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PATRÍCIA MELO

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Não é câncer ou insuficiência renal. Não é coração. É outra coisa, ela pensa, é uma fortuna de 12 bilhões de neu rô-

nios começando a ser dilapidada. É também uma doença me-tafísica que, para alguns, vem junto com a aposentadoria. A rapidez com que tudo acontece é assustadora: num dia, você é o chefe da casa. No outro, anda de pantufas, sem objetivos, esquecendo coisas, e de repente já estão enfiando pílulas na sua boca, controlando o que você gasta, o que você come. Pelo menos com seu pai foi assim. Aos poucos, o velho foi se cur-vando, encolhendo, apagando. É disso que ele vai morrer em breve. Na verdade, já está morrendo. Dia após dia, ela o vê apodrecendo, como uma árvore centenária que só precisa de uma boa tempestade para tombar. Seu censor interno vem api-tando há tempos: está chegando o dia. Ela odeia ter ciência do fato, mas tem. Por esta razão inventou aquela viagem. O pretex-to são os 80 anos do patriarca. Para ela, porém, é uma des pe-dida secreta. Não quer que ele se vá sem isso: sem conhecer aquela terra, aquela arena, sem ouvir todos aqueles cantores.

Da mesa onde está, Azucena Gobbi vê os pais saltarem do elevador e caminharem em direção oposta ao restaurante. Da-ma so avança em passos mínimos, inseguro, os olhos miúdos

grudados no chão. A mãe vai na frente, com sandálias ortopé-

dicas que fazem seus pés parecerem maiores.

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Quando Azucena se levanta para resgatá-los, os turistas das

mesas ao lado se viram para olhá-la. Não é bonita. Mas tem um

tipo atlético, longilíneo, e olhos azuis que desviam a atenção

do nariz com o ossinho saltado que ela tanto odeia.

Com um aperto no coração, ela se dá conta, mais uma vez,

de que aquele homenzinho lá na frente, seguindo a esposa co-

mo um cachorro obediente, não tem mais nada a ver com

o delegado de Guarulhos da sua infância, o velho leão carcama-

no – como era conhecido na cidade. “Pai”, ela diz, aproximan-

do-se pelas costas. “É do outro lado”, indica.

Agora, com Damaso apoiado no braço direito, ela volta pa-

ra o restaurante, seguida pela mãe, que reclama do ar- condi-

cionado.

O dia foi intenso. Logo cedo, Washington, delegado titu-

lar da Central Paulista de Homicídios – onde ela coordena o

Setor de Perícias –, telefonou para checar o calibre da arma

que matou três policiais no centro da cidade. Estou de férias,

ela teve vontade de responder. Mas conhece bem a engrena-

gem que entra em movimento em tempos de crise, quando

aumenta o número de homicídios na cidade. Já aconteceu ou-

tras vezes: o governador toma conhecimento dos índices negros

e começa o dia dando porradas no secretário de Segurança,

que, num efeito dominó, pressiona o delegado titular, e este,

por sua vez, mete as botas na equipe da Central. Mas o botão

play da engrenagem é a imprensa. E a imprensa está dando o

maior destaque para a matança de policiais que vem ocorren-

do na cidade.

“Agora os caras estão de sacanagem: começaram a com-

parar São Paulo à Colômbia”, disse Washington. Poderia ser

pior, ela sabe, poderiam falar em estado falido, não falta mui-

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to para chegarem lá. Washington é obrigado a baixar todo dia

no gabinete do secretário para prestar contas. “Como se São

Paulo fosse pior do que o resto do Brasil, e não o contrário. Como se matássemos mais. Não somos João Pessoa. Não es-tamos no Rio de Janeiro. As facções criminosas daqui estão acéfalas. Não há um comando unificado. Que história é es- sa de falar em guerra? Esses escrotos”, ele disse, referindo-se aos jornalistas. “Esse bando de alarmistas estão fodendo a mi-nha vida.”

Na entrada do restaurante, ela nota um senhor grisalho, acompanhado de uma mulher bem mais jovem. “É o regente da Aída que vimos ontem”, cochicha no ouvido do pai. A ópera é a única coisa capaz de injetar algum ânimo no velho. Por um momento, o rosto de Damaso se ilumina. Na comemoração de aniversário, estão incluídos ingressos para La Bohème e O Bar-

beiro de Sevilha na arena de Verona.Não foi possível reunir todos os Gobbi. Giulia, a irmã ca-

çula, vai mal no curso de biologia e permanecer em Guarulhos nas férias da universidade é seu castigo. Na realidade, se Giu-lia não fosse uma boa estagiária na perícia da Central, Azucena pensaria duas vezes antes de descartá-la da comemo ração. Humor ácido, radiância juvenil e um jeito saltitante de surgir e desaparecer de cena fazem da garota um eficaz antídoto con-tra a pasmaceira dos encontros familiares e um verdadeiro contrapeso a Ana, a irmã do meio, em início de gra videz, que acaba de se juntar a eles no restaurante. O zumbi do celular. É esse o apelido que Azucena lhe deu na viagem. A Central está entupida de pessoas como Ana, gente sem es tamina, em-botada, que não consegue tirar os olhos da tela de seus celula-res, gente que tecla o tempo todo, tecla enquanto fala com você, tecla enquanto dirige a viatura, tecla enquanto carrega o

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cadáver, gente que tecla mais do que vive, mas o caso de Ana, ela pensa, com sua alienação, sua monumental falta de assunto,

parece próximo à idiotia.

Prometeu a si mesma não se irritar com ela, nem com

a mãe. Mas tem sido difícil. Quando o garçom vem tomar o

pedido, Jandira dá um show à parte. Fala português pausada-

mente, num tom acima do necessário, como se estivesse diante

de uma criança surda. Confere cada prato, preço, faz conver-

sões do euro para o real e, por fim, declara estar sem fome.

Desde que chegaram, Azucena notou algo inédito: Jandira

se comporta como se o marido não estivesse presente. A inver-

são de papéis é clara: agora que o leão perdeu os dentes, a dona

de casa quer se vingar de uma longa vida de submissão.

Quando os pratos chegam, Damaso está identificando as

fotos que cobrem as paredes: Callas, Franco Corelli, Mirella

Freni, Carlo Bergonzi Pavarotti, Renata Tebaldi, Ghena Dimi-

trova, Giuseppe di Stephano e Maria Caniglia. Está alegrinho, a

memória lúcida, certamente é o vinho se espalhando no san-

gue, ela pensa, enchendo outra vez a taça do velho. Jandira

avisa: vai contar tudo para o doutor Alceu. Repete a ameaça

cinco, seis vezes, durante o jantar: “Se ele tiver outro ataque de

amnésia, o problema será seu.” Não foram muitos episódios.

Quatro, e bem pontuais. Num domingo, ele esqueceu o cami-

nho de casa, ao voltar do jogo de gamão na praça. Em outra

ocasião, esqueceu Jandira no cinema.

O médico foi bem claro: “Seu pai não tem Alzheimer. É ou-

tra doença, chamada velhice.”

A mãe não aceita a decadência do marido. Se fosse perita,

pensa Azucena, já estaria resignada. Os peritos envelhecem rá-

pido. Os delegados também.

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“Feliz aniversário, papai”, ela diz erguendo a taça e se es-

forçando para criar um clima de celebração naquela noite.

Antes de saírem para a arena, toma coragem, vai até a mesa

ao lado e pede um autógrafo ao regente. A jovem no mi cro-

vestido que acompanha o maestro, meio de pileque, dá um

beijo ao lado da assinatura. São amantes, Azucena percebe.

“Ela também quis autografar”, diz ao pai, ao mostrar o pa-

pel arrancado de sua agenda, onde se lê: “To Damaso, most sin-

cerely, Gilbert Wannick.”

As ruas da cidade estão tomadas por japoneses, corea nos

e russos. São turistas. Não estão ali por causa das óperas. Que-

rem se divertir, e a ópera é uma espécie de torre Eiffel que de-

vem conhecer e fotografar. Acorrem à arena, em rebanhos,

esperando ver efeitos cênicos, desfile de tropas vencedoras,

engolidores de  fo go, prisioneiros etíopes, elefantes e cavalos,

ou qualquer cena grandiosa.

Ana e Jandira vão à frente, parando nas esquinas onde afri-

canos, recém-chegados à Itália, vendem réplicas de bolsas da

Gucci e da Prada.

Azucena e o pai caminham de braços dados. Ele não enten-

de como o regente da ópera a que assistiram na noite anterior

foi capaz de colocar o coro de costas para a plateia. De onde

vem uma ideia dessas?

“Do diabo”, diz a filha. “Não dava para ouvir nada.”

Momentos depois, a família está acomodada na plateia. São

16 mil pessoas na arena, e cada uma delas segura uma lanter-

na ou um isqueiro aceso, criando um efeito grandioso. Quando

o palco é transformado no café Momus e a choldra parisien-

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se entra em cena, trazendo bandeiras, bicicletas, pernas de

pau, balões, fogos de artifício e todos os recursos para levar

o pú blico ao delírio, Azucena olha para o lado e vê que o pai

dorme.

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