participação social

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853 28. PARTICIPAÇÃO SOCIAL Sarah Escorel Marcelo Rasga Moreira O Sistema Único de Saúde (SUS) tem como um de seus pilares a participação da população, legalmente garantida, nos conselhos e conferências de Saúde, interferindo di- retamente nas políticas de saúde de âmbito federal, estadual e municipal. Nesse sentido, o estudo da participação social é imprescindível para a compreensão das políticas e do sistema de saúde no Brasil. No presente capítulo, apresentamos o significado do termo participação; o processo de construção da categoria participação social; a relação da participação social com as teorias sobre democracia; o desenvolvimento da participação social no Brasil e, mais especificamente, no setor saúde. PARTICIPAÇÃO SOCIAL: BUSCANDO UMA DEFINIÇÃO Nos dicionários da língua portuguesa, ‘participação’, ‘o ato ou efeito de participar’, tem seu sentido vinculado a ‘fazer saber’, ‘comunicar’, ‘associar-se pelo pensamento ou pelo sentimento’, ‘ter ponto em comum’, ‘ser parte’ e ‘ter ou tomar parte’. A amplitude de significados situa a participação como intrínseca à vida em sociedade, não deixando de indicar suas contradições, em especial no que diz respeito às relações indi- víduo/coletividade e ao papel mais ou menos ativo/passivo de quem participa. Proporciona, também, uma compreensão, que não exclui outras, na qual a participação, embora ocorra em situações díspares, caracteriza-se pela valorização de contatos, espaços e fóruns menos fechados, melhor compartilhados e, portanto, mais públicos. Por isso, as situações, os rumos, as formas, as possibilidades, as adesões, os vetos, as exclusões, os limites e as sanções à participação dos indivíduos são estruturados pelo contexto histórico e social. Localizada histórica e socialmente, participação constitui-se em uma rela- ção que envolve uma tomada de decisão, por tênue que seja, na qual o indivíduo propõe-se a interagir com o outro, num convívio que democratiza os espaços comuns (públicos) em qualquer âmbito – cultural, econômico ou político. “O termo público denota dois fenômenos intima- mente correlatos, mas não perfeitamente idênti- cos. Significa, em primei- ro lugar, que tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. (...) Em segundo lugar, o termo público significa o próprio mun- do, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele” (Arendt, 1991: 59-62).

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Sarah Escorel e Marcelo Rasga Moreira

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Page 1: Participação Social

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28. ParticiPação Social

Sarah EscorelMarcelo Rasga Moreira

O Sistema Único de Saúde (SUS) tem como um de seus pilares a participação da população, legalmente garantida, nos conselhos e conferências de Saúde, interferindo di-retamente nas políticas de saúde de âmbito federal, estadual e municipal. Nesse sentido, o estudo da participação social é imprescindível para a compreensão das políticas e do sistema de saúde no Brasil.

No presente capítulo, apresentamos o significado do termo participação; o processo de construção da categoria participação social; a relação da participação social com as teorias sobre democracia; o desenvolvimento da participação social no Brasil e, mais especificamente, no setor saúde.

ParticiPação Social: buScando uma definição

Nos dicionários da língua portuguesa, ‘participação’, ‘o ato ou efeito de participar’, tem seu sentido vinculado a ‘fazer saber’, ‘comunicar’, ‘associar-se pelo pensamento ou pelo sentimento’, ‘ter ponto em comum’, ‘ser parte’ e ‘ter ou tomar parte’.

A amplitude de significados situa a participação como intrínseca à vida em sociedade, não deixando de indicar suas contradições, em especial no que diz respeito às relações indi-víduo/coletividade e ao papel mais ou menos ativo/passivo de quem participa. Proporciona, também, uma compreensão, que não exclui outras, na qual a participação, embora ocorra em situações díspares, caracteriza-se pela valorização de contatos, espaços e fóruns menos fechados, melhor compartilhados e, portanto, mais públicos.

Por isso, as situações, os rumos, as formas, as possibilidades, as adesões, os vetos, as exclusões, os limites e as sanções à participação dos indivíduos são estruturados pelo contexto histórico e social. Localizada histórica e socialmente, participação constitui-se em uma rela-ção que envolve uma tomada de decisão, por tênue que seja, na qual o indivíduo propõe-se a interagir com o outro, num convívio que democratiza os espaços comuns (públicos) em qualquer âmbito – cultural, econômico ou político.

“O termo público denota dois fenômenos intima-mente correlatos, mas não perfeitamente idênti-cos. Significa, em primei-ro lugar, que tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. (...) Em segundo lugar, o termo público significa o próprio mun-do, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele” (Arendt, 1991: 59-62).

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Os múltiplos significados da palavra ‘participação’ fazem com que essa categoria seja, necessariamente, ampla e geral. Isso significa que, ao menos no campo analítico, participação deve ser considerada como uma categoria polissêmica (com múltiplos sentidos e significa-dos), que abriga diferentes nuanças, desdobramentos e estratificações, produzindo novas categorias que, articuladas, procuram abranger o maior número de aspectos possíveis das realidades a serem compreendidas e explicadas.

Exemplos dessa polissemia são as categorias ‘participação social’, ‘participação popu-lar’ e ‘participação comunitária’, que, embora tendo uma mesma origem (a categoria guar-dachuva ‘participação’) e apresentando aspectos convergentes, guardam especificidades próprias, visto que procuram analisar diferentes realidades.

Uma tipologia da participação considera os espaços em que ela ocorre: dos mais micros, como o cotidiano das relações familiares, para, em movimento crescente, espraiar-se por outras instâncias e instituições até chegar a um patamar mais macro, no qual se pretende intervir nas leis e políticas que regulam a sociedade.

Microparticipação, a “associação voluntária de duas ou mais pessoas numa atividade comum na qual elas não pretendem unicamente tirar benefícios pessoais e imediatos” (Bor-denave, 1983: 24), possui uma função instrumental, mas também pedagógica, na medida em que tem grande importância na formação de hábitos participativos que extrapolam a dimensão familiar.

Formados com tais hábitos, os sujeitos estariam mais habilitados a reproduzir em suas outras relações sociais uma prática de valorização do público e do coletivo. Essa caracterís-tica é multiplicada à medida que indivíduos e grupos se inserem em instâncias que também valorizam a criação e o fomento de espaços públicos.

Paulo Freire foi um ardoroso defensor da escola como uma dessas instâncias, demons-trando que a relação participativa professor-aluno inspira novas práticas sociais marcadas pela construção conjunta de uma explicação crítico-reflexiva do mundo, na qual preponderam o respeito à diversidade, à valorização do coletivo via a autonomia cidadã do indivíduo e à superação de relações opressivas cristalizadas na sociedade capitalista. Instituições voltadas para a valorização do público e que incentivam a participação contribuiriam, assim, para a ampliação do capital social e a disseminação de uma cultura participativa.

Entretanto, a participação não pode ser naturalizada como algo positivo em si mesmo nem desvinculada das relações sociais, econômicas e políticas. Vários autores, além dos já mencionados, trabalharam e procuraram construir categorias para analisar as relações par-ticipativas, de acordo com suas diferentes práticas, campos do saber e abordagens teóricas: Valla (1998), Silva e Labra (2001), Reis (2002), Gerschman (2004), Coelho e Nobre (2004), Fleury e Lobato (2009), Labra (2009), Côrtes (2009a).

Participação como ferramenta gerencial

Donadone e Grun (2001: 123) mostram como a participação foi transformada em “uma ferramenta gerencial para o aumento da produtividade (...) e dos lucros”. Nas décadas de 1970 e 1980, setores do movimento sindical brasileiro tentaram criar conselhos de fábrica que propiciassem a partici-pação dos trabalhadores nas negociações voltadas para as relações trabalhistas, salários inclusive. Tais propostas não foram bem recebidas pelo empresariado, que transformou suas fábricas em instituições de desestímulo ao espaço público e à participação.

Capital socialÉ um conjunto de ca-racterísticas pessoais e sociais de cooperação e confiança que indivíduos e grupos portam e lhes garante relações, apoios e alianças vitais para a con-secução de seus objetivos. Putnam (1996) considera o capital social como um elemento-chave para o desenvolvimento social e econômico.

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Na década seguinte, o empresariado mudou sua postura, passando a valorizar a participação. Segundo os autores, isso não ocorreu devido a um arejamento na mentalidade dos industriais, mas sim por causa de uma mudança que eles impuseram às práticas participativas. Estas foram orientadas no sentido de os operários desenvolverem rotinas de trabalho que tornassem a empresa mais competitiva, o que ficou conhecido como ‘vestir a camisa’, um conjunto amplo de atitudes que embutia até mesmo a ideia de que um operário deveria vigiar o trabalho do outro a fim de impedi-lo de fazer ‘corpo mole’.

Apresentamos a seguir uma sistematização de alguns dos aspectos-chave que possi-bilitam o diálogo entre as distintas categorias que pretendem analisar a participação. Tal sistematização não tem a pretensão de ser um esquema determinista, fechado e definitivo. Entretanto, faz uma opção clara diante de uma questão fundamental: qual é o ponto de partida?

Para nós, o ponto de partida é o indivíduo buscando intervir na situação concreta e histórica em que vive construindo-se como sujeito social. A partir daí, procede-se a uma construção do tipo ‘pergunta-resposta’ na qual uma encadeia e articula a outra, sempre permitindo caminhos com diferentes mãos.

Essa abordagem metodológica visa a identificar o sujeito – individual e coletivo – que participa, assim como a analisar como ele participa e os condicionantes que influenciaram a decisão de participação. Tal sujeito participa em um determinado espaço (instância par-ticipativa) que se relaciona com a instituição na qual pretende interferir e influenciar, para modificá-la de forma a atender a seus interesses. Essa relação desenvolve-se no interior de uma dada cultura (ambiente participativo) que caracteriza e é caracterizada por um momento histórico numa sociedade específica.

Quem e como participa?

Trata-se de identificar, em uma determinada situação concreta e histórica, quem são os sujeitos que dela participam; se o fazem isoladamente ou em grupo, como sujeitos coletivos; e se participam diretamente ou por meio de representantes. Há que se compreender tam-bém em que medida esta participação é voluntária, condicionada, forçada e/ou compulsória.

Há diversos graus de intensidade de participação na esfera política – desde a simples adesão até a dedicação completa do próprio tempo e da própria atividade, como acontece no caso do profissionalismo político. Distinguem-se três formas ou níveis de participação (Bobbio, Matteuci & Pasquino, 1991): 1) a ‘presença’, a forma menos intensa e mais margi-nal que engloba comportamentos essencialmente receptivos ou passivos, situações em que o indivíduo não dá qualquer contribuição pessoal; 2) a ‘ativação’, em que o sujeito desen-volve, dentro ou fora de uma organização política, uma série de atividades que lhe foram confiadas por delegação permanente (envolvimento em campanhas eleitorais, participação em manifestação de protesto); 3) a ‘participação’, quando o indivíduo contribui direta ou indiretamente para uma decisão política.

É forçoso identificar aqueles que não participam e compreender o motivo desta não participação: pela participação dos primeiros, pela ausência de oportunidades, pelo desco-nhecimento das possibilidades de participação ou por desinteresse. Há também uma forma de não participação oriunda de decisões, passionais ou racionais, tomadas pelos sujeitos,

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diferente das formas anteriormente referidas nas quais está presente a marginalização. No extremo, poder-se-ia dizer que a opção por não participar de uma situação é, em si, uma maneira de participar.

Qual o objetivo da participação?

Os sujeitos participam com o intuito de atingir objetivos mais ou menos precisos, fundados em um mix de motivações que transitam por propostas egoístas, individuais, soli-dárias e/ou coletivas. Tais objetivos visam à manutenção, ao aprimoramento, à reforma ou à transformação total da situação da qual os sujeitos participam.

Ao responder a esta pergunta, pode ser analisado se a participação assume um caráter instrumental, pragmático, altruísta ou orgânico, características estas que em certos momentos podem coexistir, interagir e, inclusive, fundir-se ou opor-se.

Quais os condicionantes da participação dos sujeitos?

A participação dos sujeitos está condicionada por uma série de fatores culturais – como idade (geração), sexo, camada social, grau e tipo de instrução – e psicossociais – como normas e valores. A socialização política, ou seja, a maneira pela qual os indivíduos desde a infância até a adolescência aprendem direitos, deveres e orientações políticas, assim como o caráter mais ou menos ‘autoritário’ das relações entre os indivíduos na sociedade civil, também condiciona a participação social (Bobbio, Matteuci & Pasquino, 1991).

Dentre esses fatores condicionantes, as possibilidades de atingirem seus objetivos são preponderantes para que os sujeitos participem de uma determinada situação. Isto sugere que a decisão de participar advém de ponderações sobre os custos e benefícios desta par-ticipação. A ponderação não é, necessariamente, uma prática calculista e utilitarista: para determinados sujeitos, elementos simbólicos, como a esperança (‘um futuro melhor’) ou um ideal (‘uma sociedade mais justa’), podem ter um peso maior em sua decisão de participar, mesmo com a certeza de que a participação será reprimida, inclusive com violência.

As possibilidades de os sujeitos alcançarem seus objetivos por meio da participação estão relacionadas a um conjunto de características comportamentais, como persistência, dedicação, disciplina, resiliência, organização, autocompreensão, coerência dos objetivos, (auto)crítica, reflexão... Contudo, as possibilidades não são dadas apenas pelos sujeitos, pois as instâncias em que a participação é exercida são fundamentais para as possibilidades de consecução de seus objetivos. Por sua vez, as instâncias de participação estão condicionadas pelo regime político da sociedade em que se inserem.

Qual o papel das instâncias participativas?

Instâncias participativas são os espaços cujo propósito é permitir que os sujeitos atuem em conjunto e, com isso, potencializem seus esforços participativos e a consecução de seus objetivos. O papel das instâncias participativas é reunir estes sujeitos; definir estratégias para que objetivos contraditórios possam ser debatidos; submetê-los a um processo de escolha; e, definido o rumo a seguir, direcionar sua atuação para as instituições que regulam as relações existentes nas situações em que pretendem participar.

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O papel dos espaços de participação está configurado por duas dimensões interligadas: uma mais imediata e pragmática, que congrega os esforços dos sujeitos diretamente inte-ressados na situação; outra, mais ampla, multiplicadora e até mesmo conscientizadora, que compreende a construção e a difusão de uma cultura participativa promotora da interação com sujeitos que, mesmo não envolvidos com uma determinada situação, podem, de alguma maneira, contribuir para a realização dos objetivos.

A análise da dimensão de reunião dos sujeitos inclui aspectos ligados à organização, à democratização, à autonomia e à gestão da instância participativa – em especial os que se referem às regras de ingresso dos sujeitos interessados em participar –, às oportunidades que estes sujeitos têm de atuar e de deliberar – em particular o acesso à informação –, aos recursos voltados para a qualificação e a capacitação dos sujeitos, à sustentabilidade e à resolutividade.

Se o funcionamento da instância participativa não se restringe àqueles que já partici-pam, mas amplia-se e torna-se mais permeável à inclusão de novos sujeitos e ao intercâmbio com outras instâncias participativas, a tendência é a formação de uma rede para a troca de experiências, valores e conceitos.

A construção e o pleno funcionamento de uma rede participativa encontram um contraponto nas instituições que são os alvos das ações das instâncias participativas. Na análise dessa relação, deve-se verificar em que medida há reconhecimento e legitimidade das instâncias participativas pelas instituições.

Qual o grau de reconhecimento e legitimidade que as instituições atribuem às instâncias participativas?

As instituições, com existência jurídica ou factual, são as responsáveis pela regulação das relações travadas nas situações para as quais se voltam os esforços da participação.

As instituições mais permeáveis à participação são aquelas que valorizam o espaço público e reconhecem a necessidade de que as relações sociais, econômicas e políticas sejam, pelo menos, mais debatidas. Elas conferem maior grau de reconhecimento e legitimidade às instâncias participativas, em processos múltiplos e, por vezes, contraditórios. É preciso, pois, analisar os elementos constituintes da relação entre instância participativa e instituição.

Quando a própria instituição gera o espaço de participação, é mais provável que este seja reconhecido e legitimado do que nos casos em que o fórum é fruto do movimento de sujeitos que discordam frontalmente de como a instituição regula determinadas situações. Entretanto, mesmo quando a instituição não criou e é até mesmo contrária à existência da instância participativa, pode ocorrer que esta tenha tal capacidade de organização e fun-cionamento que, ainda assim, consiga construir uma rede participativa e que a instituição não tenha outra alternativa a não ser reconhecê-la. Por outro lado, se estas capacidades não forem tão bem desenvolvidas, a reação à participação pode ser grande, gerando, inclusive, represálias e boicotes.

Quanto maior o grau de reconhecimento, maior o nível de institucionalização, ou seja, a incorporação oficial do debate sobre a situação e da participação que a ela se dirige. O re-conhecimento e mesmo a institucionalização podem ser meramente formais, uma estratégia para esvaziar as instâncias participativas, uma forma mais sutil de lhes negar legitimidade, ou de conferir legitimidade à autoridade constituída e ao status quo.

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Na institucionalização, o pressuposto subjacente é o reconhecimento recíproco por parte do Estado e da sociedade como interlocutores legítimos e com um mínimo de eficácia dialógica. No entanto, as formas institucionais de participação não instauram magicamente a igualdade de oportunidades de acesso ao poder nem eliminam as desigualdades de potência reivindicatória entre os segmentos sociais (Carvalho, 1995).

As instâncias participativas que contam com os instrumentos de pressão que melhor funcionam no contexto institucional têm maior probabilidade de serem contempladas pe-las políticas públicas do que aquelas que, por serem dependentes da própria atuação para conseguir o mínimo indispensável à sua sobrevivência, agregam pouco poder de barganha institucional.

A oficialização das instâncias participativas, assim como seu reconhecimento jurídico e sua institucionalização, tendem a produzir regras mais claras de acesso, funcionamento e atribuição. Embora instâncias não oficializadas possam ter legitimidade social, os sujeitos terão mais dificuldades para atingir seus objetivos, uma vez que não há uma obrigação legal de reconhecê-los. De qualquer modo, as instituições têm sua atuação pautada pelo ambiente participativo que preside a sociedade.

Qual a influência do ambiente participativo?

O ambiente participativo, ou melhor, a cultura participativa, pode ser sintetizada na dis-seminação dos valores democráticos em uma determinada sociedade: quanto mais efetivos eles forem, maiores as possibilidades de os cidadãos pressionarem as instituições para serem mais permeáveis à participação e, por conseguinte, para legitimarem as instâncias participativas.

Analisar a existência e a importância da cultura participativa em uma dada sociedade ou em uma instituição não significa que chegamos ao final de um percurso, mas ao ponto mais social de um ciclo dialético que se amplia ou se restringe nos movimentos que faz em direção aos pontos mais individuais: o ambiente participativo é também construído por in-divíduos que, em determinadas situações, direcionam seus objetivos para delas participar, transformando-se em sujeitos e recomeçando o ciclo.

Definidos os aspectos, atributos e características que devem nortear a construção de uma categoria analítica baseada na participação, e apoiados pelas definições de Bordenave (1983) e Gohn (2003), compreendemos participação social como um conjunto de relações culturais, sociopolíticas e econômicas em que os sujeitos, individuais ou coletivos, diretamen-te ou por meio de seus representantes, direcionam seus objetivos para o ciclo de políticas públicas, procurando participar ativamente da formulação, implementação, implantação, execução, avaliação, fiscalização e discussão orçamentária das ações, programas e estraté-gias que regulam a distribuição dos bens públicos e, por isso, interferem diretamente nos direitos de cada cidadão.

Para refletirElabore uma forma de interferir na política da sua instituição. Não se esqueça de definir o ponto de partida e de seguir a dinâmica participativa usando os atributos e as características expostas anteriormente.

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ParticiPação Social e democracia

Para analisar a participação social, é preciso situá-la historicamente, buscando com-preender as situações nas quais se pretende participar e contextualizá-la nas instâncias participativas e instituições existentes em uma determinada sociedade.

Neste tópico, propomo-nos a fazer este exercício analisando as relações entre demo-cracia e participação social nas teorias liberais (clássica e contemporânea) e marxista, assim como os impasses atuais da democracia representativa.

A participação social é base constitutiva da democracia e, por conseguinte, o aperfei-çoamento e a ampliação de uma estão diretamente relacionados ao desenvolvimento e à universalização da outra. O que torna a compreensão dessas relações uma tarefa complexa é que democracia, assim como participação, é uma categoria guarda-chuva, que comporta múltiplas e variadas definições. Deparamo-nos, desse modo, com a tarefa de construir co-nexões entre duas das ideias-força mais importantes do processo civilizatório, cuja defesa e implantação foram, são e continuarão sendo capazes de gerar utopias e guerras.

O campo de análise é, portanto, uma forma de governo (a democracia, ou o governo do povo e/ou de muitos) que ganha um adjetivo que a qualifica como participativa. Para Rousseau, a democracia é a liberdade entendida como participação direta na formação das leis através do corpo político cuja máxima expressão está na assembleia do povo. Mas o próprio Rousseau considerava que esse tipo de democracia, característica da Antiguidade, só era possível em nações pequenas.

Ao longo do século XIX, a hegemonia do pensamento liberal contribuiu para afirmar a ideia de que a democracia representativa ou parlamentar seria a única forma de democracia compatível com o Estado liberal (que reconhece e garante alguns direitos civis e políticos). Nele, as leis são elaboradas não por todo o povo reunido em assembleia, mas por um corpo de representantes eleitos pelos cidadãos portadores de direitos políticos (Bobbio, Matteuci & Pasquino, 1991).

Na concepção liberal de democracia, a principal característica é a participação, por meio da representação, no poder político, o que exige o reconhecimento dos direitos fundamentais de liberdade. O desenvolvimento da democracia em regimes representativos ocorreu em duas direções: no alargamento gradual do direito de voto, até atingir o sufrágio universal, e na multiplicação de órgãos representativos, isto é, dos órgãos compostos de representantes eleitos.

No entanto, é importante ressaltar que a democracia confere a liberdade e o direito de participar, mas não necessariamente estabelece os mecanismos e os processos para tal. Até mesmo a multiplicação dos órgãos representativos decorre de pressões e demandas da sociedade, por isso uma democracia participativa exige uma cidadania ativa, pessoas e coletividades que participem.

Atualmente, existem poucas formas de democracia com participação direta dos cida-dãos. O plebiscito e o referendo são duas dessas formas adotadas em muitos países. Afora estas duas, a mais comum são os mecanismos e procedimentos representativos, ou seja, o poder do cidadão é delegado ao representante escolhido pelo voto. Porém, tanto a democracia direta quanto a indireta descendem do mesmo princípio da soberania popular, apesar de se distinguirem pelas modalidades e pelas formas com que essa soberania é exercida (Bobbio, Matteuci & Pasquino, 1991).

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Robert Dahl associa diretamente participação e democracia, ao definir que a principal característica das sociedades democráticas é a de que seus governos devem ser:

Inteiramente, ou quase inteiramente, responsivo[s] a todos os seus cidadãos (...) [que] devem ter oportunidades plenas: (1) de formular suas preferências; (2) de expressar suas preferên-cias a seus concidadãos e ao governo através da ação individual ou coletiva; (3) de ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem discriminação decorrente do conteúdo ou da fonte da preferência. (Dahl, 1997: 26)

Para Dahl, não há, nas sociedades contemporâneas, assim como não houve nas pas-sadas, alguma que tenha concretizado plenamente essas oportunidades. Por isso, trabalha com a ideia de poliarquia, categoria que tem como objetivo construir parâmetros para que se possam medir e comparar, a partir de experiências sociais concretas e existentes, as so-ciedades que mais se aproximam ou se afastam da democracia.

Esquematicamente, o ideal democrático de Dahl baseia-se em dois eixos: ‘liberaliza-ção’, a capacidade de uma sociedade de construir instituições que viabilizem a participação, individual ou coletiva, dos cidadãos; e ‘inclusão’, as possibilidades que os diferentes sujeitos, sobretudo aqueles que contestam o governo, têm de se utilizar dessas instituições para ma-nifestarem suas opiniões. Na visão liberal contemporânea, parlamentos fortes são essenciais para a democracia: é esta fortaleza que permite, inclusive, a participação dos setores mais radicais da sociedade. As atenções voltam-se, então, para a necessidade da expansão e do fortalecimento dos processos eleitorais, com liberdade para a criação de partidos e a postu-lação de candidaturas (Dahl, 1997).

O pensamento político liberal que alicerçou as primeiras etapas do desenvolvimento capitalista, fundamentando-se nas premissas, dentre outros, de John Locke e Stuart Mill, considerava que a liberdade era a capacidade de os indivíduos otimizarem suas vontades, desde que não interferissem na liberdade de outrem. Dessas liberdades, a principal é a vinculada ao mercado e à competição pelo lucro, que necessita de um Estado paradoxalmente fraco para não intervir no mercado, que é autorregulável e, ao mesmo tempo, forte para impedir qualquer ameaça à liberdade do mercado.

No processo histórico, a representação nem sempre significou democracia, sobretudo nas câmaras de nobres constituídas pelos reis europeus ou naquelas nomeadas por gover-nantes. A representação passou por uma evolução democrática que envolveu, além da am-pliação do direito de voto para outras camadas sociais e para as mulheres, o estabelecimento da duração limitada do mandato, uma das características fundamentais dos parlamentos contemporâneos (Bobbio, Matteuci & Pasquino, 1991).

Na concepção liberal de participação, portanto, participação social e democracia relacionam-se intrinsecamente com Estado e mercado. Contudo, a pressão dos trabalhadores configurou a ampliação da democracia para além das classes proprietárias e das liberdades econômicas, instaurando direitos políticos e, posteriormente, sociais.

Participação social pelo prisma da concepção liberal

Para Robert Dahl (1997), os caminhos da democratização passam primeiro pela consagração oficial das instituições e, consequentemente, pela definição clara das instâncias participativas às quais as instituições atribuem reconhecimento e legitimidade. Somente após percorrer esta etapa

Sociedades poliárquicas são as que foram substan-cialmente popularizadas e liberalizadas, isto é, fortemente inclusivas e abertas à contestação po-lítica, mas que, em uma escala evolutiva, ainda não atingiram o grau máximo de democracia.

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histórica, que estabelece, também, um ambiente participativo, uma sociedade estaria preparada para lidar adequadamente com a variedade de objetivos dos sujeitos participantes, administrando, de maneira transparente, as diversidades.A premissa básica é a de que os conflitos gerados pela diversidade de objetivos precisam ser ins-titucionalizados, pois, se sua superação não for decidida por instituições plenamente aceitas pela sociedade como os fóruns adequados para regular as relações conflituosas, tendem a se expandir tanto que colocariam em risco a organização democrática da sociedade.A ampliação dos sujeitos participantes sem a devida ampliação institucionalizadora teria como efeito negativo a não aceitação das instituições como fórum adequado. Assim, dificilmente o con-flito seria dirimido dentro das regras do jogo democrático, abrindo espaço para o uso da força e o surgimento de ditaduras.

Para refletirConsiderando o grau de participação da sociedade nas instâncias que deliberam sobre as políticas públicas, como você definiria a democracia no país? Remetendo-se à concepção liberal contem-porânea, você considera que o Brasil é uma sociedade poliárquica? Por quê?

Outras escolas de pensamento, assim como as experiências político-institucionais que de alguma forma nelas se inspiraram, também consideram crucial a participação social. No pensamento marxista, a Comuna de Paris, que durou apenas dois meses do ano de 1871, é considerada um exemplo de como a participação pode mudar os rumos de uma sociedade: diante do vazio de poder deixado pela fuga dos governantes franceses quando de um levante militar, o Comitê Central da Guarda Nacional de Paris, apoiado pelas classes trabalhadoras, realizou, em pouco mais de uma semana, uma eleição em que os parisienses escolheram seus representantes na Comuna, que acumulou as funções de Executivo e Legislativo.

Marx considerou a Comuna de Paris o embrião do que poderia vir a ser a organização política socialista, por não ser resultado de uma ação estatal planejada ou da liderança de um indivíduo e também porque os sujeitos que normalmente não tinham poder político participaram não só como eleitores, mas puderam ser votados e eleitos.

Os conselhos operários surgidos nas revoluções russas de 1905 e, sobretudo, de 1917 inspiraram-se na análise de Marx sobre a Comuna de Paris. Como órgãos do poder revolucionário, os soviets (palavra russa que significa ‘conselho’) caracterizaram-se por: 1) referirem-se a coletividades concretas – os operários ocupados nas diversas fábricas – que lhes determinam o corpo eleitoral e a composição; 2) sua formação estar baseada no princípio da delegação por parte de tais coletividades, em geral por meio de mandato imperativo e revogável; 3) fundir as funções legislativa e executiva (Bobbio, Matteuci & Pasquino, 1991).

“Os soviets eram uma democracia autêntica (...) não tinham uma câmara alta e câmara baixa como a maioria das democracias ocidentais; prescindiam da burguesia profissional e neles os eleitores tinham o direito de destituir seus representantes a qualquer momento. Tinham suas bases na classe operária das fábricas, e a extensão de seu poder era de ser simplesmente um governo dos trabalhadores em embrião” (Trótski apud Bottomore, 1988: 77).

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Políticas e sistema de saúde no Brasil862

A proposta revolucionária, pelo menos em seus primeiros anos, considerava, assim como Marx, o Estado como uma superestrutura capitalista construída para manter a dominação de classes e visava a descentralizar o poder para os soviets, apostando numa radicalização da participação social. Na elaboração da Constituição soviética de 1917, o projeto original foi analisado em mais de 50.000 soviets, sendo que cerca de 322.000 deputados (representantes dos eleitores nos soviets) apresentaram algum tipo de proposta ou emenda.

“Todo o poder aos soviets”, o famoso mote usado por Lênin e Trótski, pode ser lido, à luz da categoria participação social, como uma forma de transformar as instâncias parti-cipativas em instituições, buscando eliminar ou, pelo menos, reduzir as mediações entre os sujeitos, o ciclo de políticas e os bens sociais que estas produzem e distribuem.

Para Gramsci, os conselhos participativos (que, no caso da Itália, eram os ‘conselhos de fábrica’) não seriam somente uma organização para levar adiante a luta de classes, mas as bases de um novo tipo de Estado: a comunidade dos trabalhadores, na qual o sistema estatal seria uma federação de conselhos unificados.

Em outras palavras: os conselhos radicalizariam o espaço público, ampliariam a parti-cipação direta (democracia ‘não delegada’) e reduziriam (mas sem extinguir) a necessidade de representação, numa sequência em que o sujeito pode apresentar seus desejos e interes-ses, e direcionar, cada vez mais diretamente, com menos intermediários, seus objetivos aos responsáveis pelas políticas públicas.

Na Iugoslávia, após a Segunda Guerra Mundial, foi desenvolvido o sistema denomi-nado ‘autogestão’, no qual, por meio dos conselhos operários, os trabalhadores exerceram diretamente um papel de direção tanto no sistema econômico como no político, na fábrica (com objetivos gerenciais) e no território.

A participação social seria a essência da sociedade socialista. Porém, a proposta mar-xista de dissolução do Estado como caminho para o comunismo não foi experimentada pela revolução soviética. De modo diverso, a proposta implementada por Stalin no contexto da Guerra Fria transformou o Estado soviético em uma instituição totalitária, reduzindo consideravelmente as instâncias participativas (soviets) e as possibilidades dos sujeitos de participarem diretamente do ciclo de políticas. Quando, no final do século XX, o sistema socialista desmoronou, a democracia instaurada nesses países significou, principalmente, a instituição do livre mercado em detrimento da participação social.

No início do século XXI, as democracias representativas defrontam-se com o des-prestígio de seus ideais democráticos, que supõem cidadãos atentos à evolução da coisa pública, informados dos acontecimentos políticos, a par dos principais problemas, capazes de escolher entre as diversas alternativas apresentadas pelas forças políticas e fortemente interessados em formas diretas ou indiretas de participação. A forma mais comum e, para muitos a única, é a participação eleitoral.

Estudos feitos pelo Eurobarômetro demonstram que até mesmo em sociedades euro-peias, nas quais a história da valorização institucional foi mais forte, os processos eleitorais e parlamentares estão cada vez mais desacreditados. Os EUA também passam por tal situação, nítida nos momentos de eleição presidencial, que apresentam altas e crescentes taxas de abstencionismo, em especial das camadas que mais necessitam das políticas públicas. Em situações como estas verifica-se também a “patologia da representação” (Santos & Avritzer, 2002), em que os cidadãos sentem-se cada vez menos representados por aqueles que elegeram.

Guerra FriaNome recebido pelo con-tencioso entre os países capitalistas, liderados pelos EUA, e os países socialistas, liderados pela URSS, que se seguiu à Se-gunda Guerra Mundial, e em que os dois blocos perpetuaram a ‘guerra’ ideológica sem disparar tiros, mas criando armas cada vez mais poderosas.

EurobarômetroÉ uma iniciativa da União Europeia que monitora a opinião pública dos países-membros sobre temas que lhe são afeitos, dentre os quais se destaca a preocupação com os ideais democráticos.Consulte: <www.ec. europa. eu/public_opinion>.

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Participação Social 863

Além disso, a militância em partidos políticos atinge uma faixa bem limitada da população e nem todos os inscritos participam ativamente. Também é baixa a inscrição em outras associações que exercem influência na vida política, como sindicatos, associações culturais, recreativas etc.

Nesse contexto de baixa intensidade participativa, movimentos sociais surgidos após 1968, em torno de características de identidade, sobretudo os que têm conseguido agluti-nar o interesse de determinados segmentos da sociedade, chegam a suplantar, em alguns momentos, as formas mais tradicionais de representação.

Outras formas novas e menos pacíficas de participação, como as manifestações de pro-testo, marchas, ocupação de edifícios etc., são tão esporádicas que não levam quase nunca à criação de instrumentos organizativos, isto é, à institucionalização da participação (Bobbio, Matteuci & Pasquino, 1991).

O desencanto com a democracia seria decorrente da proposta que se tornou hegemô-nica ao final das duas guerras mundiais – a democracia de baixo impacto – que implicou uma restrição das formas de participação e soberania ampliadas, em favor de um consenso em torno de um procedimento eleitoral para a formação de governos (Santos & Avritzer, 2002).

Democracia de baixo impacto

“O modelo de democracia liberal foi se impondo como modelo único e universal, e a sua consa-gração foi consumada pelo Banco Mundial e o FMI ao transformá-lo em condição política para a concessão de empréstimos e ajuda financeira. Com isso perdeu-se ‘demodiversidade’, entendida como a coexistência (pacífica ou conflituosa) de diferentes modelos e práticas democráticas” (Santos & Avritzer, 2002: 72).

No Brasil, a lenta e gradual redemocratização ocorrida ao longo da década de 1980 ampliou os direitos do cidadão, que passaram a ser constitucionalmente garantidos, inclu-sive como dever do Estado. No entanto, esses direitos, formalmente garantidos, não foram integralmente concretizados. Esta dissonância contribui sobremaneira para o desprestígio da democracia como possibilidade de saldar a dívida social acumulada durante séculos e ampliada durante a ditadura militar, mesmo em períodos com altas taxas de crescimento econômico.

O hiato entre a consolidação das instituições e as necessidades vividas pelos sujeitos em seu dia a dia, entre as possibilidades de eles participarem e o resultado das políticas públicas, entre o processo eleitoral e a garantia de direitos, demonstra a necessidade de introduzir novos eixos para a compreensão da democracia e de suas relações com a participação social.

Concepções alternativas ou contra-hegemônicas da democracia ou ‘democracia de alto impacto’ sustentam-se na

possibilidade de inovação entendida como participação ampliada de atores sociais de diversos tipos em processos de tomada de decisão. Em geral, estes processos implicam a inclusão de temáticas até então ignoradas pelo sistema político, a redefinição de identidades e vínculos e o aumento da participação, especialmente em nível local. (Santos & Avritzer, 2002: 51)

Um novo eixo fundamentador da democracia seria, pois, a efetivação dos direitos do cidadão por meio da melhor organização das políticas sociais visando a uma distribuição equitativa dos bens públicos, à consolidação de instâncias de participação que promovam a

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reforma democrática do Estado, ou seja, à orientação das políticas públicas para a promoção da justiça social, e à construção de uma nova gramática social mais inclusiva.

Para refletirO reconhecimento e a ampliação das instâncias de democracia participativa podem resultar em conflitos com as instâncias de democracia representativa. Prefeitos e câmaras de vereadores eleitos por milhares ou mesmo milhões de eleitores podem questionar a legitimidade de decisões toma-das por representantes de segmentos sociais que não se submeteram ao sufrágio eleitoral. Reflita sobre as relações entre essas duas formas de participação e sobre as possibilidades de superação destes conflitos, em um processo de aprimoramento democrático.

ParticiPação Social no braSil

A Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988, a sétima do país e a sexta do período republicano, foi fruto de um processo de articulação das forças políticas e sociais que combateram, de diferentes maneiras, os grupos e classes que se beneficiaram do Estado autoritário instaurado pelo golpe militar de 1964. Denominada Constituição Cidadã, con-sagrou juridicamente o princípio de que os direitos dos cidadãos (saúde, educação, traba-lho, terra, habitação, salário mínimo digno...) são deveres do Estado, que deve cumpri-los mediante a implantação de políticas públicas. Garantiu também a participação social por meio de algumas instâncias:

• ElEiçõEsdirEtas para presidente, governadores, prefeitos, senadores, deputados federais e estaduais e vereadores por meio de sufrágio universal direto, secreto – o voto tem igual valor para todos, sendo obrigatório para aqueles entre 18 e 70 anos, e opcional para os que têm entre 16 e 18 anos incompletos e os maiores de 70 anos. Em 2006, elegemos o pre-sidente da República pela quinta vez consecutiva desde a promulgação da Constituição. Isso aconteceu pela primeira vez na história brasileira, pois o ciclo democrático iniciado em 1946 e interrompido em 1964 comportou apenas quatro eleições presidenciais. Em 2010 foi eleita Dilma Rousseff, a primeira mulher a ocupar a Presidência da República.

• PlEbiscito – quando a população é chamada a decidir sobre algo que ainda não foi transformado em ato legal. Apesar de estar presente já na Constituição de 1946, só foram realizados dois plebiscitos no Brasil, ambos envolvendo a forma de governo: parlamentarismo versus presidencialismo. O primeiro, em 1963, esteve diretamente ligado ao golpe de 1964.Em 1961, a renúncia do presidente Jânio Quadros abriu vaga para que João Goulart, o vice-presidente (na época eleito em separado), assumisse o cargo. Contudo, as forças políticas ligadas ao empresariado e aos círculos militares, opositores das propostas trabalhistas e populistas defendidas por Jango, aceitaram sua posse desde que fosse implantado o parlamentarismo como forma de reduzir os poderes do presidente. No plebiscito de 1963, a população deliberou sobre a restauração do presidencialismo, o que descontentou esses segmentos que, pouco tempo depois, promoveriam o golpe militar, a derrubada de Goulart e a instauração da ditadura.O segundo plebiscito foi realizado em 1993, num contexto político de consolidação do regime democrático muito diferente do anterior. Nesse caso, tratou-se efetivamente de

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um instrumento de consulta da população sobre o regime de governo (república ou monarquia) e sobre a forma de governo (presidencialista ou parlamentarista). Em vez de ser uma manobra para reduzir poderes do Executivo, a população foi chamada a decidir não só sobre assuntos a respeito dos quais os parlamentares constituintes não chegaram a um acordo, mas, principalmente, sobre assuntos que, por serem muito importantes, não cabia serem definidos apenas por meio da representação. A república presidencialista foi vitoriosa, por ampla margem de votos.

• rEfErEndo – casos em que a população é chamada a decidir sobre a confirmação ou desaprovação de um ato legislativo. Em 2005, pela primeira vez, foi realizado um refe-rendo no país, versando sobre um artigo do Estatuto do Desarmamento que legislava sobre a proibição do comércio de armas. A população manifestou-se votando pela não proibição da compra e venda de armas e munições.

• iniciativaPoPular – situações em que 1% dos eleitores do país, distribuídos em pelo menos cinco estados da federação, encaminham projeto de lei ao Congresso Nacional, que tem de apreciá-lo. Este arranjo participativo foi estabelecido pelo artigo 14 da Cons-tituição de 1988. Como exemplo, tem-se o projeto de iniciativa popular apresentado ao Congresso Nacional em 10 de agosto de 1999 (e aprovado em 21 e 23 de setembro, respectivamente, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal) sobre a compra de votos de eleitores (corrupção eleitoral). Cinco dias depois da aprovação, foi estabe-lecida a lei n. 9.840, que prevê punição ao “candidato que doar, oferecer, prometer, ou entregar ao eleitor, com o fim de obter o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição”. A pena prevista é a cassação do mandato do eleito, além de multa.

A experiência participativa, além de recente, é pouco desenvolvida no Brasil. Tal cons-tatação, embora preocupante, é alvissareira no sentido de que temos muito para aprofundar, e que este é um caminho para aperfeiçoar e fortalecer a nossa democracia.

Em termos participativos, podem-se destacar duas potencialidades de aprofundamen-to e inovação no cenário político nacional: o orçamento participativo, no qual os sujeitos se organizam para definir as prioridades de alocação de recursos; e os conselhos gestores, que representam a participação dos sujeitos em instâncias colegiadas com caráter deliberativo sobre determinados setores das políticas sociais, como os de saúde, criança e adolescente, educação.

Orçamento participativo

Criado em 1989, quando o Partido dos Trabalhadores (PT) assumiu a administração de Porto Alegre (RS), o orçamento participativo é uma inovação institucional que procura romper com a tradição autoritária e patrimonialista das políticas públicas, recorrendo à participação direta da população em diferentes fases da preparação e da execução orçamentária, com uma preocupação especial pela definição de prioridades para a distribuição dos recursos de investimento.O orçamento participativo é uma estrutura e um processo de participação comunitária baseado em três grandes princípios e em um conjunto de instituições que funcionam como mecanismos ou ca-nais de participação popular sustentada no processo de tomada das decisões do governo municipal.Os princípios são: todos têm direito de participar; a participação é dirigida por uma combinação de regras da democracia direta e de democracia representativa, e realiza-se através de instituições

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de funcionamento regular cujo regimento interno é determinado pelos participantes; os recur-sos de investimento são distribuídos de acordo com um método objetivo que combina ‘critérios gerais’ – critérios substantivos, estabelecidos pelas instituições participativas visando a definir prioridades – e ‘critérios técnicos’ – critérios de viabilidade técnica ou econômica, definidos pelo Executivo, e normas jurídicas federais, estaduais ou da própria cidade. A estrutura institucional básica do orçamento participativo está constituída por três tipos de instituições: as unidades administrativas do Executivo municipal encarregado de gerir o debate orçamentário com os cidadãos; as organizações comunitárias, autônomas, geralmente de base regional, que fazem a mediação entre a participação dos cidadãos e a escolha das prioridades para as diferentes regiões da cidade; e as instituições de participação comunitária com funcionamento regular que estabelecem uma mediação e interação permanentes entre os dois primeiros tipos, a saber: Conselho do Plano do Governo e Orçamento ou Conselho do Orçamento Participativo (COP), Assembleias Plenárias Regionais, Fórum Regional do Orçamento, Assembleias Plenárias Temáticas e Fórum Temático do Orçamento.O orçamento participativo foi adotado por outras cidades e conta com o reconhecimento dos orga-nismos internacionais, embora estes estejam mais interessados nas suas virtudes técnicas (eficiência e eficácia na distribuição e utilização dos recursos) do que nas democráticas (a sustentabilidade de um sistema complexo de participação e de justiça distributiva).O orçamento participativo tem sido um meio notável de promover a participação dos cidadãos em decisões que dizem respeito à justiça distributiva, à eficácia decisória e à responsabilidade do Executivo municipal e dos delegados eleitos pelas comunidades. Fonte: Santos, 2002.

Quando iniciativas desse tipo encontram respaldo na gestão pública, conseguem atingir níveis mais elevados de participação social. Isso ocorre porque a gestão participativa permeia a instituição que gerencia (um órgão público, uma secretaria, um ministério, ou mesmo o Poder Executivo como um todo), reconhecendo legitimidade às instâncias participativas (conselhos de Saúde, comitês de orçamento, conselhos tutelares, comissões...) e garantindo o cumprimento de suas deliberações. Com isso, os sujeitos que participam compreendem seu poder, o mesmo acontecendo com os que não participaram. A participação social valoriza-se e cresce uma cultura participativa que se amplia para outros campos e setores em busca de uma rede participativa.

O tópico a seguir procura situar e analisar a participação social no setor saúde. A de-mocratização do setor saúde preconizada pelo movimento sanitário (Escorel, 1999) ou da Reforma Sanitária tornou-se uma experiência modelar para outros países e, internamente, para outros setores. Foi consubstanciada em um “formidável sistema nacional de órgãos colegiados” (Carvalho, 1997: 93) que institucionalizou a participação da sociedade civil no processo de formação das políticas de saúde, numa cogestão social que se processa no in-terior do aparelho do Estado, configurando um verdadeiro sistema de accountability social no Brasil (Labra, 2009).

Accountability

Este conceito do campo da ética não encontra um correspondente preciso em português. Costuma ser traduzido por ‘responsabilização’ e significa uma obrigação moral de dar transparência às ações e de prestar contas. Dessa forma, os governantes sentem-se obrigados a prestar contas das ações realizadas, e os cidadãos os consideram responsáveis pelas consequências. É um ‘instrumento’ de controle do poder e um atributo que integra o controle social.

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ParticiPação Social no Setor Saúde no braSil

Uma breve perspectiva histórica

A participação da população em programas e ações de saúde não começou com o SUS. Nas décadas de 1970 e 1980, outros tipos de conselhos procuravam viabilizar a participação da população:

• conselhos comunitários – tinham como objetivo “servir de espaço de apresentação das demandas da comunidade junto às elites políticas locais, numa renovação da tradicional relação clientelista entre Estado e sociedade”;

• conselhos populares – criados pelos próprios movimentos sociais, cujas características eram “menor nível de formalização, não envolvimento institucional e a defesa da au-tonomia em relação ao Estado e partidos políticos”;

• conselhos administrativos – “voltados para o gerenciamento direto e participativo das unidades prestadoras de serviços, mas sem poder para influir no desenho das políticas públicas da área” (Tatagiba, 2002: 53-54).

Ao longo das últimas quatro décadas, houve uma mudança qualitativa na forma de participação. Na década de 1970, despontou sob a denominação de ‘participação comuni-tária’ em programas de extensão de cobertura preconizados pelas agências internacionais de saúde para a América Latina. Tais programas não só incentivavam o aproveitamento do trabalho não qualificado da população nas ações sanitárias, mas também valorizavam a organização autônoma da comunidade como possibilidade de conseguir melhorias sociais (Carvalho, 1995).

Em contextos ditatoriais, como era o caso de muitos países da América Latina, inclusive o do Brasil, esses programas ou foram implementados mutilando a dimensão participativa ou utilizados por agentes e intencionalidades contestatórias do status quo político-sanitário, em busca da construção/divulgação de um projeto sanitário contra-hegemônico.

Num segundo momento, surgiu a proposta de ‘participação popular’, em que a ca-tegoria ‘comunidade’ foi substituída pela categoria ‘povo’, entendida como a parcela da população excluída ou subalternizada no seu acesso a bens e serviços. Essa proposta repre-sentou o aprofundamento da crítica e a radicalização das práticas políticas de oposição ao sistema dominante. A participação foi preconizada no conjunto da dinâmica social, e não, como anteriormente, em ações simplificadas no âmbito dos serviços. O lócus da participação deixou de ser o serviço de saúde e passou a ser o conjunto da sociedade e do Estado, ga-nhando novo objetivo – a democratização da saúde, ou seja, o acesso universal e igualitário aos serviços e também acesso ao poder. As experiências baseadas nesse referencial foram contemporâneas aos movimentos sociais urbanos e, assim como estes, marcadas pelo con-fronto com o Estado que era compreendido em sentido restrito como ‘comitê de negócios da burguesia’ (Carvalho, 1995).

Na década de 1990, ganhou força a categoria ‘participação social’, que deixou de se referir apenas à participação dos setores sociais excluídos e passou a reconhecer e a acolher a diversidade de interesses e projetos existentes. Por isso, a categoria central deixou de

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ser ‘comunidade’ ou ‘povo’ e passou a ser a ‘sociedade’. Em tal concepção, a participação como demagogia ou como pedagogia deu lugar à participação como cidadania, ou seja, à universalização dos direitos sociais e à ampliação do próprio conceito de cidadania, num novo referencial do caráter e do papel do Estado, analisado como “arena privilegiada de conflito político onde interesses contraditórios lutam por prevalecer sobre questões sociais importantes” (Oslak apud Carvalho, 1995: 26).

A participação social como elemento estruturante do sistema nacional de saúde esteve presente desde o início da proposta do movimento da Reforma Sanitária, que, já na década de 1970, compreendia como indissociáveis as lutas contra a ditadura militar, pela democrati-zação do poder público e pela garantia da saúde como direito do cidadão e dever do Estado.

A participação comunitária foi adotada em vários programas de extensão de cobertura sob influência da Conferência de Atenção Primária em Saúde de Alma-Ata (1978) e estava prevista no natimorto Prev-Saúde, que, em 1980, pretendia articular, por meio dos serviços básicos de saúde, o Ministério da Saúde com o Ministério da Previdência e Assistência Social.

Em 1983, as Ações Integradas de Saúde (AIS), implementadas por meio de convênios trilaterais entre Ministério da Saúde, Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdên-cia Social (Inamps) e secretarias estaduais e municipais de Saúde, continham a diretriz da participação da população organizada nos colegiados de gestão: Comissão Interinstitucional de Saúde (CIS), no nível estadual, Comissão Interinstitucional Municipal de Saúde (CIMS) e Comissão Interinstitucional Local de Saúde (CLIS).

Posteriormente, a política de descentralização da previdência social conhecida como Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (Suds), desenvolvida pelo Inamps, em 1987, previa em suas diretrizes a participação de entidades comunitárias, sindicais e gremiais em instâncias consultivas (e não deliberativas) do seu processo de implementação. Como esta participação não foi regulamentada, gerou lacunas interpretativas sobre quem teria assento nesses colegiados como representantes da sociedade organizada.

Em 1986, no Relatório Final da 8a Conferência Nacional de Saúde (CNS), ficou con-substanciada a proposta do movimento sanitário que propôs uma completa reformulação das políticas de saúde então vigentes no país com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Para garantir o controle do novo sistema pelos usuários, a 8a Conferência preconizou a criação, em nível municipal, estadual e regional, de conselhos de Saúde compostos por representantes eleitos pela comunidade (usuários e prestadores de serviços) que permitissem a participação plena da sociedade no planejamento, execução e fiscalização dos programas de saúde. Além disso, propunha a reformulação da composição e da função do Conselho Nacional de Saúde.

Conselho Nacional de Saúde

Em 1937, no corpo da lei que instituiu uma nova organização do Ministério de Educação e Saúde, foram criados o Conselho Nacional de Saúde (CNS) e o Conselho Nacional de Educação (CNE) com a função de assistir o Ministério.Durante trinta anos, o Conselho Nacional de Saúde teve um funcionamento irregular e inexpressivo, até que, em 1974, decreto presidencial atribuiu ao Conselho objetivos, funções e estrutura mais defi-nidas, procurando compatibilizá-lo com o processo de modernização conservadora em andamento.

Você pode conhecer mais sobre as políticas de saúde e iniciativas de participa-ção social em saúde nos anos 80 consultando o ca-pítulo 11, sobre a história das políticas de saúde no período.

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“O CNS é um órgão de consulta que deve examinar o que lhe for submetido pelo Ministério da Saúde bem como opinar sobre matéria que por força de lei tenha que ser submetida à sua apre-ciação.” O perfil técnico e normativo do Conselho foi mantido. Era composto pelo ministro da Saúde, presidente nato, e quinze conselheiros, em um arranjo organizacional em que se verificam a ausência de representantes da sociedade, a proeminência da elite médica, a sobrerrepresentação de instituições militares e o exercício do papel de legitimador da política predominante.Em 1976, o decreto que regulamentou a lei do Sistema Nacional de Saúde (6.229/75) definiu o Conselho Nacional de Saúde como uma espécie de coletivo de câmaras técnicas a quem competia examinar, propor soluções para problemas e elaborar normas encaminhadas para a apreciação do ministro de Estado. Duas portarias ministeriais, de 1977 e 1978, estabeleceram a estrutura técnica e administrativa do Conselho para seu funcionamento como órgão consultivo com atribuições normativas. Nessa ocasião, sua composição foi alterada: continuou sendo presidido pelo ministro da Saúde, mas passou a ser composto por 23 membros, dos quais seis representantes ministeriais; seis presidentes de câmaras técnicas; seis membros de instituições relacionadas com a saúde e com a segurança nacional; e cinco técnicos de notória capacidade e comprovada experiência em assuntos de interesse da saúde.Entre 1970 e 1990, o Conselho teve pouca importância na formulação e no acompanhamento da política de saúde. Nesse período, outras instâncias de articulação ministerial foram criadas, como a Comissão Interministerial de Planejamento (Ciplan). Após a 8ª Conferência, a Comissão Nacional de Reforma Sanitária foi o espaço privilegiado de debate sobre o projeto de saúde para a Constituinte.Em 1990, já sob a égide da nova Constituição brasileira e da criação do SUS, o decreto 99.438/90 configurou um novo Conselho Nacional de Saúde com ampla representação social, composto por 31 membros e com as seguintes atribuições e competências:• deliberar sobre: formulação de estratégias e controle da execução da política nacional de saúde

em âmbito federal; critérios para a definição de padrões e parâmetros assistenciais;

• manifestar-se sobre a Política Nacional de Saúde;

• decidir sobre: planos estaduais de saúde, quando solicitado pelos conselhos estaduais de Saúde; divergências levantadas pelos conselhos estaduais e municipais de Saúde, bem como por órgãos de representação na área da saúde; credenciamento de instituições de saúde que se candidatem a realizar pesquisas em seres humanos;

• opinar sobre a criação de novos cursos superiores na área de saúde, em articulação com o Ministério da Educação e do Desporto;

• estabelecer diretrizes a serem observadas na elaboração dos planos de saúde em função das características epidemiológicas e da organização dos serviços;

• acompanhar a execução do cronograma de transferência de recursos financeiros, consignados ao SUS, aos estados, municípios e Distrito Federal;

• aprovar os critérios e valores para a remuneração dos serviços e os parâmetros de cobertura assistencial;

• acompanhar e controlar as atividades das instituições privadas de saúde, credenciadas mediante contrato, ajuste ou convênio;

• acompanhar o processo de desenvolvimento e incorporação científica e tecnológica na área de saúde, para a observância de padrões éticos compatíveis com o desenvolvimento sociocultural do país;

• propor a convocação e organizar a Conferência Nacional de Saúde, ordinariamente a cada quatro anos e, extraordinariamente, quando o Conselho assim deliberar, de acordo com a lei 8.142, de 28 de dezembro de 1990.

Entre 1990 e 1993 o Conselho Nacional de Saúde esteve no centro da arena política setorial, sendo o principal fórum em que foi travada “a disputa por ampliação de influência sobre os rumos da

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política nacional”. No entanto, com a criação das Comissões Intergestores Bipartite e Tripartite (CIB e CIT), por iniciativa do próprio Conselho em 1991, este foi relegado a um segundo plano, na medida em que, a partir de 1993, os gestores priorizaram a CIT como espaço decisório e de coordenação federativa do SUS. Além disso, “a estratégia adotada pelos conselheiros provenientes de entidades sociais de restringir a influência dos representantes de entidades de mercado, de médicos e de gestores no processo decisório do Conselho” impulsionou-os a buscar outros espa-ços políticos para defender seus interesses e apresentar suas propostas. Assim, embora tivessem reduzida “sua influência no interior do fórum, continuaram a ocupar posições muito influentes na arena decisória setorial” (Côrtes, 2009a: 200-202). Em 2002, o Conselho Nacional de Saúde tinha o ministro da Saúde como presidente nato e era composto por 32 conselheiros titulares: seis representantes do governo federal, dois representan-tes dos gestores estaduais e municipais cada. A categoria médica e outros profissionais de saúde, assim como os prestadores de serviços de saúde tinham três vagas cada, e os usuários ocupavam a metade das vagas (16).O decreto n. 5.839, de 2006, promoveu nova reforma na composição do Conselho, que passou a contar com 48 conselheiros titulares e, pela primeira vez, a eleger seu presidente, sendo o primeiro representante do segmento dos trabalhadores da saúde que após dois mandatos foi substituído, em 2011, em eleição, pelo ministro da Saúde.Os 48 conselheiros representam os seguintes segmentos: entidades e movimentos sociais de usuários do SUS (24); profissionais de saúde, incluída a comunidade científica (12); prestadores de serviço (2); entidades empresariais da área de saúde (2); e gestores federais (6), estaduais (1) e municipais (1).Entre 1990 e 2006 as organizações de profissionais e trabalhadores de saúde passaram de 4 (um da categoria médica) para 12 (um da categoria médica); as associações comunitárias, movimentos sociais e organizações não governamentais, de 2 para 6 conselheiros; e as entidades étnicas, de gênero e portadores de patologias, de 5 para 13 representantes. Portanto, em 2006, os represen-tantes dos profissionais e trabalhadores de saúde e das entidades étnicas, de gênero e portadores de patologias detinham mais de 50% dos votos (25 dos 48) no Conselho. Além do maior núme-ro de conselheiros de organizações sociais, estes eram mais assíduos, coordenavam maior número de instâncias organizativas do Conselho e dos debates do plenário, se manifestavam com mais frequência durante as discussões e representavam mais vezes o Conselho em atividades externas (Côrtes et al., 2009a). O Conselho Nacional de Saúde continua a desempenhar importante papel no contexto da polí-tica de saúde como instância de fiscalização, espaço de discussão pública de propostas e lócus de agregação de atores individuais e coletivos comprometidos com o controle social e com a defesa dos princípios fundamentais do SUS (Côrtes, 2009a).

No Relatório Final da 8ª CNS, os conselhos municipais despontam como órgãos ou ‘instâncias participativas’ externas ao poder público, de controle, pelos usuários, do sistema de saúde e de todas as etapas de seu ciclo de políticas. Também ficou explícito nessa con-ferência que a atuação dos conselhos de Saúde deveria se voltar para o enfrentamento dos interesses e das demandas do mercado, em especial as que, de maneira direta ou indireta, reduzissem e/ou interferissem no fluxo dos recursos públicos passíveis de serem alocados nas políticas sociais.

O documento sistematizou ainda as recomendações que se constituíram no projeto da Reforma Sanitária brasileira, levado à Assembleia Nacional Constituinte para disputar com outras propostas o que seria inscrito na Constituição sobre a saúde. Esses foram os referen-ciais com base nos quais os conselhos desenvolveram suas práticas iniciais e modelaram sua identidade política (Carvalho, 1997).

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O movimento sanitário desenvolveu um processo de intensa articulação social, política e partidária, conseguindo que a Constituição Federal de 1988 estabelecesse a saúde como direito do cidadão e dever do Estado e formalizasse legalmente a organização das ações e serviços de saúde em um Sistema Único de Saúde, regido pelas diretrizes da descentraliza-ção, da integralidade e da participação da comunidade.

A regulamentação do SUS ficou a cargo de uma lei ordinária, de número 8.080, promulgada em setembro de 1990. Contudo, os artigos que tratavam da participação da comunidade e do financiamento foram vetados pelo presidente Collor, exigindo um novo processo de mobilização e articulação, que redundou na lei 8.142, de dezembro de 1990.

A lei 8.142, além de praticamente reeditar o artigo sobre a participação da comuni-dade vetado na lei 8.080, relativo à obrigatoriedade da existência de conselhos municipais, estaduais e federal, ampliou a autonomia desses conselhos ao definir que suas normas de organização e funcionamento deveriam ser oficializadas por meio de regimentos internos específicos, cuja elaboração é atribuição dos próprios conselheiros (Carvalho, 1997).

Esta lei regulamentou a participação social no sistema de saúde por meio de duas instâncias colegiadas: as conferências e os conselhos, que apesar de não serem as únicas formas de participação no SUS, são as únicas obrigatórias para todo o país, instituindo um sistema de controle social.

Reforçando este caráter democrático e participativo, o setor saúde conforma um campo de intensa mobilização tanto do movimento social quanto do poder público. Além dos conselhos e conferências, a dinâmica de participação está representada pela atuação de diferentes entidades na política de saúde, entre os quais se destacam o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), os sindicatos e conselhos de profissionais de saúde e a Frente Parlamentar da Saúde.

Três instituições caracterizam a democracia sanitária no Brasil: conferências, conselhos e fundos de saúde. São também integrantes desta ‘democracia sanitária’ as Comissões In-tergestores Bipartites e a Comissão Intergestores Tripartite, que são mecanismos de gestão participativa e colegiada; os conselhos gestores nos serviços de saúde; as ouvidorias; e as consultas públicas realizadas pela Agência Nacional de Saúde (ANS), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e outras instâncias do Ministério da Saúde.

Em 2005, todos os municípios brasileiros tinham criado seus conselhos municipais de Saúde, gerando um contingente de aproximadamente 70 mil conselheiros, dos quais cerca de 35 mil participam como representantes dos usuários do SUS, o que os torna a mais abrangente rede de instâncias participativas do país.

No âmbito do governo federal, o Ministério da Saúde procurou aperfeiçoar a gestão participativa do SUS, adotando uma série de estratégias e procedimentos. A mais impor-tante foi a criação, em 2003, da então Secretaria de Gestão Participativa (SGP) – da qual Sergio Arouca foi o primeiro secretário –, transformada, em 2005, em Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP).

A SGP foi criada com a atribuição principal de apoiar instâncias como os conselhos e conferências de Saúde, que já estavam em funcionamento, como forma de efetivar a gestão participativa no SUS. A iniciativa trouxe repercussões, conflitos e estabeleceu um novo relacionamento entre o Ministério da Saúde e os movimentos sociais representados no

Controle socialSignifica, na concepção da sociologia clássica, os mecanismos coercitivos que a sociedade e o Es-tado exercem sobre os indivíduos.De modo diferente, no processo de formalização da participação social no setor saúde no Brasil, ‘controle social’ passou a expressar a possibilidade de a sociedade controlar o Estado por meio de instâncias participativas. Em 1990, quando a or-ganização jurídica do país incorpora os conselhos de Saúde na estrutura decisória do SUS, con-trole social sofre uma nova inflexão, adquirindo também o caráter de fis-calização do manejo dos recursos públicos.

O arcabouço institucional e decisório do SUS com seus colegiados partici-pativos é analisado no capítulo 12, com destaque para a Comissão Inter-gestores Tripartite (CIT), em funcionamento desde 1991 no âmbito nacional. Confira!

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Conselho Nacional de Saúde. No momento de sua criação, em 2003, a Secretaria tinha em sua estrutura dois departamentos: Articulação e Acompanhamento da Reforma Sanitária e Ouvidoria Geral do SUS.

Em julho de 2005, com a mudança do ministro da Saúde, a SGP foi reformulada passando a incorporar o componente estratégico: Secretaria de Gestão Estratégica e Parti-cipativa (SGEP). Dois principais motivos justificaram a reestruturação da Secretaria: a crise com o Conselho Nacional de Saúde e a tentativa de aumentar seu âmbito de atuação. A SGEP passou, então, a ser composta por quatro departamentos: 1) Departamento de Apoio à Gestão Estratégica e Participativa, que incorporou as atividades do extinto Departamento de Articulação e Acompanhamento da Reforma Sanitária, composto por duas Coordenações Gerais: de Apoio à Educação Popular e à Mobilização Social e de Apoio à Gestão Partici-pativa e ao Controle Social; 2) Departamento de Monitoramento e Avaliação da Gestão do SUS, cuja função é apoiar o monitoramento e a avaliação do SUS, a partir da elaboração da Política de Monitoramento e Avaliação da Gestão do SUS; 3) Departamento Nacional de Auditoria do SUS, responsável pelas atividades de auditoria e fiscalização, como a coorde-nação e implantação do Sistema Nacional de Auditoria no SUS (SinaSUS); 4) Departamento de Ouvidoria Geral do SUS, que foi mantido na SGEP.

Cabe à SGEP propor, apoiar e acompanhar os mecanismos constituídos de participa-ção popular e controle social, especialmente os conselhos e as conferências de Saúde. Tem também a responsabilidade de ouvir, analisar e encaminhar as demandas dos usuários, por meio da Ouvidoria Geral do SUS.

A SGP foi concebida como um espaço dentro do Ministério da Saúde onde seria possível repensar a Reforma Sanitária e o SUS, em conjunto com os movimentos sociais brasileiros, proposta política abrangente, sustentada na simbologia e na legitimidade de Sergio Arouca. Com o passar do tempo, a ideia de a SGP ser um lócus de inteligência para o SUS foi se diluindo, e a definição dos aspectos programáticos e atribuições se direcionou para pro-mover a equidade de grupos populacionais vulneráveis e para efetivar a gestão estratégica e participativa, por meio das ações de ouvidoria, auditoria, monitoramento e avaliação da gestão no SUS (Morais & Escorel, no prelo).

O principal produto da SGEP foi a elaboração da Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa (ParticipaSUS), lançada oficialmente em outubro de 2007, após realização de consulta pública, aprovação e pactuação no colegiado do Ministério da Saúde, no Conselho Nacional de Saúde e na Comissão Intergestores Tripartite.

A Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa (ParticipaSUS), promulgada pela porta-ria ministerial 3.207, de 26 de novembro de 2007, tem quatro componentes: Gestão Participativa e o Controle Social no SUS; Monitoramento e Avaliação da Gestão do SUS; Ouvidoria do SUS; e Auditoria do SUS. O documento descreve ainda as atribuições e responsabilidades das esferas de gestão no âmbito da política.A Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP), como órgão responsável pela coor-denação do ParticipaSUS, tem entre suas responsabilidades: apoiar os municípios, estados e Distrito Federal na elaboração dos respectivos componentes do ParticipaSUS; apoiar os conselhos estaduais e municipais de Saúde; apoiar administrativa e financeiramente a Secretaria Executiva do Conselho Nacional de Saúde (CNS); promover, em parceria com o CNS, a realização das con-ferências nacionais de Saúde e colaborar na organização das conferências estaduais e municipais

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de Saúde, oferecendo apoio técnico e financeiro. Cabe também à SGEP viabilizar administrativa e financeiramente a participação de conselheiros nacionais nas conferências nacionais de Saúde e na Plenária Nacional dos Conselhos de Saúde.A Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa estabelece a participação da SGEP no processo de educação permanente dos conselheiros nacionais, estaduais, municipais e dos con-selheiros de gestão participativa e a sua responsabilidade em disponibilizar o resultado de suas ações ao CNS.A SGEP, entre diversas outras atribuições e responsabilidades, deve, ainda, apoiar o fortalecimento dos movimentos sociais, aproximando-os da organização das práticas de saúde e das instâncias de controle social da saúde. Fontes: Morais & Escorel, no prelo; Brasil, 2007.

Para refletirIdentifique em seu cotidiano formas de participação na política de saúde e reflita a respeito de suas potencialidades e de seus limites.

Conselhos de Saúde

A lei 8.142/90 regulamenta a participação da comunidade na gestão do SUS por meio de conselhos de Saúde que devem existir em nível local, municipal, estadual e federal. Um conselho de Saúde é definido, na lei, como

Órgão colegiado, em caráter permanente e deliberativo, composto por representantes do governo, prestadores de serviço e usuários, [que] atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera de governo.

A lei 8.142 não estipulou a paridade exata entre os segmentos, que só foi proposta na resolução 33/1992, do Conselho Nacional de Saúde (mais tarde ratificada pela resolu-ção 333, de 2003), e nas recomendações da 10ª e da 11ª conferências nacionais de Saúde. A paridade estabelece que 50% dos conselheiros devem ser representantes do segmento dos usuários, 25% dos trabalhadores de saúde e os demais 25% formados por gestores e prestadores de serviços.

Os conselhos de Saúde integram o conjunto de ‘conselhos gestores’ criados pela Constituição Federal e suas leis complementares para atuarem nas áreas da educação, da assistência social, da habitação, da criança e do adolescente e do emprego. Devido a seu papel de mediador da relação entre Estado e sociedade, os conselhos gestores foram a principal inovação nas políticas públicas no período pós-ditadura, tornando-se uma nova esfera social-pública (ou pública não estatal) e moldando um novo padrão para tais relações (Gohn, 2003).

Os conselhos conjugam características da democracia representativa e elementos da democracia direta, como o controle dos atos do conselheiro, diretamente ou por meio das entidades, e a revogabilidade do mandato (Labra, 2005).

Estudo realizado com 27 conselhos estaduais e distrital de Saúde e com 2.994 conselhos municipais de Saúde elaborou um perfil dessas instâncias participativas a partir das respostas mais frequentes ou, no mínimo, de metade dos conselhos (Quadro1).

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Quadro 1 – Estrutura e características de conselhos de Saúde no Brasil – 2005

Características Conselhos Estaduais de Saúde

Conselhos Municipais de Saúde

Período de criação 1990-1995 1991-1997

Número de conselheiros 20 ou mais 12

Cumprimento da paridade Não Não

Presidente Secretário Estadual de SaúdeGestores, em geral

secretário municipal de Saúde

Escolha do presidente Determinada pela norma legal Eleição

Gênero do presidente Masculino Masculino

Idade do presidente 45 a 54 anos 40 a 49 anos

Escolaridade do presidente Pós-graduação Superior

Duração do mandato dos conselheiros 2 anos 2 anos

Reeleição dos conselheiros 1 vez –

Regimento interno Sim Sim

Mesa diretora Sim Não

Secretaria executiva Sim Não

Equipe de apoio administrativo Sim Não

Comissões permanentes e grupos de trabalho Sim Não

Periodicidade das reuniões ordinárias Mensais Mensais

Divulgação das reuniões para a população Sim Sim

Participação da população nas reuniões Direito a voz Direito a voz

Cancelamento de reuniões por falta de quórum (2004) Não Não

Quórum para aprovação das deliberações 50% dos conselheiros + 1 50% dos conselheiros + 1

Homologação das resoluções Sim Não

Publicação das resoluções em D.O. Sim Não

Cumprimento das resoluções pelo Poder Executivo Sim Não

Participação na elaboração dos planos de saúde

Aprovação do plano elaborado pelo Poder

ExecutivoElaboração e aprovação

Elaboração de plano de trabalho Sim Não

Dotação orçamentária própria Sim Não

Elaboração de seu orçamento Não Não

Autonomia para gerenciar os recursos disponíveis Não Não

Sede Sim Não

Telefone Sim – exclusivo Sim – compartilhado

Computador Sim Não

Acesso à Internet Sim Não

Fonte: Moreira & Escorel, 2005.

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Os conselhos de Saúde, como espaço de poder, de conflito e de negociação, apresentam avanços consideráveis no que se refere à possibilidade de os cidadãos controlarem as ações governamentais, à mudança na forma de interferir – deslocando o clientelismo e fisiologis-mo tradicionais – e ao processo pedagógico de aprendizado do exercício do poder político.

Entretanto, enfrentam dificuldades e dilemas que acabam por incidir em sua legi-timação e eficácia. Labra (2005) identifica que os maiores obstáculos são o autoritarismo social e as visões hierárquicas e excludentes da sociedade e da política. Mudar essa matriz cultural é o desafio mais relevante da democratização dos espaços públicos deliberativos e de diálogo entre o governo e a sociedade civil. Outro aspecto a considerar é a “necessária revisão da exequibilidade dos encargos conferidos aos colegiados”, tendo em mente que “as resoluções dos Conselhos não constituem um ciclo completo das políticas, e sim fazem parte de processos de decisão-ação que ocorrem em outros âmbitos” (Labra, 2009: 200).

Conferências Nacionais de Saúde

A outra esfera pública de participação social no setor saúde, componente da ‘demo-cracia sanitária’, está constituída pelas conferências nacionais de Saúde. A mesma lei 378, de 13 de janeiro de 1937, que estabeleceu nova organização para o Ministério de Educação e Saúde, instituiu tanto os conselhos nacionais de Saúde e de Educação quanto as conferências nacionais de Saúde e a de Educação,

destinadas a facilitar ao Governo Federal o conhecimento das atividades concernentes à edu-cação e à saúde, realizadas em todo o país, e a orientá-lo na execução nos serviços locais de educação e de saúde, bem como na concessão do auxílio e da subvenção federais.

O papel atribuído às conferências por ocasião de sua institucionalização foi o de promo-ver o intercâmbio de informações e, por meio destas, propiciar ao governo federal o controle das ações realizadas no âmbito estadual a fim de regular o fluxo de recursos financeiros. Não há qualquer menção a processos deliberativos.

As duas primeiras conferências, em 1941 e 1950, estiveram mais próximas de um en-contro técnico de administradores do Ministério da Saúde e dos estados (Cesaltina, 2003), no qual o projeto de Estado para a saúde ancorava-se, em grande parte, nos pontos de vista dos setores médicos. Treze anos após a realização da 2ª CNS, ocorreu, em dezembro de 1963, a 3ª CNS, sob a gestão do ministro Wilson Fadul, no governo João Goulart, época das reformas de base. Nessa conferência foi proposta a elaboração de um Plano Nacional de Saúde e a municipalização dos serviços de saúde. Mesmo tendo sido realizada em um momento político de intensa discussão sobre os rumos do país e com posições extremamente polarizadas, a 3ª CNS contou com um número relativamente reduzido de delegados, em sua maioria ocupantes de cargos governamentais.

Nos anos de ditadura militar foram realizadas quatro conferências que, progressi-vamente, foram ampliando o escopo do debate e a participação de pessoas, sem alterar o seu caráter eminentemente técnico-burocrático. A 4ª CNS, em 1967, tratou dos recursos humanos do setor saúde, contando com a participação de representantes do Ministério da Educação e Cultura; a 5ª CNS, em 1975, teve como tema central o Sistema Nacional de Saúde, debate do qual participaram também representantes do recém-criado Ministério da Previdência e Assistência Social. Em 1977, realizou-se a 6ª CNS, que discutiu a situação das

Para conhecer o contexto político de realização das primeiras conferências de Saúde, consulte o ca-pítulo 10.

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grandes endemias, a interiorização dos serviços de saúde e a política nacional do setor; e a 7ª CNS, realizada em 1980, teve como tema central a Extensão das Ações de Saúde através dos Serviços Básicos, promovendo, pela primeira vez, o debate em torno da atenção básica de saúde. Embora quando da realização das 6ª e 7ª CNS o movimento sanitário já estivesse constituído e a transformação da abordagem teórica e política da saúde em curso, nenhuma entidade da sociedade civil participou dessas conferências (Escorel & Bloch, 2005).

A 8ª CNS, em 1986, foi o momento de inflexão dessa instância participativa que passou a contar com representantes dos movimentos sociais e da sociedade civil, além dos técnicos, governantes e profissionais de saúde. A ‘Oitava’ foi a grande matriz da Reforma Sanitária e teve como resultados práticos a criação da Comissão Nacional de Reforma Sanitária (CNRS) e a inclusão dos princípios fundamentais da Reforma Sanitária proposta pela conferência na nova Constituição brasileira.

Na lei 8.142/90 ficou estabelecido que a CNS seria realizada a cada quatro anos, “com a representação dos vários segmentos sociais, para avaliar a situação de saúde e propor di-retrizes para a formulação de políticas de saúde nos níveis correspondentes, convocada pelo Poder Executivo ou, extraordinariamente, por este ou pelo Conselho de Saúde”.

A composição dos participantes das conferências nacionais de Saúde ficou vaga (‘re-presentação dos vários segmentos sociais’) em comparação à dos conselhos de Saúde. Po-rém, a lei 8.142 estabeleceu que tanto nos conselhos de Saúde quanto nas conferências “a representação dos usuários será paritária em relação ao conjunto dos demais segmentos”.

A norma legal estabeleceu um fluxo decisório e operacional no qual as conferências propõem diretrizes para a formulação de políticas a partir da avaliação da situação de saú-de, os conselhos formulam estratégias e controlam a execução das políticas, e as instâncias executivas (Ministério da Saúde, secretarias estaduais e municipais de Saúde) implementam as políticas e homologam as deliberações dos conselhos. Os elementos que integram esse fluxo decisório guardam entre si importantes diferenças tanto no número quanto na sua representatividade.

As conferências de Saúde e os conselhos de Saúde têm sua organização e normas de funcionamento definidas em regimento próprio, aprovadas pelo respectivo conselho, de acordo com a lei 8.142/90. Os regimentos das conferências nacionais de Saúde são aprova-dos pelo Conselho Nacional de Saúde antes da sua realização e devem constar do Manual da Conferência, enquanto o regulamento é submetido à aprovação do plenário da própria conferência no seu primeiro momento de funcionamento, após a cerimônia de abertura.

Após a sua regulamentação legal, foram realizadas a 9ª CNS (1992), a 10ª CNS (1996), a 11ª CNS (2000), a 12ª CNS (2003), a 13ª CNS (2007) e a 14ª CNS (2011). A partir da 9ª CNS os delegados passaram a ser 50% de entidades representativas dos usuários, e os restantes 50% divididos entre trabalhadores de saúde (25%) e gestores e prestadores (25%).

As conferências nacionais são precedidas por conferências municipais e estaduais ainda que nem sempre tenha sido estabelecido um fluxo ascendente de deliberações. Cada conferência apresentou uma composição específica que pode ser relacionada à conjuntura política de sua realização, assim como ao desenvolvimento do SUS.

Não tendo caráter deliberativo e funcionando mais como um mecanismo de aus-culta da sociedade, os debates das conferências nem sempre se desdobraram em ações

A 8ª CNS teve como te-mas: saúde como direito de cidadania, a reformu-lação do sistema nacional de saúde e o financia-mento do setor, e suas deliberações alimenta-ram o intenso debate travado até a aprovação da Constituição de 1988. Para conhecer a impor-tância das deliberações da 8ª CNS para confor-mação do SUS, consulte os capítulos 11 e 12.

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do Executivo. Entretanto, é inegável a influência desses fóruns em processos como o da intensa municipalização a partir da 9ª CNS, ou o do crescimento da importância do con-trole social a partir dos conselhos de Saúde depois da 10ª CNS (Escorel & Bloch, 2005).

Cada conferência adotou uma forma de organização quanto ao número de temas ge-rais, mesas-redondas, seleção de temas específicos, número de dias de debate em grupos de trabalho, número de dias de plenária final. As dinâmicas têm por objetivo buscar estabelecer um clima democrático e pacífico de discussões entre os delegados, que passaram de cerca mil na 8ª CNS para cerca de 4 mil na 12ª CNS.

No processo da 13ª CNS, 4.413 municípios (79%), os 26 estados e o Distrito Federal mobilizaram nas etapas prévias 1,3 milhão de participantes. E o evento, em novembro de 2007, congregou 2.275 delegados estaduais, 352 nacionais, 336 convidados e 219 observa-dores (Escorel & Moreira, 2009). Intensas disputas marcaram a 12ª e a 13ª conferências e dificultaram a elaboração dos respectivos relatórios finais. Na medida em que o ‘processo conferencista’ depende da estrutura das relações sociais prevalecente no Conselho Nacional de Saúde (Escorel & Bloch, 2005), indaga-se o quanto essas dificuldades estariam associadas às disputas entre a nova comunidade de política da área, que passou a dominar a dinâmica de funcionamento e o processo decisório do Conselho, e o movimento sanitário, colocado em situação subordinada no Conselho, mas firmemente posicionado em outros espaços da arena decisória da área da saúde (Côrtez, 2009b).

Reunindo mais de 4.500 pessoas, sendo 2.937 delegados definidos em 4.537 confe-rências municipais e 27 estaduais, a 14ª CNS, realizada em novembro/dezembro de 2011, teve como tema central “Todos Usam o SUS: SUS na seguridade social! Política pública, patrimônio do povo brasileiro, acesso e acolhimento com qualidade: um desafio para o SUS”. Os debates mais candentes se concentraram nas críticas a todas as modalidades de privatização do sistema (organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público e outras parcerias público-privadas) (Radis, 2012).

A noção de comunidade de política refere-se a um número limitado e relativamente estável de membros que dividem os mesmos valores e visão sobre quais deveriam ser os resultados da po-lítica setorial. Comunidades de políticas participam de redes de políticas, um meio de designar a relação entre grupos de interesse, especialistas e o governo ou seções do governo, envolvendo uma grande variedade de atores movendo-se para dentro e para fora das arenas políticas, com visões diferentes. (Côrtes, 2009a).

Espaço público por excelência, de manifestação de interesses divergentes e de conflitos consequentes às divergências, as regras de organização e funcionamento das conferências são essenciais para que a força dos argumentos e a construção de consenso constituam a base das políticas deliberadas.

As conferências nacionais de Saúde, desde a 8ª CNS, tiveram importância na constru-ção e no aprimoramento do SUS, não só por interferirem nos seus rumos, na elaboração de normas e regulamentações e ao conferirem a legitimidade necessária para as políticas de saúde, mas também e principalmente por constituírem uma arena democrática de debate com influência em outras áreas governamentais que também realizaram suas conferências (meio ambiente, cidades etc.) (Escorel & Bloch, 2005).

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Assim como os conselhos de Saúde, as conferências de Saúde constituem um avanço no processo de participação social, um sistema participativo com grande capilaridade, va-lor pedagógico e contribuições para a cultura democrática participativa. Por isso mesmo, também como os conselhos, enfrentam limites e desafios que devem ser analisados para sua possível superação.

Para refletirVisite o Portal ParticipaNetSUS (www.ensp.fiocruz.br/participanetsus) e, utilizando as ferramen-tas de pesquisa, identifique as principais características dos conselhos estaduais e municipais de Saúde. Reflita sobre os avanços e as dificuldades enfrentadas pelos conselhos.

Nos oito anos do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foram criados ou ampliados diversos canais de interlocução do Estado com os movimentos sociais – conferên-cias, conselhos, ouvidorias, mesas de diálogo, mesas de negociação permanente, audiências públicas etc. – que configuram o embrião de um verdadeiro sistema nacional de demo-cracia participativa. A partir de 2003, a Secretaria Geral da Presidência da República, que tradicionalmente é um órgão de assessoramento das articulações políticas do governo com o Congresso, ganhou formalmente a função de estabelecer uma estreita comunicação do governo com a sociedade civil organizada (Ipea, 2011). Essa secretaria coordenou o proces-so participativo do debate do Plano Plurianual (PPA 2004-2007) ocorrido em 2003, com a realização de audiências públicas descentralizadas.

Em 2011 existiam 61 conselhos de participação social assessorando as ações de todos os ministérios, dos quais 33 foram criados ou recriados (18), ou democratizados (15) desde 2003 (Ipea, 2011). Das oitenta conferências nacionais realizadas nos últimos vinte anos, setenta delas ocorreram a partir desse ano. A saúde foi o grupo temático que mais realizou conferências (21), nacionais ou de temas específicos da saúde como saúde bucal, saúde do trabalhador, saúde indígena, saúde mental, saúde ambiental. Vinte conferências abordaram o grupo temático ‘minorias’ englobando povos indígenas, juventude, direitos da criança e do adolescente, promoção da igualdade racial, direitos da pessoa com deficiência, direitos da pessoa idosa. Outras 22 conferências debateram temas agrupados em Estado, economia e desenvolvimento (economia solidária, agricultura e pesca, segurança alimentar e nutricional, cidades, arranjos produtivos locais) e 17 conferências abordaram temas relativos a educação, cultura, assistência social e esporte (Pogrebinschi & Santos, 2010).

Embora haja concordância sobre o fato de terem aumentado os espaços e processos participativos, os estudiosos discordam quanto ao seu significado. De acordo com Moroni (2009), foram abertos espaços de ‘interlocução’, incorporando sujeitos políticos, bons na mobilização e com capilaridade, porém não atores políticos ou sujeitos sociais, com envol-vimento no processo de tomada de decisão. No seu entender, o processo de elaboração do PPA 2004-2007 foi “um verdadeiro espetáculo da participação”, restrito, com discussões limitadas e incorporação de aspectos periféricos, sem mudar a lógica das políticas.

Por sua vez, Côrtez (2009b: 122) menciona estudos que comprovam que no setor saúde o impacto das conferências nas decisões políticas é pequeno, seja nos aspectos relacionados ao financiamento, seja na definição de prioridades. Em contrapartida, Pogrebinschi e Santos (2010)

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identificaram que um quinto dos projetos de lei e quase metade das propostas de emenda constitucional que tramitavam no Congresso em outubro de 2009 apresentavam forte con-vergência com deliberações de alguma conferência.

Em estudo divulgado pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), Entre Representação e Participação: as conferências nacionais e o experimentalismo democrático brasileiro, Pogrebinschi e Santos (2010) analisaram oitenta conferências realizadas entre 1988 e 2009 e relacionaram as diretrizes traçadas em cada uma com as proposições legislativas no Congresso. Esse estudo, que objetivou investigar o impacto do processo das conferências nacionais na produção legislativa, concluiu, segundo o secretário nacional de Articulação Social, em depoi-mento a Bonone (2010), que as conferências têm se mostrado um bom instrumento de apoio às decisões legislativas. “A informação sobre os mais variados temas, a partir das conferências, acaba sendo de grande importância para os parlamentares brasileiros. Um percentual muito significativo [das diretrizes das conferências] teve uma relação direta com as emendas e projetos de lei”, destacou o secretário. A presidente da Confederação Nacional de Associações de Moradores (Conam) avalia que a quan-tidade de propostas deliberadas dificulta a efetivação da totalidade das resoluções das conferências, mas acredita que houve avanços significativos no período do governo Lula: “A política urbana só foi efetivamente para a pauta a partir da conferência construída junto com o Ministério das Cidades em 2003”. Apesar de acreditar que questões centrais pautadas nas conferências ainda estão longe de ser resolvidas, a presidente da Conam considera que a Conferência das Cidades foi “um espaço importante de participação que fez avançar pautas que estavam travadas há mui-tos anos, como a criação do Fundo Nacional de Habitação e Interesse Social. Também têm a ver com o debate realizado nas conferências a Política Nacional de Saneamento Ambiental, a Lei dos Resíduos Sólidos e a revisão de planos diretores em diversas cidades brasileiras passarem a ser debatidos com participação da sociedade civil” (Bonone, 2010). Para o presidente da União da Juventude Socialista (UJS), “a capacidade que as conferências têm tido de mobilizar a sociedade é a maior vitória delas”. Ele acredita que “analisar as confe-rências pela forma como estão sendo aproveitadas as suas bandeiras é insuficiente, pois o que tem se constituído é o fortalecimento da participação da sociedade. A 1ª Conferência Nacional de Juventude, por exemplo, mobilizou 400 mil jovens debatendo não uma, mas várias propostas que afetam diretamente a vida da juventude”. Embora as medidas consideradas prioritárias pela 1ª Conferência Nacional de Juventude (2008) não tenham sido materializadas – o Estatuto da Juventude e o Plano Nacional de Juventude –, “uma das principais funções das conferências é criar um novo canal de interferência da sociedade na elaboração e no acompanhamento da imple-mentação de medidas de governo”. O presidente da União de Negros pela Igualdade (Unegro) também valorizou as conferências pela mobilização da sociedade que promovem e, em sua opinião, as resoluções ajudam as medidas de governo a terem “consonância com os pleitos da sociedade civil” (Bonone, 2012). Entre as medidas implementadas como fruto do processo de debate da 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (2005), o presidente da Unegro citou a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial.Pogrebinschi e Santos verificaram que das 1.937 diretrizes das conferências analisadas foram gerados 2.808 projetos de lei e propostas de emendas constitucionais, ainda em trâmite à época da pesquisa. Além disso, identificaram outros 321 projetos de lei e emendas constitucionais apro-vados, sendo 312 leis ordinárias ou complementares e nove emendas constitucionais, totalizando 3.129 proposições legislativas.Fontes: Pogrebinschi & Santos (2010); Bonone (2010).

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PerSPectivaS: avançoS e deSafioS

No domínio da democracia participativa, mais do que em qualquer outro, a democracia é um princípio sem fim, e as tarefas da democratização só se sus-tentam quando elas próprias são definidas por processos democráticos cada vez mais exigentes.

(Santos&avitzer,2002:75)

A participação social, conforme apresentamos neste capítulo, é o exercício da de-mocracia no cotidiano, o que exige uma permanente reflexão sobre suas regras, limites e possibilidades. É, portanto, um processo de aprendizagem que se exerce no respeito às diferenças e na ampliação dos espaços de convivência e debate político.

A participação, ao mesmo tempo que é alimentada pela matriz cultural de uma socieda-de, é também a possibilidade de transformar esta matriz. Este caráter dialético e subversivo gera resistências à sua ampliação em múltiplos espaços.

No momento em que as democracias representativas, por todo o mundo, enfrentam dificuldades e descrenças de seus ideais, a valorização de espaços participativos pode ser um caminho para o aprimoramento democrático, via incorporação de segmentos até então alijados da possibilidade de formularem e interferirem na execução das políticas públicas.

No entanto, as instâncias da democracia participativa não estão imunes aos proble-mas inerentes da democracia representativa: “Processos de intensificação democrática são combatidos frontalmente ou descaracterizados por via da cooptação por grupos sociais su-perincluídos ou da integração em contextos institucionais que lhes retiram o seu potencial democrático e de transformação das relações de poder” (Santos & Avritzer, 2002: 60).

Entre os desafios a serem enfrentados estão: reconstruir a arquitetura da participação, recuperando o papel político dos conselhos; resgatar o papel de mobilização social das con-ferências; respeitar a multiplicidade dos sujeitos políticos; agregar novos sujeitos políticos e reconhecer outras formas de organização; e recolocar a questão da reforma do Estado (Moroni, 2009).

O sistema colegiado de conferências e conselhos de Saúde constitui uma inovação política, institucional e cultural da maior relevância para o avanço da democracia e do SUS e uma singularidade no contexto latino-americano. Os conselhos, apesar das dificuldades, têm, ainda que latente, o potencial para se afirmarem como instâncias que impulsionam a participação da sociedade organizada no ciclo de políticas públicas de saúde, contribuindo para a reforma da estrutura político-institucional do país.

O aprimoramento dos conselhos (e das conferências) de Saúde envolve aumentar a democratização (incluindo a qualidade da representação) e incrementar a efetividade. Seria a instalação de um ciclo virtuoso no qual o exercício da democracia deliberativa redundaria no aumento da efetividade dos conselhos, ou seja, na sua maior interferência no ciclo das políticas públicas, e sua democratização possibilitaria qualificar a representação, o debate deliberativo e, portanto, a sua intervenção (Escorel & Moreira, 2009).

Apesar dos problemas enfrentados pelo conjunto de órgãos colegiados e deliberativos para promover a participação, certamente vivemos uma experiência muito mais rica de aprendizado cívico e de tolerância, de negociação e de busca do bem comum, do que se

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essa institucionalidade de democracia sanitária não existisse. A construção de uma sociedade democrática, mais justa, na qual a participação direta dos cidadãos sustenta as instâncias e instituições, é um desafio constante.

leituraS recomendadaS

BORDENAVE, J. E. D. O que É Participação. São Paulo: Brasiliense, 1983. (Coleção Primeiros Passos, 95)

CARVALHO, A. I. de. Conselhos de Saúde no Brasil: participação cidadã e controle social. Rio de Janeiro: Fase, Ibam, 1995.

CÔRTES, S. V. (Org.) Participação e Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.

DAHL, R. Poliarquia. São Paulo: Edusp, 1997.

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