passeio socrático - adaptado

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  • 7/23/2019 Passeio Socrtico - Adaptado

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    Passeio SocrticoPor: Frei BetoAo visitar em agosto a admirvel obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infncia, vivida ali na pobreza, ele no conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijo, frutas e hortalias.Quem trouxe a fome foi a geladeira, disse.

    O eletrodomstico imps famlia a necessidade do suprfluo: refrigerantes, sorvetes etc.A economia de mercado, centrada no lucro e no nos direitos da populao, nos submeteao consumo de smbolos. O valor simblico da mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown irresistivelmente insacivel. prprio do humano - e nisso tambm nos diferenciamos dos animais - manipular o alimento que ingere. A refeio exige preparo, criatividade, e a cozinha laboratrio culinrio, como a mesa missa, no sentido do ritual que feito.A ingesto de alimentos por um gato ou cachorro um atavismo desprovido de arte. En

    tre humanos, comer exige um mnimo de cerimnia: sentar mesa coberta pela toalha, usar talheres, apresentar os pratos sempre limpos e brilhosos e, sobretudo, desfrutar da companhia de outras pessoas.Trata-se de um ritual que possui fica marcado para sempre. Parece-me desumano comer de p ou sozinho, retirando o alimento diretamente da panela.Marx j havia se dado conta do peso da geladeira. Nos Manuscritos econmicos e filosficos (1844), ele constata que o valor que cada um possui aos olhos do outro o valorde seus respectivos bens. Portanto, em si o homem no tem valor para ns.O capitalismo de tal modo desumaniza que j no somos apenas consumidores, somos tambm consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simblicos que me cercam que

    determinam meu valor social. Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo insensato da pobreza e cultura da excluso.Para o povo maori da Nova Zelndia cada coisa, e no apenas as pessoas, tem alma. Emcomunidades tradicionais de frica tambm se encontra essa interao matria-esprito. Orse dizem a ns que um aborgine cultua uma rvore ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um olhar de desdm. Mas quantos de ns no cultuam o prprio carro, um vinhoguardado na adega, uma jia?Assim como um objeto se associa ao seu dono nas comunidades tribais, na sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada gide da grife. No se compra um vestido, compra-se um Lacoste; no se adquire um carro, e sim uma Ferrari; no se bebe um

    vinho, mas um Chteau Margaux. A roupa pode ser a mais horrorosa possvel, porm se traz a assinatura de um famoso estilista a gata borralheira transforma-se em CinderelaSomos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nosfaz acreditar que delas sai uma energia que nos cobre como uma bendita uno, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder. Pois a avassaladora indstria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um esprito, que nos transformaquando neles tocamos. E se somos privados desse privilgio, o sentimento de exclusocausa frustrao, depresso, infelicidade.No importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiados, alada ao altardos privilegiados pela inveja alheia. Ela se torna tambm objeto, confundida com

    seus apetrechos e tudo mais que carrega nela, mas no ela: bens, cifres, cargos etc.

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    Comrcio deriva de com merc, com troca. Hoje as relaes de consumo so desprovidas dea, impessoais, no mais mediadas pelas pessoas.Outrora, a quitanda, o boteco, a mercearia, criavam vnculos entre o vendedor e ocomprador, e tambm constituam o espao das relaes de vizinhana, como ainda ocorre naira.

    Agora o supermercado suprime a presena humana. L est a gndola abarrotada de produtossedutoramente embalados. Ali, a frustrao da falta de convvio compensada pelo consumo suprfluo.Nada poderia ser maior que a seduo - diz Jean Baudrillard - nem mesmo a ordem que a destri.E a seduo ganha seu supremo canal na compra pela internet. Sem sair da cadeira o consumidor faz chegar sua casa todos os produtos que deseja.Vou com freqncia a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplaros venerveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito al

    go.No, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrtico, respondo. Olham-me intrigados.Ento explico:Scrates era um filsofo grego que viveu sculos antes de Cristo. Tambm gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocs, respondia: - Estou apenas observando quanta coisa existe de que no preciso para ser feliz.