patativa do assarÉ: poesia, profecia e performance · na antecipação de uma cegueira definitiva...

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BH/UFC DOS S I Ê PATATIVA DO ASSARÉ: POESIA, PROFECIA E PERFORMANCE A ntônio Gonçalves da Silva, nascido dia 5 de março de 1909, na serra de Santana, dis- tante 18 quilômetros de Assaré, teria a mesma sina de tantos outros que traba- lharam a terra, casaram, ti- veram filhos e deixaram poucas marcas, não fosse a excelência de uma produ- ção poética que surpreende pela possibilidade de novas descobertas e angulações. É isso que faz de Patativa do Assaré, um autor, lúcido e, cada vez mais afiado na críti- ca social, e, numa compre- ensão generosa do mundo, uma referência da poesia cearense de todos os tempos. A partir de sua aldeia, ele elevou sua voz, que se fez universal, na invenção de uma poesia que, a partir de uma inserção no presen- te, donde a consciência de cidadania que ele tem, se volta para o passado (a tra- dição) e se projeta para o futuro, assumindo a dimen- são de profecia. EM BUSCA DA INFÂNCIA Santana, não estavam sub- metidos a regimes feudais, tipo meia ou quarta, onde o dono da terra fica com a parte do leão. Essa terra, di- vidida entre seus irmãos, após a morte prematura do pai, quando o futuro poeta tinha apenas oito anos, dá a exata dimensão de um compromisso com o traba- lho do campo, que o futuro Patativa praticaria até os setenta anos e que vai ser fundamental na compreen- são do homem e do poeta. Aos quatro anos de idade, o primeiro drama, com a perda de um olho. Na autobiografia, ele fala em dor d' olhos, em outros momentos se fala em saram- po. Quando perguntei a ele de que tinha sido mesmo, a resposta, resignada, me dei- xou meio sem graça: "Que diferença faz? O importante é que eu perdi um olho". Na busca de um nexo, que pode até ser for- çada, esse fato poderia ser a antecipação de um destino, como se ao pe- queno Antonio coubesse manter a tradição de um Homero sertanejo, ser uma projeção de Camões ou ter a grandeza do violeiro Aderaldo, na antecipação de uma cegueira definitiva que viria muitos anos depois. O mundo, para o menino, se resumia à serra, que ele hoje relembra como densa de verde, encorpada, aos poucos devastada para a GILMAR DE CARVALHO* RESUMO o texto tenta dar conta das relações entre vida e obra a partir da poética de Antonio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré. As preocupações são no sentido de verificar em que medida o cotidiano pode servir de matéria poética e qual a medida em que as tradições se atualizam e permanecem, reescritas e apropriadas pela figura de um autor. Tambémfazem parte das discussões a gênese do processo criativo, em que fazer poesia está sincronizado com o trabalho na agricultura, as questões relativas à memória, como forma de apreensão e de sedimentação do poema e o processo singular de Patativa de acumulação de versos que se petrificam no conjunto final. O artigo reflete sobre as relações do poeta com a mídia, das tensões de sua apropriação pela Indústria CuHurale pela política partidária e de sua consciência crítica que levariam à formulação de uma "poesia cidadã", que não abre mão de sua contundência e de sua inserção no contexto social, sem recorrer a clichês nem se transformar em um man~esto. Uma poesia que tem suas raízes na oralidade e se perfaz na performance, baseando-se no passado, enunciando o presente e apontando para o futuro, poesiae profecia, como diria Paul Zumthor, porte - voz dos excluídos, intérprete de uma dicção popular que tem raízes eruditas e que se amplifica no contexto das cuHurasde massas. • Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo e Professor Adjunto do Departamento de Comunicação Social e Biblioteconomia da UFC. Coordena Grupo de Estudos sobre Comunicação e Culturas Populares. o menino teve um diferencial que ajuda a compreender sua altivez, sua dignidade e sua inserção social: Antonio era filho de pequenos proprietários da terra. Seus pais, na serra de 28 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS V. 30 N. 1/2 1999

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Page 1: PATATIVA DO ASSARÉ: POESIA, PROFECIA E PERFORMANCE · na antecipação de uma cegueira definitiva que ... coletivas de folhetos de cordel e o ponteio das ... uma versão de Asa Branca,

BH/UFC

DOS S I Ê

PATATIVA DO ASSARÉ:POESIA, PROFECIA E PERFORMANCE

Antônio Gonçalves daSilva, nascido dia 5 demarço de 1909, naserra de Santana, dis-

tante 18 quilômetros deAssaré, teria a mesma sinade tantos outros que traba-lharam a terra, casaram, ti-veram filhos e deixarampoucas marcas, não fosse aexcelência de uma produ-ção poética que surpreendepela possibilidade de novasdescobertas e angulações. Éisso que faz de Patativa doAssaré, um autor, lúcido e,cada vez mais afiado na críti-ca social, e, numa compre-ensão generosa do mundo,uma referência da poesiacearense de todos os tempos.

A partir de sua aldeia,ele elevou sua voz, que sefez universal, na invençãode uma poesia que, a partirde uma inserção no presen-te, donde a consciência decidadania que ele tem, sevolta para o passado (a tra-dição) e se projeta para ofuturo, assumindo a dimen-são de profecia.

EM BUSCA DA INFÂNCIA

Santana, não estavam sub-metidos a regimes feudais,tipo meia ou quarta, onde odono da terra fica com aparte do leão. Essa terra, di-vidida entre seus irmãos,após a morte prematura dopai, quando o futuro poetatinha apenas oito anos, dáa exata dimensão de umcompromisso com o traba-lho do campo, que o futuroPatativa praticaria até ossetenta anos e que vai serfundamental na compreen-são do homem e do poeta.

Aos quatro anos deidade, o primeiro drama,com a perda de um olho.Na autobiografia, ele falaem dor d' olhos, em outrosmomentos se fala em saram-po. Quando perguntei a elede que tinha sido mesmo, aresposta, resignada, me dei-xou meio sem graça: "Quediferença faz? O importanteé que eu perdi um olho".

Na busca de umnexo, que pode até ser for-çada, esse fato poderia ser

a antecipação de um destino, como se ao pe-queno Antonio coubesse manter a tradição deum Homero sertanejo, ser uma projeção deCamões ou ter a grandeza do violeiro Aderaldo,na antecipação de uma cegueira definitiva queviria muitos anos depois.

O mundo, para o menino, se resumia àserra, que ele hoje relembra como densa deverde, encorpada, aos poucos devastada para a

GILMAR DE CARVALHO*

RESUMO

o texto tenta dar conta das relações entre vida eobra a partir da poética de Antonio Gonçalves daSilva, o Patativa do Assaré.

As preocupações são no sentido de verificarem que medida o cotidiano pode servir de matériapoética e qual a medida em que as tradições seatualizam e permanecem, reescritas e apropriadaspela figura de um autor.

Tambémfazempartedas discussões agênesedo processo criativo, em que fazer poesia estásincronizado com o trabalho na agricultura, asquestões relativas à memória, como forma deapreensão e de sedimentação do poema e oprocesso singular de Patativa de acumulação deversos que se petrificam no conjunto final.

O artigo reflete sobre as relações do poetacom a mídia, das tensões de sua apropriação pelaIndústria CuHurale pela política partidária e de suaconsciência crítica que levariam à formulação deuma "poesia cidadã", que não abre mão de suacontundência ede sua inserção no contexto social,sem recorrer a clichês nem se transformar em umman~esto.

Uma poesia que tem suas raízes na oralidadee se perfaz na performance, baseando-se nopassado, enunciando o presente e apontando parao futuro, poesiae profecia, como diria PaulZumthor,porte - voz dos excluídos, intérprete de uma dicçãopopular que tem raízes eruditas e que se amplificano contexto das cuHurasde massas.

• Doutor em Comunicação e Semiótica pelaPUC de São Paulo e Professor Adjunto doDepartamento de Comunicação Social eBiblioteconomia da UFC. Coordena Grupo deEstudos sobre Comunicação e CulturasPopulares.

o menino teve um diferencial que ajudaa compreender sua altivez, sua dignidade e suainserção social: Antonio era filho de pequenosproprietários da terra. Seus pais, na serra de

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agricultura e para a construção das casas, quan-do a família cresceu e fez do distrito de Assaréum marco afetivo e poético.

O tempo de escola foi escasso. O profes-sor era muito fraco, segundo as lembranças atu-ais de Patativa, mas a gratidão é forte. Os livroseram o de leitura de Felisberto Rodrigues Perei-ra de Carvalho, editados, a partir de 1892 (até1959), pela Livraria Francisco Alves e que disse-minaram as letras pelo interior do Brasil: "foi oslivros de valô/ mais maió que vi no mundo".

O lazer era de contemplação, das brinca-deiras de outrora e ficaram retidas as leiturascoletivas de folhetos de cordel e o ponteio dasviolas que se perfilavam para a peleja verbal. Omenino Antonio, deslumbrado com a possibili-dade da inventiva, que se lhe abria, tomavaconsciência de que também seria capaz de im-provisar uns versos ou extrair das cordas, amusicalidade e a agilidade que engendram asmodalidades do repente. Nascia a vocação po-ética, amadurecida ao longo de uma vida inteira.

A serra era e ainda hoje é seu ideal deparaíso, o lugar onde ele é feliz e para ondefoge, quando se cansa de Assaré, das interminá-veis visitas e quando busca o cheiro do mato, ocantar de alguma perdida patativa ou os longostorneios poéticos que ele desenvolve com seusparceiros (ou rivais).

A serra guarda, como uma relíquia, amaior parte da casa onde ele nasceu, paredede taipa, ocre, se projetando contra o céu azule se expandindo em direção ao chão, tambémdo mesmo barro de que ele e todos somosfeitos.

A casa velha, onde hoje mora o irmãomais novo, Pedro, também mantém os silos demetal que armazenavam a colheita, o fogão delenha e muitas saudades que ele partilha com oirmão, que foi o único a ousar algum vôo poé-tico, sem atingir a dimensão de Patativa.

O pai morreu quando ele tinha oito anose ele descobriu, depois, uma dedicatória emum livro que denunciava o poeta, que ele po-deria ter sido, e relembra umas quadras humo-rísticas, feitas para insultar um parente sovina,que aproveitava pregos enferrujados e "vendiacachaça como se fosse vinho do Porto".

Da mãe, as lembranças são maiores eincluem uma voz nostálgica que entoava umacanção da tradição popular, uma versão de AsaBranca, que, algum tempo depois, retrabalhadapor Humberto Teixeira e interpretada por LuísGonzaga se transformaria em um manifesto so-cial e estético de nossa região.

Que segredos teria aquele menino queobservava tudo, se ligava à terra, ao imagináriode sua gente e esboçava as primeiras tentativasde criação, nas noites sertanejas?

RETRATO DO JOVEM POETA

A morte do pai significou a divisão, nãodas terras, mas das tarefas e o menino Antoniose ligou cada vez mais à sua serra, lugar idí-lico para ele, uma espécie de sertão elevado,com muitas pedras e sem as nascentes, que osenso comum atribui a esse tipo de acidentegeográfico.

A serra de Santana é muito mais um es-paço afetivo, do domínio da memória. Ela cris-taliza, não apenas o paraíso, mas uma concepçãode terra partilhada, um ideal solidário, de umacomunidade cristã, que se alia a um socialismoutópico, na explicação do mundo.

Aos dezesseis anos, o garoto convenceu amãe a vender uma ovelha para comprar a pri-meira viola. É outro momento inaugural de suatrajetória. De viola em punho, Antonio buscariaos parceiros para suas apresentações. Fazia pe-quenos jogos, quadrinhas, para distrair osmatutos, como ele avalia hoje.

Começaram os pedidos para apresenta-ções nos sítios das redondezas, nas festas decasamentos e aniversários, nas reuniões à noi-te, não em volta das fogueiras, como nas vigíli-as medievais, mas nos alpendres das casas, nosterreiros nas noites de luar. O aprendiz derepentista dava sinais de que usaria a viola nãoapenas como um passatempo.

Foi quando chegou à serra, para uma vi-sita à família, José Montoril, o Cazuzinha, quemorava no Pará. O visitante se encantou peloimproviso do jovem Antonio e quis levá-lo parauma temporada na Amazônia.

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Difícil foi convencer a mãe renitente. "Na-quele tempo, filho vivia na barra da saia",relembra, hoje, Patativa, e com ele não foi dife-rente. A viagem aconteceu porque Cazuzinhaera parente próximo e se comprometeu a man-dar Antonio de volta.

No mais, é imaginar as dificuldades dechegar a Fortaleza, depois de pegar o trem noCrato e embarcar num velho Ita, como na can-ção popular. E o impacto da água para quemsaía de uma terra castigada pelas secas.

Antonio chegou a Belém fazendo versosbem humorados: "Quando eu entrei no Pará/achei a terra maió/ vivo debaixo de chuva/ maspingando de suó!". A partir daí, foi visitarMacapá, e cumpriu o roteiro das "colônias" denordestinos, que se estabeleciam às margens daferrovia, hoje desativada, que, partindo da ca-pital, chegava a Bragança. Lá, ele cantou commuitos, nordestinos como ele, que, fugindo dassecas, tentavam uma vida melhor.

Quem morava em Belém, nesse período,era o jornalista cratense José Carvalho de Brito,que, ao ouvir o canto mavioso de Antonio, re-solveu "crismá-lo" como Patativa. Brito registraesse acontecimento no livro O matuto cearensee o caboclo do Pará, lançado em 1930 e reeditadopela UFC, em 1973.

Na volta, uma carta de apresentação paraa Dra. Henriqueta Galeno e a possibilidade deconhecer o velho Juvenal, "de barbas brancas,vestindo uma camisola branca, em uma redebranca, parecendo uma visão".

Era o encontro de duas atitudes diante deuma poesia de dicção popular: o velho Juvenal,que se baseara nos cantos de vaqueiros e janga-deiros, por sugestão de Gonçalves Dias, a quemconhecera quando da expedição científica de1859, e o jovem Patativa que consubstanciava opopular e não utilizava essa linguagem comouma opção estética, mas como fruto de umavivência.

Finda a viagem, Patativa volta à serra, aotrabalho no campo e às apresentações. Até in-corporar a seu nome sua procedência geográfi-ca, dada a profusão de patativas, que chegava aincluir um Presidente da República, o paraibanoEpitácio Pessoa, conhecido como Patativa do

Norte. A partir de então, Antonio Gonçalves daSilva, passaria a ser Patativa do Assaré.

o HOMEM MADURO

Plácido Cidade Nuvens, estudioso da vidae da obra do poeta chama a atenção para o fatode Patativa ter-se refugiado na serra, entre 1930e 1955, e composto a maior parte de sua obra,sem holofotes, sem reconhecimento e sem aplau-sos, a não ser o dos conterrâneos, embevecidospor seu canto.

Aliás, ainda de acordo com o poeta, apatativa seria um pássaro pequeno, de colora-ção acinzentada, cuja principal característicaseria a de se esconder dentro da mata e imitar ocanto de muitos pássaros. Essa metáfora,camaleônica, seria uma explicação para osmúltiplos cantares de Patativa do Assaré, dadicção nos moldes da norma culta à poesiamaruta, do telúrico ao social, do gracejo à suadesconhecida produção erótica.

Em 1936, Patativa se casa com BelarminaPaes Cidrão, a dona Belinha, companheiraamorosa, morta em 1994, tema que emocionamuito o poeta, que só consegue dizer que foi amulher de sua vida, o que deixa sua vozembargada e convida seu interlocutor a buscarum assunto menos amargo.

Deste casamento nasceram nove filhos,dos quais sete são vivos hoje: as três mulheres(Lúcia, Inês e Miriam) que mereceram um poe-ma, os três agricultores (Afonso, Pedro e Geral-do) e João, que vive em São Paulo.

Deste período, as lembranças são a casana serra, onde hoje mora dona Miriam, em cujafrente se ergue o flamboyant, citação em umpoema, que canta sua floração.

Desta casa, o casal saiu para morar emAssaré, no final dos anos 70, instalando-se à ruaCoronel Pedro Onofre, 27, ao lado da Matriz, jáque dona Belinha, muito religiosa, queria a pro-ximidade de uma igreja para fazer suas orações.

Em todo esse período, que vai de 1930 a1955, o que se pode afirmar é que a poesia dePatativa foi difundida pela transmissão oral. Éonde não se pode perder de vista a importância

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das cantorias que fazia, dos parceiros que subi-am a serra apenas para encontrá-lo e da semen-te da comunidade poética que de lá brotaria,algum tempo depois.

Patativa fala de alguns parceiros, comoJoão Alexandre, ainda hoje vivo e morando emJuazeiro do Norte, seu rival em várias apresen-tações e do roteiro que cumpria, que abrangiaum raio mais amplo, incluindo cidades da re-gião centro - sul e outras da fronteira da Paraíbae Pernambuco.

Esse Patativa oral cristaliza a essência desua poesia, que é para ser dita e ouvida, e quetem nessa dimensão, da voz e da performance,seu elemento definidor.

É quando se pode falar em seu processocriativo, solitário, muitas vezes ao capinar, quan-do imaginava uma cena e os versos se acumu-lavam, como se fossem camadas. Depois, era sócopiar e o poema estava pronto. Desse exercí-cio, deve ter vindo sua capacidade de memori-zar, que é fabulosa, e que permite que, àsvésperas dos noventa anos, ela seja capaz dedizer de cor, poemas longuíssímos, sem confun-dir um verso sequer.

Patativa diz que sua memória antiga estápetrificada e nunca trabalhou, braçalmente, umverso, como os poetas de bancada, na busca deuma palavra exata, de uma rima rica ou de umacadência melódica. A poesia dele brotava comoda terra, como sua roça de feijão ou de milho.E, aos poucos, o distanciou da cantoria que,ele, de certo modo, abandonou depois de ga-nhar uma viola de Miguel Arraes, então prefeitode Recife, quando se apresentou em um SãoJoão Popular, no sítio Trindade, naqueles tem-pos efervescentes, antes do golpe militar de 64.

Mas, paradoxalmente, um instante decisi-vo de sua trajetória vai ser a passagem para olivro e a sua poesia ganhar a dimensão impres-sa. É o que irá assegurar a sua permanência e aimportância que sempre lhe foi devida.

PATATIVA POR ESCRITO

Entre o oral, em suas múltiplas instânciasde transmissão, de memorização e de repeti-

ção, de uma poesia que se completa naperformance e se sustenta na voz, e a possibili-dade do impresso, que se lhe abriu, em meadosdos anos 50, houve, curiosamente, a mediaçãodos meios de comunicação, no caso o rádio.

Os Diários Associados chegaram ao Crato,em março de 1946, espalhando os tentáculos domaior império de comunicação que este paísjamais tivera, com a inauguração da rádioAraripe.

Esta cidade, então o grande centro co-mercial do Cariri, reunia, às segundas-feiras,pessoas de todas as localidades de sua área deinfluência, atraídos pela festiva reunião paracompra, venda e troca de tudo o que a regiãoproduzia.

A feira do Crato, ainda hoje, é uma babeide pregões, com suas rapaduras escuras, seusapetrechos de couro, seus móveis com desenhopopular. Apesar dos plásticos e da parafernáliaimportada do Paraguaí, ela não perdeu sua corlocal.

Para Patativa, a feira era a possibilidadede vender sua produção, de comprar o que suafamília necessitava e, principalmente, uma for-ma de lazer, de reencontrar os amigos, de umpapo embalado por uma caninha dos alambi-ques do vale.

Esses passeios sempre rendiam uma visi-ta à rádio Araripe, onde declamava seus poe-mas. E é significativo que isso tenha se dadonos anos 50 e que colida com as teorias insus-tentáveis de um "popular genuíno", quandohavia a possibilidade da amplificação massivade sua voz e de sua produção poética.

Em um instante em que vigoram as ver-tentes que envolvem o popular com o massivo,o caso Patativa é bastante elucidativo do poderda mídia e da não recusa do poeta, em suaintegridade, e firme em sua decisão de não fa-zer comércio de sua lira, de participar destaprogramação.

Foi em uma dessas manhãs de feira, queo intelectual cratense José Arraes de Alencar,radicado no sudeste, ouviu um poema por meiodas ondas do rádio. Gostou muito e quis saberde quem se tratava: "de um poeta de Assaré,chamado Patativa", foi a resposta ..

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José Arraes fez questão de conhecê-lo efez chegar à rádio o recado para que ele passas-se por sua casa. A proposta veio, incontinenti: apublicação de um livro.

Patativa, desconfiado, agradeceu, masdisse que não tinha meios para bancar os cus-tos. Arraes se comprometeu a negociar com acasa editora e tratou de montar o esquema parater logo os originais preparados, convencendoMoacir Mota, funcionário do Banco do Brasil,filho do lendário Leonardo, a datilografar ospoemas.

Negócio firmado, todos os dias de feira,Patativa se encontrava com Moacir, e o livro co-meçava a ganhar forma. Com prefácio de Arraese o selo de Borsoi Editores (Rio de Janeiro), Ins-piração Nordestina foi lançado, em 1956.

A poesia de Patativa ganhava novas pos-sibilidades de leitura, serviria de matriz paraoutras interferências e teria sua permanência as-segurada, superada a fugacidade da voz, com osuporte da impressão. De Assaré para o mundo,era apenas uma questão de pouco tempo e demuito talento.

DAS PARADAS DE SUCESSO À LUTA POLíTICA

Outra vez, o rádio foi fundamental na tra-jetória de Patativa. Uma de suas composições, a"Triste Partida", passou a ser incorporada aorepertório dos violeiros que ocupavam, cada vezmais, espaço na programação desse veículo.

Um dia, enquanto uma dupla cantava:"Setembro passou/ outubro e novembro/ já tamoem dezembro/ meu Deus que é de nós?", quemsintonizava essa emissão e se emocionou comessa canção foi Luiz Gonzaga, outra figura míticado Nordeste.

O "rei do baião" quis saber quem era oautor daquele canto dolente e, mais que isso,quis conhecê-lo. Soube que se tratava de Patativado Assaré e marcaram um encontro no Crato,proximidades da violenta Exu, onde os Alencare os Sampaio faziam a versão nordestina deuma vendetta italiana.

Encontro marcado, Luiz quis comprar acanção, como era freqüente na época. Patativa

recusou-se, peremptoriamente, até a dividir aparceria, mas concordou com a gravação, queveio em 1964. A "Triste Partida" incorporou-seao repertório do velho Lua e Patatíva passou ater seu canto amplificado nacionalmente.

O golpe de Estado encontra um Patativaafiado em sua consciência social e crítico daruptura institucional promovida pela aliança dosmilitares com as forças conservadoras.

O poeta passou a colaborar, com pseudô-nimo, com jornais da UNE, onde travou contatocom o então líder estudantil José Serra, que elelamenta que hoje tenha se afastado tanto dosprincípios que então defendia.

Patativa foi ameaçado de prisão, commandato, o que foi de certo modo relaxado porinterferência pessoal de um parente que tinhalaços com os prepostos da repressão e que teriarasgado o ofício em que o poeta era intimado adar um depoimento.

Instalou-se o clima de caça às bruxas ePatativa, em um determinado momento, teveque recuar e modificar um poema em que faziamenção ao líder comunista Luís Carlos Prestes,modificando a estrofe, para não sofrer novasameaças de retaliações.

Mas o poeta nunca foi de se dobrar e, noinstante seguinte, já era entrevistado pelo Movi-mento, onde também publicou um poema, emque se posicionava contra a expulsão do padreitaliano Vito Miracapillo.

Dois fatos, acontecidos em 1973, deixa-ram seqüelas: um atropelamento que compro-meteu sua perna e lhe faz usar uma muleta atéhoje e a apropriação de um de seus poemas,que lhe rendeu uma notoriedade que ele prefe-riria ter evitado. Seu "Vaqueiro" foi musicadopor Raimundo Fagner e incluído como "Sina",no disco "Manera Fru- Fru'', ainda que a autorianão lhe tenha sido atribuída. O affaire lhe ren-deu, posteriormente, a amizade com o compo-sitor de Orós, o que redundou na gravação de"Vaca Estrela e Boi Fubá" (980), em apresenta-ções em conjunto (Memorial da América Latina)e na homenagem, em forma de música,"Passarim de Assaré", parceria com Fausto Nilo.

Enquanto participava da luta pela anistiaaos presos e exilados políticos, com o contun-

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dente poema em que "o pinto bica a cascapara sair do ovo", Patativa subia aos palan-ques, emocionava multidões e se preparavapara ter seu Cante lá que eu canto cá publica-do pela Vozes, em 1978, e seu primeiro dis-co ("Poemas e Canções") lançado em 1979.

Aliás, foi o "Cante lá", que lhe deu o re-conhecimento dos meios intelectuais e possibi-litou sua leitura, por maiores contingentes depúblico, mercê de uma distribuição nacional.

Ainda em 1979, ele foi homenageadopela programação cultural do encontro da So-ciedade Brasileira para o Progresso da Ciência(SBPC), então o grande fórum contra o arbítrioe espaço da luta pela redemocratização do país.É neste contexto que ele participa do movi-mento "Massafeíra", no Theatro ] osé de Alencare prepara seu disco "A Terra é Naturá ", lança-do em 1981.

O Brasil que emerge de uma longa noitede supressão da liberdade de expressão, comnovos partidos políticos, movimentos sociais or-ganizados e uma expectativa de novos tempos,vai encontrar Patativa do Assaré, aos setentaanos, reconhecido como um intelectual queGramsci chamaria de "orgânico", com uma sa-bedoria de vida e uma visão crítica do mundo,que o transformaram em um símbolo apropria-do pelas esquerdas, que viam nele o poeta daresistência e, pela direita, que exaltava sua au-tenticidade, na valoração do tradicional, dogenuíno e da raiz, base de uma legitimaçãocultural.

Modesto, o sucesso não lhe subiu à cabe-ça. Ele continuou o mesmo poeta roceiro, o quenão impede de estar sintonizado com as trans-formações por que passa a sociedade, o que oleva a reclamar por uma reforma agrária, porum ideal de justiça social e pela denúncia dasmazelas, sem que sua poesia se transforme emum manifesto ou perca sua qualidade estética.

PÚBLICO E NOTÓRIO

Esse Patativa, reconhecido, vai ser perso-nagem de um filme de ]efferson de AlbuquerqueJr. e Rosemberg Cariry, rodado em 1984, em

cores, na bitola 16 mm, depois ampliada para36 mm. Vencedor de alguns festivais (Brasília,Bahia), esse curta se inscreveu como um mo-mento significativo do trabalho de sua figuracom imagens em movimento. Antes, ele tinhasido o protagonista de um super-8, do mesmoRosemberg, tecnologia que, defasada, faz comque sua exibição seja praticamente inacessível.

Neste mesmo ano, um grupo de conclu-dentes do Curso de Comunicação Social da UFC,fez um vídeo-documentário em que sua produ-ção poética e sua figura são exaltadas.

Exercitando, mais uma vez, sua cidada-nia e participando de um instante difícil da vidado Nordeste, assolado por enchentes, em 1985,Patativa fez a letra de "Seca d'Água", cuja melo-dia foi criação de um grupo de artistas, tendoFagner, Chico Buarque e Milton Nascimento àfrente. Mesmo ano em que, por meio de umprojeto cultural, o Banco do Estado do Cearálança um disco com seus trabalhos, que ele re-jeita, por conta de alguns poemas terem sidomutilados, em função do tempo.

Em 1988, sua bibliografia é acrescida deoutro título: Ispinbo e Fulô, editado pela Im-prensa Oficial do Ceará (lOCE).

Neste meio tempo, Patativa coleciona ho-menagens: cidadão de Fortaleza; amigo da cul-tura; nome do Centro Acadêmico do Curso deLetras, da UFC e detentor da Medalha da Abo-lição. Série de homenagens que vão culminar,em 1989, com o título de Doutor Honoris Cau-sa, da Universidade Regional do Cariri. É quan-do é lançado outro disco, o "Canto Nordestino",produzido por Rosemberg Cariry.

No capítulo das homenagens, Patativa, cu-riosamente, deu seu nome à rodovia, com 18km de extensão, que liga sua Assaré a Antoninado Norte. Depois, o poeta passou a ser nome deescola, rádio comunitária e adutora de abaste-cimento de água de sua cidade, que sempre foiuma reivindicação sua.

Organizador de Baleeiro, juntamente como poeta Geraldo Gonçalves, seu principal par-ceiro de disputas, reúne, nesta coletânea, parteda produção da comunidade poética da serrade Santana, que mostra um vigor surpreendentee possibilita uma leitura prazerosa.

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Ainda no capítulo dos laudatórios, queestão longe de reconhecer o seu valor e apenastiram partido de sua expressão pública, noitesde viola, festas aniversárias, mais medalhas,estudos sobre a obra (Plácido Cidade Nuvens),dissertação de mestrado (Silvana Militão),relançamento de sua produção em cordel (993)e sempre um pretexto para ter o poeta dizendoseus poemas, este sim, o grande momento daperformance.

Ganhando expressão nacional, Patativapassou a receber convites e não dava conta deatender a todos. Disse poemas no "Som Bra-sil", da Rede Globo, em 1981, quando o pro-grama era conduzido por Rolando Boldrin; fezponta na novela "Renascer", também da RedeGlobo, em 1993, contracenando com ]acksonAntunes e deu entrevista ao "jô Onze e Meia",do SBT, em 1994.

Neste mesmo ano, lança seu livro Aquitem coisa, na I Feira Brasileira do Livro de For-taleza e o vinil "85 anos de poesia", que, trêsanos depois, seria transformado em cd.

Em 1995, recebeu o prêmio do Ministérioda Cultura, na categoria Cultura Popular, dasmãos do presidente Fernando Henrique Cardo-so, no Theatro José de Alencar, em Fortaleza.

Pode-se dizer que o reconhecimento che-gou ao auge, quando é incluído em antologiase coletâneas escolares (ou não) e, paradoxal-mente, para não ser unanimidade, rejeitado pelahistória oficial da literatura cearense.

Quando tanto se fala do poeta seria ocaso de se perguntar quem é Patativa do Assaré,até que ponto o mito soterrou o homem e seAntonio Gonçalves da Silva passou a ser umainstituição.

REFLEXÕES SOBRE PATATIVA

o homem mantém seus hábitos: dormecedo, acorda ainda de madrugada, toma umparco café da manhã e, sempre limpo e bemvestido, se senta na cadeira de balanço epalhinha, presente do governador TassoJereissati, a quem se ligou desde as eleições de1986, quando, espontaneamente, subiu aos pa-

lanques, pedindo votos para o candidato queprometia "mudanças".

Complicada a relação desse símbolo daresistência com o político/empresário, neoliberalavant ia lettre, cumprindo seu terceiro mandatoà frente do governo do Estado. Mas as razõesque, inicialmente, eram políticas, assumiram umtom decididamente afetivo. Tasso ]ereissati éhoje uma referência para Patativa, o que não oimpediu de ter votado em Lula, o candidato doPT, em suas pretensões de chegar à Presidênciada República, chegando inclusive a dar declara-ções públicas de voto.

Na cadeira de balanço, Patativa espera asvisitas, que são muitas. Elas chegam, invadem acasa, fazem fotos, gravam vídeos e, ultimamen-te, vêm aos bandos, por conta de um pacote deuma agência que anuncia um turismo "ecológi-co e cultural".

Patativa almoça por volta do meio-dia,come pouco, sem preocupações com o colesterolou com o açúcar. Às vezes, abusa do cigarro,cospe muito, tosse e, quando pára de fumar,fica um pouco irritadiço.

As filhas se revezam em seus cuidados,agora é a vez de dona Lúcia, mas o comandoque prevalece em casa é o do "sinhôzinho",como lhe chamava dona Belinha.

Patativa descansa um pouco e volta àcadeira. Às segundas-feiras, a família desce aserra, vem fazer compras e lhe tomar a bênção.Uma vez por semana, ele faz o percurso às aves-sas, freta uma camionete, por vinte reais, levaalguma coisa para os filhos e vai brincar depoesia com o Geraldo Gonçalves. Em volta deuma mesa de cedro, eles se revezam nos motese desenvolvem as estrofes, Geraldo por escrito,Patativa armazena as suas na memória e as re-cita com renovado prazer.

Na serra, ele se solta, fica brincalhão,passeia, faz visitas, relembra o passado, massem cair numa nostalgia mórbida. O poeta vol-ta ao lugar de onde, se dependesse dele, nuncateria saído.

De chapéu de massa, calça de tecido sin-tético, camisa de mangas longas, Patativa, naserra ou em Assaré se locomove como se esti-vesse em casa, dispensa guias e chega a se irri-

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tar se alguém faz menção de lhe dar a mão oude lhe ajudar a atravessar uma rua ou uma vala.Ele conhece seus territórios como ninguém.

Racional, ele foge das superstições, aindaque relembre, com saudades, da caipora e deoutros bichos mitológicos do mato. Antes dedormir, reza um pouco, mas não gosta de falarsobre isso, é um espaço muito pessoal, para serobjeto de uma entrevista.

Os diplomas, fotografias e recortes de jor-nais estão nas paredes de sua casa, em Assaré, ostroféus sobre urna estante de aço, que guarda seuslivros, a maioria presente dos autores, seus Ias.

Receptivo, ele tem para os visitantes umdiscurso pronto, que satisfaz aos menos exigen-tes, que entremeia declamação de poemas comnarrativa de episódios de sua vida. Quem quersaber mais, precisa ter paciência, voltar outrasvezes e tê-lo como um amigo e não como umapersonagem.

É esta esfinge que precisa ser decifrada.Afinal de contas, quem é mesmo Patativa doAssaré?

o HOMEM, O MITO

Poderíamos dizer que Patativa seria a sín-tese de todos os poetas, tidos como populares,do Ceará. E a expressão "popular" deve ser usa-da, com muita parcimônia, para satisfazer, tal-vez, à necessidade que algumas pessoas têm derótulos.

A possibilidade da escrita (e do impresso)deu, à poesia de Patativa, a permanência queela poderia ter perdido enquanto transmissãooral. Esse desafio é inevitável: saber o que vaificar, o que servirá como matriz para outros tex-tos, o que, por sua vez, já teria vindo de outrascriações. Esse processo é que precisaria sermelhor compreendido.

É inegável que Patativa se inscreve nacategoria do criador, o que o afasta de umadiluição ou uma mera apropriação do que ou-tros fizeram, com novas roupagens. Influência,para ele, é uma atitude consciente. Quem assu-me que fez um poema, nos moldes camonianos,está longe de ser um ingênuo iletrado.

Patativa foi um leitor voraz dos poetasromânticos brasileiros, o que o levou a elegerCastro Alves como o seu preferido, em funçãodo compromisso social. E em relação à forma,ela foi burilada pelo contato com o manual deversíficação de Olavo Bilac. Da mesma maneiraque a poesia cabocla é tributária de Catulo daPaixão Cearense e de Zé da Luz.

Permanência é o que se antecipa parauma poesia que ganhou o estatuto do livro, quemusicada foi gravada por um elenco de intér-pretes, do forró tradicional ou eletrificado(Mastruz com Leite) à experimentação em for-ma de "rap" (Daúde), sem deixar de falar dosclássicos "Triste Partida" e "Vaca Estrela e BoiFubá", objeto das mais variadas interpretações.

Em Patativa, natureza e cultura se imbri-cam, e, ao contrário do que foi durante muitotempo, para as teorias antropológicas, não sãoconceitos antagõnicos, mas constituem as duasfaces de uma mesma moeda.

A poesia de Patativa brota com o vigor deum pé de milho que ele roçava, em sua serra deSantana. Nele, trabalho manual e intelectual nãosão conflitantes, antes, era no eito que ele for-mulava suas composições, como se fosse umdesdobramento de uma mesma atividade. A suacompreensão de cultura se confunde com seupróprio cotidiano e de todos os seus compa-nheiros agricultores. Arar, lavrar, semear e co-lher rimam com fazer poemas, outra forma desemeadura, com resultados imprevisíveis, emterrenos nem sempre propícios.

Ele se sente parte da natureza, como sebrotasse do chão, com raízes sólidas, como asmostradas pelo desenho de Karimai ou pelodocumentário "Passarim de Assaré", de OswaldBarroso e Ronaldo Nunes. E essa natureza é cul-tura, porque é interferência no que está posto aí,pelo homem que capina e modela o verso, comose o papel e o barro fossem a mesma matéria.

Patativa é homem de luta, que nunca sedobrou a censuras, que nunca teve medo, o quefica evidenciado pelo episódio pitoresco, onde,depois de descer a serra várias vezes e, de nuncaencontrar o prefeito de Assaré, fez um poemaanedótico, em que falava em uma "prefeitura semprefeito". Levado à prisão, por desacato à autori-

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BH/UFC

dade, lá encontrou uma patativa de estimação dodelegado e improvisou o poema, que ficou famo-so, em que dizia se dirigindo ao pássaro: "Meusofrer e meu penar/ clamam à divina lei! tu presaspara cantar/ e eu preso porque cantei".

As utopias para ele, baseadas em um cris-tianismo solidário, passam pela questão da ter-ra, que ele conhece como ninguém e avançamna construção de uma sociedade mais justa esolidária.

Patativa tem uma medida exata entre arazão e a emoção, evitando qualquer pieguice ese inscrevendo como um intérprete inspirado econtundente das nossas mazelas sociais. É essepoeta que, às vésperas dos noventa anos, nosdeixa embasbacados com sua lucidez, com ovigor de sua memória e com a sensibilidade deinventar o mundo por meio das palavras.

Utópica seria sua visão da serra de Santana,como seu paraíso particular, da mesma maneiraque seu ideal de justiça social traria a abundân-cia, como no "topos" do mundo às avessas, nãopelo exagero, mas pela medida exata do aten-dimento às necessidades de todos.

Utopia de uma igualdade que poderia seaproximar no milênio das profecias, ele que des-denha, da escatologia que prevê o fim do mun-do com data marcada.

Luta de quem sabe da força das palavrascomo instrumento de denúncia e de quem com-bate sem perder o que poderíamos chamar de"cortesia sertaneja", uma série de códigos quetraduz uma visão de mundo e uma atitude dequem é capaz de se emocionar diante de suaprópria produção, como se essa fosse uma con-dição para que o poema ganhasse vida própriae partisse para interferir no mundo.

Um Patativa que emociona com a vozroufenha, cujo corpo franzino cresce no instan-te da performance, quando ele todo comunica e

quando seu poema adquire toda sua grandeza ecomplexidade, por inteiro.

Um Patativa, cuja poesia se faz cidadã,atua na correção do social e que não se desco-la daquela ancestralidade, do vigor de quem,como Adão, nomeia as coisas que estão nomundo.

Um Patativa poeta e profeta, como diriaum teórico francês (Paul Zumthor), poeta e pás-saro, que alça vôo e emite seu canto para nossaalegria de fãs e para a continuidade de umatradição que se ancora na solidez de seu cantoimemorial, presente e futuro.

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