paul little territÓrios sociais e povos

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  • 8/6/2019 Paul little TERRITRIOS SOCIAIS E POVOS

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    SRIE ANTROPOLOGIA

    322TERRITRIOS SOCIAIS E POVOS

    TRADICIONAIS NO BRASIL: POR UMA

    ANTROPOLOGIA DA TERRITORIALIDADEPaul E. Little

    Braslia2002

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    TERRITRIOS SOCIAIS E POVOS TRADICIONAIS NO BRASIL:Por uma antropologia da territorialidade

    Paul E. LittleUniversidade de Braslia

    A Diversidade Fundiria no Brasil como Problema Antropolgico

    A imensa diversidade sociocultural do Brasil acompanhada de umaextraordinria diversidade fundiria. As mltiplas sociedades indgenas, cada uma delascom formas prprias de inter-relacionamento com seus respectivos ambientes

    geogrficos, formam um dos ncleos mais importantes dessa diversidade, enquanto ascentenas de remanescentes das comunidades dos quilombos, espalhadas por todo oterritrio nacional, formam outro. Essa diversidade fundiria inclui tambm aschamadas terras de preto, terras de santo e as terras de ndio de que fala Almeida(1989). Ainda, h as distintas formas fundirias mantidas pelas comunidades deaorianos, babaueiros, caboclos, caiairas, caipiras, campeiros, jangadeiros,

    pantaneiros, pescadores artesanais, praierios, sertanejos e varjeiros (Diegues e Arruda2001).

    Esse grande leque de grupos humanos costuma ser agrupado sob diversascategorias populaes, comunidades, povos, sociedades, culturas cadauma das quais tende a ser acompanhada por um dos seguintes adjetivos: tradicionais,autctones, rurais, locais, residentes [nas reas protegidas] (veja Vianna 1996 eBarretto F. 2001b para discusses detalhadas). Qualquer dessas combinaes

    problemtica devido abrangncia e diversidade de grupos que engloba. De umaperspectiva etnogrfica, por exemplo, as diferenas entre as sociedades indgenas, osquilombos, os caboclos, os caiaras e outros grupos ditos tradicionais alm daheterogeneidade interna de cada uma dessas categorias so to grandes que no parecevivel trat-los dentro de uma mesma classificao. Mas, em vez de discutir agora avalidade ou no dessas categorias, vou pedir licena temporria para utilizar o conceitode povos tradicionais, para retomar essa discusso no final do trabalho quandoteremos mais subsdios tanto tericos quanto etnogrficos para esclarecer o que est em

    jogo. At recentemente, a diversidade fundiria do Brasil foi pouco conhecida nopas e, mais ainda, pouco reconhecida oficialmente pelo Estado brasileiro. Ao incluir osdiversos grupos no-camponeses na problemtica fundiria no que Bromley (1989)chama de uma outra reforma agrria , a questo fundiria no Brasil vai alm do temade redistribuio de terras e se torna uma problemtica centrada nos processos deocupao e afirmao territorial, os quais remetem, dentro do marco legal do Estado, s

    polticas de ordenamento e reconhecimento territorial. Essa mudana de enfoque nosurge de um mero interesse acadmico, mas radica tambm em mudanas no cenrio

    poltico do pas ocorridas nos ltimos vinte anos. Nesse tempo, essa outra reformaagrria ganhou muita fora e se consolidou no Brasil, especialmente no que se refere

    demarcao e homologao das terras indgenas, ao reconhecimento e titulao dos

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    remanescentes de comunidades de quilombos e ao estabelecimento das reservasextrativistas. Procuro analisar aqui as razes do sucesso relativo dessa consolidao,

    particularmente notvel quando consideramos que a reforma agrria original a lutapor uma distribuio mais eqitativa das terras produtivas por parte dos trabalhadores

    sem terra e outros setores dispossudos da sociedade

    fica encurralada em confrontosque no parecem ter uma clara sada no horizonte prximo.Minha inteno trabalhar com esse conjunto ecltico de grupos humanos

    desde uma perspectiva fundiria informada pela teoria antropolgica da territorialidadee, da, delimitar um campo de anlise antropolgica centrado na questo territorialdesses grupos ao invs dos enfoques clssicos do campesinato, etnicidade e raa. O focona questo territorial no pretende reduzir` a existncia desses grupos a esse nico fatornem apagar ou ignorar as diferenas existentes entre os diversos grupos. O interesse mostrar como este novo olhar analtico pode detectar semelhanas importantes entreesses diversos grupos semelhanas que ficam ocultas quando se empregam outrascategorias , vincular essas semelhanas a suas reivindicaes e lutas fundirias edescobrir possveis eixos de articulao social e poltica no contexto jurdico maior doEstado-nao brasileiro.

    Apesar da territorialidade ter um papel importante na constituio de grupossociais, nas dcadas recentes esse tema tem recebido um tratamento marginal dentro dadisciplina da antropologia. Essa marginalidade se explica, em parte, pela apropriao doconceito de territorialidade humana pela etologia, onde considerado como um instintoanimal ao par com outras espcies animais (Ardrey 1966; Malmberg 1980). claro que

    para antroplogos socioculturais, explicar conduta humana atravs da comparao comabelhas ou lobos carece de sentido etnogrfico. Pelo lado terico, como Bateson (1972:39) argumentou convincentemente, o conceito de instinto na cincia funciona como

    uma espcie de caixa preta na qual se estabelece um acordo convencional entrecientistas para deixar de explicar um fenmeno determinado. Outra linha de pesquisana antropologia busca explicar a territorialidade humana em termos de densidade

    populacional e limitaes de recursos naturais (veja Dyson-Hudson e Smith 1978). Oproblema dessa abordagem, do ponto de vista apresentado aqui, que se limita a certostipos de sociedades de pequena escala e, portanto, no tem muita aplicabilidade aosgrandes Estados-nao contemporneos.

    A renovao da teoria de territorialidade na antropologia tem como ponto departida uma abordagem que considera a conduta territorial como parte integral de todosos grupos humanos. Defino a territorialidade como o esforo coletivo de um gruposocial para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela especfica de seu

    ambiente biofsico, convertendo-a assim em seu territrio ou homeland1 (cf. Sack1986: 19). Casimir (1992) mostra como a territorialidade uma fora latente emqualquer grupo, cuja manifestao explcita depende de contingncias histricas. O fatode que um territrio surge diretamente das condutas de territorialidade de um gruposocial implica que qualquer territrio um produto histrico de processos sociais e

    polticos. Para analisar o territrio de qualquer grupo, portanto, precisa-se de uma

    1 A palavra inglesa homeland tende a ser traduzida como ptria em portugus. Mas o

    significado mais comum de ptria faz referncia a um Estado-nao, o que desvia o termo homeland de

    seus outros significados possveis referentes s territorialidades de distintos grupos sociais dentro de umEstado-nao.

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    abordagem histrica que trata do contexto especfico em que surgiu e dos contextos emque foi defendido e/ou reafirmado.

    Outro aspecto fundamental da territorialidade humana que ela tem umamultiplicidade de expresses, o que produz um leque muito amplo de tipos de

    territrios, cada um com suas particularidades socioculturais. Assim, a anliseantropolgica da territorialidade tambm precisa de abordagens etnogrficas paraentender as formas especficas dessa diversidade de territrios. No intuito de entender arelao particular que um grupo social mantm com seu respectivo territrio, utilizo oconceito de cosmografia (Little 2001), definido como os saberes ambientais, ideologiase identidades coletivamente criados e historicamente situados que um grupo socialutiliza para estabelecer e manter seu territrio. A cosmografia de um grupo inclui seuregime de propriedade, os vnculos afetivos que mantm com seu territrio especfico, ahistria da sua ocupao guardada na memria coletiva, o uso social que d ao territrioe as formas de defesa dele.

    Com base nesse enfoque, o presente artigo analisar os mltiplos territrios

    sociais que existem no seio do territrio do Estado brasileiro e suas principaiscaractersticas, para depois focalizar aos seus confrontos contemporneos com odesenvolvimentismo, o preservacionismo, o socioambientalismo e o Estadotecnocrtico. Da, o artigo retomar a polmica em torno do conceito de povostradicionais luz dos pontos anteriores. Mas antes, uma breve contextualizaohistrica dos processos de territorializao no Brasil colonial e imperial faz-senecessrio.

    As Ondas Histricas de Territorializao no Brasil Colonial e Imperial

    As transformaes territoriais que a rea que hoje o Brasil sofreu nos ltimos

    sculos esto imbricadas com os incessantes processos de expanso de fronteiras. Ahistria das fronteiras em expanso no Brasil , necessariamente, uma histriaterritorial, j que a expanso de um grupo social, com sua prpria conduta territorial,entra em choque com as territorialidades dos grupos que residem a. Nesta dinmica,

    podemos identificar as origens do que Oliveira (1998) chama de processos deterritorializao que surgem em contextos intersocietrios de conflito. Nessescontextos, a conduta territorial surge quando as terras de um grupo esto sendoinvadidas, numa dinmica em que, internamente, a defesa do territrio torna-se umelemento unificador do grupo e, externamente, as presses exercidas por outros gruposou pelo governo da sociedade dominante moldam (e s vezes impem) outras formasterritoriais.

    Se percorrermos rapidamente os diversos processos de expanso de fronteirasno Brasil colonial e imperial a colonizao do litoral no sculo XVI, seguida por doissculos das entradas ao interior pelos bandeirantes; a ocupao da Amaznia e aescravizao dos ndios nos sculos XVII e XVIII; o estabelecimento das plantationsaucareiras e algodoeiras no Nordeste nos sculos XVII e XVIII baseadas no usointensivo de escravos africanos; a expanso das fazendas de gado ao Serto do Nordestee Centro-Oeste e as frentes de minerao em Minas Gerais e no Centro-Oeste, ambas a

    partir do sculo XVIII; a expanso da cafeicultura no Sudeste nos sculos XVIII e XIX podemos entender como cada frente de expanso produziu um conjunto prprio dechoques territoriais e como isto provocou novas ondas de territorializao por parte dos

    povos indgenas e dos escravos africanos. Para um entendimento mais profundo desses

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    processos, cada frente de expanso precisa ser contextualizada com respeito aomomento histrico no qual acontece, regio geogrfica que serve como seu palco

    principal, aos atores sociais presentes no processo, tecnologia a sua disposio e scosmografias que promovem.

    A resistncia ativa s invases representa, sem dvida, uma das respostas maiscomuns na histria da expanso de fronteiras. Quinhentos anos de guerras, confrontos,extines, migraes foradas e reagrupamento tnico envolvendo centenas de povosindgenas e mltiplas foras invasoras de portugueses, espanhis, franceses, holandesese, nos ltimos dois sculos, brasileiros, do testemunho da resistncia ativa dos povosindgenas para a manuteno do controle sobre suas reas. No caso dos escravosafricanos, a histria da colnia e do imprio est repleta de casos de rebelies, fugas,luta armada e alianas entre quilombos e povos indgenas. Mas se, por um lado, existemmltiplas formas de resistncia, por outro, todas as respostas desses grupos nonecessariamente devem ser classificadas como de resistncia. Existem tambm

    processos de acomodao, apropriao, consentimento, influncia mtua e mistura entre

    todas as partes envolvidas.Esses mltiplos, longos e complexos processos resultaram na criao de

    territrios dos distintos grupos sociais e mostram como a constituio e a resistnciaculturais de um grupo social so dois lados de um mesmo processo. Alm do mais, oterritrio de um grupo social determinado, incluindo as condutas territoriais que osustentam, pode mudar ao longo do tempo dependendo das foras histricas queexercem presso sobre ele. Os constantes processos de miscigenao biolgica esincretismo cultural criaram novas categorias tnicas e raciais, que formaram parteimportante de novos movimentos tais como a Cabanagem (Di Paolo 1990) e osmovimentos milenaristas (Wright 1992). Ao mesmo tempo, os processos de etnocdio

    sofridos pelas distintas sociedades indgenas muitas vezes deram lugar a novosprocessos de etnognese, como atesta tanto o caso abortado dos tapuios (Moreira Neto1988), quanto os casos do surgimento dos caboclos (Parker 1985) e da fuso de gruposindgenas no alto rio Negro (Hill 1996).

    Os quilombos que surgiram a partir da fuga das plantations e engenhosrepresentam outros casos de etnognese cuja consolidao como grupo social se deucom o estabelecimento de territrios autnomos no interior da Colnia e a posteriordefesa desses territrios frente a ataques externos, sendo a Repblica de Palmares ocaso mais conhecido (Carneiro 1966; Freitas 1973). Almeida (2000: 173), por sua parte,argumenta, como base nos mltiplos casos histricos no Maranho, que o conceito deremanescentes das comunidades dos quilombos no deve ser restringido a casos de

    fuga, mas precisa incorporar o amplo leque de situaes no qual, em vez de grandesdeslocamentos por parte dos escravos, houve a apropriao efetiva das grandes propriedades que entraram em decadncia ou faliram, assim aquilombando a casa-grande. A sobrevivncia desses territrios durante sculos deve-se, em parte, estratgia da invisibilidade, tanto simblica quanto social, empregada pelos quilombolas(Carvalho 1996).

    Vinculado invisibilidade o fato da marginalidade econmica dos distintosgrupos sociais e sua localizao em reas intersticiais dos centros econmicos. Dado os

    bruscos fluxos no interesse do mercado capitalista por diversos recursos naturais emercadorias, as terras que no esto mais na mira das foras econmicas hegemnicasde uma poca, podem ser salvas da cobia pelos seus recursos, mesmo se antesestivessem no epicentro de interesse (Little 2000). Isto se exemplifica na histria das

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    diversas frentes econmicas que procuravam e comercializavam as drogas de serto, aborracha, o ouro, as peles animais e tantos outros produtos que entraram e saram dofoco por parte do mercado mundial. Os grupos sociais envolvidos nessas redescomerciais no foram imunes s influncias da economia capitalista. Em alguns casos, a

    criao mesma do grupo social produto dela, como mostra Nugent (1993) nos casodos caboclos, para depois cair na invisibilidade. Essa influncia tambm no significaque esses grupos sociais perdem sua particularidade enquanto grupo. Almeida (1989:173) mostra como as formas de uso comum da terra, que consistem em processossociais resultantes de contradies do prprio desenvolvimento do capitalismo,empregam uma lgica econmica especfica diferente da lgica do capitalismo.

    Esse enfoque nos espaos intersticiais e nos distintos tipos de invisibilidade,no deve ocultar um fato inegvel: desde uma macro-perspectiva fundiria, o resultadogeral do processo de expanso de fronteiras foi a instalao da hegemonia do Estado-nao e suas formas de territorialidade. Mesmo que esse processo no tenha sidohomogneo nem completo, como acabamos de ver, a nova entidade territorial do

    Estado-nao se imps sobre uma imensa parcela da rea que hoje o Brasil, de talforma que todas as demais territorialidades so obrigadas a confront-la.

    O Estado-nao Frente Razo Histrica

    No primeiro quarto do sculo XIX, a entidade poltica do Estado-nao surgiunas Amricas como uma nova forma de agrupamento social e geogrfico, para logo emseguida se converter na forma hegemnica de controle territorial em todo o continentee, depois, no mundo (Anderson 1991). Essa hegemonia chegou a tal ponto que, para amaior parte das cincias sociais contemporneas, o conceito de territorialidade diretamente vinculado s prticas territoriais dos Estados-nao e tende a ocultar outros

    tipos de territrios, como os territrios sociais sob anlise aqui.2

    Os Estados-naointroduziram uma srie de particularidades na sua forma de territorialidade que hoje emdia formam parte dessa hegemonia no pensamento territorial. Esteva Fabregat (1996)mostra como uma ideologia territorial fundamenta o estabelecimento e expanso dosEstados-nao. Em primeiro lugar, a ideologia territorial do Estado-nao vinculadaao fenmeno do nacionalismo, que reivindica um espao geogrfico para o usoexclusivo dos membros de sua comunidade nacional (Gellner 1983). Em segundolugar, esta ideologia territorial se fundamenta no conceito legal de soberania, que

    postula a exclusividade do controle de seu territrio nas mos do Estado.A existncia de outros territrios dentro de um Estado-nao, sejam eles as

    autoproclamadas naes ou nacionalidades, ou territrios sociais como estamosanalisando aqui, representa um desafio para a ideologia territorial do Estado,

    particularmente para sua noo de soberania. Esse ponto de vista representa uma dasrazes pela qual o Estado brasileiro teve e tem dificuldade em reconhecer os territriossociais dos povos tradicionais como parte da sua problemtica fundiria. Ao mesmotempo, a hegemonia territorial do Estado-nao requer que os outros territrios queexistem no seu seio sejam tratados na sua relao com este. Por essa razo, a anlise

    2 Mesmo incorporando os novos aportes sobre a desterritorializao dos migrantes internacionais,

    o foco desses estudos continua estando dentro de marcos nacionais, medida que analisa a problemticaidentitria das pessoas que residem fora de seu pas de origem (isto , seu verdadeiro territrio). Assim, o

    conceito de desterritorializao aceita a expresso hegemnica da territorialidade do Estado-nao, mastenta desloc-lo para outros espaos (Olwig 1997).

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    aqui toma o Estado-nao brasileiro como seu universo de anlise, no qual os diversos povos tradicionais so os principais grupos a serem analisados. Dada a amplitudeemprica desse universo, este trabalho, embora utilize estudos etnogrficos, no etnogrfico, mas representa um exerccio de macro-anlise antropolgica.

    Um primeiro passo nesse empreendimento estabelecer os parmetros legaisdefinidos pelo regime de propriedade vigente no Brasil. Em grandes linhas, a terra dividida em duas categorias bsicas: terras privadas e terras pblicas. As terras privadasso presididas pela lgica capitalista e individualista, segundo a qual o dono consegue odireito do controle exclusivo sobre a parcela que lhe pertence, da sua explorao parafins econmicos, de vend-lo e de reivindicar a propriedade se ela estiver injustamenteem poder de outro (Brito 2000). De uma perspectiva sociocultural, a mais radicalinovao desse conceito est no poder de adquirir ou alienar a terra atravs do processode compra e venda no mercado, convertendo assim a terra em mercadoria (cf. Polanyi1980).

    A noo de terras pblicas, por outro lado, associada diretamente com o

    controle da terra por parte do Estado. Nessa concepo, a terra pertence, ao menosformalmente, a todos os cidados do pas. Porm, o aparelho de Estado que determinaos usos dessas terras, supostamente em benefcio da populao em seu conjunto. Narealidade, esses usos tendem a beneficiar alguns grupos de cidados e, ao mesmotempo, prejudicar outros. Conseqentemente, o usufruto particular das terras pblicas seconverte numa luta pelo controle do aparelho do Estado ou, no mnimo, pelodirecionamento de suas aes em benefcio de um ou outro grupo especfico decidados.

    Para Anbal Quijano (1988), os conceitos de privado e pblico, tal como sousados atualmente na Amrica Latina, mantm as sociedades latino-americanas presas a

    esquemas que no correspondem s necessidades de seus diversos membros, nem suarealidade quotidiana. O binmio privado-pblico, para Quijano, representa duas carasda mesma razo instrumental, cada uma encobrindo a dos agentes sociais que competem

    pelo lugar de controle do capital e do poder: a burguesia e a burocracia (p.24). Emcontraposio razo instrumental, Quijano identifica uma razo histrica que,embora subordinada razo instrumental, continua possuindo uma forte presena entreos povos marginalizados pelos sistemas atuais de poder e age contra o poder existente(p.17).

    No caso dos povos tradicionais do Brasil, uma grande semelhana pode serdetectada nas distintas formas de propriedade social, que as afastam da razoinstrumental hegemnica com seu regime de propriedade baseado na dicotomia entre o

    privado e o pblico. Todavia, a razo histrica a elas subjacente incorpora algunselementos que muitas vezes so considerados como pblicos isto , bens coletivos ,mas que no so tutelados pelo Estado; ou seja, essa razo histrica introduzcoletividades que funcionam em um nvel inferior ao nvel do Estado-nao. Por outrolado, incorpora elementos comumente considerados como privados, no caso de bens

    pertencentes a um grupo especfico de pessoas, mas que existem fora do mbito domercado.3 Como os territrios desses grupos se fundamentam no arcabouo da leiconsuetudinria, raras vezes reconhecida e respeitada pelo Estado, as articulaes entre

    3 A existncia de propriedade social no interior do territrio de um grupo no necessariamenteimplica que toda a propriedade coletivizada e que no h propriedade individual. Cada grupo possui

    regras especficas de acesso aos recursos naturais (incluindo a terra) que podem variar de inmerasmaneiras.

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    esses grupos so marginais aos principais centros de poder poltico. Mas igualmenteclaro no registro etnogrfico sobre os povos tradicionais que eles estabeleamterritriosno sentido definido aqui.

    Os Regimes de Propriedade ComumAo canalizar as mltiplas formas de apropriao do territrio de um grupo, a

    cosmografia representa uma pea fundamental na definio e explorao dos recursosnaturais. Como indica Godelier (1986), as variadas noes de propriedade que soestabelecidas por um grupo social, funcionam por dentro de um territrio e se referems maneiras que os membros de uma sociedade usam suas regras para organizar seusatos concretos de apropriao [da natureza] (p.83). O regime (ou regimes) de

    propriedade que existe(m) dentro de um territrio determinado constitui uma parteessencial do que chamamos a estrutura econmica de uma sociedade, visto queconstituem a condio legal embora no necessariamente legitimada para todos que

    governa o acesso aos recursos e aos meios de produo (p.84).Nos ltimos quinze anos a temtica dos chamados regimes de propriedadecomum tornou-se uma importante linha de pesquisa dentro da antropologia. Um dosresultados mais significativos desses estudos foi a demonstrao etnogrfica de que taisregimes esto presentes em pases de todas as partes do mundo (McCay e Acheson1987; Bromley 1992). Parajuli (1998) elaborou o conceito de etnicidades ecolgicasna tentativa de mostrar a importncia desses regimes na prpria constituio identitriados grupos. Usando esses referentes tericos, podemos analisar os regimes de

    propriedade dos distintos povos tradicionais do Brasil, o que tambm ajudaria aentender a complexidade e a diversidade da sua razo histrica.

    Comecemos pelos povos indgenas: segundo os dados compilados pelo

    Instituto Socioambiental, existem, na atualidade, 216 povos indgenas no Brasillocalizados em 563 terras indgenas, que apresentam uma grande diversidadelingstica, religiosa, poltica, social, demogrfica e fundiria (ISA 2001). De uma

    perspectiva geral sobre essas sociedades, Ramos (1986: 13-16) ressalta que a terra no e no pode ser objeto de propriedade individual. De fato, a noo de propriedade

    privada da terra no existe nas sociedades indgenas. (...) Embora o produto do trabalhopudesse ser individual, ou, melhor dizendo, familiar, o acesso aos recursos era coletivo.(...) A terra e seus recursos naturais sempre pertenceram s comunidades que osutilizam, de modo que praticamente no existe escassez, socialmente provocada, dessesrecursos.

    As maneiras especficas como essa coletividade funciona, variamenormemente segundo o povo indgena especfico, como foi efetivamente registrado navasta literatura etnogrfica sobre essas sociedades. Um dos tipos mais comuns dedeterminar acesso a certas terras atravs das formas de parentesco. A literaturaetnogrfica sobre sociedades indgenas do Alto Amazonas como Goldman (1963)

    para os Cubeo, rhem (1981) para os Makuna e Descola (1996) para os Achuarmostra diferentes maneiras pelas quais unidades de parentesco funcionam tambm comounidades territoriais. Entre os grupos G do Cerrado, tanto os Xerente descritos por

    Nimuendaj (1942) quanto os Xavante descritos por Maybury-Lewis (1984), as formascoletivas utilizadas nas atividades de caa e na distribuio social da carne e de outros

    bens pelos lderes das linhagens, revelam uma importante dimenso de acesso coletiva a

    esse recurso vital a essas sociedades. Por outro lado, os Arawet da famlia lingistica

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    Tupi-Guarani estudados por Viveiros de Castro (1992: 66), mesmo sendo um povoorgulhosamente individualista, organizam caadas e colheita e processamento demilho, aa e outros produtos em formas coletivas para festas especficas. Em muitoscasos, essas formas coletivas so fundamentadas em sculos de prticas e refinamentos.

    Florestan Fernandes (1989: 122-128), em sua reviso das fontes histricas sobre osTupinamb, descreve as formas coletivas de apropriao dos recursos naturais, emconexo com as regulamentaes do comportamento recproco a elas associadas,indicando que esses padres de cooperao e entreajuda econmica davam origem aum sistema intergrupal de equilbrio econmico, atravs do qual se processava umaredistribuio das utilidades econmicas.

    Os regimes de propriedade dos quilombos, as diversas terras de preto e ascomunidades cafuzas possuem diferenas marcantes em relao aos povos indgenas,mas ainda se mantm dentro da ampla categoria de formas de propriedade comum.Sobre as vrias comunidades negras rurais, por exemplo, Bandeira afirma (1991: 8):o controle sobre a terra se faz grupalmente sendo exercido pela coletividade que define

    sua territorialidade com base em limites tnicos fundados na afiliao por parentesco,co-participao de valores, de prticas culturais e principalmente da circunstnciaespecfica de solidariedade e reciprocidade desenvolvidas no enfrentamento da situaode alteridade proposta pelos brancos.

    As populaes extrativistas representam outros grupos sociais includos nacategoria de tradicionais e tendem a ser reconhecidos pelos produtos que extraem evendem no mercado seringueiros, castanheiros, babaueiros, pescadores , apesardeste ser apenas um elemento de um complexo sistema de adaptao que inclui caa,

    pesca, agricultura, fruticultura e criao de pequenos animais (Moran 1974). No planofundirio, o que marca os grupos extrativistas da Amaznia a apropriao familiar e

    social dos recursos naturais, onde as colocaes so exploradas por famlias, osrecursos de caa e pesca so tratados na esfera coletiva e a coleta dos recursosdestinados ao mercado feita segundo normas de usufruto coletivamente estabelecidas.

    No caso dos seringueiros, Allegretti (1994: 25-6) afirma que rgidos limites de uso e propriedade, individuais, no correspondem realidade dos seringais. (...) O prprioconceito de propriedade, medida em hectares, somente foi introduzido na Amazniacom as fazendas. At ento, media-se a floresta em nmeros de seringueiras, asdistncias em horas de caminhada, e os limites entre seringais, atravs dos rios eigaraps.

    Tratando das populaes caiaras do litoral brasileiro, dos pantaneiros doPantanal e de outras populaes tradicionais, Diegues (1996: 428) descreve as variadas

    formas comunitrias de apropriao de espaos e recursos naturais baseadas numconjunto de regras e valores consuetudinrios, da lei do respeito, e de uma teia dereciprocidades sociais onde o parentesco e o compadrio assumem um papel

    preponderante. Entre as comunidades de ribeirinhos da Amaznia e os pescadoresartesanais do litoral, existem formas de apropriao articuladas em funo de seus usos,significados e conhecimentos das guas. No caso desses ltimos, o usufruto coletivo dereas determinadas estendia-se para alm da terra para incluir territrios marinhos.Para esses grupos, a marcao um elemento fundamental apropriao e ao usufrutodo mar pelos pescadores. (...) A familiaridade de cada grupo de pescadores com umadessas reas martimas, cria territrios que so incorporados sua tradio. Na mesmamedida em que um recurso ou um espao de subsistncia, o territrio encompassa

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    tambm a noo de lugarmediante a qual os povos martimos definem e delimitam omar (Maldonado 1993: 105).

    Lugar e Memria

    Outro elemento fundamental dos territrios sociais encontrado nos vnculossociais, simblicos e rituais que os diversos grupos sociais diferenciados mantm comseus respectivos ambientes biofsicos. Tuan (1977), desde a geografia, faz a distinoentre o espao abstrato e genrico e um lugar concreto e habitado. A identificaode lugares sagrados por um grupo determinado representa uma das formas maisimportantes de dotar um espao com sentimento e significado (Deloria 1994), pormexiste uma multiplicidade de outras (cf. Sack 1980). A noo de lugar tambm seexpressa nos valores diferenciados que um grupo social atribui aos diferentes aspectosde seu ambiente. Essa valorizao uma funo direta do sistema de conhecimentoambiental do grupo e suas respectivas tecnologias. Essas variveis estabelecem a

    estrutura e a intensidade das relaes ecolgicas do grupo e geram a categoria social dosrecursos naturais (Raffestin 1993: 223-8).As relaes especficas imbudas na noo do lugar no devem ser

    confundidas com as da noo de originariedade, isto , o fato de ser o primeiro grupo aocupar uma rea geogrfica o que apelaria idia de terras imemoriais , algo difcil,seno impossvel de se estabelecer, como bem mostram as disputas arqueolgicas. Asituao de pertencer a um lugar refere-se a grupos que se originaram em um localespecfico, sejam eles os primeiros ou no. A noo de pertencimento a um lugar agrupatanto os povos indgenas de uma rea imemorial quanto os grupos que surgiramhistoricamente numa rea atravs de processos de etnognese e, portanto, contam queesse lugar representa seu verdadeiro e nico homeland. Ser de um lugar no requer uma

    relao necessria com etnicidade ou com raa, que tendem a ser avaliadas em termosde pureza, mas sim uma relao com um espao fsico determinado. Todavia, acategoria de identidade pode se ampliar, medida que a identidade de um grupo passa,entre outras coisas, pela relao com os territrios construdos com base nas suasrespectivas cosmografias.

    Talvez uns dos casos mais marcantes relativos ao conceito de lugar aodissia da sociedade indgena Panar (Arnt et.alli. 1998). Com a construo da rodoviaCuiab-Santarm no final da dcada de 60, esse grupo radicado no norte do estado deMato Grosso comeou a sofrer invases das suas terras por parte de garimpeiros efazendeiros, e ataques dos Kayap com armas de fogo, abundantemente munidos pelosmissionrios. Nesta poca, se estima que havia 600 Panar vivendo em oito aldeias. Um

    processo de pacificao dos Panar foi empreendido pela FUNAI a partir de 1967,conseguindo o primeiro contato com o grupo somente em 1973. Depois de mais doisanos de invases, foi tomada a deciso de levar os 69 Panar sobreviventes ao ParqueIndgena do Xingu. Nos vinte anos seguintes esse grupo mudou sete vezes, mascomeou a se recuperar demograficamente. Foi no incio da dcada de 90 que algumasdas lideranas Panar insistiram em voltar ao seu territrio original, isto , o que elesconsideram como seu verdadeiro lugar. Uma rea pouco destruda de 488.000 ha. na

    bacia do rio Peixoto de Azevedo foi identificada como sua nova terra indgena e, apartir de 1995, o grupo, agora com 174 indivduos, comeou o processo de volta a seuhomeland.

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    Outro exemplo da importncia do lugar para os povos tradicionais o dosseringueiros do Acre. Com a construo e subseqente asfaltamento do BR 364,madeireiros e fazendeiros invadiram as florestas do Acre ocupadas e exploradas pelosseringueiros desde a poca do ciclo da borracha. Com a derrubada indiscriminada da

    floresta, os seringueiros viram sua fonte de sustentao ameaada: pouco servia teracesso a suas terras tradicionais sem sua cobertura florestal. A estratgia poltica doschamados empates foi implementada, na qual os seringueiros se colocavam na frentedos madeireiros para impedir seus trabalhos de derrubada do bosque (Mendes 1989). raiz dessas lutas, o sindicato dos seringueiros surgiu para depois se transformar nummovimento nacional com reivindicaes territoriais na forma das reservas extrativistas(a serem tratadas mais na frente). O que vale assentar agora como a defesa de umlugar foi a semente de um movimento com dimenses nacionais.

    Os territrios dos povos tradicionais se fundamentam em dcadas, em algunscasos, sculos de ocupao efetiva. A longa durao dessas ocupaes fornece um pesohistrico s suas reivindicaes territoriais. O fato de que seus territrios ficaram fora

    do regime formal de propriedade da Colnia, do Imprio e, at recentemente, daRepblica, no deslegitima suas reivindicaes, simplesmente as situa dentro de umarazo histrica e no instrumental, ao mesmo tempo em que mostra sua fora histrica esua persistncia cultural. A expresso dessa territorialidade, ento, no reside na figurade leis ou ttulos, mas se mantm viva nos bastidores da memria coletiva que incorporadimenses simblicas e identitrias na relao do grupo com sua rea, o que d

    profundidade e consistncia temporal ao territrio (Little 1994). Para as sociedadesindgenas, por exemplo, o territrio grupal est ligado a uma histria cultural na qualcada stio de aldeia est historicamente vinculado a seus habitantes, de modo que o

    passar do tempo no apaga o conhecimento dos movimentos do grupo, desde que se

    mantenha viva a memria dos ancestrais (Ramos 1986: 19-20).A maneira especfica como cada grupo constri sua memria coletivadependeria em parte da histria de migraes que o grupo realizou no passado. Amemria espacial nem sempre se refere a um lugar primordial de origem do grupo, mas

    pode se modificar para atender a novas circunstncias e movimentos. Os Waipi, porexemplo, em meados do sculo XVII, comearam uma migrao que durou quase umsculo desde seu lugar de habitao no rio Xingu at as reas que hoje so o estado deAmap no Brasil e a Guiana Francesa (Gallois 1986). Pesquisas sobre a etno-historiografia dos Waipi mostram como reconstroem o tempo e o espao de suaexperincia de contato no qual eles rememoram e reinterpretam eventos que vm,declaradamente, do passado (Gallois 1994: 85). Neste processo, os Waipi

    incorporaram a construo da fortaleza de Macap como parte essencial de sua memriageogrfica e incluem os grupos Tucuju, os antigos moradores indgenas do Amap, hojeextintos, como parte de sua descendncia. Gallois argumenta que as narrativas acercadesses temas tm como causa e como resultado uma conscincia mais clara danecessidade de defender inclusive em forma discursiva seus direitos territoriais(p.84).

    Arruti (1998: 26), por sua parte, analisa a mobilizao poltica daComunidade do Mocambo, localizada em Sergipe, no processo de obterreconhecimento como um remanescente de quilombo, uma categoria completamentenova para esse grupo, e descreve como essa comunidade negra rural buscou o direitodo acesso terra na memria de uma ancestralidade e na malha de seus parentescos. medida que sua memria coletiva foi fundamental para essa mobilizao, o autor afirma

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    que sua memria tornou-se to importante quanto os documentos escritos que antes,no confronto com representantes dos poderes pblicos, tinham o total privilgio.

    Terras Indgenas e Remanescentes de Comunidades de Quilombos no Sculo XX

    O processo de expanso de fronteiras que marcou a histria territorial doBrasil Colonial e Imperial continua ainda hoje, particularmente na regio amaznica, detal forma que podemos falar de uma situao de fronteiras perenes (Little 2001). Aexistncia das novas frentes de expanso do sculo XX fundamental para entender anova onda de territorializaes dos ltimos vinte anos, a que fiz referncia no inciodeste artigo. Ou seja, as novas reivindicaes territoriais dos povos indgenas, dosquilombolas e outras comunidades negras rurais, e das diversas populaes extrativistas,representam uma resposta a novas fronteiras em expanso, repostas que vo muito almde uma mera reao mecnica para incluir um conjunto de fatores prprios da nossapoca.

    A partir da dcada de 1930 no Brasil, uma srie de movimentos migratrios,muitas vezes acompanhados por pesados investimentos em infra-estrutura, modificou deforma contundente as relaes fundirias existentes no pas. Esses movimentos seespalharam por todo o territrio nacional e atingiram, de uma ou outra forma, osdiversos povos tradicionais. A expanso para o oeste do Paran, nos anos trinta equarenta, foi seguida pela Marcha para o Oeste, centrada no estados de Gois e MatoGrosso. Nos anos cinqenta desse sculo, a construo de Braslia, como nova capitalfederal no Planalto Central, incentivou diretamente o povoamento massivo dessa regio.A construo das primeiras grandes estradas amaznicas Belm-Braslia,Transamaznica, Cuiab-Santarm , nos anos sessenta e setenta, teve a funo de daracesso vasta Regio Norte para colonos, garimpeiros, fazendeiros, comerciantes e

    grandes empresas procedentes de outras regies do Brasil. Enquanto isso, a implantaopelos governos militares de mltiplos grandes projetos de desenvolvimento, tais como acriao da Zona Franca de Manaus, a construo das hidreltricas de Tucurui, Balbina eSamuel e o estabelecimento do projeto de minerao Grande Carajs, tambm serviu

    para produzir novas frentes de expanso desenvolvimentista.4

    Da perspectiva dos distintos povos tradicionais, esses mltiplos movimentosmudaram radicalmente sua situao de invisibilidade social e marginalidade econmica.Agora essas invases a suas terras foram acompanhadas por novas tecnologiasindustriais de produo, transporte e comunicao, que alteraram as relaes ecolgicasde forma indita, devido sua intensidade e poder de destruio ambiental. A partir dadcada de 1980, o fortalecimento da ideologia neoliberal e a incorporao economiamundial de grupos antes afastados dela (ou, como indicado antes, re-inseridos neladepois de uma poca de afastamento) agravaram ainda mais as presses sobre osdiversos territrios dos povos tradicionais, particularmente no que se refere ao acesso e utilizao de seus recursos naturais.

    Nesse perodo da histria do pas, um grande nmero de povos indgenasentrou (ou re-entrou) no processo de contato e pacificao, como vimos para o casodos Panar e que mostram tambm os casos dos Waipi (no Amap), dos Waimiri-

    4 Da ampla literatura sobre as mltiplas frentes de expanso do sculo XX, podemos mencionar os

    textos de Ribeiro (1970), Foweraker (1981), Becker (1982), Hall (1989), Holston (1993) e Lima Filho(1998).

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    Atoari (em Roraima) e dos Ashanika (no Acre), com resultados muito dspares5.Tambm as comunidades negras rurais comearam a perder sua invisibilidade, como foio caso dos Kalungas, resultante da construo de Braslia e subseqente adensamentodemogrfico da Regio Centro-Oeste.

    Frente a essas novas presses, os povos tradicionais se sentiram obrigados aelaborar novas estratgias territoriais para defender suas reas. Isto, por sua vez, deulugar atual onda de territorializaes em curso. O alvo central dessa onda consiste emforar o Estado brasileiro a admitir a existncia de distintas formas de expressoterritorial incluindo distintos regimes de propriedade dentro do marco legal nico doEstado, atendendo s necessidades desses grupos. As novas condutas territoriais por

    parte dos povos tradicionais criaram um espao poltico prprio, na qual a luta pornovas categorias territoriais virou um dos campos privilegiados de disputa. Uns dos

    principais resultados dessa onda tem sido a criao ou consolidao de categoriasfundirias do Estado. Devido grande diversidade de formas territoriais desses povos,houve a necessidade de ajustar as categorias s realidades empricas e histricas do

    campo, em vez enquadr-las nas normas existentes da lei brasileira.A consolidao dessas categorias fundirias s foi possvel com o surgimento

    dos movimentos sociais nas dcadas de 1970 e 1980, e o apoio que esses movimentosreceberem de diferentes organizaes no-governamentais (ONGs). Paralelamente, ofim da ditadura militar em 1985 e a instalao de governos civis tambm abriram novosespaos de atuao poltica para os povos tradicionais. A Constituinte de 1987-88, frutode uma dcada de mobilizaes, debates e lobbying, representa um marco importantenesse perodo, na medida que aglutinou muitos dos movimentos sociais e ONGs para aincorporao de novos direitos e de questes sociais e ambientais na nova Constituio.Com a promulgao da Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988,

    distintas modalidades territoriais foram fortalecidas ou formalizadas. So os casos dasterras indgenas e dos remanescentes das comunidades de quilombos.Terras indgenas uma categoria jurdica que originalmente foi estabelecida

    pelo Estado brasileiro para lidar com povos indgenas dentro do marco da tutela. Detodos os povos tradicionais, os povos indgenas foram os primeiros a obter oreconhecimento de suas diferenas tnicas e territoriais, mesmo que tal reconhecimentotenha sido efetivado por meio de processos que, em muitos casos, prejudicaram seusdireitos. Durante os 57 anos de existncia (1910-1967) do Servio de Proteo dosndios (SPI), 54 reas indgenas foram demarcadas, a maioria delas de pequenotamanho e dentro de uma poltica em que cada terra era muito menos uma reservaterritorial do que uma reserva de mo-de-obra (Oliveira 1983: 19). Outra ao

    significativa do Estado nessa poca com respeito aos territrios indgenas foi a criaodo Parque Nacional do Xingu, em 1961, para abrigar um conjunto de povos indgenas alguns deles desalojados de seus territrios para serem reassentados no Parque dentrode uma poltica militar de desbravamento dessa rea que, com a introduo de novasrotas areas, se converteu numa regio de importncia estratgica para a Fora AreaBrasileira (Menezes 2000). Com a criao da Fundao Nacional do ndio (FUNAI) em1967, sucessora do extinto SPI, e a promulgao do Estatuto do ndio em 1973 (Lei n.6.001), os territrios indgenas ganharam outros dispositivos para seu reconhecimento

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    Para boas etnografias do processo de contato dessas sociedades indgenas, ver, respectivamente,os trabalhos de Gallois (1986), Baines (1991) e Pimenta (2002).

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    parcial, desta vez promovendo a via camponesa como modo privilegiado deintegrao das populaes indgenas na sociedade brasileira (Oliveira 1983: 5).

    A partir da dcada de 1980, os povos indgenas ganharam fora polticamediante um processo de organizao interna de suas sociedades, alianas regionais e

    nacionais, entre distintas sociedades indgenas, e at presena no Congresso Nacional(veja Ramos 1998). Essas foras exerceram um papel importante no reconhecimento eampliao de seus direitos na Constituio de 1988.6 A partir de ento, o processoadministrativo de identificao, delimitao, demarcao fsica, homologao e registrorecebeu um impulso que durou toda a dcada de 1990 apesar do prazo de cinco anos

    para a demarcao de todas as terras indgenas no ter sido cumprido. Em 2000, dozeanos depois da promulgao da nova Constituio, das 563 terras indgenas no pas,317, ou 56,5% do total, tinham seu processo de demarcao concludo, sendo que asterras restantes so, na sua maioria, reas pequenas (ISA 2001). em meio dessa novaonda de territorializao que podemos entender melhor os novos casos de etnogneseindgena, particularmente no Nordeste, onde o nmero de grupos indgenas

    reconhecidos pelo Estado brasileiro pulou de 10 na dcada de 1950 para 23 em 1994(Oliveira 1999).

    Diferentemente dos territrios indgenas, os quilombos, as terras de preto e ascomunidades cafuzas at recentemente sofreram da invisibilidade jurdica do controlecoletivo da terra (Bandeira 1991: 9). Com o surgimento de uma conscincia negra,como parte de um processo maior de organizao poltica a partir da dcada de 1980, osquilombos rapidamente passaram a gozar de uma nova visibilidade poltica quetambm se refletiu no crescente interesse pelos antroplogos. formao deassociaes regionais, tais como a Associao de Moradores das Comunidades Rumo-Flexal no Maranho (1985) e a Associao de Comunidades de Remanescentes de

    Quilombos do Municpio do Oriximin no Par (1990), e realizao de eventosregionais, tais como o I Encontro de Comunidades Negras Rurais no Maranho (1986) eo I Encontro de Razes Negras no Par (1988), seguiram-se eventos de ordem nacional,como o II Seminrio Nacional Sobre Stios Histricos e Monumentos Negros em Gois(1992) e o I Seminrio Nacional de Comunidades Remanescentes de Quilombos (1994),culminando com os festejos, em todo o pas, em 1995, do 300 aniversrio da morte deZumbi dos Palmares.

    Em meio a esse processo, a categoria de remanescentes das comunidades dosquilombos ganhou reconhecimento formal por parte do Estado na Constituio de1988.7 Apesar disto, a regulamentao dessa modalidade territorial demorou sete anos es em 1995 a Comunidade Boa Vista, em Oriximin, no Vale de Trombetas (PA), foi o

    primeiro remanescente de quilombo a ser reconhecido pelo Estado sob a figura jurdicada nova Constituio. Nos sete anos seguintes, 29 desses territrios conseguiramreconhecimento formal, 18 do governo federal e 11 de rgos estaduais. A partir daimplementao dessa categoria legal, as lutas das distintas comunidades negras foramredirecionadas na tentativa de serem reconhecidas nessa categoria e, no processo, anoo de comunidades de remanescentes de quilombo comeou a se ampliar e

    6 No captulo VIII (Dos ndios) do Ttulo VIII (Da Ordem Social) da Constituio, os povos

    indgenas ganharam um reconhecimento de seus direitos originrios sobre as terras que tradicionalmenteocupam, competindo Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (Artigo 231).

    7 O Artigo 68 das Disposies Transitrias afirma: Aos remanescentes das comunidades dos

    quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecido a propriedade definitiva, devendo o Estadoemitir-lhes os ttulos respectivos.

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    incorporar um conjunto de outros fatores. Em outro processo de etnognese,diretamente vinculado a essa nova onda de territorializao, o nmero de comunidadesremanescentes de quilombos aumenta aceleradamente, chegando a considerar aexistncia de entre 700 e 900 no pas. Mas, com o veto presidencial, em maio de 2002,

    da regulamentao das terras das comunidades remanescentes de quilombos (Projeto deLei n. 129/95 no Senado e n. 3.207/97 na Cmara dos Deputados), o processo dereconhecimento formal desses territrios se encontra paralisado.

    Nesses exemplos, o conceito jurdico de reconhecimento fundirioestabelecido pelo Estado tende a se confundir com os conceitos poltico e etnogrfico,os trs formando parte de um mesmo processo de constituio e resistncia dessascomunidades. Se as categorias territoriais utilizadas pelo Estado tiveram e tmfinalidades de controle social dessas populaes, a luta em torno das categorias jurdicasterritoriais tornou-se uma luta de mo dupla, j que as categorias utilizadas para adominao poltica tambm podem servir para a reafirmao social e territorial,

    processo em que passam a agir como fonte de novas identidades scio-culturais.

    sempre difcil traar a linha entre a fora interna da territorialidade que latente emcada grupo e as exigncias externas que obrigam que essa conduta territorial sejaimplementada (Oliveira 1998).

    Assim, a historicidade desses territrios complementada pela historicidadedos conceitos que so utilizados para entend-los e enquadr-los. O processo de criaode conceitos territoriais , por um lado, uma atividade acadmica centrada na descriodas territorialidades existentes e, por outro, uma atividade poltica utilizada para oreconhecimento legal do que existe socialmente. Dessa forma, surge uma espcie deconvergncia entre essas criaes sociais, feitas simultaneamente de imaginaosociolgica, criaes jurdicas, vontade poltica e desejos (Arruti 1997: 7). Ao mesmo

    tempo, h um risco de fundir o lado conceitual com o lado pragmtico e permitir que ascategorias jurdicas substituam as categorias etnogrficas. A anlise etnogrfica, mesmoquando engajada em lutas polticas, necessita manter certa autonomia, tendo a realidadeemprica em toda sua complexidade e no s seu lado instrumental como seufundamento em ltima instncia.

    As Unidades de Conservao e as Populaes Residentes

    O crescimento e a consolidao do movimento ambientalista foram outrosfatores que modificaram a dinmica territorial no Brasil nos ltimos trinta anos, tendoseu impacto maior na regio amaznica. Apesar do movimento ambientalista modernoter suas origens no sculo XIX (veja Bramwell 1989; McCormick 1992), seno antes(veja Grove 1995; Pdua 2002), somente chega a ter uma expresso verdadeiramentemundial em meados do sculo XX, quando experimenta um crescimento rpido emtodos os continentes. Mas o movimento ambientalista composto por vrias vertentes,cada uma com finalidades prprias e muitas vezes em contradio entre si (Pepper1996). Em relao aos territrios sociais do Brasil, duas vertentes so de particularimportncia o preservacionismo e o socioambientalismo , cada uma produzindoimpactos diferenciados e interagindo de formas nicas com os distintos povostradicionais.

    O preservacionismo surgiu no sculo XIX paralelamente nos Estados Unidos eGr Bretanha, mas foi naquele onde a noo de preservao da wilderness (natureza em

    seu estado selvagem) conseguiu se estabelecer com mais fora (Oelschlaeger 1991). O

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    estabelecimento de reas protegidas a partir de 1864 na California (Yosemite Valley eMariposa Grove), seguido pela criao do Parque Nacional de Yellowstone em 1872, nacordilheira dos Grand Tetons, deu a essa vertente do ambientalismo uma clara dimensoterritorial, na qual o valor da apreciao da natureza no seu estado intocado` foi

    consagrado. No sculo e meio seguinte, a modalidade de reas protegidas se expandiupor todas partes do mundo, sendo que o primeiro Parque Nacional no Brasil Itataia foi estabelecido em 1937.

    Chamo essa vertente de preservacionismo territorializante devido centralidade do controle total sobre extensas reas geogrficas na atuao de seusmilitantes. Trabalhos recentes nas cincias sociais chamaram a ateno para essesterritrios e compreenderam as reas protegidas como construes humanas artefatos, na terminologia de Barretto F. (2001a) e no simplesmente reasnaturais, como preconizava a viso hegemnica dos preservacionistas. As reas

    protegidas representam um tipo especfico de territrio que seguindo as definies deQuijano caberia dentro da noo de razo instrumental do Estado. Em primeiro lugar,as reas protegidas so criadas pelo Estado mediante decretos e leis e conformam partedas terras da Unio, sendo portanto terras pblicas. Em segundo lugar, a criao dessasreas inclui sofisticadas pesquisas cientficas envolvendo um grande leque deespecialistas, mostrando o alto grau de conhecimento humano implicado nelas. Emterceiro lugar, as reas protegidas estabelecem planos de manejo que especificam comminuciosos detalhes as atividades permitidas e proscritas dentro desses territrios. Emsuma, as reas protegidas representam uma vertente desenvolvimentista baseada nasnoes de controle e planejamento (Little 1992).

    Dentro do processo de expanso da fronteira desenvolvimentista promovida pelos governos militares, a partir da dcada de 1970 houve um crescimento

    extraordinrio no estabelecimento de novas reas protegidas

    uma frentepreservacionista , que produziu um grande impacto fundirio no pas devido ao altondice de sobreposio das novas reas protegidas com os territrios sociais dos povosindgenas, dos quilombolas e das comunidades extrativistas. Nos quinze anos de 1975 a1989, foram criados no Brasil 17 Parques Nacionais, 21 Estaes Ecolgicas e 22Reservas Biolgicas, que produziu o quadruplicamento da rea total de Unidades deConservao de Uso Indireto no pas. Como as Unidades de Conservao de UsoIndireto no permitem a presena de populaes humanas dentro de seus territrios sendo isto uma de suas regras cosmogrficas mais firmes , a soluo inicialmente

    proposta pelos preservacionistas foi a expulso dos habitantes de seus novosterritrios, seja por indenizao ou por reassentamento compulsrio, tal como se faziacom as barragens e os outros grandes projetos de desenvolvimento. Na linguagem dos

    preservacionistas, esses habitantes viraram populaes residentes (West e Brechin1991), categorizando-lhes assim em funo das novas reas protegidas e, no processo,ignorando a existncia prvia de regimes de propriedade comum, relaes afetivas como seu lugar e memrias coletivas sobre esses mesmos espaos (Cultural SurvivalQuarterly 1985).

    Entre os focos principais de disputa, esto os casos de superposio entreTerras Indgenas e Unidades de Conservao nos Parques Nacionais do Araguaia (TO),Monte Pascoal (BA), Superagi (PR) e Pico da Neblina (AM), situaes que colocaramos rgos ambientais do Estado contra esses povos, que, repentinamente, foram

    proibidos de realizar suas atividades habituais de uso do meio biofsico para sua

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    subsistncia. As comunidades de remanescentes de quilombos do rio Trombetas seencontraram em situao igualmente constrangedora com a criao de uma ReservaBiolgica e uma Floresta Nacional em suas reas tradicionais de usufruto, de tal formaque o IBAMA se tornou para os negros o smbolo do poder opressor do Estado, criando

    obstculos para a utilizao tradicional dos recursos naturais de seu territrio (Acevedoe Castro 1998).Na procura de uma sada para esses embates, duas trilhas foram abertas: uma

    de conflito aberto, que ser tratada agora; e outra de alianas e negociaes, que sertratada na seo seguinte sobre co-gesto de territrios. A partir de meados da dcadade 1980, a existncia e gravidade desses conflitos no podiam ser mais ignoradas pelavertente preservacionista. No IV Congresso Internacional de Parques Nacionais de1992, em Caracas, Venezuela a presena das populaes residentes foi discutidaamplamente e algumas novas categorias como a de preservao cultural foram

    propostas (McNeely et.alli. 1994). Mas apesar desses intentos de soluo, o ncleo duroda cosmografia preservacionista Unidades de Conservao de Proteo Integral no

    permitem a presena humana continuou a provocar choques no continente inteiro e,em particular, no Brasil (Amend e Amend 1992; Brandon et.alli. 1998).

    Um dos palcos deste embate foi a tramitao do projeto de lei do SistemaNacional de Unidades de Conservao, que foi debatido por dez anos no CongressoNacional at sua aprovao em 2000 (Lei n 9.985). Os debates mais acrimoniosos emtorno do projeto de lei foram travados entre as vertentes preservacionista esocioambientalista do movimento ambientalista, sendo uma das clusulas maisdiscutidas a definio da categoria de populao tradicional. Mas como no houveacordo entre as partes interessadas, a clusula foi vetada do texto final da lei.8

    As tenses e divergncias existentes nessa disputa tambm podem ser vistas

    no abaixo-assinado aprovado no II Congresso Brasileiro de Unidades de Conservaoem Campo Grande em 2000. Este documento fez fortes crticas aos povos indgenascom presena em Unidades de Conservao, chegando a manifestar sua profunda

    preocupao com as invases de Unidades de Conservao por grupos indgenas, cadavez mais freqentes e graves e pedindo a imediata retirada dos invasores e arestaurao da ordem jurdica democrtica. A reao do movimento indgena e dossocioambientalistas foi imediata: condenaram a intransigncia e a falta de sensibilidadesocial dos preservacionistas. Esses debates do visibilidade ao choque entre a razoinstrumental do Estado e a razo histrica dos povos indgenas.

    As Reservas Extrativistas e a Co-gesto de Territrio

    Outra vertente importante do movimento ambientalista a socioambientalista,que se consolidou no Brasil nos anos oitenta e teve na esfera poltica da sociedade civilum lugar importante de atuao (Leis e Viola 1996). Em muitos mbitos, houve umnotvel aumento da visibilidade e do poder poltico dos movimentos sociais eorganizaes no governamentais. Os povos tradicionais no estavam alheios a este

    processo e a ele rapidamente ser incorporaram, o que transformou de formafundamental suas lutas territoriais. Aqui constam aes como o estabelecimento de

    8 O vetado inciso XV do Artigo 2 do Captulo I lia: POPULAO TRADICIONAL: grupos

    humanos culturalmente diferenciados, vivendo h no mnimo, trs geraes em um determinado

    ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependncia do meio naturalpara sua subsistncia e utilizando os recursos naturais de forma sustentvel.

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    associaes locais, a emergncia de movimentos sociais regionais e nacionais que promoveram seus interesses, sua articulao poltica com ONGs que possuaminteresses ou estratgias afins e a subsequente colaborao conjunta em campanhas eoutras atividades polticas.

    Paralelamente, a consagrao do conceito de desenvolvimento sustentvelcomo elemento de um suposto novo paradigma de desenvolvimento criou possibilidadespara novas alianas (Ribeiro 1992; Little 1995). Na busca por uma alternativa vivel dedesenvolvimento sustentvel, os povos tradicionais foram considerados pelosambientalistas como parceiros com muitas afinidades, devido a suas prticas histricasde adaptao. Ou seja, a dimenso ambientalista dos territrios sociais se expressa nasustentabilidade ecolgica da ocupao por parte desses povos durante longos perodosde tempo, baseada nas formas de explorao pouco depredadoras de seus respectivosecossistemas. A profundidade histrica dessa sustentabilidade complementada por suaabrangncia geogrfica, encontrvel nos mais diversos ecossistemas do pas. Essasustentabilidade foi um elemento chave no estabelecimento de novas parcerias entre

    alguns desses grupos sociais e setores do movimento ambientalista, e conduziu implementao de formas de co-gesto de territrio, onde o governo principalmenteseus rgos ambientais e um grupo social determinado entram em parceria na

    proteo e uso de uma rea geogrfica especfica (Little 2001: 154-86).O movimento que tomou a liderana poltica dos grupos extrativistas dispersos

    foi o dos seringueiros da Amaznia brasileira. Devido a uma srie de alianas polticas,particularmente com grupos ambientalistas, e a liderana singular de Chico Mendes, osseringueiros construram um novo espao poltico e, no processo, tornaram-se novosatores sociais no cenrio nacional. A partir da realizao do I Encontro Nacional dosSeringueiros, em 1985, em Braslia, suas reivindicaes territoriais resultaram na

    formulao de polticas pblicas territoriais e no apoio de diversos setores da sociedadecivil internacional, culminando em duas conquistas importantes: o estabelecimento dosProjetos de Assentamento Extrativista dentro da poltica de reforma agrria (INCRA),em 1987, e a criao da modalidade das Reservas Extrativistas dentro da polticaambiental do pas (IBAMA), em 1989 (IEA 1993).

    Estas duas modalidades territoriais fornecerem um reconhecimento formal porparte do Estado da territorialidade dos extrativistas, constituindo uma demonstrao datransformao de uma realidade consuetudinria, mediante uma luta poltica, emrealidade legal. Nessas reas, o controle e uso coletivo dos recursos so reconhecidoslegalmente e normatizados por planos de utilizao elaborados pelas associaes locaisde trabalhadores agro-extrativistas e aprovados pelos respectivos rgos federais

    responsveis. No marco legal do Estado, essas terras pertencem formalmente Unio.Posteriormente, esta modalidade territorial foi apropriada por outros grupos deextrativistas que no exploravam a borracha, para incluir castanheiros, quebradoras de

    babau e comunidades pesqueiras. Atualmente, existem 22 reservas extrativistas e dezprojetos de assentamento extrativista.9

    Os povos tradicionais dedicados extrao de recursos pesqueiros osribeirinhos e os pescadores confrontam outro conjunto de obstculos para oreconhecimento formal de suas reas de ocupao e uso, uma vez que, em muitos casos,

    9 H no pas outras experincias de co-gesto de territrio que no se enquadram nessas duasmodalidades, como so os casos da Reserva de Desenvolvimento Sustentvel de Mamirau (AM), que

    protegida e administrada por setores da sociedade civil, e a Reserva de Desenvolvimento Sustentvel deIratapuru (AP), que uma unidade de conservao estadual.

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    no so terras` que esto em questo, mas sees de um rio, de um lago ou do mar,gerando assim terras aquticas ou marinhas` que no contam com uma legislaoadequada que reconhea as particularidades dessa apropriao. Exemplo disso so osvarzeiros do Baixo Amazonas que mantm um sistema de controle comunitrio de

    certas reas pesqueiras, nas quais os ribeirinhos mostram um interesse em explorar demaneira no-predatria os recursos naturais (Arajo 1994: 303). Diante disso, essesgrupos, junto com os pesquisadores e as ONGs que os apiam, esto propondo a criaode reservas de lagos de vrzea como uma estratgia para o manejo sustentvel dosrecursos pesqueiros (McGrath et.alli. 1993).

    Os povos indgenas tambm ocupam um lugar privilegiado nos discursos dossocioambientalistas. Parte desse interesse deriva do fato que os povos indgenas e seusaliados tm contribudo conteno do desmatamento na fronteira, como resultado desuas organizaes, que funcionam como uma entidade poltica com capacidade demobilizao local e com meios legais para estabelecer controle efetivo sobre a terra(Schwartzman e Santilli 1997: 2). Conklin e Graham (1995) ressaltam a emergncia de

    uma aliana ndio-ambientalista na qual as negociaes entre esses grupos dasociedade civil acontecem num meio-de-campo (middle ground). Com base nos seustrabalhos com os Yanomami, Albert (1995), por outro lado, questiona ainterculturalidade poltica entre os ambientalistas e os povos indgenas. Aincomensurabilidade cosmolgica, no entanto, no exclui a possibilidade decolaborao poltica entre povos indgenas e ambientalistas, colaborao que pode terfundamento em finalidades comuns, mesmo que baseada em motivos distintos.

    Um dos exemplos de novas formas de parceria, esta estabelecida com ogoverno federal, o Subprograma de Projetos Demonstrativos para Povos Indgenas(PDPI), parte do Programa Piloto para a Proteo das Florestas Tropicais do Brasil

    (PPG-7), que comeou a funcionar em 2001 e financia pequenos projetos dedesenvolvimento sustentvel com base na solicitao de associaes ou lideranasindgenas. Este subprograma foi concebido como um mecanismo de consolidao dasterras indgenas j delimitadas, por meio tanto do fortalecimento de prticas existentesde explorao sustentvel quanto da implantao de prticas novas.

    A Razo Instrumental frente aos Direitos dos Povos no incio do Sculo XXI

    Mesmo reconhecendo a importncia do movimento ambientalista e asmudanas que provocou no quadro fundirio do Brasil, a razo instrumental do Estado,com sua noo de soberania exclusiva, ainda muito expressiva nestes primeirosmomentos do sculo XXI e existem claros sinais que continuar sendo uma forasignificativa nos prximos anos. No caso do Brasil, esta fora pode ser vista nas novastentativas do Estado de exercer controle efetivo sobre o territrio nacional frente aosavanos nas tecnologias de comunicao mundial, nova onda de globalizao dosmercados e organizao internacional do narcotrfico.

    Uma dessas tentativas o Sistema de Vigilncia da Amaznia (SIVAM), um programa bilionrio que utiliza a alta tecnologia de espionagem para vigiar` aAmaznia brasileira de cima`. Esse sistema militar pretende manter o controle do queacontece na Amaznia atravs de informaes atualssimas e geograficamente precisas.Outro programa, que foi criado sob a superviso da Secretaria de Assuntos Estratgicos

    para depois passar pelo Ministrio do Meio Ambiente, o Zoneamento Ecolgico-

    Econmico (ZEE). Neste caso, existe a meta de zonear todo o territrio nacional em

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    funo de seus usos mais apropriados` em termos tcnicos. Houve muitos problemasna implementao do ZEE devido falta de considerao de assuntos sociais e

    polticos. O fato bsico que permeia esses problemas e que representa uma das tesescentrais aqui , que os diversos grupos sociais tm interesses, finalidades, histrias e,

    claro, territorialidades diferentes e, muitas vezes, divergentes, que no podem serequacionados apelando tcnica. Nistch (1994: 508-9) caracteriza essa mentalidadecomo fruto de uma aliana eco-tecnocrata entre o velho autoritarismo e o novoecologismo. Tanto no SIVAM quanto no ZEE, a considerao dos interesses ou a

    participao dos povos tradicionais mnima ou simplesmente no existe. A vigilnciae o ordenamento territorial so tratados pelo Estado como questo militar, de segurana,e no como uma questo de sobrevivncia dos povos que ocupam esses biomas. Tratam-se de polticas de ordenamento territorial de carter centralizador e autoritriofundamentadas na razo instrumental do Estado e na exclusividade do Estado em tomardecises sobre essas polticas.

    Alm do mais, a vocao desenvolvimentista do Estado brasileiro tambm

    continua vigente no incio do sculo XXI. O plano plurianual (2000-2003) lanado pelogoverno federal, promove a instalao de vrios eixos de desenvolvimento, os quaiscontemplam a construo de grandes obras de infraestrutura como usinas hidreltricas,termoeltricas, hidrovias, estradas, grandes monocultivos e fbricas. Esses eixos

    passaro, novamente, por onde esto localizados os distintos povos tradicionais com opotencial de produzir graves conseqncias com respeito a seus territrios.

    Tambm importante indicar que ainda existem setores das Foras Armadasdo Brasil que promovem um nacionalismo exclusivista, cuja expresso mais ntidatalvez tenha sido sua oposio demarcao e homologao das terras indgenas (vejaFregapani 1995). Frente a esta situao, os povos tradicionais se esforaram por mostrar

    que seus territrios, diferena de territrios tnicos em outras partes do mundo, norepresentam uma ameaa ao Estado brasileiro. No possuem fins separatistas, noguardam exrcitos prprios, se consideram como cidados brasileiros. O que procuram o reconhecimento de seus territrios e do modo de vida que construram ali. Assim,surgem conflitos quando os povos tradicionais reivindicam seus prprios espaosculturais, polticos e territoriais dentro do aparelho nico do Estado, principalmentequando confrontam no a legitimidade do Estado como tal, mas o nacionalismohomogeneizador promovido por alguns dos seus setores. Em ltima instncia, o queesses grupos reivindicam so seus direitos como cidados e como povos semquestionar a legitimidade do Estado brasileiro.

    Quando a questo territorial do pas vista da tica dos povos tradicionais, o

    ordenamento territorial vira uma prtica cotidiana desses grupos, dado que eles sempreestavam vigiando` e ordenando` seus territrios desde o cho`, com base nos seusinteresses. Nesse marco, inovaes nas formas de co-gesto do territrio tm mais

    possibilidades de reconciliar vises de cima com vises de baixo que formascentalizadoras e homogeneizadoras de ordenamento territorial. Aqui, a questoterritorial no se deixa levar pela lgica estatista do mundo moderno, mas reclama poroutra lgica, que respeite a diferena e o exerccio pleno dos direitos dos povostradicionais. Para esses grupos, que mantiveram seus territrios sociais durante longotempo sem o apoio do governo (ou apesar dele), a problemtica do ordenamentoterritorial uma questo de defesa de seus territrios histricos. Em um plano aindamais amplo, o que est em jogo a capacidade do Estado brasileiro lidar com novas

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    exigncias de pluralismo levantadas por membros da sociedade nacional, no s naesfera territorial, mas nos mbitos legal, tnico e social tambm.

    A contenda pela criao de novas polticas territoriais se d entre atorespolticos com cotas desiguais de poder: por um lado, um Estado poderoso que detm

    controle exclusivo sobre os aparelhos militares e de policiamento, e, por outro lado, osmltiplos povos tradicionais economicamente marginais e politicamente desarticuladosentre si. Aqui, paradoxalmente, a existncia de um Estado-nao poderoso oferece aesses povos que tm reivindicaes territoriais uma fonte de unidade que procede de suasituao de marginalidade frente aos mesmos dispositivos estatais. Na luta paraconquistar seus direitos territoriais frente ao Estado, os distintos grupos sociaislocalizados em regies dispersas no pas formam redes que lhes articulam

    politicamente, para assegurar seus direitos territoriais dentro do campo das polticaspblicas territoriais, o que transforma sua luta local numa luta com carter nacional. Afora da razo histrica est criando espaos dentro da mesma razo instrumental doEstado, permitindo o reconhecimento, mesmo que parcial, de outros territrios que

    anteriormente ficaram fora de sua lgica.Todavia, o contexto histrico de hoje difere em alguns aspectos do sculo XX.

    Talvez o mais importante deles radica na noo de direitos dos povos`. No nvelnacional, a questo dos direitos dos povos tradicionais passa pelo reconhecimento dasrespectivas leis consuetudinrias que esses povos mantm, particularmente no que serefere a seus regimes de propriedade. Essa situao conduz ao reconhecimento da noode pluralismo legal`, conceito que vem sendo trabalhado tanto dentro da antropologiaquanto no mbito do direito. No nvel internacional, nas ltimas duas dcadas,

    preocupao pelo respeito por parte dos Estados-nao aos direitos diferenciados dos povos indgenas e/ou tradicionais cresceu de forma acelerada, notavelmente em

    referncia a questes fundirias e territoriais. Um dos instrumentos mais importantesnesse campo a Conveno 169 da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) sobrePovos indgenas e tribais em pases independentes, de 1989, que estabelece, no ArtigoII, que os governos tm a responsabilidade de proteger os direitos desses povos egarantir o respeito sua integridade. A velha reivindicao das organizaes indgenas

    brasileiras para a adoo dessa Conveno pelo governo federal foi finalmente atendidacom sua aprovao pelo Senado Nacional em junho de 2002.

    Parte da razo pela demora em aprovar essa Conveno pode ser encontradano espectro que o conceito de autonomia territorial levanta, particularmente no que serefere aos questionamentos que faz noo clssica de soberania exclusiva nas mos doEstado. Mas autonomia e soberania territoriais no so necessariamente antagnicas.

    Bartolom (1995), analisando o mbito indgena mesoamericano, define autonomiacomo o exerccio do poder de deciso local sobre o uso dos recursos naturais, polticos,fiscais e culturais em um determinado territrio ou regio. Alm de minimizar ocentralismo governamental, a autonomia procura inverter a direo do fluxoeconmico que tradicionalmente tem circulado das reas indgenas para as metrpoles,assim como assegurar o controle local dos recursos federais (p.373). Outro elementoda autonomia o poder de escolha de parceiros. Quando se admite a no exclusividadeda parceria com o Estado, como foi o caso dos povos indgenas brasileiros sob omecanismo legal da tutela, surgem novas possibilidades de alianas entre os povostradicionais e outros setores da sociedade civil, tais como ONGs ambientalistas,entidades religiosas, sindicatos. Como esses setores atuam em mbitos locais, regionais,

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    nacionais e internacionais, as formas de atuao poltica dos povos tradicionais seampliam correspondentemente.

    Por outro lado, a nova onda de globalizao da economia, que inclui aconsolidao de novas biotecnologias fundamentadas na manipulao gentica, cria

    novos problemas que ainda no encontram soluo legal adequada. No caso do Brasil,surgiu um amplo leque de novos conflitos devido conjuno de dois fatores: a grandequantidade de biodiversidade que o pas contm, tornando-o um alvo privilegiado dasmultinacionais biotecnolgicas; e a grande diversidade sociocultural e fundiria do pas,sendo que muita dessa biodiversidade se encontra em territrios de povos tradicionais.Isto no mera coincidncia. Existe um vnculo histrico entre diversidadesociocultural e biodiversidade. Na antropologia, trabalhos recentes de etnocientistas earquelogos mostram como a existncia de biodiversidade pode ter resultado dasdistintas formas de apropriao e proteo da natureza por parte de diferentes grupossociais isto , a sociodiversidade em processos de co-evoluo (Neves 1992).

    Alm disso, os saberes ambientais desses grupos representam conhecimentos

    de alto valor para os pesquisadores e as empresas ambientais que no esto protegidossob os regimes vigentes de propriedade intelectual ou de patentes, criando amplasoportunidades para a biopirataria`. Nesse mbito, o reconhecimento dos territriossociais torna-se uma preocupao comum a ambientalistas e grupos sociais, porm pormotivos diferentes: no primeiro caso, como mecanismo para garantir a conservao da

    biodiversidade; no segundo, por sua importncia para a sobrevivncia dos gruposenquanto tais. Essa comunalidade de fins com motivos diferentes minada por tensesreais e potenciais. At que se quebrem definitivamente as relaes de subordinao,formalmente estabelecidas pela lei, no h possibilidades de uma verdadeira parceriacomo idealmente acontece entre partes com responsabilidades relativamente iguais.

    Quando combinamos esses fatores com as discusses de pluralismo legal e autonomiaterritorial, sai um grande n de assuntos que precisa ser resolvido referente a quempertence o material gentico contido nesses territrios e como proteger os direitos depropriedade intelectual dos conhecimentos tradicionais.

    Repensando o Conceito dos Povos Tradicionais

    Agora podemos retornar ao conceito de povos tradicionais e analis-lo luzdas distintas temticas que foram discutidas aqui. A primeira constatao que precisaser feita sobre qualquer conceito das Cincias Sociais se tem fundamento emprico.

    Neste ponto, insisto na validade de enfocar a dimenso fundiria e julgar o conceitodentro desse campo. Acredito que os trs elementos analisados dentro do que foichamado aqui a razo histrica regime de propriedade comum, sentido de

    pertencimento a um lugar especfico e profundidade histrica da ocupao guardada namemria coletiva mostram semelhanas importantes quando vistos da tica do Estado

    brasileiro e sua diviso entre terras privadas e terras pblicas. Ressalto, mais uma vez,que as semelhanas nesse plano no obrigam que nos outros planos da prticasociocultural religioso, identitrio, cosmolgico, lingstico, etc. existamsemelhanas. A demonstrao de semelhanas num plano da vida social no tem quevaler para outros e, de fato, raras vezes acontece, dada a complexidade sociocultural domundo contemporneo.

    A segunda constatao que precisa ser feita diz respeito sociognese do

    conceito de povos tradicionais e seus subseqentes usos polticos e sociais. No contexto

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    das fronteiras em expanso, o conceito surgiu para englobar um conjunto de grupossociais que defendem seus respectivos territrios frente usurpao por parte doEstado-nao e outros grupos sociais vinculados a este. Num contexto ambientalista, oconceito surgiu a partir da necessidade dos preservacionistas em lidar com todos os

    grupos sociais residentes ou usurios das unidades de conservao de proteo integral,entendidos aqui como obstculos para a implementao plena das metas dessasunidades. Noutro contexto ambientalista, o conceito dos povos tradicionais serviu comoforma de aproximao entre socioambientalistas e os distintos grupos quehistoricamente mostraram ter formas sustentveis de explorao dos recursos naturais,assim gerando formas de co-gesto de territrio. Finalmente, o conceito surgiu nocontexto dos debates sobre autonomia territorial, exemplificado pela Conveno 169 daOIT, onde cumpriu uma funo central nos debates nacionais em torno do respeito aosdireitos dos povos.

    Assim, o conceito de povos tradicionais contm tanto uma dimenso empricaquanto uma dimenso poltica, de tal modo que as duas dimenses so quase

    inseparveis. O interesse neste artigo situar o conceito no plano de reivindicaesterritoriais dos grupos sociais fundiariamente diferenciados frente ao Estado brasileiro,algo que perpassa os quatro contextos casos acima mencionados. Para tanto, a opo

    pela palavra povos` em vez de grupos, comunidades, sociedades ou populaes coloca esse conceito dentro dos debates sobre os direitos dos povos, onde se transformanum instrumento estratgico nas lutas por justia social desses povos. Essas lutas, porsua vez, tm como foco principal, o reconhecimento da legitimidade seus regimes de

    propriedade comum e das leis consuetudinrias que os fundamentam.A opo pela palavra tradicional` gera mais dificuldades ainda, dada

    polissemia dessa palavra e a forte tendncia de associ-la com concepes de

    imobilidade histrica e atraso econmico. A teoria da modernizao, por exemplo,prognosticava a inevitvel (e desejvel) superao da sociedade tradicional (Lerner1958). Todavia, nesta anlise, a importncia dada s constantes mudanas histricas

    provocadas pelos processos seculares de fronteiras em expanso e aos mltiplos tipos deterritrios sociais que produziram, mostra que o uso do termo tradicional aqui refereexplicitamente a realidades fundirias plenamente modernas (e, se quiser, ps-modernas) do sculo XXI. Aqui a conceito de tradicional tem mais afinidades com usorecente dado por Sahlins (1997) quando mostra que as tradies culturais se mantm ese atualizam mediante uma dinmica de constante transformao.

    O uso do conceito de povos tradicionais procura oferecer um mecanismoanaltico capaz de juntar fatores como a existncia de regimes de propriedade comum, o

    sentido de pertencimento a um lugar, a procura de autonomia cultural e prticasadaptativas sustentveis que os variados grupos sociais analisados aqui mostram naatualidade. O fato que o termo tem sido incorporado recentemente em instrumentoslegais do governo federal brasileiro, tais como a Constituio de 1988 e a Lei doSistema Nacional de Unidades de Conservao, reflete essa ressemantizao do termo edemonstra sua atual dimenso poltica. Em resumo, o conceito de povos tradicionais

    procura encontrar semelhanas importantes dentro da diversidade fundiria do pas, aomesmo tempo em que se insere no campo das lutas territoriais atuais presentes em todoBrasil. So, acredito, razes suficientes para utilizar o conceito dentro dos turbulentosmbitos das Cincias Sociais.

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