspectivas, 2005, p.39)
106
de um certo grau de tensão, portadores de ares novidadeiros para um velho e gasto
repertório tonal, esses intervalos depois de certo tempo acabavam perdendo, pelo
uso, o seu efeito tensionante.139
Eram incorporados como norma, perdendo parte
do encantamento. Leonard Bernstein veria nisso o resultado de um caminho
trilhado no sentido de suprir cada vez mais a linguagem tonal de “ambiguidades” -
indeterminações de sentido, capazes de deixar um leve rastro de sugestão,
renovando com isso as possibilidades expressivas de um discurso já meio
surrado.140
Ao mesmo tempo, ao sobrepor cada vez mais intervalos, os acordes
acabariam por se tornar verdadeiros “buquês de notas” – “pavões sonoros” cuja
beleza imediata, concreta e singular, baseada na complexidade de suas relações
internas, solicitava de tal modo a atenção do ouvinte que terminava por desviá-la
da corrente discursiva, enfraquecendo assim toda a dinâmica tonal. Uma espécie
de aparição estática, momento fugaz de beleza e espanto, capaz de nos arremessar
para fora do fluxo da linguagem musical.
Muito do que a crítica habitualmente definiu como Impressionismo musical
diz respeito, justamente, a essa qualidade plástica de agregados sonoros
verticalizados, cada vez mais estáticos, tendendo a gerar planos espacializados
que enfatizavam a sensação sonora muito mais do que o sentido discursivo. A
noção de um estilo impressionista servirá cada vez mais para definir peças
fortemente marcadas por acordes dissonantes com grande volume de notas, nos
quais se verá um parentesco direto com a técnica da pintura impressionista, que
criava a representação através da justaposição de pequenas manchas (petites
touches) de cores variadas. De modo semelhante, o enfraquecimento do
sentimento tonal nessas peças tenderá a ser comparado com a falta de uma
perspectiva marcada nos quadros impressionistas, com sua pouca profundidade. A
própria utilização de um termo oriundo da pintura já traz em si uma série de
pressupostos e concepções arraigadas que de certo modo condicionam o tipo de
escuta usada na aproximação de tais obras. Dentre as mais importantes
concepções trazidas ao se efetuar a comparação da pintura impressionista com boa
parte da música francesa da segunda metade do século XIX podemos mencionar
pelo menos três: a qualidade estática (própria à pintura, e talvez enfatizada pela
139
Ver José Miguel Wisnik, O Som e o Sentido, p.116. 140
Ver Leonard Bernstein, The Unanswered Question: Six Talks at Harvard by Leonard
Bernstein, DVD, v.4.
107
tendência à representação de paisagens estáticas entre os impressionistas, nas
quais o movimento não possui muita relevância), o forte apelo às sensações (que
vem da utilização de uma quantidade cada vez maior de cores secundárias que
formam verdadeiros acordes cromáticos) e a aparente irrelevância temática
(herdada do naturalismo e levada às últimas consequencias no Impressionismo
pictórico, mediante enquadramentos que, influenciados pela fotografia, ganham
ares cada vez mais fortuitos).
Nesse contexto, Debussy seria visto, desde a aparição de Prélude à l’Après-
midi d’un Faune, como o grande inaugurador e representante máximo do
Impressionismo musical. É possível que a própria descrição de sua obra nos
termos da pintura, muito mais do que da música, tenha servido como uma espécie
de programme que servia para orientar a fruição de uma música que desafiava as
classificações convencionais. Do mesmo jeito que, na música romântica, o
programme servia para guiar a escuta de um público menos treinado nas regras do
discurso tonal, servindo-lhe com possíveis analogias e ganchos narrativos que
pudessem facilitar a interação com a música, a comparação de Debussy com a já
consagrada escola impressionista de pintura servia também como fio condutor
para uma experiência musical nova. Não é preciso dizer que essa tendência trouxe
uma série de equívocos e simplificações na análise da obra de Debussy, mas num
momento inicial é provável que tenha servido como chave de entrada no seu
universo. Reforçada pelo conteúdo altamente imagético de seus títulos – Images,
Nuages, Des Pas Sur La Neige, Clair de Lune, para citar apenas alguns,
apanhados ao acaso – ela cumpriria também o importante papel de distanciar a
apreensão de sua música do paradigma narrativo que marcou a música romântica
e, sobretudo, a obra de Wagner. O parâmetro de comparação, embora algo
equivocado, não eram mais histórias, e sim quadros de paisagens, focados menos
nas ações humanas do que nas sensações dos jogos de luz.
Essa mudança, como não poderia deixar de ser, deveria ser compreendida
em relação a Wagner. Era preciso fazer um balanço justo do que havia não apenas
de ruptura, mas também de herança em relação ao mestre alemão. Já em 1941,
Schoenberg declararia em conferência feita na Universidade da Califórnia que “a
harmonia de Wagner havia causado uma reviravolta da lógica e da potência
construtiva da harmonia. Uma das consequencias desse estado de coisas foi o uso
dito impressionista das harmonias, que encontramos sobretudo em Debussy.
108
Destituídas de significação construtiva, essas harmonias servem amiúde a um
objetivo ‘colorista’, elas buscam exprimir uma atmosfera e imagens. Ora, as
atmosferas e as imagens, sendo elas de origem extra-musical, tornam-se assim
elementos construtivos incorporando-se finalmente às funções musicais”.141 A
visão de Schoenberg reverbera naquela exposta por Adorno em seu clássico livro
Filosofia da Nova Música, quando, depois de afirmar que Stravinski aprendeu do
Impressionismo a lição da “atemporalidade” musical, comenta especificamente o
estilo de Debussy: “O ouvido deve orientar-se de maneira diferente para
compreender exatamente Debussy, para entendê-lo, não como um processo de
tensões e resoluções, mas como uma justaposição de cores e superfícies, como a
de um quadro. Tecnicamente torna isso possível, em primeiro lugar, o que Kurt
Westphal definiu como harmonia ‘privada de funções’. Ao invés de expressar
tensões de graus harmônicos, desprendem-se de vez em quando complexos
harmônicos estáticos em si mesmos e permutáveis no tempo”.142 Nas mãos de
Schoenberg e Adorno a música de Debussy torna-se aparentemente frívola,
superficial na pior acepção do termo – “o colorido é excessivo e se impõe aos
complexos harmônicos”, dirá Adorno. O importante é notar o modo como
nenhuma das duas críticas dá conta, ao analisar a música de Debussy, de sua
dimensão de articulação sintática, capaz de conduzir o movimento sonoro de
acordo com uma lógica que não era exatamente aquela que predominava no
desenvolvimento wagneriano – e de que talvez seja justamente este o ponto mais
fecundo e inventivo do seu estilo. Uma lógica que seria descrita por Pierre Boulez
como “pulverização elíptica da linguagem”, capaz de destruir a organização
formal pré-existente à obra (a dos schemas melódicos e harmônicos, por
exemplo). Mas mesmo sem atentar para essa outra dimensão de reconstrução do
sentido musical, mesmo que tenham reduzido a música de Debussy ao chavão de
uma “estética das sensações”, nem Schoenberg nem Adorno deixaram de enxergar
o modo como ela se relacionava com o uso da harmonia feito pelo mais influente
compositor alemão da segunda metade do século XIX.
No ano de 1890, Debussy relatava numa carta, entre estupefato e desafiado,
que “é Tristão que atravanca o caminho de nosso trabalho” – “não vejo o que
pode ser feito para além de Tristão”. Em dois anos consecutivos ele havia feito a
141
Citado em Stefan Jarocinski, Debussy: Impressionnisme et Symbolisme, p.35 (grifo meu) 142
Cf. Theodor Adorno, Filosofia da Nova Música, p.145.
109
peregrinação a Bayreuth. Numa outra ocasião, faria o seguinte comentário sobre
Tristão e Isolda, a ópera tida como verdadeiro epítome do Romantismo musical:
“c’est décidément la plus belle chose que je connaisse (...)”.143 Sabia tocá-la
inteira em versão para piano.144 “No composer of this period came to know and
understand the music of Wagner better than Claude Debussy, and nobody was to
find a better means of escape”.145 Depois da hostilidade inicial contra Wagner (e
da consequente intervenção de Baudelaire), veio um período de imensa paixão por
sua obra, paixão que beirava a mania e que tomou um verdadeiro vulto sobre os
novos compositores franceses. De fato, parece que a partir de Debussy e Fauré a
música francesa reutiliza muitas das harmonias wagnerianas. Elimina delas,
contudo, qualquer resquício de concatenação necessária, reduzindo-as a mônadas
auto-suficientes, interligadas apenas por analogias. Traz desse maneira uma
qualidade mais puramente estática que aparentemente não existia em Wagner. Ao
mesmo tempo, a mitologia e a estética do compositor alemão passam, na França
dos simbolistas, por um radical processo de esquematização e estilização que as
afasta das suas raízes românticas. Em Wagner, o acorde dissonante, raramente se
resolve por completo numa consonância; nunca deixa, porém, de simular uma
resolução, através de infinitas mediações, sem jamais alcançar um ponto de
repouso. Criando uma densidade cromática na qual a resolução da dissonância é
sempre adiada, a regra na qual uma nota dissonante tende a se resolver, ou
“corrigir-se”, acaba tornando-se parte de um longo e arrastado processo no qual o
acorde que deveria servir como resolução torna-se ele próprio o motor de uma
nova dissonância, afastando novamente o horizonte resolutivo. Vem daí a
sensação de movimento contínuo que forma a base de sua “linguagem do anseio”:
uma harmonia tensa tenderia a resolver-se sobre outra harmonia tensa, e assim por
diante, adiando repetidamente o momento da “chegada” – ou do “gozo” da
consonância proporcionada por uma tônica que efetivamente completa a cadência
e “resolve” o jogo musical.146
143
Cf. Claude Debussy, Correspondance (1872-1918), Paris, Éditions Gallimard, 2005, p.62 144
Ver Jean Barraqué, Debussy, p.121. 145
“Nenhum compositor desse período chegou a conhecer e a compreender a música de Wagner
melhor do que Claude Debussy, e nenhum conseguiria encontrar os meios melhores para dela
escapar”. (Cf. Paul Roberts, Claude Debussy, New York, Phaidon Press, 2008, p.81) (Tradução
Livre) 146
O termo original - “the language of longing” – foi cunhado por John Freeman. Ver: Freeman,
J.W. (1992). “The Language of Longing: Only at the Final Cadences does “Parsifal” Resolve Its
Musical Question”. In. Opera News 56 (Marh 28), p.26-29.
110
Do ponto de vista psicológico, a música de Wagner tende a re-atualizar
continuamente a tensão que naturalmente antecede a realização de algo previsto.
Com Wagner, “vemos o que parece ser a primeira tentativa sustentada para
sistematicamente frustrar as expectativas – para consistentemente não dar aos
ouvintes o que eles esperam”.147 O ouvinte é, por assim dizer, aprisionado num
estado perpétuo de expectativa irrealizada – atado ao movimento de uma ânsia
que jamais se consuma. Grande parte desse jogo, que primeiramente atiça para
depois negar a expectativa, realiza-se sobre suas harmonias cromáticas, e,
especialmente, sobre a manipulação dos gestos clássicos da cadência simples. E
isso porque é justamente na cadência em que a previsibilidade musical torna-se
mais clara e segura – é onde o ouvinte tem mais certeza do que esperar como
desdobramento, tornando-se então excitado diante de ver suas expectativas serem
confirmadas. A tensão psicológica tende a ser aumentada quando se atrasa os
resultados esperados. Quanto maior for a expectativa, maior será o efeito do
atraso. Especialmente em seus últimos trabalhos, Wagner fez de tudo para evitar,
suspender, suprimir ou retardar a resolução cadencial. O compositor alemão usa o
clichê como matéria bruta para seu jogo psicológico com o ouvinte. Não há
pontos de repouso – a tônica, quando aparece, vem disfarçada através de
inversões. Wagner precisa dela para evocar no ouvinte o schema apropriado capaz
de suscitar o “sentimento da tonalidade”; o disfarce, contudo, é necessário para
manter a experiência de instabilidade psicológica. A dominante, por outro lado,
geralmente aparece de forma clara e facilmente reconhecível, pois é a
responsável por despertar o forte sentido de antecipação e tendência que emana de
sua música. “Wagner seems to love every aspect of the classical cadence except
three: the resolution, the persistent reinforcing of a single key area, and the
tendency to interrupt the musical flow. In short, Wagner is attracted to the strong
‘tending’ quality of cadential patterns, but repulsed by the evoking of closure or
repose”.148
É notável a semelhança de tal procedimento com a concepção, pregada pela
ideologia romântica, de um vir-a-Ser em constante processo. Algo muito forte,
147
Cf. David Huron, Sweet Anticipation: Music and the Psychology of the Expectation, p.333. 148
“Wagner parece amar cada aspecto da cadência clássica, com exceção de três: a resolução, o
reforço persistente de uma única tonalidade, e a tendência a interromper o fluxo musical.
Resumindo, Wagner é atraído pela forte qualidade ‘direcional’ dos padrões cadenciais, mas
repelido pela ideia de fechamento ou repouso”. (Cf. David Huron, op.cit.., p.338) (Tradução Livre)
111
contudo, está por trás desse Vir-a-ser, arrastando-o com força em determinada
direção: é a ideia de um sentido resolutivo, de um retorno a uma unidade perdida,
a um fim, a um ápice de realização total que justifique a tremenda angústia da
espera. Na música de Wagner, o processo indica de modo nítido a trilha que
conduz a determinado ponto. A noção romântica de uma obra a ser realizada
como um processo orgânico, gradual e necessário, estava intimamente ligada ao
pensamento de que esse mesmo processo era direcionado para uma realização, um
objetivo a ser alcançado. Tal visão também estava presente na teoria biológica do
século XIX, como deixa claro a seguinte passagem de François Jacob:
The very idea of organization, hereafter implicit in the definition of a living
organism, is inconceivable without the postulate of a goal identified with life: a
goal no longer imposed from without, but which has its origin in the organization
itself. It is the notion of organization, of wholeness, which makes finality
necessary, to the degree that structure is inseparable from its purposes.149
Talvez seja pertinente apontar que uma das grandes diferenças que separa a
música de Debussy daquela de Wagner, não está exatamente no fato de uma ser
estática enquanto a outra se movimenta de modo frenético, mas sim de que
enquanto uma faz da promessa da realização de um objetivo seu grande motor de
desenvolvimento, o centro polarizador da matéria sonora, capaz de determinar
uma direção para o movimento sônico, a outra irá encarnar um processo que não
mais aponta em um sentido único, mas que pulveriza-se em fragmentos estáticos
ou apontados em diversas direções, mas que de todo modo não estão conectados
linearmente. De fato, muitas peças de Debussy se aproximam de verdadeiras
emaranhados sonoros, malhas fluidas onde não se consegue captar o motivo.
Conforme seu estilo maduro vai se desenvolvendo há uma tendência cada vez
maior a “pulverizar” os fios temáticos, de maneira que eles passem a se articular
por uma lógica associativa, não-linear – procedimento que atinge um ponto
culminante em suas obras tardias, como o balé Jeux e as peças para piano Blanc et
Noir.150 Ao contrário do que ainda acontecia em Wagner, as composições tendem
149
“A ideia mesmo de uma organização, a partir de então implícita na definição do organismo
vivo, é inconcebível sem o postulado de uma meta identificada com a vida: uma meta não mais
imposta de fora, mas que tem a sua origem na própria organização. É a noção de organização, de
completude, que faz com que a finalidade seja necessária, e isso ao ponto de tornar a estrutura
inseparável de seus propósitos”. (Cf. Apud., Leonard B. Meyer, Style and Music: Theory, History,
and Ideology, p.196) (Tradução Livre) 150
Ver, nesse sentido, o trabalho de Marianne Wheeldon, Debussy’s Late Style. Bloomington,
Indiana University Press, 2009.
112
a ser articuladas por complexas redes de analogias, por inesperados movimentos
associativos, e não mais como o desdobramento lógico de um princípio temático
de base. As articulações tonais clássicas não foram totalmente excluídas de sua
estranha arquitetura - são antes forças que podem ser a qualquer momento
ativadas, trazidas para o jogo musical, e logo depois desligadas. Desse modo, o
foco é muitas vezes desviado do desenvolvimento melódico único para as
sensações harmônicas, para o colorido timbrístico de suas dissonâncias
congeladas, de seus accords flottands.
Ao renunciar à harmonia funcional e ao contraponto - os dois principais
fatores de coesão de que podia dispor, e por meio dos quais a obra se articulava
em uma série de relações de causa e efeito, antecedente e consequente – Debussy
cria uma estrutura na qual o modo pelo qual as partes se relacionam não é mais
hierárquico, e que, por não mais pressupor um antes e um depois, torna-se algo
semelhante à livre associação de ideias. Ou seja, ao contrário do que acontece na
música romântica em geral, no caso do compositor francês já não é mais possível
pensar a composição como série de consequencias lógicas de um único
pressuposto, como se fosse o desdobramento de uma melodia infinita ou como o
resultado de uma única concatenação de acordes. Ao mesmo tempo, sua sintaxe
própria, que escapa continuamente às explicações dos analistas, não se deixa
reduzir à repetição, justaposição e superposição de elementos heterogêneos,
enrijecidos em formulações estáticas, como acontece, por exemplo, no caso de
Satie e do primeiro Stravinski. Na obra de Debussy, as várias passagens
combinando tons inteiros com relações cromáticas, muitas vezes seguidas de
tríades diminutas, indicam uma forte dinâmica processual, mas sem um objetivo
tonal propriamente dito – sem que uma nota particular ou um acorde específico
estabeleça o ponto de fechamento ou chegada da seqüência musical. Trata-se de
uma qualidade diferente de articulação sintática, capaz de criar outra dinâmica de
movimento: um movimento livre da gravidade, que não mais indica uma direção
contínua, com todas as relações linearmente encadeadas que lhe são próprias.151
151
Passagens com essa dinâmica de movimento são encontradas, por exemplo, em Nuages, ou na
seção intermediária de L’Après-midi d’Un Faune, quando o esquema melódico do tema da flauta é
recriado de modo estilizado, remetendo mesmo a uma espécie de “improvisação” em tons inteiros
(o que levou Leonard Bernstein a indicá-lo como o primeiro uso de escala atonal na música
européia – ver The Unanswered Question: Six Talks at Harvard by Leonard Bernstein, DVD,
Vol.4). De maneira ainda mais intensa é essa a dinâmica que perpassa o movimento
descentralizado de uma peça como Voiles, peça sem um pólo de atração bem definido e sem a
113
É preciso saber, desse modo, de que maneira essa dinâmica é criada. Uma
intuição profunda do modo como Debussy assimilou a música de Wagner aparece
no mesmo livro de Adorno, e vale a pena ser citada:
A natureza adinâmica da música francesa pode talvez fazer-se remontar a seu
inimigo declarado, Wagner, a quem contudo se costuma censurar uma dinâmica
insaciável. Já em Wagner o decurso musical é, mais de uma vez, um mero
deslocamento. E dali deriva a técnica temática de Debussy, que repete sem
desenvolvimento sucessões sonoras muito simples.152
O material melódico da época de Wagner já é enrijecido demais para
permitir um desenvolvimento real, no sentido clássico. As células temáticas não
se transformam, apesar do grande movimento harmônico. Em outras palavras, há
uma circulação contínua da tensão, sem que essa tensão consiga, em momento
algum, ter uma influência efetiva sobre o grupo de motivos que constitui o
conjunto da obra. É o que Adorno chama, pela sua expressividade sem função, de
"caráter da subjetividade autárquica".
Quando aplicado à música francesa fin-de-siècle, o comentário de Adorno
parece forçado, uma vez que parte das obras de Satie e Fauré, que certamente
contribuíram para encaminhá-la na direção da estaticidade, só podem ser
relacionadas a Wagner como pura negação – sendo muito mais justo associá-las
ao filão da música modal que passa a caracterizar a cultura musical francesa no
fim do século XIX.153 Mas quando refere-se exclusivamente a Debussy, a
observação de Adorno torna-se realmente sugestiva. De fato, as harmonias de
Debussy não podem ser explicadas apenas nos termos de uma contaminação entre
elementos modais e tonais, nem tampouco como simples contraposição ao
cromatismo de Wagner. Torna-se claro desde muito cedo em sua obra, e cada vez
mais à medida que seu estilo vai amadurecendo, que Debussy de modo algum
abandona o cromatismo, mas, antes, o absorve e desativa.
Os gregos, bem como as músicas orientais, já conheciam o cromatismo, que
era usado, conforme indica a própria etimologia do termo (que vem de chromos:
cor) como efeito puramente expressivo, capaz de alterar a coloração do modo. Na
música europeia ele passará a ser encontrado de forma sistemática somente a
definição de direção propiciada pelas notas sensíveis, inteiramente composta sobre a escala de tons
inteiros. 152
Cf. Teodor Adorno, op.cit.., p.145. 153
Ver, nesse sentido, Lorenzo Mammì, “O demônio da analogia : Algumas melodias juvenis de
Claude Debussy “, p.59.
114
partir da segunda metade do século XVI, sendo utilizado para estabelecer os tons
vizinhos e para as cadências. Desde os corais de Bach, contudo, o cromatismo
será reservado à expressão do trágico e do doloroso, revestindo-se de um caráter
dramático. Aparecendo com pouca frequência na época clássica (o período de
maior estabilidade e clareza sintática do sistema tonal), sendo encontrado no mais
das vezes como elemento de passagem em partes virtuosísticas, seu emprego
ganhará um novo fôlego na fase madura de Beethoven, onde relações cromáticas
cada vez mais tensas abrem as portas do período romântico. Wagner fará do uso
abundante do cromatismo modulante não apenas uma das marcas de seu estilo,
mas o próprio motor da música no Ocidente, culminando no que Boulez define
como “era cromática contemporânea”.154 Continuar o caminho de Wagner no
sentido de um aumento de complexidade do contraponto cromático seria a
“trajetória natural” dessa tradição (foi o que de fato fizeram compositores como
Mahler, Strauss e Schoenberg – este último, ao abrir as portas para o pensamento
atonal, “encarava sua incursão pela atonalidade como inevitável consequencia do
que viera antes”, sendo impossível “resistir ao imperativo histórico” de explorar
novos domínios da harmonia e de superar, através da constituição de um novo
sistema, a anarquia formal desencadeada pelo cromatismo).155 Mas ainda que sua
obra questionasse a normatividade da harmonia funcional, nem por isso Wagner
perdia o vínculo com o sistema tonal, uma vez que ainda recorria aos expedientes
dramáticos da condução de vozes do contraponto clássico, às regras fundamentais
da contigüidade, de movimento direcionado e de relações harmônicas estritas.
Desse modo, mesmo com o progressivo afastamento das tríades (fundamento
mesmo do sistema diatônico), já anunciado por Wagner e levado às últimas
consequencias por seus principais herdeiros, era ainda possível manter nas obras
musicais uma forte coerência estrutural e direcional. Ou seja, mesmo que o
cromatismo modulante de Wagner chegasse a enfraquecer a ideia de uma
tonalidade principal, ele não havia necessariamente perdido o “sentimento
tonal”.156
154
Ver Pierre Boulez, Apontamentos de Aprendiz, São Paulo, Perspectiva, 2008, p.259. 155
Cf. Paul Griffiths, A Música Moderna, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1987, p.25. 156
Com base nessas ideias David Huron vai defender a tese de que a música de Schoenberg não é
propriamente atonal, mas sim “contra-tonal”, uma vez que ela explora diretamente os schemas
tonais que fazem parte da bagagem psíquica do ouvinte ocidental médio. Nesse sentido, ver David
Huron, Sweet Anticipation: Music and the Psychology of the Expectation, p.339-344.
115
O caso de Debussy é outro. Nele, o “sentimento tonal” pode ser ativado ou
desativado. Ao basear a sua música no que Pierre Boulez definiu como “relações
cromáticas ampliadas”, com seus acordes não-resolvidos e progressões livres
fundadas em complexas relações cromáticas – através do emprego da escala de
tons inteiros ou de acordes com numerosas terças superpostas e também acordes
de quartas – ele agia diretamente sobre a coerência estrutural e direcional que
caracteriza o quadro da tonalidade clássica.157 Mais do que agregados
heterogêneos formando elementos puramente estáticos, as figuras harmônicas que
utiliza são interpretáveis como dissonâncias congeladas, sem qualquer direção e
sem qualquer capacidade de resolução – estruturas imóveis que são extraídas
justamente dos pontos em que o movimento cromático tardo-romântico parecia
mais convulsivo.158 Momentos de suspensão temporal criados em contraste com
passagens de grande agitação e movimento tonais – muitas vezes o estilo de
Debussy abarca numa única obra temporalidades e qualidades de movimento
diversas, a unidade sendo mantida pela elaboração de procedimentos analógicos e
de associação no interior do tecido tonal. É uma tendência que pode ser
encontrada no Prélude à l’Après-midi d’un Faune, em La Mer - e também em
157
Ver Pierre Boulez, op.cit.., p.259. 158
Para que figuras extáticas pudessem ser extraídas de Wagner, contudo, era necessário que essa
estaticidade já estivesse de certo modo presente em sua obra, pelo menos em potência. Como
observou Adorno, modulação e desenvolvimento estão dissociados na escrita musical do
compositor alemão. Tudo acontece como se fosse uma grande farsa, uma pirueta musical: a
constante modulação torna-se um falso movimento que não chega propriamente a modificar o
evento musical, como acontecia no caso dos clássicos. Mas além disso, talvez seja possível
reconhecer sinais de atrofia na estrutura harmônica em si, desconsiderando sua relação com a
matéria melódica. Numa análise da famosa ouverture de Tristão e Isolda, Lorenzo Mammì levanta
a hipótese de uma paradoxal “progressão estática”, “não só porque o acorde final corresponde
àquele de partida, mas sobretudo porque, nesse ínterim, não fomos concretamente a parte alguma.
Aludir a todas as tonalidades significa não realizar nenhuma. O Lá Menor não é enunciado
explicitamente nunca, mas de Lá Menor não saímos em momento algum”.(Cf. Lorenzo Mammì,
“O demônio da analogia : Algumas melodias juvenis de Claude Debussy”, p. 55) Tudo isso nos
leva a uma conclusão a princípio contraditória: de que o caráter aparentemente estático da música
de Debussy deriva do movimento aparentemente excessivo da música de Wagner. Jarocinski cita,
no livro que mais contribui para livrar o compositor francês do rótulo de impressionista e
aproximá-lo do simbolismo, o ponto de vista de Ernst Kurth como um dos mais influentes sobre a
maneira de compreender não apenas o papel e o alcance do compositor francês na história da
música ocidental, mas também o modo como, apesar da imensa diferença de resultado final, seu
estilo deriva ele próprio do estilo de Wagner: “En partant du principe que le développement de la
forme musicale dépend au fond d’une énergie psychique immanente qui trouble constamment,
voire, rompt et détruit le système rationalisé et fonctionnel d’harmonie, Kurt démontrait que
l’énergie cynétique représentée par la mélodie avait atteint son apogée avec la musique des
romantiques, pour se transformer de plus en plus, à partir de Tristan, en une énergie potentielle,
facilement assimilée par la sonorité pure à caractère coloriste; cette tendance culminerait enfin dans la musique de Debussy. Kurth arrivait à la conclusion suivante : “Le chemin de Debussy
passe par Wagner, bien que lui-même (…) ait pris pour but d’affranchir la musique de l’influence
de Wagner””.(Cf. Stefan Jarocinski, op.cit.., p.34)
116
tantos dos seus prelúdios para piano. Seu anti-wagnerismo difere daquele de seus
contemporâneos; é antes uma superação do que uma recusa. O próprio Adorno
havia indicado isso, ao notar que, apesar das técnicas de espacialização dos planos
e da construção de modelos temáticos atomizados, Debussy conseguia preservar a
sensação orgânica de uma temporalidade subjetivamente perceptível, que o
teórico alemão chamaria de “bergsonismo musical”, enquanto que, mediante
justaposições e montagens rítmicas que abandonam a ideia de transição,
Stravinsky realizava a dissolução métrica do tempo musical. Ao libertar a música
da cadeia do fluxo tonal (sem, contudo, eliminá-lo), ele apresenta blocos
harmônicos que serão percebidos, primeiramente, como espectros sonoros, como
sensações puras, e apenas num segundo instante, e eventualmente, como peças do
processo funcional. Vem daí a famosa formulação de Pierre Boulez, de que, com
Debussy, “le mouvant, l’instant font irruption dans la musique (...)”.159
Em Debussy, cada harmonia conserva a marca de sua função tonal, ou de
suas possíveis funções, mas essas podem não ocorrer de fato; ser evitadas ou
suspensas, até que a aproximação de dois acordes, uma determinada linha
melódica, a retomada de um ritmo as despertem subitamente. A harmonia de
Debussy tem o desconexo andamento dos sonhos, mas, tal como os sonhos, não
chega a ser arbitrária. A ela se poderia aplicar a observação de Mallarmé sobre a
poesia francesa de sua época: “Je connais qu’un jeu, séduisant, se mène avec les
fragments de l’ancien vers reconnaissables, à l’éluder ou le découvrir, plutôt
qu’un sutbite trouvaille, du tout au tout, étrangère”.160 Ao intensificar certas
linhas de força lançadas pela estética do Romantismo – acontextualismo,
organicismo e imediaticidade – Debussy terminou por converter o ideal narrativo
de Wagner, com seus leitmotiven (verdadeiras etiquetas musicais) e seu passado-
presente-futuro bem marcados, numa aposta na suspensão temporal, no valor da
sensação e do instante. Em sua música não há espaço para grandes narrativas e a
própria concepção de tema torna-se quase irrelevante. Mesmo quando trabalha em
cima de um texto narrativo (como em sua única ópera, Pélleas et Mélisande), seu
interesse maior está nos desvãos das almas dos personagens, e não em colocar a
música para narrar uma história. Nesse sentido, Debussy marca uma ruptura
159
Cf. Pierre Boulez, Encyclopédie de la musique, Paris, Fasquelle, 1957, p.127. 160
Cf. Stéphane Mallarmé, “Crise du Vers”, In. Mallarmé: Poésie et Autres Textes, Paris, Librairie
Générale Française, 2005, p. 352.
117
considerável com o imaginário romântico, rememorativo por excelência, abrindo
um novo caminho para a modernidade musical (um outro caminho seria aberto
pelos atonalistas).161 Uma modernidade baseada na singularidade de uma forma
cada vez mais auto-gerada e de “um tempo musical que ignora os fantasmas
herdados do classicismo, simetria, periodicidade, unidade, continuidade,
esquemas e categorias”, operando dessa maneira uma “reavaliação mesmo da
noção de forma e de sua percepção”.162
...
“Debussy fez uma revolução no acorde”, comentou João Gilberto numa
entrevista.163 Tom Jobim, por sua vez, diria que “Villa-Lobos e Debussy são
influências profundas em minha cabeça”.164 Há praticamente um consenso entre
críticos e especialistas da música brasileira de que Tom e João foram os principais
responsáveis pelo surgimento da bossa nova, no fim dos anos 1950. Em que
pesem os muitos precursores – e esses precursores passam de certo modo a
“existir” somente quando iluminados pelo nascimento de uma nova forma musical
–, e também os distintos caminhos que os dois tomariam posteriormente, tudo
indica que houve, naquele momento específico, uma convergência ou uma fina
simbiose entre os anseios estético dos dois. Tornaram-se, por assim dizer, a frente
e o verso de uma moeda única: a bossa nova. O pesquisador Luiz Tatit a dividiu
num gesto “intenso” – que se encerra no arco histórico que vai de 1958 até mais
ou menos 1963 – e num gesto “extenso” - que, transcendendo a curta duração do
movimento, tornou-se uma baliza para a criação da música popular moderna no
Brasil. Se o primeiro “gesto” diz respeito a todos os atores da bossa nova, o
161
Paul Griffiths enumera os três compositores que forneceram o paradigma musical da
modernidade: “É claro que somente em análise superficial se poderia separar os elementos
harmônicos, rítmicos e formais – intervalos, tempo e estrutura – de uma peça musical: eles são
interdependentes, e inevitavelmente Schoenberg, Stravisnky e Debussy inovaram em cada uma
dessas frentes. Foram todavia a harmonia de Schoenberg, o ritmo de Stravinsky e a forma de
Debussy que maior interesse despertaram e mais importância tiveram para os compositores no
decorrer do século”. (Cf. Paul Griffiths, A Música Moderna, p.38) 162
Cf. André Boucourechliev, Debussy: la Révolution Subtile, p.14. 163
Depoimento de João Gilbeto a Mario Sergio Conti – “A viagem de João”, In. Folha de S. Paulo
(caderno Ilustrada), 20 de julho de 2000, p. E 6. 164
Entrevista presente em Almir Chediak, Songbook Tom Jobim v.2, Rio de Janeiro, Lumiar
Editora, 1991, p.14.
118
segundo se resume aos gênios de Tom Jobim e João Gilberto.165 Simplificando
um pouco os termos dessa complexa equação, é possível dizer que enquanto João
propiciou uma nova estrutura capaz de oferecer uma síntese do passado e um
novo parâmetro para a organização e produção de música popular, Tom Jobim
forneceu o conteúdo que colocava em funcionamento essa nova estrutura: novas
canções. Na realidade, canções que já eram compostas de acordo com as
premissas da nova organização sonora criada por João Gilberto, e que, desse
modo, tinham por “objetivo” justamente explorar suas possibilidades e limites. Ou
seja, canções que tendiam a tornar ainda mais explícitas as especificidades
daquela nova estrutura. Tanto foi assim que, sendo eminentemente intérprete, das
163 faixas gravadas por João Gilberto, 54 eram de autoria de Jobim.
Que os dois músicos façam referência direta a Debussy aponta para aquele
que certamente é um dos traços mais importantes da bossa nova: a sofisticação de
sua concepção harmônica. Há, evidentemente, a suma importância que teve a
nova organização rítmica trazida pelo violão de João Gilberto, e são inúmeros os
depoimentos nesse sentido. O biógrafo Ruy Castro, por exemplo, conta sobre o
momento em que Tom Jobim ouviu pela primeira vez a batida de João Gilberto –
que realizava no instrumento de cordas uma “síntese aberta”, cambiante, dos
diversos padrões que se sobrepunham na polirritmia dos tradicionais conjuntos de
samba – e de como passou a compor canções para aquele novo jeito tocar.166 O
próprio Jobim declararia isso nos seguintes termos: “Eu tinha uma série de
sambas-canções de pareceria com (Newton) Mendonça, mas a chegada do João
abriu novas perspectivas, o ritmo que João trouxe.(...) E isso, naturalmente, abriu
para mim um outro ponto de vista que iria me levar ao ‘Samba de Uma Nota Só’ e
outras manifestações da Bossa Nova”. E também descreveria a revolução rítmica
de João de forma simples e direta: “O grande salto do samba-canção para Bossa-
Nova foi essa batida do João. O samba sempre teve muito acompanhamento você
tocando tudo ao mesmo tempo não deixa os espaços. Você acaba criando uma
zoeira que mais parece um mar de ressaca. O que nós fizemos ali com o João foi
tirar as coisas, criar espaços, dissecar, despojar, economizar”.167 Mas acontece
165
Para maior esclarecimento sobre a distinção feita por Tatit entre bossa nova “intensa” e
“extensa”, ver Luiz Tatit, O Século da Canção, São Paulo, Ateliê Editorial, 2004, p. 179. 166
Ver Ruy Castro, Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova, p.161-163. 167
Cf. Zuza Homem de Mello, Eis Aqui os Bossa Nova, São Paulo, Editora Martins Fontes, 2008,
p.34 e 46.
119
que, na própria economia musical, a nova organização rítmica do violão de João
teve como um dos seus principais efeitos o de libertar a harmonia. Dito de outro
modo, a estilização do samba resultou em novo arranjo temporal que abria
espaços no interior da canção, espaços nos quais podiam brilhar de modo cada vez
mais expressivo os novos acordes da bossa nova.
Com o terreno devidamente liberado, Jobim passou a plantar o seu pomar de
acordes - Havia espaço para eles - e tornou-se, como ele próprio diria, um
compositor da harmonia: “Minha música é essencialmente harmônica. Sempre
procurei a harmonia. Parece que eu tentei harmonizar o mundo”. 168 Nesse
contexto, e dada a formação de pianista erudito do Maestro, não devemos
estranhar a presença constante de Debussy em declarações suas, tais como:
“Quando esse pessoal dizia que a harmonia da bossa nova era americana, eu
achava engraçado, porque essa mesma harmonia já estava em Debussy. Não era
americana coisa nenhuma. Chamar o acorde de nona de invenção americana é um
absurdo. Esses acordes de décima primeira, décima terceira, alteradas com
tensões, com adendos, com notas acrescentadas, isso aí você não pode chamar de
americano”.169Não sem razão, Tom reivindica a influência direta da harmonia do
Impressionismo francês, adquirida diretamente por ele através dos seus estudos de
piano, e que também está na base do próprio jazz americano. Segundo Alex Ross,
o germe de um modernismo alternativo, deixado por Debussy, “chegaria à
maturidade na música desadornada, de base popular, alegria jazzística e
desenvolvimento automático dos anos 20”.170 Essa mesma afirmação pode se
desdobrar no encontro que esse mesmo germe teve de forma intensa com a música
popular brasileira do final dos anos 1950, e que deu ao mundo a bossa nova.
Forçando um pouco a comparação entre manifestações um tanto distantes
no tempo e no espaço, talvez seja possível dizer que da mesma forma que
Debussy desdramatizou as harmonias de Wagner, fazendo com que perdessem a
direcionalidade e a concatenação narrativa e pudessem assim ser fruídas como
sonoridade pura, também Tom Jobim e João Gilberto pegaram a harmonia do jazz
e retiraram dela parte de sua tensão, criando um estado de suspensão em que o
168
Retirado de: Márcia Cezimbra, Tessy Callado, Tárik de Souza (org.), Tons Sobre Tons, Rio de
Janeiro, Editora Revan, 1995, p.52. 169
Cf. Almir Chediak, op. Cit, p.14. 170
Cf. Alex Ross. O resto é ruído: escutando o século XX, p.59.
120
próprio jogo da sonoridade não precisa ir para lugar nenhum. Há, contudo, uma
proximidade técnica de fundo que une a bossa nova e o jazz. Se levarmos em
conta que grande parte da harmonia da bossa nova vem de Tom Jobim, e que uma
de suas grandes fontes nesse sentido foi Debussy – como ele próprio afirmou
diversas vezes – e de que o mesmo compositor francês está base de boa parte do
jazz, temos dois estilos que, de certo modo, dividem a mesma filiação harmônica.
Só que enquanto o jazz injetou uma forte dose de movimento nos acordes,
dramatizando-os novamente, em Tom e João sentimos novamente uma busca mais
intensa do prazer da harmonia como timbre, do acorde como cor solta, sem
nenhuma outra finalidade. Em outras palavras, enquanto o jazz de certo modo
dramatizou a harmonia do Impressionismo francês, a bossa nova a utilizou de
modo mais próximo ao do próprio Debussy – e talvez, certamente no caso de João
Gilberto, e provavelmente em algum grau também no caso de Tom Jobim, ela
tenha no fundo “desdramatizado” o que o jazz havia “redramatizado”. Ou seja,
Tom e João fizeram um pouco com o jazz o que Debussy havia feito com Wagner.
Ou seja, trata-se de transcender a tonalidade a partir da própria tonalidade. E
isso sem perder de vista valores clássicos franceses, como clareza, elegância e
graça. Valores esses que se identificam à perfeição com o estilo musical criado
por Tom, João e Vinicius. Nos dois casos, buscava-se uma expressão mais
concisa, comedida e enxuta como alternativa ao esgotamento dos arroubos
românticos. A bossa nova parece ter sido a recriação de uma cultura periférica,
marcadamente expansiva, de matriz barroca, repleta de arroubos dionisíacos e
com estigmas de exotismo, nos termos lúcidos desses valores. Ela divide com o
impressionismo francês diversos pontos em comum que não me parecem
meramente casuais – o anseio por uma beleza leve e menos dramática, a ênfase
nas sensações ao invés da emoções, o esvaziamento temático e narrativo, a
vontade de se deslocar da grandiloquência romântica para a esfera íntima do ser, o
desejo de discrição – que, portanto, merecem ser melhor explorados. Se Debussy
tentava contornar o beco sem saída diante do qual Wagner deixou a música tonal,
Tom, João e Vinicius buscavam novo frescor numa música popular saturada pelos
excessos melosos dos sambas-canções.
Talvez outro fator importante e que pode nos ajudar a entender a porta de
entrada e o alcance da influência que Debussy teria mais tarde no Brasil, seja a
presença marcante do piano na música popular a partir do início do século XX. E
121
o que não faltava no Rio de Janeiro do fim do século XIX e início dos século XX
eram pianos. A então capital federal seria mesmo apelidada de “cidade dos
pianos”. A presença imponente do instrumento de design retilíneo, com ares de
máquina tecnológica, operado por teclas e pedais, filho moderno dos órgãos de
igreja, riquíssimo em sons simultâneos e em ressonâncias, com invejáveis
projeção e volume - numa época sem microfone - e que incorporava em sua
própria arquitetura, de modo claro e visual, a própria história do desenvolvimento
da linguagem tonal – na divisão da oitava em doze semitons e na separação entre
teclas brancas e negras -, a presença do instrumento roubou a cena no Rio de
Janeiro. Tornou-se uma espécie de móvel obrigatório nas salas das famílias mais
abastadas. Índice de civilização. De refinamento. Da vontade de estar em sintonia
com as últimas modas da Europa. Nos saraus, era o maioral.171 De todo modo,
valsas, polcas e maxixes, as modas e danças de salão do século XIX, chegavam
aos lares urbanos em partituras para piano.172
Talvez seja plausível supor que parte da influência de Debussy na música
popular do Brasil tenha vindo no bojo do enorme prestígio alcançado pelo
instrumento no século XIX e que coincide com a formação de uma linhagem de
pianistas com “um pé no erudito e outro no popular”. Linhagem que basicamente
começa com Ernesto Nazareth e passa depois por nomes como Radamés Gnatalli
171
O pesquisador Hermano Vianna nos lembra que, mesmo a novidade do piano ocupando o lugar
de honra nessas reuniões, no fim da noite tudo acabava em modinhas cantadas ao som da boa e
velha viola (“Tampouco o violão foi totalmente afastado dos saraus familiares cariocas, apesar de
toda a tendência re-europeizante do piano”), o que nos revela um pouco da dinâmica de
convivência e interação de tradições distintas no contexto brasileiro. (Ver Hermano Vianna, O
Mistério do Samba, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995, p.40-44) 172
O célebre conto “Um Homem Célebre”, de Machado de Assis, recria a atmosfera e o uso da
música popular, bem como sua dinâmica de divulgação. E também coloca em evidência o lugar
central do piano na transmutação da polca em maxixe, gênero que está na base do moderno samba
carioca. É quando o jeito sincopado da rítmica de fundo africano começa a se infiltrar na estrutura
melódico-harmônica européia, modificando profundamente o seu ethos. O corpo do piano, com
sua sonoridade e seu jeito específico, e sua bem consolidada reputação, será um dos locais
privilegiados desse encontro, dessa espécie de fusão entre distintas tradições musicais. E a figura
do pianista Ernesto Nazareth torna-se o primeiro marco evidente do início não apenas de uma
tradição de compositores populares no Brasil mas também o marco de uma linhagem de músicos
populares diretamente ligados ao piano. Situados, pela formação e afinidade com o instrumento
par excellence da música clássica do século XIX, entre a ambição do erudito e a sedução
irresistível do popular. Tocando em bailes, saraus, teatros de revista, e, mais tarde, nas salas de
cinema. Muitos sofrendo do mal que José Miguel Wisnik batizou, em homenagem ao personagem
de Machado de Assis, como “complexo de Pestana”. Mas funcionando como verdadeiras pontes
entre mundos aparentemente distantes. Pontes erigidas entre a rítmica africana e a harmonia
européia; entre a música escrita das partituras e a música ancorada na oralidade; entre o esnobismo
dos salões elegantes e a informalidade vulgar, natural e expansiva das ruas. Ver, nesse sentido, José Miguel Wisnik, “Machado Maxixe”, In Sem Receita: Ensaios e Canções, São Paulo,
Publifolha, 2004.
122
e Antonio Carlos Jobim. E isto porque, tendo o piano como denominador comum,
e, de modo geral, contando esses músicos com o acesso às informações musicais
da Europa, e sobretudo da França, criou-se, por assim dizer, uma via mais direta
para a influência e para a troca mútua de informações musicais entre as esferas do
erudito e do popular. Cito José Miguel Wisnik citando Mário de Andrade que cita
Brasílio Itiberê: “Vale lembrar que a música de Nazareth, como anota Mário de
Andrade citando Brasílio Itiberê, resulta da síntese realizada pelos ‘pianeiros’,
músicos ‘que se alugavam para tocar nos assustados da pequena burguesia e em
seguida nas salas de espera dos primeiros cinemas’, fundindo lundus e fados,
danças de origem popular negra e polcas e habaneiras importadas, transferindo a
música de uma camada social a outra, ao mesmo tempo que convertiam formas
vocais em formas tipicamente instrumentais (notar que o pianismo das peças de
Nazareth, tão afins do instrumento, incorpora também traços instrumentais do
violão, da flauta, do cavaquinho, do ofcleide)”.173
Em 1908 ocorreu a primeira apresentação de Prélude à l’Après-midi d’un
Faune no Rio de Janeiro, então capital federal do Brasil. A absorção da música de
Debussy foi muito rápida – houve um quase que imediato efeito de
reconhecimento num país culturalmente colonizado e que tinha a França na conta
de um modelo de civilização a ser imitado, reproduzido, copiado em terras
tropicais. Tudo isso seria devidamente notado pouco mais de dez anos depois por
Darius Milhaud, em pequeno artigo escrito para a recém-fundada Revue Musicale,
em 1920. Nele, um espantado Milhaud falava abertamente para o público europeu
sobre a orientação marcadamente debussysta dos músicos brasileiros: “A curva
traçada pela evolução da música na França depois de Wagner se reproduz
exatamente igual do outro lado da Terra. Cada movimento, cada tendência
encontra um eco no hemisfério sul. Por vezes as influências são compartilhadas:
M. Vincent d’Indy e a Schola servem de modelo aos compositores argentinos e
chilenos. Enquanto no Brasil a orientação é nitidamente debussysta e
impressionista”. Milhaud nos revela também outros dados da presença francesa:
“O papela da França na cultura musical brasileira é certamente preponderante.
Graças aos compositores Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald, todos os dois
tendo sido diretores do Conservatório do Rio de Janeiro, a biblioteca desse
173
Cf. José Miguel Wisnik, “Entre o Erudito e o Popular”, In. Da Antropofagia a Brasília – Brasil,
1920-1950, São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p.303.
123
estabelecimento possui todas as partituras de orquestra de Debussy e de todo o
Groupe de la S.M.I. ou da Schola, assim como todas as obras publicadas do
senhor Satie”. Mais adiante, ainda no mesmo artigo, o compositor nos fala um
pouco dos concertos que presenciou no Brasil, também fortemente marcados pela
presença francesa. Comenta que a música que estava sendo feita na Áustria e na
Alemanha era praticamente desconhecida por aqui, assim como o movimento
levado a cabo por Schoenberg – que só chegaria ao Brasil depois da Segunda
Guerra, pelas mãos de Hans Joachin Koellreuter, um dos professores de Tom
Jobim. Francesas eram as peças da maior parte das programações dos concertos;
franceses eram os livros de partituras que abarrotavam as bibliotecas do
conservatório do Rio - partituras de Debussy, Ravel, Satie -; francês, e mais
especificamente debussysta, era a orientação de estilo seguida pela maioria dos
jovens músicos brasileiros dos anos 1920.
...
Seria, contudo, um tanto equivocado insinuar que Tom é o responsável pela
harmonia enquanto João é o responsável pelo ritmo. Em João Gilberto a
preocupação harmônica é um fator essencial em seu estilo e em suas recriações
musicais. De posse de procedimentos estéticos da alta cultura, junto com um
domínio absoluto da já consolidada linguagem da canção popular, os dois
criariam (junto com João Gilberto) uma “nova tecnologia da canção”: um novo
modo de compatibilizar letra e música, e de abrir a forma-canção a novas
experimentações que, a um só tempo, testavam e construíam seus contornos e
limites. Pode-se dizer que a nova música de Tom, João e Vinicius, mais clara e
definida, teve como um de seus principais efeitos aparar as arestas da música
popular brasileira. Por um lado, a marcação binária do samba será acomodada
num compasso quaternário mais macio e maleável, ao mesmo tempo em que os
ataques dos acordes (num procedimento típico do jazz) passam muitas vezes a
preceder o bordão que, por fazer amiúde parte de um acorde invertido, não traz o
“chão” da tônica. Mas a contribuição de João Gilberto não se esgota na criação da
famosa batida. O cantor baiano elabora também um novo modo de encaixar a voz
no encadeamento harmônico/rítmico. Ora adiantando o canto em relação ao pulso
sincopado do violão, ora o atrasando, João descola a melodia da marcação rítmica,
124
criando um fraseado flutuante, levíssimo, que se desenvolve independente da base
rítmica e harmônica.
João Gilberto respeitou a matriz essencialmente lírica e melódica da música
brasileira, na qual a comunicação do conteúdo da letra se dá através do maior
respeito possível a um “original melódico”. Não há na canção brasileira uma
tradição de improviso melódico – como há, por exemplo, na tradição americana.
Por algum motivo, as melodias tornaram-se intocáveis, devendo ser a todo custo
respeitadas. O intérprete que modifica o material melódico (com floreios ou
improvisos) está simplesmente “cantando errado”; ou então “não sabe a canção de
cor”. Desse modo, uma tendência desde cedo avultou em nossa música: não se
podia mexer propriamente nas notas, modificar as alturas e os contornos, mas era
permitido e desejável que o cantor exprimisse sua singularidade improvisando
com o ritmo da melodia. Era sobretudo na divisão rítmica, no jeito de organizar
temporalmente a melodia, de mexer com o ataque e a duração das notas, que um
cantor como Mário Reis diferenciava-se de outro como Francisco Alves ou Sílvio
Caldas. Essa tendência ganhará sua versão moderna, além de sua confirmação
máxima, no fraseado solto, flutuante de João Gilberto. Mas a partir dele e de Tom
Jobim, outro elemento passou a também influenciar de modo crescente a
percepção melódica: a própria harmonia.
João Gilberto e Tom Jobim constituem um fato novo na canção brasileira
não apenas porque trouxeram para a dimensão harmônica uma expressividade que
ela poucas vezes conheceu, mas porque conseguiram o efeito inédito de soldar
melodia e harmonia em uma única entidade, um único ser. Nos dois casos, não é
mais possível separá-las. Por isso, há algo que é da ordem da sensação mas que
passa a desempenhar um papel cada vez mais fundamental nas composições de
Jobim e nas interpretações de João. Tal como já ocorria em Debussy, a busca da
sensação pura em João também está ligada a mecanismos que desligam o fluxo de
encadeamento da harmonia funcional. Há uma queda geral do impulso energético
da tonalidade, resultando daí que os acordes não parecem exatamente implicarem-
se uns nos outros. Mas uma vez que são postos em sequência percebe-se
facilmente que há uma lógica implícita na concatenação deles. No fundo, a
estrutura harmônica que cerca – mas não apóia – a melodia é bastante simples. O
que acontece é que João amplia o tecido de transição entre os principais pólos
diatônicos. A maioria dos acordes usados por João são acordes de passagem, com
125
pouca dinâmica funcional, que não necessariamente sustentam a melodia.
Geralmente, um acorde de transição desloca-se para outro que não
necessariamente apresenta uma situação harmônica definida, mas que, no mais
das vezes, apresenta também o caráter ambíguo do acorde de transição. Um
acorde de passagem dá lugar a outro acorde de passagem. Figuras de transição
encaixadas por semelhanças e contiguidades (para não dizer analogias),
deslizando, transformando-se maciamente umas nas outras – como se, ao invés de
se desenvolver através de uma única seqüência de acordes, a canção se desse
mediante a transmutação de um único acorde numa seqüência. Apesar do
constante cromatismo da linha do baixo e dos deslizamentos das vozes internas,
não há propriamente modulação. Tampouco há momentos de ênfase marcada nas
regiões da tônica e da dominante. Os acordes aparecem meio transfigurados,
muitas vezes com notas da tríade básica omitidas, subentendidas.
O foco de nossa atenção é dirigido justamente para os momentos de
indefinição do jogo harmônico (acordes de passagem), o que ajuda a ressaltar o
sentido de suspensão causado por sua música. Ao mesmo tempo, pousos
intermediários funcionam como tônicas passageiras que de certo modo permitem
algum sentido de orientação mas não representam um fechamento formal, uma
linha de chegada. É como se fossem tônicas falsas funcionando como pequenos
marcos sinalizadores dos longos períodos de transição – estão mais para uma
qualidade específica de sensação e apenas em segundo plano ocupam o lugar de
figuras sintáticas de um discurso. Com isso, há um abrandamento das expectativas
que embalam uma escuta primordialmente baseada na lógica antecedente-
consequente, favorecendo uma situação na qual os acordes despontem como
sonoridade mais livre. Por outro lado, como esse tecido de transição torna-se
ampliado, muitas vezes encontramos elipses inesperadas em seu interior, a
transição levando não para o acorde que parecia indicar no começo, mas para
outro que despontou como horizonte no meio do próprio processo. É como se no
desenrolar de um raciocínio despontasse uma outra ideia, parecendo mais atraente
e promissora, passasse então a indicar uma nova direção do pensamento. O tempo
harmônico – assim como o tempo melódico e rítmico – é, desse modo, bastante
maleável, elástico, o tempo da rêverie, da divagação.
O importante é o contraste e a complemento que esses acordes oferecem ao
sentido melódico. Num famoso ensaio, o musicólogo Lorenzo Mammì ressalta a
126
semelhança de procedimento do cantor com Debussy: “Não podemos dizer que o
canto de João Gilberto se apóie sobre os acordes do acompanhamento. Muitas
vezes, o que se ouve é o contrário, acordes pendurados no canto como roupas no
fio de um varal. Na música erudita, a composição mais próxima a esse estilo é o
Prélude à l’après-midi d’un faune, de Debussy, sobretudo a primeira parte, onde a
melodia é harmonizada repetidas vezes com acordes diferentes, que mudam de cor
sem mudar seu sentido”.174 O jeito com que João Gilberto repete a mesma melodia
várias vezes modificando continuamente os acordes do acompanhamento aponta
para uma exploração da sensação harmônica em sua sutil relação com o material
melódico. Há uma relativização da própria balança figura/fundo entre esses dois
elementos. Valem pelo timbre, pela região sonora que ocupam, pela maneira
como abrigam a voz. É um trabalho que se dá no nível do detalhe e que visa tirar
proveito do que há de diferença naquilo que à primeira vista parece igual. Muitas
vezes acordes iguais aparecem realizados em diferentes regiões do braço do
violão, ou invertidos em novas configurações hierárquicas. A tonalidade muitas
vezes é expandida pelo uso, dentro da estrutura diatônica, de modos antigos –
reminiscências muito presentes, por exemplo, na música da região nordeste do
Brasil, justamente de onde veio João Gilberto. Ao mesmo tempo, a voz foi
construída de modo a se aproximar do timbre do próprio violão, a ponto de quase
poder se confundir com ele.175 A balança figura/fundo à qual me referi no
parágrafo acima é assim relativizada, igualada, perdendo por vezes parte do
sentido. A voz passa então a habitar no interior do acorde, ela está dentro dele.
Desse modo, a própria melodia, ao atacar num timbre muito próximo ao do
instrumento notas que foram propositalmente omitidas do acorde de
acompanhamento, torna-se parte do ambiente harmônico – torna-se ela também
sensação verticalizada. Há, desse jeito, um enfraquecimento da nossa capacidade
de foco, de nossa habilidade de discernir e distinguir os elementos, pois estes
embaralham-se frequentemente.176 Por outro lado, a compressão do espectro
174
Cf. Lorenzo Mammì, João Gilberto e o Projeto Utópico da Bossa Nova, p.66. 175
A evidência da “construção de uma voz” em João Gilberto é facilmente verificável através da
audição de seus primeiros registros como solista – no 78 rotações com Quando Ela Sai e Meia
Luz, gravado em 1952 – quando seu estilo ainda era uma cópia bastante fiel do canto romântico
(embora já bastante moderno) de Orlando Silva. A intenção, contudo, de aproximar o próprio
timbre da voz do timbre do violão me foi comunicada pela pesquisadora Edinha Diniz, que, amiga
pessoal de João, me disse ter ouvido uma declaração dessa intenção vinda do próprio cantor. 176
Argumentando sobre a diluição das fronteiras entre música popular e música erudita no século
XX, e, ao mesmo tempo, atentando para a conservação da distinção entre estrutura profunda e
127
sonoro no registro médio do violão e também da voz faz com que, em franca
oposição àquilo que se pode vagamente definir como estilo romântico, João
trabalhe em torno de nuances próximos, e não de contrastes.
Na verdade, João está jogando nosso foco sobre parâmetros secundários do
jogo musical, parâmetros que resistem a uma apreensão mais nítida, que fogem
aos schemas incorporados pela memória de longo-termo e que pertencem,
portanto, ao domínio das sensações mais imediatas. É como se ele nos
aprisionasse na primeira fase da penetração perceptiva proposta por Proust – a
fase com a qual o escritor identifica, justamente, a música de Debussy. Depois de
repetidas audições, e embora tenhamos na memória a melodia que João está
cantando, sua forma permanece inapreensível - “insaisissable”. Ao descrever o
caminho percorrido pelos estímulos sonoros, dos nervos auditivos passando por
diversas estações intermediárias do cérebro, responsáveis pela decodificação dos
sinais e pela reconstituição num único construto perceptual, num processo em
grande parte inconsciente, Bob Snyder atenta para o fato de que uma parte
considerável daquilo que percebemos nos chega ao foco da atenção consciente
sem passar pela memória de longo termo. São de certo modo os “resíduos da
percepção”, ou “nuances”, que não se encaixam na grade esquemática da
memória. São percebidos, sentidos, mas não são classificados pela memória e
nem costumam ser armazenados por ela – para isso são necessárias muitas
audições de uma mesma gravação, na qual os detalhes congelados possam ser
gradualmente absorvidos e guardados na memória.177 Na hora de lembrar de uma
determinada música, cantada por determinado cantor, tendemos a deixar de lado o
barulho que em determinado momento sua respiração causou, ou o pequeno
arranhado na garganta ao pronunciar uma vogal mais alongada, ou o jeito peculiar
estrutura de superfície (sem que esse último termo seja visto de modo pejorativo), José Miguel
Wisnik cita João Gilberto como exemplo de “superação da oposição entre o profundo e o
superficial”. O argumento de Wisnik parece bem próximo daquele que aqui proponho – a saber, de
que, em João, o canto participa a um só tempo da dimensão horizontal/melódica e da dimensão
vertical/harmônica – quando ressalta que “O canto de João Gilberto trabalha sobre um repertório
tonal popular ‘comum’, mas através de uma rede precisa de nuances mínimas em múltiplos níveis
(entoativos, rítmicos, timbrísticos, harmônicos, contraponto voz/instrumento), que supõem uma
leitura vertical dos bastidores da canção”. (Cf. José Miguel Wisnik, O Som e o Sentido, p.226) 177
Sobre a dificuldade em memorizar as “nuances” escreve Bob Snyder: “An important aspect of
nuances is that, under normal circumstances, they cannot be easily remembered by listeners (...).
Because category structure is a basic feature of explicit long-term memory, nuanced information,
which bypasses this type of memory, is difficult to remember: it is ‘ineffable’. This is probably the
major reason why recordings, which freeze the details of particular performances, can be listened
to many times and continue to seem vital and interesting”. (Cf. Bob Snyder, Music and Memory,
p.87)
128
com que naquela gravação uma consoante específica foi dita. O que acontece, no
mais das vezes, é que lembramos da forma filtrada e recomposta por nossos
schemas mentais. Embora presentes nas etapas iniciais do processo de percepção,
as “nuances” parecem ausentes, ou excluídas das etapas de categorização
conceitual dos estímulos recebidos. Como já foi escrito, a memória tende a
compactar a informação dentro de moldes que são formados através da interação
com um ambiente sonoro. O dados são de certa maneira simplificados, e
raramente as percepções residuais são evocadas, e talvez por isso mantenham
acesa, mesmo depois de muitas repetições, a sua capacidade de surpreender.
Obviamente, todas as músicas contam com essa dimensão. A diferença, no
caso de João, é que ela torna-se não mais “aquilo que sobra”, mas passa a ser o
próprio plano para a elaboração de sua riqueza estilística. De certo modo, sem
remeter aos arquivos da memória, tornam-se sensações ligadas ao instante
imediato da escuta. Cria com isso uma arte extremamente envolvida em sutilezas
atmosféricas. As sensações colocam um problema novo para a memória. Embora
sejam sua condição inicial, elas estão de certo modo na antípoda do
reconhecimento. Quanto mais (re)conhecemos algo, quanto mais esse algo nos é
familiar, menor tenderá a ser a percepção do conteúdo que foge ao
reconhecimento – a sensação. É necessário um esforço monumental e uma dose
grande de estranhamento (re-desconhecimento) para se recuperar a riqueza
perceptiva (composta por sensações e por ideias que ainda não foram
completamente domadas pela consciência) de coisas que já nos são familiares.
Porque o reconhecimento e o hábito simplesmente nos liberam da atenção
sensorial e nos trazem para o reino da memória. É de certo modo preciso
enfraquecer a identificação pela memória para tornar-se mais focado, mais aberto
e mais receptivo à sensação. Esse enfraquecimento pode se dar pela via da
ausência de conhecimento que temos, por exemplo, quando ouvimos uma peça
musical pela primeira vez – o primeiro estágio da teoria proustiana, como já
vimos. Mas pode se dar também pela via inversa, quando se parte da própria
memória consolidada para se alcançar novamente, a partir dela, o terreno das
sensações.
Muitas vezes é justamente isso o que faz João Gilberto. Desativa a memória
através da sua própria saturação. A canção que já conhecemos de cor e que, uma
vez acionadas suas primeiras notas, tendemos a reproduzir com facilidade, torna-
129
se o ponto de partida para que sejamos, a partir do familiar, reconduzidos à
expressividade dos detalhes. Não mais preocupados com a operação mental de
incorporar uma linha melódica, a atenção é direcionada para aquilo que
justamente tende a escapar aos schemas da memória: a elaboração de diversos
registros de timbre no espaço de uma mesma canção (em Retrato em Branco e
Preto); o jeito específico de cantar determinada vogal (como nas gravações de
State); a definição propositalmente nítida de um conjunto de consoantes que
conferem à canção uma textura de fundo peculiar (Pra Que Discutir com
Madame); a colocação e a captação do ruído da respiração como contraponto
rítmico (Saudade da Bahia, Doralice, Desafinado), o modo de reorganizar as
durações da melodia em relação à métrica da canção, de modo a enfatizar a
sensação rítmica que dela decorre; a nova economia de espaços que faz com que
no decurso de longas frases cantadas em legato (há uma grande presença
horizontal da voz no estilo de João) surjam “vãos” nos quais os acordes
despontam soltos, como se fossem ambientes desabitados, fruídos em si. Ao
cotejar a percepção de nossa atenção presente com o conteúdo de nossa memória
João coloca uma lupa em nossos ouvidos e joga o foco sobre aquilo que
denominei como “resíduos”.
Pode-se argumentar que é isso que ocorre em qualquer re-encenação de um
trabalho conhecido. Sim, certamente. O problema é o que se vê através de tal lupa,
de que modo ela consegue revelar um material suficientemente rico a ponto de
manter nossa atenção acesa. Porque a operação da memória pode muito
facilmente voltar novamente sobre si mesma e iniciar uma viagem sobre os
conteúdos associativos de praxe, provocando assim uma queda da percepção
presente e um desvio decisivo da dimensão dos detalhes – é o que acontece, por
exemplo, quando público e artista cantam em uníssono, ou quando uma canção
nos leva simplesmente a rememorar. Colocar a ênfase sobre a qualidade
expressiva do que geralmente tende a ser considerado como residual e fazer disso
sua própria matéria de trabalho é algo totalmente estranho à cultura do jazz e que
traria para ela uma vertigem do infinitesimal que não lhe é própria. É preciso que
esse mundo seja rico; que ele consiga, por sua profusão de detalhes e movimentos,
cativar a nossa atenção tanto quanto o quadro mais amplo e geral da obra. A
passagem entre as duas dimensões de escuta em João – do plano geral para o
detalhe – remete um pouco ao movimento que se faz diante de um quadro
130
impressionista, quando se passa da identificação de uma paisagem figurativa para
o jogo de manchas abstratas reagindo entre si. A um palmo do quadro, vemos
pinceladas azuis, pontuadas por tons de amarelo e até por áreas gritantes de
vermelho. Sabemos, no entanto, que justamente aquela parte do quadro representa
o mar, ou uma lagoa, e de algum modo há um sentido de estranhamento, de
revelação, em saber que o pintor usou a cor vermelha na representação de algo
que, desde a infância, aprendemos ser azul. E, no entanto, quando nos afastamos
novamente para vislumbrar a totalidade do quadro, é o azul do mar que prevalece.
Há, desse modo, um jogo sutil entre memória, reconhecimento e a sensação mais
puramente abstrata, uma instância interferindo continuamente na outra (de certo
modo, a pintura abstrata ficou apenas com a sensação, rompendo com as outras
duas).
Talvez seja possível pensar que o tipo de escuta propiciada pela música de
João também funcione um pouco nesses termos. A memória serve apenas como
base comparativa para um trabalho que se dá em outra esfera e que tem como
principal característica justamente o seu poder de resistir a ser incorporado por
esta. É por isso que as canções gravadas por João resistem a inúmeras audições –
são capazes de revelar a cada nova escuta novos tesouros escondidos. Sua
dimensão mais rica está em algo que é da ordem das impressões, que não pode ser
capturado com nitidez pela memória, que permanece vago e indefinível mesmo
depois de repetidas audições. O fato de João Gilberto ter gravado pelo menos
cinco vezes Chega de Saudade sem alterar seus parâmetros principais –
andamento, melodia, ritmo, letra –mas apenas operando pequenas modificações
revela o seu modo peculiar de pensar a música. Eventualmente, um acorde ou
outro são adicionados, trazendo um novo colorido à sucessão melódica. A canção
já tão conhecida por nós subitamente reaparece, vaga e indefinível, extremamente
escapadiça, e no entanto reconhecível e objetiva. Quando ela se vai, deixa para
trás a impressão de algo que não pode ser totalmente apreendido, algo que é da
ordem da sensação. É como se nossa capacidade de atenção, o espaço de atividade
da pequena janela da consciência fosse demasiado curto para abarcar num só
lance todos os acontecimentos que se dão simultaneamente em sua música. Isso
parece ser um fato novo dentro da história da canção brasileira. Pois ao mesmo
tempo que João é um grande cultor da primazia melódica, de sua auto-suficiência,
ao mesmo tempo sua música apresenta uma densa malha de acontecimentos
131
paralelos – rítmicos, contrapontísticos, polifônicos, timbrísticos – que estão
sempre na iminência de roubar o foco à melodia. Como escrevi anteriormente, há
uma relativização da balança figura-fundo que, numa tradição de canto popular
eminentemente melódica e monódica, me parece ser um acontecimento inédito.
Sem romper totalmente com a primazia da linearidade melódica, Tom e João
criam uma forma musical na qual cada detalhe é um acontecimento em si, digno
de atenção, mas que ao mesmo tempo forma um objeto sonoro único, integrado,
que mesmo depois de ter sua linha-guia devidamente processada pela memória (a
canção em seu estado mais básico), persiste em grande parte como sensação.
Sucessões atmosféricas que resistem a ser totalmente incorporadas pelos schemas
da memória – do mesmo jeito que não se consegue criar uma imagem mental clara
do emaranhado de cores e manchas sem contorno preciso que constituem a base
de muitos quadros de pintores impressionistas como, por exemplo, Claude Monet.
No limite, tanto no caso de João como no caso de Tom (mas revelado de
modo mais nítido nas interpretações do primeiro), estamos diante de uma forma
que transita entre ser homofonia e ser polifonia. Talvez não seja de todo
irrelevante o fato de que ambos tinham enorme admiração pelos conjuntos vocais
que se tornaram uma coqueluche no Brasil do início dos anos 1950. Muito
influenciados pelos grupos vocais americanos (The Pied Pipers, Mel Tones), os
conjuntos brasileiros (Garotos da Lua, Anjos do Inferno) representavam nessa
época o que havia de mais sofisticado na música do país. É preciso lembrar que
não houve no Brasil - como houve, por exemplo, nos Estados Unidos - uma
tradição de canto polifônico religioso. Havia, na Era do Rádio dos anos 1930,
quando realmente se estabelece a canção urbana e moderna no Brasil, coros de
fundo que pontuavam com a voz principal. Mas estes eram apenas agregados de
vozes em uníssono, que valiam pelo somatório timbrístico e pelo volume e
qualidade coletivas, mas que não chegavam a gerar linhas paralelas de canto. As
vozes não “abriam” nem criavam tensões polifônicas. Nos Estados Unidos, por
outro lado, encontra-se desde cedo, nos cantos dos trabalhos litúrgicos que estão
na base do blues e do jazz, uma forte tendência para a polifonia, que irá permear
continuamente a música comercial americana do século XX. Isso não quer dizer,
obviamente, que a canção americana seja sempre polifônica. Mas mesmo os
pequenos arranjos de vozes de cantores folk e a própria constituição polifônica de
boa parte do jazz nos remete a essa concepção musical de fundo que difere
132
decisivamente da tendência mais puramente lírica e monódica (homofônica) da
música brasileira.
Não deixa de ser curioso o fato de que na fase mais intensa da bossa nova –
os três primeiros Long Play’s de João, arranjados por Jobim – não há qualquer
tipo de multiplicação de voz. Embora uma das paixões do jovem Tom fosse
harmonizar vozes e o próprio João tenha começado sua carreira de cantor num
grupo vocal (Garotos da Lua), há nos discos desse período clássico da Bossa
Nova apenas uma única e solitária voz cantando. Talvez isso decorra um pouco do
seu caráter mais individualizado, mais protegido em ambientes menores, nos
apartamentos de Copacabana; mais introspectivo – a figura mítica do solitário
João, tocando de pijama no quarto, sendo o emblema disso. Ao mesmo tempo,
não se trata apenas de uma escolha: parece, antes, uma exigência do próprio estilo
de João. Para acompanhá-lo cantando é preciso ir além, incorporando na memória
a profusão de pequenas alterações que ele opera incessantemente no ritmo da
melodia, e que diz respeito a uma única gravação. É um trabalho árduo, que
requer muitas audições para afinar a precisão, e difere bastante daquele que quase
espontaneamente temos ao decorar uma melodia qualquer. Enquanto Jobim voltou
aos arranjos vocais, afirmando, de certo modo, o caráter coletivista de sua música
e de sua personalidade, João mergulhou cada vez mais fundo na introspecção de
sua voz solitária, trancado num apartamento, praticamente isolado do mundo. É
possível, contudo, que a técnica de condução de vozes dos conjuntos vocais tenha
sido incorporada na própria estrutura dos acordes de seu violão. Se repararmos
com cuidado, ouviremos o modo como João consegue, mesmo atacando as notas
em conjunto (acordes em cacho), eqüalizá-las de modo diferente. Ao conferir
mais brilho e ênfase a certas notas específicas dentro do acorde, ele sublinha a
seqüência harmônica não apenas como bloco vertical, mas também como
condução melódica paralela, horizontal, portanto polifônica. Geralmente são
enfatizados pequenos trechos melódicos, trechos simples que na maioria das vezes
representam pequenas seqüências cromáticas descendentes e também ajudam a
justificar os próprios encaixes harmônicos através da condução das vozes internas,
muito mais do que pela tradicional sintaxe funcional. Articulando-se
continuamente com o canto, os acordes transitam entre ser agregados de notas
estáticas, que valem mais pelo colorido sonoro, e vozes internas que caminham
horizontalmente. Trata-se de um outro jeito de elaborar o fluxo harmônico.
133
É difícil encontrar outra tradição de canto melódico, de forma-canção, com
tamanha volúpia harmônica. Em João Gilberto, e também em Jobim, não há como
dissociar a harmonia do elemento melódico. Os dois estão atados numa única
coisa. A sensação total e indefinível que se depreende do conjunto decorre de um
trabalho obsessivo em cima de peças específicas, como se o intérprete tentasse
achar a seqüência harmônica perfeita que está encavilhada na própria melodia da
canção – e ao trazê-la à tona as duas voltassem a se unir para todo o sempre. Não
há mais, como havia quase sempre nos cantores anteriores a ele, uma distinção
nítida entre o plano da voz melódica e o plano do acompanhamento. Aquilo que
antes era apenas uma linha melódica correndo por cima de, no mais das vezes,
preenchimentos harmônicos, torna-se parte de uma alquimia sonora mais ampla e
complexa, que abarca cada vez mais a sensação dos agregados sonoros como
parte constituinte de um sentido maior.
Mais uma vez devo reiterar que a compreensão dessa dimensão em João
Gilberto passa também por Tom Jobim, e vice-versa. Desde seus primeiros
trabalhos, como a Valsa Sentimental (que mais tarde ganhou letra de Chico
Buarque e tornou-se Imagina), Tom revelou seu imenso dom para a
harmonização. Mas ali naquele caso, tratava-se ainda de um estudo para piano, no
qual se detectam com facilidade as influências de sua formação erudita –
sobretudo Chopin e Debussy. Quando, contudo, Tom começou a compor canções
para o rádio, de maneira cada vez mais profissional, embora já apresentasse traços
marcadamente pessoais, suas músicas possuíam uma estrutura harmônica bastante
convencional, em perfeita consonância com os padrões da época. Teresa da Praia,
de 1954, seu primeiro grande sucesso, traz acordes com alterações pequenas
(sétimas aumentadas) e encadeados em saltos de quarta e quinta – não há ainda
sequer suas famosas linhas cromáticas de condução do baixo reduzido ao
esqueleto.
Acontece que por volta de 1956 inicia-se aparentemente um período de
profunda mudança em sua maneira de compor. Foi quando Tom criou as canções
do musical Orfeu da Conceição, representado no Teatro Municipal178, marco
178
O Teatro Municipal era então o mais importante teatro da então Capital Federal do Brasil. Com
projeto arquitetônico diretamente inspirado no de Charles Garnier para o Opéra de Paris Garnier,
havia sido inaugurado em 1909 com um discurso proferido em francês pelo eminente poeta
parnasiano Olavo Bilac. Na frente do teatro, pairava uma estátua de Frédéric Chopin. Creio que
134
inicial de sua parceria com o poeta e diplomata Vinicius de Moraes, e talvez o
impulso de partida daquilo que viria a se chamar bossa nova. Adaptando o mito
clássico de Orfeu e Eurídice para o contexto contemporâneo e tropical das favelas
cariocas o espetáculo trazia o anseio de “unir Brasil e Grécia” – anseio este que
surgiu em meados dos anos 1940, quando Vinicius teve a ideia de escrever a peça,
e que foi abraçado com devoção apaixonada pelo então novato Antonio Carlos
Jobim. Nota-se em tal movimento a vontade de submeter um material de origem
extremamente popular (a canção urbana) a um tratamento ultra-sofisticado. Em
certo sentido, a ideologia igualitária e cosmopolita dos anos 1950, mas ainda
empenhada na construção de um nacionalismo popular e na afirmação de uma
singularidade brasileira, invertia os termos da lógica do primeiro Modernismo dos
anos 1920 e 1930. Ao invés de tomar a matéria popular como base para
formulações eruditas – como havia feito, por exemplo, Villa-Lobos – partia do
próprio substrato popular para “enriquecê-lo”, ou “sofisticá-lo”, mediante
procedimentos estilísticos oriundos do universo erudito.
Não se tratava mais de alargar as possibilidades da música de concerto
através da incorporação de elementos autóctones das tradições regionais – como
desejava Mário de Andrade, o grande mentor do primeiro Modernismo, e como
também o fariam Darius Milhaud e Villa-Lobos – mas de trabalhar diretamente
sobre uma linguagem de cunho popular injetando nela procedimentos oriundos do
universo erudito.179 Foi desse modo que, se Vinicius trouxe para os morros
cariocas o mito grego de Orfeu e Eurídice, Tom, ao elaborar as melodias da trilha
sonora, injetou modos gregos nos sambas-canções e valsas de sabor brasileiro. Em
suma, realizou no plano musical o que Vinicius havia feito no plano narrativo (o
mesmo procedimento de inserção de modos antigos ou não-ocidentais na
linguagem tonal seria também realizado por Debussy). Da parceria de Tom e
Vinícius saíram, entre 1956-57, canções em que já se pode notar de modo mais
nítido a marca do requinte harmônico tão próprio a Jobim (Se Todos Fossem
Iguais a Você, Modinha, A Felicidade). Requinte que acompanha também a
elaboração de linhas melódicas sinuosas, modulantes e assimétricas que,
nada mais há a dizer sobre a extensão da influência francesa no Rio de Janeiro do início do século
XX. 179
Para maiores esclarecimentos sobre a visão dos modernistas brasileiros dos anos 1920 e 1930 a
respeito da manipulação de temas folclóricos dentro do quadro, dos moldes da música clássica
européia, ver Luiz Tatit, O Século da Canção, Cotia, Ateliê Editorial, 2004, p.35-41.
135
evoluindo passo a passo, aproximam-se do registro da fala, tornando-se, portanto,
confortavelmente cantáveis.
Também Chega de Saudade está entre as músicas desse período. Composta
logo após o espetáculo, ficou engavetada até o dia em que Tom Jobim reencontrou
João Gilberto. Este retornava ao Rio de Janeiro depois de passar quase dois anos
fora da cidade. Com um início de carreira bastante atribulado, permeado por
inúmeros insucessos, João havia sido incentivado a passar uma temporada em
Porto Alegre. A temporada estendeu-se na casa de sua irmã em Diamantina, onde
ele passava os dias tocando violão dentro do quarto, de pijama, ou no banheiro,
testando na caixa de ressonância revestida de azulejos as possibilidades de sua
estética minimalista.180 Depois, passou ainda por Juazeiro e Salvador, na Bahia,
antes de voltar para o Rio de Janeiro, em 1957. Quando voltou, mudou num passe
de mágica toda a linguagem da canção popular brasileira. Trazia na bagagem um
novo modo de condução rítmica no violão, uma síntese do samba que era enxuta,
flexível e aberta a variações pessoais. Junto com isso, consolidava um estilo de
canto absolutamente desdramatizado, que contrastava com a derramada e
romântica da maior parte dos cantores da época. Há uma vasta bibliografia sobre o
impacto da volta de João no meio musical do Rio de Janeiro – cidade que era o
grande centro produtor e difusor da música comercial da época. O importante é
notar que foi somente ao tomar conhecimento da “batida do João” – após receber
uma visita do próprio João em sua casa181 - que Tom Jobim não apenas sacou da
gaveta Chega de Saudade (que ali havia permanecido por mais de um ano), como
também modificou sua maneira de compor ao tomar como base aquela nova
organização rítmica.
A nova organização rítmica proposta pelo violão de João Gilberto criou
mais espaço para os acordes e possibilitou que Jobim desenvolvesse seu estilo na
direção de um minimalismo melódico apoiado sobre uma complexidade
harmônica que não conhecia paralelos na esfera da canção comercial brasileira.
Da mesma forma que João havia criado uma simbiose entre melodia-harmonia-
ritmo através do ser único de seu “canto & violão”, Tom fortaleceu os elos que
uniam melodia e harmonia a tal ponto que muitas de suas canções praticamente
180
Ver, nesse sentido, o capítulo 7 – intitulado “Em Busca do Ego Perdido” - de Ruy Castro,
Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova, p.133 181
O episódio do reencontro de Tom Jobim e João Gilberto (que já se conheciam
superficialmente) é narrado no livro de Ruy Castro, op.cit.., p.160.
136
“inexistem” quando não são acompanhadas pelo devido complemento harmônico.
A primeira intuição a respeito disso parece ter surgido num ensaio escrito por
Brasil Rocha Brito nos anos 1960. Rocha Brito notava que ao lembrarmos de uma
melodia de Jobim estamos simultaneamente, e ainda que disso não tenhamos
consciência, lembrando dos acordes que a acompanham.182 Talvez seja possível
dizer que, mais do que a lembrança dos acordes, criamos a lembrança das
atmosferas sonoras e das sensações que cercam a melodia. Canções como
Corcovado, Samba de Uma Nota Só e Fotografia possuem seções melódicas tão
sumariamente reduzidas – girando em torno de duas, quando não de apenas uma
única nota – que o sentido deve ser necessariamente complementado pela
dimensão harmônica. Embora boa parte dos acordes usados possam ser lidos
como “acordes de passagem”, eles exercem uma função estrutural na interação
com a melodia. Não podem ser, desse modo, simplificados; as alterações de
sextas, sétimas e nonas não dizem somente respeito ao estilo harmônico, mas são
instâncias determinantes na definição do sentido melódico. Alteram a percepção
que temos dele.
Uma análise mais apressada desses fatores poderia levar a conclusão de que
a extrema concisão melódica que marcou muitas das canções de Jobim no período
áureo da bossa nova – mais ou menos entre 1958 e 1963 – servia, acima de tudo,
para ressaltar o enriquecimento e alargamento do tecido harmônico no universo da
música popular. A melodia sem nenhum desenvolvimento seria, desse modo,
apenas um pretexto para que se lançasse luz sobre os novos acordes - acordes que
passaram a ganhar maior destaque dentro da nova economia rítmica trazida pelo
violão de João. Sucede, no entanto, que essas melodias jamais foram destacadas
desse jogo harmônico; pelo contrário, foram afetadas e de certo modo
transformadas por ele, mas também garantiram boa parte de sua articulação.
Como elementos de repetição estática, frequentemente reiterados, tornaram-se
núcleos estruturais fortemente delineados em sua dinâmica interna, servindo como
o eixo a partir do qual organiza-se uma sucessão de acordes sintaticamente
frouxos. A melodia mínima tornou-se o principal fator a garantir a coesão de uma
182
“As melodias pouco variadas, insistindo na reiteração de uma mesma nota ou figuração
melódica (transposta em alturas ou não), não pretendem vida autônoma: ainda quando as
cantarolamos ou assobiamos, inconscientemente estamos imaginando ouvir a melodia ligada à
estrutura harmônica correspondente”. (Cf. Brasil Rocha Brito, “Bossa Nova”, In. Balanço da
Bossa e Outras Bossas: Antologia Crítica da Moderna Música Popular Brasileira, São Paulo,
Perspectiva, 2005, p.30)
137
estrutura harmônica sintaticamente enfraquecida, ao mesmo tempo em que recebe
desta nuances de sentido que aumentam o seu impacto emotivo, sua capacidade
sugestiva. Isso permitiu que se mantivesse a força da dimensão linear e melódica
da canção, da tradição da palavra cantada à brasileira, ao mesmo tempo que
enfatizava a interferência decisiva da sensação dos acordes sobre essa dimensão.
Em Jobim, a composição geralmente se estrutura a partir do desdobramento
de uma célula mínima que projeta diferentes caminhos harmônicos e jamais
retorna sobre si mesma (o mais corrente entre os compositores populares é
justamente o oposto: organizar a canção em torno de um ciclo harmônico mais ou
menos fechado, que vai sendo preenchido pela melodia). Lorenzo Mammì
chamou a atenção para a singularidade desse modo de criar e para as semelhanças
que ele nutre com procedimentos da música clássica.183 É na maneira de construir
que Tom mais se aproxima de seus mestres do universo erudito. De Villa-Lobos,
nas extensas linhas melódicas feitas da transposição de pequenos intervalos para
cima e para baixo, como em Chega de Saudade e Sabiá. De Chopin, no fato de
colocar a melodia como centro estrutural da composição. De Debussy, na
complexidade e no uso da harmonia. Desde sua Rêverie para piano, passando por
Prélude à l’Après Midi d’Un Faune e por Nuages, entre outras, é comum ouvir o
compositor francês brincando de repetir pequenas frases ou esquemas melódicos
sob diferentes luzes harmônicas. A memória dinâmica reconhece a presença do
mesmo tema que retorna acompanhado de sensações harmônicas diferentes. Não
se trata mais da busca por um complemento de tensão que aponta para novos e
mais distantes horizontes resolutivos - como em Wagner – mas tão somente de
enquadrar de modo diferente um cenário já conhecido.
Estamos falando aqui de um Debussy um pouco menos pulverizado do que
aquele que transparece em Jeux, quando as repetições, embora existentes e
necessárias, são muito mais dispersas e variadas, estabelecendo um vínculo mais
tênue e trabalhoso com a memória. O Debussy do qual foi beber Jobim está mais
próximo de uma concepção melódica horizontal, como a que transparece em
muitas de suas peças para piano, como La Fille aux Cheveux de Lin (do primeiro
livro de prelúdios), o Clair de Lune (Suíte bergamasque) ou Bruyères (do segundo
livro de prelúdios) e que relacionam-se com a própria importância que o canto
183
Ver Lorenzo Mammì, “Prefácio”, In. Cancioneiro Jobim: Obras Escolhidas, 2002.
138
teve em seu pensamento musical. De fato, alguns estudiosos notaram que quase
todas a inovações harmônicas de Debussy apareceram pela primeira vez nas obras
vocais (suas mélodies) escritas sobre os versos de poetas simbolistas franceses –
como Verlaine, Mallarmé e o precursor Baudelaire. Foi na tentativa de musicar
esses poemas, buscando estruturas harmônicas e sintáticas de algum modo
comparáveis com os procedimentos desses literatos – elipses, livre associação de
ideias, substituições inesperadas de vocábulos -, que Debussy foi, aos poucos,
forjando um estilo próprio, capaz de combater as “dimensões e a falta de leveza
germânicas”.184 Concorreu para isso uma sensibilidade rara para as relações entre
palavra e música – a base das lieder e da forma canção.185 Vem daí a tendência a
aproximá-lo mais dos simbolistas do que dos impressionistas. Mas ainda quando
harmonizava sobre temas melódicos e palavras, Debussy estava empenhado no
equilíbrio delicado entre continuidade linear e irrupção do instante, entre
encadeamentos e suspensões, no modo como a sensação se inseria nesse jogo.
Tom Jobim estava atento para tudo isso. Foi buscar no compositor francês
uma das fontes para construir o delicado intimismo urbano da bossa nova. Assim
como em Debussy as melodias não mais precisavam contorcer-se em espirais
ascendentes rumo a um objetivo infinito, como acontecia em Wagner, em Jobim
elas não precisavam mais buscar os picos de tensão tão comuns a tradição
romântica do samba-canção que dominou o cenário da música popular nos anos
1940 e 1950. Não precisavam mais correr em direção a alturas cada vez maiores
em busca de pungentes efeitos dramáticos. Podiam, ao invés disso, manter-se na
superfície e ser enriquecidas pela sensação dos acordes, de modo muito
semelhante ao que acontecia com a matéria melódica em algumas peças de
Debussy. A inserção da complexidade harmônica de Jobim no seio da música
popular foi como a inauguração de uma nova dimensão expressiva em nossa
canção – que já existia, mas nunca havia sido empregada com tamanha
profundidade e consciência. Ou, por outra, um investimento na dimensão vertical
da canção, aquela que diz respeito não ao desenvolvimento da melodia no tempo,
184
DEBUSSY, Claude. Monsieur Croche e outros ensaios sobre música. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1989, p.255. 185
“(...) la présence de développements, la juxtaposition de sections et les présentations différentes
du thème initial font du Prélude à l’après-midi d’un faune un amalgame de formes connues, une
fusion de acquisitions de la forme sonate (développement), de la construction par sections du lied
(milieu), et des procédés de la variation. Comme dans la forme lied, le milieu est indépendant des
deux autres volets, ici symétriques, qui l’entourent”. (Cf. Jean Barraqué. Debussy, p.108)
139
mas ao impacto do acorde no instante. É o próprio Tom quem explica, de acordo
com suas influências eruditas, esse dois eixos: “O Bach é mais horizontal, o
Debussy é mais vertical. Quer dizer: o Bach não está preocupado com o acorde;
está preocupado com o passado, presente e futuro. Stravinsky, muitas vezes, está
mais preocupado com a verticalidade, com o aqui-agora. A música, como diz
Stravinsky, é uma arte crônica. Para você ter uma melodia, tem que ter passado,
presente e futuro. Agora, para tocar um acorde, é instantâneo. É como uma
pintura”.186
Esse investimento na dimensão vertical da música, mais focada na sensação
do instante do que no encadeamento passado-presente-futuro, é facilmente
percebido nas composições de Jobim, com sua atmosfera harmônica diáfana,
recheada de acordes sem muita definição tonal (acordes diminutos, acordes com
sétima e quinta bemolizada), e de notas melódicas que evitam enfatizar os centros
harmônicos - assim como acontece em seus arranjos, com frequência baseados em
instrumentos de sopro de ataque pouco definido, como a flauta. Parece, contudo,
ganhar sua realização mais plena nas interpretações do próprio João Gilberto.
Nele, o valor expressivo dos acordes é continuamente contrabalançado pelo fluxo
horizontal da voz, pelo seu compromisso com a comunicação do conteúdo lírico
da canção. Há um diálogo constante entre a movimentação dos elementos vocais e
a condução ritmítca/harmônica do violão. Se a melodia apresenta uma alta dose de
agitação, seja através de constantes mudanças nas alturas (melodias que
caminham muito), seja por uma intensa ativação rítmica (não há mudança na
altura, mas ataques reiterados separados por pequenos intervalos de tempo), o
violão tende a manter uma atividade mais pausada e uniforme, como se não
quisesse competir com o canto. Outras vezes, quando o próprio canto torna-se
mais rarefeito ou estável, o instrumento de cordas aumenta sua movimentação,
ampliando o número de acordes usados nas seqüências e aumentando sua variação
rítmica – alternando células rítmicas em torno da baliza estável do bordão. Nesses
momentos, os acordes praticamente saltam para o primeiro plano, a condução das
vozes internas ganhando certa primazia sobre a voz melódica principal. Mas há
também momentos em que tanto o violão quanto a voz apresentam uma baixa taxa
186
Cf. Almir Chediak. Songbook Noel Rosa, v.3, Rio de Janeiro, Lumiar Editora, 1991, p.14-18.
(grifo meu)
140
de atividade. Muitas vezes, acordes permanecem estacionados por vários
compassos, como atmosferas embaladas somente pelo pulso sincopado das três
notas atacadas pelo indicador, médio e anular, e pelo bordão regular e hipnótico
executado pelo polegar. Geralmente são acordes com baixa dinâmica tonal, que
por si só tendem a permanecer estáticos.
Talvez o primeiro grande exemplo desse tipo de procedimento esteja na
primeira gravação de Aos Pés da Cruz. Se comparada com a gravação clássica de
Orlando Silva (grande ídolo de João), percebemos nitidamente o modo como
nesta versão a introdução, com naipes de metal reproduzindo um trecho da
melodia, é substituída por uma entrada ao som de um único acorde de violão que,
sem indicar qualquer direção, nos lança numa temporalidade suspensa. Outro
exemplo talvez ainda mais indicativo nos é dado pelo modo como João desativa a
própria seqüência harmônica original que está no início de Chega de Saudade,
substituindo-a, mais uma vez, pela transição de acordes com maior tempo de
duração. São momentos extremamente contemplativos, nos quais experimentamos
com maior intensidade a temporalidade suspensa que caracteriza a bossa nova.
Dessa temporalidade deriva parte de sua leveza. Uma leveza mais calcada na
sensação de um tempo dilatado e vazio (no sentido de descarregado, ocioso,
jamais ansioso) do que no encadeamento narrativo – seguindo um pouco a
sugestão de Jobim, mais pintura do que história.
Há, na música de Jobim e de João no período da Bossa Nova, uma
serenidade de ponto de vista – como se o mundo estivesse provisoriamente
resolvido, e o presente finalmente pudesse ser fruído em toda a sua plenitude - que
não apenas a aproxima curiosamente da placidez da pintura impressionista, mas
também faz entrever nela uma qualidade mais eminentemente clássica. O termo
“clássico” deve ser mais uma vez entendido em contraposição ao termo
“romântico”. De modo nada fortuito, o crítico e historiador Giulio Carlo Argan
utilizou a pintura impressionista como ponto de partida para pensar a relação entre
essas duas vertentes no universo da arte moderna. Seu argumento é de que, uma
vez que a pintura impressionista mudou radicalmente as premissas, as condições e
as finalidades do trabalho artístico, colocava-se então o problema da avaliação de
sua dimensão histórica. Era preciso esclarecer se o “impressionismo orientava-se
por uma tendência clássica ou romântica, ou se resolvia (e como) a antítese destas
duas posições, não mais consideradas como situações históricas determinadas e
141
sim como eternas polaridades do espírito humano”.187 Clássico e romântico
referem-se a duas grandes fases da história da arte: mundo Greco-romano e
Renascimento versus arte cristã da Idade Média. Nesse sentido, o clássico é
descrito nos termos de uma arte que propõe a representação de uma concepção
positiva do mundo, em sua totalidade espaço-temporal. Na base dessa concepção
estaria uma relação harmônica, integrada, entre o homem mediterrâneo e a
natureza circundante. Uma certa noção de equilíbrio, de resolução e síntese,
costuma marcar a estética baseada nesses preceitos.
O romantismo, por outro lado, seria marcado pela consciência profunda e
trágica do divórcio entre homem e natureza. Consciência esta que avulta,
sobretudo, no homem setentrional, para quem a natureza se constitui como força
obscura e ameaçadora. O resultado desse divórcio talvez seja o aguçamento do
subjetivismo, a imersão fascinada do sujeito em seus próprios desvãos. Não mais
tendo o mundo externo como aliado, ele se compraz com as descobertas e as
delícias do mundo interior. Permanece, contudo, o anseio profundo da unidade
perdida, anseio que na estética romântica será muitas vezes permeado pelo signo
do desespero. Não o equilíbrio, mas a busca da máxima tensão. Pois é através dela
que se consegue, numa resolução mística, recuperar o paraíso perdido da unidade
com o mundo. Sendo assim, excesso e tensão são marcas fundamentais do
romantismo.
Obviamente, as divisões são bem mais dinâmicas e fluidas, o que nos
permite reconhecer aspectos clássicos num artista marcadamente romântico –
como Baudelaire fez em relação a Wagner – e vice-versa, e até reconhecer artistas
que participam com igual intensidade das duas tendências – como talvez seja o
caso do próprio Baudelaire. Mas como linhas gerais de concepções de mundo que
de algum modo se traduzem sensivelmente através da arte, a distinção ampla e
esquemática entre clássico e romântico pode ajudar a revelar as matrizes da
sensibilidade de determinada época e lugar, de determinada cultura. É desse
modo, por exemplo, que Argan avalia o surgimento simultâneo do fauvismo e do
expressionismo, no início do século XX. Apesar de terem em comum a premissa
histórica do impressionismo, as duas correntes “refletem o contraste de fundo
entre a cultura francesa e cultura alemã, entre um eterno classicismo e um eterno
187
Cf. Giulio Carlo Argan, “As Fontes da Arte Moderna”, In. Novos Estudos(Cebrap), Nº18, set.
1987, p.50. (grifo meu)
142
romantismo”. Como princípio comum às duas correntes temos a sensação, que se
expressa no uso da cor pura, e torna-se definidora da condição existencial, do ser-
no-mundo do homem moderno. Mas enquanto os fauves aspiram pela resolução
sem resíduos das ressoantes áreas de cor nas duas dimensões do quadro, em “uma
espécie de exaltação pânica, uma apropriação total da realidade”, como sugere
Argan, para os expressionistas a violência das sensações é o signo de profundos e
convulsivos complexos. Filhos de Van Gogh e Munch, eles revelam “aquela visão
deformada, aquela sensação exasperada e furiosa, aquele juízo severo sobre as
coisas do mundo”, “produto de antigos terrores, de culpas longínquas e obscuras
repressões”. O historiador emprega então a distinção que Maurice Denis havia
proposto a respeito dos Nabis: enquanto a deformação dos fauves é objetiva, a dos
expressionistas é subjetiva. O que indica também a óbvia associação que muitas
vezes se fez entre romantismo e profundidade (emocional, psíquica, etc);
classicismo e superficialidade.
É possível que uma parte dessa comparação também seja válida para o caso
da música. Vimos que o percurso traçado pelos românticos a partir do século
XVIII já indicava uma ênfase cada vez maior nos parâmetros secundários como
instâncias de articulação do sentido musical. Estruturas emergentes e contínuas –
e que enfatizavam, baseadas num modelo organicista, a mudança, o crescimento,
o desenvolvimento e a abertura - tendiam a substituir a discontinuidade
hierárquica que caracterizava a sintaxe clássica. A imediaticidade das sensações
(timbres, texturas, dinâmicas de volume, adição de notas harmônicas que valem
pelo mero efeito sonoro, etc...) passa a integrar com mais força o discurso tonal
clássico, muitas vezes sobrepondo-se a ele, minando-o vagarosamente por dentro.
Mas se em Wagner a sensação ainda constitui um meio a mais para se atingir o
paroxismo da tensão e do estado de desespero, do clímax que leva ao sublime e
culmina na unidade final, em Debussy ela tende a se desvincular de tal função.
Tende a servir a propósitos bastante diferentes.
Assim como aconteceu com o uso da cor pura, princípio comum que teve
resultados essencialmente diferentes nos fauves e nos expressionistas, a qualidade
e o papel da sensação serão redefinidos na música de Debussy, tendendo a ser
incorporados dentro de uma concepção estética que difere fundamentalmente
daquela do romantismo. E, nesse sentido, não deixa de ser curioso o fato de que a
serenidade que caracteriza o ponto de vista da bossa nova esteja muito mais para
143
os quadros de, digamos, Henri Matisse (que Argan considerava , do que para
aqueles de Van Gogh e Munch. Numa comparação livre, é possível notar como os
interiores de Matisse - com suas janelas emoldurando e trazendo para a esfera
íntima o mundo externo, sua profusão de cores puras e excitadas resolvendo-se
estranhamente em cálida e plácida atmosfera interior - poderiam ser perfeitamente
habitados por músicas como Corcovado e Fotografia. As mesmas sensações das
cores puras que, no caso de Munch, servem para ampliar o efeito dramático de um
quadro como O grito, em Matisse serão usadas para fazer com que a pintura se
torne, em suas próprias palavras, “uma poltrona confortável” - e, de fato, em seus
interiores as figuras humanas estão sempre sentadas ou deitadas, em momentos de
íntimo aconchego e devaneio, de prazeroso ócio contemplativo.
É possível que houvesse nesse modo de “re-harmonizar” as sensações,
presente tanto em Debussy quanto em Matisse, uma busca por leveza e frescor
expressivos que de certo modo também pautou a bossa nova de Tom e João, em
sua reação aos excessos sentimentais e estilísticos do samba-canção que passou a
dominar as rádios a partir de meados da década de 1940. Algo do delicado espaço
de muitas peças de Debussy parece ter sido incorporado na criação do novo
intimismo urbano proposto pela bossa nova. Os desafios musicais enfrentados
eram de algum modo semelhantes. Se Debussy, contudo, reivindicava, em cartas e
artigos, a retomada de certas qualidades da tradição do classicismo francês (“J’ai
surtout cherché à redevenir français”; “A música francesa é clareza, elegância,
declamação simples e natural”)188, combatendo o espírito teutônico de Wagner
pela afirmação de uma essência francesa, Tom e João representavam uma linha de
exceção no quadro cultural brasileiro. De fato, um dos motivos de fascínio (e de
repúdio) da bossa nova está no contraste criado entre sua rigorosa contenção
musical, que prima pela discrição e sutileza, e a propensão algo carnavalizante,
dionisíaca, de muitas das nossas manifestações culturais.
Pouco importa, para o presente argumento, o teor de simplificação
mistificadora embutido na ideia de uma cultura francesa que prima pela clareza e
pela elegância discreta, ou de uma qualidade essencialmente brasileira baseada na
exuberância corporal, no exagero e na embriaguez extática. Pouco importa se o
mito é de fato verificável em todas as instâncias da realidade, se não passa de uma
188
Cf. Claude Debussy, op. Cit, p.241.
144
fabulação, se é totalizante ou se permite exceções... Importa antes sua existência
como vetor histórico, como poderoso pano de fundo, como tônica da complexa e
variada trama cultural de uma determinada época. Apoiando-se no vetor
classicista francês, Debussy pôde melhor justificar suas investidas contra o que
havia de excessivo na tradição wagneriana. De modo inverso, colocando-se na
antípoda da concepção dominante de um Brasil épico - do Estado Novo de
Vargas, dos sambas “sinfonizados” de Ary Barroso, do Maracanã, das obras
faraônicas de Brasília -, a bossa nova de Tom e João deu origem a uma versão
algo diminuta, íntima, solar e discreta, da modernização pela qual passava o país
no fim dos anos 1950. Ainda que sua revolução musical tenha se baseado em
grande parte na retomada da raiz entoativa que animava os sambas da Era de
Ouro, assim como em seu balanço, a reformulação do Brasil contida na música de
Tom e João era, apesar de sua plácida aparência, profunda e violenta, uma vez que
contrariava clichês já bastante incorporados.189
A aspereza do batuque de samba, as letras debochadas das marchinhas, os
excessos de gesto e cores do carnaval, o gosto da retórica pomposa, o tutti-frutti
hat de Carmen Miranda e os dribles de Garrincha, soavam demasiadamente
expansivos e distantes do canto pequeno de João Gilberto ou da timidez de Nara
Leão. Apoiado em suas vastas extensões territoriais, na pujança de sua natureza, e
oscilando constantemente entre os estigmas de país colonizado e condenado ao
atraso, e a utópica promessa da realização de uma nova humanidade - preso no
círculo vicioso entre os extremos da euforia e da depressão - o Brasil parecia mais
fortemente associado a imagens de eloqüência e exagero. Além disso, as
manifestações tidas como as mais típicas e espontâneas de nossa cultura
indicavam um gosto pela curva, pela voluta e pelos excessos, que remontava a
uma sensibilidade barroca. E não à toa, pois como sublinha Antonio Risério, “os
nossos processos sincréticos tiveram seus dias inaugurais em pleno império da
189
Numa palestra proferida no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o compositor Caetano
Veloso descreveria a potencial violência que se escondia por trás da aparente placidez da Bossa
Nova nos seguintes termos: “Espero, ao contrário, poder convencer os aqui presentes de que, do
ponto de vista dos que fizeram o tropicalismo, a bossa nova de João Gilberto e Antônio Carlos
Jobim significava violência, rebelião, revolução e também olhar em profundidade e largueza,
sentir com intensidade e coragem, querer com decisão. E tudo isso implica enfrentar os horrores de
nossa condição: ninguém compõe Chega de Saudade, ninguém chega àquela batida de violão sem
conhecer não apenas os esplendores, mas também as misérias da alma humana”. (Cf. Caetano
Veloso, O Mundo Não é Chato, (Eucanaã Ferraz org.), São Paulo, Companhia das letras, 2005,
p.47)
145
cultura e da sensibilidade barrocas, que, atravessando como linha de fogo o arco
dos séculos, marcariam para sempre as criações brasileiras. Na arquitetura, nas
artes plásticas, na música, na literatura, na culinária, no carnaval, no cinema, no
futebol”.190 O próprio Tom Jobim faria uma contraposição entre o caráter
extremamente contido de parte das melodias bossanovistas e a matriz barroca à
qual se filiavam a maioria das canções no Brasil: “Na parte melódica houve
também diferenças sérias com o que se vinha fazendo, houve um certo abandono
do barroco brasileiro, por assim dizer. Do barroco que tinha o choro, a seresta.
Não é propriamente um desprezo a isso. A introdução de Chega de Saudade, por
exemplo, é barroca, tem aquele desenho meio de seresta. Mas ao mesmo tempo o
Desafinado e a Nota Só (Samba de Uma Nota Só) reagem contra isso”.191
Não admira, portanto, que os traços clássicos de clareza e elegância
(entendida, no contexto francês, como quase sinônimo de discrição), reivindicados
e frequentemente realizados por Debussy, tenham encontrado em Tom Jobim e
em João Gilberto um caminho de entrada e de bem-sucedida fusão com o rico
material da música popular brasileira. Se o Brasil já era de certo modo debussysta
na limitada esfera da música de concerto, como notou Darius Milhaud nos anos
1920, com Tom e João parte dessa linhagem atravessaria, em inesperado
florescimento e impecável síntese (e obviamente temperada pelas informações
musicais próprias ao seu tempo), o universo da canção comercial. Delicados
acordes desdramatizados, valorizados sobretudo por sua beleza plástica, tornaram-
se parte fundamental de uma música de interior, bastante atmosférica,
introspectiva, lírica, “enxuta porque derramada pra dentro”.192 E, de certo modo, a
poética das letras das canções feitas nesse período seguiu a mesma tendência anti-
dramática e anti-narrativa que parecia emanar do próprio tecido musical.
O que literalmente salta à vista nas letras dessas canções é a abundância de
signos visuais. Signos capazes de criar, mais do que metáforas, encaixes e
associações para os olhos. Algumas delas lembram verdadeiras pinturas sonoras.
Em Fotografia, por exemplo, com letra e música de Jobim, o narrador comenta
que o olhar da mulher cortejada parece “acompanhar a cor do mar” diante das
190
Cf. Antonio Risério, A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros, São Paulo, Ed. 34, 2007, p.
248. 191
Cf. Zuza Homem de Mello, op.cit.., p.97. 192
Expressão empregada por Chico Buarque na abertura do Songbook dedicado a Tom Jobim.
Ver: Almir Chediak. Songbook Tom Jobim Vol.1, Rio de Janeiro, Lumiar Editora, 1991.
146
mudanças de luz que ocorrem na transição do dia para a noite. A letra não desvela
propriamente a narrativa de uma conquista amorosa, mas quadros estáticos e
descritivos de uma situação (fotografias), que se articulam perfeitamente com a
ambiência harmônica algo flou. O tempo surge como sucessão de instantes
suspensos, conectados com a circularidade dos ciclos naturais, ao invés da
linearidade cronológica e rememorativa dos sambas-canções. Esta cede lugar ao
predomínio da elipse e da descrição de situações como modo de construção de
sentido. O foco da canção muitas vezes é mais direcionado para o cenário do
acontecimento do que para o acontecimento em si, que nada mais é, como coloca
a própria letra, do que “aquela velha história de um desejo”. É possível ver na
transição contínua entre o olhar e o mar, descrita pela letra, como se fossem os
dois feitos da mesma matéria, a tentativa de restaurar uma temporalidade onde os
tempos humanos se encontram em fase com o tempos da natureza, numa
continuidade macia e harmoniosa. É uma aspiração recorrente na bossa nova, que
pode ser flagrada em muitos dos seus sucessos: a mulher que passa reproduzindo
o balanço das ondas, em Garota de Ipanema; a quantidade de “peixinhos a nadar
no mar” servindo de parâmetro para a demonstração afetiva dos “beijinhos que
darei na sua boca”, em Chega de Saudade (essa e a anterior com letra de Vinícius
de Moraes); o barquinho que desliza no macio azul do mar enquanto a tarde cai,
como se ambos estivessem conectados a uma só engrenagem de espaço-tempo
(letra de Ronaldo Bôscoli). É uma unidade próxima daquela que se encontra nos
quadros impressionistas, onde a ausência de contornos e a utilização da pincelada
de cor como estrutura básica faz com que todos os elementos representados sejam
constituídos por um mesmo princípio, por uma mesma substância. Perde-se em
distinção e profundidade, ganha-se em integração de superfície.
Do mesmo modo, em Corcovado, as divagações descritivas e melancólicas
da voz que canta são subitamente interrompidas pela constatação de que “da
janela vê-se o Corcovado e o Redentor, que lindo!”. Mais uma vez, a narração
sentimental cede lugar ao impacto crescente da sensação do instante. Emoldurada
pela janela, como um quadro, a paisagem participa intensamente do chamado para
a felicidade que a canção propõe. Ela, de fato, compõe o ambiente íntimo dos
sonhos, junto com o “cantinho” e o “violão”. São borradas as fronteiras entre
interior e exterior – o morro do Corcovado está fora e dentro. Ao mesmo tempo,
sugere-se a definição de um ponto de vista urbano que efetivamente domestica o
147
entorno, fazendo com que a monumentalidade de uma montanha passe a caber na
esfera íntima. A linguagem da bossa nova é totalmente refratária a representações
de grandiosidade e eloqüência.
É curioso que a intensificação da relação com a paisagem aconteça
justamente em um momento de intenso crescimento urbano da cidade do Rio.
Pode ser que haja algo de compensatório nisso – a natureza ameaçada pela
modernização migra e sobrevive no universo simbólico da canção. É possível que
algo semelhante tenha ocorrido com a representação da paisagem entre os pintores
impressionistas. A atmosfera cada vez mais comprimida e asfixiante de cidades
que desde meados do século XIX já conviviam com um alto grau de urbanização,
como Paris e Londres, acabava por tornar o ar puro e amplidão espacial dos
campos mais intensamente estimulantes. A necessidade de alívio da rotina e
densidade urbanas trouxe ao campo e às montanhas uma comoção que eles
outrora desconheciam. O caráter algo compensatório da representação da natureza
na pintura impressionista seria notado também por Lévi-Strauss, para quem o
“enobrecimento (...) pictórico de paisagens dos arredores” devia-se não apenas a
um novo olhar capaz de revelar o belo onde antes se via apenas banalidade, mas
“sobretudo porque as grandes paisagens que inspiraram Poussin são cada vez
menos acessíveis aos homens do século XIX. Muito em breve elas não existirão
mais”.193 A “modéstia” nas escolhas temáticas dos impressionistas seria, portanto,
não apenas uma escolha de território artístico, a demarcação de uma diferença em
relação ao passado, mas também o reflexo da nova relação de domínio do homem
sobre a natureza – domínio que resulta cada vez mais na paulatina destruição do
meio ambiente, na destruição mesmo dos grandes temas pictóricos de outrora.
Mas se o homem do século XX passaria a viver num mundo que comportava um
número cada vez menor de recantos de natureza protegida - tão caros aos
impressionistas – talvez seja possível dizer que no século XIX ainda havia uma
possibilidade de equilíbrio. No caso da Bossa Nova, a realização estética de
semelhante equilíbrio falava de uma experiência urbana bastante singular,
específica de cidades como o Rio de Janeiro, onde a aliança entre paisagem
natural e paisagem urbana é muito forte, amalgamando-se ambas em constantes
193
Cf. Georges Charbonnier, Entretiens Avec Claude Lévi-Strauss, Paris, Les Belles Lettres, 2010,
p.132.
148
indefinições entre uma e outra, acenando para uma possibilidade de equilíbrio
perfeito entre natureza e cultura (aspiração clássica?).
Na Europa do século XIX a percepção da natureza foi mais aberta e variada
do que em qualquer época anterior, enriquecida não apenas por viagens, mas
também pelas experiências de poetas, pintores e naturalistas. Há uma considerável
mudança entre a experiência da natureza entre os românticos e aquela que se
encontra nos quadros de Monet. Para Monet e os impressionistas a natureza era o
local estético destinado ao deleite visual de homens despreocupados, e não mais a
força descomunal e ameaçadora de outrora. Ao invés de causadora de angústias e
medos, fonte de prazer e bem-estar. A escolha por lugares iluminados pelo sol,
com flores e vegetação, com casas brancas circundadas pela água azul traziam
“elementos de um gosto comum no prazer desfrutado no mundo ao ar livre,
respondendo a um apetite por brilho, espaço e liberdade”.194 Essa relação mais
positiva e aberta com o meio ambiente revela-se, sobretudo, nos quadros que
tematizam o mar. A relação com a água e com o mar pode mesmo ser tomada
como ponto de contato entre a pintura impressionista, a música de Debussy e a
bossa nova. Foi o jogo das luzes sobre a superfície d’água que sugeriu aos
impressionistas a nova técnica pictórica. Reduzido em suas dimensões, o mar
desses pintores está sempre manso e receptivo - é o espelho do céu, por onde bem
poderia deslizar o barquinho da bossa nova.
A obsessão de Monet pela água o levaria, ao longo do tempo, a ampliar
consideravelmente sua presença nos quadros. Em sua última fase, a das grandes
Ninféias, a superfície da tela é quase que inteiramente coberta pela representação
de lagos, tangenciando a abstração. Resta pouco espaço para os demais elementos
da paisagem. Em seu trajeto impressionista, Monet se depara com a
impossibilidade de copiar a natureza. Sua pintura começa então a dedicar-se à
criação de símbolos – uma síntese dos elementos formais do mundo visível
(linhas, planos e cores) e da subjetividade do artista. Nele, o impressionismo
reencontra o simbolismo; e a representação da água ganha novos significados
espirituais.
Já Debussy parece também querer incorporar a fluidez e o comportamento
deslizante e orgânico da água em suas próprias composições. Tudo o que é
194
Cf. Meyer Schapiro, Impressionismo: reflexões e percepções, São Paulo, Cosac & Naify, 2002,
p.109.
149
ambíguo, flexível, sem forma definida, lhe interessa. De Reflets dans l’eau, da
série Images, passando por La Mer e chegando a sublimação da água nas não
menos impalpáveis Nuages, da série Nocturnes, uma presença líquida perpassa
sua obra. E não apenas nas indicações dos títulos, mas, sobretudo, na construção
de comportamentos musicais que, baseados em formas livres, não se deixam
prever, modificando-se organicamente, mas mantendo, ainda assim, uma unidade.
Liquida também nos parece a forma de sua música.
Nem é preciso lembrar que, do mesmo modo, a bossa nova ficará
fortemente associada à presença da água e do mar. Antes dela, não eram muito
comuns as referências a este último mar na música popular carioca. Noel Rosa
fala, em O X do Problema, da “areia de Copacabana”, bairro também presente
como “princesinha do mar” na canção homônima de João de Barro e Alberto
Ribeiro, nos anos 1940. Fora isso, não há muitos outros exemplos. Mas a
tendência a incorporar a paisagem à beira-mar carioca nas letras e no jeito das
canções já aparece no primeiro sucesso de Jobim, Teresa da Praia (1953). Pouco
depois, confirma-se em Sinfonia do Rio de Janeiro - outra parceria com Billy
Blanco. Parece que a bossa nova colocou a música urbana carioca a caminho do
mar. E o motivo parece ter raízes históricas: é nos anos 1940-50 que toma impulso
a formação de uma cultura litorânea no Rio de Janeiro, dos passeios pelo calçadão
da praia, dos banhos de mar e dos apartamentos de classe média em Copacabana.
Ao não definir contornos precisos entre a paisagem externa e o universo interior
dos afetos humanos, a bossa nova acena para uma nova relação entre homem e
paisagem natural, que impregnava o modo de vida de uma burguesia carioca que
se voltava para as praias da Zona Sul.
É desse modo que a temporalidade apressada dos “50 anos em 5” do
desenvolvimentismo de JK, a ânsia de intenso progresso material num curto
prazo, a vontade de pular etapas e atingir com rapidez o futuro, convivem com a
temporalidade estática de uma paisagem cada vez mais incorporada ao modo de
vida da cidade. O aumento da frota de veículos e da velocidade da vida urbana
convivem com o nascimento de uma “civilização de praia” que incorpora o tempo
suspenso da então pouco habitada Ipanema ao seu caráter mais íntimo. É o terreno
fértil para o nascimento de utopias, como a “modernidade leve”, proposta por
Lorenzo Mammì, capaz de conciliar o tempo cronometrado da modernidade
150
produtiva com o tempo vazio e positivamente ocioso de um paraíso edênico à
beira-mar.195
Essa mesma contemplação desinteressada de uma “inútil paisagem”, que
aponta para um tempo vazio, fora das constrições do cotidiano produtivo de uma
cidade moderna, também se faz presente nas pinturas impressionistas. É comum
encontrar no interior desses quadros figuras humanas que nada mais fazem do que
olhar a paisagem, espelhando o ato do pintor e do próprio observador da tela. São
representações de figuras humanas estáticas, concentradas apenas na volúpia de
olhar. O que está em jogo é o próprio ato de contemplar.
Ronaldo Bôscoli descreveu a bossa nova como “o grande feriado”. Isso
aponta não apenas para o momento histórico feliz pelo qual o Brasil passava, mas
também para a serenidade do ponto de vista instaurado pela música de Tom e
João, com seu tempo afetivo e indefinido, em tudo oposto ao tempo do relógio e
dos compromissos. Do modo muito semelhante, os quadros impressionistas foram
descritos por Meyer Schapiro como trazendo o ponto de vista de um turista
parisiense de férias: “Nos quadros impressionistas, as agradáveis ocasiões
estéticas no ambiente público, com suas conotações de prazer e liberdade,
tornaram-se os temas principais da arte.(...) na segunda metade do século XIX,
uma parte cada vez maior da vida pessoal do público voltou-se ao deleite da
natureza e do espetáculo urbano. A atitude estética tornou-se para muitos um
ingrediente indispensável de seu modo de vida, um símbolo e, até mesmo, o
suporte de uma ideologia que, ao afirmar a liberdade do indivíduo, teve uma
penetração crítica, às vezes polêmica, afirmando o valor dos sentidos e seus
prazeres em oposição a uma moral tradicional ou visão religiosa de seu valor
inferior”. 196
Uma concepção temporal está embutida nessa atitude diante da paisagem. A
contemplação exige por si só um hiato, uma suspensão temporal. Talvez as séries
de pinturas feitas sobre um mesmo tema revelem de forma mais clara a concepção
do tempo no impressionismo. A mais célebre delas foi a que Monet fez sobre a
catedral de Rouen, em 1894. Pintada sob diferentes luzes em diversos horários do
dia, e com pequenas mudanças de enquadramento, a série é um dos mais bem
acabados exemplos da aspiração impressionista de “exprimir a sensação visual em
195
Ver Lorenzo Mammì, “Prefácio”, In. Cancioneiro Jobim: Obras Escolhidas, p.18. 196
Cf. Meyer Schapiro, op.cit.., p.100.
151
sua absoluta imediaticidade”.197 Mas justamente por se constituir numa série, uma
sucessão linear de quadros, ela acaba por depor de forma clara sobre a descoberta
da natureza e do mundo como devir, como eterna mudança. Não tendo mais como
finalidade a representação dos eternos valores religiosos e morais, esses pintores
lançaram-se na sensação do efêmero, forjando uma poética do instante. Este,
como algo insubstituível, ganha espessura, pois jamais voltará a ser. Como tudo o
que existe inclui-se nesse estatuto, de agora em diante qualquer coisa é passível do
interesse de um pintor.
Se os impressionistas desenvolveram uma técnica pictórica rápida, que
ansiava por captar o momento presente em toda a sua fugacidade, essas séries
podem ser tomadas como pequenas narrativas do instante. Mas ao contrário do
que sucedia nas narrativas românticas, aqui o encadeamento é mais frouxo,
formado por elipses incertas e cambiáveis, sem indicação de causa e efeito (nada
acontece nos quadros) e sem direcionalidade. Meyer Schapiro escreve que “o
momento nos quadros de Monet não é parte de um processo direto no tempo, não
tem clímax, nenhuma comoção; e não pede nenhuma interpretação. Não assinala
um estado ou consequencia da vontade humana que nos foi solicitado
compreender”.198 De fato, Monet pintou a catedral em horários meio indefinidos,
o que faz com que a ordem dos quadros possa ser modificada sem qualquer
prejuízo do fluxo temporal. Noções como início, meio e fim tornam-se incertas.
Mas tampouco se pode falar de puro congelamento. O que há é uma
tentativa de captar no espaço bidimensional da tela o próprio fluxo contínuo do
tempo, não pelo mecanismo narrativo convencional, que começa a ser desativado
com o Realismo de Courbet, mas através de sua ação sobre um elemento estático.
Ação esta que coloca em xeque a própria identidade fixa desse elemento: a
catedral de Rouen torna-se diferente em cada quadro, pois o tempo agiu sobre ela.
A luz de cada momento do dia não é apenas uma contingência passageira e
exterior a um objeto imutável: ela modifica profundamente seu caráter, participa
dele. Por outro lado, as diferenças sutis de enquadramento atentam para o outro
lado da moeda: ainda que a catedral permanecesse a mesma, jamais
conseguiríamos repetir exatamente o ponto de vista. Em outras palavras: jamais se
visita o mesmo lugar duas vezes. Os mares e lagos do impressionismo deságuam
197
Cf. Giulio Argan, Arte Moderna, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.98. 198
Cf. Meyer Schapiro, op.cit.., p.205-206.
152
no rio de Heráclito. Muda a natureza e muda o observador – que não mais pode
ser destacado dela. Do mesmo modo, não há realidade fora da percepção humana,
e essa descoberta determina, em grande parte, o fim do ciclo histórico da pintura
impressionista.
Importa-me ressaltar que a dinâmica temporal de Monet é construída sobre a
tensão entre o caráter progressivo do tempo e a permanência estática de um
elemento – que embora incessantemente modificado, permanece reconhecível. O
resultado é contraditório: a repetição provando a própria impossibilidade de
repetição. Ora, essa mesma concepção está no âmago da música de Tom e João,
na qual “a impossibilidade de repetição” e a “renúncia, portanto, ao domínio do
tempo” foi uma descoberta fundamental.199 E o caminho que leva até ela passa
também pelo desenvolvimento do estilo maduro de Debussy. Uma pista nos é
dada pelo comentário de Mammì: “É tentando combinar a modulação contínua de
Wagner com as repetições obsessivas de alguns poemas de Les Fleurs Du Mal
(Cinq Poèmes de Baudelaire, 1889), muito mais do que por uma súbita influência
exótica, que Debussy alcançará um estilo pessoal”. Em Prélude à l’après-midi
d’un faune, o tema de flauta que perpassa toda a composição é harmonizado de
diferentes formas, ganhando, a cada vez, novas cores e luzes – como a catedral de
Monet. O mesmo acontece com o tema de Nuages, da série dos Nocturnes – como
se fosse a mesma nuvem, modificando-se com o vento, mas conservando sua
unidade. Dizer a mesma coisa duas vezes, mas de modo diferente, é um dos traços
definidores não apenas do estilo de Debussy, mas também de Tom Jobim. Pois
nele, “mesmo quando os motivos são análogos, temos a nítida impressão de que
estão sempre evoluindo por caminhos sonoros diversos, pois a alteração e a
variedade de seus acordes de apoio transformam as funções harmônicas das notas
idênticas, fazendo-as soar como “outras”.200
Embora suas músicas quase sempre sigam a estrutura clássica A-B-A, o
retorno à primeira parte nunca é o retorno do mesmo. Quanto mais sumário e
simplificado for o material melódico, mais patente fica esse modo de construir.
Samba de Uma Nota Só, Fotografia e Corcovado são espécies de testamentos
disso, todas elas com longas sessões apoiadas sobre melodias feitas com uma ou
199
Cf. Lorenzo Mammì, “Canção do Exílio”, In. Três Canções de Tom Jobim, São Paulo, Cosac
Naify, 2004, p.28. 200
Cf. Luiz Tatit , “Canção do Exílio”. In. Três Canções de Tom Jobim, São Paulo, Cosac Naify,
2004, p.77.
153
duas notas apenas. Melodias que, sem a harmonia, ficam praticamente destituídas
de significado – harmonias que não podem ser simplificadas sem que se altere
drasticamente o sentido da composição. Nas canções de Tom Jobim, os acordes
longe de serem um adorno, assumem funções estruturais que interferem
diretamente no sentido melódico. Também nele encontramos um investimento na
dimensão vertical da canção, aquela que diz respeito não ao desenvolvimento da
melodia no tempo, mas ao impacto do acorde no instante.
João Gilberto, por sua vez, não apenas re-harmoniza as canções,
enriquecendo-as com acordes de modo que cada repetição se conduza por
caminhos diferentes, como também recria, com rubatos e legatos, a estrutura
métrica do canto, colocando o continuum melódico ora em fase, ora em
defasagem com a batida sincopada do violão - criando, desse modo, uma sensação
de diferenciação do mesmo análoga àquela que encontramos nas séries de Monet.
É como se escutássemos o lento trabalho do tempo no interior das coisas, em seu
eterno fluxo, mudando-as incessantemente.
Em diferentes contextos e épocas, diferentes linguagens falam da figura
ideal do homem moderno, definido pela autenticidade das próprias experiências, e
da sensação como base da condição existencial, do ser-no-mundo desse homem.
Os termos do discurso tendem a ser, nos casos mencionados, marcados por uma
luminosidade positiva e por uma leveza e superficialidade que de certo modo
diferem da profundidade sentimental e da tensão românticas. Como na música de
Tom e João, também na pintura impressionista e na música de Debussy o culto da
lembrança cede lugar à delícia do instante, na impossibilidade melancólica da
repetição. Chega de Saudade.
...
154
4 Quadro 3 – Ritmo, movimento e corpo
Antes de mais nada, a cultura escrava manifestava-se através do som. Era no
plano dos ouvidos, talvez mais do que em qualquer outro, que se notava com
força a presença africana nas Américas. Era também na dimensão imaterial dos
sons que esses escravos, uma vez despojados de praticamente todos os pertences
que poderiam trazer de sua terra natal, podiam buscar algum sentimento de
familiaridade e refúgio daquela nova e hostil realidade. Principalmente através da
música. É natural, portanto, para os escravos que chegaram ao Novo Mundo, que
o canto tenha sido, desde sempre, um meio de arregimentar forças. Forças de
resistência, que traziam um sentido de ordem, pertencimento e prazer à
dilacerante experiência da escravidão. Que refundavam o princípio de unidade e
soberania sobre um corpo que não mais pertence ao seu portador. Um corpo que
foi convertido em mercadoria; desumanizado; que tornou-se objeto de venda, de
troca, ventre reprodutor gerador de mais riqueza; máquina descartável,
incansavelmente submetida ao extenuante trabalho da lavoura.
A vinda de africanos como escravos para o Novo Mundo foi também o
encontro não apenas de distintos universos sonoros, mas de distintas formas de
conceber a música. Enquanto passeava nos arredores de New Orleans numa tarde
de domingo em 1819, o engenheiro e arquiteto Benjamin Latrobe ouviu de
repente “o barulho mais extraordinário, que eu achei que viesse de algum moinho
de cavalos, os cavalos pisando no piso de madeira”. Orientando-se para a fonte
sonora, Latrobe chegou a uma área aberta nas adjacências da cidade, onde mais ou
menos quinhentos negros formavam grupos circulares, no meio dos quais
escravos instrumentistas tocavam, enquanto o restante das pessoas dançava. Era a
famosa Congo Square, local que havia sido liberado para que pudessem, nos dias
de domingo, produzir em paz seus sons e danças. As descrições de Latrobe falam
de uma percussão “abominavelmente alta”, acompanhada de um “estranho” e
“detestável” canto. “Nunca vi nada mais brutalmente selvagem, e ao mesmo
tempo tão tolo e estúpido quanto esta exibição”. Eram ouvidos formados na
tradição européia entrando em choque direto com um pensamento musical
155
inteiramente diferente. E não apenas musical: inteiramente diferente também era a
maneira de conceber o próprio manejo sonoro da língua, maneira que foi de certa
forma adaptada no modo de dizer a língua do povo dominador. No caso da
América do Norte, a inventividade dos falantes africanos diante de uma nova
língua ganha clareza didática na figura dos “black preachers”, pregadores que
encarnavam verdadeiros arquétipos dos “black man-of-words”. Através deles
escutava-se, dentro de outro contexto, as pirotecnias verbais, a destreza
persuasiva e a riqueza expressiva dos contadores africanos. De modo que a
antropóloga Zora Neale Hurston batizaria a esses africanos como “lords of
sounds”.
Mas enquanto os escravos puderam cantar, podemos dizer que houve pelo
menos a possibilidade de resistência. Se a maior parte do dia passavam
trabalhando, há consideráveis evidências de que o trabalho não era visto por eles
como solitária e silenciosa tarefa. Na lavoura da cana, nas plantações de tabaco,
colhendo algodão, cozinhando e realizando afazeres domésticos, no trabalho de
estiva nos portos, cantando hollers na plantações de milho. Os sons que
emanavam nos dias de lavagem de roupa - o barulho feito pelas crianças enquanto
batiam as roupas com bastão, juntando-se ao canto das negras, e que podia ser
ouvido a mais de uma milha de distância. “Foi o negro quem animou a vida
doméstica do brasileiro de sua maior alegria – os negros trabalhando sempre
cantando: seus cantos de trabalho, tanto quanto os de xangô, os de festa, os de
ninar menino pequeno, encheram de alegria africana a vida brasileira”, escreveu
Gilberto Freyre.201
Cada possível atividade tendia a ser acompanhada por cantos. Sobretudo
aquelas que apresentavam certo caráter repetitivo. O motivo é simples: em geral,
as culturas africanas apresentam uma superabundância de atividade musical.
“Uma aldeia que não possui música organizada, ou negligencia práticas de canto,
percussão, ou dança comunitária, é dita uma aldeia morta”.202 Raras são as
ocasiões em que a música não está presente. A simbiose profunda entre música e
vida constitui um traço comum da imensa diversidade cultural na África. O
201
Cf. Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, Rio de Janeiro, Record, 2000, p.513. 202
“A village that has no organized music or neglects community singing, drumming, or dancing
is said to be dead”. A frase é do eminente musicólogo africano J.H.Kwabena Nketia, e foi citada
no livro de John Miller Chernoff, African Rhythm and African Sensibility: Aesthetics and Social
Action in African Musical Idioms, Chicago and London, The University of Chicago Press, 1979,
p.36.
156
alcance e a diversidade dos tipos de música soam surpreendentes aos ouvidos
ocidentais.203 Na República do Benin existem canções específicas para quando a
criança perde seu primeiro dente de leite. Entre os Hausas da Nigéria, jovens
chegam a pagar músicos profissionais para que componham canções que ajudem a
cortejar suas amantes ou insultar os seus rivais. Crianças ashanti cantam músicas
especiais para não fazer xixi na cama. Remadores hútus, em Ruanda e no Burundi,
irão cantar uma canção diferente conforme remam a favor ou contra a correnteza.
São inúmeros os exemplos encontrados na literatura especializada. Todos
apontam para a onipresença e para a importância da música na vida dessas
sociedades. Para o engajamento de toda a comunidade no ato coletivo de fazer
música. Sem participação não há significado musical: “a música da África nos
convida a participar da construção de uma comunidade”.204 Um complexo ritual
de vida se realiza pela invocação contínua de cantos e danças.205
A palavra cantada acompanhou de modo intenso o dia-a-dia dos escravos,
em todas as suas esferas. Ganhou relevo e evidência na monótona paisagem
sonora da escravidão rural. Uma atriz americana branca, esposa de rico
fazendeiro, conta ter visto, em 1830, num rio na Georgia, um barco que seria
conduzido por oito negros. Quando os escravos começaram a remar, ela ouviu
“erguer-se um coro, todos eles cantando em uníssono e em perfeita sincronia com
o movimento das remadas, até que as vozes e os remos não fossem mais ouvidos
devido a distância”. Mais ou menos na mesma época um viajante inglês que
passava também no sul dos Estados Unidos, notava os escravos que conduziam
galeras “todos cantando canções em coro, reguladas pelos movimentos de seus
remos”.206 O ritmo do canto acompanhava o ritmo do próprio trabalho. O ritmo do
trabalho transformando-se em música. Sempre que escravos eram impelidos a
203
Ver John Miller Chernoff, op.cit.., p.34. 204
Outra passagem do livro de Chernoff corrobora esse ponto de vista e vale a pena ser aqui
reproduzida: “This community dimension is perhaps the essential aspect of African music. For
instance, several authorities cite hand-clapping as the most prevalent means of musical expression
in Africa, becaus they do not want to distinguish the audience from the musicians at a musical
event”. (Cf., John Miller Chernoff, op.cit.., p.23 e 33) 205
O pesquisador José Ramos Tinhorão escreveria que “O fato de na África Ocidental todos os
atos do dia-a-dia regerem-se por vontade sobrenatural, o que subordinava os homens a constantes
encantamentos e sortilégios, levou os africanos a desenvolverem um complexo ritual de vida que
exigia, para praticamente cada ação desempenhada, uma invocação especial, através de cantos ou
danças”. (Cf. José Ramos Tinhorão, O Som dos Negros no Brasil – Cantos, Danças, Folguedos:
Origens, São Paulo, Editora 34, 2008, p.123) 206
Cf. Shane White, Graham White, The Sounds of Slavery: Discovering African American
History Through Songs, Sermons, and Speech, Boston, Beacon Press, 2006, p. XVI.
157
realizar tarefas repetitivas e invariavelmente tediosas, preferiam fazê-lo ao som de
suas canções, do mesmo modo como faziam seus pais e avós na África. O canto
de mulheres ao ritmo do ato de moer.
O ritmo está intimamente ligado ao movimento. Ele inaugura uma direção e
um sentido para este. Um movimento que não para de enriquecer suas relações
internas, e de gerar mais e mais movimento. É por isso que ele é muito mais do
que uma forma de arregimentar forças, de gerar energia, do que propriamente um
desperdício. Talvez por causa disso, desde os primórdios da humanidade, em
diversas culturas, o ritmo tenha sido cultuado como divindade. Nos cânticos
rituais e também nos cantos profanos mais antigos partia-se do pressuposto de que
o ritmo exercia uma espécie de ajuda mágica. Ele predispunha positivamente as
entidades a ajudarem os homens em suas ações. Nietzsche escreveu que “o ritmo é
uma coação; ele gera um invencível desejo de aderir, de ceder; não somente os
pés, a própria alma segue o compasso – provavelmente, as pessoas concluíram,
também a alma dos deuses!”.207 Canta-se para se concentrar energias para o
trabalho. Canta-se para se concentrar forças capazes de reforçar o elo com o
mundo. Canta-se para se poder descansar em paz. Na alegria ou na tristeza, de
esperança ou de dor, o canto é sempre de júbilo.
Estruturando-se por ciclos de recorrência, o ritmo tende ao equilíbrio
instável e a continuidade. É a divergência, a quebra da regularidade, que é
propriamente rítmica. Mas para que isso ocorra ela necessita ser recortada sobre
um fundo métrico constante. O ritmo é o que se mantém no meio entre a
possibilidade do máximo desvio e a lembrança da referencia uniformemente ideal.
Os gregos derivaram a palavra ritmo de reo – fluir. Com isso, abriam espaço para
abarcar o que havia de ordenação temporal em eventos não-periódicos e
irregulares, como os ruídos de uma cascata. Abriam a experiência para fenômenos
aparentemente imperfeitos. Os latinos, em significativo erro de tradução, acharam
que ritmus provinha de aritmus. Congelaram assim o ritmo em regularidade pura,
aritmética, numérica. Estrutura limpidamente ordenada, equilibrada, simétrica.
Retiraram o que nela havia de imprevisível e feroz, de refratário ao controle da
razão matemática, e do pensamento analítico. Foi essa visão de ritmo que imperou
no desenvolvimento da música religiosa ocidental. Ela tendeu a domesticar o
207
Cf. Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, §85.
158
ritmo. Ele, que era a manifestação mais pura do elo que une música e corpo. Ele,
que aparentemente não passava pela cabeça. Que parecia agir diretamente sobre as
partes que liturgia católica considerava como sendo as menos nobres. Cintura,
pernas, tornozelos e pés. Não há música sem ritmo. Mas há música em que a
dimensão rítmica torna-se tão discreta e atrofiada que acaba abrindo mão de
grande parte de suas potencialidades como geradora de sentido.
Na África, a música não se distanciou do corpo. Instrumentistas
complementam os ritmos tocados com marcações corporais – tocam como se
estivessem dançando. Num famoso ensaio, John Miller Chernoff argumenta que
se perguntarmos a um africano se ele “compreende” certo tipo de música, ele dirá
que sim se souber o tipo de dança que a acompanha. O etnomusicólogo John
Blacking também notou que “entre os Venda, habilidades em música e dança
eram tão inextricavelmente relacionadas que, por exemplo, se um homem Venda
dizia ‘eu posso tocar tshikona’, isso queria dizer que ele podia também dançar, e
se uma garota dizia ‘eu dancei tschigombela’, é porque ela também podia cantar e
tocar os tambores”.208 Sabemos que há uma imensa diversidade cultural e musical
na África. Mesmo assim, com algumas poucas exceções, podemos dizer que “a
música africana deve ser concebida como música para a dança, embora a ‘dança’
possa ser de um tipo inteiramente mental”.209 Trata-se de um princípio comum,
presente na grande maioria das tradições musicais do continente. Com a vinda dos
escravos africanos para o Novo Mundo, a música chegou integrada no próprio
corpo. Trouxeram para as Américas a primazia do ritmo. Em geral, na tradição
musical do Ocidente, o ritmo é algo a ser seguido, e é amplamente determinado
em relação à melodia, ou mesmo definido como um aspecto dela. Embora
indispensável, no mais das vezes ele é secundário em ênfase e complexidade em
relação ao demais elementos. A música move-se através da harmonia e da
melodia. É na progressão sonora de notas e acordes que normalmente
reconhecemos a beleza. Ao ritmo cabe o papel de duração de fundo. Na música
africana essa sensibilidade é praticamente invertida. Seu princípio estruturante é a
208
“In Venda, skills in music and dancing were so inextricably linked that if, for example, a Venda
man said “I can play tshikona,” he meant that he could also dance it, and if a girl said “I danced
tshigombela,” she could also sing and play drums”. (Cf. John Blacking, Music, Culture &
Experience: Selected Papers of John Balcking, Chicago and London, The University of Chicago
Press, 1995, p.234) 209
“Essentially, this simply means that African music, with few exceptions, is to be regarded as
music for the dance, although the ‘dance’ involved may be entirely a mental one”. (Cf. John Miller
Chernoff, op.cit.., p.50)
159
colisão e o conflito de ritmos. “O ritmo é para o africano o que a harmonia é para
os europeus, e é na complexa trama de padrões rítmicos contrastantes que ele
encontra o mais alto grau de satisfação estética”.210 Para os ouvidos europeus essa
diferença fundamental muitas vezes soou como violência. Para os africanos, ela
era força vital.
O funcionamento corporal é gerido por ritmos. O próprio corpo pode ser
visto como um grande sistema de ritmos – sistemas interconectados de
organização temporal. Parece haver um elo invisível, uma cadeia misteriosa, que
une todos os ritmos existentes – como se estes se rebatessem e respondessem
continuamente uns aos outros. Não apenas os ritmos dos órgãos internos que
compõem o edifício humano, e que determinam os ciclos da digestão, do sono, do
sonho, do sexo. Mas também os complexos ritmos das ações – o movimento
coordenado entre diversos músculos organizados pela batuta de módulos rítmicos
cerebrais, que os regem na realização de verdadeiros concertos corporais. Pessoas
sãs possuem um poderoso senso interno de ritmo, com o qual a música dialoga o
tempo todo. Um distúrbio nessa organização interior pode causar sérias
dificuldades motoras, em ações básicas como andar e falar, e uma espécie de
desarmonia nos movimentos. Em casos como esse o estímulo externo de um som
gerando uma batida uniforme, ajuda a restabelecer uma ordem temporal
necessária para coordenar os movimentos. A ausência do metrônomo interno é
compensada pela orientação via estímulos auditivos.211 O ritmo é um princípio de
ordem num corpo complexo que, sem ele, tenderia a tornar-se completamente
inviável, caótico. Todos os mamíferos respondem ao sentido temporal de uma
recorrência que forma um padrão rítmico. Porque esse padrão está inscrito no
próprio corpo.
Dentre os parâmetros musicais, a sensação rítmica é aparentemente aquela
que ocorre de modo mais direto no corpo. A que parece menos dependente de
uma decodificação cultural. Como se fosse o principal elo com aquilo que John
Blacking definiu como “biogramática” – suporte comum da música no corpo da
espécie, corpo que atravessa e transcende as especificidades culturais, que se
210
Cf. Apud. Idem, Ibidem, p.40. (Ver também, no mesmo texto de Chernoff, argumento sobre a
generalização do ritmo como traço marcante da música africana apesar de imensa diversidade
cultural presente no continente.) 211
Pacientes de Parkinson também são beneficiados por um batimento externo. Ver, nesse sentido,
a experiência descrita em Steven Mithen, op.cit.., p.150.
160
coloca além das diferenças. A biogramática que diz respeito ao conjunto de
capacidades sensoriais e cognitivas que os seres humanos estão predispostos a
usar na comunicação não-verbal. Blacking sugere a existência de uma
“ressonância cognitiva supracultural”, segundo a qual diferentes compositores,
ouvintes e sistemas musicais utilizariam como base de suas experiências, em
determinados níveis, os mesmos modos “musicais” de pensamento. Uma
biogramática “musical” do corpo humano.212 “When the grammar of music
coincides with the grammar of a particular person’s body, cognitive resonance can
be felt and apprehended partly because of learned social experience. But when the
grammar of music coincides with the ‘musical’ biogrammar of the human body,
in the most general sense, cognitive resonance can be felt and apprehended
regardless of specific social experiences”.213 Para Blacking, seria possível uma
apreensão intuitiva da música, possibilitada pelo fato de que tanto quem cria,
quanto quem executa ou quem ouve possui a mesma “inteligência” e
“competência” musicais inatas. E o corpo constitui evidentemente o locus dessa
experiência. Não como recepção passiva, mas como recriação ativa.
A apreciação da natureza rítmica e harmônica dos movimentos humanos são
cruciais na compreensão de nossas mais profundas aptidões musicais. Basta olhar
em volta, pessoas caminhando nas ruas, indo para o trabalho, absortas em
atividades solitárias, misturando-se na multidão, conversando entre si,
colaborando em algum trabalho coletivo: o corpo humano construído para andar
em duas pernas, cadenciado por uma pulsação constante de fundo, que funciona
como base constante de organização de nossa atividade no tempo. Por sobre essa
base é que se constroem os inúmeros e variados ritmos que nos habitam.
Enquanto as pernas alternam-se em movimento cadenciado as cadeiras balançam
e reforçam os acentos rítmicos, que por sua vez são secundado pelo movimento
dos ombros, que por sua vez apóiam a variação pendular dos braços, todas as
articulações concorrendo para o equilíbrio total da estrutura. E no alto, a cabeça,
com movimentos autônomos, como se fosse uma torre destacada da batida dos
212
Ao colocar a palavra “música” entre aspas, Blacking chamava a atenção para a indefinição que
cerca o termo, suas diversas acepções a depender das diferenças culturais. Ao mesmo tempo,
enfatizava também o que há de comum na diversidade de experiências em torno da música,
religando-as com aptidões humanas profundas. 213
“Quando a gramática da música coincide com a biogramática ‘musical’ do corpo humano, no
sentido mais geral, uma ressonância cognitiva pode ser sentida e apreendida independente de
experiências sociais específicas”. (Cf. John Blacking, op.cit.., p.240) (Tradução Livre)
161
pés, portadora de uma temporalidade autônoma. Enquanto andamos, a cabeça
livremente se vira para os lados, para o alto, paralisa-se com olhos arregalados; a
boca mastiga algum alimento, ou engaja-se numa conversação, boceja lentamente;
as mãos então decidem interagir e gesticulam com movimentos articulados,
enfáticos, largos ou curtos, às vezes com pausas atônitas ou interrogativas, tudo
coordenado em ritmos fluídos, macios.
A multiplicidade de impulsos semi-independentes que compõem a
movimentação humana formam, por si sós, uma polirritmia complexa e não
obstante harmônica. Rudolf Laban, um dos mais influentes escritores e
pensadores do movimento humano, exaltou a sua expressividade nas seguintes
palavras: “The astonishing structure of the body and the amazing actions it can
perform are some of the greatest miracles of existence. Each phase of movement,
every small transference of weight, every single gesture of any part of the body
reveals some feature of our inner life”.214 Vida interior e vida exterior espelham-se
mutuamente; o espírito vive na própria carne, e vice-versa. Imagine o efeito
causado pelos movimentos de negros que dançavam na Congo Square, em
meados do século XIX, diante de corpos criados na tradição puritana. Ou as rodas
de batuque, feitas ao cair da noite nos engenhos do nordeste brasileiro, quando os
senhores faziam dançar as escravas mais lindas, para exibir diante de todos suas
amantes negras.215 Som e movimento transformando-se numa só coisa. A música e
a dança revelando sua origem comum no próprio desenvolvimento do corpo – o
grande palco da encenação.
Os ritmos são contagiosos. Apontam para uma das características mais
marcantes da espécie humana: sua tendência natural para imitar movimentos e
ações ritmadas – para reproduzi-los em nós mesmos. Somos impelidos a entrar em
comunhão com eles, a entrar em fase.216 De uma hora para outra, quando nos
214
“A formidável estrutura do corpo e as incríveis ações que ele é capaz de executar são alguns
dos maiores milagres da existência. Cada fase do movimento, cada pequena transferência de peso,
cada simples gesto de qualquer parte do corpo revela algum aspecto de nossa vida interior”. (Cf.
Steven Mithen, op.cit.., p.156) 215
Ver Carlos Sandroni, Feitiço Decente: Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-
1933), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2008, p.107. 216
As redes neurais responsáveis pelo processamento da música estendem-se para além do córtex,
ativando áreas que possuem uma história evolutiva mais antiga. Melodia e ritmo são lidos em
diferentes áreas. A primeira parece estimular igualmente os dois hemisférios. E também, em
menor grau, o cerebelo. O processamento do ritmo, contudo, embora também se faça pela
ativação de outras áreas do cérebro, concentra-se sobretudo no cerebelo. É complexa a geografia
que traduz notas em abstratos códigos áudio-motores. O envolvimento privilegiado do estímulo
162
damos conta, estamos batendo palmas, estalando dedos, fazendo marcações com
os pés; dançando. Um tipo de interação é rapidamente solicitada. “O desejo de
repetir parece ser um impulso básico e forte em todos os seres humanos,
particularmente em bebês e crianças”, argumenta Bruce Richman.217 É através da
imitação que se dá, desde tenra idade, a maior parte do aprendizado cultural. É
desse modo que o imenso repertório vai sendo aos poucos internalizado. “Esse
impulso de repetir joga as pessoas dentro da linguagem e dentro das interações
vocais com os outros”. Crianças reproduzem incessantemente trechos inteiros de
diálogos que ouviram na escola, pedaços de canções, expressões melodicamente
entoadas. O impulso de imitar possui imensa importância no processo de
aquisição da fala. Uma boa parte do aprendizado da linguagem na criança é
alcançado através da imitação vocal. Trata-se de uma força que faz com que os
seres humanos tornem-se em mantenham-se envolvidos na atividade discursiva e
na interação com os outros. Como se houvesse, para além das palavras, um outro
discurso mais puramente sonoro, abstrato, mas tão crucial quanto.
Tais comportamentos imitativos não são, contudo, um privilégio somente
dos seres humanos. Muitos outros animais o praticam: filhotes de leão aprendem
boa parte das estratégias de caça observando o comportamento dos leões adultos;
muitos pássaros já nascem com a propensão para o canto inscrita no cérebro, mas
as variações melódicas específicas de seu grupo são aprendidas por imitação;
macacos vêem, macacos fazem igual. Não basta ver: é preciso copiar, realizar no
próprio corpo aquilo que se percebe. É preciso de certo modo casar a imagem
externa com a imagem interna.218 Fazer eco, afinar aquilo que nos chega pelos
sentidos com manifestações e comandos internos que representam as ações. De
certo modo, não há compreensão sem a participação do corpo. Os significados
emergem na carne, nos ossos e no sangue de nossa experiência corporal. Seus
mecanismos se estendem muito além da capacidade para a linguagem. Como
argumentaram o filósofo Mark Johnson e o musicólogo Steve Larson,
“Philosophical reflection on music has often assumed that music is some kind of
‘language’. There is a strong tendency among philosophers and music theorists to
rítmico com o cerebelo, contudo, talvez nos indique seu poder de gerar respostas motoras mais
diretas, menos mediadas pelas camadas mais recentes do córtex e da consciência. Quiçá, inclusive,
menos dependentes de memórias aprendidas. 217
Cf. Nils L. Wallin, Björn Merker, Steven Brown, The Origins of Music, p.311. 218
O tema dos “neurônios-espelho” será desenvolvido mais adiante, neste mesmo ensaio.
163
think that our ‘primary’ experience of meaning is in language, so that whatever
meaning music has must be measured against linguistic meaning”.219 De acordo
com essa linha de pensamento o próprio significado linguístico tende a ser visto
como algo objetivamente referencial, completamente independente da natureza de
nossos corpos.220
De certo modo, evocando as palavras de Bergson, “a existência de que
estamos mais certos e que melhor conhecemos é incontestavelmente a nossa”.221 A
experiência do sentido é inseparável de nossa existência física. Entendimento e
experiência estão intimamente conectados com nossa constituição corporal, com
nossas capacidades sensório-motoras e com nossa arquitetura emocional. Para
serem “compreendidas”, as ideias mais abstratas precisam, ainda que
longinquamente, ancorar-se nos dados concretos que constituem a experiência
básica de estar no mundo, da interação do organismo com o ambiente no qual
vive. A constituição de um plano interno, de uma sabedoria implícita e pré-
conceitual, que constitui, justamente, a experiência direta de nossos próprios
corpos. Como capacidade humana, a música é uma atividade cognitiva e afetiva
do corpo específico de nossa espécie. Em última instância é a partir dele que os
sentidos são criados. É nele onde tudo começa.
...
219
“A refelexão filosófica sobre a música geralmente assume que a música é um tipo de
‘linguagem’. Há uma forte tendência entre filósofos e teóricos da música em pensar que a nossa
‘principal’ experiência de significação esteja na linguagem, de modo que qualquer significado
musical tenha que ser avaliado nos termos do significado linguístico”. (Cf. Mark Johnson and
Steve Larson, “’Something In The Way She Moves’ – Metaphors of Musical Motion”, In.
Metaphor and Symbol, 18, Nº2, p.80) (Tradução Livre) 220
Steven Mithen cita em seu livro exemplos de pesquisas sobre sinestesia sonora que colocam em
xeque, ou pelo menos fazem repensar, a arbitrariedade pura da relação entre significante e
significa na língua. Mithen cita as pesquisas comparativas de Otto Jespersen, e a hipótese de que
“the sound (i) comes to be easily associated with small, and (u,o,a) sounds with bigger things”.
Haveria, portanto, uma ligação (uma analogia) entre o movimento físico que cria determinado som
no corpo e atributos físicos daquilo que está sendo nomeado. O autor complementa: “Onomatopeia
and sound synaesthesia may not be the only universal principles at work in the naming of animals.
The bird names of the huambisa tend to have a relatively large number of segments of acoustically
high frequency, which appear to denote quick and rapid motion, or what Berlin called “birdness”.
In contrast, fish names have lower frequency segments – connotations of smooth, slow, continuous
flow – ‘fishness’”. (Cf. Steven Mithen, op.cit.., p.170-171) 221
Cf. Henri Bergson, Memória e Vida: Textos Escolhidos por Gilles Deleuze, São Paulo, Martins
Fontes, 2006, p.1.
164
Mudanças na anatomia, nos hábitos alimentares e na vida social entre 6 e 2
milhões de anos atrás parecem ter tido um imenso impacto nos modos e sistemas
de comunicação dos primeiros homens. Talvez o ponto mais importante no
impulso decisivo que o desenvolvimento humano tomaria nesse período, criando
assim as condições necessárias para a futura aquisição da linguagem moderna, da
mente simbólica e do desenvolvimento musical, tenha sido, justamente, o fato de
eles terem se erguido para andar sobre duas pernas. Nada teria um impacto tão
profundo no desenvolvimento musical dos primeiros humanóides. Foi a partir
disso que modificaram profundamente suas anatomias e ganharam então uma
nova perspectiva de apreensão do mundo. Pois ao que tudo indica, a origem do
bipedalismo teve profundas implicações para a evolução da inteligência e da
linguagem.
Demorou muito tempo para que os hominídeos se erguessem sobre duas
pernas. Há seis milhões de anos, nossos ancestrais distantes ainda habitavam
ambientes de mata fechada. Herbívoros, passavam a maior parte do tempo no topo
das árvores. Viviam em pequenos grupos. Locomoviam-se diferente de nós, com
outros movimentos. O corpo equilibrava-se por outros eixos de força. A espinha
dorsal encaixava na parte detrás do crânio, facilitando o direcionamento da cabeça
para o alto – para os galhos nos quais deviam se agarrar. A escápula era torcida
para frente, o que possibilitava manter o braço levantado por muito mais tempo e
trazia o necessário apoio para os movimentos de alavanca. Eram seres que
movimentavam-se muito mais na vertical do que na horizontal. Dispunham de
outros ritmos, de outros mecanismos de balanço. Há aproximadamente dois
milhões de anos atrás começou uma grande mudança que colocaria as forças
evolutivas no sentido de favorecer os seres mais adaptados ao deslocamento por
terra. Um série de abruptas mudanças climáticas devastou o ambiente no qual
viviam os primeiros hominídeos. Um imenso resfriamento e escassez de chuvas
fizeram secar as florestas africanas. É possível que relâmpagos tenham
contribuído para grandes incêndios que devastaram a mata. Havia pouca comida
após o fogo. Populações animais começaram a sumir. Quando as gramíneas
começavam a reaparecer, os animais de pasto que conseguiram sobreviver
desenvolviam-se rapidamente. Após vários séculos as florestas ressurgiam, com
temperaturas mais baixas e animais mais adaptados.
165
Tudo leva a crer que os antepassados dos humanos modernos sobreviveram
a muitos episódios como esse. Caso o resfriamento e a seca tivessem acontecido
num intervalo muito maior de tempo, deixando tempo suficiente para que as
florestas pudessem se transformar gradualmente, esses hominídeos não teriam
sofrido tanto. Espécies vegetais mais adaptadas ao frio teriam descido lentamente
dos morros para ocupar o fundo dos vales. Sucessivas gerações de hominídeos
continuariam vivendo do mesmo modo que seus pais, adaptando-se culturalmente
ao ambiente. Mas as mudanças eram abruptas. E a cada vez que ocorriam, as
populações sofriam terríveis perdas. Sobreviviam somente aqueles que
descobriram maneiras de explorar esses episódios que os outros grandes macacos
não exploraram. Há dois milhões de anos, alguns grupos desses primeiros
hominídeos (o caso do australopitecus, por exemplo) haviam se adaptado a viver
em paisagens relativamente abertas. Nas savanas da África. O acesso a alimentos
não mais estava compactado no espaço da mata fechada, mas dispersava-se sobre
longas extensões de terra. Ampliou-se, com isso, o consumo de carne entre os
hominídeos, uma fonte de energia mais concentrada. Geralmente comiam
carcaças, restos de animais mortos por outros predadores. Viviam em incessante
nomadismo. Precisavam se deslocar por grandes áreas da savana atrás de comida.
Muitas vezes debaixo de impiedoso sol. Houve uma considerável pressão
evolutiva no sentido de favorecer o bipedalismo.
O ambiente aberto das savanas, sem muitas coberturas de árvores para
fornecer proteção e possibilidade de fuga para o topo de uma delas, fez desses
hominídeos presas fáceis. Sem contar com grande agilidade, eram o alvo das
investidas sangrentas de grandes carnívoros que habitavam as savanas e também
de águias. Uma teoria possível é de que esses antigos hominídeos tenham
começado a erguer-se sobre duas pernas justamente para conseguir enxergar, por
cima da vegetação, a possível aproximação de predadores. Houve, efetivamente,
uma complexa mudança no aparelho sensorial, que ocorreu em conjunto com
modificações no design da cabeça. Os olhos foram aos poucos sendo posicionados
de modo a permitir uma visão binocular, em profundidade. A própria estrutura do
olho, em sua ligação intrínseca com o cérebro, foi remodelada no sentido de uma
adaptação mais apropriada a um ambiente que era visualmente muito distinto. Não
mais a trama de linhas verticais e fechadas da mata, com pouca profundidade de
campo, mas a projeção em perspectiva de grandes distâncias espaciais. Era
166
preciso reconhecer com mais eficiência os padrões visuais daquele novo
ambiente. As fontes de alimentos e os predadores, fatores cruciais na
sobrevivência, deviam ser vistos e reconhecidos de longe, onde somente a vista
alcança. De fato, parece ter havido uma pressão seletiva que favoreceu a visão em
detrimento de outros sentidos, como, por exemplo, o olfato.
Apesar da proeminência da visão no novo ambiente, o argumento mais
persuasivo para a origem do bipedalismo envolve duas etapas distintas, cada uma
com sua pressão seletiva própria. Passar a andar sobre duas pernas exigiu um
longuíssimo processo de mutação. Exigiu também um tremendo nível de
refinamento e adaptação desde a mecânica anatômica, do tamanho dos ossos ao
funcionamento das juntas, até as mais complexas funções do sistema nervoso.
Contou com inumeráveis estágios intermediários. Num primeiro momento, os
hominídeos tornaram-se parcialmente bípedes. Com seus braços longos e fortes,
pélvis larga e falanges encurvadas, os astralopithecus eram mais adequada para
permanecer erguidos sobre duas pernas do que propriamente para caminhar sobre
duas pernas. Possuíam apenas um conjunto parcial das adaptações anatômicas
necessárias ao bipedalismo. Com base no comportamento dos chimpanzés (que
dividiu ancestrais com a linhagem dos hominídeos há aproximadamente 6 milhões
de anos), especula-se que a função desse comportamento fosse facilitar a colheita
de pequenas frutas em árvores; ou erguer-se para olhar por cima da vegetação.
A passagem para o bipedalismo pleno viria somente, como já foi dito, por
volta de dois milhões de anos atrás, com o Homo Ergaster. Ou seja: foram
necessários milhões de anos para que o homem viesse a ser integralmente bípede.
Para que aperfeiçoasse sua locomoção em duas pernas. E aqui voltamos com o
cenário de radical mudança climática que transformou inteiramente a paisagem na
África Ocidental. A teoria especula que no ambiente relativamente aberto das
savanas, ambiente com poucas árvores e poucas áreas de sombra, onde os
hominídeos precisavam se locomover por grandes distâncias, era vantajoso
reduzir a superfície corporal em contato direto com o sol. O desgaste causado pelo
calor é um problema para todos os animais que habitam a savana. Basicamente, o
cérebro começa a funcionar mal quando tem sua temperatura elevada 2ºC acima
do normal. Caminhando eretos, os hominídeos reduziam consideravelmente a área
de exposição para o topo da cabeça e ombros. Mais altos, tinham também maior
acesso às camadas de ar mais afastadas do solo, onde os ventos sopravam com
167
velocidade significativamente maior, e que eram portanto mais frescas. É possível
que essa redução do desgaste pelo calor e a economia no consumo de água tenham
sido cruciais para estabelecer uma nova possibilidade de dieta alimentar, que
passou agora a abarcar o consumo de carne. Pois uma vez bípedes, podiam não
apenas percorrer maiores extensões das savanas a procura de carcaças de animais
mortos, mas fazer isso em horários de sol a pino, no qual carnívoros competidores
tendiam a descansar sob o sol.
A nova dieta alimentar, direcionada para o consumo de carne, favoreceu
mudanças anatômicas tais como a redução do tamanho dos dentes e do maxilar.
Modificou desse modo o formato e o volume da parte final do trato vocal. As
mudanças na dentição e no formato do crânio, associadas às mudanças anatômicas
decorrentes da postura ereta, fizeram com que a laringe – cavidade que abriga as
cordas vocais – fosse posicionada mais abaixo na garganta. 222 Como efeito
incidental, os sons gerados nas cordas vocais passaram a percorrer um espaço
maior dentro do corpo. Podiam, desse modo, ser mais modulados na faringe, nariz
e boca, aumentando a diversidade de sons vocais. Entre os mamíferos típicos,
incluindo os macacos – e os humanos recém-nascidos – a laringe está posicionada
alta no pescoço e a faringe é em consequencia curta, limitando a capacidade de
modular os sons vocais. Nos humanos adultos, em contraste, a laringe fica numa
posição mais baixa no pescoço, aumentando a faringe e o potencial para a
modulação das vibrações produzidas pelas cordas vocais. É a faringe muito mais
comprida dos humanos modernos que tornará possível a gama completa de sons
exigidos na fala articulada. A reverberação de ondas sonoras na garganta foi que
possibilitou a rica palheta de tons de nossa comunicação vocal. As ondas sonoras
têm passaram a interferir em outras ondas e depois ser ainda mais modeladas pela
câmara de ressonância da boca. Mudando o posicionamento da língua e dos lábios
mudava-se também o formato dessa câmara, produzindo-se ainda mais variações
sonoras.
Por conta da localização da laringe, que acaba reduzindo o comprimento da
faringe, os grandes símios possuem pouco espaço de garganta para remodelar os
sons. Tampouco possuem suficiente flexibilidade para remodelar o espaço interno
222
Aiello argumenta que a laringe baixa foi apenas uma consequencia acidental das adaptações
necessárias ao movimento sobre duas pernas, e não algo que ocorreu por conta de pressões
seletivas que privilegiavam a comunicação vocal. (Ver Steven Mithen, op.cit.., p.146)
168
da boca, por conta do tamanho dos dentes e do formato da língua. Com uma
morfologia como essa torna-se significativamente mais difícil a produção de sons
vogais. É possível mesmo pensar que não apenas a localização, mas a própria
constituição da laringe teria sido modificada pela nova anatomia dos hominídeos
inteiramente bípedes. A consistência mais membranosa das cordas vocais teria
resultado em sons menos ásperos e mais melodiosos do que aqueles emitidos
anteriormente pelos australopithecus.223 Desse modo, de acidente em acidente foi
sendo moldada a sonoridade humana. O próprio surgimento da linguagem
articulada, assim como o da música, pode ser visto como o aproveitamento de
mutações aleatórias guiadas por forças seletivas que tinham originalmente outra
direção – uma espécie de oportunismo evolutivo.224 A seleção natural
capitalizando sobre uma estrutura gerada pela combinação errática de elementos
que aos poucos iam sendo adicionados. O paleantropólogo Ian Tattersall pondera
que “Um trato vocal capaz de produzir os sons da fala articulada, portanto, foi
adquirido entre os humanos mais de 1 milhão de anos antes de haver qualquer
evidência independente de que nossos antepassados estivessem falando. Está claro
que o trato vocal humano adulto não pode em sua origem ter sido uma adaptação
‘para’ a fala moderna – embora tenha dado certa vantagem no contexto de uma
forma ‘pré-linguística’ de comunicação vocal”.225
Mas para que surgisse a linguagem tal como a conhecemos hoje, a
linguagem composicional, subdividida em unidades fonéticas que somente
quando agrupadas geram sentidos, rica em variações entoativas, melódicas, capaz
de possibilitar uma outra relação com o mundo através do pensamento simbólico,
para que chegássemos a esse estágio de linguagem seria necessário mais do que
uma anatomia propícia. Mais do que cordas vocais membranosas e um percurso
das ondas sonoras dentro do corpo que possibilitasse que elas fossem
remodeladas. Era preciso, além de tudo o que já foi mencionado, um domínio
maior do próprio corpo. Um controle preciso, afinado, dos fluxos respiratórios,
dos movimentos labiais, do posicionamento da língua no interior da boca. É
223
Ver Steven Mithen, op.cit.., p.147. 224
Os biólogos utilizam o termo “exaptação” para descrever as características que aparecem em
um contexto antes de serem exploradas em outro. O exemplo clássico de exaptação que se torna
adaptação são as penas das aves. Hoje, essas estruturas são essenciais ao vôo dos pássaros, mas,
durante milhões de anos, antes de eles voarem, aparentemente elas eram usadas como isolantes
térmicos. 225
Cf. Ian Tattersall, “Como nos Tornamos Humanos”, In. Scientific American (Brasil), Edição
Especial, Nº17, p.75.
169
possível que no ambiente aberto da savana os hominídeos tenham aprendido a
melhor controlar o volume de suas vocalizações para não chamar a atenção dos
predadores. Tudo isso repousava, por sua vez, sobre uma base “musical” capaz de
transmitir, através de vocalizações, os sentidos de representação do estado
emocional do falante. As intensidades e os contornos melódicos expressando
estados de medo, raiva, aflição, nojo, surpresa e alegria – as ditas emoções
“básicas”, comuns a todas as culturas humanas, alojadas no centro do cérebro,
numa das regiões com desenvolvimento mais remoto na história da evolução do
sistema nervoso, no conjunto de estruturas neurais que forma o sistema límbico.226
A base “musical” à qual me referi acima pode ser notada no fato de que macacos e
homens seguem as mesmas pistas vocais ao comunicar emoções. Sentidos de
raiva, medo e alegria são gerados por movimentos sonoros semelhantes, por uma
mesma “música” de fundo que acompanha o conteúdo sonoro. O caminho que
leva da proto-linguagem dos primeiros hominídeos – que, ao que tudo indica,
baseava-se na comunicação vocal de primatas ainda mais recuados no tempo
evolutivo227 - até a linguagem dos homens modernos passa por uma complexa teia
de causas e efeitos envolvendo relações insuspeitadas entre as diversas partes do
corpo. Passa pelo desenvolvimento recíproco de uma entidade única, indivisa: o
cérebro-corpo. Pela regulação cada vez mais fina de uma série de ritmos e
movimentos.
Provavelmente os primeiros hominídeos se comunicavam através de
locuções que tinham significados holísticos, inteiros, fechados. Que formavam um
espaço expressivo ao incorporar amplos gestos, meneios de corpo, caretas e
posteriormente talvez até gestos miméticos. Que eram fundamentalmente
melódicas, em certo sentido “musicais”. Que não subdividiam-se em unidades
significantes menores (palavras) capazes de se reagrupar e assim gerar novos
sentidos. A comunicação, desse modo, tinha um caráter mais manipulativo do que
226
“The neuroscientist Joseph LeDoux has shown that the same neural mechanisms mediate the
fear response in all sorts of animals, form pigeons and rats to cats and humans. The idea that other
animals experience similar emotions to us is not antropomorphism: it is based on sound scientific
evidence. In all mammals, including ourselves, basic emotions such as fear and anger are mediated
by a set of neural structures known as the limbic system. These include the hippocampus, the
cingulate gyrus, the anterior thalamus, and the amygdala. All these structures are tucked away in
the centre of the brain, underneath the outer layer of neural tissue known as the neocortex”. (Cf.
Dylan Evans, Emotion: a Very Short Introduction, Oxford, Oxford University Press, 2001, p.32) 227
Muitos estudos documentam continuidades no comportamento, percepção, cognição e neuro-
fisiologia entre a fala humana e comunicação vocal dos primata de hoje. Ver, nesse sentido, Steven
Mithen, op.cit.., p.149.
170
referencial: era usada para gerar uma ação; para interferir diretamente na
realidade; e não para referir-se simbolicamente a uma entidade do mundo externo.
Os gritos de alerta dos macacos-vervet, por exemplo, são capazes de especificar a
ação necessária em função do tipo de predador que se aproxima. Desse modo, três
tipos vocalização indicam se os integrantes do grupo devem subir na árvore mais
próxima (caso o predador seja um leopardo), abaixar-se ou procurar abrigo para a
cabeça (águia), ou então olhar prontamente para o chão (cobra). O conteúdo
sonoro é indissociável da ação por ele gerada – não existe como imagem mental
abstrata que efetivamente refere-se ao leopardo, águia ou cobra.
Diante do novo cenário das planícies africanas, os hominídeos foram
obrigados a trabalhar cada vez mais em conjunto. Caminhando por terra, sem
poder contar tanto com a proteção das árvores, sujeitos a todos os tipos de
predadores, passaram a agrupar-se em bandos cada vez maiores. Com isso, houve
um reforço de sua dimensão de ser social. Quanto mais indivíduos há em um
grupo, mais complexa e tensa tenderá a ser a convivência. Por conta disso, houve
forte pressão seletiva no sentido do aprimoramento da comunicação vocal como
instrumento de regulação social, capaz de promover a cooperação, o entendimento
entre as várias partes. E aqui retomamos a linha direta que marca a continuidade
entre as interações vocais humanas e não-humanas. Assumir que todos esses
aspectos expressivos, seqüenciais e interativos da comunicação já encontravam-se
presentes nos primeiros estágio da evolução dos hominídeos e da linguagem
humana nos permite enxergar melhor essa continuidade. Animais tão diversos
quanto os macacos-gelada, as marsopas (uma espécie de golfiho que vive nas
águas frias do oceano Pacífico norte), as baleias orca, os lobos, os cachorros-
selvagens da África (“mabeco” em Angola), e os corvos, todos eles interagem
vocalmente entre seus grupos. Tentam repetir, às vezes casar com a máxima
precisão, o que os outros estão falando, sobrepondo as vocalizações na intenção
de entrar em fase. Buscam reproduzir o mais fielmente possível o padrão rítmico
que está sendo apresentado, repetir a batida condutora, permanecer dentro dela,
integrado, sem atravessar o ritmo do outro. Richman sugere que “para esses
animais isso faz parte de um poderoso impulso biológico para permanecer ligados
entre si e gerar um estado de sincronia comportamental com os outros”.228
228
Cf. Nils L. Wallin, Björn Merker, Steven Brown, The Origins of Music, p.310.
171
Os macacos-gelada das montanhas da Etiópia interagem socialmente
seguindo em detalhes a vocalização de outros indivíduos. Muitas vezes
sincronizam suas próprias vocalizações com as de outros macacos, alternando
com eles, ou até mesmo completando diferentes padrões sonoros. Depois de oito
anos registrando e analisando as vocalizações desses macacos, Richman ficou
impressionado com a imensa variedade de ritmos e melodias que usam: “Fast
rhythms, slow rhythms, staccato rhythms, glissando rhythms; first-beat accented
rhythms, end accented rhythms; melodies that have evenly spaced musical
intervals covering a range of two or three octaves; melodies that repeat exactly,
previously produced, rising or falling musical intervals; and on and on: geladas
vocalize a profusion of rhythmic and melodic forms”.229
No fim, perguntou para
si próprio qual seria a razão para a existência de tanta variedade nessas
vocalizações. A sugestão de Richman é que provavelmente exercem a mesma
função que ritmo e melodia exercem no canto e na fala dos humanos. Mudanças
de ritmo e melodia apontam o início e o fim de uma locução, de modo a permitir
que outros macacos acompanhem o desenvolvimento da vocalização; para que
também saibam quando a vocalização está sendo diretamente dirigida a eles; e
para, finalmente, permitir que outros macacos façam suas próprias contribuições
no momento adequado. Ao mesmo tempo, mudanças no contorno melódico
indicam estados emocionais dos “falantes” em diferentes tipos de contexto social.
Essas mudanças seguem praticamente os mesmos padrões que aqueles
encontrados entre os humanos. As mesmas variações de altura e semelhantes
contornos melódicos são usados para expressar estados emocionais análogos. A
raiva, o medo e alegria do macaco-gelada podem gerar sons semelhantes àqueles
que emitimos diante das mesmas emoções básicas. As vocalizações desses
macacos frequentemente soam como uma conversa entre seres humanos. Talvez
seja possível falar de uma “herança primata” que se revela de forma nítida quando
o discurso humano torna-se saturado de emoção.
229
“Ritmos rápidos, ritmos lentos, ritmos em staccato, em glissando; ritmos acentuados na
primeira batida, ritmos acentuados no fim; melodias com intervalos musicais uniformemente
separados cobrindo um espectro de duas ou três oitavas; melodias que se repetem com exatidão,
previamente criadas, subindo ou descendo os intervalos musicais; e assim em diante: os geladas
vocalizam uma profusão formas rítmicas e melódicas.” (Cf. Apud., Steven Mithen, op.cit.., p.110)
(Tradução Livre)
172
Repetindo o que o outros fazem, casando em sincronia sons e movimentos
corporais, entramos em concordância com uma ordem; sinalizamos que estamos
em sincronia comportamental com os demais. Com isso, confirmamos alianças e
pertencimentos; tacitamente anunciamos solidariedade ao grupo; acenamos com a
intenção de resolver possíveis conflitos sociais e emocionais. Num contexto de
grandes grupos e de complexa dinâmica social, como no caso dos animais citados
e também dos primeiros hominídeos - forçados a assim viver porque de outro
modo não seria possível sobreviver - as interações vocais cumpriram uma função
social decisiva. E esse impulso biológico, pelo menos no caso dos humanos,
manifesta-se sobre a forma do prazer. Se, do ponto de vista evolutivo, é vantajoso
que os grupos mantenham-se unidos, deve então haver embutidos na própria
mente mecanismos que incentivam os meios propiciadores dessa união. Cedemos
ao ritmo não necessariamente porque conscientemente queremos contribuir para
um sentimento de solidariedade e união, mas simplesmente porque sentimos
prazer com isso. Porque nossos corpos-mentes são realmente tentados a
experimentar certa organização temporal; a perder-se num contexto maior e mais
amplo; a entrar em fase com algo que nos religa a uma ordem superior, supra-
individual.
É nesse sentido que o apelo do ritmo pode trair de modo formidável ideias e
preconceitos. Tornar-se mesmo perigoso, porque exige uma perda de controle.
Uma perda de controle que, no entanto, pode ser intensamente prazerosa. Numa
sociedade, como foi, por exemplo, o caso de boa parte da sociedade Ocidental
cristã, que valoriza um intenso controle do corpo e das emoções, a ponto de fazer
disso o grande elemento diferenciador entre os indivíduos, uma presença rítmica
mais marcante, e baseada em padrões que não foram oficialmente codificados,
capaz de igualar os corpos em movimento, pode, sim, tornar-se uma ameaça. O
ritmo representa a ameaça que Dioniso faz de rasgar o fino véu da ilusão apolínea
da individuação, da diferenciação entre seres humanos. O apelo do ritmo atenta
contra tal controle. Essa ameaça torna-se ainda maior quando se constata o fato de
que os corpos dos que estão “abaixo” no edifício social parecem muito mais
preparados e sofisticados na execução dos movimentos dançantes que
acompanham o ritmo musical do que aqueles que estão “acima” (como foi um
pouco o caso do que aconteceu nos Estados Unidos e também no Brasil). Há uma
verdadeira inversão embutida nisso – em dado momento o dito “inferior” torna-se
173
“superior”. A música mais fortemente ritmada, em sua relação intrínseca com o
movimento, com os padrões corporais que nela estão embutidos, real ou
virtualmente, torna-se, por assim dizer, portadora de “índices de um corpo popular
livre, de uma dominação que ainda não se deu por completo”.230 Corpo que
representa novas possibilidades de prazer sensual, físico, tornando-se inclusive
desejável aos olhos de membros de uma elite formada de acordo com os preceitos
físico-estéticos do século XIX. Creio que muito dessa dinâmica permeou a entrada
da força rítmica africana na tradição musical européia no território das Américas.
Essa força, contudo, é menos brutal ou selvagem, como muitas vezes foram
etnocentricamente descritas as tradições rítmicas africanas por ouvintes
ocidentais, e mais irresistivelmente sedutora. No início do século XX, americanos
brancos acreditaram por alguns instantes que tinha sido Nick LaRocca (branco e
picareta) o verdadeiro inventor do jazz. Puderam desse modo se lançar com ainda
maior frenesi - e menos culpa - na dança daquele novo estilo. A história registrou
a apropriação indébita como um episódio lastimável no qual mais uma vez a elite
branca tentaria usurpar as valiosas contribuições dos negros para a vida naquele
país. Mas é possível enxergar tudo isso por um outro ângulo. Talvez, no fim das
contas, a picaretagem de LaRocca tenha servido para facilitar o posterior e
praticamente inevitável triunfo do jazz. Não admitindo a sedução de algo que
trazia as marcas da ralé negra, dos ex-escravos que ocupavam o mais baixo degrau
da escada social, foi preciso que alguns grupos de elite criassem uma ilusão que
desativasse seus terríveis preconceitos e permitisse assim que seus corpos se
lançassem em um novo mundo sonoro. Com a consciência anestesiada pela
insólita mentira, puderam entregar-se de corpo e alma àquilo. Foram imantados
pelo jazz. Não se trata de mera aceitação. Foi em boa parte a partir do triunfo da
música popular que se deu a paulatina valorização da contribuição cultural dos
afro-descendentes na América do Norte.
No Brasil, um sinuoso processo de negociação entre membros de uma elite
progressista, políticos, intelectuais e artistas oriundos das camadas baixas levaria,
nos anos 1930, até a consagração do samba urbano carioca como emblema sonoro
do país, como símbolo maior de uma brasilidade popular e mestiça. Mas também
esta consagração já vinha sendo preparada em silêncio, longe dos olhos oficiais, e
230
Cf. José Miguel Wisnik, Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil, São Paulo, Companhia das
Letras, 2008, p.402.
174
tornava-se cada vez mais aparente no triunfo espontâneo e avassalador da canção
comercial nas rádios, do carnaval nas ruas e do futebol como paixão popular. Boa
parte do substrato dessa canção vinha de um certo regime “malandro”, do modo
como diferentes tradições foram retrabalhadas, no contexto urbano, por uma
franja social do regime escravista, composta por homens livres que sem ser mais
escravos tampouco haviam sido integrados no novo quadro pós-abolição. José
Miguel Wisnik notou que, embora localizado num setor intervalar da sociedade
escravista, “esse regime ‘malandro’ teve o poder de se irradiar pelo conjunto
social num processo cujo caráter contagiante desafia a interpretação”.231 Antes de
Wisnik, Antonio Candido já havia sugerido que tal segmento era a expressão mais
nítida e definida da dinâmica de funcionamento de uma sociedade que “ganhou
em flexibilidade o que perdeu em inteireza e coerência” – uma sociedade que “se
abriu com maior largueza à penetração dos grupos dominados e estranhos”.232 É
sintomático que o período-chave da formatação da canção popular urbana (as
últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX) coincida com a
transição do país escravocrata para o país livre – em certo sentido, com a própria
libertação dos corpos.
...
As continuidades comportamentais entre humanos e outros animais formam
o fundo sonoro/emotivo sobre o qual seria mais tarde construído o grande edifício
da linguagem. O fundo, no entanto, permanece - ainda que passe um pouco
despercebido pela atenção que geralmente se foca sobre os conteúdos
propriamente verbais, sobre o significado simbólico da linguagem. Na música,
contudo, ele passa para o primeiro plano e pode ser notado com maior facilidade.
A história evolutiva assegurou que a mente humana se desenvolvesse para
apreciar a melodia e o ritmo, que eram a principal do processo de comunicação
antes que este fosse quase que inteiramente dominado pela linguagem.
Vocalizações conjuntas, baseadas em sincronias rítmicas intricadas, precisamente
calculadas no tempo, fosse através da dinâmica de canto e resposta ou da
231
Cf. José Miguel Wisnik, op.cit.., p.422. 232
Cf. Antonio Candido, “A Dialética da Malandragem”, In. O Discurso e a Cidade, São
Paulo/Rio de Janeiro, Duas Cidades/Ouro Sobre Azul, 2004, p.43.
175
sobreposição de vozes, podiam ter o efeito de facilitar as interações sociais,
fortalecer a coesão e identidade do grupo, como se fossem “canções”. Ou
simplesmente dar vazão e/ou induzir a determinados estados emocionais.
A qualidade gregária da atividade musical nas mais diversas culturas, assim
como a constatação de que ela é primeiramente e acima de tudo uma atividade
coletiva, trouxe relevo para a justificativa evolutiva da música como sendo uma
espécie de biotecnologia da formação de grupos. Algo capaz de criar, até mais do
que manter, um poderoso senso de unidade. Meio século de pesquisas
etnomusicológicas sugerem que uma das principais funções, senão a principal
função, do ato de fazer música seja promover a cooperação, coordenação e coesão
grupais. Duas características específicas da música fazem dela uma poderosa arma
nesse sentido. Enquanto o discurso normalmente requer um dinâmica de
alternância entre os falantes, na música a simultaneidade não apenas é possível,
como desejável. Parece fazer parte de sua estrutura mais íntima e essencial. Há
nela uma qualidade fusional, capaz de permitir o agrupamento vertical do som, a
combinação sincrônica de diferentes vozes seja capaz de promover um sentido de
performance grupal e harmonização interpessoal. Da polifonia dos pigmeus do
Gabão às heterofonias das cantoras búlgaras, poucas manifestações humanas são
tão eficientes na promoção da simultaneidade. Na música os sons podem ser
fundidos e transformados numa outra coisa – as partes se unem e formam um
conjunto que é, por si só, algo diferente, maior. E sem que com isso se elimine
totalmente a singularidade das partes. De fato, na grande maioria dos casos a
música tem sido por excelência uma atividade conjunta, interativa, na qual tomam
parte, numa espécie de acordo, as mais diversas partes. Mas não é apenas sua
dimensão vertical que permite isso. Como já vimos, o próprio ritmo constitui um
artifício dos mais eficientes na coordenação de ações conjuntas, movimentos
cooperativos e trabalho de equipe.
Vem daí a comum disposição em círculo na hora de fazer música. Do
inúmeros rituais de canto e dança que se dão sobre uma circunferência de vozes
espacialmente colocadas; das primeiras rodas de samba no nordeste brasileiro,
num universo ainda rural, às rodas de violão nos apartamentos modernos da orla
carioca. Como se o universo se fechasse sobre si num princípio de ordem,
princípio ativado tanto por uma construção sonora quanto por uma organização
espacial. Uma bela descrição imaginária, baseada nos vestígios de um sítio
176
arqueológico na África Oriental, do como teria sido a comunicação cotidiana dos
primeiros hominídeos nos é dada por Steven Mithen. A cena se passa há 1.6
milhões de anos atrás. Cerca de 35 hominídeos estão reunidos em um local que,
estima-se, era destinado à distribuição de alimento entre os integrantes do grupo
(foram achados no local os ossos de pelo menos vinte espécies de animais:
antílopes, girafas, babuínos, tartarugas e pássaros):
Emanating from the site would have been a variety of calls, reflecting the diversity
of activities, how these changed through the day, and the varying emotional states
of individuals and the group as a whole. One might have heard predator alarm
calls; calls relating to food availability and requests for help with butchery; mother-
infant communications; the sounds of pairs and small groups maintaining their
social bonds by communicating with melodic calls; and the vocalizations of
individuals expressing particular emotions and seeking to induce them in others.
Finally, at dusk, one should perhaps imagine synchronized vocalizations – a
communal song – that induced calm emotions in all individuals and faded away
into silence as night fell and the hominids went to sleep in the trees. 233
O período de aperfeiçoamento do movimento em duas pernas coincide
também com um grande desenvolvimento cerebral nos hominídeos. A ideia é que
a uma complexidade maior de movimentos corresponde uma maior capacidade de
comandar esses movimentos. Gastamos mais matéria cinzenta manipulando o
polegar da mão do que no controle total dos músculos do tórax e do abdômen. Ser
bípede exige um cérebro mais amplo e um sistema nervoso mais eficiente, capaz
de dar conta de um maior grau de sofisticação do aparelho sensório-motor. De um
equilíbrio e de uma organização rítmica também muito mais complexas. Com o
início das eras glaciais, há dois milhões de anos, começa um longo processo de
expansão do cérebro dos hominídeos. Até chegar ao ser humano moderno, a área
do córtex irá quadruplicar de tamanho. Steven Mithen especulou que “o impacto
do bipedalismo no modo como movemos e usamos nossos corpos, junto com o
seu impacto sobre o cérebro humano e sobre o trato vocal, pode ter iniciado a
233
“Do sítio deviam emanar uma diversidade de chamados que refletiam a variedade de atividades,
como estas modificavam-se ao longo do dia, assim como os variados estados emocionais dos
indivíduos e também do grupo como um todo. Devemos imaginar chamados alertando para a
presença de predadores; chamados destinados a informar a disponibilidade de alimento e também
demandando ajuda no ofício de extrair pedaços de carne da carcaça; comunicação entre mãe e
criança; sons vindos de pares e de pequenos grupos que mantém seus laços sociais comunicando-
se por chamados melódicos; e também as vocalizações de indivíduos expressando emoções
particulares e procurando induzi-las em outros membros do grupo. Finalmente, no findar do dia,
devemos talvez imaginar vocalizações sincronizadas – uma canção comunitária – capaz de
produzir emoções serenas em todos os indivíduos até desaparecer lentamente no silêncio,
enquanto a noite cai e os hominídeos encaminham-se para dormir nas árvores”. (Cf. Steven
Mithen, op.cit.., p.137) (Tradução Livre)
177
maior revolução musical da história humana”.234 A declaração do especialista em
arqueologia cognitiva generaliza, talvez demasiadamente, o que devemos entender
por “música”. No entanto, ela faz eco com muitas das afirmações do
etnomusicólogo John Blacking, que soube reconhecer como poucos a íntima
relação da música com o movimento do corpo. O modo como ambos derivam de
uma mesma capacidade sensório-motora, de uma unidade perceptiva que integra
espaço e tempo, e do mesmo complexo corpo-mente. “Many, if not all, of music’s
essential processes may be found in the constitution of the human body and in
patterns of interaction of human bodies in society. Thus all music is structurally,
as well as functionally, folk music”, escreveu Blacking.235 E ao utilizar o termo
“folk music” não deixa de sinalizar para o modo como as tradições populares
mantiveram unidos corpo e música – o que não parece ter ocorrido na tradição
erudita européia.
De fato, tão importante quanto a evolução das juntas do joelho, de quadris
mais estreitos, de músculos glúteos mais fortes para equilibrar melhor o
movimento, o bipedalismo exigiu a evolução de mecanismos mentais capazes de
manter a coordenação rítmica dos grupos musculares. Sua complexa sinergia, a
orquestração simultânea, integrada, de diversos elementos. Exigiu um cérebro que
pudesse operar o controle temporal da complexa coordenação dos grupos
musculares envolvidos nos mais simples movimentos. Sem essa habilidade
cognitiva, o movimento perderia fluidez e naturalidade. Sem um mecanismo
adequado de ritmo interno, a mais simples ação corporal se tornaria uma
verdadeira batalha. Pessoas que eventualmente perderam tal habilidade não
conseguem sequer se concentrar, o que sugere que a coordenação rítmica também
é algo extremamente necessário para a coordenação puramente mental de ideias
abstratas. Há indícios da presença de uma via de comunicação áudio-motora no
sistema nervoso. Parâmetros sonoros teriam o poder de exercer efeito direto na
atividade dos neurônios motores da espinha dorsal. Ouvimos uma música e
234
“The impact of bipedalism on how we move and use our bodies, together with its impact on the
human brain and vocal tract, may have initiated the greatest musical revolution in human
history”.(Cf. Idem, Ibidem, p.139) 235
“Muitos, senão todos os processos essenciais da música devem ser encontrados na constituição
essencial do corpo humano e em padrões de interação dos corpos humanos em sociedade. Desse
modo toda música é estruturalmente, assim como funcionalmente, música popular (folk music)”.
(Cf. John Blacking, How Musical is Man, p.x-x1) (Tradução Livre)
178
intuitivamente começamos a bater os pés e a estalar os dedos, marcando a
pulsação.
Se é verdade que todos os mamíferos respondem de alguma forma à
recorrência de uma marcação em intervalos regulares de tempo, somente os
humanos deixam-se embalar em movimentos corporais muitas vezes
inconscientes – quase como se houvesse o corpo um pendor natural e próprio para
a dança. É o que vemos e sentimos quando a música é fortemente ritmada. Em
parte, veio disso o grande contraste e choque provocado pela emergência das
músicas populares do século XX, quando novamente trouxeram o ritmo para o
primeiro plano - um efeito que parecia puramente corporal, que não passava pela
mediação do intelecto, do entendimento, e que, embora organizado, representava
um grande perigo desagregador, uma ameaça de barbárie. Os musicólogos
americanos chamam a esse efeito de “entrainment” – algo capaz de arrastar.
Importante é notar que os chimpanzés, nossos parentes vivos mais próximos, não
exibem o mesmo tipo de resposta corporal. Não são movidos pela música humana.
Talvez a ausência de bipedalismo pleno entre eles signifique também a ausência
desse fenômeno corporal, desse modo específico de ser afetado pela música.
Tudo leva a crer que conforme nossos ancestrais foram se transformando em
seres bípedes também suas capacidade musicais inerentes foram sendo
transformadas. Libertaram as mãos e os braços da função locomotora. O próprio
torso tornou-se mais independente dos membros inferiores. Passaram a operar
simultaneamente com uma quantidade maior de sistemas rítmicos. O novo grau de
controle motor exigido para o movimento em duas pernas, junto com o
desenvolvimento de um ritmo interno, de habilidades para inconscientemente
marcar o tempo aumentaram, a partir do Homo Ergaster, nosso potencial para a
gesticulação e para a linguagem corporal. Ampliaram também o potencial para a
expressão vocal e para a música. Colocando em outras palavras, e tomando
emprestada a reflexão do psicólogo musical John Sloboda, música é a
incorporação/encarnação do mundo físico em movimento.236 Morasse o homem na
lua, submetido a outras leis físicas, e/ou tivesse ele outro tipo de corpo, com
outras possibilidades de movimento e diferente estrutura, sua música seria
completamente diferente.
236
Em inglês o termo seria “embodiment”. Ver, nesse sentido, Steven Mithen, op.cit.., p.24.
179
No que diz respeito ao corpo, tudo parece intimamente ligado e tudo se
conecta ao movimento. Os sentidos são sistemas perceptuais compreendidos em
sua própria arquitetura funcional. Existem a partir deste, com base nele. Nossa
percepção visual, por exemplo, e também a dos animais, está anexada, acoplada
ao próprio movimento. Ela existe por causa do movimento; existe em movimento
– mesmo quando estamos “parados”, o que no sentido estrito jamais acontece.
Trata-se de uma reconstrução do mundo a partir do fluxo de informações que
resultam do movimento. De certo modo, mesmo os pensamentos – padrões de
atividade espaço-temporal que formam códigos no cérebro – podem ser
considerados como “movimentos” que ainda não se realizaram (e que talvez
jamais se realizem). É desse modo que o aprimoramento sensório-motor pode
estar na base do desenvolvimento de funções intelectuais aparentemente abstratas,
ditas superiores, como a sintaxe, o planejamento lógico, os jogos com regras, e a
própria música. Como se essas faculdades tivessem um núcleo comum que, uma
vez aprimorado, se desdobraria no avanço insuspeitado de outras faculdades a ele
ligadas. Dito de outro modo, é como se esse núcleo representasse um tipo de
inteligência maior, una, que integra todas as pontas do corpo, e da qual a música
seria um dos desdobramentos mais refinados. A música, capaz de reintegrar
novamente os cacos de inteligências dispersas no monolito único do ser. O
neurofisiologista Willian H. Calvin sugere que na base desse núcleo comum
estaria a paixão humana por reunir coisas e formar conjuntos: palavras em frases,
notas em melodias, passos em danças, narrativas em jogos com regras
precedentes. Sugere também que,
Por mais improvável que a ideia pareça, o planejamento de movimentos balísticos
por parte do cérebro pode ter promovido a linguagem, a música e a inteligência.
Tais movimentos são ações extremamente rápidas dos membros, as quais, uma vez
iniciadas, não podem ser modificadas. Bater um prego com um martelo é um
exemplo. Os grandes macacos só têm versões elementares dos movimentos
balísticos de braço nos quais os humanos são especialistas – martelar, golpear e
arremessar.237
No contexto de radicais mudanças climáticas promovidas pelas eras
glaciais, aprimorar a capacidade de caçar e de construir ferramentas eram
contribuições preciosas às estratégias de sobrevivência desses hominídeos. Isso
exigia um domínio cada vez mais apurado do corpo. Da interação profunda entre
237
Cf. Willian H. Calvin, op.cit.., p.88.
180
corpo e pensamento. Exigia movimentos precisos e seqüenciados. Movimentos
que deviam ser previamente planejados pelo cérebro. Martelar uma pedra maior
sobre uma veio rochoso, para dele extrair afiadas lâminas de pedra capazes de
destacar a carne dos ossos de um animal morto exige coordenação. Exige o
planejamento da seqüência exata da ativação de dezenas de músculos. Controle da
força. Capacidade de observação. Descobertas arqueológicas recentes mostram
que há 40.000 mil anos atrás os humanos pré-modernos já fabricavam lanças de
madeira.238 Deviam usá-las como armas de caça para abater grandes mamíferos -
cavalos, cervos, talvez até elefantes. O arremesso dessas lanças exigia uma
coreografia ainda mais complexa entre as capacidades de previsão e o controle
apurado dos movimentos do corpo. Um cálculo integrado, intuitivo, entre a
antecipação do evento e a atividade necessária. Assim como faz um gato, que
salta para pegar um passarinho já tendo previsto um pequeno deslocamento da ave
– salta, portanto, mirando não exatamente onde o passarinho se encontra na hora
do pulo, mas um pouco à frente, para que o deslocamento deste vá de encontro às
suas garras. De modo semelhante, no caso da caça com lanças, a dificuldade é
ampliada pela brevidade da janela de lançamento – o intervalo de tempo dentro do
qual o projétil tem possibilidade de atingir o alvo. Se dobra a distância do caçador
em relação ao cavalo que corre à frente, a janela de lançamento torna-se oito
vezes mais estreita. Um novo nível de precisão é exigido, uma superior
capacidade de planejamento mental. Um planejamento que vai demandar a
atividade de 64 vezes mais neurônios. Neurônios que “funcionam como
mecanismos de sincronização independentes trabalhando em conjunto, como um
coro de cantores medievais recitando um cantochão em uníssono”.239 Uma vez
iniciado o movimento, o braço não mais pode ser detido. É tudo tão rápido que é
preciso haver um cálculo prévio da seqüência exata de contrações musculares.
Depois de planejada, a execução do movimento vai exigir uma coreografia rítmica
perfeita.
Possivelmente alguns dos mecanismos neurais que elaboram tais
movimentos complexos contribuíram também para facilitar outros tipos de
planejamento e de ação. A destreza apurada dos movimentos balísticos poderia,
238
A descoberta arqueológica das mais antigas lanças de madeira foram feitas em 1995, num sítio
ao sul da Alemanha. Ver Steven Mithen, op.cit.., p.160. 239
Cf. Willian H. Calvin, op.cit.., p.89.
181
desse modo, refletir-se num acréscimo de habilidade dos próprios movimentos da
boca, por exemplo, já que ambos derivam da mesma capacidade motora.
Acidentalmente, amplia-se o dom da fala, a possibilidade de produzir sons cada
vez mais complexos, trabalhados, ricos e variados. Era o corpo inteiro que ia se
afinando, tornando-se mais sutil e nuançado em seus movimentos. Quando
falamos do movimento, estamos também nos referindo à capacidade de realizar
longas seqüências espaço-temporais. A um maior controle rítmico do corpo
equivale também uma apreensão mais ordenada do tempo, uma ampliação da
própria memória. O aprendizado do corpo reverbera por caminhos inesperados.
Willian Calvin chega a sugerir a existência de um seqüenciador comum aos
movimentos da mão e à linguagem; há evidências que apontam para a
especialização cortical da faculdade de sequenciamento. É possível que
seqüências maiores de movimentos corporais coordenados tenham também
permitido seqüências discursivas mais longas, unificadas talvez por padrões
rítmicos recorrentes. No centro da área especializada em linguagem está uma
região ligada à audição de seqüências sonoras, que parece igualmente envolvida
na produção de seqüências de movimentos que abrangem o rosto e a boca,
inclusive daqueles que não estão envolvidos na linguagem. Ao que tudo indica, o
“córtex da linguagem”, como geralmente é definido, possui uma função muito
mais generalizada do que se pensava. Ele está envolvido em seqüências de
sensações e movimentos nas mãos e na boca.
Tudo isso deve ter produzido vocalizações cada vez mais expressivas,
moduladas por uma gama crescente de sons que resultavam da fineza de
movimentos da língua e dos lábios - movimentos que por sua vez eram burilados
em ações como morder, lamber, chupar. Vocalizações mais ritmicamente
marcadas, capazes de se expandir temporalmente em padrões mais articulados,
melhor definidos, adequados tanto ao fôlego médio dos indivíduos quanto às
limitações da memória. Vocalizações aptas a dar conta de um leque cada vez mais
matizado de emoções coletivas e individuais. Padrões mais interativos, passíveis
de serem recordados e socialmente fixados através da repetição, transformando-se
em fórmulas significantes, gerando os conteúdos holísticos que devem ter
permeado boa parte da comunicação pré-linguística – antes da subdivisão em
unidades menores que podiam rearticular-se em novos significados, e que acabou
gerando a linguagem composicional. Fórmulas holísticas que não podem ser
182
decompostas em partes que possuam, por si só, um significado (como acontece a
uma frase que pode ser decomposta em palavras com significado próprio); que
sugerem um significado ligado à totalidade sonora e cumprem uma função social,
representando ações concretas e acontecimentos específicos.
Talvez os mantras indianos possam nos trazer uma ideia das fórmulas
holísticas que possivelmente foram usadas por nosso antepassados. Os mantras
são expressões relativamente fixas que não possuem qualquer significado ou
estrutura gramatical. Longas seqüências sonoras memorizadas, passadas de
geração para geração, utilizadas para fins específicos da vida humana. São
seqüências sonoras capazes de “criar transformação”. Fórmulas vocais nonsense,
que prescindem totalmente das palavras, e cujo sentido está na totalidade sonora
do que aquilo representa. Transmitidos do mestre ao pupilo, para que possam
manter a sua eficácia simbólica, os mantras exigem não apenas uma correta
pronuncia das vocalizações, mas também o ritmo correto, a variação melódica
adequada e a postura corporal necessária. Os mantras budistas são, desse modo,
fórmulas fixas que pouco ou nada mudaram em séculos de existência. Algo que,
com base em nossas categorias habituais, não pode ser definido nem como música
nem como linguagem. É possível que assim tenha sido os primórdios da
comunicação humana, algo parecido com uma musilíngua.240 De modo
semelhante, o significado do canto sem significado aparente dos Havasupai para
bloquear veneno de cobra é propiciar a cura de um ferimento. Nele também não
há palavras, mas agregados de sons produzidos vocalmente e reproduzidos do
modo mais exato possível. O sentido está na fórmula inteira, na unidade do corpo
sonoro e em sua eficácia simbólica (para usar um termo de Lévi-Strauss). “A
eficácia persuasiva do rito depende aí do significante, a música da língua, tanto ou
mais do que dos seus conteúdos”.241
Parece que no desenvolvimento da linguagem foram somando-se,
acumulando-se sucessivas dimensões expressivas, mais do que substituindo-se.
Remanescentes vivos de antigas práticas vocais foram desse modo retidos e
dispostos lado a lado com aquilo que aparentemente constitui a parte mais recente.
De fato, todas as línguas trazem até hoje exemplares desse intrigante tipo de
240
Ver, Steven Brown, “The ‘Musilanguage’ Model of Music”, In. Nils L. Wallin, Björn Merker,
Steven Brown, The Origins of Music, p.271-300. 241
Cf. José Miguel Wisnik, O Som e o Sentido, p.92.
183
fórmula vocal nonsense. Fórmulas que iam aos poucos sendo memorizadas e
socialmente codificadas. Aquelas que conseguiam de certo modo transcender a
dimensão de sons puramente emotivos, que acompanhavam os estados de espírito,
e refinavam o seu sentido, tornavam a linguagem um pouco mais específica. Essas
fórmulas ainda podem ser encontradas, por exemplo, nas brincadeiras infantis –
no “uni-duni-tê, sala-mê-min-guê” e na “ado-lê-ta” das crianças brasileiras; ou no
“eeney-miney-mo”, cantado por crianças anglofônicas. Longas seqüências
sonoras cuja função é contar os potenciais participantes de determinado jogo, ou
efetuar uma espécie de ritual para escolher ou eliminar um dos jogadores. O
significado está na seqüência inteira. Ninguém sabe ao certo de onde vieram essas
fórmulas. Também elas parecem atravessar o tempo. Tampouco parece haver
nelas qualquer vestígio de cultura – elas são profundamente impessoais e nos
remetem diretamente ao tempo dilatado da infância (uma infância qualquer).
Algumas vezes, essas fórmulas incorporam palavras existentes, reconhecíveis,
mas retiram delas qualquer tipo de coerência, pois o que interessa é a sonoridade
pura – o sentido faz-se quase como se fora um acidente, no caso, um acidente
engraçado. Geralmente as crianças costumam cantar unidas em uníssono (às vezes
de mãos dadas, formando círculos), de modo perfeitamente sincronizado; as
fórmulas são chaves de acesso ao grupo, de pertencimento e de instauração da
atmosfera da brincadeira. E, para que funcionem dessa maneira, precisam ser
decoradas.
A força dessas fórmulas venha de sua capacidade de permanência na
memória. E essa permanência é tornada possível pela redundância poética que
apresentam. Pela recorrência de padrões, pelos ritmos, que facilitam a sua
apreensão e memorização. São essas feições, que nelas se apresentam de modo
muito mais marcado do que na fala normal, os elementos responsáveis por atá-las
mais fortemente por dentro, criando uma forte ligação entre as partes, de modo
que, uma vez que começamos a fala-las, temos a impressão de que somos
arrastados até o fim. “A huge amount of alliteration, rhyme, parallelism of
rhythms and forms help them stick together and be memorable as whole units.
Obviously, such poetic redundancy was quite crucial for the earliest fixed
formulas”.242 O que está sendo sublinhado é a imensa riqueza expressiva que
242
“Uma imensa quantidade de aliterações, rimas, paralelismo de ritmos e formas ajudam com que
elas mantenham-se unidas e sejam lembradas como unidades inteiras. Obviamente, tal redundância
184
surge com o refinamento rítmico do corpo e que já estava na base do próprio
desenvolvimento da linguagem moderna. Riqueza que deve ter gerado uma
comunicação vocal polifônica, ritmada, multimodal, expressiva, holística e
colaborativa entre os primeiros homens. E que hoje continua como cor subjacente,
capaz de trazer luz e textura ao frio império das palavras abstratas.
Essas fórmulas holísticas, contudo, não parecem ser apenas reminiscências
de um passado longínquo da comunicação humana – passado que sobreviveria,
por exemplo, nos mantras ou em vocalizações nonsense. Alguns linguistas
argumentam que elas formariam mesmo a base de nossa comunicação até os dias
de hoje. Que sem elas, jamais seria possível acompanhar o ritmo, a rapidez de
uma conversa atual. Ainda que o poder criativo da linguagem certamente venha
de sua natureza composicional, da combinação gramatical de palavras, grande
parte de nossa comunicação acontece por meio de locuções holísticas. Se
pensarmos bem, geralmente falamos sem muito esforço, como se as seqüências
das palavras já nos fossem dadas de antemão. Do mesmo modo, geralmente não
precisamos esperar o término de uma frase falada para antecipar o seu significado
e já preparar uma resposta. Também no diálogo, como na música, nossa
capacidade de previsão está sendo frequentemente acionada. Muitos jogos de
linguagem, como algumas piadas, trabalham justamente sobre essa expectativa,
contrariando-a numa inversão de sentido – o ponto alto da torção quase sempre se
dá no fim da locução. Se prestarmos mais atenção em conversas com muitos
falantes, veremos também que nelas há uma grande quantidade de repetições.
Sobreposições de falas, gestos, modulações de intensidade e altura formam uma
densa malha sonora. As repetições costumam gerar ritmo e também ajudar na
previsibilidade. E, ao contrário do que acontece no caso da música, os ritmos da
fala são previsíveis, mas não-periódicos.
Realmente, as pessoas não falam respeitando uma estrutura de compasso,
batendo a tônica nos tempos fortes. São raras as seqüências em que isso acontece.
E, no entanto, o discurso normal exibe certa previsibilidade dos padrões
temporais. É possível prever intuitivamente como se organiza sua forma temporal.
Todas as línguas exibem padrões de duração e de ênfase silábicas sem os quais
sua pronuncia torna-se não apenas artificial, mas difícil de entender. Um ritmo
poética foi absolutamente crucial para as primeiras fórmulas fixadas”. (Cf. Bruce Richman, In.
Nils L. Wallin, Björn Merker, Steven Brown, op.cit.., p.311) (Tradução Livre)
185
próprio que contribui ativamente para a percepção da língua, que a torna mais
previsível e confortável. David Huron explica que “a dificuldade de
processamento é um dos sintomas da expectativa imprecisa. Ouvintes esperam
que os aspectos temporais do discurso se conformem aos padrões convencionais
de discurso – mesmo que esses padrões não necessariamente sejam de natureza
periódica”.243 A correspondência de expectativas entre quem fala e quem ouve
pode gerar sincronia. Essa sincronia rítmica e interativa é crucial para que as
pessoas possam prever e entender os fluxos comunicativos e os movimentos dos
outros. Quando algo engraçado é contado, todos riem ao mesmo tempo, pois
estavam pulsando em fase. Se duas pessoas falam a mesma fórmula verbal
concomitantemente no meio disso, revela-se uma espécie de concordância; cria-se
um princípio de empatia.
A velocidade e a fluência de grande parte das conversas que temos em nosso
dia a dia pressupõe, de certa maneira, a existência de verdadeiras fórmulas
verbais, blocos inteiros de palavras, que, embora possam ser decompostos em
unidades menores, tendem a ser usados como locuções inteiras – significados
compactados. Quer dizer que tendemos a nos comunicar a maior parte do tempo
por locuções holísticas abertas, de estrutura pré-moldada – “oi, tudo bem?”, “o
que é que houve?”, “o próximo, por favor!”. Locuções que funcionam como
estruturas abertas, com espaços passíveis de serem preenchidos por variações de
sentido – “eu quero ir pra casa”/ “eu preciso ir pra casa”/ “eu adoraria ir pra
casa”.244 E que, por já virem previamente montadas, podem ser retiradas com
grande agilidade, sem que seja necessária a aplicação de regras gramaticais – sem
que para isso seja preciso um extenuante trabalho mental. Lembra um processo de
montagem, no qual agregados de palavras ganham sucessão temporal, criando
sentidos. A utilização de fórmulas preexistentes, que podem ser manipuladas e
reconstruídas de variadas maneiras, constitui também um dos principais
dispositivos de redundância do discurso musical, junto com a repetição e o alto
nível de previsibilidade do que está por acontecer.245 Há um verdadeiro baú de
243
“Processing difficulty is one of the symptons of inaccurate expectation. Listeners expect the
temporal features of speech to conform to conventional speech patterns – even though these
patterns may not be periodic in nature”. (Cf. David Huron, op.cit.., p.188) 244
Para melhor iluminar o trabalho mental de articulação da fala, a lingüista Alison Wray cunhou
o conceito de formulaic phrases - “prestored in multiword units for quick retrieval, with no need to
apply grammatical rules”. Ver Steven Mithen, op.cit.., p.277. 245
Ver, nesse sentido, Bruce Richman, op.cit.., p.304.
186
temas, riffs, motivos e padrões rítmicos e melódicos que funcionam um pouco
como as fórmulas utilizadas no discurso verbal. São espécies de diretrizes de
estilo – esquemas, linhas gerais que no mais das vezes embora alteradas nos
detalhes costumam obedecer a premissas mais amplas. Padrões que, ao serem
trazidos para dentro da composição musical, ajudam a gerar as bases de boa parte
das expectativas que conduzem a escuta. Desse modo, tanto a música quanto a
fala tiram proveito de nossa paixão por reunir coisas.
Num certo sentido, a evolução esteve (está) muito mais próxima do falante
que fala com capacidade de encantamento, de impacto emocional, de fascínio e
inteligência rítmica, daquele que revela de modo mais nítido que todo discurso é
um discurso do corpo inteiro, do que da monotonia fria e tediosa de um orador
insípido. De fato, uma intensa expressividade emocional devia estar na origem da
comunicação vocal desde os seus primórdios. Talvez seja necessário ir além do
sentido pragmático da comunicação, como se ela sempre almejasse uma ação, um
resultado. Pois para além do sentido das palavras, a vocalização humana parece
ter um fim em si mesma. Seu objetivo é simplesmente criar laços, manter as
pessoas juntas, envolvidas numa atividade comum. E podemos dizer que é da
fruição das qualidades “musicais” da fala que brota uma considerável dose do
prazer da conversa. Falar, simplesmente falar e ouvir: a vocalização por si só
parece ser uma das principais forças de conexão entre as pessoas. Se perdemos um
pouco a sensibilidade para notar esse rio submerso que corre sob o sentido
imediato e mais pragmático do discurso, é porque aparentemente passamos a focar
demasiadamente a atenção sobre as palavras – como se estas fossem entidades
abstratas(talvez pudéssemos dizer que são as canções que recuperam o esquecido
prazer sonoro das palavras, transitando entre o signo mental e o gozo sensual dos
sons puros, retomando o vínculo ancestral com as vocalizações dos primeiros
hominídeos). Não devemos esquecer que também as palavras estão inseridas na
grande performance corporal que é o ato de falar. É através da combinação de
diferentes gestos vocais de expressão emocional, gestos cotidianamente usados,
que podemos ter uma ideia aproximada do imenso e sofisticado repertório natural
de matérias vocais inicialmente disponíveis para serem usadas na linguagem
socialmente construída.
Para melhor apreciar as diversas dimensões que se entrelaçam e se
completam na fala moderna, e seus vínculos profundos com as mesmas
187
capacidades que fazem de nós seres extremamente musicais, será necessário
seguir o princípio segundo o qual é da complexidade que vem a complexidade.
Devemos seguir o princípio segundo o qual na base de comportamentos
complicados como a linguagem humana estão não a pobreza de recursos,
milagrosamente convertida em potencialidade nova, mas a própria riqueza e
diversidade. Seja sob o ponto de vista da biologia ou da cultura, é preciso pensar
que a complexidade sempre vem de outra complexidade que a antecede, uma
complexidade que operava num espaço distinto. Jamais surge do nada. O que nos
afasta da versão caricatural dos primeiros hominídeos grunhindo e apontando para
os objetos. A versão comum de que a linguagem começou com locuções
monossilábicas, isoladas, espécies de proto-palavras, não consegue explicar como
foi que essas unidades separadas foram depois unidas em longas e fluentes
seqüências. “There are good reasons for assuming that each feature of many-
voiced talking represents primary, original features of human spoken
vocalizations and not later developments. The long sequences that occur today can
only have come from a history of people producing long sequences. People must
have been quite adept at producing such sequences quite fluently from a very
early time.(...) In addition, rhythmic complexity must have come from previous
rhythmic complexity. The incredibly intricate rhythmic forms of speech and
speech interaction that occur when many voices converse must have come from a
long history of intricate control and many-voiced interaction of rhythms”.246 O ato
da fala seria, desse modo, uma atividade motora. Os lançamentos acurados teriam
ajudado os hominídeos a melhor sobreviver aos episódios de resfriamento nos
trópicos. Ao criar uma tecnologia da caça, teria também os tornado mais
adaptados ao inverno em zona temperada. Tornaram-se mais adaptados à
diversidade climática do planeta. Podiam migrar com mais facilidade para outras
regiões. É possível que o planejamento das atividades de caça tenha servido de
incentivo para potencializar a capacidade de comunicação entre esses primeiros
homens. Há um percurso óbvio que leva da projeção mental da palavra à sua
246
“Existem boas razões para supor que cada aspecto da fala multi-vocal representa aspectos
primários, originais, da vocalização humana, e não desenvolvimentos posteriores. As longas
seqüências que ocorrem hoje só podem ter vindo da história de pessoas que produziam longas
seqüências. Essas pessoas devem ter sido aptas a produzir tais seqüências de modo bastante fluente
desde tempos muito remotos.(...) Além do mais, a complexidade rítmica deve ter vindo de uma
complexidade rítmica anterior. As incrivelmente intrincadas formas rítmicas do discurso e a
interação que ocorre quando muitas vozes conversam deve ter vindo de uma longa história de
intrincado controle e interação multi-vocal de ritmos”. (Cf. Bruce Richman, op.cit.., p.309)
188
realização concreta através da mecânica corporal. É quando ela ganha o peso da
carne.
Mas há também um percurso reverso, através do qual o próprio movimento
do corpo reflete-se nas ideias, na capacidade cognitiva, no pensamento. Nietzsche
foi um dos pensadores que trouxe essa problemática para o centro da filosofia.
Dizia não acreditar em nenhum pensamento no qual não tivessem tomado parte os
músculos. Era um pensador peripatético, que costumava colher boa parte de suas
reflexões durante caminhadas. Rejeitava enfaticamente qualquer distinção entre
corpo e alma, tentando acabar com a divisão habitualmente feita pela filosofia
desde Platão. Tencionava reabilitar o corpo, aviltado pela tradição cristã como
porta para o pecado. Perdido, desqualificado diante de uma alma que poderia
ainda se salvar. Nietzsche inverte o jogo. O corpo torna-se o ponto de partida. A
filosofia passa a ser vista como a transposição do estado fisiológico do filósofo
em pensamento puro.247 Ou seja, ela nasce no corpo do filósofo – os conteúdos
mentais são projeções dos estados do organismo. A consciência é apenas um
acessório, um instrumento, um sintoma de algo mais rico e vivo: o corpo, não
apenas superior mas também anterior à própria consciência. É preciso pensar que
grande parte de nossa vida corre sem a necessidade de uma reflexão consciente.248
E é justamente no corpo que o pensamento recebe sua informação, que encontra o
seu modelo. Os pensamentos e apreciações de valor sendo expressões de impulsos
profundos, de uma vida vasta que se desenrola fora do alcance da pequena janela
da consciência. “Para Nietzsche, o homem se insere na vida pelo seu corpo. O
corpo é que é o centro da interpretação e organização do mundo. O corpo é
247
“(...) precisamente essa arte da transfiguração é filosofia. A nós, filósofos, não nos é dado
distinguir entre corpo e alma, como faz o povo, e menos ainda diferenciar alma de espírito. Não
somos batráquios pensantes, não somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas
– temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes
maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e
fatalidade que há em nós. Viver – isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e
flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo”. (Cf.
Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, prefácio, §3) 248
A pesquisador Rosa Dias escreve que “para Nietzsche, mesmo o pensamento mais abstrato é
secretamente conduzido pelos impulsos. É legítimo considerar que mesmo a metafísica e
particularmente as respostas que ela dá à questão do valor da existência são sintomas de
constituições corporais próprias a determinados indivíduos, de sua abundância e de sua potência
vitais, de sua soberania na história ou, ao contrário, de suas indisposições, de seu esgotamento, de
seu empobrecimento, de seu pressentimento do fim, de sua vontade de acabar”. (Cf. Rosa Dias,
Nietzsche, Vida Como Obra de Arte, Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 2011, p.53)
189
pensador”.249 No seu Zaratustra, o filósofo alemão chega a escrever que “a alma é
somente uma palavra para alguma coisa no corpo”.
Dada a centralidade do corpo em seu pensamento, não espanta que
Nietzsche tenha reconhecido com profundidade a força do ritmo. Que tenha
enxergado nele (e na música em geral) um elemento essencial na reintegração
alma-corpo. Era o ritmo o responsável por fazer com que, através da dança, o
corpo se transformasse em música, se unificasse com ela, e que, assim, afetasse a
própria alma. Escreveu o pensador alemão que “muito antes que houvesse filósofo
atribuía-se à música o poder de desafogar os afetos, purificar a alma, abrandar a
ferocia animi (ferocidade do ânimo) – e isto precisamente pelo ritmo na música.
Quando era perdida a justa tensão e harmonia da alma, era preciso dançar,
seguindo a cadência do cantor – era a receita dessa terapia. “Com ela Terpandro
pacificou um tumulto, Empédocles acalmou um doido enfurecido e Dâmon
purificou um jovem que definhava de amor; com ela também foram tratados os
deuses enraivecidos e ávidos de vingança”.250
Não deixa de ser interessante notar o modo como as reflexões de Nietzsche
a esse respeito encontram ressonância em alguns pensamentos elaborados no
campo da neurociência. Recentemente, em 2010, Antônio Damásio escreveu que
“o corpo e o cérebro ligam-se”. Que temos nosso corpo na mente. Mais: que o
cérebro introduziu o corpo como um conteúdo do processo mental. Que graças a
ele, o corpo tornou-se um tema natural da mente. Que há uma incessante
comunicação de mão dupla entre os dois. A ideia que eu gostaria de enfatizar é
que de algum modo o corpo não apenas influencia, mas está no pensamento – é
constitutivo dele. Que um modo diferente de usar os músculos, de construir a
presença corporal, de distribuir ritmicamente as ações seria capaz de gerar
também distintos modos de pensar, de olhar e criar o mundo. Nietzsche intuiu
isso. Nos aconselhou em Ecce Homo a “não dar crença ao pensamento não
nascido ao ar livre, de movimentos livres – no qual também os músculos não
festejem”.251 Criou a famosa figura de um filósofo dançarino, de modo a sublinhar
as relações entre os movimentos que regem a unidade da vida – o movimento do
corpo transmitindo-se ao movimento do pensamento, e vice-versa. Essa mesma
249
Cf. Rosa Dias, op.cit.., p.50 (grifo meu) 250
Cf. Friedrich Nietzsche, op.cit.., p.112. 251
Cf. Friedrich Nietzsche, Ecce Homo: Como Alguém se Torna o que é, São Paulo, Companhia
das Letras, 1995, §2.
190
imbricação foi evocada por Damásio nos termos de uma “dança interativa
contínua” entre corpo e cérebro. “Pensamentos implementados no cérebro podem
induzir estados emocionais que são implementados no corpo, enquanto este pode
mudar a paisagem cerebral e, assim, a base para os pensamentos. Os estados
cerebrais, que correspondem a certos estados mentais, levam à ocorrência de
determinados estados corporais; os estados do corpo são então mapeados no
cérebro e incorporados aos estados mentais correntes”. Ou seja, um ciclo sem fim.
...
Os aspectos mais estáveis do corpo são representados no cérebro como
mapas que contribuem com imagens para a mente. Da repetição de experiências
físicas desde o momento em que nascemos, definidas pelos padrões dinâmicos de
interação do corpo humano com o ambiente, formam-se as estruturas cognitivas
mais elementares que serão a base de nossos sistemas conceituais. Essas
estruturas cognitivas são espécies de “imagens” mentais que situam-se em algum
lugar entre o concreto, específico das imagens visuais, e a abstração dos conceitos
(a partir daqui, sempre que eu quiser me referir a elas colocarei a palavra
“imagem” em itálico). Diferem das imagens visuais e dos conceitos abstratos pelo
fato de que podem trazer, embutido nelas, um componente cinestésico (sentido
pelo qual se percebem os movimentos musculares, o peso e a posição dos
membros), sendo capazes de representar sensações musculares em relação a
determinadas experiências (Einstein chamava a essas imagens de “imagens
musculares”). Ou seja, as imagens podem evocar uma “impressão” física
particular. Nosso entendimento de conceitos como “dentro” e “fora”, de imagens
que representam sentidos de orientação espacial como “no alto” e “embaixo”,
assim como o encadeamento causal entre eventos, não é puramente linguístico.
Ele vem acompanhado dessas imagens genéricas, esquemáticas, que não se
confundem com a imagem específica de algo. Para fazer sentido, as imagens
solicitam uma espécie de “espaço” imaginário, uma geografia interna.
A ideia que está presente Damásio, e também nos escritos de Rodolfo
Llinàs, é que “o tipo especial de imagens mentais do corpo produzidas nas
estruturas cerebrais mapeadoras do corpo constitui o protosself, que prenuncia o
191
self”.252 Desse modo, as estruturas cerebrais que formam a base de nossa
consciência, de nosso próprio self, não são apenas referentes ao corpo. Antes, elas
são ligadas a ele de um modo inextricável. É sobre o corpo que se assenta o
núcleo mais profundo de nossa própria noção de eu.253 Não há uma fronteira nítida
separando corpo e cérebro. A mente é construída pelo cérebro não a partir do
córtex evolutivamente mais recente, mas a partir do tronco cerebral superior, uma
parte mais antiga e também presente em muitas outras espécies. Uma parte que,
como diz Damásio, está “eternamente ligada ao corpo”. E não somente à
regulação de seus funcionamentos internos – células agrupando-se em tecidos,
tecidos agrupando-se em órgãos, órgãos agrupando-se em sistemas - mas também
à locomoção e interação desse corpo com o mundo externo. A consciência é o
percurso que vai do nível mais difuso e elementar ao mais complexo. Somos a
soma da convivência de estados conscientes e não conscientes. O conhecimento
oculto da complexa gestão da vida precedeu o pensamento consciente sobre esse
conhecimento. Aquilo que definimos como eu, o self consciente, pode ser
definido como a voz que sintetiza a multidão de vozes de um grande coletivo de
vontades que é o corpo.
Na base dessa arquitetura está o elemento fundamental do sistema nervoso:
o neurônio. O neurônio é a célula nervosa cujo atributo singular é a capacidade de
mudar o estado de outras células. Usam seus sinais elétricos ou químicos para
influenciar outras células. Se a célula em questão é uma fibra muscular, ocorre
então o movimento. De fato, os neurônios existem em benefício dessas outras
células. Em seres multicelulares, eles assistem à gestão da vida no corpo.
Regulam-na. Os bilhões de neurônios do cérebro são capazes de tecer trilhões de
contatos sinápticos. Organizam-se em circuitos microscópicos. Esses circuitos
252
Damásio resume sua teoria das “etapas” do self do seguinte modo: “O self é construído em
passos distintos e tem seu alicerce no protosself. O primeiro passo é a geração de sentimentos
primordiais, os sentimentos elementares da existência que surgem espontaneamente do protosself.
O seguinte é o self central. O self central refere-se à ação – especificamente, às relações entre o
organismo e os objetos. O self central manifesta-se em uma seqüência de imagens que descrevem
um objeto do qual o protosself está se ocupando e pelo qual o protosself, incluindo seus
sentimentos primordiais, está sendo modificado. Finalmente, temos o self autobiográfico. Esse self
é definido como o conhecimento biográfico relacionado ao passado e ao futuro antevisto. As
múltiplas imagens que em conjunto definem uma biografia geram pulsos de self central, cujo
agregado constitui o self autobiográfico”. (Cf. António Damásio, op.cit.., p.38) 253
“Notavelmente, as estruturas cruciais de mapeamento corporal e de formação de imagens estão
localizadas abaixo do nível do córtex cerebral, em uma região conhecida como tronco cerebral
superior. Essa é uma parte antiga do cérebro, encontrada também em muitas outras espécies”. (Cf.
António Damásio, Idem, p.36)
192
combinam-se em circuitos cada vez maiores, formando redes ou sistemas.
Compõem, desse modo, padrões momentâneos de interação. Na arquitetura
cerebral, os macrofenômenos do sistema são construídos a partir de
microfenômenos. António Damásio argumenta que aquilo que chamamos de
mente (mind), no sentido mais amplo do termo, seria o produto dessa atividade
neuronal. A visão aqui é contrária à tradicional divisão entre corpo e mente
proposta por Descartes. Ela contraria nossa intuição imediata de que as efêmeras e
voláteis atividades da mente não têm extensão física. A hipótese monista de
Damásio é de que os fenômenos mentais são equivalentes a certos tipos de
fenômenos cerebrais – ou seja, possuem uma base física. Não há separação entre
uma substância mental e outra biológica. A mente herda a atividade do tecido
cerebral. Os padrões momentâneos representam fenômenos e objetos que estão
fora do cérebro – no corpo ou no mundo exterior. Mas voltam-se também sobre si
mesmos: representam o próprio processamento cerebral desses padrões.
Nos estudos da neurociência, esses padrões representativos são
denominados de mapas. Alguns são mais concretos, outros mais abstratos; alguns
são refinados, outros são toscos. O cérebro mapeia incessantemente. Mapeia o
mundo ao redor e também a sua própria atividade. Isso quer dizer que os mapas
são formados de fora para dentro. Na interação do corpo com objetos, pessoas,
lugares. Ou seja: somente através da mediação do corpo torna-se o cérebro capaz
de mapear o mundo externo. Somente assim os sinais do mundo podem adentrá-
lo. Somente através de suas fronteiras. Da pele. Das sondas sensoriais
especializadas, como ouvidos e olhos. “O corpo interage com o meio circundante,
e as mudanças causadas no corpo pela interação são mapeadas no cérebro”.254
Quando mapeia, o cérebro informa a si. E o mapeamento começa,
justamente, direcionado ao próprio corpo que contém o cérebro. Em cérebros
complexos como o nosso, os mapas conseguem descrever o corpo e suas ações de
modo tão refinado que somos capazes de “imaginar” a forma dos nossos membros
e suas posição no espaço. Mas aqui acontece algo diferente: embora seja
mapeado, o corpo jamais perde contato com o mapeador, o cérebro. E desse modo
as imagens mapeadas do corpo influenciam permanentemente esse mesmo corpo.
254
Cf. António Damásio, Idem, p.121.
193
O próprio ato de mapear muda o objeto mapeado. Cria-se com isso uma interação
dinâmica que difere do caso no qual o objeto mapeado é externo ao corpo.
Em nossas mentes, tais mapas são vivenciados como imagens. Estas são o
principal meio circulante da mente. Como já foi dito, o termo imagem não se
restringe às imagens visuais. Tudo aquilo que é originado em nossos sentidos
formam imagens. Elas podem ser auditivas, táteis, e mesmo viscerais (a sensação
que se tem em partes internas do corpo). Mais do que isso, elas parecem
incorporar uma dimensão motora. Porque os sentidos servem ao movimento.
Rodolfo Llinàs as denomina mais detalhadamente de imagens sensório-motoras:
“a conjunção ou reunião de todos os estímulos sensoriais relevantes para gerar um
estado funcional específico que pode eventualmente resultar em ação”.255 É desse
modo que, mais do que mapear os estados que estão ocorrendo no momento, o
cérebro é capaz de mudar o corpo e até de simular estados corporais que ainda
não ocorreram. Essa simulação antecipada permite reduzir o tempo de
processamento de informação e poupa assim energia. No caso do sentido da visão,
quando estruturas motoras estão prestes a executar um movimento, precisam
“informar as estruturas visuais da consequencia provável desse movimento no que
respeita ao deslocamento espacial”.256 Desse modo, a simulação serve como uma
espécie de aviso: ela permite que a região visual possa prever a consequencia do
movimento que está prestes a ser realizado e se preparar assim para facilitar a
transição de foco, evitando que a imagem torne-se borrada. Boa parte das
previsões feitas pelo cérebro seguem a mesma finalidade.
Das representações mais elementares do corpo, o self irá depois referir-se à
ação – às relações entre os organismos e os objetos. A relação imbricada entre os
mundos interno e externo. Uma mente criada para executar movimentos.
Movimentos cada vez mais complexos, refinados pelos surgimento dos músculos
estriados que hoje usamos para andar e falar. O sistema nervoso é um
equipamento biológico exclusivo dos seres que se locomovem ativamente. Plantas
não precisam de sistema nervoso.
255
“When using the term sensorimotor image, I mean something more than visual imagery. I refer
to the conjunction or binding of all relevant sensory input to produce a discreet functional state
that ultimately may result in action”. (Cf. Rodolfo Llinàs, op.cit.., location 96) 256
Cf. António Damásio, op.cit.., p.98.
194
The nervous system has evolved to provide a plan, one composed of goal-oriented,
mostly short-lived predictions verified by moment-to-moment sensory input. This
allows a creature to move actively in a direction according to an internal
reckoning—a transient sensorimotor image—of what may be outside.257
É o movimento organizado que termina por gerar a mente.
Levando ao limite a ideia de uma interação simbiótica, circular, entre
mente-self-corpo-cérebro, ação e mapas, movimentos e mente formam um único
vórtice. O mapeamento, que ocorre de fora para dentro, tampouco é uma
transferência passiva para o interior do cérebro. Porque o cérebro não é uma
tabula rasa. Criou, no longo processo evolutivo, estruturas que lhe permitem
melhor lidar com o imenso manancial de informação que lhe chega através dos
sentidos. Desse modo, ele contribui ativamente para emular o mundo externo.
Para, num certo sentido, montá-lo dentro de si. Isso quer dizer que tudo o que está
fora do cérebro é imitado em suas redes neuronais. Do corpo propriamente dito a
tudo mais que nos circunda – objetos, pessoas, lugares e eventos -, tudo é imitado.
Porque “o cérebro tem a capacidade de representar aspectos da estrutura das
coisas e eventos não pertencentes ao cérebro, o que inclui as ações executadas por
nosso organismo e seus componentes, como os membros, partes do aparelho
fonador etc”.258 Damásio sugere que a própria estrutura do cérebro, com seu
reticulado vertical, seria “ideal para representações topográficas explícitas de
objetos e ações”.259 Há mesmo uma fidelidade de correspondência entre padrões
mapeados no cérebro e os objetos reais que serviram de base para esse
mapeamento. Observando o córtex visual de macacos, pesquisadores chegaram a
constatar que havia uma forte correlação entre a estrutura física de um estímulo
visual e o padrão neuronal por ela gerado. Uma cruz dispararia um padrão de
algum modo análogo à sua forma, enquanto um círculo despertaria uma atividade
diferente, mais afim com sua estrutura formal.
De modo semelhante, já foi observado que as alturas sonoras (as
frequências) também são representadas diretamente no cérebro. Ou seja, um
mesmo som ativa o mesmo circuito no córtex auditivo. A estrutura desse
257
“O sistema nervoso se desenvolveu para fornecer um plano de ação, um plano feito de
pequenas previsões verificada a cada momento através dos estímulos sensoriais. Isso permite que a
criatura possa mover-se ativamente em determinada direção de acordo com uma avaliação interna
– através de uma imagem sensório-motor passageira – do que deve se o meio externo”. (Cf.
Rodolfo Llinàs, Idem, location 358) 258
Cf. António Damásio, op.cit.., p.88. 259
Cf. Idem, Ibidem, p.90.
195
mapeamento está inscrita no próprio corpo, na estrutura tonotópica da cóclea, no
ouvido interno. Ali, dentro da rampa espiralada, as células ciliadas movem-se sob
o balanço da energia sonora, amplificada pela estrutura da orelha e pelo líquido do
ouvido interno que conduz os impulsos. De fato, a orelha lembra um pequeno
aquário – as vibrações sonoras são peixes nadando nele. A disposição das células
ciliadas é ordenada de modo a responder diretamente às frequências sonoras que
compõem o espectro possível de nossa audição. As frequências mais altas, os
agudos, estão na base da rampa. Conforme a subimos, encontramos as células que
respondem às frequências mais baixas. Cria-se, desse modo, um mapa espacial de
tons possíveis, ordenados por frequências. O movimento das células ciliadas
provoca uma corrente elétrica captada pelo terminal axonal de um neurônio.
Começa uma longa cadeia de sinalizações – que passa por vários núcleos de
memória, de filtros adquiridos, culturais – até desaguar na representação final do
som que escutamos. Ou seja: visuais, auditivas, ou de qualquer outra procedência,
as imagens são experimentadas diretamente - mas somente pelos possuidores da
mente na qual ocorrem. Ainda que possamos observar a tendência a uma
reprodução direta no córtex, nenhum observador exterior pode ter acesso ao modo
como as imagens realmente são experimentadas pela mente. O que levou Rodolfo
Llinas a dizer que há, na relação entre cérebro e mundo externo, uma relação de
isomorfismo mas não de homomorfismo.
O importante é notar que tudo isso acontece no contexto do movimento. Os
mapas resultam da atividade momentânea de grupos de neurônios que formam
padrões no espaço e no tempo. Esses padrões se distinguem de um fundo,
digamos assim, formado por neurônio inativos. São mapas instáveis, ultra-
flexíveis, que mudam continuamente para refletir as mudanças no interior do
corpo e no mundo à nossa volta. Mudanças decorrentes do fato de que estamos –
tudo está - continuamente em movimento. Mapas que são vivenciados como
imagens transitórias, formadas nas regiões sensoriais e motoras do cérebro. É
preciso notar que os mapas e as imagens não param de ser formados, mesmo
quando não estamos conscientes deles. Há, incessantemente, um trabalho sendo
feito nos bastidores. Capaz de influenciar nosso pensamento e nossas ações.
Mapas e imagens podem também ser gravados na memória, trazidos de volta por
associação ou pela imaginação. Revividos no corpo. Fazem com que nossa
196
existência seja a combinação fluida, inapreensível, de fenômenos em curso e
imagens evocadas.
O jogo se torna ainda mais complicado quando pensamos que existem
disposições verticais de neurônios, em regiões mais profundas do córtex que
também formam mapas. Os três tipos de mapas – visual, auditivo e somático –
possuem registro espacial. Encaixam-se uns nos outros. Suas informações são
sobrepostas de modo tão preciso que os dados da visão correspondem aos da
audição, ou ao estado do corpo. Verdadeiros acordes mentais, literalmente dando
corpo à multidão de sensações que experimentamos a cada momento. Imagens de
estímulos do mundo externo sobrepondo-se à imagens de componentes do corpo
que sente. Visões, formas, cores, timbres, padrões rítmicos, sensações táteis,
misturando-se com sensações das articulações, dos músculos, das vísceras. Há
uma incrível perspectiva de integração nisso – integração que se faz ainda maior
porque seus resultados podem conduzir ao sistema motor. Sentidos e movimentos
trançados para gerar uma ação eficaz. Fazendo dialogar diferentes partes do
sistema nervoso – tronco cerebral, medula espinhal, tálamo e córtex cerebral.
É preciso notar que a integração capaz de unificar a “multidão de
sensações” que experimentamos a cada instante – o próprio caráter inapreensível
de nosso estar no mundo – ocorre não apenas através de um encaixe espacial
desses mapas, mas ocorria também através de uma dimensão temporal – rítmica.
De fato, para que haja uma coordenação afinada de diferentes sinais externos dos
sentidos, para que esses sinais não se percam no turbilhão do cérebro, mas
mantenham-se juntos enquanto são processados, não basta haver apenas uma
organização espacial das redes neuronais. Os complexos mapas construídos em
diversos locais do cérebro precisam ser relacionados em conjuntos coerentes. Faz-
se necessária, portanto, uma coordenação temporal. Essa coordenação é
responsável pelo surgimento de estados mentais – o resultado de uma vasta
sinalização recursiva que envolve várias regiões do sistema nervoso. Circuitos de
diferentes regiões do cérebro ressoam uns com os outros, como cigarras numa
noite de verão. Entram em fase. Sincronizam-se. Para indicar alguma combinação
de características, os neurônios precisam trabalhar juntos sincronizando suas taxas
de disparo – o ritmo de sua atividade elétrica. Ao formar imagens perceptuais, os
diversos neurônios envolvidos que estão em regiões espacialmente separadas
197
mostram oscilações sincronizadas.260 Diferentes grupos de neurônios capazes de
apresentar comportamentos oscilatórios “percebem” ou decodificam diferentes
aspectos de um mesmo sinal vindo do exterior. Podem então juntar seus esforços
ressoando em fase uns com ou outros – gerando uma coerência oscilatória. É daí
que vem a primeira grande abstração gerada pela mente: a ilusão da unidade; os
diversos sentidos sincronizados para a geração de uma integração perceptual. O
ritmo é, portanto, um grande meio de comunicação e organização do próprio
cérebro. Redes neurais afastadas no espaço, podem ligar-se por meio de uma
atividade organizada no tempo. Para isso, contudo, é preciso um relógio interno
capaz de orquestrar essa grande sincronização. Uma pulsação de base, a partir da
qual se constroem as variações rítmicas.
Essa pulsação de base parece ser gerada pelas propriedades oscilatórias
intrínsecas dos neurônios. A simultaneidade da atividade neural torna-se possível
graças a atividade elétrica oscilatória. “Muitos tipos de neurônios no sistema
nervoso são dotados de tipos particulares de atividade elétrica intrínseca que os
imbui de propriedades funcionais específicas”.261 De fato, a simultaneidade da
atividade neural parece ser o mais difundido modo de operação do cérebro. A
oscilação neural provê o meio para que essa simultaneidade ocorra de modo
organizado, previsível, quando não contínuo. É o relógio interno que todos nós
possuímos.Trata-se de uma dinâmica de variação da voltagem que ocorre na
membrana dessas células. A voltagem oscila em movimento sinusoidal, como as
pequenas ondas geradas por uma pedra que cai sobre a água parada de um lago.
Quando a distância temporal entre essas pequenas ondas é reduzida, amplia-se a
frequência dos disparos, da atividade elétrica do neurônio. Oscilando em fase, os
neurônios trabalham juntos de modo amplificado, através de uma dinâmica de
ressonância. Mas nem todos os neurônios ressoam o tempo todo. Pois uma de
suas propriedades cruciais é justamente poder ligar-se ou desligar-se do modo
oscilatório no qual se engajam. Isso permite que a ressonância ocorra de modo
passageiro entre diferentes grupos de neurônios em diferentes momentos.
260
O neurocientista Wolf Singer foi o primeiro a demonstrar isso em cérebros de macacos. Ver
António Damásio, op.cit.., p.116. 261
“Many of the types of neurons in the nervous system are endowed with particular types of
intrinsic electrical activity that imbue them with particular functional properties. Such electrical
activity is manifested as variations in the minute voltage across the cell’s enveloping membrane.
This voltage may oscillate in a manner similar to the traveling, sinusoidal waves that we see as
gentle ripples in calm water, and are weakly chaotic”. (Cf. Rodolfo Llinàs, op.cit.., location 220).
198
Somente assim são eles capazes de representar uma realidade que muda
incessantemente. Tudo isso gera agilidade temporal no sistema e também aponta
para o modo de operação descontínuo do cérebro. Em certo sentido, do ponto de
vista do processamento de informação, o cérebro não está o tempo todo online.
Antes, possui uma dinâmica pulsátil.
Essa dinâmica reflete-se no tremor fisiológico que forma a grade temporal
de todos os movimentos do corpo. Tremor que experimentamos quando tentamos
ficar totalmente parados. Mas que também sublinha todas as nossas ações, sem
que tenhamos consciência disso. Uma pulsação de fundo entre 8 e 12Hz, uma
oscilação rítmica altamente regular, que promove uma organização de base para
todo o sistema. A melodia cinética determinada não pelos músculos, como
geralmente se pensa, mas pelo próprio centro de controle no cérebro.262 Um
tremor associado com o impulso inicial dos movimentos – que começam em fase
com ele - e também com a direção destes (movimentos dirigidos para cima são
iniciados durante a fase ascendente do tremor).263 Há muito já se sabe disso:
apesar da ilusão de continuidade, os movimentos são descontínuos. Séries de
contrações musculares separadas – de modo a se encaixarem nessa grade
temporal, na dinâmica pulsátil do próprio sistema nervoso.264 O controle pulsátil
“lineariza” a população não-linear e independente de elementos neurais
assegurando uma resposta uniforme, coerente e articulada. Muitas vezes os
262
Sobre isso, escreve Rodolfo Llinàs: “The stretch reflex is a simple, negative feedback
mechanism involving a muscle fiber and its associated segmental spinal cord circuitry; when a
muscle is passively stretched this compensatory reflex causes a subsequent contraction. From the
latency of this reflex (from stretch to contraction) that these authors calculated, they were able to
conclude that the reflex could not explain the timing of the tremor components seen in the above
study. Hence, Wessberg and Vallbo (1995) suggested that the drive causing these periodic
components must derive from brain structures higher than the spinal cord”. (Cf. Idem, Ibidem,
location 538) 263
“We see that the underlying nature of movement is not as smooth and continuous as our
voluntary movements appear; rather, the execution of movement is a discontinuous series of
muscle twitches, the periodicity of which is highly regular. Furthermore, this physiological tremor
is apparent even at rest (when we are not actively making movements). Indeed, the tremor is
highly associated with movement onset and movement direction. For instance, upward movements
are initiated during the ascending phase of physiological tremor”. (Cf. Idem, Ibidem, location 545) 264
Pesquisadores notaram que as discontinuidades fisiológicas nos movimentos voluntários eram
de certo modo independentes da velocidade do movimento e da eventual carga imposta ao membro em ação. A taxa máxima de movimento voluntário repetitivo não pode exceder a taxa do
tremor fisiológico do músculo. Este tremor rítmico perdura inalterado em sua periodicidade,
independente da velocidade do movimento ou mesmo do fato de não haver qualquer tipo de
movimento ou força agindo sobre o músculo. A respeito disso, Llinàs faz a seguinte observação:
“In the last 15 years or so, it has become clear that the 8–12 Hz rhythmicity of physiological
tremor is observed not only during voluntary movement, but also, and perhaps to a greater extent,
during maintained posture and in supported limbs at rest”. (Cf. Idem, Ibidem, location 531)
199
neurônios motores a serem recrutados para determinado movimento estão
separados por muitas vértebras. A simultaneidade é tão importante para a
integração perceptual que, dadas as diferentes distâncias percorridas pelos
estímulos vindos das antenas sensoriais, o corpo chega a regular com precisão a
velocidade de condução desses estímulos para que cheguem juntos no córtex.
Trata-se de uma afinação temporal que visa a sincronia. De modo semelhante
ocorre a sincronia motora.
O mecanismo pulsátil desempenha então um papel unificador, capaz de
sincronizar essas atividades neurais e motoras. Por fim, um sistema de controle
periódico é também capaz de unificar temporalmente os estímulos que entram e os
comandos gerados pelo próprio cérebro. “In other words, this type of control
system might enhance the ability of sensory inputs and descending motor
commands to be integrated within the functioning motor apparatus as a whole”.265
Da oscilação elétrica dos neurônios aos tremores da carne o que vai se revelando é
a organização temporal que unifica o corpo dentro de uma mesma entidade
rítmica. Uma sincronização mútua através do ritmo. É difícil não enxergar na
própria música um desdobramento natural dessa intricada produção de tempos
internos.
A perspectiva de integração dos mapas no cérebro pode ir ainda mais longe,
abarcando também o próprio pensamento conceitual. Ao contrário do que
acontece com a linguagem, as imagens não são arbitrárias, pois representam
experiências colhidas diretamente das categorias perceptuais. Acredita-se que os
bebês desenvolvem essas imagens como suas primeiras representações de mundo.
A função original delas seria conectar entre si as seqüências motoras, para, a partir
disso, começar a formular uma representação coerente do mundo físico. Elas
surgem diretamente das experiências físicas que temos muito antes da aquisição
da linguagem. É sobre o modelo a priori da experiência do espaço físico que se
constroem “espaços” conceituais. Fazem a ponte entre nossas experiências
perceptuais e a criação de conceitos. O que nos interessa, nesse ensaio, é que as
imagens servem de referência para a compreensão de ideias abstratas como o
tempo, e, através dele, da própria música. Para que elementos e estruturas de
265
“Em outras palavras, esse tipo de sistema de controle pode ampliar a habilidade de integração
dos estímulos sensoriais e dos comandos motores vindos do sistema nervoso dentro do
funcionamento do aparelho motor como um todo”. (Cf. Idem, Ibidem, location 573) (Tradução
Livre)
200
nosso “esquema espacial” sejam aplicados sobre outros campos da experiência é
necessário criar um espaço metafórico. E a metáfora, nesse sentido, não
necessariamente se dá por uma manifestação da linguagem. Não está limitada a
literatura. As redes associativas podem conectar domínios que não
necessariamente se articulam através da linguagem. Conexões entre quaisquer
tipos de experiências ou memórias em áreas totalmente diferentes da experiência
humana, como no sistema de “correspondances” dos simbolistas. Um jeito de
experimentar uma coisa nos termos de outra. Determinada experiência atual, ou
mesmo uma lembrança, pode se conectar com memórias sonoras, olfativas, táteis,
ou mesmo com as ditas memórias implícitas (memórias de longo termo cujos
conteúdos não estão disponíveis à consciência, como por exemplo as memórias de
habilidades físicas, ou então a memória que guarda autonomamente a distribuição
espacial dos objetos em determinado ambiente),266 tomando a forma de
representações perceptuais básicas. Como já foi dito, o importante é notar que
esse cruzamento de campos de experiência não ocorre de forma arbitrária, mas
está fundado em estruturas cognitivas incorporadas em nossa própria experiência
física. Para entender conceitos abstratos precisamos referenciá-los
metaforicamente nos termos de algo mais concreto. Desse modo, sistemas de
metáforas conceituais podem surgir de imagens pré-conceituais, assim como
diferentes tipos de espaços conceituais podem ser metaforicamente estruturados
ao se referir novamente às mesmas imagens de onde vieram. Talvez haja, como
no poema de Baudelaire, um misterioso fundo comum, através do qual seria
possível alcançar uma “unidade profunda”.
É desse modo que o hábito familiar de conceber as propriedades do tempo
como sendo análogas às do espaço funda-se nas próprias experiências corporais
dos movimentos físicos. Em metáforas espaciais que não são meros jogos de
palavras, mas que guardam ligação estreita com as imagens sensório-motoras às
quais venho me referindo. De fato, antes de Ernest Cassirer falar do vocabulário
espacial que usamos na apreensão do tempo, Bergson já havia notado que
projetamos o tempo no espaço, e expressamos a duração nos termos da extensão.
Desse modo, existem dois tipos básicos de metáforas espaciais para se referir ao
tempo: a metáfora do tempo que se move e a do observador que se move. Em
266
Ver, nesse sentido, Bob Snyder, Music and Memory, p.259.
201
ambas é o nosso corpo que define a referência do movimento. Na primeira, somos
um ponto estático, e o tempo passa sobre nós. Seu aniversário está chegando. O
fim de semana passou voando. O esquema espacial coloca o observador ancorado
no aqui e agora (presente), olhando numa direção fixa (futuro), e com aquilo que
já passou (passado) às suas costas. Um outro conjunto de metáforas emerge
quando é o observador que passa a se movimentar, ao invés do próprio tempo.
Muda-se o esquema espacial. Dizemos: Já estamos no meio de abril. Ou: Levarei
quatro anos para fazer o doutorado. O tempo torna-se uma distância a ser
percorrida.
Esses dois conjuntos de metáforas utilizadas para se referir ao tempo serão
cruciais no entendimento e na própria percepção da música enquanto movimento.
O movimento musical efetivamente é algum tipo de movimento metafórico que
acontece dentro de um espaço metafórico. Não há, portanto, como conceitualizar
o movimento musical sem recorrer a metáforas. Sendo assim, o modo como
concebemos o movimento e o espaço musicais passa a herdar a lógica interna
dessas metáforas. A ideia é de que trazemos a sabedoria implícita da experiência
sensorial do movimento físico (com suas “imagens”) para a própria experiência
musical via metáfora. A conclusão é lógica: se a fonte para a compreensão do
movimento musical for o movimento no espaço, então o modo como aprendemos
sobre o espaço e sobre o movimento físico deve ser fundamental na maneira como
experimentamos e pensamos sobre o movimento musical. Também sua lógica
baseia-se na lógica espacial do movimento físico.267 É difícil imaginar o
movimento musical se não houvesse movimento físico. Parece que somente é
possível experimentar a sensação de movimento musical por conta da experiência
e do entendimento incorporados do movimento físico. E aprendemos sobre o
movimento no espaço de três formas básicas: vemos objetos se moverem;
movemos nosso corpo; e sentimos nosso corpo ser movido por forças externas.
Dessas três experiências básicas, diretamente corporais, não-conceituais e pré-
reflexivas, nasce o amplo domínio do nosso conhecimento sobre o movimento.
A partir desse conhecimento serão criados três conjuntos de metáforas que
utilizamos para conceitualizar o movimento musical. Uma vez que o movimento
267
Sigo aqui a linha de pensamento proposta por Mark Johnson, no que diz respeito às suas
metáforas conceituais. Ver Mark Johnson, The Meaning of the Body: Aesthetics of Human
Understanding, Chicago, The University of Chicago Press, 2007.
202
musical, assim como o movimento físico, se dá através do tempo, as duas
metáforas temporais a que me referi acima são incorporadas ao conjunto. Da
experiência de ver os objetos se moverem nasce a metáfora de uma música que se
move. Para onde está indo essa melodia?, pergunta o músico. Agora vai passar
uma nuvem, dizia Tom Jobim, abrindo espaço para um acorde mais tenso na
harmonia. Quando falamos da música nesses termos queremos dizer que nossa
experiência da escuta musical compartilha algo com a experiência de ver os
objetos se movimentando no espaço físico. Os ouvidos tornam-se olhos. A
metáfora nos leva a conceber a música como um objeto sonoro que se movimenta
num espaço musical. Como acontece com o tempo que se move, somos os
observadores estáticos de um acontecimento que se desdobra no presente da
atenção. Diante de nós, o futuro da melodia que ainda está por vir; atrás, o
passado da melodia que repousa na memória. Retirando-se as implicações
teológicas, lembra bastante o modelo de Santo Agostinho.268 A própria ideia de
um movimento melódico no tempo é uma metáfora. Para que ela funcione, é
preciso ligar sucessivos e distintos eventos sonoros, e criar a noção metafórica de
que eles representam uma única entidade que está se movendo em determinada
direção. É como olhar para painéis com lâmpadas que acendem em diferentes
momentos e criam, assim, a impressão de que um único ponto luminoso está em
movimento. A melodia torna-se uma andarilha, percebida como um elemento
único em contínuo estado de movimento, e não como o que de fato é: uma
sucessão de acontecimentos sonoros distintos.
O que unifica esses eventos sonoros numa única melodia que se movimenta
são parâmetros de proximidade e similaridade que tendem a agrupar os sons já
nos primeiros estágios da percepção. Tendem a examinar as propriedades mais
estáveis dos sons e associa-los como provenientes de fontes específicas. Para isso,
identificam padrões de recorrência e também e também o posicionamento
espacial. É isso que gera uma certa identidade necessária para um melhor
reconhecimento do ambiente externo. Dificilmente perceberíamos como entidade
íntegra e coerente, capaz de gerar a ideia de algo que se transforma sem perder a
268
O próprio tratamento que Santo Agostinho confere à música encaixa-se nessa categoria. A
noção de uma trajetória linear da música, que desenvolve-se nota a nota na direção de um ponto
final – da melodia como modelo reduzido da grande narrativa do mundo – revela muito da
mentalidade histórica, do caráter teleológico da doutrina cristã, mas também aponta para
“imagens” construídas a partir da experiência física comum a todos os seres humanos, usadas
metaforicamente para compreender e criar música.
203
identidade, uma sucessão sonora na qual cada nota fosse tocada de modo
desordenado por um instrumento diferente. A primeira nota sendo atacada por um
trombone, a segunda por um violino, a terceira por um cavaquinho, e assim por
diante. Ainda que as notas estivessem contida dentro do campo de forças de uma
escala, a tendência maior seria percebê-las como momentos autônomos, e não
como uma seqüência melódica coesa.
Mas se a música é um objeto que se movimenta, nossa experiência nos diz
que o movimento se dá através de um caminho, que ele traça um percurso. O
tempo todo segmentamos nossos deslocamentos como indo de um ponto a outro.
Vou da casa ao trabalho. Do trabalho ao restaurante. Na música, projetamos
metaforicamente a experiência desses “percursos” utilizando termos como
passagem musical. Também essas passagens se articulam na tensão entre
movimento (partida) e repouso (chegada). Podem formar trajetórias melódicas.
Ou caminhos harmônicos. Existem dois sentidos metafóricos para o movimento
musical: um relaciona-se com as alturas e o outro com o ritmo. Como a
experiência do movimento físico está diretamente associada com a mudança, o
movimento melódico muitas vezes será criado através da mudança de um ou mais
parâmetros. No caso da melodia, o parâmetro das alturas talvez seja o mais
prontamente notado, uma vez que a capacidade de interpretar diretamente a
frequência sonora é um dos atributos mais antigos do cérebro. Quanto maior a
quantidade de mudanças, mais forte a sensação de movimento. É o que acontece,
por exemplo, com as melodias infinitas de Wagner - frases musicais espiraladas,
que raramente estacionam sobre uma única nota. O que acontece, nesse caso, é
que Wagner apresenta um movimento ininterrupto que parece não chegar a lugar
nenhum. Contraria desse jeito o esquema clássico da organização das obras tonais
como agrupamentos de frases que formam ciclos intermediários de movimento e
algum descanso – como se, para trilhar o percurso inteiro, o objeto sonoro
necessitasse de pequenos intervalos de descanso, intervalos durante os quais
pudesse respirar um pouco.
Na melodia infinita de Wagner praticamente não há descanso. O ritmo
geralmente mantém-se como a pulsação de fundo sobre a qual se articula o
deslocamento contínuo das alturas melódicas. Como é a praxe de nossa vida
mental, a atenção é automaticamente desviada para o que muda, deixando o
parâmetro que se mantém constante fora da janela da consciência atenta. É através
204
dessa artimanha que o compositor alemão cria a sensação de movimento
convulsivo que emana de suas construções sonoras – movimento que não é
segmentado, organizado, por eventuais pausas que funcionam como verdadeiros
marcos nos caminhos que percorremos. De fato, a música de Wagner muitas vezes
parece ter um efeito desnorteante, criando uma confusa figura no espaço musical.
Wagner torna-se convulso, frenético, num sentido que vai muito além da simples
adjetivação. É daí que vem o comentário de Baudelaire, que viu na música do
mestre alemão um imenso “reservatório de eletricidade humana”. Essas metáforas
efetivamente remetem às imagens físicas, ao elemento cinestésico nelas presente,
e nos fazem realmente experimentar o movimento de uma seqüência sonora.
Stravinsky diria que “a obra de Wagner responde a uma tendência que não é
propriamente uma desordem, mas que trata de suprir a uma falta de ordem. O
sistema da melodia infinita traduz perfeitamente essa tendência. Trata-se do
perpétuo devir de uma música que não tinha nenhum motivo para começar, assim
como não tem nenhum motivo para terminar”. Stravinsky está chamando a
atenção para a perda de controle sobre a matéria sonora – perda que se reflete
sobre “a retórica e as vociferações da Tetralogia” – para o derramamento
excessivo. Para o modo como, na música de Wagner, o movimento torna-se de tal
modo desenfreado que ameaça fazer ruir a própria arquitetura musical.
Porque estacionar numa nota representa de certo modo uma espécie de não-
mudança, e portanto de imobilidade. David Huron notou que, para o ouvinte
ocidental, a tendência maior é esperar que uma melodia se desenvolva como
alternância de graus no sistema da escala; ou seja, que ela de certo modo caminhe.
Ao caminhar, o objeto sonoro estaria também submetido às forças musicais
decorrentes da própria dinâmica tonal – forças que seriam análogas às forças
físicas, como a gravidade, a inércia e o magnetismo. A melodia que se mantém
sobre um único grau tende, desse modo, a passar a impressão de não-movimento.
Essa impressão pode, sim, gerar um grau tensão que decorre, justamente, da
expectativa de tentar prever o momento no qual essa melodia (percebida como
objeto) começará finalmente a se movimentar. Um jeito de gerar movimento por
sobre uma única nota estacionada seria, nesse caso, injetando ritmo nela. Ou
então, já que a melodia não anda, poderia haver um jeito de criar a impressão de
movimento através do movimento da paisagem, do cenário – ou seja, da
harmonia. Como uma espécie de recurso cênico no qual, através de roldanas e
205
manivelas, o movimento do cenário trouxesse a impressão de que é o ator que se
movimenta. Do Samba de Uma Nota Só à Águas de Março, Tom Jobim foi um
mestre na construção desse tipo de engrenagem musical. A sensação de
movimento decorrendo da constante mudança do cenário harmônico e da própria
incorporação do recorte rítmico do samba no corpo da melodia. Criou com isso
um modelo de melodia preguiçosa. Melodias que percorrem o mundo sem sair de
casa. Mais ou menos como, no fundo, ele próprio gostaria de ter feito.
A dimensão do ritmo da melodia aponta também para o fato de que não
apenas há um objeto que se movimenta e um caminho a ser percorrido. Há
também o jeito de se movimentar. Nossa experiência de ver as coisas no mundo
nos transmite o sentido da diferença no modo como os diversos objetos se
movimentam no espaço físico. Objetos movem-se rápida ou lentamente. De modo
delicado, macio, ou abrupto; com gentileza fluida ou forçadamente. A metáfora da
música que se move nos indica uma noção de velocidade. Tradicionalmente, usa-
se o termo tempo para descrever essa velocidade. Falamos também do andamento
da música. Quando nos referimos à melodia propriamente, dizemos que ela
desenvolve-se passo a passo, por grau contíguos, ou então a partir de grandes
saltos intervalares. Virtualmente qualquer conceito de uma forma particular de
movimento físico pode ser aplicado a música. Muitas vezes dizemos que o bom
samba balança, no sentido de que ele equilibra-se delicadamente nos altos e
baixos de um movimento ondulante. De fato, nas próprias letras das canções
brasileiras mais marcadas por uma rítmica de extração africana, como é o caso do
samba, literalmente abundam metáforas corporais que referem-se ao modo como
percebemos o próprio movimento da música. Ou por outra, que, através de
metáforas conceituais, remetem uns aos outros os padrões de movimento que
formam o quadro maior de um sistema cultural. É desse modo, por exemplo, que
podemos usar a palavra ginga para conceitualizar o movimento abstrato de uma
melodia ou de um padrão rítmico, transportando uma metáfora muito específica
de um jeito de movimentar o corpo para o campo sonoro da música.
Mais uma vez devo reforçar que isso não é apenas um mero jogo de
palavras – palavras incorpóreas, puramente abstratas - mas algo que traz em si a
memória direta de um conhecimento corporal implícito, de imagens internas. Que
nos faz associar de modo não arbitrário a sucessão temporal de uma série de
notas com a sucessão espaço-temporal do corpo de um jogador de futebol que
206
vimos gingar diante do zagueiro adversário. Ou a ginga de um capoeirista que
simula determinado golpe para, no momentum exato, disparar outro. Ou ainda o
gingado de um dançarino de samba numa gafieira – o meneio corporal que engana
a parceira com sua manha de ilusionista. Como objeto sonoro, a melodia também
é capaz de “gingar” aos nossos ouvidos, de nos driblar com seu movimento. O
trânsito de metáforas conceituais relacionadas ao movimento no espaço traz
consigo não apenas palavras, mas lógicas internas e imagens corporais. Indica
também o modo como são vivenciadas as experiências musicais em determinada
cultura. O modo como cada cultura desenvolveu especificamente a potencialidade
inata para a comunicação através de padrões sonoros. Talvez haja, conforme
sugeriu John Blacking, um “modo musical de pensamento e de ação”. Modo que é
não-verbal, pré-linguístico, e que pode, inclusive, manifestar-se em outras
atividades humanas além da música, e até mesmo na organização de ideias
verbais. Que faria parte de um conjunto mais amplo de capacidades sensoriais e
cognitivas comuns à espécie humana.
Isso aponta também para a possibilidade de que as pessoas possam fazer
conexões entre experiências musicais e não-musicais sem necessariamente passar
por regras culturais específicas; sem que essas conexões sejam sempre
socialmente convencionadas. “A possibilidade de que símbolos musicais possam
ser transformados em outros símbolos, e vice-versa, sem a mediação da
convenção social”.269 Um jeito como o uso de símbolos musicais ajuda não apenas
a refletir, mas também a criar padrões de sociedade e cultura. Talvez seja possível
pensar num plano mais recuado no qual dialogam, misturam-se, fundem-se, os
padrões sensórios-motores que formam a pulsação de fundo de um determinado
conjunto sócio-cultural. Um plano no qual os diversos ritmos que regem a vida
humana responderiam uns aos outros. A base, e talvez a justificativa para um
pensamento como esse, está na premissa de que esses “padrões de movimento do
corpo” (que, na realidade, são muito mais do que isso, pois articulam-se com o
próprio funcionamento dos sentidos) estão no cerne de todas as atividades
humanas, sejam elas físicas ou mentais. O corpo humano é uma entidade rítmica –
uma extensa rede de padrões sensório-motores que culminam na própria
emergência da consciência (entendida aqui como qualidade de estar cônscio). Se
269
Cf. John Blacking, Music, Culture & Experience: Selected Papers of John Balcking, p.236.
207
deixarmos de lado as falsas dicotomias entre espírito e corpo, razão e emoção,
pensamento e sentimento, poderemos talvez conceber o modo como esses padrões
estão, mesmo, na base do grande complexo físico-mental que é nossa existência.
Correndo o risco de simplificar demasiadamente o raciocínio, podemos dizer que
muitos dos efeitos da cultura, de um certo modo de estar no mundo, realizam-se
sobre a maneira como esses “ritmos” são lapidados; o modo como ganham uma
certa qualidade de estilo. Como acomodam toda a cadência do cotidiano,
infiltrando-se nas relações humanas e deixando impressas no ar linhas de
movimento; desenhos corporais; nos conformando por dentro e depois retornando
a nós através dos nossos sentidos – pela visão, audição, tato. Os ritmos de dentro
espelhando os ritmos de fora; os ritmos de fora ecoando nos ritmos de dentro. Não
pretendo com isso estabelecer relações apressadas, explicando uma coisa através
de outra, nem tampouco submeter tudo a uma essência una. Quero apenas
salientar o grau de porosidade, de indefinição fluida, e de possibilidade de
contaminação mútua que caracteriza uma boa parte dos movimentos concretos
que compõem as ações humanas.
No campo da canção isso torna-se muito claro, uma vez que ela está na
interseção entre a fala e a música. Luiz Tatit vem mostrando ao longo dos últimos
anos a maneira como compositores de canção apropriam-se de contornos e
tendências melódicas presentes na própria língua cotidiana para criar melodias
convincentes, capazes de comunicar com persuasão o conteúdo das letras.270
Evidencia assim o modo como a canção tende a apoiar-se sobre a prosódia – a
música da fala -, potencializando desse modo sua capacidade comunicativa.
Comentando pesquisas estatísticas que mostram ligações entre os padrões
rítmicos da prosódia com padrões rítmicos de musicas instrumentais (o modo
como melodias feitas por músicos criados na língua inglesa apresentam maior
grau de recorrência de padrões rítmicos que estão presentes na prosódia inglesa,
se comparadas com melodias feitas por músicos falantes do francês), David Huron
levanta a possibilidade de um aprendizado estatístico desses padrões rítmicos
pelos integrantes de determinada comunidade linguística. E, a partir disso, de uma
influência direta desses padrões em todos os fenômenos rítmicos gerados pelos
270
O lingüista Luiz Tatit também propôs esse parentesco mais estreito da canção com a fala, ao
criar o conceito de entoação. Retomarei mais adiante tal conceito. (Ver Luiz Tatit, O Cancionista:
Composição de Canções no Brasil, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2002, p.9)
208
membros dessa comunidade.271 Embora o comentário e o exemplo estejam
circunscritos na esfera do som, Huron vai além e especula: “Whatever the origin
of these patterns, rhythmic influences may be much more pervasive than we think.
The way we move our bodies may influence the experience of rhythm, and
common rhythms may influence the way we move. (…) On the other hand,
pervasive rhythms within a culture may affect the way people move”.272
Basta ter alguma sensibilidade para conseguir enxergar esses ritmos
pulsando. Depois de um ano e meio em Paris, não pude deixar de notar como, nas
ruas do Rio de Janeiro, as pessoas andavam de modo diferente. Movimentavam-se
de outra forma, com outros desenhos no tempo e no espaço. Obedeciam a outro
relógio. Dependendo da parte da cidade em que estava, percebia sub-variações no
jeito de corpo. Também o horário do dia influenciava na disposição dos ritmos -
para não mencionar o papel exercido pelo clima na modelagem dos movimentos
do corpo. Poucos dias depois de ter voltado da França, lembro-me de ter visto um
grupo de adolescentes, jovens negras e mulatas, numa calçada do Rio. Algumas
delas carregavam pequenos tabuleiros com balas e doces para vender nos sinais.
Deviam ser umas oito ou dez. Formavam uma espécie de organismo único –
andavam cadenciadas, seguindo um ritmo geral extremamente flexível, aberto a
variações individuais. Não havia no grupo uma única linha reta. A marcação,
embora fosse rítmica e pudesse ter seu princípio de ordem intuído, era não-
periódica – não estava submetida a uma recorrência do tempo forte, a uma
estrutura regular. Pelo contrário: eram pura elasticidade. O somatório de uma série
de acentos - pequenas gargalhadas, breves células rítmicas dos chinelos raspando
no chão, a ondulação dos quadris, súbitas paradas em stacatto, paradas que depois
retornavam macias no fluxo do conjunto. Uma espécie de bagunça organizada,
regida por um princípio ordenador mais sutil, menos evidente, e também menos
impositivo, menos castrador. A impressão geral era de uma relação sinuosa com o
espaço, de corpos em contínuo estado de expansão, algo que transmitia uma ideia
pouco palpável e pouco definível, mas nem por isso menos eloqüente, de uma
quase insuportável liberdade.
271
Ver David Huron, op.cit.., p.189. 272
“Qualquer que seja a origem desses padrões, influências rítmicas devem ser muito mais
espalhadas do que pensamos. O jeito como movimentamos nossos corpos deve influenciar a
experiência do ritmo, e ritmos comuns devem influenciar o jeito como nos movimentamos. (...)
ritmos difusos em uma cultura podem alterar o modo como as pessoas se movem”. (Cf. Idem,
Ibidem, p.190) (Tradução Livre)
209
Para mim, que não havia visto nada parecido na França, nem mesmo nos
quartiers com grande presença africana, e que acabara de voltar com olhos
bastante esquecidos dessa música de rua do Rio, aquilo ganhou uma imensa
nitidez. Maltrapilhas andarilhas com exorbitantes umbigos de fora, desabrochadas
em agressiva lascívia na flor da idade, aquecidas pelo ardente sol dos trópicos,
ecoando aos berros e gargalhadas uma aparente indiferença ao que lhes vinha de
fora, aquelas meninas encarnavam em movimento e em ritmo o saldo de uma
experiência humana específica. Experiência única. Levada adiante pela
capacidade que os corpos têm de influenciar-se mutuamente, de espelharem-se
uns aos outros, de, através da imitação, experimentarem, com base na experiência
alheia, novos modos de estar no mundo. Aqueles movimentos pareciam por si só
capazes de gerar alegria. E esse é um dos aspectos mais misteriosos de certa
parcela da experiência brasileira: a imensa alegria corporal que dela emana.273
Uma alegria rítmica, exercida em movimento, que parece ter a si própria como
fim. Que, no contexto de uma sociabilidade informal, em seu longo processo de
contatos e contágios (como parece ter sido o caso no Rio de Janeiro urbano do
século XIX até meados do século XX)274, trouxe um tempero diferente para a
tradicional melancolia lusitana. Que, nessa transfusão, foi aos poucos coalhando
de sincopas africanas a estrutura quadrada da polca européia. Modificando-a por
dentro. Formando as bases daquilo que viria a se transformar no moderno samba
urbano carioca. O mistério está no fato de que os principais grupos responsáveis
por trazer essa alegria rítmica tenham sido exatamente aqueles que eram
273
Num livro relativamente recente (Aqui Ninguém é Branco), a pesquisadora Liv Sovik destaca a
centralidade do corpo e o humor como dois dos traços mais definidores de uma suposta identidade
brasileira. Para melhor iluminar o primeiro ponto, e chamar também a atenção para a linha de
pensamento que o tomou como elemento central na definição do Brasil, Sovik cita um trecho de
uma carta do modernista Mário de Andrade endereçada ao jovem poeta Carlos Drummond de
Andrade: “Mas havia uma negra moça que dançava melhor do os outros. (...) Dançava com
religião. Não olhava para nenhum lado. Vivia a dança. E era sublime. (...) Aquela negra me
ensinou o que milhões, milhões é exagero, muitos livros não me ensinaram. Ela me ensinou a
felicidade”. (Cf. Apud., Liv Sovik, Aqui Ninguém é Branco, Rio de Janeiro, Aeroplano, 2009, p.
113) 274
Ao que parece o traçado urbano do antigo Rio de Janeiro, de extração medieval lusitana e
propensão labiríntica, e não renascentista (de traçado hipodâmico), muito contribuiu para
expressar claramente e mesmo condicionar um convívio indisciplinado e condescendente. A
disposição da cidade do Rio, com profundas raízes no urbanismo islâmico, criou uma cidade gregária e não apenas anexadora ou somatória. Que expressava um estilo de vida indisciplinado e
promíscuo. Um tipo de cidade que favoreceu “a visão e a vivência do outro”, e que seria
redefinido com a chegada da Corte, em 1808, e a consequente adoção de um modelo francês
(retilíneo e segregador) de urbanismo. (Ver Antonio Risério, A Utopia Brasileira e os Movimentos
Negros, p.238)
210
socialmente mais desfavorecidos. A parte mais oprimida. Um desdobramento da
mesma escravidão que, nas palavras de Joaquim Nabuco, povoou a natureza
virgem do país “como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos,
suas legendas, seus encantamentos”, insuflando-lhe sua “alma infantil, suas
tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração,
suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte...”.275 O que traz uma
tonalidade trágica para essa experiência – o gozo existencial surgindo em meio à
miséria e à opressão – a centralidade corporal impondo-se com seu gozo próprio,
sua falta de lógica, com “sua felicidade sem dia seguinte”.
Deve ter sido uma percepção semelhante àquela que tive vendo as meninas
desfilando pelas ruas, só que muito mais intensa, o que levou Pier Paolo Pasolini a
nos definir, depois de uma visita ao Rio de Janeiro, em 1971, como “a pátria
desgraçada devotada sem escolha à felicidade”.276 No que pesem as inúmeras e
complexas possibilidades de leituras ideológicas, sociológicas, políticas,
antropológicas, sobre a centralidade do corpo em nossa vida social, ou sobre a
possibilidade de transmutação da dor em prazer como traço determinante e
afirmativo da experiência brasileira, com todas as tradicionais controvérsias que o
assunto gera, gostaria de manter o foco no movimento das meninas. Pois o fato é
elas traziam inscrito nos próprios corpos uma inteligência e uma musicalidade
impressionantes. Falo aqui das meninas como um episódio por mim presenciado
que traz a força da experiência vivida. Mas refiro-me ao conjunto mais amplo de
padrões corporais que formam, em parte, o estilo de um determinado quadro
cultural.
Creio ser de suma importância a apreciação da natureza rítmica e harmônica
das nuances desses movimentos corporais cotidianos. Eles estão na base do
complexo música-dança. E podem ter sido infiltrados por esse mesmo complexo.
Infiltraram-se também na capoeira. E da capoeira, infiltraram-se talvez no futebol,
quando “os descendentes dos bailarinos da navalha e da faca como que se vêm
sublimado nos bailarinos da bola, isto é, da bola de foot-ball, do tipo dos nosso
jogadores mais dionisíacos como o preto Leônidas; os passos do samba se
arredondando na dança antes baiana que africana, dançada pela artista Carmen
275
Cf. Joaquim Nabuco, In. Evaldo Cabral de Mello (org.), Essencial: Joaquim Nabuco, São
Paulo, Companhia das Letras, 2010, p.25. 276
Cf. Apud., José Miguel Wisnik, Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil, São Paulo, p.417.
211
Miranda sob os aplausos de requintadas platéias internacionais (...)”, como sugere
Gilberto Freyre.277 Ou nas belas palavras do dramaturgo Nelson Rodrigues para
descrever o refinado estilo do craque negromestiço Didi: “numa simples ginga de
Didi, há toda uma nostalgia de gafieiras eternas”.278 São divagações poéticas
baseadas nas percepções da dança corporal, da dinâmica de ritmos e movimentos
que estão na base do samba de gafieira, da capoeira e do modo específico de se
jogar futebol no Brasil. Ritmos rebatendo-se continuamente, afetando distintas
esferas. Entre elas, a da própria atividade musical. Por sua estreita relação com o
corpo, a música pode ser mesmo definida como uma sucessão de gestos audíveis.
Não haveria, portanto, certo grau de verdade na declaração de Noel Rosa de
que “o samba foi inspirado no pisar da morena carioca”?279 Ou na resposta de João
Gilberto à pergunta de Ronaldo Bôscoli sobre de onde ele havia tirado a famosa
batida de violão que está na base da Bossa Nova - “Deve ter sido quando eu era
menino em Juazeiro. As lavadeiras levavam roupa no cesto para lavar no rio e
desciam até lá com um suíngue danado. Eu tapava os ouvidos e só ‘ouvia’ aquele
negócio, ‘squintim, squintim’... A cadência sincopada das lavadeiras me inspirou
esse ritmo da Bossa Nova. Acho que foi por aí...” - ?280 Não uma verdade
propriamente histórica, porque tais versões são evidentes elaborações míticas.
Mas uma verdade mais profunda, que coloca a música como parte de algo maior,
parte de um verdadeiro sistema de movimentos e ritmos, de relações espaço-
temporais que formam a substância de base (padrões que se repetem) de
determinada experiência, de determinada lógica cultural. Ou mais simplesmente,
um jeito de corpo.
O movimento não é apenas experimentado como algo externo. Usamos
nossos corpos para nos movimentarmos nós mesmos. Dessa experiência, e da
metáfora do observador que se move no tempo, surge um outro tipo de
conceitualização da música, não como objeto que se movimenta, mas como
paisagem a ser visitada. Um espaço abstrato, tridimensional, através do qual se
move o ouvinte. Não mais o ponto estático, é o ouvinte que embarca numa espécie
277
Cf. Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos: Decadência do Patriarcado Rural e
Desenvolvimento do Urbano, São Paulo, Global Editora, 15ª ed., p.657. 278
Cf. Nelson Rodrigues, A Pátria em Chuteiras: Novas Crônicas de Futebol, São Paulo,
Companhia das Letras, 1994, p.133. 279
Cf. Apud., Walter Garcia, Bim-Bom: A Contradição Sem Conflitos de João Gilberto, São
Paulo, Paz e Terra, 1999, p.134. 280
Cf. Luiz Carlos Maciel, Ângela Chaves, Eles e Eu: Memórias de Ronaldo Bôscoli, Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1994, p.89.
212
de jornada pelo caminho musical que define uma peça particular. O presente é
representado pelo o que se ouve agora, enquanto quilo que já foi ouvido é
conceitualizado como pontos da paisagem que ficaram para trás, às costas. Partes
que ainda não foram ouvidas são pontos futuros que serão posteriormente
encontrados pelo caminho. A diferença de perspectiva em relação à metáfora da
música que se move é clara: aqui, o ouvinte é participante do evento musical.
Podemos igualmente utilizar o termo passagem musical, mas num sentido
diferente, mais benjaminiano, se assim quisermos. Também muda o sentido do
termo arquitetura musical, pois aqui estamos efetivamente dentro do prédio. A
melodia infinita de Wagner deixa de ser a figura de uma espiral para ganhar uma
qualidade vertiginosa, como um caminho tortuoso que se percorre em grande
velocidade. Os acordes do acompanhamento tornam-se ambientes sonoros,
cômodos que formam o interior da arquitetura musical.
Há ainda uma terceira maneira fundamental de experimentar o movimento
físico, maneira que também se reflete sobre a experiência musical. Além de
vermos os objetos movendo-se e de movermos nós próprios nossos corpos, somos
também movidos por substâncias físicas e entidades, como a água e o vento, e
também por grandes objetos. De fato, grandes objetos nos movem de um ponto a
outro. É uma experiência bastante presente nos primeiros anos de vida. A mãe
retira o bebê do berço e o leva para a banheira. De lá, para o carrinho. Quando
transpomos isso através de metáforas para a música, é ela mesma que se torna
essa força capaz de nos mover. E uma vez que é vista como força, ela será capaz
de causar efeitos sobre o ouvinte. De acordo com a metáfora, o local físico é
substituído pela ideia de um estado emocional. Mark Johnson argumenta que a
noção de que existem “forças musicais” é um caso especial - que se dá por
“extensão metafórica” – do que ele próprio chama de “Local de Estrutura de
Evento”.281 De acordo com essa metáfora, “estados” são “locais”, isto é, lugares
metafóricos nos quais uma entidade pode estar, como por exemplo quando se diz
“ela está em coma há duas semanas”; ou “fulano caiu em depressão”. Mudanças
de estado são entendidas como o deslocamento de um estado-local para outro, e
tais movimentos são causados por forças que movem determinada entidade de um
ponto a outro (“pressões psicológicas me levaram a beber”; ou, “acontecimentos
281
“Location Event Structure” – ver Mark Johnson and Steve Larson, op.cit.., p.95.
213
inesperados me fizeram mudar de rumo”). Desse modo, os estados são locais, as
causas são forças físicas, e o princípio de causalidade é o movimento forçado.
Transferindo esse conjunto de metáforas para a experiência musical, temos
um quadro no qual a própria música torna-se uma força capaz de mover o ouvinte
de um local (estado) para outro (estado diferente). De fato, há uma forte crença no
poder da música, algo que parece muito presente em diversas tradições.
Acreditamos piamente nisso e muitas vezes mesmo utilizamos voluntariamente a
música no sentido de nos conduzir, nos levar até determinado estado de espírito.
Tiramos proveito do seu potencial para manipular o nosso próprio humor, e
também o dos outros. Outras vezes somos atingidos pelas forças musicais sem
qualquer consentimento – “essa música mexeu comigo”; “aquela canção me
tocou”.
No caso brasileiro são muitos os exemplos de samba que tematizam em suas
letras esse poder. Sobretudo quando o tipo de música em questão possui pegada
rítmica, apelo corporal. Irá se falar de um “samba feiticeiro” que “mexe com a
gente”, “que zomba da gente”; como se fosse uma força geradora de alegria.
Força misteriosa, que age diretamente sobre os corpos, despertando-os com seus
ritmos ondulantes; “que deixa gente mole”, pois “quando se samba todo mundo
bole”; força capaz de nos colocar em estado de transe hipnótico, esquecido de nós
mesmos; capaz de congregar, de promover o gratificante sentido de pertencimento
e de unidade comunitária através do efeito que W.H.McNeill definiu como “perda
de contorno” (boundary loss) – a maneira como a atividade musical conjunta leva
a um “esfumaçamento da auto-consciência e ao aumento do sentido de
camaradagem entre todos aqueles que compartilham a dança”.282 (O que faz dela
um poderoso instrumento de coesão e uma eficaz arma de resistência contra a
opressão de grupos externos). Algo parecido com o efeito dionisíaco proposto por
Nietzsche: novamente a música como força capaz de apagar a ilusão da
individualidade e reconectar o sujeito com uma ordem superior; de reconduzi-lo
ao seio da natureza. O samba: entidade cósmica capaz de fazer “dançar os galhos
do arvoredo” e que “faz a lua nascer mais cedo”.283
282
“A blurring of self-awareness and the heightening of fellow feeling with all who share in
dance” (Cf. Apud. Steven Mithen, op.cit.., p.209) 283
Versos do clássico samba de Noel Rosa, Feitiço da Vila.
214
Enfim, são essas metáforas algumas das ferramentas conceituais que usamos
para entender o mundo. Para senti-lo e expressá-lo do modo mais profundo
possível, cravado na carne. Como não usa-las para entender também a música?
Ora, se um dos aspectos da música seria, justamente, sua capacidade de projetar
ideias abstratas, é natural que as “imagens” sejam acionadas na compreensão
dessas ideias. E talvez retornem a nós na forma de metáforas. Sem que, contudo,
essas metáforas venham a ter seus significados cristalizados, fechados. Elas
jamais descrevem a música em si. Diferentes culturas muitas vezes usam
diferentes metáforas para descrever experiências semelhantes. O povo Kaluli, da
Nova Guiné, descreve o ato de cantar uma melodia através de um complexo
sistema de metáforas baseadas em quedas-d’água. Esses sistema parece menos
abstrato do que o nosso para referir-se ao campo das alturas, mas, ao mesmo
tempo, trabalha com noções semelhantes às nossas, ao enfatizar os movimentos de
ascensão e declínio. Baseiam-se muito simplesmente na influência da gravidade.
Os integrantes da tribo africana dos Venda descrevem a relação das alturas das
notas como “maiores” ou “menores”, ao invés de “mais altas” ou “mais baixas”.
Os gregos antigos as definiam como “afiadas” ou “pesadas”, e os índios Suyá, do
Xingú, utilizam os termos “novo” e “velho”. São metáforas que, cada qual a sua
maneira, ajudam o ouvinte de uma determinada cultura a melhor “imaginar” as
estruturas musicais.
...
A interação entre corpo e mente é tão profunda, que em seres de cérebro
mais elaborado, conjuntos integrados de neurônios “finalmente passaram a imitar
a estrutura de partes do corpo ao qual pertencem. Acabaram representando o
estado do corpo, literalmente mapeando o corpo para o qual trabalham e
constituindo uma espécie de substituto virtual, um dublê neural”.284 Em outras
palavras, o grande tema dos neurônios é o próprio corpo. E a incessante referência
ao corpo é a característica distintiva dos circuitos neuronais e do cérebro.
284
Damásio também sugere que “curiosamente, o fato de que o corpo é o tema dos neurônios e do
cérebro também sugere o modo como o mundo externo poderia ser mapeado no cérebro e na
mente”. (Cf. António Damásio, op.cit.., p.57)
215
Mas tudo isso vai ainda além do cérebro imitador que mencionei algumas
páginas acima. Vai além do cérebro capaz de simular estados do próprio corpo.
Ao que tudo indica, o cérebro é capaz de simular em si estados corporais de
outros indivíduos. Não se trata apenas de imitar realmente – trata-se de
experimentar virtualmente a experiência de corpos que estão fora. E o grande
dispositivo de simulação dos estados do corpo no cérebro são os chamados
neurônios-espelho. Foram feitas experiências em que macacos com eletrodos
conectados ao cérebro observavam os movimentos de um ser humano. Quando
uma ação como um movimento de mão era vista pelos macacos, partes do cérebro
responsáveis pelos movimentos de mão dos macacos eram ativadas, ainda que
estes permanecessem parados. Ou seja: o movimento não era observado apenas
como puro padrão visual, mas também experimentado como imagem pré-motora;
experimentado como se fosse o próprio macaco que estivesse movendo a mão. Os
mapas cerebrais do corpo simulando um estado corporal que está presente em
outro corpo. Ou seja: sentimos em nós mesmos os estados corporais dos outros.
“As explicações sobre a existência dos neurônios-espelho ressaltam o possível
papel que eles podem ter para nos permitir entender as ações de outros colocando-
nos em um estado corporal comparável. Quando observamos uma ação em outro
indivíduo, nosso cérebro capaz de sentir o corpo adota o estado corporal que
teríamos caso nós mesmo estivéssemos executando essa ação, e muito
provavelmente ele faz isso não por meio de padrões sensoriais passivos, mas de
uma pré-ativação de estruturas motoras – torna-se pronto para ação, mas ainda
sem permissão para agir – e, em alguns casos, por meio de uma ativação motora
real”.285
Para os pesquisadores que os revelaram, os neurônios-espelho representam
o elo entre o emissor e o receptor, pré-requisito necessário para qualquer tipo de
comunicação.286 Localizados na área de Broca, famosa por sua relação com a
linguagem, pela geração dos aspectos motores da vocalização, eles compõem a
base para o comportamento imitativo nos humanos, especialmente no que diz
respeito à fala – à aquisição de gestos orais que formam as unidades fundamentais
do discurso humano(crianças copiam as ações motoras de seus pais para produzir
sons semelhantes). É possível que a capacidade comunicativa dos humanos tenha
285
Cf. Idem, Ibidem, p.137. 286
Ver Steven Mithen, op.cit.., p.131.
216
dependido da progressiva evolução desse sistema de espelhamento. Mas os
neurônios- espelho apontam para uma dimensão de comunicação que vai além da
pura linguagem verbal, das imagens visuais ou da inferência lógica. Apontam para
um entendimento corporal mais profundo que, em si, incorpora a dimensão da fala
– e não vice-versa.
Tudo isso nos traz de volta para o tema dos conteúdos corporais da cultura.
Sobre as especificidades de seus movimentos. A permeabilidade contagiosa dos
ritmos que a compõem. Sua capacidade de espelhamento e pregnância nas
diversas esferas da vida. Imersos numa determinada cultura, sendo continuamente
afetados por “jeitos de corpo”, trejeitos, movimentos, sonoridades da fala,
dinâmicas de relação, construímos como que uma espécie de schema corporal –
para retomar um conceito utilizado nos ensaios anteriores – que certamente é uma
decorrência da conformação que uma cultura opera na entidade do corpo. Um
schema corporal que permite inúmeras variações individuais, mas que sempre se
apóia nas linhas-guias de um quadro maior. Uma resultante ampla, aberta, e no
entanto com um desenho reconhecível. Ao ver aquelas meninas passando, de certo
modo, eu intui uma espécie de padrão rítmico de movimento que, por me parecer
muito presente no Rio de Janeiro, configura-se como um traço de estilo. Estilo na
definição que nos é dada por Leonard B. Meyer: “Style is a replication of
patterning, whether in human behavior or in the artifacts produced by human
behavior, that results from a series of choices made within some set of
constraints”.287
Esse movimento está presente no próprio ritmo da fala, da língua viva,
física, articulada por tecidos e músculos. Não podemos esquecer que a fala, a
vocalização, é também uma atividade motora. Através dela (da língua falada) algo
maior se revela, e que diz respeito ao nosso modo de organizar a experiência. As
fórmulas sugeridas por Alison Wray não são apenas ideias soltas, mas realizações
físicas concretas, fruto da articulação conjugada e complexa, refinada, de
músculos no tempo. Isso, como já foi dito, aponta para um padrão modular de
algumas atividades motoras, tanto do ponto de vista funcional quanto
organizacional. Diz respeito à forte tendência que o cérebro tem em criar módulos
287
“Estilo é uma replicação de padrões, seja no comportamento humano ou em artefatos
produzidos pelo comportamento humano, que resulta de uma série de escolhas feitas dentro de
algum conjunto de regras”. (Cf. Leonard B.Meyer, Style and Music: Theory, History, and
Ideology, p.3) (Tradução Livre)
217
de ação que simplificam e reduzem a carga informacional gerada pela execução. É
quando o corpo realmente aprende alguma coisa e a executa de modo quase
automático, sem muita intervenção da consciência. Andamos sem precisar pensar
nisso – nossa atenção pode se voltar para outra coisa qualquer enquanto o
movimento é executado. Do mesmo modo, quando comecei a tocar violão, sentia
minha atenção inteiramente absorvida no ato de coordenar a posição dos dedos no
braço do instrumento; na regulagem da força necessária que pressionar as cordas e
gerar sons distintos; na sincronização disso com os cinco dedos da mão direita,
que conduzem o ritmo; no encaixe disso tudo com a voz. A concentração exigida
era tamanha, que seria impossível fazer qualquer outra coisa ao mesmo tempo.
Uma vez que esses padrões iam sendo incorporados, passavam a exigir menos
atenção e esforço. Tornavam-se mais automáticos. Uma simples sinalização de
intenção e todo o movimento já vinha inteiro, acabado, temporalmente realizado.
Mas esses mesmos padrões motores, por sua vez, ancoravam-se em outros
padrões previamente incorporados. Uma arquitetura organizada em módulos
funcionais, módulos que se sobrepõem e, ao faze-lo, produzem novos e mais
complexos padrões de movimento corporal.
Isso sugere que talvez esteja certa a reflexão de John Blacking sobre o modo
como a própria estrutura de um instrumento é capaz de sob vários aspectos
influenciar a música que se faz: “(...) we know much about the theory and practice
of harmony in the European ‘art’ music of the nineteenth century, but when we
analyze the music of Hector Berlioz it is useful to know that he often worked out
harmonic procedures on a guitar, and that the structure of the instrument
influenced many of his chord sequences”.288 E não é só a estrutura do instrumento,
mas também o modo como o corpo se relaciona com ele. Toda a relação entre as
estruturas de movimento de nossa anatomia e o objeto que irá produzir a música.
De maneira parecida, György Ligeti defendeu Chopin como sendo o melhor
compositor para piano, pois nele “a sensação tátil possui um papel quase tão
288
“(...) sabemos muito sobre a teoria e a prática da harmonia na música ‘artística’ européia do
século XIX, mas quando analizamos a música de Hector Berlioz é útil saber que ele muitas vezes
trabalhava os procedimentos harmônicos no violão, e que a estrutura do instrumento influenciou
muitas de suas seqüências de acordes”. (Cf. John Blacking, How Musical is Man, p.21) (Tradução
Livre)
218
crucial quanto a dimensão acústica”.289 É possível que, no caso da música feita no
Brasil, o papel desempenhado pelo violão como instrumento dominante tenha
influenciado de modo decisivo o próprio modo de se fazer música. E que isso
derive não apenas de parâmetros de timbre, textura, potência sonora, mas também
da estrutura física do instrumento e da relação que este tece com o corpo de quem
o toca. A Bossa Nova é o diálogo intenso entre o piano de Jobim – e a tradição
que vem de Ernesto Nazaré e os salões cariocas do século XIX, e que permitiu
também trazer para o contexto da música popular brasileira o universo sonoro de
Debussy – e o violão de João Gilberto – com a tradição que vem desde a viola de
arame de Domingos Caldas Barbosa, passando por nomes como Garoto e Dorival
Caymmi.
O que deve ser notado, contudo, é que aprendemos a tocar um instrumento
através da incorporação paulatina de módulos motores, do aprendizado e da
memorização de padrões de movimento. De modo geral, esses padrões motores
foram batizados por Rodolfo Llinàs de Fixed Action Patterns (FAP) e definidos
como “conjuntos de padrões motores bem definidos, ‘fitas motoras’ já prontas,
que quando acionadas produzem movimentos bem definidos e coordenados:
tentativas de fuga, andar, engolir, os aspectos inatos do canto dos pássaros, e
coisas afins”.290 As FAPs representam um padrão de organização funcional de
nosso sistema nervoso central. Uma organização em módulos de movimentos
capaz de acionar diversos grupos musculares e sinergias – músculos trabalhando
em conjunto, através da relação entre flexores e extensores, para produzir
determinado movimento - exigidas para movimentos estereotípicos, dos mais
simples aos mais complexos. Imagine, se precisássemos dedicar nossa atenção à
complexa sinergia muscular toda vez que fossemos nos deslocar andando de um
ponto a outro? As fitas motoras nos liberam desse trabalho de a cada vez
reinventar a roda. Ao apresentar módulos de ativação muscular já pré-
determinados, nos poupam também do tempo que perderíamos em escolher entre
todas as inúmeras combinações possíveis de movimento muscular a ser adotado.
289
“Frédéric Chopin est un pianiste chez lequel la sensation tactile joue un rôle presque égal à la
dimension acoustique”. (Cf. Claude-Henri Chouard, L’Oreille Musicienne: Les Chemins de la
Musique de l’Oreille au Cerveau, Paris, Gallimar, 2009, p.57) (Tradução Livre) 290
“Fixed action patterns (FAPs) are sets of well-defined motor patterns, ready-made “motor
tapes” as it were, that when switched on produce well-defined and coordinated movements: the
escape response, walking, swallowing, the prewired aspects of bird songs, and the like”. (Cf.
Rodolfo Llinàs, op.cit.., location 2039) (Tradução Livre)
219
Reduzem um pouco o nosso campo de escolha, tornando-o mais confortável, sem
com isso nos impedir de modificar e readaptar os movimentos. Nos ajudam
sobretudo quando a ação possui um caráter ritmicamente marcado, circular.291
Desse modo, as fitas motoras (FAPs) representam um aspecto da atividade
intrínseca da própria mente. O ato de andar, em si, não depende de estímulos
sensoriais. O movimento, mesmo o movimento organizado, é intrinsecamente
gerado. A ideia é de que a função do sistema nervoso é capaz de operar sozinha, e
de que os sentidos servem somente como reguladores de uma atividade motora
interna. Eles modulam, mais do que informam, esse sistema intrínseco. Na base
desse sistema está a atividade elétrica de neurônios na espinha dorsal e no tronco
cerebral – neurônios que regulam tanto os processos respiratórios quanto a
locomoção. Essa linha de raciocínio sobre a execução do movimento difere
frontalmente daquela defendida por Willian James no fim do século XIX. Para
James, o modus operandi do sistema nervoso central era fundamentalmente
reflexológico. O cérebro seria um complexo sistema de recepção e resposta
(input/output) governado pelas exigências temporárias do mundo externo. Um
sistema que funcionava na base de respostas a estímulos externos constantes. Um
sistema passivo, portanto.
A linha de pensamento de James seria confrontada por aquela de Graham
Brown, que preconizava, de modo contrário, um sistema organizado sobre uma
base autoreferencial. Que não é apenas um receptor, mas também gerador ativo de
padrões que não necessariamente dependem de estímulos externos. O sistema
pode operar sozinho. O cérebro sequer precisa de um fluxo contínuo de
informações sensoriais para gerar percepções. As informações dos sentidos
291
Outra citação do livro de Llinàs pode ajudar a iluminar ainda mais a definição das fitas
motoras: “(...)motor FAPs represent a naturally selected functional organization of the central
nervous system, one slanted toward computational efficiency. These “plug and play” modules,
when activated or released, automatically call to order the various muscle groups and synergies
required for a stereotypical movement execution, from the simple to the complex. The
computational efficiency, the reader will recall, is attained by the preset automaticity of these
modules of function: the brain does not have to reinvent the wheel, from a neuronal circuit
(connectivity) perspective, each and every time a particular routine movement is required of the
body by circumstance. This allows the central nervous system to put its mind to other things, so to
speak. The effectors of FAPs are the motor neurons and the muscles whose contractions the motor
neurons drive. Put another way, generated from the internal functional geometry within the basal
ganglia is a translation into expression through the functional geometry of how the body can and
needs to move, given the momentary (internal and/or external) context”. (Cf. Idem, Ibidem,
location 3335)
220
servem somente para modular contextualmente essas percepções.292 Talvez o
grande exemplo dessa vida intrínseca do cérebro seja o estado cognitivo dos
sonhos. Um estado cognitivo que não mais diz respeito a uma realidade externa,
pois não é mais modulado pelos sentidos. Liberto da tirania dos sentidos, o
sistema gera “tempestades elétricas” intrínsecas, capazes de criar novos mundos.
O substrato desse estado são as próprias experiências do passado armazenadas na
memória e a dinâmica de trabalho do próprio cérebro. Um pouco como acontece
quando simplesmente somos absorvidos pelo próprio pensamento e quase
esquecemos da existência de um mundo exterior. Ou como acontece quando
somos capturados por uma música e nossa atenção é arremessadas para outros
confins do universo mental.
Desse modo, segundo a linha de Brown, se vejo se aproximar um buraco na
direção na qual caminho, meus sentidos me alertam, minha atenção é rapidamente
solicitada, e refaço minha trajetória baseado nas informações fornecidas pela
visão. Uma vez iniciado no sistema motor superior, e sofrendo alguns pequenos
ajustes para contemplar dados como o tipo de terreno no qual andamos, o ritmo do
nosso caminhar passa a ser conduzido pelo circuito nervoso da medula espinhal.
Uma espécie de piloto automático é ligado. Na base das fitas motoras estão as
redes neuronais que geram esses movimentos estereotípicos, normalmente
rítmicos, relativamente constantes. Essas redes geram o padrão neural de atividade
que dirige FAPs evidentes, como é o movimento de andar.
As FAPs sublinham todos os movimentos voluntários. Llinàs argumenta
que, com o tempo, a própria vocalização virou uma FAP. Estranhamente, sua
teoria se combina com a de Wray: às fórmulas mais ou menos prontas que
utilizamos para construir sentenças no dia a dia, sem muito pensar nelas,
equivalem a fitas motoras. Pensamos uma sentença e já estamos com sua
execução física engatilhada, como imagem pré-motora pronta para ser disparada –
fisicamente realizada. Tudo isso nos traz de volta os elos mais profundos entre
emoções e vocalizações – o elo que teria formado a base da comunicação
melodiosa e holística dos primeiros hominídeos. Para a existência de uma
“prosódia biológica” – capaz de possibilitar certo grau de comunicação mesmo
entre humanos e outros mamíferos. “These are representations of the internal
292
Sobre o modo de ação contextual do cérebro ver Oliver Sacks, “O último hippie”, In. Um
Antropólogo em Marte, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
221
abstractions such as emotions and intentions. So a prosodic event is an abstraction
coupled with a motor expression that conveys to another animal what its internal
state is like at that moment”.293 Com as modificações do corpo humano ao longo
da evolução, trazendo um aumento do grau de intencionalidade e das capacidades
prosódicas, o novo sistema usou e ampliou as FAPs de vocalização, tirando
partido da cada vez maior capacidade de produzir padrões sonoros.
Os argumentos de Llinàs que associam as vocalizações com padrões
motores fixos, modulares, são ainda mais fortalecidos por casos de patologias
como a síndrome de Tourette e o mal de Parkinson. Doenças neurológicas que
afetam os gânglios basais, um conjunto de núcleos subcorticais intimamente
relacionados com as atividades motoras do cérebro. Llinàs propõe que ali são
geradas as FAPs mais complexas. “In fact, the activity in the basal ganglia is
running all the time, playing motor patterns and snippets of motor patterns
amongst and between themselves—and because of the odd, reentrant inhibitory
connectivity amongst and between these nuclei, they seem to act as a continuous,
random, motor pattern noise generator”.294 De certo modo, as fitas motoras são
liberadas. Primeiramente como potência virtual, depois como imagem pré-
motora, e finalmente autorizadas a serem atualizadas como movimento. A
síndrome de Tourette age justamente sobre o aspecto inibitório dessa dinâmica. A
destruição parcial dos gânglios basais, nesse caso, geram uma liberação contínua
de tipos específicos de fitas motoras. O sujeito torna-se hipercinético: tamborila
sem cessar os dedos, mexe continuamente e sem motivo os braços, fala
incessantemente (muitas vezes palavrões). No caso do mal de Parkinson são as
próprias fitas motoras que vão sendo apagadas, desconstruindo aos poucos, de
cima para baixo, a grande catedral dos movimentos mais complexos até os mais
elementares.295
293
“Essas são representações de abstrações internas como as emoções e as intenções. Desse modo,
o evento prosódico é uma abstração acoplada a uma expressão motora que transmite para outro
animal qual é o estado interno do emissor naquele momento”. (Cf. Rodolfo Llinàs, op.cit..,
location 3458) (Tradução Livre) 294
“De fato, os gânglios basais vivem em atividade ininterrupta, tocando padrões motores e
trechos de padrões motores entre, e também no meio deles – e por causa da curiosa e recursiva
conectividade por entre e no meio desses núcleos, eles parecem agir como um contínuo e
randômico gerador de ruídos de padrões motores”. (Cf. Rodolfo Llinàs, op.cit.., location 2600)
(Tradução Livre) 295
“Neuropathology of these nuclei may be viewed as either producing an excess of FAPs, as in
Tourette’s syndrome, or as a defect with the eventual loss of them, as seen in Parkinson’s
syndrome. In the case of people with Tourette’s syndrome, where there is diagnosed partial
222
Mas o principal episódio clínico utilizado por Llinàs para argumentar que as
vocalizações tornaram-se também FAPs vem de um caso batizado de “palavras
sem mente”. Um derrame fulminante destruiu quase que inteiramente o cérebro de
um paciente, salvo os gânglios basais e a área de Broca, no córtex. Também uma
parte do tálamo foi poupada, de modo que essas três partes mantiveram algum
grau de conexão. Depois de vinte anos de coma e de imagens cerebrais que
comprovam que o cérebro está funcionalmente morto, o paciente, em estado
vegetativo, ocasionalmente emite palavras. Aparentemente foi o único módulo
funcional do sistema nervoso que conseguiu sobreviver. “Nesse caso, a geração de
palavras é uma propriedade intrínseca do cérebro”.296 Isso mostra que alguns
circuitos são capazes de sustentar uma expressão motora “modular”, que articula
um complexo sistema de realização. Para serem ditas, palavras precisam de
ativação fonológica apropriada. Da articulação temporal de vários músculos,
como o diafragma, além das cordas vocais. Com isso, Llinàs sugere que os
eventos pré-motores que levam à expressão da linguagem são em todos os
sentidos iguais aos eventos pré-motores que precedem qualquer movimento
executado com um propósito definido. Ora, ao que me parece isso nos leva de
volta para a intuição de David Huron, mencionada algumas páginas atrás: a saber,
de que as influências rítmicas são bem mais espalhadas do que geralmente
pensamos. Ritmos comuns presentes no corpo influenciando o modo como nos
movemos, dançamos, fazemos música e falamos. Misturando-se, infiltrando-se,
contagiando-se uns aos outros. As fitas motoras representam um elo entre eles.
Ritmos presentes nos padrões fixos de ação que estão na base de todos os
movimentos voluntários do corpo.
Como o próprio nome aponta, esses padrões são ditos “fixos” porque
representam uma forma estereotipada e sem muita variação não apenas no âmbito
do indivíduo, mas em todos os indivíduos da espécie. Llinàs argumenta que “essa
fixidez pode ser vista desde o mais simples ao mais complexo padrão motor”.
Tudo bem. Mas é preciso pensar também que existem variações dentro dessa
destruction of the basal ganglia, there is an abnormal, continuous liberation of very particular types
of FAPs. These patients are characterized by continuous drumming of their fingers, continuous
talking, continuous arm movement, and the continuous inability to stay quiet; in a word, the
typical hyperkinetic individual”. (Cf. Idem, Ibidem, location 2167) 296
“This again reaffirms that the nervous system appears very much to be organized in functional
modules. In this case, word generation is an intrinsic property of the brain”. (Cf. Idem, Ibidem,
location 2346)
223
fixidez. Que mesmo os movimentos estereotípicos podem apresentar nuanças,
alongamentos, cadências e desenhos diferentes. De um lado, isso pode e deve se
relacionar com aspectos da anatomia própria de cada pessoa e também do padrão
anatômico de determinado grupo humano. Partindo do indivíduo, já nascemos
com uma extensa memória genética, com uma imensa quantidade de sabedoria
sensório-motora que deriva do complicado sistema elétrico que a evolução
colocou em nossos cérebros. Uma memória que ocorre na ausência de
experiências sensoriais. Memórias que se incrustaram no código genético através
de uma miríade de pequenas mutações ocorridas no genoma desde tempos
imemoriais, trazidas à luz pela seleção natural. Um bebê já nasce com os
movimentos das mãos, dos pés e de boca – os circuitos já estão lá, ativos. As
estruturas funcionais e as FAPs de base já existem. Sem contar com todos os
outros movimentos involuntários internos que compõem o organismo.
Basicamente o que ocorre com o desenvolvimento é que esses circuitos são aos
poucos afinados, ao mesmo tempo em que certas áreas do cérebro desenvolvem-
se. Mas eles já estavam lá. Em um certo sentido, já somos ao nascer.
Por outro lado, viremos a ser. Porque o corpo não é estático, e sim eterno
devir. E os sistema inteiro precisa adaptar-se às grandes mudanças impostas ao
nosso corpo durante não apenas o período em que nos desenvolvemos e viramos
adultos, mas também às grandes desconstruções do envelhecimento. O sistema
nervoso precisa seguir continuamente o corpo. Sua grande habilidade é poder
modificar-se incessantemente através da experiência. Durante o desenvolvimento
o sistema nervoso não sabe o quão alto você vai ser ou o quão distanciados um do
outro seus olhos estarão: ele precisa adaptar-se funcionalmente a um corpo que ele
nunca ‘viu’ antes. É nesse sentido que, quando olhados com olhar mais fino,
corpos diferentes geram movimentos que, apesar da dinâmica estereotípica,
guardam algum grau de diferença. Na adaptação exigida pelo seu próprio corpo,
pode ser que, sem muita consciência disso, uma mulher baixa de quadris largos
caminhe de forma diferente do que uma mulher alta de quadris estreitos. Acontece
que as fitas motoras podem ser não apenas aprendidas, mas também modificadas
pela experiência. E disso resulta que a mulher alta de quadris estreitos, julgando
mais elegante o movimento ondulado da mulher baixa de quadris largos, passe a
intencionalmente imita-lo no seu próprio caminhar. Reorganiza desse modo suas
relações corporais internas. É o que vemos, por exemplo, e feito de outro modo,
224
no jeito de desfilar das manequins – jeito propositalmente balançado, aprendido.
Uma vontade, um aspecto cultural, se impôs sobre a lógica do movimento
corporal.
É possível, contudo, que na base disso haja também um complexo jogo de
propensões da própria anatomia. Da relação direta entre o cérebro e certas
particularidades do formato dos corpos. E não apenas no âmbito individual. Em
outro nível, há um corpo médio, meio abstrato, que apresenta uma espécie de
soma total de determinado grupo humano. Resultado de um diálogo incessante,
confuso, ancestral, entre o corpo e a cultura. Diferenças anatômicas não entre
indivíduos, mas entre populações. Algo que tem a ver também com a reprodução
desses padrões dentro da cultura. E isso até chegar num ponto em que nem mais
se consegue distinguir entre os dois. Não há qualquer viés determinista nesse
pensamento. Todos sabemos da existência de uma história cultural do corpo. Do
modo como o próprio corpo é incessantemente recriado pela cultura através dos
tempos. E assim é de fato. Mas não é apenas isso. Parece haver uma dimensão
mais puramente física que também contribui para o desenho final desses padrões
de movimento. Para toda a esfera rítmica, corporal, sobre a qual se apóia a
existência. Para a forma como se constroem as tais fitas motoras propostas por
Llinàs. E que, por sua vez, é também capaz de gerar diferenças culturais. A
equação é simples: a cultura age sobre o corpo; mas também o corpo age sobre a
cultura. A separação entre os dois é muito mais uma necessidade conceitual, uma
precaução ideológica, um tabu histórico ou um cuidado intelectual do que uma
realidade. No fundo, os dois são indissociáveis.
Comentando o estilo específico de jogo criado pela seleção canarinho, o
antropólogo Antônio Risério declarou que “o povo brasileiro reinventou o futebol
com a inteligência corporal específica de sua formação etnocultural”. E que se
dando tal recriação em horizonte barroco, na interseção da sensibilidade trazida
pelo colonizador português, seria possível falar de uma “escola barroco-mestiça
de futebol”.297 Gilberto Freyre chega a referir-se especificamente a um tipo de pé
caracteristicamente brasileiro, mestiço, “pé pequeno que o mulato tem certo garbo
em contrastar com o grandalhão, do português, do inglês, do negro, do alemão”. E
cria a partir disso uma relação entre a proporção anatômica do membro físico com
297
Ver Francisco Bosco, Sergio Cohn (org.), Encontros: Antônio Risério, Rio de janeiro, Azougue
Editorial, 2009, p.119.
225
a dança corporal diferenciada que marca certo movimento de corpo que iria se
infiltrar em diversas esferas da vida brasileira: “O pé ágil mas delicado do
capoeira, do dançarino de samba, do jogador de foot-ball pela técnica brasileira
antes de dança dionisíaca do que de jogo britanicamente apolíneo”.298
Em um livro específico sobre a relação entre o futebol e o Brasil, em que
também estão presentes a música popular e a literatura como espécies de entes
próximos, o ensaísta José Miguel Wisnik nos convida a “admitirmos com
simplicidade a constatação não excludente nem generalizante, mas
desmistificadora e a cada vez singular, de que afrodescendentes manifestaram a
manifestam uma extraordinária prontidão esportiva e musical, que veio a ter um
papel decisivo na constituição cultural do Brasil moderno”.299 Sublinhei a palavra
prontidão para com isso indicar que Wisnik a tomou de empréstimo dos versos do
compositor Noel Rosa: “O samba, a prontidão e outras bossas/ são nossas coisas/
são coisas nossas”. Algumas páginas antes, o próprio Wisnik cita um artigo de
Hans Ulrich Gumbrecht no qual o pensador alemão afirma que “saber se as
virtudes do futebol brasileiro (...) têm realmente algo a ver com a componente
africana dessa cultura, como Gilberto Freyre sugeriu na alvorada histórica da
glória futebolística nacional, constitui (...) problema” que “nos conduz
inevitavelmente para as proximidades de uma zona intelectualmente tabu, na qual
– por bons motivos, por motivos quase políticos – eu não gostaria de tocar
aqui”.300 Wisnik esclarece no fim da citação que o próprio Gumbrecht explicitaria,
durante um debate realizado em São Paulo, que o “tabu” referia-se ao
reconhecimento da especial prontidão dos afrodescendentes para o futebol e a
dança.
Enfim, trata-se de um terreno minado. Um terreno no qual conflitos raciais
acumulados e abertos, dissimulados ou escancarados, presentes ou passados,
jogam uma terrível sombra de desconfiança sobre qualquer pensamento que não
seja explicitamente destinado ao reconhecimento da condição desfavorecida dos
afrodescendentes no Brasil (passada e presente) ou ao reconhecimento e
valorização de suas contribuições culturais para o país. Como imenso laboratório
de mestiçagem genética e cultural no Novo Mundo, como grande centro
298
Cf. Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos, p.739. 299
Cf. José Miguel Wisnik, Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil, p.229. 300
Cf. José Miguel Wisnik, op.cit.., p.227.
226
planetário de cruzamentos raciais, é possível supor que nesse caldeirão de
contatos e contágios tenham nascido novos “tipos de corpos”. E aqui utilizo o
termo corpo num sentido mais amplo, que não se deixa definir de forma
cristalizada pelas classificações científicas. Um sentido que compreende e abarca
o que denominamos por cultura. Corpo não apenas biológico, mas também corpo
histórico possível. Uma conjunção de ambos. Um emaranhado de tecidos,
movimentos, ritmos, mucosas, sons, rasuras, lembranças há muito esquecidas,
predisposições ancestrais e significados sociais urgentes. Corpos ritmados, sempre
em movimento. Como aqueles que vislumbrei nas meninas que andavam numa
rua do Rio de Janeiro.
227
5 Conclusão
Um dos meus hobbies, enquanto morei Paris, tem sido acompanhar as
notícias que a imprensa francesa divulga sobre o meu país. A impressão que
tenho, olhando jornais e revistas, é de que a França está de olho no Brasil. Não sei
se a Europa toda está de olho no Brasil, mas a França está. Há uma oferta
crescente de informações sobre o país tropical. Com a proximidade das eleições
presidenciais, pude ver numa única semana pelo menos três importantes revistas
francesas dedicarem suas matérias de capa ao Brasil, em manchetes como “Brésil:
un géant s’impose”, ou “Brésil: le Nouvel Eldorado”.301 A tônica do olhar francês,
como se pode notar, é otimista - uma aposta renovada e esperançosa na
capacidade e na vez do Brasil em ocupar um lugar mais expressivo no mundo. O
otimismo da mídia internacional reverbera na imprensa brasileira, onde é comum
o leitor deparar-se com expressões auspiciosas – como “a grande chance” ou
“oportunidade histórica” - para designar as expectativas que cercam o momento
do país.
Não pretendo entrar no complexo detalhamento dos fatores que nos
contextos local e mundial possibilitaram a recente emergência brasileira. Limito-
me apenas a constatar que a ideia de um maior peso econômico do Brasil no
contexto global associa-se quase sempre, e muitas vezes de modo um tanto
confuso, com o poder de fascínio exercido por sua cultura diante de olhos e
ouvidos europeus. Há uma expressão risonha e simpática diante de quase tudo o
que concerne o país. Um filme francês recente, batizado com o nome da famosa
praia carioca de Copacabana, nos pode dar uma melhor ideia sobre o lugar
reservado ao país no imaginário daqui. Apesar do nome e das referências claras ao
Brasil, não há uma única imagem dele projetada na tela. O Brasil não ganha
materialidade. Ele é apenas uma espécie de devaneio: o paraíso imaginado, vago,
para onde a protagonista dirige seus sonhos e anseios de felicidade quando a
monótona realidade da classe média francesa – materialmente resolvida e
301
Ver as revistas “Le Monde Diplomatique”, Brésil un Géant s’impose – Hors-Série, nov. 2010, e
“Le Point”, Brésil: le Nouvel Eldorado, maio 2010.
228
existencialmente esvaziada – lhe cansa o espírito. É lá, naquele país imaginado,
que se encontram o calor humano, a alegria, a liberdade do corpo e a pulsão de
vida que tanto lhe fazem falta num cotidiano de indiferença individualista e de
frieza humana burocratizada.
Se faço esta introdução é porque quero ressaltar que o aumento da presença
econômica brasileira não é apenas saudado como a mera chegada de mais um
competidor de peso no mercado mundial. Ao que parece, ele carrega também a
marca da expectativa em algo mais – que não se confunde com a simples e vulgar
liderança econômica. Que abarca aspectos mais profundos da existência humana.
Em recente passagem pela França, o cineasta Cacá Diegues percebeu o clima que
cerca o momento brasileiro: “Hoje, quando a opinião pública local julga a França
decadente, a Europa em grave crise e o mundo à beira do desastre, o Brasil surge
para ela como uma nova esperança de alguma coisa que não conhece, mas
presume existir. E, para garantir a vigência concreta desse sonho, somam, às
estatísticas positivas que possuem sobre nós, o impressionante carisma de um
presidente que nos devolveu, a nós mesmos e ao mundo, o valor simbólico do
país, perdido desde a ditadura militar”.302 Embora constantemente bombardeada
pelas notícias dos inúmeros fracassos de um lugar que, nas palavras do general De
Gaulle, “não é um país sério”, a velha utopia parece atualizar-se no imaginário
francês cada vez que indícios palpáveis sugerem que é chegada a hora e a vez do
Brasil.
Não pretendo fazer a genealogia da utopia-Brasil. Os rapports entre França
e Brasil remetem desde a expedição de Nicolas de Villegagnon, em 1504,
passando pelos ensaios de Michel de Montaigne, os textos filosóficos de Jean-
Jacques Rousseau, as pinturas de Jean-Baptiste Debret, e muitos, muitos outros
nomes importantes que, de um modo ou de outro contribuíram para a formação de
um imaginário sobre o país. Apenas constato a existência (ou permanência) dessa
aura utópica, e o fato de que a música popular parece ter se tornado o veículo por
excelência de sua projeção mundo afora. E isso fica patente no filme Copacabana.
Nele, como já disse, não vemos qualquer imagem do país latino-americano. O
detalhe é significativo. Pois os indícios da utopia-Brasil nos chegam pelos
ouvidos, por meio das canções que compõem a trilha sonora. Não são visões do
302
Cf. Cacá Diegues, “Um Amor Antigo”, In. Jornal O Globo, edição de 08/10/2010.
229
paraíso, mas mensagens sonoras, ecos sussurrados de uma longínqua terra da
felicidade. Deveríamos falar de um imaginário auditivo, ou de uma visão sonora.
Estou querendo chamar a atenção para o modo rico e pouco usual em que o país
se dá a conhecer (ou a ser imaginado) pelos ouvidos. Isso me remete à famosa
crítica de Nietzsche quanto a hegemonia dos olhos como órgãos por excelência do
conhecimento humano. Ao que me parece, o Brasil exige não apenas olhos, mas
também ouvidos bem abertos. Um país de ainda escassa cultura visual, que
possuía até há bem pouco tempo altas taxas de analfabetismo, e que mesmo
depois de alfabetizado lê pouco. E que, talvez por conta disso, constituiu-se
predominantemente sob o domínio da oralidade. A palavra aérea impondo-se
sobre a palavra escrita. Os sentidos de pertencimento constituindo-se sobretudo
em torno de sons. O ouvido e a memória oral ocupando lugar de destaque nas
subjetividades e na dinâmica da vida social.
A partir dos anos 1920, essa propensão oralizante irá ganhar um tremendo
impulso com os novos meios de comunicação de massa, culminando na Era do
Rádio, que coincide com o desenvolvimento do samba carioca e do carnaval de
rua. Tudo isso forma um rico caleidoscópio que se vincula ainda com o
crescimento e as reformas urbanísticas do Rio de Janeiro, então capital. Através
de um complexo processo de negociações entre diversos agentes sociais, o samba
deixará de ser perseguido nos terreiros para ser alçado à condição de emblema
nacional, símbolo de uma nova cultura urbana, popular e moderna. É nesse
momento que a canção toma para si a tarefa de definir o que é brasileiro. Noel
Rosa dirá, numa canção dos anos 1930, que “o samba, a prontidão e outras bossas
são coisas nossas”. Na década seguinte, será a vez de Dorival Caymmi afirmar
que “quem não gosta de samba, bom sujeito não é”. Como filha do novo Brasil
urbano do século XX, a canção popular tem seu DNA profundamente marcado
pelos genes de uma utopia nacional-popular, formulada por intelectuais
progressistas dos anos 1920 e 1930 e encampada por toda a nação. Em outras
palavras: o Brasil é desde sempre o grande tema da canção popular moderna.
Muito daquilo que habitualmente entendemos por “brasileiro” deve-se a ela.
Grande parte de sua força – e talvez também seu limite – concentra-se sobre esse
ponto. Certamente essa canção já vinha sendo gestada desde muito antes. Mas
acontece que no século XX ela mergulhou tão fundo nessa espécie de mito
fundacional, que terminou por se confundir com ele. Ou seja: tornou-se ele.
230
O curioso é notar como ela segue – e não raro antecipa – os movimentos de
redefinição da auto-imagem do país. No plano intelectual, a publicação de Casa
Grande & Senzala, em 1933, talvez tenha sido o fato mais determinante na
inauguração de um novo paradigma para a compreensão do Brasil. Depois de
longamente desqualificado pelo cientificismo europeu do século XIX, o país
cultural e racialmente mestiço faz as pazes consigo próprio. Virando o recalque de
ponta-cabeça, Freyre extraiu dos venenos da colonização escravista o remédio da
civilização original dos trópicos. Vendo nossos estigmas pelo seu próprio avesso,
possibilitou uma espécie de reencontro do Brasil consigo mesmo – uma liberação
de forças recalcadas, através da aceitação auspiciosa das marcas e estigmas de um
escravismo mal admitido. O ideal do país mestiço tornou-se o primeiro mito a
poder ser adaptado às aspirações progressistas do Brasil moderno.
Para que tão violenta operação simbólica penetrasse em profundidade o
tecido social e adentrasse o terreno mitológico, era imprescindível o auxílio de
manifestações culturais com maior pregnância junto ao povo. As mentes mais
atentas e avançadas desse momento logo perceberam o imenso potencial da
canção. Mário de Andrade e Gilberto Freyre consideraram-na prontamente como
a arte par excellence do país. Quando o ritmo sincopado do samba torna-se
emblema nacional, participando inclusive de formulações monumentais sobre o
país, ele está nos falando de um imaginário que passou a incorporar os traços
culturais de extração afro-brasileira como dados positivos na construção de sua
auto-imagem. Como vetor importante na formação de um povo que, a partir desse
momento, não apenas é “um povo misturado, mas um povo que gosta muito de ser
misturado” - como disse o presidente Lula no discurso de candidatura do Brasil
para sediar as olimpíadas de 2016. Apesar de calcado numa impostura histórica –
que abolia com a descontração do mito o amargo passado brasileiro – esse ideal
criou a possibilidade da projeção de uma imagem positiva do país para si mesmo,
da instauração de um amor próprio que unificava simbolicamente toda a nação, da
fundação de um mito moderno: o de um país unificado pelo afeto, indiferente aos
matizes de cor de pele, construído sob o signo do encontro, da dança e da alegria.
E isso, diga-se, num momento em que racistas fanáticos preparavam-se para
destruir a Europa com a Segunda Guerra.
231
Interessa-me saber de que modo determinada linhagem da música brasileira
guarda em suas camadas mais profundas os sentidos dessa utopia que venho aqui
apontando. E de que modo esses sentidos são experimentados e compreendidos
pelas culturas não-brasileiras. Para melhor definir a linhagem musical à qual me
refiro, torna-se necessário fazer um deslocamento para o fim dos anos 1950. É
nesse momento que, embalado por uma forte onda de crescimento econômico
apoiado no desenvolvimentismo do governo Juscelino Kubitschek, o país passa
por um rápido processo de modernização. Extremamente complexo e abrangente
em suas implicações, esse processo reacende a chama utópica dos anos 1930. Só
que muda radicalmente o seu sentido.
A utopia do “Brasil mestiço” dos anos 1930 volta-se para o presente – para
a afirmação do que ele já é. O efeito utópico está no fato de que esta valorização
gera também uma série de expectativas sobre o lugar a ser ocupado pelo país no
contexto mundial. Ela expõe o anseio profundo de um país que queria ser sujeito
da história, e de modo original. Num recente ensaio sobre Casa Grande &
Senzala, o crítico literário Benjamin Moser comenta a respeito de Gilberto Freyre
que “toda a sua obra reflete uma profunda necessidade emocional de acreditar que
o Brasil (e Portugal, por extensão) era especial. Ele nunca perdeu o poderoso
desejo de banir o sentimento de inferioridade nacional que o atormentara na
juventude. Sua defesa da sociedade miscigenada, sob essa luz, não era uma
reivindicação progressista. Não se tratava do que o Brasil devia ou podia ser, mas
de uma justificativa do que ele era”.303
Embora permaneça a “profunda necessidade emocional de acreditar que o
Brasil era especial”, a reivindicação do seu lugar no mundo ganha, no fim dos
anos 1950, um novo sentido progressista, que muda o significado do impulso
utópico. Vem daí o comentário de Caetano Veloso, de que o Brasil ainda há de
merecer a Bossa Nova. Nela, projeta-se a ideia – e a exigência - de um país
superior a si próprio. O importante é notar que essa mudança de sentido será
cifrada em modificações ocorridas no próprio código da música popular. É por
isso que Chico Buarque resumiu sua história no século XX do seguinte modo:
“Noel Rosa formatou essa música nos anos 1930. Ela vigora até os anos 1950 e aí
303
Cf. Benjamin Moser, “A Tragicomédia de Apipucos: Ecos do Lusotropicalismo, do Texas a
Portugal e Angola”, In. Folha de São Paulo, edição de 11/07/2010.
232
vem a bossa nova, que remodela tudo – e pronto”.304 Ou seja: Chico destaca os
dois momentos cruciais na formulação da linguagem da canção popular urbana, e
estes coincidem exatamente com os dois momentos mais radiantes da construção
de uma utopia brasileira no século XX. Tom Jobim e João Gilberto de alguma
forma sabiam disso. Olharam para trás e reconheceram uma linguagem já
amadurecida, com considerável espessura, mas que, para entrar em sintonia com
as novas necessidades do Brasil, precisava erigir uma ponte com o presente e o
mundo – tornar-se cosmopolita. Depois de um período de relativo anacronismo
durante quase toda a década de 1950, a Bossa Nova recolocou a música popular
como elemento central na composição e veiculação da nova imagem que o país
oferecia ao mundo: a imagem de um país que não era apenas sedutor pelo
exotismo de suas paisagens e tambores, ou pelo tutti-frutti hat de Carmen
Miranda, mas relevante pelo projeto modernizante que propunha. Nela, o mito
épico, carnavalizante e exótico do país mestiço transmuta-se em algo diferente.
Como diz Lorenzo Mammì, “O país entrava na era dos consumos sem ter passado
pela fase heróica e sombria da industrialização. Por um breve momento encarnou
a esperança de uma modernidade leve – lúdica e eficiente como um drible de Pelé,
natural e culta como um jardim de Burle Marx, exata e solta como uma melodia
de Bossa Nova. Tom Jobim foi a expressão mais popular, e provavelmente a mais
adequada, dessa ambição”.305 Há uma mudança de foco sobre o modo de inserção
brasileira no mundo. Este torna-se mais ambicioso, passa a mirar o futuro.
Talvez não seja exagero dizer que, assim como Casa Grande & Senzala, a
Bossa Nova redimensionou o que pensávamos sobre nós próprios – tendo
alargado tremendamente os limites de nossas possibilidades, daquilo que
pensamos ser capazes, e, consequentemente, de nossas responsabilidades. Isso foi
sentido com excitação febril pela geração posterior à de Jobim e João Gilberto.
Tom Zé resumiria o valor do Tropicalismo “a sua coragem de gritar que não
podemos fugir às responsabilidades criadas por João Gilberto e Tom Jobim”. No
encarte de um dos seus discos dos anos 1980, Caetano Veloso escreveu que a arte
de João Gilberto “transformou toda a cultura e mesmo toda a vida dos
brasileiros”. A partir da Bossa Nova, Caetano passa a ver a “instância da música
304
Cf. Chico Buarque (entrevista concedida a Fernando de Barros e Silva), “O Tempo e o Artista”,
In. Folha de São Paulo, edição de 26/12/2004. 305
Cf. Lorenzo Mammì, “Prefácio”, In. In. Cancioneiro Jobim: Obras Escolhidas, p.18.
233
popular” como determinante de nossa “verdade dada e criável”.306 O samba é visto
como um projeto de Brasil – ou, por isso mesmo, como um projeto de mundo
através do Brasil. O samba: não uma tradição cristalizada a ser defendida, mas um
projeto que se quer realizar. “O samba ainda vai nascer”, “o samba ainda não
chegou” – “pai do prazer, filho da dor” – o anúncio e a exigência da realização
futura de algo que ainda não se cumpriu.
Foi a Bossa Nova que tornou esteticamente possível a formulação desse
“dever de grandeza” propagado pelos tropicalistas. Com ela, mais do que nunca, a
música popular passou a manter uma relação ambígua com o destino do país –
onde o não-realizado realiza-se como canção. Seria esse o substrato da Era dos
Festivais, nos anos 1960. É difícil ter hoje uma noção clara do impacto que teve o
sucesso mundial da Bossa Nova para um país cuja cultura e a vida social se
deparavam a cada momento com os estigmas do subdesenvolvimento. Como disse
Tom Zé, “No início de 58 o Brasil era um anônimo país exportador de matéria-
prima. Num fenômeno jamais conhecido na história antiga ou na modernidade,
terminou o ano exportando arte”.307 A Bossa Nova lançou a música popular
brasileira em um novo patamar. Atualizou-a com o momento histórico, trouxe-lhe
uma nova força dinâmica, fortaleceu sua vocação para cruzar e dissipar fronteiras,
- entre erudito e popular, nacional e estrangeiro - realizando sínteses bem-
sucedidas entre a linguagem do samba e as últimas informações sonoras vindas de
outras tradições musicais. Sua linguagem e sua visão de mundo estão
profundamente marcadas pela ideia (espécie de otimismo trágico) de uma entrada
desimpedida e leve do Brasil no capitalismo avançado. “Minha música é
essencialmente harmônica, disse Tom Jobim. Sempre procurei a harmonia. Parece
que eu tentei harmonizar o mundo. O que é evidentemente uma utopia. (...) No
entanto, minhas músicas são executadas no mundo inteiro. O mundo inteiro gosta,
mas o mundo inteiro não é utópico. O que é utópico é o Brasil. O Brasil é a
grande utopia. É o paraíso”.308
Há ainda um ponto que eu gostaria de destacar. Porque nele, creio, reside
considerável parte da singularidade da música brasileira. Ele diz respeito ao
profundo vínculo que ela mantém com a língua falada. Foi o linguista Luiz Tatit
306
Ver Guilherme Wisnik, Caetano Veloso, São Paulo, Publifolha, 2005, p.122. 307
Cf. Tom Zé, Tropicalista Lenta Luta, São Paulo, Publifolha, 2003, p.131. 308
Cf. Tom Jobim, In. Tons Sobre Tons, p.52.
234
quem melhor atentou para o fato, ressaltando que os momentos de maior força
persuasiva da música popular são justamente aqueles em que ela permanece mais
colada aos movimentos da língua. “A grandeza do gesto oral do cancionista, diz
ele, está em criar uma obra perene com os mesmos recursos utilizados para a
produção efêmera da fala cotidiana”. Seu maior recurso é o “processo entoativo
que estende a fala ao canto. Ou, numa orientação mais rigorosa, que produz a fala
no canto”.309 Nesse sentido, compor uma canção é procurar uma dicção
convincente que elimine a fronteira entre o falar e o cantar. Trata-se de buscar o
espaço muito preciso onde uma língua encontra uma voz. Ninguém perseguiu
com tanto afinco esse espaço quanto João Gilberto. Sua aspiração é “colher a
articulação com que a melodia se destaca da palavra, mas ainda manter uma
ligação necessária com ela” – “encontrar o momento exato em que o canto
adquire forma própria, sem que esta seja outra coisa além da forma do falar,
sublimada” – manejar o canto na tangente da fala, de modo a “garantir ao verso a
essência musical e ao canto o ser poesia”.310 E tudo isso, tendo como matéria-
prima a prosódia natural do português mestiço do Brasil. Uma língua cheia de
“liquescências”, “isto é, sonoridades fluidas, cujos início e fim não podem ser
definidos com clareza. Uma língua, portanto, que resiste às marcações rígidas,
tentando arredondá-las”. O latim mal-falado que se transforma no português, e
que será recriado no longo e profundo contato com as línguas indígenas do
continente americano e, sobretudo, com as línguas dos escravos africanos.
Com o início do tráfico entre Brasil e África, já na primeira metade do
século XVI nota-se a confluência de línguas negro-africanas com o português
europeu antigo. Foram cerca de cinco milhões de falantes africanos trazidos para
o Brasil para substituir o trabalho escravo ameríndio, ao longo de
aproximadamente quatro séculos. O contexto de relativo isolamento social e
territorial em que foi mantida a colônia pelo monopólio do comércio externo
brasileiro feito por Portugal até 1808, condicionou um ambiente de vida que,
embora altamente hierarquizado e submetido à degradante dinâmica social da
escravidão, revelou-se sob muitos aspectos bastante poroso, maleável, fusional e
aberto à diferença – criando um povo dado a contatos e contágios. Numa das mais
309
Cf. Luiz Tatit, O Cancionista: Composição de Canções no Brasil, São Paulo, Editora da
Universidade de São Paulo, 2002, p.9. 310
Cf. Lorenzo Mammì, “João Gilberto e o Projeto Utópico da Bossa Nova”, p.66.
235
belas passagens de Casa-Grande & Senzala, Freyre destaca o papel da escrava
doméstica como privilegiada interseção entre universos culturais e emocionais
distintos:
A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida:
machucou-as, tirou-lhas as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca
do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que no norte do
Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo. (...)
Amolecimento que se deu em grande parte pela ação da ama negra junto à criança;
do escravo preto junto ao filho do senhor branco.311
Acrescente-se a isso o peso numérico do contingente de negros e afro-
descendentes no Brasil, superando o número de portugueses e outros europeus. O
censo de 1823 apontou 75% de negros e mestiços no total da população brasileira.
Em 1850, o Rio de Janeiro contava com 80.000 escravos sobre 200.000 habitantes
– a maior concentração urbana de escravos desde a antiguidade, com nos informa
o historiador Luiz Felipe de Alencastro. Praticamente no mesmo período, 1860, o
número de escravos em New Orleans não passava de 15 mil. Obviamente, esse é
um dado vergonhoso para o Brasil. Como é vergonhoso o fato de que fomos o
último país independente das Américas a abolir a escravidão. Mas tudo isso não
deixa de indicar a amplitude de uma presença africana que logo se fez sentir em
todos os setores de nossa vida material e afetiva. Essa presença se realizou por
meio de comidas, novas plantas, objetos, batuques, danças, crenças e cantigas.
Mas também de modo menos óbvio, e talvez até mais profundo, por meio da
incorporação de maneiras de pensar, de sentir, de representar o mundo e o destino,
inscritas no próprio corpo da língua. Inscritas no ritmo e na sonoridade do falar
brasileiro. Na amplidão descansada e afetuosa de seus amplos espaços vocálicos.
Na dinâmica própria de sons e silêncios. Na textura fônica de uma série de
vocábulos bantos que, de tão entranhados em nossa vida, nem mais nos
lembramos de sua procedência. Vocábulos que já traziam consigo, formas de
pensar, valores. No deslizar macio das consoantes nasais e líqüidas, que abrem
regiões de transição indefinidas entre as vogais que as precedem e aquelas que as
sucedem. Na tendência a reforçar os acentos, sobretudo quando há uma seqüência
de monossílabos. Uma presença cifrada no movimento sincopado de nossa
prosódia cotidiana. Há, pulsando no corpo da língua, uma memória viva, inscrita
nos significantes corporais e sonoros, cifrada no que Wisnik definiu como “o
311
Cf. Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, p.387.
236
lugar fora das ideias” – “vetor inconsciente por meio do qual o substrato histórico
e atávico da escravidão se reinventou de forma elíptica, artística e lúdica”.312
Essa, me parece, tem sido a matéria-prima por excelência dos músicos
populares no Brasil. O trabalho de João Gilberto (e dos melhores cancionistas
brasileiros) se dá, justamente, em cima dessa herança. Os índices do passado da
formação brasileira estão profundamente incorporados em sua revolução musical.
Ao contrário do que acontecia nos anos 1930, aqui eles não mais necessitam de
uma formulação temática explícita – como o “Brasil brasileiro, mulato inzoneiro”,
de Ary Barroso – pois já estão inscritos no próprio tecido da linguagem. Eles
encontram-se na radicalização maleável do caráter suspensivo do samba, que
caracteriza sua famosa batida de violão – espécie de miniaturização da polirritmia
de uma bateria de escola de samba. Encontram-se também na sua forma de cantar,
sublinhando com uma consciência extraordinária os dois caracteres básicos e
complementares da prosódia brasileira: a articulação frouxa e a acentuação
marcada. Seu nacionalismo tem outra natureza – sua utopia segue outro caminho.
É evidente que o passado escravista deixou marcas de sua violência e arbítrio em
muitas manifestações da cultura brasileira. Mas a Bossa Nova foi como a
sublimação de tudo isso. Sua positividade solar transformou em luz essas nódoas
sombrias. Nela, o passado está presente, mas já não pesa. E, sem pesar, abre a
cortina do futuro. Situa-se na antípoda “da sede do real”, da verve denunciativa,
do olhar épico sobre a miséria, que marcavam o movimento do Cinema Novo na
mesma época. Como bem disse Mammì - usando uma fórmula de Stendhal para
definir a beleza – a Bossa Nova é “promessa de felicidade”.
Talvez Freyre tenha algum razão ao colocar a nascente da poesia e da
música brasileiras na boca do culumin que servia de intermediário entre índios e
brancos no período da catequese; ou na boca do menino da casa grande,
africanizado pelo afeto e pela língua da ama negra; ou na boca dos ladinos – filhos
de escravos que logo cedo aprendiam a falar rudimentos de português e
participavam de duas comunidades linguísticas diferenciadas: a casa-grande e a
senzala. Talvez essa filiação ao universo da infância, ao afeto maternal, ao que se
conservou de doçura em meio ao cruel cenário de uma sociedade duramente
escravocrata, talvez isso tenha tingido nossa língua de alguma modulação
312
Cf. José Miguel Wisnik, Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil, p.405.
237
profunda de afeto íntimo e ideal, que encontra uma via de escoamento e de
máxima realização estética pela voz da canção. Mesmo para quem não entende a
língua portuguesa, algo desse afeto é transmitido pelo simples conteúdo sonoro
dessas músicas. Vem daí a linhagem à qual me refiro ao longo deste escrito. Ela
pode ser percebida em Noel, Sinhô, Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Chico
Buarque, Paulinho da Viola, e em tantos e tantos outros músicos brasileiros. É
esse vínculo profundo com a língua que parece também diferenciar a Bossa Nova
de outra tradição a respeito da qual ela foi em diversas ocasiões acusada de
plagiaria: a do jazz. “A principal diferença entre a escrita de Jobim e a dos
compositores norte-americanos”, escreve Mammì, “está justamente nessa
primazia do canto e, através do canto, da fala”.313
A música popular não é, contudo, um mero reflexo da língua. Na superfície
onde se roçam palavra e som, a canção desvela e cria o próprio corpo da língua.
Ela é aquilo que Roland Barthes definiu como “espaço de prazer, de gozo, espaço
em que a linguagem é trabalhada para nada, isto é, na perversão”.314 Em outras
palavras: a canção oferece um exercício puramente estético da língua, que,
trabalhada na volúpia de seus sons significantes, é, por si só, capaz de criar novos
modos de existência. Tudo isso decorre de uma identificação tão profunda entre
homem e linguagem que trabalhar a linguagem é trabalhar o próprio homem. É
preciso pensar um pouco como Nietzsche: que os sons têm ideias, e de que
“acostumar-se com determinados sons é algo que influi profundamente no caráter:
- adquire-se logo as palavras e locuções e, por fim, também os pensamentos
próprios desses sons”!315 Pode ser uma utopia pessoal, mas quando penso na frase
de Nietzsche, penso no “potencial de contágio” da música brasileira... Conheci
alguns estrangeiros que decidiram visitar pessoalmente o país não por causa de
uma foto, uma matéria de jornal ou um filme, mas por causa de uma canção.
FIM
313
Cf. Lorenzo Mammì, “Prefácio”, p.15 314
Cf. Roland Barthes, “O Grão da Voz”, In. O óbvio e o obtuso, Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1990, p.128 315
Cf. Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, § 104
238
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