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Iepé PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL E POVOS INDÍGENAS Com apoio de várias instituições, o Iepé vem desenvolvendo um programa de ações educativas para a valorização dos patrimônios culturais das comunidades indígenas com as quais trabalha, no Amapá e norte do Pará. Este livro apresenta conceitos básicos para o reconhecimento e a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, ilustrados com exemplos dos grupos Tiriyó, Katxuyana, Aparai, Wayana, Wajãpi, Galibi do Oiapoque, Karipuna, Galibi- Marworno e Palikur. Promover o reconhecimento desses grupos como detentores de formas de expressão cultural particulares e permanentemente recriadas, é uma das metas do projeto “Valorização e gestão de patrimônios culturais indígenas”, que o Iepé desenvolve com apoio da Petrobrás. Acreditamos que a ampliação dos contextos valorativos desse patrimônio cultural indígena contribui aos esforços empreendidos por esses povos para seu fortalecimento cultural, social e político.

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Iepé

PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL E POVOS INDÍGENAS

Com apoio de várias instituições, o Iepé vem desenvolvendo um programa de ações educativas para a valorização dos patrimônios culturais das comunidades indígenascom as quais trabalha, no Amapá enorte do Pará.

Este livro apresenta conceitos básicos para o reconhecimento e asalvaguarda do patrimônio culturalimaterial, ilustrados com exemplosdos grupos Tiriyó, Katxuyana, Aparai, Wayana, Wajãpi, Galibi doOiapoque, Karipuna, Galibi-Marworno e Palikur.

Promover o reconhecimento dessesgrupos como detentores de formas de expressão cultural particulares e permanentemente recriadas, é umadas metas do projeto “Valorização egestão de patrimônios culturais indígenas”, que o Iepé desenvolvecom apoio da Petrobrás. Acreditamosque a ampliação dos contextos valorativos desse patrimônio culturalindígena contribui aos esforçosempreendidos por esses povos paraseu fortalecimento cultural, social e político.

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Patrimônio Cultural Imaterial e Povos Indígenas

Iepé 2006

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Realização:

Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena

Apoio para a publicação deste livro:

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Patrimônio Cultural Imaterial e Povos IndígenasExemplos no Amapá e norte do Pará

Iepé 2006

Dominique Tilkin Gallois (organizadora)

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© 2006. Iepé

Coordenação, redação e edição:Dominique Tilkin Gallois

Pesquisa complementar:Denise Fajardo Grupioni, Lux Boelitz Vidal

Colaboração para a edição:Luis Donisete Benzi Grupioni, Lúcia Szmrecsányi

Projeto gráfico: Catherine Gallois

Diagramação, capa e produção gráfica:Ana Marconato - Prata Design Gráfico

Tratamento de imagens:Gabriela Menezes

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Sumário

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6

I. O que é patrimônio cultural imaterial? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81. Como diferenciar “material de “imaterial”? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82. Alguns conceitos básicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103. A transformação da noção de patrimônio na história . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

3.1 De patrimônio familiar a patrimônio nacional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113.2 Aspectos da relação entre diversidade cultural e desenvolvimento . . . . . . . . . . . . 133.3 A criação da UNESCO, defensora da diversidade cultural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

4. Atualizando o conceito de cultura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174.1 Visões estáticas e fechadas de cultura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174.2 As interações e as inovações culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 204.3 A sustentabilidade do Patrimônio Imaterial depende de sua renovação . . . . . . . . . 22

II. Exemplos indígenas, no Amapá e norte do Pará . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28• Modos de conhecer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28• Modos de dizer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36• Modos de ver . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40• Modos de trocar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46• Modos de fazer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52

III. Contextos e experiências de salvaguarda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 581. Por que valorizar os patrimônios culturais indígenas? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 582. Estratégias em favor dos povos indígenas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60

• Experiências de valorização de culturas indígenas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 643. Como proteger bens imateriais? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72

3.1 Quem se responsabiliza por um inventário? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 733.2 Para quem documentar tradições culturais? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 753.3 Como registrar a origem e a transformação das tradições? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 773.4 Como documentar tradições vivas? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

IV. Fontes de informação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 821. Instrumentos internacionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 822. Programas desenvolvidos pela UNESCO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 833. Dispositivos legais e programas em consolidação no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 844. Leituras recomendadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86

Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

Créditos das fotos e ilustrações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

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Apresentação

Este livro tem origem no trabalho que o Iepé desenvolve junto aos povos indígenas quevivem no Amapá e norte do Pará. Esse trabalho visa promover o reconhecimento dospovos indígenas como detentores de expressões culturais particulares, permanente-mente recriadas, e leva em consideração as profundas transformações que vêm afetan-do os contextos de produção e de transmissão de saberes tradicionais, na atualidade.

Neste livro, tratamos de um campo relativamente novo: o do patrimônio cultural ima-terial, ou “intangível”. Na primeira parte, procuramos explicar como surgiu a atualpolítica de preservação da UNESCO, que também está sendo adotada pelo governobrasileiro. Retraçamos brevemente as mudanças conceituais na abordagem das cha-madas culturas tradicionais e populares e ressaltamos aspectos que nos parecempromissores para a valorização, interna e externa às próprias comunidades, das for-mas de pensamento, dos conhecimentos, das práticas culturais e das artes indígenas.

Na segunda parte, ilustramos alguns âmbitos do patrimônio cultural imaterial, a partirde exemplos dos Tiriyó e Katxuyana, dos Wayana e Aparai, dos Wajãpi e dos povosindígenas do Oiapoque. Na terceira parte, apresentamos uma breve discussão emtorno de medidas adequadas para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial,citando algumas experiências e ações em curso, no Brasil e em outros países. Na últi-ma parte, indicamos fontes de informação, para saber mais a respeito dos instrumen-tos e programas desenvolvidos no contexto das políticas nacionais e internacionais.

Os exemplos selecionados para ilustrar os diferentes âmbitos do patrimônio imaterialrepresentam, evidentemente, uma fração muito pequena dos ricos acervos culturaisdos grupos indígenas do Amapá e norte do Pará. Não se trata, portanto, de um livro

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sobre as manifestações culturais desses povos, mas sim da apresentação de algunsaspectos que nos parecem relevantes para uma primeira aproximação a esse vastopatrimônio ainda mal conhecido.

Como já mostramos no primeiro livro do Iepé, Povos indígenas no Amapá e norte doPará (2003), os grupos que vivem hoje na região de fronteira entre o Brasil, a GuianaFrancesa e o Suriname se constituíram a partir de redes de relações históricas e deprocessos seculares de troca. Adotamos a mesma perspectiva neste livro, para eviden-ciar como, através dessa dinâmica, muitos elementos culturais diferentes são comparti-lhados por todos os povos da região. Se nos parece inadequado identificar e isolar“patrimônios étnicos” – ou seja, patrimônios culturais isolados, como se fossem “acer-vos” de cada etnia – ressaltamos como os componentes compartilhados por estes gru-pos são constantemente re-elaborados em contextos particulares, permitindo a cadagrupo reconhecer e valorizar o que considera parte de seu próprio patrimônio cultural.

Este livro não poderia ter sido elaborado sem o apoio da Petrobrás. Por meio do pro-jeto Valorização e gestão de patrimônios culturais indígenas no Amapá e norte doPará, a equipe do Iepé vem realizando atividades educativas em várias aldeias da re-gião, com o objetivo de iniciar a formação de pesquisadores indígenas. Nosso objeti-vo é que estes pesquisadores possam assumir, a médio e longo prazo, os processos deprodução, registro, seleção e difusão dos patrimônios orais e artísticos de seus grupos.Para algumas comunidades, o interesse é recuperar conhecimentos e modalidades detransmissão ora em desuso, para outras a prioridade é aprender formas novas de regis-tro e difusão desses saberes. Com uma consciência mais aguçada da riqueza de suaspráticas tradicionais, os jovens e adultos indígenas que participam desse programa deatividades preparam-se para gerir seu patrimônio cultural em acordo com os diferentesenfoques e interesses de suas comunidades.

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I. O que é patrimônio cultural imaterial?

1. Como diferenciar “material” de “imaterial” ?

Para iniciar, convidamos o leitor a acompanhar a explicação oferecida por JoãoAsiwefo Tiriyó1, com apoio do desenho reproduzido abaixo:

Patrimônio cultural imaterial, patrimônio material? É tudo misturado!

Para explicar, desenhamos um rapaz que está todo enfeitado. Dese-nhamos esse nosso parente enfeitado para a gente entender melhoronde está o patrimônio material e onde está o patrimônio imaterial.De um lado, colocamos o patrimônio material, do outro o imaterial.

Todos nós sabemos que o imaterial é a fonte do patrimônio material.Para nós, é entu, fonte. Está na cabeça desse rapaz que desenhamos,está no pensamento dele. Se ele não tiver esse conhecimento den-tro dele, como é que ele vai fazer os enfeites que ele está usandoaqui, como é que ele vai poder repassar para os filhos dele? Opatrimônio imaterial é o conhecimento que foi repassado para esserapaz. É o invisível que está dentro, que comanda tudo. O conhe-cimento que ele tem para fazer os adornos que ele vai tecendo. Issoquer dizer que ele não deixou acabar o conhecimento.

Como sugere João Asiwefo Tiriyó, para apreciarmos a riquezados patrimônios culturais indígenas, é necessário consideraressa “mistura” entre aspectos materiais e imateriais e, sobre-tudo, procurar as variadas “fontes” do conhecimento, paraalém dos saberes tecnológicos.

Não deveríamos, portanto, abordar uma cultura pelo viés de seus modos de saber-fazer,como ainda fazem muitos livros escolares que caracterizam os povos indígenas a partirda simplicidade de sua cultura material: os índios moram em casas de palha e não emcasas de tijolo, eles têm arco e não armas de fogo, etc. Até hoje, muitas pessoas conti-nuam avaliando o grau de civilização dos povos indígenas em função de seu legado

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material às futuras gerações, contrapondo assim um nível de tecnologia “primitiva” aoalto grau de desenvolvimento conquistado pelos povos ocidentais. Somada a essa “defi-ciência evolutiva” em termos tecnológicos, temos também a caracterização de suassociedades como “simples”, dada a ausência de Estado, de propriedade privada, deescrita, etc. Os primeiros colonizadores descreveram os índios brasileiros como “povossem lei, sem fé, sem rei”. Aos olhos dos ocidentais, como disse o antropólogo PierreClastres, são sempre definidas como “sociedades da falta”. Não por acaso, quando seconcebe alguma sociedade indígena que se aproxime da “civilização”, imediatamenteaparecem os exemplos dos Astecas do antigo México ou dos Incas do antigo Peru. Emacordo com esse tipo de avaliação preconceituosa, arraigada no senso-comum, osAstecas e os Incas seriam mais “civilizados” ou mais “desenvolvidos” que os grupos indí-genas que vivem na Amazônia, por terem construído pirâmides, cidades e uma formade organização política centralizada próxima do que conhecemos hoje como “estado”.

Essa comparação, que sempre associa povos com Estado a povos com tecnologia, igno-ra o imenso legado de modos de vida, de experiências e saberes de inúmeros povos emtodos os continentes que, como os grupos indígenas que vivem atualmente na Amazô-nia, apresentam formas de organização social e cosmológica extremamente complexasindependentemente de terem produzido formações estatais ou não.

O que hoje denominamos povos indígenas ou nativos, tanto nas Américas como naÁfrica, Ásia, Oceania e inclusive na Europa, são sociedades que optaram por uma for-mação sócio política na qual a existência de um poder centralizado e hierarquizadocomo o Estado foi descartada histórica e filosoficamente. Esses povos representam 5%da população mundial, num total de cerca de 350 milhões de pessoas. Hoje inseridosem estados nacionais com as mais diversas orientações políticas, criaram e continuamproduzindo diversificados conjuntos de saberes, que vem sendo incorporados ao quechamamos de “ciência”. Curiosamente, essa ciência ocidental apresenta ainda imen-sas dificuldades em reconhecer a propriedade intelectual dos povos indígenas sobreesses conhecimentos.

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O reconhecimento dos valiosos sistemas de conhecimentos produzidospelos povos indígenas é um processo lento, que ainda está em curso.Dentre outros fatores históricos, a revisão da noção de “cultura” condu-zida pela Antropologia, tem possibilitado a construção de instrumentospara que esse conjunto de saberes possa ser reconhecido pelos estadosnacionais e por organizações internacionais. Nesse processo de revisão,destaca-se a importância que os patrimônios imateriais adquiriram nacena científica, onde se critica o excesso de foco dado até agora aopatrimônio material e aos saberes tecnológicos.

2. Alguns conceitos básicos

A atual definição oficial de patrimônio cultural imaterial2 é a seguinte:

As práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas –assim como os instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais quelhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos,indivíduos reconhecem como fazendo parte integrante de seupatrimônio cultural.

Esse patrimônio cultural imaterial – que se transmite de geração em ge-ração – é constantemente recriado pelas comunidades e grupos emfunção de seu entorno, de sua interação com a natureza e sua história,e lhes fornece um sentimento de identidade e de continuidade, con-tribuindo assim a promover o respeito pela diversidade cultural e a cria-tividade humana.

De acordo com essa definição, o patrimônio cultural imaterial se manifes-ta em particular nos seguintes âmbitos:

• as tradições e expressões orais, incluindo a língua como veículo dopatrimônio cultural imaterial,

• dança, música e artes da representação tradicionais,• as práticas sociais, os rituais e eventos festivos,

Glossário3

Criatividade: capacidadeinerente aos seres huma-nos de inventar significa-

ções, modos de expressãoe mundos imaginários

originais. Criador é ummembro de uma comu-

nidade que atua na transformação e modifi-

cação das práticas sociaise das representações.

Formas de expressão oral: representações e

expressões públicas dapoesia, da história, dos

mitos e outras formas narrativas, além da música e do canto.

Práticas sociais (ou usos):atividades que expressamconceitos, conhecimentose competências, em per-manente transformação,

vinculadas às relaçõessociais, aos modos de

tomada de decisão e àsaspirações da comunidade.

Representações: sinaisvisuais, sonoros, gestos e

textos que identificamuma comunidade cultural

ou, pelo menos, impor-tantes aspectos de suas

práticas sociais.

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• os conhecimentos e os usos relacionados à natureza e ao universo,• as técnicas artesanais tradicionais.

Adiante, voltaremos aos diferentes aspectos desta definição. Mas é impor-tante considerar que a atual conceituação do Patrimônio Cultural Imaterialinclui a dimensão social, sempre presente nos saberes e fazeres, comotambém inclui as interpretações e transformações que necessariamenteacompanham a transmissão de saberes.

3. A transformação da noção de patrimônio na história

3.1. De patrimônio familiar a patrimônio nacional

A palavra patrimônio vem de pater, que quer dizer “pai” em latim, umadas línguas faladas na antiguidade, na Europa. Essa idéia de patrimôniocomo “aquilo que se herda do pai” se transformou, ao longo de muitosséculos, para designar tudo aquilo que uma família recebia de seus ances-trais. O tempo passou e, na Europa do século XVIII, a palavra patrimôniose estendeu para o domínio das cidades e das nações. Do ponto de vistade cada família, era importante cuidar de seu patrimônio para que estepudesse ser transmitido aos membros das próximas gerações. Da mesmaforma, do ponto de vista do conjunto dos cidadãos de um país, passou aser considerado importante cuidar de um conjunto de bens históricos eartísticos, visto como propriedade de uma nação inteira.

Isso aconteceu quando, em 1789, na França, grupos revoltados com osmuitos privilégios das famílias reais e nobres resolveram lutar para der-rubar o poder dos reis e criar um novo sistema de governo baseado em trêsideais que ficaram famosos no mundo inteiro: igualdade, fraternidade eliberdade. Os revolucionários queriam também acabar com os castelos,monumentos e obras de arte representativas da monarquia que acabavam

Eventos festivos: reuniãocoletiva durante a qual eventos importantes parauma comunidade culturalsão proclamados, celebra-dos, comemorados ou valo-rizados por meios diversose habitualmente acompa-nhados de danças, música e outras manifestações.

Artes da interpretação:além da música instrumen-tal e vocal, da dança, oscontos, a poesia cantada e outras práticas doespetáculo, que teste-munham da criatividade das comunidades.

Espaços culturais (oulugares): ambiente culturalproduzido pelas praticassociais, a partir do uso ouda apropriação de estru-turas construídas, deespaços ou sítios naturais.

Cabe lembrar aqui quenatureza e universo não são percebidos univer-salmente da mesma forma,nem são “dados” danatureza. Tornam-sesuporte do patrimônio cultural na medida em quecada comunidade lhesatribui valores e significados diferenciados.

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de derrubar, para começar uma nova história e criar uma nova tradição, a daRepública. Foi em reação a essas idéias tão radicais que surgiu na França o primeiromovimento de proteção de um patrimônio nacional de que se tem notícia, por voltade 1830. Um grupo contrário à destruição do patrimônio deixado pelas famíliasnobres, defendia que tudo que havia sido de propriedade desses nobres fosse apropri-ado como herança de todos os cidadãos franceses e, portanto, considerado comopatrimônio da Nação.

O que aconteceu na França se repetiu em vários outros países, que foram passandopor mudanças radicais em seus modos de organização social, política e econômica,quando formas tradicionais iam sendo substituídas por formas consideradas mais mo-dernas. E foi nesse contexto que os governos perceberam que, se não fossem criadasinstituições e políticas voltadas à preservação de seu passado, as nações perderiam amemória de suas origens e de suas realizações mais antigas. Com a adoção dasprimeiras práticas de conservação (como por exemplo a transformação de paláciosprivados em museus públicos), os bens históricos e artísticos se tornavam símbolosnacionais que fomentavam sentimentos patrióticos.

Até o começo do século XX, o patrimônio nacional designava apenas bens materiais.A idéia de um patrimônio cultural que não fosse feito apenas de monumentos, deesculturas e quadros e artistas famosos, mas também de saberes imateriais, nasce para-lelamente ao surgimento da Antropologia. Um dos pais-fundadores da disciplina,Edward Tylor, foi o primeiro a propor uma definição de cultura que resume o pensa-mento antropológico da época. Segundo ele, cultura “é este todo complexo que incluiconhecimentos, crenças, arte moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ouhábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”4.

As políticas nacionais de proteção de patrimônios abriram caminhos novos durante asdécadas de 1900 a 1950, incorporando progressivamente não só alguns bens não-mate-riais, mas os conhecimentos e costumes tradicionais, ou seja, incorporando o que há demais rico nas culturas humanas: os saberes, as práticas e os modos de criação cultural.

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Estava plantada a semente das atuais políticas em defesa desse tipo de patrimônio. Porém,muitos obstáculos deveriam ser enfrentados para consolidar essas políticas.

3.2. Aspectos da relação entre diversidade cultural e desenvolvimento

O surgimento de um conceito de patrimônio cultural imaterial, muito recente, deveser entendido como parte de um longo processo de preocupação de diversos paises einstituições com a diversidade cultural.

Um dos focos dessas preocupações eram os efeitos homogeneizadores dos processosde desenvolvimento, inclusive dos programas educacionais conduzidos sem atençãoàs diversidade social, cultural e lingüística dos paises tidos como “sub-desenvolvidos”.Assim, durante muito tempo, as discussões centraram-se na difícil questão da relaçãoentre desenvolvimento e padrões culturais. Alguns países do ocidente historicamenteatribuíram o sub-desenvolvimento ao suposto “atraso cultural”. Ou seja, consideravamque traços culturais não-ocidentais impediam o desenvolvimento. Por isso, defendiamque as diferenças culturais se dissolvessem através de processos de homogeneização.Pouco importava que o resultado desse processo fosse o empobrecimento cultural dospovos não ocidentais. Tal visão etnocêntrica ainda predomina na perspectiva dos queprivilegiam o desenvolvimento tecnológico como padrão para a apreciação da quali-dade de vida, relegando as sociedades menos integradas ao modelo das sociedadesindustrializadas ao subdesenvolvimento.

A mudança de visão da ONU – Organização das Nações Unidas – a esse respeitoresultou da luta dos países em desenvolvimento, que contaram com contribuições sig-nificativas dos povos nativos. Em outra escala, um processo semelhante ocorreu noBrasil na década de 1970, quando líderes indígenas e as primeiras organizações re-presentativas desses povos exerceram forte pressão sobre a política indigenista oficial,contestando a tutela exercida pelo Estado em função da suposta “incapacidade” queseus traços culturais “primitivos” justificava até então. Como resultado desta pressão,a Constituição Federal de 1988 reverteu, ainda que parcialmente, o caráter “civi-lizador” e assimilacionista da política indigenista.

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Assim, a cultura só deixa de ser vista como um impedimento ao desenvolvimento a par-tir dos anos 1980. Pouco a pouco, passa a ser tratada não mais como elemento exter-no, mas integrante do desenvolvimento5. Constrói-se uma visão alternativa de desen-volvimento, com novos parâmetros de qualidade de vida, focando o desenvolvimentohumano e não apenas econômico. Um indicador dessa transformação são os financia-mentos que os grandes bancos se dispuseram a oferecer, além das obras de infra-estru-tura necessárias à industrialização do terceiro mundo, para iniciativas na área da cul-tura, especialmente programas de restauro do patrimônio material e, ainda que timida-mente, para ações de desenvolvimento de pequenas comunidades tradicionais.

Outro foco de preocupações, sobre o qual não iremos nos estender aqui, mas quecontribuiu significativamente para a consolidação das atuais políticas de patrimônio,diz respeito à delicada relação entre produtos culturais e mercados comerciais. Nosanos 1990, sob os efeitos da chamada mundialização, percebe-se que os produtosculturais passam a ser valorizados como “mercadorias”, ofuscando o que eles têm demais significativo: são produtos expressam as identidades dos povos que os concebe-ram. A proteção desses produtos culturais passaria, então, a ser debatida em forosinternacionais6, em discussões que prosseguem até hoje.

3.3. A criação da UNESCO, defensora da diversidade cultural

Voltando à evolução do conceito de patrimônio na primeira metade do século XX, épreciso contextualizar, mesmo que rapidamente, o surgimento dos instrumentos e pro-gramas internacionais dirigidos pela UNESCO, a Organização das Nações Unidas paraa Educação, a Ciência e a Cultura, criada em novembro de 1945.

Nos círculos acadêmicos e políticos da época, a cultura passava a ser compreendidacomo uma capacidade universal, estendida aos homens de todas as épocas e regiõesdo mundo, e não mais como o privilégio de uma parte da humanidade, ou de algu-mas nações que se consideravam mais capazes que outras. Era necessário, então, en-gajar todas as nações na preservação dos patrimônios culturais que refletiam a diver-

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sidade cultural no mundo para que toda a humanidade pudesse se reconhecer comoherdeira das mais importantes e belas realizações humanas.

Foi ao longo desse percurso que a UNESCO, que integra a família de instituições dasNações Unidas, passou a se destacar na defesa da riqueza que resulta da diversidadecultural. Promovendo reuniões internacionais, chamando especialistas e congregandoos estados membros das Nações Unidas a adotarem instrumentos de proteção e a ra-tificar documentos.

Um passo importante foi dado em 1989, com a Recomendação da UNESCO sobre aSalvaguarda da Cultura Popular e Tradicional, na época definida como segue:

“O conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural e são fundadas natradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e reconhecidas porque atendemàs expectativas da comunidade enquanto expressão da identidade cultural e social,das normas e dos valores que se transmitem oralmente, por imitação ou outrosmodos. Suas formas de expressão compreendem, entre outros: a língua, a literatura,a música, a dança, os jogos, a mitologia, os ritos, os costumes, o artesanato, a arquite-tura e outras artes”.

Essa definição era ainda problemática, por tentar identificar aspectos da cultura, comose fossem elementos isolados. Além disso, ao priorizar formas de expressão como aliteratura, a música, a arquitetura, etc., dava-se maior importância às criações resul-tantes da tradição de um povo, em detrimento dos próprios processos criativos.Naquela época, as culturas populares ainda eram abordadas a partir de uma seleçãode “produtos acabados”, um foco característico nas políticas de preservação do pa-trimônio material.

No entanto, essa Recomendação já apontava para o entrelaçamento dos aspectos sociais,econômicos, culturais e políticos presentes na cultura tradicional, levando em conside-ração seu papel na história dos povos e o lugar que ocupam na vida dos povos contem-porâneos. A cultura tradicional seria, assim, definida como “cultura viva”. Reconhecia-se, então, que as culturas podem também “morrer”. Esse argumento teve algum impacto

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ao chamar a atenção para a situação das populações indígenas, considerando “a extre-ma fragilidade de certas formas da cultura tradicional e popular e, particularmente, a deseus aspectos correspondentes à tradição oral, bem como o perigo de que estes aspec-tos se percam... e o perigo que correm em face de outros múltiplos fatores”.

A partir dessa abordagem, a UNESCO promoveu a adoção, pelos estados nacionais, de medidas eprogramas que visaram, primeiro, a preservação e, depois, a valorização das culturas tradicionais.

O primeiro programa, implantado em 1989, foi o programa Tesouros Humanos Vivos. Incen-tivou a criação de sistemas nacionais de identificação e reconhecimento oficial de indivíduosconsiderados por suas comunidades como depositários e praticantes da tradição. O Brasil aca-tou a proposição e criou alguns instrumentos para a valorização os detentores de saberes tradi-cionais como, por exemplo, no Ceará onde os mestres de cultura popular vem ganhando visi-bilidade crescente.

O segundo programa, implantado dez anos depois, foi a Proclamação das Obras Primas doPatrimônio Oral e Imaterial da Humanidade que já está em sua 3ª edição e concedeu esse títu-lo, ou distinção, a mais 90 obras primas7, selecionadas entre candidaturas encaminhadas pelosgovernos de todos os continentes. A adesão do Brasil a esse programa foi inaugurada por umacandidatura indígena proposta pelo Conselho das Aldeias Wajãpi – Apina e encaminhada peloMuseu do Índio – FUNAI e pelo Ministério da Cultura em 2002: as expressões orais e gráficasdos Wajãpi do Amapá integram a 2ª lista; já em 2005, o Samba de Roda do Recôncavo Baianofoi reconhecido como Obra Prima na 3ª lista.

A experiência desse programa foi determinante para o avanço das discussões em torno de medi-das mais eficazes de valorização cultural, que não se limitem às distinções honoríficas. Para chegarà Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, promulgada em 20038, foram necessáriasinúmeras reuniões de especialistas e de representantes dos governos, para debater conceitos emedidas adequadas de proteção que seriam adotadas pelos países membros das Nações Unidas.

O Brasil já havia adotado medidas nesse sentido, em conformidade à sua longa experiência depolíticas de patrimônio9. Nos artigos 215 e 216 da Constituição promulgada em 1988, o conceitode Patrimônio Cultural abarca tanto o as obras arquitetônicas e artísticas, como manifestaçõesdas culturas populares, de natureza imaterial. No ano 2000, o Decreto no 3.551, instituiu oRegistro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro,criando o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial10. Os bens de natureza imaterial são re-gistrados em um dos quatro livros existentes até o momento11:

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• Dos saberes: conhecimentos e modos de fazer, enraizados no cotidiano das comunidades;• Das celebrações: rituais e festas que marcam a vivencia coletiva do trabalho, da religiosidade,

do entretenimento e de outras praticas da vida social;• Das formas de expressão: manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;• Dos lugares: mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e

reproduzem praticas culturais coletivas.

É significativo que esse dispositivo legal empregue a figura do registro e do inventáriopermanente, ao invés do tombamento, um instrumento que é reservado aos bensmateriais. Como se reconhece a transformação como uma característica importantedo patrimônio cultural imaterial, determina-se, inclusive, a reavaliação de cada bemregistrado a cada dez anos. Um bem imaterial registrado constitui, assim, apenas umtestemunho de seu tempo.

4. Atualizando o conceito de cultura

4.1. Visões estáticas e fechadas de cultura

Percorrido todo esse caminho rumo à adoção de instrumentos legais e à implantaçãode políticas de valorização do patrimônio imaterial, devemos nos perguntar se asnovas feições da idéia de cultura que sustentam esses programas estão devidamenteincorporadas no dia a dia das pessoas. E indagar se tal abordagem foi apropriada naprática corrente das políticas públicas voltadas aos povos indígenas. Uma avaliaçãorápida da situação no Brasil permite verificar que, infelizmente, as iniciativas de va-lorização da diversidade cultural, especialmente as que foram promovidas por instân-cias supranacionais como a UNESCO e adotadas pelo Ministério da Cultura no Brasil,continuam esbarrando, no cotidiano das relações que variados setores da sociedadenacional mantêm com os índios, em concepções muito estáticas de cultura.

Quando se compara a própria cultura com a “dos outros” ainda é difícil, para a maiorparte da população brasileira, superar os obstáculos do preconceito. Pré-conceitoremete, nesse contexto, às idéias que as pessoas possuem de antemão sobre o valor

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de costumes e saberes, selecionando e julgando elementos culturais a partir de umavisão própria, sem considerar o ponto de vista dos seus criadores e detentores. E quan-do esses “outros” apresentam sua cultura com formas e conteúdos que não estavamprevistos nessa idéia pré-moldada, essa cultura acaba sendo rejeitada ou desvaloriza-da. Na visão pré-conceituosa, só se apreciam os traços e características dadas na con-figuração idealizada da cultura do outro. Assim, para a maior parte dos brasileiros, o“índio” continua sendo concebido como um “silvícola”, que para ser reconhecidocomo portador de “cultura indígena” deve viver “no mato”, morar em “ocas”, “fazerpajelança”, usar “cocar”, etc. Essas idéias arraigadas a respeito do que seja “a culturaindígena” impedem que se atribua valor a inúmeros aspectos menos conhecidos, ouàs adaptações criativas de saberes ancestrais que, localmente, cada grupo indígenaproduz, de maneira dinâmica e sempre articulada a seu ambiente, sua história e suasrelações com outras comunidades culturais.

Para superar essas dificuldades e combater as diversas formas de racismo e os antago-nismos internos e externos às nações, a UNESCO investiu em campanhas, defendendoo princípio da igualdade entre os homens. Essas campanhas apoiaram-se na concepçãoantropológica de cultura, que inclui todas as realizações da vida em sociedade, desdeaquelas de valor reconhecido pelas elites de um país, até aquelas das chamadas cul-turas tradicionais e populares, menos visíveis nos cenários nacionais. Todos essesesforços, acompanhados de estudos e debates, colocaram em evidência a pluralidadecultural que atravessa as fronteiras nacionais, em todos os continentes. Em acordocom o objetivo declarado da UNESCO, tal pluralidade é uma condição essencial parao convívio pacífico entre culturas.

Hoje, sem dúvida, no âmbito de uma conferência internacional, de uma exposição numgrande museu, na comemoração de um prêmio atribuído a uma manifestação da culturapopular, as tensões diminuíram. Afinal, foram mais de cinco décadas de esforços porparte de várias instituições supranacionais, para que países, religiões ou grupos étnicosem franco desentendimento consigam reconhecer conjuntamente, mas apenas formal-mente, a importância do desafio proposto. Uma aposta significativa, especialmente

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porque continua diariamente contradita por conflitos étnicos, religiosos e políticos.

Na prática, é sobretudo no âmbito comercial que se pode constatar a convivência defeições culturais do mundo todo, testemunhando um tempo de mercados ampliados. Acirculação de objetos exóticos, que afinal sempre foram mercadorias de valor, é um bomexemplo para refletir sobre as dificuldades de aceitação do pluralismo cultural. Para serefetivo, deveria remeter não só à circulação de produtos, mas de idéias e soluções paraa vida em sociedade. Comerciantes do exótico notaram que só têm sucesso de vendaaqueles objetos que correspondem ao protótipo que construímos a respeito de tal ou talcultura e temos dificuldades em aceitar que produtos que se tornam mais parecidos comos nossos, seja na forma, materiais ou propriedades de uso. Assim, por exemplo, o “ver-dadeiro” cesto indígena não pode ser feito de lascas de plástico – como o reinventaramos índios Guarani em São Paulo – nem o verdadeiro cocar poder ser composto compenas de galinha tingida – como o adaptaram os índios do Nordeste.

O problema central é, portanto, a visão estática que embasa a idéia de cultura, pro-fundamente arraigada no senso comum e que se manifesta freqüentemente na buscade “autenticidade”. Esse pressuposto equivocado é provavelmente um dos principaisempecilhos no indispensável processo de revisão do conceito de cultura, que nãoconsegue superar uma definição datada dos anos 1950, que a Antropologia da épocadefinia a partir dos conhecimentos, crenças, arte, leis, costumes, capacidades ehábitos que constituiriam “o conjunto dos traços distintivos de um grupo social, noplano espiritual, material, intelectual, emocional e incluindo, além das artes e da li-teratura, os estilos de vida, os modos de vida em comum, os sistemas de valores, astradições e as crenças”12. Essa abordagem de “traços culturais” foi abandona há maisde 50 anos pelos especialistas, mas continua orientando a apreciação das culturasindígenas. No Brasil especialmente, em função do alto valor simbólico atribuído atudo que se refere ao “índio”, tende-se a congelar uma imagem idealizada do que seja“a cultura indígena”. É uma imagem persistente que continua congelando a cultura –a deles, em particular – concebendo a mudança como um percurso em que se per-dem “traços” e se dilui a pressuposta autenticidade cultural.

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4.2. As interações e as inovações culturais

Como nos ensina a Antropologia, apoiando-se em estudos e comparações realizados nomundo todo, a transformação é um processo inerente à própria definição de cultura. Porisso, no âmbito das políticas internacionais, já se reconhece há muito tempo a inovaçãocomo parte da cultura. É o que estabelecia a definição de cultura tradicional acordadaem 1982: “Práticas sociais e representações que um grupo social considera ter adquiri-do por transmissão ao longo de sucessivas gerações, mesmo quando se trata deinvenções recentes, e às quais o grupo atribui um estatuto diferenciado”13.

É com esta abordagem que a Convenção sobre a Diversidade Biológica, ratificada peloBrasil em 1998, descreve o “saber tradicional” como incluindo conhecimentos, práticase – sobretudo - inovações. “O que é tradicional no saber tradicional não é sua antigui-dade, mas a maneira como ele é adquirido e como é usado” Ou seja, “os saberes tradi-cionais não são enciclopédias estabilizadas de conhecimentos ancestrais, mas formasparticulares, continuamente colocadas em prática na produção dos conhecimentos”14.

As sucessivas reuniões de especialistas que procuram aperfeiçoar os instrumentos legaisdecorrentes da Convenção de 2003 para a Salvaguarda do Patrimônio CulturalImaterial nunca deixam de frisar que “o termo autenticidade, tal como aplicado aopatrimônio material, não é adequado para identificar e salvaguardar o patrimônio cul-tural imaterial, considerando que este é constantemente recriado”15. Razão pela qual asinterpretações relativas à autenticidade de uma expressão ou tradição cultural sópodem ser avaliadas no contexto específico em que são produzidas e transmitidas.

Como se viu, uma das principais dificuldades na revisão do conceito de cultura rela-ciona-se à idéia de cultura atomizada, ou seja, a idéia de cultura delimitada apenas pormeio de traços que seriam produtos característicos de um povo, grupo ou comunidadelocalizada, sem considerar a troca de conhecimentos e experiências que, necessaria-mente, um grupo mantém com outros. Hoje, tanto a Antropologia como as políticasculturais consideram fundamental levar em conta todos os modos de interação atravésdos quais conhecimentos, expressões e práticas culturais são apropriadas e apreciadas.

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Um exemplo dessa dificuldade em aceitar a atualização permanente dos modos deprodução cultural é considerar que os povos indígenas transmitem seus conhecimen-tos apenas de forma oral, enquanto nós – ocidentais e modernos – transmitimos nossossaberes na forma escrita, acumulando saberes em bibliotecas, etc. Esquecemos queescolas funcionam há muitas décadas em aldeias indígenas, que escritores indígenasnão só publicam obras que chegam às livrarias das grandes cidades, como estão su-perando dificuldades que não se relacionam às suas culturas, mas à profunda desigual-dade no acesso às universidades, onde defendem teses de mestrado e doutorado etc. Eao mesmo tempo, desprezamos o papel que a transmissão oral continua tendo em nos-sas vidas, esquecendo quanto é reduzido o número de pessoas que freqüentam biblio-tecas, ou acreditando que na escola só se aprende nos livros.

Há muito trabalho a fazer ainda, para promover e difundir uma noção de cultura queintegre a dinâmica e a criatividade. Se ainda é difícil superar a idéia segundo a qualcultura remete a coisas do passado, mais complicado será superar outra impressão,relacionada à primeira, que pressupõe a fragilidade das culturas. E é particularmentepreocupante o fato de tal fragilidade ser sempre atribuída aos setores menos favoreci-dos, ou minoritários como são os povos indígenas. Quase sempre descritos como umahumanidade “em vias de extinção”, enquanto a fragilidade da cultura dos povoshegemônicos quase nunca é mencionada...

Na verdade, as culturas descritas ora como “dominadas”, ora como “subalternas” con-tinuam incrementando suas experiências de atualização cultural, em processos muitointeressantes que vários antropólogos se dedicaram a estudar e divulgar, contrapondo-se à idéia da suposta homogeneização conduzida por culturas ditas “hegemônicas”.Como demonstra a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, “malgrado a extra-ordinária difusão da mídia, a cultura global não existe”. O que importa compreendere, portanto, valorizar, é o ponto de vista local. É na escala local que são selecionados,traduzidos e apropriados objetos ou saberes que circulam no sistema mundial16. Porisso, como a UNESCO já recomendava em 1989, é fundamental que se leve emconsideração, além dos valores que fundamentam as expressões artísticas de uma

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comunidade, também “os processos criativos que permitem sua emergência e os modosde interação através dos quais estes produtos são apropriados e apreciados”17.

4.3. A sustentabilidade do Patrimônio Imaterial depende de sua renovação

Como definia João Tiriyó – do grupo que se autodenomina Tarëno - o patrimônio ima-terial é entu, uma fonte que se alimenta necessariamente de variados aportes. É o queele explicava com outro exemplo: a apropriação das miçangas de vidro, usadas porseu grupo e por muitos outros povos indígenas.

Nossos objetos não podem sumir, tem queser passados para os nossos filhos. Osobjetos que a gente faz não vão existir senão tivermos o patrimônio imaterial. Por-que tudo que a gente tem, devemos incor-porar nos nossos conhecimentos. É issoque nós pensamos.

Aí está a miçanga que nós chamamos desamura. Está certo que é o branco que fa-brica, mas a miçanga só é material lá naloja ainda. Quando ela chega na mão doíndio, ela já vai se transformando. Ela vaise transformar em patrimônio material?Não, em patrimônio imaterial também.Automaticamente vai se transformando.Pelo conhecimento dele, que é invisível.O nosso pensar, o nosso conhecer, todogravado na nossa cabeça. As mulheresvão enfiando miçanga em metros e me-tros de linha, todo dia, não sei como...Então, na medida que a mulher vai traba-lhando, enfiando a miçanga, ela já estátransformando a miçanga em imaterial,ela está enfiando o conhecimento deladentro da miçanga.

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Para o Tarëno, o material que ele arranja é de outro, como por exemplo a miçanga, porque realça,destaca mais. Miçanga com que nós índios fazemos muitas coisas. Tem que saber fazer! O conheci-mento para enfiar, tecer, fazer nossos artesanatos, Tudo o que adquirimos de outros não quer dizerque acabou com o nosso modo de preparar nosso artesanato, e sim que esse modo está dentro.Invisivelmente, o jeito de fazer cinto, o jeito de tecer tanga está dentro do fio, junto com o fio, nãoperdeu nada, nadinha. Não é de ontem, mas de muito, muito tempo mesmo que usamos miçanga.Naquele tempo os índios viviam espalhados, e antigamente tinha os negros que vinham lá do Su-riname, trazendo miçanga, terçado, pano vermelho... Tarëno gosta de incorporar do outro aquiloque lhe é atrativo ou útil. E é assim que a cultura dos Tarëno, que é a dos Tiriyó, foi sendo construí-da ao longo de muitas gerações, e está sendo repassada até hoje. Passar é isso, passar o patrimônioimaterial que nós chamamos entu, que quer dizer fonte. Se não tiver a fonte, podem até existir ascoisas, mas não tem mais como fazer, não tem como a gente dar a direção, ou dar início.

Esse exemplo ilumina o conceito que nos ocupa nesse livro, de patrimônio vivo.Dinâmicas de renovação que programas internacionais e ações locais – como se verána terceira parte deste livro - procuram enfatizar:

O que importa preservar – sob a forma de patrimônios culturais – não é apenas daordem da memória, mas da ordem do projeto: é preciso garantir e tornar renovável ofato da diversidade cultural e não fixar a resultante atual de evoluções seculares, pro-dutos de diálogos constantes. É preciso garantir o que está adquirido para tornar essepatrimônio renovável18.

Aplicado às expressões e práticas culturais dos povos indígenas que vivem no Amapá eno norte do Pará, esse conceito traz importantes esclarecimentos, ao mesmo tempo emque aponta para dificuldades. Esse patrimônio é constituído de elementos amplamentecompartilhados, frutos de intercâmbios históricos que se perpetuam, em novos contex-tos, até hoje. Por esta razão, não seria possível – nem adequado – mapear elementos cul-turais de grupos, como se fossem isolados entre si. Recortes étnicos – separando itensculturais dos Wayana, dos Wajãpi, dos Tiriyó, dos Katxuyana, dos Karipuna, dos Galibi,etc. – representam uma armadilha que se coloca hoje não só aos estudiosos, mas àspróprias comunidades, quando são incentivadas a identificar “sua cultura”. Como sefosse possível listar um conjunto de itens específicos de um grupo, originais desde sem-pre e que, se aparecerem em outro grupo, é porque foram indevidamente apropriados.

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Etnicizar o patrimônio cultural imaterial é uma tendência que resulta de intervençõesmal informadas a respeito dos processos de apropriação e valorização cultural em cur-so há séculos, através de redes de troca que não reconhecem fronteiras étnicas. Aprópria noção de grupo étnico também é questionável, pelas mesmas razões. A culturade grupos particulares, da região do Amapá e norte do Pará como de outras partes domundo, não pode ser abordada como um conjunto fixo de elementos, que resistiriaminertes ao passar do tempo. O processo inclui perdas, mas também acréscimos. E aincorporação de elementos novos ilustra exatamente a vitalidade de uma cultura, comoexplica João Tiriyó, ao falar das miçangas. É o que dizem também os Wajãpi, para quemtodos os importantes saberes veiculados até hoje e, especialmente cantos e danças,foram literalmente “roubados” de outros, sejam eles animais, inimigos, ou grupos vizi-nhos. É essa interpretação a respeito da origem de saberes e fazeres dos mais diversos,rememorada por meio de narrativas e constantemente atualizada nas práticas específi-cas dos Wajãpi, que constitui, justamente, seu patrimônio cultural imaterial.

Definido desta maneira, o patrimônio cultural imaterial tanto decorre como alimenta odiálogo entre pequenos grupos, entre povos, civilizações e mesmo continentes. O re-conhecimento das condições de criação e de renovação cultural, assim como das redesde intercâmbio, poderão assim contribuir com a tolerância. A diversidade cultural seconfigura, cada vez mais claramente, como uma condição essencial para o desenvolvi-mento. Pois nenhuma comunidade poderia se desenvolver sem o reconhecimentopolítico de sua contribuição particular à criação e transmissão de valores culturais.

Como afirma o antropólogo Claude Lévi-Strauss: “A tolerância não é uma posiçãocontemplativa...É uma atitude dinâmica, que consiste em prever, compreender e pro-mover o que quer existir. A diversidade das culturas humanas está atrás de nós, à nossavolta e à nossa frente. A única exigência que podemos fazer a seu respeito é que cadacultura contribua para a generosidade das outras”19.

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Confecção da tinta dejenipapo, usada para apintura corporal, pelosTiriyó e Katxuyana.

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II. Exemplos indígenas, no Amapá e norte do Pará

Nas páginas que seguem, selecionamos um conjunto de domínios da vida cultu-ral dos grupos indígenas dessa região, com o objetivo de identificar alguns ele-mentos de seu patrimônio imaterial. Não se trata de um catálogo exaustivo, masde uma seleção de exemplos que consideramos significativos, por várias razões.

Os domínios escolhidos abrangem os modos de conhecer, os modos de ver, osmodos de dizer, os modos de trocar e os modos de fazer. Com esses recortes,procuramos enfatizar o quanto é importante entender os sistemas de conhecimen-to que fundamentam as práticas culturais dos grupos indígenas. São modos deperceber, de classificar e de relacionar seres e objetos no mundo, compondo sis-temas de conhecimento muito diversificados. Incluem saberes usados no cotidianoou em contextos rituais. São transmitidos por pessoas comuns ou por especialistas.Remetem a aspectos visíveis ou invisíveis da vida social, tanto dos humanos, comode outros seres do universo. Todos esses saberes se transformam dinamicamente,sendo objeto de experiência e de atualização constantes.

Esperamos que essa diversidade de “modos” e “jeitos de” saber e de fazer, ilustra-da com alguns exemplos dos grupos indígenas do Amapá e norte do Pará, possaenriquecer a descrição convencional das “crenças” e dos “costumes” indígenas.Especialmente por considerarmos que as manifestações culturais mais conheci-das desses povos – entre elas seus “mitos” e “rituais” – devem ser compreendi-dos de forma articulada aos demais aspectos de sua vida social e política.

Interessa-nos, portanto, consolidar uma maneira alternativa de abordar suas ma-nifestações e práticas culturais, sem submetê-los aos recortes com os quais es-tamos acostumados, característicos de nosso modo de vida, que separa as esferasda economia e da arte, a ciência da religião, e assim por diante. Veremos que, naperspectiva indígena, os saberes sobre plantas e animais não são apenas úteis paraa subsistência, sendo também relacionados aos jeitos de identificar pessoas e

Fonte das informações:

Os textos apresentados nas próximas páginas

foram editados a partir de

contribuições ou de estudos

já disponíveis, por seis pesquisadoras

que trabalham junto aos grupos

do Amapá enorte do Pará.

Antonella Tassinari(informações sobre o casamento entre

os Karipuna),Denise Fajardo

Grupioni (textos sobre os sub-

grupos, a liderança das aldeias, o casa-mento, as etiquetas

e o jeito de fazer sakura, entre os

Tiriyó e Katxuyana),Dominique T. Gallois

(textos sobre o uso de nomes,cate-

gorias de outros,

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povos, aos jeitos de organizar rituais, aos jeitos de curar, etc. Os modos de dife-renciar pessoas e grupos não se limitam à esfera dos humanos, mas apóiam-senuma lógica mais ampla de classificação de todos os seres do universo, que nãosepara como fazemos uma ordem “humana” de outra ordem “natural”. Grafismose “marcas” constituem uma das manifestações dessa lógica, relacionando não sótodas as esferas do universo, como diferentes tempos, momentos da história dascomunidades. Da mesma maneira, as festas não constituem apenas celebraçõesdos humanos, mas momentos em que todas as categorias de seres se fazem pre-sentes, compartilhando jeitos de dançar, de cantar, de comer e de beber.

Finalmente, nos parece importante assinalar o amplo compartilhamento, em to-da a região, tanto dos aspectos cosmológicos como das formas de organizaçãoda vida comunitária. São bem conhecidos os intensos circuitos de troca entretodos os povos da região, documentados desde o século XVIII. Prosseguem atéhoje, embora de maneira menos “autônoma”, por estarem agora vinculadas àspolíticas indigenistas. As redes de intercâmbio envolvem não só a troca de bens,de técnicas e outros saberes, mas também trocas matrimoniais, trocas rituais e,obviamente, incluem a troca de agressões e sua contrapartida, a troca de curas.

Essas trocas foram e continuam sendo concretizados através de modalidades di-versas, entre as quais se destaca um modo específico de formalizar a relação en-tre duas pessoas (de grupos locais ou étnicos distintos) que passam a se conside-rar “parceiros” e se tratam reciprocamente como iepé (ou pawana, ou panary).Esse modo de constituir parceiros para a troca é compartilhado entre muitos gru-pos da região, especialmente os Wajãpi, os Wayana, Aparai, Tiriyó, Waiwai, etc.

Esperamos que os exemplos que seguem representem um incentivo para a con-solidação de um campo novo de reflexões e estudos. Especialmente se conside-ramos que esses domínios do “patrimônio imaterial” constituem, há muito tempo,temas privilegiados na pesquisa antropológica realizada junto aos povos do Ama-pá e norte do Pará.

concepção sobre os “donos”, entre os Wajãpi),Joana Cabral deOliveira (classifica-ção das plantas entre os Wajãpi),Lúcia Hussak vanVelthem (motivos gráficos wayana) e Lux B. Vidal(informações sobre a avifauna, a festa do turé, as marcas,o caxiri e a arte defazer cuias, entre ospovos indígenas do Oiapoque).Esses textos incluemalguns depoimentosindígenas, identi-ficados por seus respectivos autores.Os trechos da crônica de CarlosDrummond deAndrade sobre a etiqueta katxuyanaforam extraídos de:“O kaxuyana, essebem-educado”Jornal do Brasil,24/10/1978 p. 5.

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Modos de conhecer

Jeito de conhecer as plantas

Na língua wajãpi não há uma palavra que dê conta dos vegetais como um todo, talcomo “planta” em português. A categoria de maior abrangência é denominadatemitãgwerã e designa todas as espécies cultivadas. Por oposição, as plantas selvagenssão chamadas de temitãe’ã, que significa literalmente “não-cultivado”.

Se a agricultura é um marcador importante nessa classificação, é porque se trata deuma atividade não apenas relacionada à subsistência, mas à cosmologia dos Wajãpi.Segundo sua tradição, no tempo das origens, todos os seres que viviam na terra eram“como a gente” e compartilhavam hábitos e corpos semelhantes. Mas, devido ao com-portamento abusivo da primeira humanidade, a terra foi destruída e, quando recriada,ocorreu uma separação entre humanos e não humanos, que passaram a ocupardomínios específicos. Nessa recriação, a floresta surge como o domínio dos animaise dos espíritos. Os homens precisam criar seu próprio espaço e o fazem através daagricultura. Como toda aldeia nasce de uma roça, as plantas cultivadas são emblemasdessa apropriação de um domínio propriamente humano.

A distinção entre plantas cultiva-das e não-cultivadas não é a úni-ca forma de classificação, exis-tindo muitas outras, usadas pelosWajãpi em contextos específicos.Quando estão trabalhando nassuas roças, classificam as plantasem categorias genéricas, tais co-mo: mani’o (o grupo das man-diocas), avasi (o grupo dos mi-lhos), jity (o grupo das batatas),etc. Essas categorias são dividi-

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das em outras, específicas, como: mani’otawa (mandiocaamarela), mani’opirã (mandioca vermelha), mani’ osukyry(mandioca branca), avasipijõ (milho preto), avasiviri (mi-lho miúdo), jitysovã (batata roxa), jitype (batata redonda),etc. Todas elas baseadas nas características externas dosvegetais, como coloração, forma, tamanho, textura, etc.

Mas os critérios para a classificação de uma planta mu-dam conforme o contexto. Por exemplo, quando se estána roça, as mandiocas são reconhecidas, identificadas eclassificadas por características de suas folhas e caules.Já nas aldeias, onde chegam apenas os tubérculos demandiocas a serem processados para o consumo, oscritérios empregados para reconhecê-las serão outrosaspectos, como as cores e texturas da casca, da entre-casca e da parte interna da raiz. Assim, é comum queuma mesma variedade de mandioca receba mais de umnome, de acordo com o sistema de classificação aciona-do em um determinado contexto.

Há ainda outro sistema de classificação, relacionado àreprodução. Alguns vegetais são classificados como -wemarerã, indicando que determinado mamão, man-dioca, batata ou cará são originários de sementes outubérculos armazenados no solo, por ocasião de umaantiga plantação. São, portanto, produtos indiretos daatividade agrícola. Já as plantas que nascem de sementes, são classificadas como -potyrerã. Assim, as classificações informam a prática. Através delas sabe-se o quepode ou não nascer de um armazenamento espontâneo nos solos, como também oque nasce de sementes, de tubérculos ou ramos, o que serve para comer e o que servecomo veneno, entre outros inúmeros exemplos.

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Jeito de conhecer as aves

O conhecimento dos povos do Oiapoque a respeito das aves se apóia na rememo-ração de episódios dos tempos míticos, quando todos os seres adquiriram suas atuaiscaracterísticas. Por trás dessas características, as aves são “gente como nós” e têmpoderes de cura.

“Há três mundos: o de cima, dos espíritos e das almas, o mundo do meio, onde vive-mos, o mundo de baixo, que é o mundo das águas onde vivem os animais. Nessemundo, os animais são como nós, são gente... Nesse mundo das águas, os pássarosfizeram uma festa e cada um se vestiu de forma exuberante: as araras, os tucanos, ospatos, os mutuns e assim por diante. Todos dançaram e beberam por toda a noite.Quando chegou o fim da festa, cada pássaro escolheu um lugar para morar...” (SuzanaPrimo dos Santos, Belém).

“Os pássaros fizeram uma festa e dançaram no Turé. Jacamim começou uma briga,foram brigar e cada qual pegou seu rumo. O macolocolo (anu) e o jacamim trançarama porrada perto do fogão. O macolocolo jogou o jacamim em cima das cinzas e eleficou com as costas brancas. Aí o jacamim pegou o macololo e o atirou nas cinzas epor isso, ele ficou assim, preto” (Antônio. Aldeia Manga).

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“Tem a história do tuburrega, um gavião que pega peixe, mas mal, é do cairipa. Otuburrega era bom de flecha para pegar peixe. O caripira viu ele pegando peixe e teveinveja. Pediu sua flecha emprestado e levou embora com ele, não devolveu mais.Então, o tuburrega não podia mais comer, pegou umas flechas e flechou uns peixi-nhos. Por isso, até hoje, o tuburrega é panema” (Armándio. Aldeia Espírito Santo).

Para os Galibi-Marworno as aves assumem um papel de destaque com relação àspráticas de cura, sendo auxiliares dos pajés. Por ocasião das festas do Turé, realizadaspelos pajés para retribuir as curas, os espíritos das aves são chamados, por meio decantos, para receber homenagens e recompensas pelas curas realizadas. Na festa, elassão convidadas a sentarem em bancos esculpidos em madeira e pintados em coresvivas – bancos que representam alguma ave – cuja forma e ornamentação são trans-mitidas aos pajés pelos espíritos das aves. Os espíritos, mesmo invisíveis aos partici-pantes humanos da festa do Turé, recebem bebida caxiri e fumo de tauari.

Assim acontece com Tucano, chamadoGhã Papa Gho Bec. “Ele é um tuxauaantigo, até hoje ele representa os tuca-nos, mas ele é invisível. Só o pajé entraem contato com ele durante o Turé,através de seu canto. Ele vem e tomacaxiri... Ele vem para dar apoio, atravésdo canto. ‘Ele está no meio da gente’diz o pajé, ‘mas nós não o enxergamos’(é como um telefone). Ele dá apoio emcaso de doença e pode mandar fazerum remédio do mato para curar, porqueele é do mato. O tucano gosta de brin-car na festa, beber, está alegre, dançan-do, bebendo caxiri e fumando tauari”(Getúlio, Aldeia Kumarumã).

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Jeito de reconhecer as pessoas

Para os Tiriyó, a diferença entre os seres animais e vegetais simboliza a diferença entrediferentes grupos de pessoas que existem no mundo. Na língua tiriyó, os finais yana,yó, so e koto são os mais freqüentemente usados para designar diferentes ‘gentes’ ou‘povos’. Assim, temos, entre os Tiriyó atuais, gente que se identifica como Aramayana(gente abelha), Aramiso (gente pombo), Maraso (gente águia), Okomoyana (gente ves-pa), Akuriyó (gente cotia), Piyanokoto (gente gavião), Pïrouyana (gente flecha) e aindaPïropï e Sakïta.

Na literatura histórica sobre a região do Amapá e norte do Pará, estas e muitas outrasgentes são mencionadas como constituindo subgrupos que deram origem às atuais“etnias” da região. Entre elas, os próprios Tiriyó, os Katxuyana, os Waiwai, os Aparai eos Wayana. A cada subgrupo conhecido, são atribuídas origens diferenciadas, áreas demoradia, tipos físicos ou “sangue” distintos, “sotaques” diferenciados, além de jeitospróprios de se comportar. Todos os subgrupos que ainda hoje existem na região possuemuma longa história de relações, seja de guerras, seja de casamentos, ou de trocas de bense de conhecimentos entre si. É assim que a incorporação de modos de viver do ‘outro’,seja ele aliado ou inimigo, é algo que se tornou parte do próprio modo de ser dos Tiriyó.

Os atuais Pïrouyana contam que “é dos Akïyó quetiramos as músicas que dançamos ao redor do jabu-ti e do jacaré em nossas festas” (Achefë Tiriyó). Este éapenas um, de uma lista infinita de exemplos quemostram que entre os Tiriyó, uma vez que se con-hece uma outra pessoa ou grupo, o ato de conhecerse completa através de algo que se ‘pega’ desse outroe se incorpora para si. Ou seja, entre os Tiriyó, busca-se “pegar do outro para si” aquilo que se acha boni-to e que é considerado “bom”, kure, incluindo-sepessoas para casar, bens materiais e conhecimentos.

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Jeito de diferenciar os outros

Quando os Wajãpi conversam a respeito dosgrupos indígenas vizinhos, raramente usam asdenominações étnicas – como “Wayana”, “Ti-riyó”, “Karipuna”, etc. Esses nomes foram cria-dos pelos não-índios e foram apropriados poresses grupos no contexto das relações comagências de assistência. Por este motivo, quandoconversam entre si, os Wajãpi continuam usan-do categorias próprias, que fazem parte de seussistemas de classificação de pessoas e grupos. Opróprio nome “wajãpi” tampouco era utilizado,na medida em que encobre uma diversidadeinterna de grupos locais.

Uma dessas classificações diferencia gruposem acordo com o modo como foram criados,no início dos tempos. Os Wajãpi consideramque apenas eles (e alguns outros grupos classi-ficados como janekwerã, “gente como nós”)são descendentes dos primeiros homens quenasceram da flauta, tocada pelo herói criador.Por se considerarem crias diretas de Janejarã, o“dono da humanidade”, eles denominam a simesmos como janejarã reminõwerã, “as criasde nosso dono”. Às suas crias, Janejarã deu apalavra (hoje se diz “a língua” waiãpi) e ensi-nou a cultivar a mandioca, a processá-la parapreparar o caxiri; o criador também ensinou atocar as clarinetes turé, que ele continua ouvin-

O mesmo ocorre entre os Zo´é, que vivem na região do rio Cuminapanema, ao sul da Terra Indígena Parque doTumucumaque. Os Zo´é, que também falam uma língua

tupi-guarani, não usam nomes “étnicos” para designar os povos indígenas vizinhos, ou os grupos com os quais mantiveram contato ao longo de sua história. Eles se

referem a esses grupos com palavras que identificam seucaráter pacífico ou agressivo, ou explicitam se são parecidos

ou não com eles, se vivem em região de floresta ou delugares distantes, como as cidades. Assim, eles classificam

os grupos indígenas que vivem na região em duas grandescategorias: ou são zo´é – que significa “nós” e também

“como nós” – ou são inimigos. Para distinguir entre essesinimigos, usam categorias distintas: de um lado, os gruposque vivem a leste e matavam os ancestrais com bordunas,

designados como tapy´yi, do outro, os temíveis apam,canibais, que vivem a oeste das aldeias dos Zo´é.

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do, mesmo que de longe, já que ele resolveu,depois, ir embora.

Os demais grupos humanos surgiram depois,em contextos bem diferentes. Os Wajãpi consi-deram que a maior parte dos grupos que sãohoje seus vizinhos nasceram dos ovos de cabase vespas, brotando no cadáver de uma cobragrande. Por isso são denominados moju tapu-rukwerã “os resíduos dos vermes da cobragrande”. Como são variados os tipos de abelhase vespas, são também infinitamente diversos osgrupos humanos que brotam desse processo.

Segundo as narrativas, os primeiros humanos atétentaram criar as crianças que nasciam desseprocesso, mas era em vão, dado o caráter agres-sivo dos filhos da cobra. Por isso, essas pessoasforam afastadas e se transformaram nos gruposinimigos, que os Wajãpi designam como apã.

Os não-índios, genericamente designados comokarai kõ, nascem de outro processo. Eles simples-mente caem do céu, na forma de pedras de dife-rentes cores, das quais saem criancinhas que cres-cem com os traços das diferentes raças, ou, comodizem hoje os Wajãpi “brancos, negros e france-ses”. Diz-se também que eles vêm da chuva e quesão tão numerosos quanto as suas gotas d’água,pois foi num dia de águas torrenciais que as pedrascaíram. Eles são amana ra'yry, filhos da chuva.

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Modos de dizer

Jeito de dar nome às crianças

“Os Wajãpi têm jeito certo de dar nomes para os filhos recém-nascidos. Os avós, quando estãovivos, escolhem os nomes para as crianças recém-nascidas. Senão, são os pais que pensam nosantepassados para usar o mesmo nome nas crianças. Esses antepassados têm que ser de muitosanos atrás, e ninguém pode já ter, usar esse nome. Pode dar o mesmo nome do pai do avô oudo avô, se ele não estiver vivo faz muito tempo. É importante dar o nome logo que o bebênasce. Porque senão jurupari vai dar o próprio nome para a criança e a criança pode ficarpequena, doente e até morrer. Os nomes não podem ser iguais aos nomes de pessoas quemoram perto. Por exemplo, dá pra pegar um nome igual ao dos Wajãpi do Camopi porque lá élonge. Alguns nomes vieram de outros povos indígenas, como os Panary kõ (grupos com osquais a gente troca, como os Wayana, Aparai e outros) porque são nomes que os Wajãpi achambonitos. Hoje em dia, alguns jovens têm dado nome de karai kõ (os não-índios) para seus filhos,porque acham os nomes dos tamõ kõ (nossos antepassados) feios. Isso está enfraquecendo oconhecimento dos Wajãpi sobre os nomes.”(Texto coletivo escrito pela turma de pesquisadores wajãpi).

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Até muito recentemente, os Wajãpi não costumavam usar seus nomes em público. Umnome é, de fato, algo tão pessoal e privado que não pode ser pronunciado sem cuida-dos. Até hoje, os mais velhos não gostam de dizer seus próprios nomes, nem apreciamque se pronunciem seus nomes em qualquer contexto. Aceitam serem chamados dessamaneira pelos não-índios, por entenderem que esse é um hábito dos karai kõ. Mas, entreeles, a etiqueta de boa conduta não permite o uso dos nomes, evitando assim sentimen-tos de vergonha ou mesmo de raiva. Dizem os mais velhos que, antigamente, pronun-ciar o nome de alguém em público era considerado como uma atitude muito agressiva.

Entre eles, os Wajãpi – assim como os demais grupos indígenas da região – utilizamtermos de parentesco, ou seja palavras que identificam categorias de parentes, classi-ficadas como “pais”, “mães”, “filhos”, “filhas”, “irmãs”, “irmãos”, ou como não-pa-rentes, como são, em sua concepção, as “irmãs do pai”, os “irmãos da mãe”, etc. Ouso dessa terminologia permite que qualquer indivíduo saiba, desde sua infância,quais são seus parentes, não só em sua própria aldeia, mas em qualquer outra. Assim,ele saberá desde cedo com quem ele pode, ou não pode, casar. Saberá também aquem recorrer quando está visitando uma comunidade distante.

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Jeito de respeitar e de sentir vergonha

Kutuma se refere a um sentimento muito importante entre os Tiriyó, relacionado às for-mas de respeito no tratamento pessoal. Essa forma de tratamento se aplica principal-mente às relações entre um genro ou uma nora e seus sogros.

Assim, para preservar esta relação de respeito, denominada kutuma, um homem ouuma mulher não podem chegar e falar diretamente com seus sogros, devem primeirofalar para sua esposa ou esposo, que devem, então, se dirigir aos seus pais para trans-mitir o assunto que o marido ou esposa quer tratar. De modo inverso, a mesma formarespeitosa é adotada quando o sogro ou sogra de alguém quer falar algo para umgenro ou nora: devem dirigir-se a seu filho ou filha casada, para que eles transmitamao marido o assunto que se quer tratar. Dizem os Tiriyó que respeitar sogro e sogra écomo uma lei para eles e até hoje isso é muito importante.

O mesmo tipo de tratamento res-peitoso também é obrigatório narelação entre cunhados. Os cu-nhados tiriyó se chamam entre side kono e devem se tratar da me-lhor maneira possível. Não po-dem, por exemplo, fazer brinca-deiras, insinuações, falar boba-gens, nem conversar sobre mu-lheres, ou outras coisas relacio-nadas à vida dos outros.

“Nós temos esse respeito muitogrande que já vem dos antepas-sados, isso é como uma lei derespeitar sogro e sogra, até agoranão perdemos isso” (João Tiriyó).

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A etiqueta e a fala formal katxuyana elogiada em crônica de Carlos Drummond de Andrade

Não sei como anda a vida dos índios kaxúyana, que [em 1959] eram apenas uns 50, e [em 1969] se mudaram da beira do rio Cachorro, afluente do rio Trombetas, no Pará,indo instalar-se no Parque Nacional do Tumucumaque. Devem ter melhorado a situação.E mereciam. O estudo de Protásio Frikel sobre o código de civilidade deles despertou-me simpatia por essa boa gente. Como não simpatizar com esses “selvagens” bem educados quando na sociedade urbana, dita civilizada, nem há mais código nenhum para reger as maneiras?

Os kaxúyana vão ao requinte de usar quatro formas de linguagem: a comum ou ordinária,a litúrgica ou religiosa, a elevada e o baixo calão. Nós aqui no asfalto teremos no máximoduas, a primeira e a quarta, se não for apenas a quarta infiltrada na primeira. O kaxúyana,porém, sabe aplicar na hora e lugar devidos cada tipo de linguagem. E cada uma tem seu tom de voz peculiar, sua música, digamos assim (...)

As visitas obedecem a cerimonial, coisa que não se vê mais na sociedade promíscua emexpansão. Se a visita é coletiva não se entra em bando, sem hierarquia. A figura principal vai à frente, os outros demoram um pouco. É o tempo de amarrar os cachorros. E de permitir às mulheres o preparo de bebidas e coisas boas de merendar. O kaxúyana capricha em comes-e-bebes. Mingau de banana como quebra-jejum, almoço de peixe com beiju, merenda de cará ou batata doce, jantar também à base peixe ou carne de anta,vinho de frutas, garapa, tudo muito bem preparado, limpo. Ovos de tracajá, camaleão e jacaré são delícias especiais (...)

Observar, mas não reparar: é o princípio estabelecido pelos kaxúyana para a conversa.Gostam de bater papo sem olhar muito para a cara do visitante, pois isso poderia gerar mal-entendidos e desconfianças. Deve-se mesmo virar um pouco de lado, e chega-se ao extremo de polidez virando as costas ao interlocutor. Como quem diz: “não estou vigiando você, faça o que quiser nesta casa”.

Em suma, e na opinião do autor, o código de civilidade dos nossos irmãos kaxúyana “reflete um nível cultural superior”. Mas suas observações foram colhidas em contato com a tribo no ano remoto de 1940. E o próprio Frikel, quase 30 anos depois, reconhece que muitas dessas finezas de comportamento se perderam com a aproximação dos castanheiros e caçadores de peles, nos últimos tempos. É pena. Se não fosse isto, bem que a Funai poderia mandar vir do Pará meia dúzia de kaxúyanas para ensinar boas maneiras à gente. Agora é tarde.

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Modos de ver

Jeito de ver no sonho e nos“espelhos” do pajé

Os humanos não são donos da di-versidade existente na terra. As dife-rentes espécies animais, as árvores,as plantas da roça têm seus respec-tivos donos (-jarã). Assim, jane jarã éo dono da humanidade, yy jarã é odono das águas, mijarã jarã é o donoda caça, e assim por diante.

Elementos que se costuma conside-rar “inanimados”, como terra e pe-dras, também têm seus próprios do-nos. Assim como o vento, a neblina,a escuridão... A principal atribuiçãodos donos de todos esses seres consiste em tomar conta de suas criaturas, cuidando deseu crescimento e de seu bem-estar. Eles controlam o movimento de suas crias, comose faz com xerimbabos (-rima).

É porque tudo tem dono que os Wajãpi mantêm relações comedidas com as criaturascontroladas por cada jarã. Não matam em excesso animais que não irão consumir, porexemplo. Garantem, assim, a reprodução de todos, com seus modos de vida e espaçosdefinidos. A caracterização dos donos de cada categoria de seres, a localização deseus domínios, as formas de acesso e o relacionamento adequado que se deve estabe-lecer com cada um deles são assuntos muito discutidos, no cotidiano das aldeias.

Isso porque os jarã não são vistos por todo mundo da mesma maneira. Para as pessoascomuns, eles não aparecem em sua verdadeira forma, que é de “gente”. Somente os

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pajés – cuja capacidade de visão é simboliza-da por “espelhos” – acessam diretamente osdonos das espécies animais e vegetais, vendo-os como pessoas, com características físicas eatitudes próprias. Quem não é pajé verá os jarãdurante o sonho, quando eles aparecem comopessoas muito bonitas e sedutoras, para anun-ciar algum problema, ou dar algum conselho.

Os desenhos de Jamy mostram esses diferentesmodos de ver mani´o jarã, o dono da mandioca.Normalmente, ele é visto como uma grandeminhoca, enrolada em torno dos pés de man-dioca. No sonho, as mulheres podem ser se-duzidas por ele, quando se manifesta como umrapaz muito bem adornado. Já, quem tem pajépoderá ver o dono da mandioca com um serorelhudo e peludo.

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Jeito de trançar para ver

Entre os Wayana e Aparai – como entre os outros grupos indígenasdo Amapá e norte do Pará – as técnicas usadas para a decoração decorpos e objetos constituem um modo de re-introduzir eventos epersonagens do tempo das origens. Por isso, os Wayana dizem nãopossuírem padrões gráficos. Dizem que, quando fazem pinturas cor-porais, quando trançam cestos ou quando decoram outros objetos,apenas estão repassando para esses suportes os desenhos que per-tencem à Cobra grande.

Segundo os Wayana e os Aparai, qualquer um dos habitantes douniverso pode ser identificado de acordo com o local onde vive.Esta referência aos espaços de moradia de cada um dos seres douniverso é importante por indicar onde eles podem ser procuradospara a caça ou, ao contrário, para saber como evitá-los. Segundo osWayana, os humanos podem ser caçados por esses outros seres. Aidentificação do lugar também é significativa para compreender ocomportamento, a aparência, a alimentação de cada um dos seres.

O espaço aquático é muito importante na cosmologia dos grupos daregião e especialmente dos Wayana e Aparai. Para estes, a água é odomínio de tulupere, uma cobra muito grande, monstruosa, que seapresenta toda adornada com pinturas. São essas as pinturas queinspiram até hoje a estética que os Wayana e Aparai materializamna decoração de objetos e na sua pintura corporal.

É por ser muito perigosa que essa cobra é tão bela. Seu comporta-mento agressivo é excepcional, não podendo ser comparado com omodo de ser de seus parentes zoológicos, da espécie jibóia (ouconstritor). A monstruosidade é a essência desse ser sobrenatural,tão importante na cosmologia dos Wayana, dos Aparai e de todos os

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povos da região, na medida em que ela se apresenta como o protótipodos “provadores de nossa carne”. O que é mais importante é que suamonstruosidade é bela e exerce sedução sobre os humanos, para con-duzi-los aos seus redutos e então devorá-los.

Em acordo com essa concepção do mundo, ilustrada com elementos dacosmologia wayana e aparai, os padrões gráficos – utilizados para a pin-tura corporal e os objetos – são portanto muito mais do que uma sim-ples decoração. Não são, de fato, motivos para serem vistos. São antesmotivos que permitem “ver” os seres primordiais.

Por esta razão, na língua wayana, estabelece-se uma diferença impor-tante entre a imagem – designada como ukutop – e o motivo gráfico –chamado mirikut. Desenhos ukutop reproduzem elementos anatômi-cos, de modo figurativo. Já os grafismos mirikut são uma captura dascriaturas do tempo primordial, uma transposição de sua presença.Através desses desenhos – complementados por narrativas orais – essascriaturas são trazidas ao tempo presente. Essa é uma distinção muitoimportante para entender a arte desse grupo indígena que não se limitaao seu significado, mas à sua eficácia visual. São desenhos concebidosde forma que permitam “ver” esses seres. São desenhos que fabricam,trazem de volta o mundo das origens. O que significa que, para osWayana e Aparai, a arte gráfica nem simplesmente “representa”, nemapenas “significa”. Sua principal função é de estabelecer uma comuni-cação com os seres primordiais e permitir uma interação com eles.

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Jeito de marcar os artefatos

As marcas ou mac, em patuá, formam um conjunto específico demotivos decorativos, pintados, gravados, trançados, recortados, emdiferentes suportes, objetos da vida cotidiana ou cerimonial, ouainda no corpo ou num beiju destinado à fabricação do caxiri.Estas marcas são bastante numerosas, mas algumas são mais fre-qüentes do que outras, mais usadas em alguns locais do que emoutros ou por opção individual, preferidas por um ou outro artesão.Assim, as marcas dãdelo e kuahi são as mais utilizadas.

Apesar da padronização dos motivos, cada artesã ou cada artesãotem seu próprio estilo, sua excelência técnica e artística. Novasmarcas podem ser inventadas, e algumas, meio esquecidas podemser relembradas. Tradicionalmente, estas marcas são sempre mo-tivos geométricos, abstratos e nomeados. Representam espécimesda flora e da fauna, especialmente a pele, as escamas ou o cascode animais, ou ainda cascas de árvores que apresentem desenhos.Podem também ser caminhos, rastros, elementos naturais comoestrelas ou nuvens e mesmo movimentos e ações. Atualmente hádesenhos mais figurativos, com diferentes tipos de cenas do cotidi-ano, da mitologia ou copiados de revistas e livros.

As marcas são ensinadas pelos karuanã, espíritos encantados, nossonhos e isso acontece geralmente pela mediação do pajé, queas repassa para os artesãos responsáveis pela manufatura de mas-tros e dos bancos cerimoniais. As mulheres dizem seguir a tra-dição ou fazer algo orientado pelo seu próprio espírito. Pode-sefalar, portanto, de um acervo convencional de marcas, mas aber-to a variações e novos padrões. Quando as marcas são pintadas,usam-se cores naturais de origem vegetal ou mineral, especial-

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mente o urucu, o jenipapo e cumatê, ou corantes comprados no comér-cio da cidade de Oiapoque.

Alguns exemplos de motivos são xemem ou caminho (caminho do cara-mujo, caminho da formiga etc); outro exemplo são os desenhos dãdelo,uma linha ondulada, e kuahi, um losango. Os motivos geométricos eestilizados representam também escamas e espinhas de peixe, o casco datartaruga, os pêlos do porco do mato, e ainda as folhas da palmeira açaí,a estrela d’alva e nuvens matinais; temas mais ligados à mitologia e ànatureza, enfim, ligados a este e a “outros mundos”.

As marcas estão intimamente arti-culadas com a própria ação de fa-bricar os artefatos. Verifica-se queas matérias-primas possuem nomesde plantas ou de animais ou refe-rências ao corpo humano ou de

algum bicho. Há marcas associadas a certos karuãna específicos, que re-presentam cobras-grandes, bichos e djab dã bua, (jurupari), destacandoOrokã, morador sobrenatural das matas que possui seis bocas em seu pei-to e é o dono de alguns grafismos utilizados pelos Galibi-Marworno.

Os suportes nos quais são aplicadas as marcas são os seguintes: o corpo,os trançados (jamaxins, abanos, peneiras, tipitis, cestos, paneiros, krukru,pakará, cesto do pajé etc), maracás, potes de cerâmica, cuias, flechas(amarração com fios de algodão), ralador, bancos de todos os tamanhos,mastros e às vezes, tambores (Palikur). Certas marcas, feitas com compas-so, representando a Estrela D’Alva ou a Rosa-dos-Ventos, são encontradasnos raladores, remos, caixões mortuários. Usam ainda marcas para indicaro dono de um objeto. Enfim, pode-se dizer que os índios do Oiapoque –como bem afirmou um deles – vêem as marcas em todo o Universo.

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Modos de trocar

Jeito de fazer política

Para os Tiriyó, assim como tudo que existe no universo possui dono, toda aldeia tam-bém tem seu “dono”, que é chamado de pataentu, ou seja, o “dono do lugar”.

O pataentu é aquele que identificou, escolheuo local e nele reuniu um conjunto de parentese aliados que vieram a constituir a populaçãode sua aldeia. E será o tamanho desta popu-lação, bem como a qualidade das relações en-tre um pataentu e seus co-residentes que defi-nirá a qualidade de vida de uma comunidadelocal. A tendência é que dentre os co-residentesdo fundador de cada aldeia, incluam-se umgenro ou mais, dependendo do número de filhasque este possua, e um cunhado ou mais, de-pendendo do número de irmãs que co-residamcom este pataentu.

A sua principal tarefa é zelar pelo bem estardos membros de sua comunidade local e pelaharmonia das relações entre eles, enquanto es-tiver vivo. Só assim poderá garantir a prosperi-dade de sua aldeia. Além disso, o pataentu quefor bem sucedido em suas relações com osdonos de outras aldeias, próximas ou distantes,tem mais chance de se tornar reconhecido co-mo um líder importante, não apenas localmen-te, mas também regionalmente. A certa alturade sua vida, quando já tiver netos, um pataentu

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que tenha construído uma boa trajetória de relações políticas internas e externas seráreconhecido como um tamutupë, ou seja, como alguém que capaz de representar nãoapenas sua aldeia, mas uma linha de ancestrais importantes que se sucedem ao longodo tempo. Assim, alçado à condição de tamutupë, um pataentu acumula à tarefa dezelar pela harmonia das relações internas de sua comunidade local, a tarefa de zelarpela harmonia da rede de relações intercomunitárias mais ampla que tenha consegui-do consolidar ao longo de sua vida.

Para chegar à condição de tamutupë, ter um bom auxílio espiritual é fundamental, Porisso, é muito comum que o tamutupë seja também pajé. Só assim ele poderá contardiretamente com o apoio de uma rede de espíritos aliados, que intervenham por elena outra dimensão do mundo, invisível, mas fundamental para definir as relações nomundo visível.

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Jeito de casar entre os Katxuyana

Para os Katxuyana, assim como para os demaispovos da região, o casamento envolve grandesresponsabilidades não apenas entre os noivos,mas principalmente entre estes e suas famílias.Por isso é que quando indagado, em um eventoda ‘Semana do Índio’ em Macapá, por uma pla-téia de estudantes, sobre a possibilidade de umhomem branco casar com uma índia, JuventinoKaxuyana respondeu: “O casamento de um Bran-co com uma índia não é permitido não. Se obranco tenta casar com a índia ele vai ter que tra-balhar na roça, ele vai ter que sustentar a família,vai ter que sustentar o sogro. Isso vocês vão que-rer fazer? Isso branco não vai querer fazer!”.

O que este pai de família katxuyana queria dizeré que o casamento deve fazer parte de um acer-to familiar prévio, e não é bom que os noivosprovenham de famílias muito distantes entre si,pois esta distância pode ser não apenas espacial,mas de modos de ser e pensar incompatíveiscom as expectativas a respeito do jeito certo dese casar e constituir família entre os Katxuyana.

Se por um lado, a diferença que existe entre osKatxuyana e os não-índios é vista como um sérioempecilho ao sucesso de um casamento, para osKatxuyana o casamento entre pessoas que se con-sideram parentes entre si, como no caso de avós

Jeito de casar entre os Karipuna

Os Karipuna que vivem na área do Uaçá apresentam preferências matrimoniais bem parecidas com as preferências

dos Katxuyana, mas também concebem um tipo de casamentoque os antropólogos chamam de “avuncular”, que é a união

entre o irmão da mãe e a filha da irmã, ou seja, entre um tiomaterno e uma sobrinha.

Por outro lado, por toda sua história de intensos contatos com a população regional, que abrange índios e não-índios, os

Karipuna habituaram-se também aos casamentos com “pessoasde fora”. Essas duas tendências de casamentos parecem se

opor uma à outra. O primeiro tipo de casamento opta por umcerto fechamento entre as famílias, ou outro consiste numa abertura à uniões com pessoas de fora. Ambas as soluções

constituem parte do modo próprio dos Karipuna de organizarem suas relações sociais.

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e netos, pais e filhos, e irmãos, é algo não apenas desaconselhável, mas proibido. Para osKatxuyana, os pais de uma criança não são apenas o pai e a mãe biológicos, mas tambémo irmão do pai e a irmã da mãe. Sendo assim, se consideram irmãos tanto os irmãos pro-priamente ditos, quanto os filhos do irmão do pai e os filhos da irmã da mãe, o que signifi-ca que uma parte daqueles a quem nós chamamos de primos, os Katxuyana chamam deirmãos. Este é um núcleo no interior do qual os Katxuyana e os demais grupos indígenasda região não aceitam casamentos.

Entre a diferença radical representada pelos não-índios e a identidade de parentescoque existe entre os parentes acima definidos, encontram-se os filhos e filhas do irmãoda mãe e os filhos e filhas da irmã do pai de uma pessoa. Estes, para os não-índios, seriamtambém primos, mas para os Katxuyana compõem justamente o núcleo onde ocorremos casamentos ideais, aqueles que os pais sonham para seus filhos e filhas. E sempreque encontram um indivíduo assim posicionado na rede de relações entre parentes enão-parentes, desde que ele tenha a idade adequada para casar com sua filha ou filho,fazem gosto pela união entre essas pessoas.

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Jeito de fazer festa

Os Turés são festas realizadas pelos pajés para retribuir as curas realizadas aoskaruãna, seus espíritos auxiliares e moradores do "outro mundo". O contato dospajés com os karuanã é um dos aspectos mais importantes na cosmologia dosGalibi-Marworno.

O Turé é normalmente realizado na época da seca e da derrubada das roças. Mastem sido pouco realizado atualmente. Para os Galibi-Marworno, fazer um Turé écoisa muito séria e sobretudo perigosa. Deve ser realizado segundo regras bemdefinidas para ser motivo de alegria e não de desgraças.

O Turé é uma festa de agradecimento aos seres sobrenaturais e encantados,chamados karuãna, pelas curas que eles propiciam através das práticas dospajés. É a ocasião em que a comunidade dança, canta e bebe muito caxiri juntocom esses seres sobrenaturais, que vêm se alegrar na festa e ouvir o pajé cantardurante várias noites sem repetir as canções. O Turé pode ser realizado a qual-quer momento, mas o verdadeiro ritual é feito durante a lua cheia de outubro.

Fazem parte do Turé os mastros enfeitados, os grandes bancos da cobra grande oudo jacaré, onde se sentam os convidados, no espaço sagrado chamado lakuh oupiroro. Junto ao mastro fica o banco do pajé e o seu pakará, cesto onde guarda omaracá e os cigarros tawari. A bebida caxiri,muito apreciada pelos karuãna, é preparadapelas mulheres, com mandioca apropriada ecolocada em grandes potes de cerâmica.

Cada participante prepara seus instrumentos,que incluem o maracá, o turé – também cha-mado de “sinal” – que é um clarinete feito debambu que pode ser de diferentes tamanhos e o cuti, instrumento de sopro de tamanho

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maior. Como vestimenta os homens usam o calimbé, umpano vermelho amarrado na cintura, usam ainda a coroaou o famoso chapéu de penas e o colar de miçangas compendentes de algodão e, na ponta, asas de besouro quefazem barulho durante a dança. As mulheres usam saia ecorpete vermelhos, além da coroa e colares.

Apenas o pajé pode convocar a festa e saberá quais oskaruãna convidados e os cantos a serem executados. Osseus ajudantes cantam juntos e há sempre dois guardasque vigiam para que não haja desrespeito ao ritual.

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Modos de fazer

Jeito de fazer sakura

Os Tiriyó preparam vários tipos de bebida,que chamam em geral de tönunsen. Parasuas festas, fazem bebidas fermentadas àbase de mandioca, como o caxiri – conheci-do em toda a região, mas também fazemsakura, umani e kurura. A receita deve serpreparada por mulheres que se dispõem acumprir todos os cuidados necessários du-rante o seu preparo, como por exemplo, nãoter relações sexuais, não estarem menstrua-das, não usar perfume, nem maquiagem.

Ingredientes:

Leva mais ou menos 5 litros de água, cinco quilos de batata roxa ou amarela. Mais oumenos 20 quilos de mandioca brava. Tem vários tipos: karoiypö, tunareha, e kawiriripö,mas só vai de um tipo, não se pode misturá-los.

Modo de fazer:

Primeiro coloca-se os cinco litros de água no fogo, para ferver. Depois a mandioca ra-lada para cozinhar junto. Acrescenta-se a batata no mesmo dia para cozinhar por maisou menos 12 horas, até que fique uma massa grossa e bem cozida. Aí está pronto.Quem quiser tomar a bebida ainda fraquinha e doce côa e bebe em seguida. Mas sea intenção é que a bebida fique com mais teor alcoólico deve-se deixar uma semanae meia ou duas semanas fermentando, antes de coar e servir. Contam as mulherestiriyó que na época das festas grandes, como acontece no final do ano, tem gente quedeixa a bebida fermentando na canoa ou panela por até um mês.

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Jeito de fazer caxiri

Nas aldeias dos povos indígenas do Oiapoque, o caxiri éconsumido durante rituais como o Turé. Neste contexto, ocaxiri é considerado uma entidade convidada a participardos festejos através dos cantos do pajé. Conta-se que osseres sobrenaturais possuem a capacidade de produzirenormes quantidades de caxiri. No mito de Iacaicani, aCobra Grande é levada a tomar dezenas de potes de caxiri,servidos por sua mulher, para não agredir o menino quecaiu em seus aposentos.

Durante o Turé, o caxiri é servido pelas mulheres de maneiraritualizada. A bebida pode também servir como castigo aosinfratores das regras que regem o Turé, quando, sentados emum banco de urubu-rei, fora do laku, são obrigados a beberquantidades exageradas dessa bebida. Durante o Turé, há ocanto de pegar a bebida, porque o caxiri é “gente” do Turé.

Entre os Galibi de Oiapoque, mulher menstruada não po-de fabricar o caxiri sob pena de que ele estrague. Os potesnos quais é fabricado o caxiri são feitos apenas pelos Pa-likur, que os fornecem a todas as localidades indígenas daregião. Os Galibi do Oiapoque faziam potes parecidos,mas hoje não os fazem mais.

Os Karipuna também servem o caxiri durante os grandesmutirões de roça. Além dessas oportunidades, a bebida ésempre oferecida durante as festas católicas do EspíritoSanto pelos Karipuna, ou de Santa Maria, pelos Galibi-Marworno. É também servida nas festas de santos. Hoje nãohá grandes Assembléias sem caxiri servido aos visitantes.

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As receitas podem variar um pouco, mas são basicamente as mesmas. Em um contex-to ritual, é um grupo de mulheres que se encarrega do preparo, longe do olhar doshomens. Preparam no platine um grande beiju de mandioca ralada e prensada. Pararevirar o beiju, o desenham e recortam em fatias, um gesto que se chama pataje kasab,como a marca (padrão decorativo) usada em muitos suportes, especialmente nostrançados. Este beiju é colocado com água em um pote grande, adicionando-se açú-car ou mel, às vezes um xarope de abacaxi.

Antes de ser deixado para descansar e fermentar, as mulheres se reúnem ao redor dopote, cantam e colocam, no fundo do pote, emborcada, uma pequena cuia com folhasde abacaxi. Dizem que quando a bebida fermenta, a cuia sobe à superfície, o que ésinal de que ela está boa para ser consumida. Se a cuia não sobe, a bebida não presta.

Outra receita, dos Wajãpi

“Primeiro, as mulheres arrancam mandioca na roça, colocam a mandioca dentro dopanaku. As mulheres trazem três panaku de mandioca. Depois as mulheres tiram a cascada mandioca e lavam antes de ralar. Quando as mulheres terminam de ralar a mandioca,espremem no tipiti, pra sair o tucupi. Depois tiram a massa de mandioca quando estiverpronta. Depois amassam com a peneira. Então, as mulheres colocam fogo no forno praesquentar. Colocam a massa no fogo pra fazer beiju, têm que fazer 20 beijus pra fazerkasiri. Depois as mulheres carregam água e colocam dentro da canoa, depois colocam obeiju dentro da canoa e misturam bem. As mulheres mastigam beiju fino na boca. Quandoo beiju fino fica doce elas põemdentro da cuia e depois misturamcom batata ralada. Aí colocam den-tro da canoa e depois tampam comfolha de banana. Aí de manhã cedoas mulheres acordam e vão tomarbanho antes de espremer o kasiri.Depois espremem com a peneira.Depois, ao meio dia, o kasiri estápronto pra tomar” (Kupenã,Rosenã, Saky, Kari e Nazaré).

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Jeito de fazer cuias

Nas aldeias dos povos indígenas do Oiapoque, a cuia está presente em todos osmomentos. Todas as mulheres sabem preparar a cuia, elaborar as tintas e aplicar a or-namentação. O que distingue as cuias são suas marcas padronizadas e sempre recria-das pelas artesãs. A mulher reproduz padrões que são compartilhados, mas cujosarranjos são variados e muito pessoais. Sendo assim, cada artesã possui seu repertórioe reconhece, entre dezenas de outras cuias, sua própria produção. Ela controla tam-bém as redes de distribuição de suas cuias, os seus “caminhos”.

As cuias são fabricadas com o fruto da cuieira, da família das bignoniáceas. A polpaé umedecida e, a seguir, retirada. A casca é cortada ao meio, em duas partes, forman-do os recipientes. Em seguida, as cuias são secas, polidas, gravadas com ponta de facae finalmente tingidas com tintas vegetais, como o cumatê ou o macocó, entre muitasoutras. Depois de pintadas, as cuias são deixadas para secar novamente, às vezes emcima de folhas secas de mandioca para fixar a tinta preta passada na parte interna.

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Fabricam-se cuias grandes, médias e bempequenas, para uso doméstico e uso ritual,para oferecer e para vender. As grandes cuiassão para servir o xibé (bebida de água e farin-ha) ou o durante as festas do Turé, do Tambor,do Divino Espírito Santo e de Santa Maria.

No dia a dia, as cuias são usadas para comerou para servir farinha, tapioca, tucupi, açaí,bacaba ou tacacá. Servem, ainda, para pe-gar água ou para guardar miudezas, comosementes ou miçangas. Elas são carregadasdurante celebrações da charité, para recolherdonativos em espécie para as festas comu-nitárias; e sempre haverá uma pequena cuiaem cima dos altares, nas capelas, à esperade um donativo dos fiéis. Quebradas, elasainda podem servir de colher ou raspadorde mandioca.

Com o aumento da comercialização deartefatos, a cuia tem sido um objeto muitoapreciado pela sua beleza, simplicidade emúltiplos usos. As formas vão se diversifi-cando. Hoje, as artesãs gravam nas cuiasdesenhos mais individualizados, figurativos,cobrindo em parte ou na sua totalidade asuperfície da cuia. Gravam nomes, númerosou datas, alguma mensagem ou lembrança,seres mitológicos, animais, flores, estrelas,roda de fuso, casas e personagens.

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III. Contextos e experiências de salvaguarda

1. Porque valorizar os patrimônios culturais indígenas?

Em todos os continentes, os povos indígenas continuam sofrendo intensa discrimi-nação, com impactos agravados quando se encontram em situação de minorias, étni-cas e lingüísticas. O próprio desconhecimento a respeito da diversidade desses povos,que somam mais de 350 milhões de pessoas20, contribui para essa discriminação.

Os povos indígenas representam hoje 4% da população mundial. Nas Américas, são 50milhões de pessoas, vivendo situações muito diversas em cada país. Qual não foi a sur-presa da maior parte da população brasileira ao tomar conhecimento do censo realiza-do pelo IBGE no ano de 2000, quando mais de 700.000 pessoas se declararam “índios”,abrangendo um numeroso contingente indígena que vive em centros urbanos. Essadimensão do componente indígena na população brasileira surpreendeu sobretudoquem ainda acha que os índios estão “em vias de desaparecimento” e que cabe ao esta-do a responsabilidade de seu destino. Um destino ainda incerto, sobre o qual vigoramposições contraditórias, recomendando-se sua “integração” ou sua “preservação”.

O fato é que os índios saíram do isolamento, integrados como estão aos sistemas sociais,econômicos e políticos, em âmbito regional ou nacional. Uma integração que se realizapor meio de relações profundamente desiguais, ou mesmo configuradas no limite daexclusão. Enquanto minorias, os povos indígenas se vêem forçados a negociar constante-mente seus interesses diferenciados com as mais diversas instâncias de poder, locais,nacionais e internacionais. Nesses contextos, aprenderam a gerir tanto suas especifici-dades culturais quanto seu posicionamento face às exigências do desenvolvimento.

É por este motivo que se costuma afirmar que os povos indígenas lutam “a favor” e “con-tra” o desenvolvimento. A favor, quando reivindicam acesso aos serviços básicos de edu-cação e saúde. Contra, quando reivindicam garantias territoriais e procuram explicitar edefender suas diferenças culturais. Mas é também internamente a suas comunidades queocorrem tensões decorrentes da discriminação a que são submetidos.

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Esse é o desafio que se coloca aos Wajãpi, por exemplo, na medida em que os jovensvêm questionando os saberes dos mais velhos, evitando inclusive exibir marcas mate-riais de seus costumes, para não enfrentar os preconceitos arraigados na populaçãonão-indígena com a qual mantêm contato cada vez mais intenso.

“Eu não acredito no conhecimento dos Wajãpi, porque acho que o conhecimento dobranco é bom. Eu acho que karaikõ (os não-índios) sabe mais do que Wajãpi, porquefabrica e inventa coisas cada vez mais”, dizia um jovem de 20 anos. Uma moça, de19 anos, concordava: “Eu acho que karaikõ sabe mais. Wajãpi sabe só o seu conhe-cimento, não inventa muita coisa”.

Preocupados com essa atitude freqüente entre os adolescentes, alguns líderes dealdeias e os professores bilíngües procuram alternativas para valorizar, nas própriasaldeias, os conhecimentos que os jovens colocam em dúvida. É o que explicitaram àplatéia que assistia à entrega do título que a UNESCO conferiu, em 2003, ao seu planode salvaguarda das expressões orais e gráficas tradicionais.

“Nós nunca vamos esquecer nossa cultura porque continuamos ensinando nossos fi-lhos e netos na escola e no dia-a-dia. Nós temos nossa proposta curricular diferenciada,que já está sendo construída pelos próprios professores wajãpi para fortalecer a culturawajãpi na escola. Mas também fora da escola nós ensinamos nossos conhecimentospara as crianças, através de nossa tradição oral, dascaçadas e das caminhadas na mata... Nós queremosque os não-índios conheçam nossa cultura pararespeitar nossos conhecimentos e nosso modo de vida.Se os não-índios não respeitam nossa cultura, até osnossos próprios jovens podem começar a desvalorizarnossos conhecimentos e modos de vida. Por isso, nósqueremos apoio para continuar este trabalho de for-mação dos Wajãpi, e também de formação dos não-índios, para entender e respeitar os povos indígenas”.

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2. Estratégias em favor dos povos indígenas

As definições que atribuem conteúdos ao “pa-trimônio cultural imaterial” ainda estão sendoaprimoradas por diferentes instituições, comoindicamos na primeira parte deste livro. Osdetalhamentos propostos pelos especialistasevidenciam, entretanto, que não se trata nemde um fenômeno novo, nem desconhecido.Antropólogos, em particular, vêm descreven-do e analisando o patrimônio imaterial decomunidades culturais em todo o mundo hámais de um século.

O aspecto inovador dos instrumentos interna-cionais – especialmente daqueles sumarizadosadiante, na quarta parte do livro – relaciona-seaos esforços empreendidos para fomentar aimplantação de programas nacionais mais efi-cazes para a valorização desse patrimônio.

Assim, um dos principais objetivos da Conven-ção para a Salvaguarda do Patrimônio CulturalImaterial de 2003 é o engajamento dos paísesem ações de sensibilização que evidenciemaos seus cidadãos a importância crucial dopatrimônio imaterial, tanto para a diversidadecultural como para o desenvolvimento sus-tentável. O texto da Convenção deixa claro quea criatividade cultural é um elemento chave pa-ra o desenvolvimento humano.

Oficina de manifestações plásticas wayana e aparai. Aldeia Bona, 2005

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Se muitos países já vêm se preocupando e criando instrumentos de proteção de sua bio-diversidade, é agora indispensável incentivá-los à valorização de sua diversidade cultu-ral. Na América Latina, inclusive no Brasil, a diversidade dos povos indígenas ainda éinsuficientemente reconhecida. A relação que historicamente o estado mantêm com “osíndios”, um rótulo genérico que persiste junto à desgastada tutela, continua mascaran-do as diferenças que existem entre os mais de 210 povos, cujos modos de vida etradições culturais são dinamicamente atualizadas em acordo com suas próprias expe-riências de convivência com outros povos, indígenas ou não.

Paralelamente à Convenção acima citada – e inclusive antes de sua promulgação – aUNESCO procurou incentivar os estados nacionais a adotarem práticas maisrespeitosas com os povos indígenas que vivem em seus territórios. Justifica a urgênciadessas medidas, uma série de levantamentos que atestaram que a maior parte dessesgrupos continua enfrentando uma extrema discriminação no acesso aos serviços bási-cos, especialmente educação e saúde. Os resultados da Década Mundial dos PovosIndígenas (1995-2004) evidenciaram que a continuidade da existência dos povos indí-genas relaciona-se claramente à sua capacidade de intervenção e de diálogo com aspolíticas nacionais e internacionais. Ou seja, depende de seu protagonismo em açõesde defesa e também de desenvolvimento de suas instituições sociais e culturais. Osestudos realizados durante o período confirmaram, ainda, que os modos de vida indí-genas, assim como suas espiritualidades, estão profundamente articulados ao meioambiente em que tradicionalmente vivem.

No momento, a UNESCO procura consolidar sua Estratégia de Meio Termo em favordos povos indígenas no mundo todo, com prazo final em 2007. O foco dessa estraté-gia está na articulação entre cultura e desenvolvimento. Foram priorizadas asseguintes áreas de intervenção:

• a salvaguarda do patrimônio material e imaterial,• a promoção da educação multilingüe e multicultural, tanto formal

como informal assim como a promoção dos direitos culturais,

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• a definição de mecanismos de mediação que facilitem aparticipação dos povos indígenas nos processos de tomadade decisão,

• a valorização dos sistemas de conhecimento locais e indí-genas e sua transmissão entre gerações,

• o fortalecimento dos povos indígenas através de parceriaseqüitativas com parceiros não-indígenas,

• o suporte à criação de corpos consultivos nacionais e deredes de intercâmbio entre e com povos indígenas.

Essas seis metas têm por objetivo melhorar a qualidade das políticas públicas já desen-volvidas pelos estados nacionais em relação aos povos indígenas. Para serem alcan-çadas, devem não só ser ratificadas pelos governos, como implementadas através desuas instituições especializadas.

A atual estratégia da UNESCO recomenda, por outro lado que, para assegurar o forta-lecimento dos povos indígenas, os estados devem consolidar trabalhos em colabo-ração com organizações não governamentais (ONGs) e com organizações representa-tivas dos povos indígenas. Nas páginas que seguem, selecionamos alguns exemplosde programas desenvolvidos com parceria entre órgãos governamentais e centros depesquisa acadêmica, como as ações em andamento no caso dos Aka, na África e deVanuatu, na Polinésia. Também selecionamos quatro experiências sul-americanas,onde as parcerias envolvem diretamente organizações indígenas e priorizam açõeseducativas locais, ao invés de ações de difusão mais abrangentes.

Priorizar a ampla difusão ou enfatizar a capacitação local é uma diferença sensível,na discussão desses programas e na realização de inventários de tradições e manifes-tações culturais. Quem assume a responsabilidade de um inventário cultural? Espe-cialistas acadêmicos ou as próprias comunidades? Na verdade, a articulação entrediferentes especialistas é indispensável, como mostram as experiências em curso, emvários países. Em alguns lugares, foram encontradas soluções colaborativas muitointeressantes. Entre elas, os trabalhos selecionados nas próximas páginas.

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Esses exemplos mostram que as ações de valorização de saberes e de práticas cultu-rais tradicionais se apóiam, necessariamente, na escrita e em outras técnicas de re-gistro. São intervenções que engajam, portanto, novos agentes de transmissão, comoos indivíduos mais jovens das próprias comunidades, interessados no domínio dessasnovas tecnologias. No Brasil e em outros países da América Latina, como mostram osexemplos a seguir, são quase sempre os professores indígenas que assumem essepapel. Outros atores indígenas também entram em cena, em experiências maisrecentes, como fizeram os artistas ticuna, os agentes agro-florestais no Acre, os jovensformados como pesquisadores no caso wajãpi e em outros lugares.

É por este motivo que devemos considerar que qualquer inventário do patrimônio cul-tural imaterial sempre abarca tanto aspectos “novos” quanto o “tradicional”. Essa émais uma razão para valorizar esse patrimônio, que definitivamente não se definecomo um receptáculo de experiências do passado, mas como um espaço para a inte-ração e o diálogo entre culturas.

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Revisão e finalizaçãode um livro de leituraem língua wajãpi,pelos professores docurso de magistério I.Escola Aramirã, 2005

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Experiências de valorização de culturas indígenas

Na África

Desde 2004, a UNESCO vem apoiando um plano de salvaguarda e revitalização da tradição oral dosAka. Esse grupo pigmeu que vive numa região de floresta tropical na África Central, desenvolveuuma tradição musical própria, envolvendo um complexo sistema polifônico baseado em quatrovozes. É particularmente interessante o fato de que todos os membros da comunidade Aka sãoproficientes nessa técnica musical, que marca todos os eventos importantes na vida desse povo. Atradição vocal dos Aka continua transmitida por meio da oralidade, com um alto grau de impro-visação. Desde pequenas, as crianças participam das cerimônias, garantindo a transmissão dessaforma de expressão musical ao longo de sucessivas gerações.

O modo de vida desse grupo de caçadores coletores está hoje ameaçado não só por viveremem uma região de conflitos, como pela depredação da floresta na República Centro Africana eno norte do Congo. Ao mesmo tempo em que a música Aka é difundida no mundo inteiro, aindústria do turismo vem transformando as relações internas à comunidade e desta com suatradição, promovendo o êxodo dos Aka para centros urbanos.

Diante dessa situação, o plano de salvaguarda prevê a implantação de um centro dedicado àrevitalização da tradição oral, que está sendo documentada por pesquisadores, além de ativi-dades educativas que devem sensibilizar a população dos dois paises onde vivem os Aka, arespeito do patrimônio imaterial desse povo. O registro legal dessa tradição por instituiçõesgovernamentais procura, ainda, consolidar a proteção desse patrimônio.

Sinopse de informações da Unesco www.unesco.org/culture/intangible-heritage/masterpiece.php?lg=en&id=87

Na Polinésia

Em 2005 a UNESCO também implementou um programa de proteção e de valorização dosdesenhos feitos na areia, uma prática muito antiga da população Ni-Vanuatu, que vive nas anti-gas “Novas Hebridas”, um país hoje independente e formado por mais de 80 ilhas, no Sudoestedo Pacífico.

Os desenhos na areia, formados por padrões geométricos, constituem um meio de comunicaçãoentre os diferentes grupos que habitam essas ilhas. Relacionados à cosmologia da região, essesdesenhos transmitem aspectos da história local, das relações de parentesco, etc.

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O plano de salvaguarda centra-se em ações de difusão, por meio de exposições e de festivaislocais e nacionais. Também prevê a inclusão do desenho na areia no currículo das escolas, comoforma de valorização dessa prática, até então restrita ao âmbito familiar. Finalmente, está previs-to o incentivo à realização de pesquisas por parte de jovens e profissionais locais.

Sinopse de informações do Centro Cultural de Vanuatu (www.vanuatuculture.org/sand/)

Na fronteira entre Peru e Equador

Os Zápara, que vivem dispersos na fronteira entre o Peru e o Equador, se mobilizaram ao longodos últimos dez anos para serem reconhecidos como um povo “em vias de extinção”. De fato,os cerca de 600 Zápara que vivem nos dois países quase perderam sua língua, falada com fluên-cia por apenas cinco pessoas. As comunidades situadas de um lado e do outro da fronteira nãose encontravam desde 1941, quando foram forçadas a se separar. Assumindo que estavam desa-parecendo enquanto povo, em 1997 criaram a associação ANAZPPA para “a recuperação, con-servação e desenvolvimento dos elementos sociais, econômicos e políticos que definem estanacionalidade indígena a partir de seus próprios direitos e dignidade”. Esta associação foi recen-temente transformada na organização indígena ONZAE (Organizacion de la NacionalidadZapara del Ecuador).

Os Zápara definem a si mesmos a partir dessa língua que estão perdendo, de sua história, doxamanismo e de seu território. Esse é o patrimônio imaterial que eles desejam re-valorizaratravés de ações que eles vêm implementando desde o ano 2000. Seu projeto mais ambicioso éum programa de educação que eles mesmos estão gerindo e abarca as comunidades doEquador. Antes de serem reconhecidos enquanto “nacionalidad”, como estabelece a constituiçãodaqueles paises – as aldeias zápara careciam totalmente de serviços de educação.

Agora, este programa é desenvolvido com a participação dos pais de alunos: as mães ensinamas técnicas de confecção da cerâmica e os pais ensinam a cestaria e o uso das plantas medici-nais. Os últimos falantes da língua ensinam o zápara em sala de aula, com a colaboração de pro-fessores (bilíngües em espanhol e kichua) que dispõem desde 2002 de um dicionário trilíngüee de materiais didáticos específicos. O dicionário pode ser encontrado, agora, em todas as casaszápara. No entanto, até o momento, esse ensinamento ainda se limita a palavras soltas, a algu-mas frases e a algumas canções. E o número de anciões com capacidade de contar aconteci-mentos importantes da história do grupo diminui a cada ano.

Por este motivo, a Direção de Educação Zápara procura implementar um levantamento, reali-zado pelos professores indígenas, junto aos mais velhos. Esses professores registram e trans-

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crevem as narrativas e as encaminham à Direçãode Educação. Além disso, a leitura de docu-mentos de pesquisadores e viajantes que men-cionam os Zápara em tempos passados temservido como suporte de evocação de fragmen-tos culturais. Para atender o desejo de recuperaro xamanismo, um pajé zápara do Peru vemtransmitindo seus conhecimentos à vários jovensde aldeias situadas no Equador.

Em 2001, a UNESCO reconheceu o esforço em-preendido pelos Zápara e declarou sua culturaoral “obra prima do patrimônio oral e imaterialda humanidade”, contribuindo assim para re-forçar o orgulho dos Zápara e a assegurar sua visibilidade na escala internacional. Com isso,obtiveram financiamentos para dar continuidade às pesquisas sobre a língua e para implemen-tar sua transmissão nas aldeias onde funciona a escola específica dos zápara.

Texto de Anne-Gaël Bilhaut, pesquisadora do EREA/CNRS

No Brasil

Ticuna: Os pintores da floresta

A variedade e riqueza da produção artística dos Ticuna que vivem na bacia doSolimões, Amazonas, expressam uma inegável capacidade de resistência e afir-mação de sua identidade. São as máscaras cerimoniais, os bastões de dançaesculpidos, a pintura em entrecascas de árvores, as estatuetas zoomorfas, a ces-taria, os colares com pequenas figuras esculpidas em tucumã, além da música edas tantas histórias que compõem seu acervo literário.

Sua aptidão e sensibilidade para a arte revelam-se agora em novos materiais e for-mas de expressão plástica e estética, como as pinturas em papel produzidas porum grupo de artistas que formam hoje o Grupo Etüena. Segundo a mitologia ti-cuna “Etüena é a pintora dos peixes. Ela sentava na beira do rio esperando apiracema passar. Ela então pegava cada peixe e pintava, dando uma cor que fica-va para sempre”. Esse grupo nasceu no contexto dos cursos de formação ministra-

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dos pela Organização Geral dos Professores Ticunas Bilíngües (OGPTB), em que a arte teve umespaço privilegiado no programa curricular.

Participam do Grupo Etüena professores ticuna que freqüentavam esses cursos, e que movidos porum interesse especial e talento mais apurado, começaram a se dedicar com mais afinco à ilustraçãode livros e outros materiais didáticos para as escolas, a partir de 1999. As orientações que recebemnessas oficinas oferecem condições para que possam aperfeiçoar suas técnicas e sua a capacidadecrítica. Além da ilustração de vários livros e cartazes usados nas escolas para trabalhar educaçãoambiental ou educação para a saúde, os artistas preparam pinturas para várias exposições no Brasile no exterior. A última foi realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, em 2004.

As pinturas, feitas com guache sobre papel, retratam temas relacionados à natureza (os animais,a floresta, os rios), a aspectos da cultura (festas, máscaras, mitologia) ou mesmo da vida cotidi-ana, com uma clara preocupação em registrar para as futuras gerações.

“Quando caminho pela mata vejo que as cores são diferen-tes, não são iguais. Quando estou pintando fico imaginando,é como se estivesse dentro da floresta (...) O pensamentonão pára quando estou pintando (...) Cada dia a gente pensade uma maneira, por isso cada dia o desenho é diferente. Anossa idade também avança, e nosso saber também avançamais (...) A pintura representa que eu estou vivo. Depois daminha morte fica essa lembrança para as crianças, e assimelas podem saber o que eu penso, o que eu sinto enquantoestou vivo” (João Clemente Gaspar).

“Eu queria desenhar todos os animais. Sentindo como se agente estivesse andando na floresta. Quando a gente andapela floresta, quando chega no igarapé, está vendo os peixes.Os peixes pegando os insetos. É importante para conhecerde onde vem a pintura, para conhecer como pintar. Primeiroa gente não sabia como representar essas idéias” (ManoelAlfredo Rosindo).

Simultaneamente a essa atividade, os artistas da floresta se dedicam a cultivar suas roças, a pescar,a tecer cestos e bolsas, a fabricar flechas, a dar aulas todos os dias, a cuidar de suas famílias.Mesmo não se consagrando exclusivamente à produção artística, eles têm espaço para fazê-losem, no entanto, deixarem de realizar as tantas outras funções que fazem parte da vida de umTicuna e de um professor.

Texto de Jussara Gomes Gruber, orientadora das oficinas de arte

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No Acre: a formação de agentes agro-florestais indígenas

Ao lado dos professores e dos agentes de saúde indígenas,surgiu há pouco mais de dez anos, no Acre, uma nova cate-goria de agente comunitário: o AAFI – agente agroflorestalindígena. Hoje, mais de 100 AAFIs estão em formação, numprograma idealizado pela Comissão Pro-Índio do Acre(CPI/AC)21, com o objetivo de possibilitar que um númerocrescente de povos indígenas, por meio de processos par-ticipativos e educacionais culturalmente fundados, faça aidentificação, a sistematização, a valorização e o uso dealguns dos conhecimentos e tecnologias relativos ao meioambiente para a gestão de seus territórios.

Os povos Asheninka, Manchineri, Jaminawá, Kaxinawá,Katukina, Shawadawá, Arara, Apurinã, Nukini, Poyanawá eYawanawá ingressaram no programa da CPI/AC. Os AAFIs

participam da escola como colaboradores e alguns deles dão aula sobre o manejo dos recursosnaturais em língua indígena e em português.

“O dia amanheceu chovendo, passou o dia chovendo. Nesse dia, eu não trabalhei, porque estavachovendo. Fui pesquisar junto ao professor dando aula. Quando cheguei na escola, estava dando aulaem língua indígena e me pediu para ler e também cantar música indígena de cipó. Eu cantei duas músi-cas para chamar força. Também me perguntou quantos tipos de cipó tinha. Ensinei e escrevi. Esse diapassou chovendo” (Francisco Macário).

O processo de aquisição e desenvolvimento da língua indígena e portuguesa escrita, além de ou-tras linguagens (desenho figurativo, mapas, escultura e vídeos) constitui um exercício sempre cria-tivo. Estes estudos são referenciados no cotidiano e nos saberes tradicionais e atuais, além deapresentarem o desafio da criação de palavras e conceitos para os novos saberes, fortalecendo alíngua materna. A orientação do trabalho de formação dos AAFIs parte do princípio da “autoria”que chama os agentes a pensar, produzir e aplicar os conteúdos do programa curricular, relativosà questão socioambiental, de forma a pôr em relação de sentido seus próprios conhecimentos,com os saberes das demais culturas, indígenas e não indígenas.

“Hoje a gente trabalhou com os alunos sobre sistema agroflorestal. Cada aluno falou do trabalho reali-zado com o agente agro-florestal: fizeram coroamento, cobertura morta, fizeram as covas e plantaramdiretamente. Então, depois da aula prática, nós discutimos sobre as palavras que na língua manchineri

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não tem. Para nós é diferente dizer sistema agro-florestal e precisamos discutir para pôr uma palavracom esse significado. Depois, estávamos falando das vantagens de ter um sistema agro-florestal. Essapalavra “vantagens” também na língua manchineri não tem, e foi discutida também para os alunosentenderem seu significado” (Jaime Llullu Manchineri).

Entre muitos outros trabalhos e experiências em curso nas terras indígenas do Acre, os AAFIs têmrealizado o levantamento sistemático de espécies nativas, numa pesquisa participativa, atendendodemandas locais, seja por alimentos, seja por material de construção ou por recuperação de solo.

“Vou contar uma história importante de nossa preocupação com o futuro. Onde nós moramos, nãotemos o costume de fazer o manejo de palha para cobertura de casas. O pessoal derruba as palheiraspara tirar as palhas e cada vez estão ficando mais longe da aldeia (...) Agora o pessoal de minha aldeiaestá começando a fazer o manejo da palha” (José Sales Kaxinawa).

Esse é mais um exemplo de como o trabalho dos AAFIs pode avançar longe da transferência de“pacotes tecnológicos”, inclusive os agro-florestais. Quando se opta por uma postura críticaquanto a qualquer tipo de “pacote”, a riqueza da diversidade ecológica, cultural e econômica,bem como os saberes ecológicos locais, afloram e podem direcionar o trabalho. O ganho maioré a possibilidade de soluções inovadoras dadas pelos próprios povos indí-genas por meio do processo de identificação de problemas e estratégiaspara o seu enfrentamento.

Texto de Jorge Luis Vivan, Nietta Lindemberg Monte e Renato Antonio Gavazzi, CPI/AC

No Amapá: pesquisadores wajãpi farão seu próprio inventário

Em novembro de 2003, a UNESCO selecionou as “Expressões gráficas e ora-lidade entre os Wajãpi do Amapá” como Obra Prima do Patrimônio Oral eImaterial da Humanidade22. Esse registro representou mais uma etapa dolongo processo de reflexões dos Wajãpi em torno de sua “cultura”. Foi econtinua sendo um estímulo para retomar a discussão, nas aldeias, de todoum conjunto de problemas relacionados ao desinteresse das jovens gera-ções e de muitos adultos pelos saberes e práticas tradicionais, desvaloriza-dos ou mesmo colocados sob suspeita por força da convivência com osacirrados preconceitos da maior parte dos representantes da sociedadeenvolvente que se relacionam com os Wajãpi.

A expectativa dos Wajãpi não é a de “eternizar” sua cultura, mas de conso-lidar sua capacidade de se apropriar de objetos, técnicas e conhecimentos

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novos, de uma maneira que não prejudique – como vem acontecendo até agora – suas própriaspráticas culturais. O “Plano integrado de valorização dos conhecimentos tradicionais para odesenvolvimento socioambiental sustentável da comunidade Wajãpi do Amapá” apresentado àUNESCO aposta na mobilização da comunidade em torno de ações que valorizem, nas aldeias,tanto as formas de transmissão oral, como os conhecimentos relacionados ao manejo de recur-sos, à saúde, à história das aldeias, à cosmologia, aos rituais, etc. Ao mesmo tempo, será incre-mentada a formação de jovens no manejo de instrumentos de registro e de gestão.

Em 2005, com apoio de várias instituições23, o Iepé iniciou a formação 20 “pesquisadores wajãpi”para realizarem levantamentos e registros culturais. Antes disso, os 10 professores que estavamsendo formados em magistério pelo mesmo programa se mobilizaram para a construção de umaproposta curricular para as escolas do Ensino Fundamental em suas aldeias e, nesse contexto, fi-zeram pesquisas sobre os conhecimentos wajãpi, visando refletir sobre sua inclusão no currícu-lo, não como “variações” do conhecimento ocidental, mas sim como frutos de uma maneiratotalmente diferente de conceber o universo e as relações entre suas diversas esferas. Nessa pro-posta, a alfabetização na língua wajãpi não constitui uma introdução ao aprendizado do por-tuguês. Nem os saberes locais são tratados como versões empobrecidas ou “primitivas” dos

saberes científicos, ou “misturados” com saberes científicos ou escolares, comose fossem derivados da mesma forma de conhecer o mundo e atuar sobre ele.Os Wajãpi desejam, assim, construir uma escola em que os “dois caminhos”, dossaberes wajãpi e dos karai kõ (não-índios), se complementem, apostando nacomparação e mesmo na confrontação dos sistemas de conhecimento. Odesafio é portanto saber como tratar o conhecimento tradicional na escola, semempobrecê-lo e sabendo estabelecer relações pertinentes com os saberes esco-lares dos não-índios

No decorrer das oficinas e cursos, os pesquisadores wajãpi debatem os aspec-tos que consideram “importantes” e representativos de seus modos de pensar,fazer e viver. Sabem, entretanto, que ainda não são “especialistas” nem domi-nam esses assuntos e por este motivo, devem realizar um trabalho aprofunda-do e minucioso. O inventário que estão se preparando a realizar não será sim-plesmente uma compilação de saberes “dos antigos”, nem sua mera transcrição,mas envolverá uma reflexão nova, atual sobre eles, visando equacionar o que osWajãpi chamam dos “dois caminhos”.

Por exemplo, interessados em estabelecer alguns contrapontos com os saberesdos brancos, os professores propuseram um investimento de pesquisa em

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modos de conhecer que incluem: sonhar, “ter” pajé, ouvir, ler, prestar atenção aos sinais de bomou mau augúrio (espirros, coceiras, etc). Em 2005, quando se realizou o primeiro encontro depesquisadores dessa comunidade, com a presença de jovens e de lideranças, a lista de temasprioritários para pesquisa incluía: “resguardos, rezas de cura, de agressão e de prevenção, casa-mentos e poligamia, jeitos de responder ao sogro, jeito de conversar bonito, conhecimentoshistóricos, religiões, jeito de classificar plantas e animais, jeitos de fazer manejo, festas, teorias

dos Wajãpi sobre o mundo”.

“Primeiro a gente escolhe tema de pesquisa, escolhe-mos assunto que é mais importante. Depois nós pen-samos como fazer planejamento, depois nós expli-camos o tema que nós escolhemos para os caciques edepois fazemos perguntas para eles contarem para nós,aí gravamos e anotamos. Depois nós transcrevemos, eorganizamos e escrevemos textos” (Kupenã, Kuripi,Saky e Japukuriwa).

Nas oficinas, os registros são discutidos, comple-mentados e organizados. Juntos, decidem comosistematizar os registros e como utilizá-los, den-tro e fora das aldeias, pensando no que se podeou não se pode fazer com essas informações.

“Para que serve fazer pesquisa? A pesquisa do modo devida dos Wajãpi serve para aconselhar os não-índios

que não conhecem bem a cultura dos Wajãpi. A pesquisa serve para as futuras gerações wajãpi, para nãoperderem o nosso conhecimento. Porque os únicos que sabem explicar muito, contar e fazer festa sãoos mais velhos. A nossa pesquisa vai ajudar muito o Conselho das Aldeias Wajãpi na política. Tambémserve para a escola Wajãpi e também para a escola não-indígena. Pesquisa serve para diminuir os pre-conceitos dos karai kõ. Pesquisa serve para outras etnias que perderam sua cultura, para explicar muitosobre os Wajãpi” (Jawaruwa, Kari, Marawa, Jatuta).

O diálogo que essa turma de pesquisadores estabeleceu com os mais velhos em função desseslevantamentos permite aprimorar seu próprio manejo das formas de expressão tradicional.Uma aproximação que contribui para superar a tensão entre as gerações e proporciona aosjovens maior consciência dos limites da transmissão de conhecimentos em forma escrita. Maiscríticos, habilitam-se progressivamente a assumir o papel de mediadores capazes de explicarpara sua comunidade e para outros públicos a diferença entre modos de pensar, de se expres-sar e de organizar o conhecimento.

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3. Como proteger bens imateriais?

A salvaguarda das tradições orais indígenas, assim como das práticas que lhessão associadas, é um campo novo para as políticas públicas, especialmente noBrasil. Em algumas comunidades indígenas, estão sendo testadas estratégias queprogramas supranacionais e órgãos nacionais procuram aprimorar com a cola-boração de universidades e de organização não governamentais, formando umpainel ainda frágil de experimentos muito diversos e, às vezes, contraditórios.

As dificuldades remetem, sobretudo, às condições disponibilizadas para a pro-teção do patrimônio imaterial indígena, que flutuam em acordo com os contextospolíticos e econômicos. Assim, a adequação das medidas de proteção envolve,sempre, complexas negociações. Quem são os agentes responsáveis pelo inven-tário dessas tradições culturais? Quem tem o poder de escolher entre uma ou outratradição, entre uma ou outra comunidade? O que se pretende preservar numatradição: as produções, o registro dessas produções ou seus meios de expressão?Como engajar efetivamente uma comunidade na política de preservação?

Como já mencionamos na primeira parte deste livro, os procedimentos de “con-servação” habitualmente utilizados para a proteção do patrimônio material nãosão adequados à preservação do patrimônio imaterial, que exige um conjuntomuito mais complexo de procedimentos. Assim, a prática do “tombamento”, quevisa garantir a integridade física e as características originais de um monumentohistórico ou de uma obra artística, não se aplica aos conhecimentos e manifes-tações culturais reconhecidos como patrimônio imaterial, cujo valor reside justa-mente na capacidade de transformação dos saberes e modos de fazer. Nestecaso, ao invés do tombamento, são recomendadas medidas de “salvaguarda”.

Em acordo com as definições oficiais difundidas pela UNESCO24, entende-se por“salvaguarda” as ações que procuram assegurar a viabilidade e durabilidade dopatrimônio cultural imaterial, incluindo sua identificação, documentação, investi-gação, preservação, além de sua proteção, promoção, valorização, transmissão –

Glossário:

Documentação:registro do

patrimônio culturalimaterial em

suportes físicos.

Identificação:descrição técnica de um elemento

dado, constitutivo do patrimônio

cultural imaterial,geralmente elabo-rado no processo

de inventário sistemático.

Preservação:medidas que visam

à manutenção decertas práticas sociais

e representações.

Proteção: medidasvisando impedir que

certas práticas sociais e representações

sejam prejudicadas;observe-se que essas

medidas não sãoconfiguradas como“conservação”, que

não se aplica ao patrimônio imaterial, con-

siderando sua per-manente recriação.

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efetuada através do ensino formal e não formal – e a revitalização destepatrimônio em seus diferentes aspectos.

Tanto a identificação – ou seja, a seleção e o inventário de elementos culturaisrelevantes para um registro ou para uma ação de difusão – como as medidasadotadas para sua proteção e sua revitalização colocam imediatamente empauta uma série de desafios que consideramos interessante resumir, mesmo quebrevemente, citando dificuldades de três ordens: quem documenta? O que do-cumentar? O que fazer com registros e inventários de patrimônio imaterial?

3.1. Quem se responsabiliza por um inventário?

A participação comunitária na proteção e promoção de tradições culturaisconstitui atualmente o eixo central do conceito de salvaguarda. A igualdadede acesso aos procedimentos de preservação, sua descentralização e suaadaptação dinâmica às situações locais sendo determinantes para o sucessodessas políticas25.

Uma consulta aos planos de salvaguarda já implementados para proteger e va-lorizar tradições culturais indígenas, entre as obras que a UNESCO selecionoucomo “patrimônio oral e imaterial da humanidade” aponta para uma dispari-dade já mencionada nas estratégias de documentação. Em muitos casos – comoo dos Aka, na África e de Vanuatu, na Polinésia – o inventário é realizado porequipes acadêmicas, recrutando-se especialistas ocidentais, conhecedores dogrupo ou da forma de expressão; os nativos acompanham e participam enquan-to informantes. Já, em outros casos, especialmente sul-americanos, os membrosdas comunidades locais ocupam um lugar de destaque nas atividades de registrode suas próprias tradições, mediante capacitação. O tempo necessário para arealização de um ou outro tipo de inventário sendo, obviamente, muito dife-rente. Como também serão diferentes os formatos e os destinos atribuídos à do-cumentação produzida.

Promoção: ação positiva de sensibilização do público aos aspectos do patrimônio cultural imaterial.

Processo: conjunto de práticas sociaisconsideradas comoestreitamente vinculadas entre si.

Transmissão:transmitir práticas sociais e idéias a um ou mais indivíduos,em particular às jovens gerações, por via da instrução e do acesso às fontes documentais, ou por outras vias.

Revitalização: no âmbito das práticas de uma comunidadecultural, é a reativaçãoou reinvenção de práticas sociais e de representações que não estão em desuso;no âmbito das políticas de patrimônio, é o apoio oferecido a uma comunidade local, com seu

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Os primeiros programas de salvaguarda de tradições indígenas apoiados pelaUNESCO no início desta década, também revelam uma variação no peso dadoàs ações de sensibilização em caráter regional e nacional, ou mesmo interna-cional. Nota-se que alguns planos centram-se em ações de divulgação, em detri-mento de atividades de capacitação comunitária. Muito recentemente, vem sedando maior importância às ações educativas, para promover não apenas o bemcultural imaterial, mas seus detentores. Acentua-se o interesse em promovertanto os líderes como os jovens dessas comunidades, quando estão interessadosem fortalecer sua cultura. Efetivamente, participar não significa “assistir” aoprocesso de valorização.

Se a capacitação é sem dúvida indispensável para que membros de uma comu-nidade façam registros de seu patrimônio imaterial, essa formação precisa seadequar às demandas locais, que podem estar voltadas para as mais diferentesou surpreendentes mediações. Tal adequação depende de estratégias mais políti-cas do que técnicas, fazendo com que a adesão inicial possa se converter numengajamento duradouro da comunidade – ou de boa parte dos seus membros –na implementação de todas as etapas do processo de registro e de valorização.Por este motivo, em acordo com as recomendações de especialistas que asses-soram a UNESCO, a participação comunitária não se limita ao acompanhamen-to ativo das ações, mas à autoria explícita, na seleção, no registro e na docu-mentação dos elementos culturais que se pretende salvaguardar. Essa partici-pação é indispensável para atestar a relevância dos elementos que estão sendodocumentados. Como indicamos na primeira parte deste livro, considera-sehoje que os critérios para julgar a “autenticidade” de uma manifestação ouexpressão cultural, só podem ser definidos no seu contexto local de uso, ou seja,depende das interpretações dos próprios indígenas.

A participação da comunidade não se limita, portanto, a aprender novas técni-cas de documentação. Se trata de um investimento que mobiliza todos os aspec-tos de uma cultura, desde os modos de percepção, interpretação, construção e

consentimento, parareativar práticas

sociais e represen-tações que estão

sendo desativadas.

Praticante: membroativo de uma

comunidade que reproduz, transmite,

transforma, cria eforma uma cultura

no quadro e embenefício da comu-

nidade, ou repro-duzindo práticas sociais fundadas

em conhecimentos e competências especializadas.

Durabilidade (ou sustentabilidade):

responder às neces-sidades do presentesem comprometer a

capacidade de res-posta das geraçõesfuturas à suas pró-prias necessidades.

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uso. Como se verá, o registro não é uma ação isolada, nem suficiente e seus procedi-mentos devem ser constantemente negociados para atender demandas renovadas quesurgem ao longo das sucessivas etapas de um plano de salvaguarda. Um processosempre muito demorado, além complexo, emfunção das tensões políticas que podem surgir,tanto no seio de uma comunidade, como nassuas relações com a sociedade mais ampla.

3.2. Para quem documentar tradições culturais?

As ações de documentação de tradições cultu-rais ocupam um lugar predominante nos progra-mas de salvaguarda. Mas levantam uma série dequestionamentos. No caso do patrimônio imate-rial, qual a função da documentação? É um fim,ou é um meio?

Essas indagações alimentam a maior parte dascríticas feitas por antropólogos e lingüistas amuitos planos de salvaguarda de tradições oraisindígenas. Como explica A. Monod Becquelin,“é mais fácil armazenar gigas de arquivos doque preservar o uso de uma língua, uma atitudeque exige esforços políticos, financeiros, huma-nos muito mais elevados; se as tradições oraisfossem apenas um ato de conservação, entãobastaria recolher, registrar, transcrever, even-tualmente traduzir, documentar para salvar – natela mundial da Internet ou nos museus e uni-versidades – tudo que se pode ainda salvardeste naufrágio”26.

Oficina de gestores do patrimônio culturaldos povos do Oiapoque, Aldeia Tukay, 2005.

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Mas muitos estudiosos do patrimônio imaterial indígena defendem a necessidade emesmo a urgência de sua documentação, apresentando outra indagação: o conheci-mento tradicional é mais bem preservado quando mantido sob segredo, ou reservadopara uso exclusivamente local? Ou ele se fortalece quando é mostrado, explicado,traduzido e defendido com a ativa participação de seus detentores nas ações dedifusão? O número crescente de publicações, de exposições, de web-sites, etc. cria-dos ou mantidos por indígenas revela seu interesse na apropriação de novas mídiaspara expressar suas particularidades culturais. De acordo com Kurin, defender sua cul-tura consiste em perceber que “se o mundo no qual estou vivendo se ampliou, aindatenho meu próprio lugar nesse mundo”27. Um lugar que precisa ser conquistado, espe-cialmente no campo dos meios de comunicação. Os inventários, nessa perspectiva,

Festa do Jacaré,Aldeia da Missão,

1997

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servem para garantir um espaço às culturas indígenas no mapa das culturas do mundo.Lembrando, no entanto, que por si só, o registro não garante nem a sobrevivência nema continuidade de uma prática cultural.

Mas a difusão ampliada de saberes e de costumes diferenciados não se faz sem riscos.Até recentemente, no Brasil, o apoio fornecido por instituições privadas ou públicasao chamado “resgate cultural” centrava-se na produção de discos, documentários, ca-lendários, artesanato, performances, configurados para o entretenimento de um públi-co urbano, com algum retorno financeiro para os participantes indígenas. Se esse tipode difusão garante a visibilidade dos realizadores, nem sempre repercute internamentena valorização dos saberes tradicionais.

Como se sabe, o que se resgata para um público externo é necessariamente muitodiferente do que se planeja valorizar “em casa”. Como alertava Goody, que estudou apassagem da oralidade à escrita, “toda alteração no sistema de comunicação humanatem necessariamente repercussões no conteúdo transmitido”28. Isso significa que,mesmo antes de ser difundido, o próprio registro, a inscrição de uma tradição em umanova mídia, fora do seu contexto de uso, trará alterações significativas.

É indispensável levar em conta as repercussões de que nos fala Goody, para controlaros procedimentos de registro e documentação e avaliar seus impactos na dinâmicaprópria da transmissão de saberes e práticas tradicionais. Os registros e sua inserçãoem inventários constituem de fato “memórias adicionais”, ou “artificiais”, que podemauxiliar aos propósitos de fortalecimento cultural de comunidades indígenas. Mas,sozinhos, não constituem uma salvaguarda do patrimônio imaterial.

3.3. Como registrar a origem e a transformação das tradições?

“A memória em jogo na tradição oral não é apenas conservação. Ela é tratamento dapercepção, tensão entre perenidade e flexibilidade, utensílio para a construção, pro-duto de um ethos. Ela não é um saco de antiguidades, mas segue a história coletiva eas intencionalidades”. Nessa explicação, A. Monod Becquelin aponta para um aspec-

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to essencial nas tradições indígenas, que possuem sua própria história e estão direta-mente relacionadas a experiências de interação social. Ou seja, são menos um teste-munho do passado de uma determinada comunidade, que o testemunho da históriadas trocas que essa comunidade manteve com outras.

Isso nos traz de volta à questão da “origem” dos elementos culturais, que interessaabordar a partir das concepções indígenas. Como ilustram os exemplos citados nasegunda parte deste livro, os povos indígenas da Amazônia consideram que a maiorparte de seus itens culturais foram adquiridos de fora. Ou seja, concebem sua culturacomo o resultado de apropriações, de empréstimos. E é por terem sido apropriados de“outros”, que esses elementos de sua cultura são valorizados. Essa particularidadetorna muito mais complexo o ato do registro, que não se limitará à descrição pura esimples de um saber, ou de uma técnica, mas exigirá o registro das interpretações quea comunidade possui a respeito da origem dessa prática e do modo com foi transmi-tida e dinamicamente transformada até a atual geração. Por exemplo, ao registrar umadeterminada dança, praticada hoje pelos Wajãpi, não é suficiente indicar quais sãoseus atuais detentores e especialistas, mas se deverá contar toda a história da apropria-ção dessa dança, que remete a contatos com outros grupos, ou outros seres, humanosou não humanos.

Essa abordagem, na verdade, já vem sendo adotada pelos antropólogos há um certotempo. Seus estudos focam menos traços e itens culturais que as relações sociaismediadas por esses itens culturais. Bens imateriais, como os bens materiais, circulam,sendo objeto de troca, de barganha, de lutas. São essas as relações que agregam valoraos itens culturais. Por isso, tanto a origem como as formas de apropriação e transfor-mação de um elemento cultural, quando este passa de um lugar ao outro, devem sercuidadosamente registradas.

Esses exemplos evidenciam, portanto, que um inventário não se limita à inscrição demanifestações culturais pertencentes a uma comunidade. O patrimônio cultural ima-terial, por definição, se relaciona à história e as experiências vivenciadas por uma

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comunidade. Ele se transforma ao longo do tempo, permitindo seu reconhecimento ea agregação de valores novos, ao longo de sucessivas gerações. São processos detransformação através dos quais grupos culturais expressam seu dinamismo. O inven-tário do patrimônio imaterial não tem, portanto, como objetivo congelar as tradiçõesno passado, mas registrar adequadamente toda a dinâmica relacionada à sua transmis-são, no contexto das relações internas e externas a uma comunidade.

3.4. Como documentar tradições vivas?

Nos debates entre os especialistas que a UNESCO costuma convocar para discutir estraté-gias de proteção do patrimônio cultural imaterial, volta-se freqüentemente à mesma per-gunta: à quais tradições dar prioridade? às mais ameaçadas, ou às mais dinâmicas?

Não cabe aqui nos posicio-nar neste debate, mas lem-brar que o inventário detradições culturais deve serconstruído caso a caso, emacordo com interesses dascomunidades detentorasdesse patrimônio. Caberá aelas definir critérios para oregistro. Além disso, se con-sideramos as alterações queo trabalho de registro pres-supõe, como já mencio-namos, esta escolha – entretradições mais ou menos“vivas” – deixará de fazersentido. Insistiremos umpouco mais neste ponto.

Oficina de docu-mentação desaberes orais emanifestaçõesartísticas Tiriyó eKatxuyana. Aldeiada missão, 2005.

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Um inventário de tradições culturais remete diretamente a questões metodológicas rela-cionadas à produção de conhecimento. Entre essas questões, uma das mais interessantesé a relação entre conhecimento e prática. Outra, diz respeito á variação das tradições,no seio de uma mesma comunidade cultural. Para levar em conta esses aspectos, o tra-balho de registro deve partir do principio de que a inscrição de uma tradição – seja emforma escrita ou em formato audiovisual – representa uma nova forma de comunicação,constituindo-se em mais uma “versão” da tradição que se está registrando.

O que essa nova “versão” da tradição, devidamente descrita, documentada e aparen-temente “salva” num inventário, apresenta como vantagens? Quais são os benefíciospara uma comunidade engajada no inventário de suas próprias tradições?

Quer nos parecer que o processo de inventário do patrimônio cultural imaterial podetrazer muitos ganhos para uma comunidade, desde que ela esteja interessada no forta-lecimento de sua cultura e identidade. Mas ela não obterá ganhos imediatos, nemmuito visíveis. Serão ganhos sobretudo intelectuais, ou seja, propriamente imateriais.De fato, tanto o esforço de reflexão exigido por um inventário como os resultadosalcançados, podem contribuir para a consolidação de formas próprias de conceber econstruir o conhecimento.

Nesse sentido, são interessantes as experiências que procuram auxiliar pesquisadoresindígenas engajados em processos de documentação a destacar as idéias, lógicas, teo-rias que estão por trás dos conhecimentos documentados. Eles estarão, por esta via,contribuindo à discussão teórica do conhecimento indígena, construindo explicaçõesa respeito desses saberes, revelando classificações e lógicas culturais das mais rele-vantes para a qualidade dos inventários.

Se admitirmos que nessas experiências, se deve registrar e documentar não só os “pro-dutos acabados”, mas os jeitos de conhecer, os estilos próprios usados para explicaruma tradição, as formas de transmissão e validação desses saberes, os membros dacomunidade que estiverem participando de um inventário estarão capacitados a refle-tir, de modo muito mais eficaz, sobre os mecanismos de produção e transformação do

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saber. E, por conseguinte, se sentirão habilitados a efetuar comparações, no tempo eno espaço, avaliando com maior propriedade as ameaças que podem pairar sobresuas tradições culturais.

Se consideramos a elevada carga de preconceitos que ainda rodeia os saberes indíge-nas, a sua documentação pode contribuir para que sejam não só melhor conhecidos,mas, sobretudo, reconhecidos enquanto patrimônio imaterial. Porém é fundamentallevar sempre em consideração as configurações de contextos particulares, especial-mente quando um grupo indígena é radicalmente contrário ao registro de seus conheci-mentos, por temer a difusão inadequada de seus conteúdos. Por outro lado, é indispen-sável propiciar aos índios a possibilidade de avaliar criticamente inventários de que jáse dispõe, especialmente quando o re-gistro é tão incipiente que não documen-ta o contexto especifico em que um con-hecimento ou prática é utilizado, tornan-do a documentação ineficaz.

Ou seja, a documentação apresenta umsério risco de descontextualizar um bemimaterial. Como sabemos, é o contextoque garante sentido de uma tradição. Umcontexto de uso deve ser acoplado a for-mas específicas de atualização, sem asquais essa mesma tradição se torna umbem inerte, sem valor para seus usuários.Manter um registro de elementos que jádeixaram de fazer sentido para seus cria-dores não é, decididamente, o que osgrupos indígenas esperam de todo o con-junto de recomendações e programasvoltadas à valorização de suas culturas.

Jovens registram afesta do pakuwasu,Aldeia Taitetuwa,1991.

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IV. Fontes de informação

Nos últimos anos, surgiu uma volumosa documentação sobre o conceito e as políticas deproteção do patrimônio cultural imaterial, composta por textos legais, documentos ofici-ais, estudos e textos analíticos, elaborados por especialistas e por representantes de váriasorganizações internacionais e nacionais, governamentais e não-governamentais. Docu-mentos interessantes também têm sido produzidos por representantes dos próprios povosindígenas preocupados com a proteção de seus patrimônios culturais. Não seria possívelcompilar, aqui, toda essa produção. Nossa intenção é propiciar algumas pistas para aces-sar essa interessante bibliografia e localizar as instituições internacionais e nacionais dire-tamente engajadas na valorização dos patrimônios culturais indígenas.

1. Instrumentos internacionais

Dentre os inúmeros instrumentos internacionais, gerados no âmbito da ONU e deagências internacionais, três merecem destaque para a questão da proteção e pro-moção dos patrimônios culturais imateriais indígenas.

O primeiro deles é Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas, que foidiscutida durante mais de 20 anos. Uma versão dessa Declaração foi concluída emjunho de 200629 e será submetida à Assembléia Geral da ONU. Se aprovada, os paí-ses membros da ONU deverão ratificar a Declaração, que passa a ter status de lei nospaíses que a ratificarem. Esta declaração garante aos povos indígenas o direito de par-ticipar nas decisões do Estado sobre questões que afetam diretamente a eles, comoeducação, propriedade da terra e saúde. Também prevê o controle da propriedade in-telectual por parte dos povos indígenas, bem como de seu patrimônio científico, cul-tural e tradicional. Essa propriedade inclui os recursos humanos e genéticos, semen-tes, medicamentos, conhecimentos das propriedades da fauna e flora, tradições oraise culturais. O documento prevê ainda a garantia dos direitos humanos fundamentais,como o respeito às diferenças culturais e às tradições, e também o direito de mantere fortalecer suas próprias instituições políticas, legais, econômicas, sociais e culturais.

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Para acessar a Declaração e acompanhar o andamento de sua aprovação, utilize olink: http://www.institutowara.org.br/documentos.asp

É também importante conhecer a Convenção sobre os Povos Indígenas – OIT 169,adotada em 1989 pela Organização Internacional do Trabalho. Reconhece as aspi-rações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vidae seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas ereligiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram. Indica que os governos devemassumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessa-dos, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povose a garantir o respeito pela sua integridade. Veja a íntegra da Convenção em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/indios/conv89.htm

Outro documento internacional importante é a Convenção para a Salvaguarda doPatrimônio Cultural Imaterial, celebrada pela UNESCO em Paris no dia 17 de outu-bro de 2003. Ela foi ratificada pelo governo brasileiro por meio do Decreto nº 5.753/2006 (DOU 13.04.2006). Essa Convenção determina diretrizes para a preser-vação do patrimônio imaterial e das expressões sociais, culturais e artísticas. Temcomo finalidades a salvaguarda do patrimônio imaterial; o respeito ao patrimônio cul-tural imaterial das comunidades, grupos e indivíduos envolvidos; a conscientizaçãonos planos local, nacional e internacional, da importância do patrimônio cultural ima-terial e de seu reconhecimento recíproco, assim como a cooperação e assistênciainternacionais. Para acessar o texto da Convenção em português, utilize o link: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540POR.pdf

2. Programas desenvolvidos pela UNESCO

O portal da UNESCO (http://portal.unesco.org/es/) constitui uma imensa base para pes-quisa, que disponibiliza não só informações precisas sobre as diretrizes da instituiçãono campo da educação, cultura, ciências naturais, ciências sociais e comunicação,como atualiza permanentemente os relatórios de especialistas que se reúnem para

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preparar documentos normativos e recomendações nesses diferentes campos. Na seçãode publicações, acessam-se inúmeras referências sobre diversos tópicos relacionadosaos povos indígenas e sua situação no mundo inteiro.

Povos indígenas constituem inclusive uma área temática que a UNESCO vem consoli-dando nos últimos anos, tanto no campo das políticas de educação como no foco dossistemas de conhecimento locais. Nesta última seção, estão disponíveis vários docu-mentos interessantes sobre a conceituação e aplicação dos conhecimentos tradicionais. http://portal.unesco.org/sc_nat/ev.php? URL_ID=1945&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201

A seção de Patrimônio Imaterial, que pode ser acessada em espanhol, disponibilizasubsídios sobre os diferentes mecanismos de proteção dessas formas de expressão cul-tural, em particular as línguas em perigo, a música tradicional do mundo, os tesouroshumanos vivos e os projetos de salvaguarda das obras primas do patrimônio oral eimaterial da humanidade. http://portal.unesco.org/culture/es/

ev.php-URL_ID=2225&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html

Além dos textos oficiais, recomendamos consultar o boletim “Mensageiro do Patri-mônio Imaterial”, recentemente criado e que pode ser obtido em espanhol, no link:http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001454/145415S.pdf

Para conhecer as atividades desenvolvidas pela UNESCO Brasil, e para encontrar docu-mentos importantes sobre a temática, em português, utilize o link: http://www.unesco.org.br/

areas/cultura/areastematicas/patrimonio/patrimonioimaterial/index_html/mostra_documento

3. Dispositivos legais e programas em consolidação no Brasil

A Constituição Federal promulgada em 1988, na seção que trata da Cultura, estabeleciaque “o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasi-leiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (Art.215.1º).E já previa os desdobramentos mais recentes, que consideram que tanto os bens denatureza material como imaterial são parte do patrimônio cultural brasileiro (Art.216).

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Mas um programa especificamente voltado aos bens intangíveis só seria consolidadoem 2000, quando foi promulgado o Decreto 3.551, instituindo o Registro de BensCulturais de Natureza Imaterial. Um bem cultural imaterial pode ser inscrito em umdos quatro livros existentes até o momento: dos saberes, das celebrações, das formasde expressão ou dos lugares. Para conhecer a íntegra do decreto, acesse o site doMinc, através do link: http://www.cultura.gov.br/legislacao/docs/D-003551.htm

Desde 2005, está sendo discutida a criação de um novo livro, o Livro de Registro deLínguas, onde seriam inscritas as mais de 200 línguas faladas no Brasil, como uma dasformas de reconhecimento dessa pluralidade. Para saber mais, acesse o texto “Línguascomo patrimônio imaterial” de Gilvan Muller de Oliveira, 2005, no link:http://www.ipol.org.br/ler.php?cod=281

O registro de bens imateriais tem várias conseqüências práticas, entre elas a obrigaçãopública – governamental sobretudo – de inventariar, documentar e apoiar a dinâmicadas manifestações culturais registradas. Essas ações estão sob responsabilidade devários órgãos, especialmente o IPHAN.

Ainda no ano de 2000, a FUNAI elaborava a Portaria 693, criando o Cadastro dePatrimônio cultural indígena. Ações de identificação e de promoção vem sendo desen-volvidas pelo Museu do Índio, que se pode conhecer através do link:http://www.museudoindio.gov.br.

O IPHAN tem ampliado muito suas intervenções neste campo, nos últimos 4 anos,apoiando inclusive várias comunidades indígenas. Assim, foi criado em 2005 oPrograma Nacional de Patrimônio Imaterial / PNPI, que entre outras atribuições, tempor objetivo incentivar e apoiar iniciativas e práticas de preservação desenvolvidas pelasociedade. Para conhecer a integra desse edital, acesse o link: http://portal.iphan.gov.br/

portal/baixaFcdAnexo.do;jsessionid=BC541D74EA271948D1335007FA135E69?id=465

A ampliação do conceito de cultura, inclusive nas dimensões social e econômica,refletiu-se na Revisão do Plano Plurianual de 2005, que incluiu a cultura em oito das

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trinta diretrizes estratégicas do governo. Conheça os Programas e Ações no site:http://www.cultura.gov.br/programas_e_acoes/index.php.

Em 2006, através do decreto n˚ 5.711, foi criada a Secretaria da Identidade e daDiversidade Cultural, a quem compete, entre outras atribuições, planejar, coordenar eexecutar atividades de incentivo à diversidade e ao intercambio cultural, como meiosde promoção da cidadania. Para conhecer essa nova Secretaria, acesse o link: http://www.cultura.gov.br/ministerio_da_cultura/secretarias/index.php.

4. Leituras recomendadas

ABREU, Regina & CHAGAS, Mário – Memória e patrimônio, ensaios contemporâneos.Rio de Janeiro, DP&A, 2003.A coletânea reúne 16 ensaios produzidos por intelectuais que atuam em diversos campos profissio-nais, agrupados em cinco blocos temáticos: patrimônio, natureza e cultura; memória e narrativasnacionais; memória e narrativas urbanas; memória e etnicidade; memória e reflexividade.

BATISTA, Fernando Mathias & VALLE, Raul S. Telles do – Os povos indígenas frenteao direito autoral e de imagem. Instituto Socioambiental, São Paulo, 2004.Não é de hoje que, no Brasil, o patrimônio imaterial indígena tornou-se alvo de estratégias demarketing. Surgem questões quanto aos direitos dos índios, buscam-se soluções para garantirrelações mais justas e respeitosas, através de um novo entendimento do direito autoral e deimagem aplicado aos interesses dos índios.

Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – ‘Patrimônio Imaterial e biodiver-sidade’. Vol.32, Rio de Janeiro, MinC, 2005.Este volume organizado por Manuela Carneiro da Cunha é composto de três conjuntos de arti-gos. O primeiro trata das dimensões culturais e sociais da biodiversidade. O segundo avaliapolíticas culturais e seus efeitos locais. O terceiro discute as dimensões do patrimônio imateriale as dificuldades de aplicar o conceito às sociedades indígenas, através de alguns estudos decaso que mostram a complexidade de suas condições de produção e continuidade cultural.

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FONSECA, Maria Cecília Londres – O patrimônio em processo. Trajetória da políticafederal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro, 2ª ed. Ed. UFRJ / IPHAN. 2005.A trajetória da política federal de preservação de acervos culturais no Brasil, no período fun-dador (anos 1930-40) e no período renovador (anos 1970-80), que contribuiu para a consoli-dação do conceito de patrimônio imaterial. O livro mostra como os patrimônios históricos eartísticos – patrimônio material – passam a se constituir como símbolos da nação e como aspolíticas de preservação podem reforçar uma identidade coletiva, através da educação e daformação de cidadãos.

Horizontes Antropológicos – ‘Patrimônio cultural’. UFRGS, Vol.23, Ano 11. PortoAlegre, junho de 2005.Na primeira parte da revista temática, organizada por Maria Eunice Maciel e Caleb Faria Alves,um conjunto de 8 artigos trata das políticas de patrimônio no Brasil, analisando especialmentecomo a cisão entre o material e o imaterial vem sendo revista a partir da Constituição de 1988.No Espaço Aberto são publicados 21 artigos que discutem a política de cotas raciais e o ingres-so nas universidades brasileiras.

IPHAN – Expressão gráfica e oralidade entre os Wajãpi do Amapá. Rio de Janeiro,(Dossiê Iphan:2), 2006.Trata-se do dossiê que subsidiou a inscrição da Arte Kusiwa no Livro de Registro das Formasde Expressão, pelo IPHAN, em 2002. O documento foi elaborado por iniciativa do Conselhodas Aldeias Wajãpi / Apina para ser encaminhado à UNESCO, que selecionou as Expressõesgráficas e orais dos Wajãpi como obra prima do patrimônio oral e imaterial da humanidade,em 2003. O dossiê foi preparado por Dominique T. Gallois com apoio do Museu do Índio –Funai. Integra uma descrição do sistema gráfico e de sua articulação com a tradição oral eapresenta as diretrizes do plano de salvaguarda, assim como os mecanismos de gestão propos-tos pelo Apina. Na sua parte final, enumera as ações que já estão em andamento nas aldeiaswajãpi, com apoio de várias instituições.

MOISÉS, José Álvaro – Diversidade cultural e desenvolvimento nas Américas.Palmares em Ação. Ministério da Cultura, Brasília - DF, v. 1, p. 40-55, 2002.Nesse texto, preparado por solicitação do Programa de Cultura da Organização dos Estados

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Americanos –OEA, o então Secretário de Audiovisual do MinC discute as abordagens da diver-sidade cultural, das mais antigas aos desenvolvimentos recentes, além de analisar osantecedentes históricos da diversidade cultural nas Américas.

MOREIRA, Eliane & outros organizadores – Anais do Seminário Patrimônio Culturale Propriedade Intelectual: proteção do conhecimento e das expressões culturais tradi-cionais. Belém, CESUPA & MPEG, 2005.A publicação reúne 23 das 26 comunicações apresentadas nesse evento, realizado em Belémem outubro de 2004, dedicadas tanto ao estudo de acervos culturais específicos como a dis-cussão de tópicos como o consentimento informado, o direito autoral, o repatriamento decoleções. Acompanha um CD Rom.

PRICE, Sally – Arte primitiva em centros civilizados. Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 2000.Percorrendo o circuito dos museus, das galerias de arte e de seus críticos, a autora revela acomplexidade das relações entre observadores “civilizados” e objetos de arte “primitiva”,mostrando como a arte dos povos indígenas se torna “primitiva” em lugares que se conside-ram “civilizados”. Explica porque as obras de “arte primitiva” são consideradas anônimas, emcontraponto às dos artistas ocidentais e porque as civilizações da escrita acabam assumindouma posição privilegiada. O livro discute, ainda, outras transformações a que se submetem asobras de povos indígenas, quando são absorvidos pelo mercado artístico.

Revista Tempo Brasileiro – ‘Patrimônio imaterial’. N˚ 147, Rio de Janeiro, 2001.Esse número especial é dedicado à nova abordagem do patrimônio cultural, com colaboraçõesde 19 especialistas, todos engajados nesse campo. Entre eles, há textos de Antonio A. Arantes,de Márcia Sant´Anna e de Cecília Londres, dedicados aos procedimentos de proteção dopatrimônio imaterial.

SANT´ANNA, Márcia de (org) – O registro do patrimônio imaterial. MINC / IPHAN /FUNARTE, Brasília, 2003.Trata-se da 2ª edição atualizada do dossiê referente às atividades da Comissão e do Grupo deTrabalho Patrimônio imaterial (2000), que apresenta documentos legais, relatórios e recomen-dações importantes para a consolidação das políticas de patrimônio, no Brasil.

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Notas

1 Apresentação no 2º Seminário Regional do Iepé, Fortaleza São José de Macapá, 7 a 11 denovembro de 2005.

2 Conforme a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003, arti-go 02, que em seu final também estabelece que “aos efeitos da presente convenção, selevará em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instru-mentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeitomutuo entre comunidades, grupos e indivíduos e o desenvolvimento sustentável”.

3 Esse glossário foi composto a partir das definições adotadas em reuniões internacionaisanteriores à promulgação da Convenção (Reunião em Paris, agosto 2002), algumas delasrevistas em reuniões posteriores (Reunião em Tókio, março 2006).

4 “Primitive culture”, Harper & Row, New York, (1958), Capítulo 1, pag 1.

5 Assim, em 1995, o documento Nossa Diversidade Criadora procura abordar a cultura demodo mais positivo. Mas só foi em 2001, que a Declaração Universal sobre a DiversidadeCultural passa a considerar que o respeito à diversidade cultural não é apenas um direitodos povos, mas uma condição indispensável das políticas nacionais e internacionais, parapromover o diálogo entre os povos.

6 Datam desse período decisões pioneiras, como a Convenção de La Haye, que proíbe atransferência ilícita de propriedades culturais (1954) e a Convenção sobre a proteção dopatrimônio mundial cultural e natural (1972), que promove a transformação dos sítios cul-turais e naturais de valor significativo para todos os povos em patrimônio da humanidade.

7 Em 2001, foram selecionadas 19, em 2003 outras 28 e em 2005, mais 43, perfazendo atéo momento 90 Obras Primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade.

8 Até hoje, 191 paises assinaram a Convenção e podem contar com apoio internacional paraa preservação, seja dos bens que entraram na Lista do Patrimônio Mundial, seja daquelesque são de interesse local ou nacional e que constituem motivo de orgulho para o país. Esse

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tipo de apoio não tira a soberania de um país sobre seu patrimônio, garantindo ao contrárioque este não se perca por falta de recursos.

9 Cabe lembrar o papel de Mario de Andrade, poeta e escritor preocupado com a questãocultural no Brasil: ele elaborou, em 1936, o Anteprojeto para a Criação do Serviço deProteção do Patrimônio Artístico Nacional, onde propunha inclusive preservar as manifes-tações populares e indígenas, especialmente músicas, histórias e culinária. Era uma con-cepção tão inovadora que não se conseguiu colocá-la em prática, diante da resistência daselites políticas e da classe governante da época. Tirando esta parte considerada desinteres-sante, é com base no anteprojeto de Mario de Andrade que o Ministro Gustavo Capanemafundou o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937.Colaboraram para essa criação, outros brasileiros ilustres, como Manuel Bandeira, AfonsoArinos, Lucio Costa e Carlos Drummond de Andrade.

10 Para maiores informações sobre esses instrumentos, da UNESCO como do MINC, veja a 4ª parte.

11 Até hoje, foram registrados sete bens de natureza imaterial, entre eles a Arte Kusiwarã dosWajãpi do Amapá, que foi o primeiro, em 2001. Na seqüência foram incorporados o Círiode Nazaré (PA), o Jongo no Sudeste (RJ e SP), o Modo de fazer Viola-de-Cocho (MT e MS),o Oficio das Baianas de Acarajé (BA), o Ofício das paneleiras de Goiabeiras (ES) e o Sambade Roda no Recôncavo Baiano (BA). Há outros 12 processos de registro de bens imateriaisem andamento.

12 Definição que setores da UNESCO continuam veiculando, como se pode verificar nas con-clusões da Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais (MONDIACULT, México,1982), da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento (Nossa Diversidade Criadora,1995) e da Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais para o Desenvolvi-mento (Estocolmo, 1998).

13 Definições formuladas na Conferencia Mundial da UNESCO sobre políticas culturais,México 1982.

14 Cfr. Carneiro da Cunha, “De Charybde en Scylla: savoirs traditionnels, droits intellectuelset dialectique de la culture” - Conférence Marc Bloch, Paris, junho 2004.

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15 Declaração de Yamato sobre enfoques integrados para a salvaguarda do patrimônio mate-rial e imaterial, Nara, Japão, 2004.

16 “Xamanismo e tradução”, in: Adauto Novaes (org.) “A outra margem do ocidente”, Com-panhia das Letras, São Paulo, 1999, pág.232.

17 Citado em “Le patrimoine culturel immatériel, miroir de la diversité culturelle” Guide de dis-cussion. Table Ronde des Ministres de la Culture, Istanbul, septembre 2002.

18 Guia de discussão para a 3ª Mesa Redonda dos Ministros da Cultura “O patrimônio cul-tural imaterial, espelho da diversidade cultural”. UNESCO, setembro 2002.

19 “Raça e história”, in: Antropologia Estrutural Dois, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 4ª edi-ção, 1993, pág.366.

20 Em todo o mundo, são faladas até hoje mais de 6.000 línguas distintas, a metade delas con-siderada “línguas em perigo”. 95% dessas línguas são faladas por apenas 4% da populaçãomundial, tratando-se em sua maioria, de línguas faladas por povos indígenas que vivem em70 paises de todos os seis continentes. Em alguns países mantém-se uma significativa diver-sidade lingüística. É o caso da Papua Nova Guiné (onde são faladas 832 línguas), Indonésia(731), Nigéria (515), Índia (400), México (295), República dos Camarões (286), Austrália(268) e, finalmente, Brasil (234).

21 O programa contou com apoio inicial do PDA-MMA e prossegue através a Secretaria deExtensão e Assistência Técnica Rural do Governo do Acre desde 2001. Ver “Implantaçãode tecnologias de manejo agroflorestal em terras indígenas do Acre” CPI/AC. ExperiênciasPDA n.3. Agosto de 2002.

22 A candidatura dos Wajãpi à seleção da UNESCO, encaminhada pelo Ministério da Cultura,foi uma iniciativa do Museu do Índio/Funai. Em dezembro de 2002, a arte gráfica kusiwarãfoi registrada como Patrimônio Cultural Brasileiro, pelo Conselho do IPHAN, nos termosdo Decreto n. 3551/2000. Tanto esse registro como a candidatura submetida à UNESCO,atenderam a solicitação dos principais chefes e dos professores indígenas, representadosno Conselho das Aldeias Wajãpi/Apina, com o qual o Museu do Índio já vinha mantendo

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parceria desde 2001, no âmbito de preparação e montagem da exposição “Tempo e Espa-ço na Amazônia: os Wajãpi”. A discussão, nas aldeias, do plano de ações submetido àUNESCO, foi assessorada por pesquisadores do Núcleo de História Indígena e do Indi-genismo da USP com a colaboração do Iepé. O Núcleo de Educação Indígena da Secre-taria de Educação do governo do estado do Amapá também apoiou a candidatura.

23 No período de 2005 e 2006, essas ações foram realizadas com apoio financeiro da Petro-brás, do IPHAN/MinC e de um convênio com a Secretaria de Educação do Amapá. Para aassessoria antropológica, contou-se com apoio do NHII-USP e de um projeto financiadopela FAPESP.

24 Utilizamos aqui as definições acordadas em 2002 por especialistas convocados pelaUNESCO (Le patrimoine culturel immatériel, Internationale de l´imaginaire n.17, Maisondes Cultures du Monde, 2004, pp. 230-236).

25 Documento-base da Reunião “Novas abordagens para a diversidade cultural: o papel dascomunidades” UNESCO, Havana, fevereiro 2006.

26 “La tradition orale n´est plus ce qu´elle était” Dossier Sciences Humaines, vol. 159. 2005.

27 “Immatériel, mais bien réel”. Courrier Unesco, setembro 2001.

28 “A domesticação do pensamento selvagem” (1997), Ed.70, Lisboa, 1988.

29 O texto da Declaração foi aprovado na primeira reunião do recém-criado Conselho deDireitos Humanos da ONU, em 29.06.2006, por 30 dos 47 países com direito a voto noconselho. Apenas dois se posicionaram contra o texto, Canadá e Rússia. A votação teveainda 10 abstenções e cinco ausências. Além dos representantes dos estados membros daONU, a elaboração do documento teve a participação de lideranças indígenas, entre elesAzelene Kaingang, do Warã Instituto Indígena do Brasil.

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Agradecimentos

Anne-Gaël Bilhaut

Catherine Gallois

Joana Cabral de Oliveira

Jussara Gomes Gruber

Lúcia Hussak van Velthem

Priscila Matta

Renato Antonio Gavazzi

Silvia Pellegrino

NHII-USP

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Créditos das ilustrações

Acervo Museu Paraense Emílio Goeldi: páginas 42, 43

Anne-Gaël Bilhaut: página 66

Denise Fajardo Grupioni: páginas 25, 38, 47, 48, 52, 53, 79

Dominique Tilkin Gallois: capa e páginas 36, 37, 63, 69, 71, 81

Gelson Pastana Macial: página 44 (desenho 1)

Giuliana Henriques: páginas 59,70

Jaizinho Mauricio Monteiro: página 51 (desenho)

Jamy Wajãpi: página 41 (desenho)

Jeaby Zo´é: página 35 (desenho)

Joana Cabral de Oliveira: páginas 28, 29, 55

Justino Tiriyo: página 8 (desenho)

João Otaviano do Carmo: página 67 (desenho)

Jussara Gomes Gruber: página 66

Laércio Fidelis: página 50

Lúcia Hussak van Velthem: páginas 43, 60

Luis Donisete Benzi Grupioni: páginas 22, 32, 33, 46, 49, 76

Lux Vidal: página 31 (foto 2), 45 (foto 3), 55 (foto 2), 56 (foto 1)

Moritz Ordermann: página 68

Paulo Copolla: página 31 (foto 1)

Paulo Silva: página 45 (desenho)

Parika Wajãpi: página 40 (desenho)

Tõre Zo´é: página 34 (desenho)

Participantes Galibi-Marworno oficina aldeia Tukay: página 44 (desenho)

Ugo Maia Andrade: páginas 45 (fotos 1 e 2), 51, 54, 56 (foto 2), 57 (fotos 1, 2, 3), 75

Desenhos de bordas e grafismos: participantes de oficinas Wajãpi e Tiriyó

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P314 Patrimônio cultural imaterial e povos indígenas : exemplos no Amapá enorte do Pará / Dominique Tilkin Gallois (organizadora). – [São Paulo] :Iepé, 2006.

96 p. ; il.

ISBN 85-98046-02-7

1. Índios sul-americanos : Brasil : patrimônio cultural imaterial 2. Cultura indígena : Brasil I. Gallois, Dominique Tilkin

CDD 572.981CDU 572.7

Catalogação na publicação: Ana Vera Finardi Rodrigues – CRB 10/884

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Agradecimentos

Anne-Gaël Bilhaut

Catherine Gallois

Dagmar Cremer

IPHAN-MinC

Joana Cabral de Oliveira

Jussara Gomes Gruber

Lúcia Hussak van Velthem

Priscila Matta

Renato Antonio Gavazzi

Silvia Pellegrino

NHII-USP

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IepéInstituto de Pesquisa e Formação emEducação Indígena

O Instituto Iepé é uma entidade dasociedade civil, sem fins lucrativos,criada em 2002. Tem por objetivo contribuir para o fortalecimento cultural e político e para o desenvolvimento sustentável dascomunidades indígenas que vivemno Amapá e norte do Pará, proporcionando-lhes assessoria especializada e capacitação técnicadiversificada.

Escritório em Macapá:Av. Ataíde Teive 525/altos Trem 68906-270 Macapá, APTel: (96) 3223 7633Fax: (96) 3223 2052E-mail: [email protected]

Escritório em São Paulo:Rua José Eduardo Nunes 138 Vila Sônia05625-110 São Paulo, SPTel/Fax: (11) 3746 7912E-mail: [email protected]

www.institutoiepe.org.br

Cada povo tem seus modos de conhecer, de ser, de dizer, de fazer. JovensWajãpi, reunidos numa oficina de pesquisa, entenderam que o patrimôniocultural imaterial abrange saberes e práticas das mais variadas:

jeito de respeitar os velhos jeito de subir no açaizeiro jeito de abrir caminhos jeito de fazer utensílios jeito de plantar roça jeito de respeitar religião jeito debotar timbó no rio jeito de fazer casa jeito de plantar mortos no cemitério jeitode trabalhar na organização indígena jeito de torrar farinha jeito de fazer rede jeito de ensinar aluno jeito de criar os filhos jeito de fazer política jeito debrigar jeito de trocar jeito de distribuir jeito de fazer beiju jeito de brincar jeito de fazer fogo jeito de educar criança jeito de garimpar jeito de fazercanoa jeito de caçar jeito de construir tapiri jeito de marcar o tempo jeito dedormir jeito de passar notícia jeito de brincar jeito de usar a floresta jeito de educar jeito de ocupar a terra jeito de tomar banho e cagar jeito de namorar jeito de cozinhar jeito de comer jeito de falar jeito de dividir o trabalho jeito

de fazer caminho jeito de pescar jeito de conversar jeito de ensinar jeito desentir vergonha jeito de plantar roça jeito de cuidar das plantas jeito de darnome jeito de ganhar dinheiro jeito de ensinar na escola jeito de criar os filhos jeito de cuidar dos espíritos jeito de pintar o corpo jeito de criar animais jeito de se enfeitar jeito de fazer festa jeito de casar jeito de respeitar Janejarã jeito de dormir jeito de tomar banho jeito de torrar farinha jeito de cuidar da

moça jeito de fazer caxiri jeito de plantar no pátio jeito de escrever