participação paterna no cuidado de crianças pequenas: um … · cialmente nas camadas populares...

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1865 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(6):1865-1874, nov-dez, 2005 ARTIGO ARTICLE Participação paterna no cuidado de crianças pequenas: um estudo etnográfico com famílias de camadas populares Paternal involvement in the care of small children: an ethnographic study of low-income families 1 Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. Correspondência V. Bustamante Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Basílio da Gama s/n, Campus Universitário Canela, Salvador, BA 40110-040, Brasil. [email protected] Vânia Bustamante 1 Leny A. Bomfim Trad 1 Abstract The present study focused on father’s involve- ment in the health care of small children (under six years) in low-income families. An ethno- graphic study was performed with interviews and participatory observation. We visited fami- lies in an outlying low-income urban neighbor- hood in Northeast Brazil, for nine months. Chil- dren appeared as a fundamental dimension in the lives of men and women, constituting a common reason for forming a family nucleus. The paternal role involved three key dimen- sions: education, in which the father was essen- tial; body care, usually considered a female at- tribution; and preservation of integrity, consid- ered an obligation for all family members. De- spite the fact that traditional identification of gender roles still persists, based on contrasting discourses and practices, in all families (and es- pecially in nuclear ones) there were dimensions in which men participated actively, demon- strating physical and emotional proximity with their children. Paternity; Family; Infant Care Introdução Estudar a relação entre a vida familiar e a saú- de cobra particular importância no momento atual, considerando a centralidade do Progra- ma Saúde da Família (PSF). Trata-se de uma es- tratégia que tem como propósito a reorienta- ção dos modelos assistenciais vigentes por in- termédio da reorganização da atenção básica 1 , tendo a família como objeto de intervenção. Na prática a proposta se vê dificultada pela falta de compreensão sobre a heterogeneidade e com- plexidade das famílias, assim como pela tendên- cia a naturalizar o lugar das mulheres como responsáveis pelo cuidado de seus membros 2 . Ao estudar a temática da família, é impor- tante fazer referência a Ariès 3 , autor que con- textualiza historicamente a família nuclear e a progressiva centralidade das crianças, situan- do sua origem na burguesia do século XVIII e afirmando sua permanência como forma he- gemônica até a atualidade. No entanto, existe coincidência entre vários cientistas sociais bra- sileiros ao apontar que o modelo de família nu- clear burguesa é insuficiente para compreen- der a realidade das famílias brasileiras, espe- cialmente nas camadas populares 4,5,6,7,8,9 . Estas famílias são vivenciadas como uma dimensão ontológica, constitutiva da razão de ser no mundo 7 , um organizador da vida com base nas relações de mútua obrigação – junta- mente com o trabalho e a comunidade –, em

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1865

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(6):1865-1874, nov-dez, 2005

ARTIGO ARTICLE

Participação paterna no cuidado de crianças pequenas: um estudo etnográficocom famílias de camadas populares

Paternal involvement in the care of small children:an ethnographic study of low-income families

1 Instituto de Saúde Coletiva,Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil.

CorrespondênciaV. Bustamante Instituto de Saúde Coletiva,Universidade Federal daBahia. Rua Basílio da Gamas/n, Campus UniversitárioCanela, Salvador, BA 40110-040, [email protected]

Vânia Bustamante 1

Leny A. Bomfim Trad 1

Abstract

The present study focused on father’s involve-ment in the health care of small children (undersix years) in low-income families. An ethno-graphic study was performed with interviewsand participatory observation. We visited fami-lies in an outlying low-income urban neighbor-hood in Northeast Brazil, for nine months. Chil-dren appeared as a fundamental dimension inthe lives of men and women, constituting acommon reason for forming a family nucleus.The paternal role involved three key dimen-sions: education, in which the father was essen-tial; body care, usually considered a female at-tribution; and preservation of integrity, consid-ered an obligation for all family members. De-spite the fact that traditional identification ofgender roles still persists, based on contrastingdiscourses and practices, in all families (and es-pecially in nuclear ones) there were dimensionsin which men participated actively, demon-strating physical and emotional proximity withtheir children.

Paternity; Family; Infant Care

Introdução

Estudar a relação entre a vida familiar e a saú-de cobra particular importância no momentoatual, considerando a centralidade do Progra-ma Saúde da Família (PSF). Trata-se de uma es-tratégia que tem como propósito a reorienta-ção dos modelos assistenciais vigentes por in-termédio da reorganização da atenção básica 1,tendo a família como objeto de intervenção. Naprática a proposta se vê dificultada pela faltade compreensão sobre a heterogeneidade e com-plexidade das famílias, assim como pela tendên-cia a naturalizar o lugar das mulheres comoresponsáveis pelo cuidado de seus membros 2.

Ao estudar a temática da família, é impor-tante fazer referência a Ariès 3, autor que con-textualiza historicamente a família nuclear e aprogressiva centralidade das crianças, situan-do sua origem na burguesia do século XVIII eafirmando sua permanência como forma he-gemônica até a atualidade. No entanto, existecoincidência entre vários cientistas sociais bra-sileiros ao apontar que o modelo de família nu-clear burguesa é insuficiente para compreen-der a realidade das famílias brasileiras, espe-cialmente nas camadas populares 4,5,6,7,8,9.

Estas famílias são vivenciadas como umadimensão ontológica, constitutiva da razão deser no mundo 7, um organizador da vida combase nas relações de mútua obrigação – junta-mente com o trabalho e a comunidade –, em

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que os projetos de vida se constroem em fun-ção do grupo e não do indivíduo 6,8. A rede deobrigações se sobrepõe aos laços de sangue, deforma que, com exceção da relação já dada en-tre pais e filhos, as relações com parentes desangue não se estabelecem se com eles não forpossível dar, receber e retribuir 7.

As relações entre pais e filhos podem nãoter a exclusividade característica de outros se-tores sociais. Isso se expressa na “circulação decrianças”, termo introduzido por Fonseca 5 pa-ra afirmar que, com freqüência, uma criançapode ser entregue a parentes para que cuidemdela, de forma temporária ou definitiva.

Nas famílias de camadas populares, os pa-péis estão previamente definidos em função deuma divisão sexual do trabalho e de relaçõeshierárquicas entre homens e mulheres e entrepais e filhos 6. Assim, enquanto o homem é aautoridade moral, responsável pela respeitabi-lidade familiar, à mulher cabe outra dimensãoda autoridade, a de manter a unidade do gru-po: “ela é quem cuida de todos e zela para quetudo esteja em seu lugar” 7 (p. 64). A autoridadeda mulher descansa na valorização de seu pa-pel de mãe e em sua capacidade de administraros recursos, muito mais que no fato de ela terum trabalho remunerado, o que é consideradoatribuição masculina. Essas formas de pensartenderiam a permanecer mesmo quando, naprática, o homem não pode cumprir seu papelde provedor, e a mulher desenvolve um traba-lho remunerado 7.

Segundo Lupton & Barclay 10, as mudançassociais, tais como o ingresso da mulher no mer-cado de trabalho e as novas tecnologias repro-dutivas, têm impacto em termos de renegociaro significado da paternidade. Há paradoxos etensões em torno dos significados da paterni-dade, que influenciam a forma como os homensse vêm a si próprios como pais e como prati-cam a paternidade.

Em tal contexto surge o conceito do “novopai”, mediante o qual a paternidade é conside-rada uma oportunidade para expressar senti-mentos, participando ativamente no cuidadodos filhos, e tendo relação igualitária e fluidacom a parceira, o que se expressa na divisão detarefas. A fragilidade deste discurso é advertidanão apenas nas expectativas contraditórias emrelação aos homens – espera-se que os homensparticipem ativamente da esfera econômica,que sejam provedores da família e que cons-truam sua identidade masculina pelo papel detrabalhadores, ao mesmo tempo em que se de-manda que estejam presentes em casa, divi-dindo o cuidado das crianças com a parceira –,mas na multiplicidade de formas de exercer a

paternidade, vinculadas a diversos processossociais e culturais.

Com relação à forma como os homens vi-venciam a identidade de gênero, e a paternida-de como parte dela, no contexto latino-ameri-cano, evidencia-se que: “... contrariamente a laleyenda del macho, la paternidad es una di-mensión fundamental en la vida de los varonesy que su práctica asume muchas variedades deacuerdo con factores relacionados al momentodel ciclo vital, el tipo de estructura familiar, lascondiciones materiales y las culturas regiona-les” 11 (p. 17).

Concordamos com outros autores quantoao pequeno número de estudos que enfocam aparticipação masculina em dimensões-chavecomo a paternidade, em comparação com aque-les dedicados às mulheres 12. Pensamos que noBrasil isso teria a ver com uma tendência a na-turalizar o lugar das mulheres como cuidado-ras da família, o que se exprimiria inclusive emconsiderá-las informantes privilegiadas, ouquase exclusivas, quando se trata de pesquisara família 13,14.

O contexto brasileiro oferece importantesaportes para pensar formas de incluir os ho-mens no estudo da vida familiar. Neste sentido,Bastos et al. 15 afirmam que é “inadiável” ini-ciar uma escuta dirigida aos homens da famí-lia. Bilac 16 (p. 36) considera que é preciso rea-lizar um “reexame dos papéis sexuais na famí-lia que incorpore, também, sentimentos, vivên-cias e percepções masculinas”.

Para a construção do nosso recorte de pes-quisa, apoiamo-nos no conceito de “cuidado”na perspectiva de Ayres 17. O cuidar envolve con-tato intersubjetivo e preocupação pelo outro,visando à construção conjunta de “projetos defelicidade” em longo prazo. O mencionado au-tor propõe que a noção de cuidado e a atitudecuidadora sejam estendidas à totalidade dasreflexões e intervenções no campo da saúde.Pensamos que tais observações são válidas tam-bém para pensar o contexto familiar. Tal pro-posta faz a ponte com o conceito de “famíliavivida”, trabalhado por Szymanski 9, no qual afamília é definida em função da convivência ede relações duradouras entre indivíduos, demesma idade ou de gerações diferentes, entreas quais é central a relação de cuidado.

Propomos a categoria “modos de cuidar”para implementar o conceito de cuidado comoferramenta de pesquisa, e para tanto nos ba-seamos na categoria “modos de partilhar”, pro-posta por Bastos 18. De forma análoga à cate-goria que a inspirou, os modos de cuidar permi-tem integrar num mesmo olhar práticas orien-tadas ao cuidado da saúde das crianças, o mo-

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do de inserção dos adultos nessas práticas, comdestaque para a inserção dos homens, e os sig-nificados, elaborados por homens e mulheres,que orientam a dita inserção. Tais significadosse dariam em dois níveis: por um lado, o sistemade crenças sobre a criação de filhos; por outro,as “justificativas imediatas às práticas narradaspelos pais ou observadas em campo” 15 (p. 108).

Buscamos entender como se dá a participa-ção paterna nos modos de cuidar da saúde decrianças menores de seis anos, dentro do con-texto familiar.

Na especificação da faixa etária levamos emconsideração a importância que os primeirosanos têm para a saúde da criança. Também le-vamos em conta o alerta de Parseval 12 sobre atendência de excluir os homens do cuidadodos filhos, desde a gravidez até a idade pré-es-colar, juntamente com a idéia de que a mater-nidade é sempre uma experiência realizadorapara as mulheres, para a qual estariam natural-mente preparadas. Pensamos que ditos pressu-postos precisam ser explorados e problemati-zados, e para tal fim é importante focalizar ocuidado de crianças pequenas.

Foram realizadas comparações entre as fa-mílias estudadas, considerando as observaçõesde Fonseca 5 sobre a necessidade de se ter aber-tura para estudar dinâmicas alternativas na vi-da familiar.

Metodologia

O presente estudo é exploratório e de cunho et-nográfico, pois nos aproximamos de fenôme-nos no seu ambiente natural, coletando infor-mações mediante contato freqüente com osparticipantes. A observação participante foi ummeio privilegiado de acesso aos informantes,por intermédio de visitas realizadas duas vezespor semana, durante um período de nove me-ses, e registradas num diário de campo. A técni-ca permitiu observar algumas situações comque os informantes se deparam normalmente ecomo se comportam diante delas, a fim de pos-teriormente descobrir as interpretações que elestêm sobre os acontecimentos observados 19.

De forma complementar, realizamos entre-vistas semi-estruturadas com os sete casais queparticiparam da pesquisa. Incluímos tambémduas avós que convivem com seus filhos e ne-tos. As entrevistas, realizadas individualmente,foram gravadas e transcritas. Pelas perguntas,procuramos nos aproximar dos discursos e vi-vências dos informantes sobre o cuidado dosfilhos aos quais não tivemos suficiente acessocom a observação.

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O trabalho de campo se realizou em “Prai-nha”, nome fictício de um bairro do subúrbioferroviário de Salvador, entre agosto de 2003 eabril de 2004. O contato se iniciou com o apoiode profissionais da Unidade de Saúde da Famí-lia que funciona no bairro, os quais nos apre-sentaram à comunidade, levando-nos a nume-rosas casas de moradores, o que nos permitiuidentificar as famílias que continuariam sendovisitadas. Num segundo momento, que duroudois meses, contamos com o auxílio de uma as-sistente do bairro, considerando as constantesadvertências sobre os perigos de andar semcompanhia.

Optamos por nos concentrar em seis famí-lias com crianças pequenas, avaliadas como tí-picas do bairro. A escolha foi também orienta-da por considerações de ordem prática, espe-cialmente a afinidade com os informantes e aacessibilidade da moradia, e teórica, particu-larmente a diferenciação entre família nuclear,família novo arranjo, família extensa e famíliamonoparental, utilizada em estudos anteriores18. Por estarmos realizando uma primeira abor-dagem de uma temática pouco estudada, opta-mos por excluir famílias em que não havia apresença física do pai, nem contato com este, jáque nelas seria mais difícil observar o fenôme-no de interesse. Consideramos que esta é umatarefa a ser retomada em futuras pesquisas.

O trabalho de campo nos levou a abando-nar a diferenciação inicial das famílias, consi-derando mais adequado distingui-las apenasem nucleares e extensas. Percebemos que asfamílias inicialmente consideradas monopa-rentais e de novo arranjo funcionam no dia adia como extensas, visto que os parentes parti-cipam ativamente das atividades cotidianas,fato que não acontece nas duas famílias nu-cleares, apesar de também contarem com fa-miliares morando nas imediações.

Duas famílias estão formadas pelo casal depais e dois filhos. Nas quatro restantes convi-vem três gerações, e há mais de um casal ou mu-lher com filhos. Para efeitos de identificação nopresente texto, as famílias nucleares serão iden-tificadas como N1 e N2, e as extensas como E1,E2, E3 e E4, ao passo que usaremos nomes fic-tícios ao fazer referência aos informantes.

Com as visitas, desenvolvemos um relacio-namento intenso com os informantes, plenode significados e afetos. No início a tendênciafoi ver a pesquisadora – o trabalho de campofoi realizado apenas pela primeira autora dopresente artigo – como uma estranha que po-deria lhes dar algo material. Aos poucos, e comajuda de explicações, foi predominando o gos-to de ser visitado e a valorização da atenção e

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da conversa. De forma semelhante ao referidopor Sarti 7, no contato com nossos informantesa opção de dialogar respondendo perguntas edeixando que as diferenças aparecessem pro-moveu um valioso aporte de dados. O fato de apesquisadora ser estrangeira, contrariando aexpectativa inicial, revelou-se um elemento faci-litador no trabalho de campo, uma vez que con-tribuiu para que os informantes se mostrassemabertos e tolerantes ao se sentirem valoradospelo interesse de alguém que “não é daqui” eque, portanto, precisava de explicações deta-lhadas para compreender os informantes. Servisitado por um estrangeiro era visto como umadeferência no contexto pesquisado.

Vários participantes esperavam que o con-tato fosse com as mulheres, o que se eviden-ciou em expressões de estranhamento diantede nossas tentativas de incluir os homens nasconversas. Pensamos que além da expectativade que, por ser mulher, a pesquisadora conver-sasse com as mulheres da casa, a distância dealguns homens teve a ver com a dificuldade deiniciar um contato pouco comum com uma mu-lher jovem, branca e de classe média. Respeita-mos tal posição, de forma que a aproximaçãocom vários homens se deu de forma paulatina,partindo-se de contatos iniciais com as mulhe-res. Em alguns momentos, usamos a mediaçãodas mulheres como um recurso para sentir se-gurança. Por exemplo, ao ficar em ambienteprivado com o marido fazíamos com que a par-ceira ficasse sabendo e de certa forma autori-zasse. Por outro lado, a relação com crianças eadolescentes refletiu o grau de proximidadeque fomos alcançando com os adultos.

Os cuidados éticos estiveram presentes emtodos os momentos da pesquisa. O Termo deConsentimento Livre e Esclarecido, em que sefala do tema de pesquisa genericamente, semexplicitar que focalizaríamos a participaçãopaterna, foi apresentado e discutido com osparticipantes após a aprovação do projeto peloComitê de Ética em Pesquisa, Instituto de Saú-de Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Odocumento foi assinado por no mínimo umadulto de cada família.

Seguindo proposta de Becker 19, por reali-zarmos uma pesquisa baseada na observaçãoparticipante, realizamos a primeira fase de aná-lise ainda durante a coleta de dados. Isso nospermitiu orientar momentos posteriores dotrabalho de campo e também construir o rotei-ro de entrevista, realizada na etapa final do tra-balho de campo. Nesse primeiro momento acategoria teórica “modos de cuidar” foi desdo-brada em quatro: (a) cuidados que atendem anecessidades básicas, tais como alimentação,

higiene, sono e abrigo; (b) cuidados ligados àpromoção da saúde, à medida que envolvemprocessos de desenvolvimento cognitivo, psi-comotor e emocional; (c) cuidados que envol-vem prevenção de sintomas, doenças ou aci-dentes; e (d) cuidados que respondem a neces-sidades de assistência diante de sintomas, doen-ças ou acidentes.

A segunda fase de análise, que se iniciouapós a conclusão da coleta de dados, incluiu oprocessamento das notas de campo e das en-trevistas transcritas, seguindo a seqüência pro-posta por Emerson et al. 20: leitura do diário decampo, codificação aberta (inicialmente cria-mos 72 códigos para o diário de campo), reda-ção de memos teóricos, seleção de temas, co-dificação focalizada – o material foi organizadoem temas: 16 do diário de campo e 13 das en-trevistas – e, por último, a construção de me-mos integradores.

A “análise abrangente final” 19 se deu numterceiro momento, em que predominou o tra-balho de síntese e interpretação. A categoria“modos de cuidar” continuou se revelando útil,visto que orientou a integração de nossas apre-ciações sobre o ponto de vista dos informantescom o embasamento teórico do estudo. O pre-sente artigo é produto de dita síntese e está or-ganizado em quatro categorias temáticas: (a) olugar das crianças nas famílias, vinculado àscondições de vida e ao sistema de crenças so-bre a criação de filhos; (b) a inserção paternano cuidado cotidiano dos filhos; (c) a estruturafamiliar como contexto que influencia a inser-ção paterna no cuidado dos filhos; e (d) a com-plexa inter-relação entre discursos e práticas.Os títulos usados para apresentar os resultadosconstituem uma adaptação das categorias te-máticas a uma linguagem próxima do contextoetnográfico.

Resultados e discussão

As famílias em Prainha e as crianças na família

Prainha é um bairro localizado na entrada dosubúrbio ferroviário de Salvador, Bahia, Brasil.Na área visitada, as casas foram entregues a an-tigos moradores de palafitas há mais de vinteanos, sendo construções de madeirite progres-sivamente transformadas em casas de alvena-ria, ainda hoje em construção.

Os moradores, que se autoclassificam comopobres, têm acesso a serviços básicos ainda in-suficientes, com instalações muitas vezes clan-destinas, sendo freqüente a falta de água. É co-

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mum que os moradores reclamem das defi-ciências dos serviços de saúde, assim como dobaixo número de escolas e creches e da falta dealternativas de lazer no bairro. A limitada in-serção no mercado de trabalho – a maioria vivede biscates – contribui para limitar o acesso aotransporte público e às opções de lazer que fi-cam “na cidade”. O bairro alberga igrejas cató-licas e pentecostais, assim como terreiros decandomblé, que funcionam também como es-paços de socialização e lazer para adultos ecrianças.

Pais e mães consideram que a creche ou apré-escola, instituições freqüentadas por 6 das11 crianças acompanhadas, não funcionamadequadamente como espaço de educação mo-ral, o que sim pode acontecer nas igrejas pen-tecostais, freqüentadas assiduamente por mem-bros de três famílias.

A violência em suas várias formas, incluin-do a doméstica, é fonte de intensa preocupaçãoentre os moradores. Com certa freqüência apa-recem relatos sobre abusos – inclusive assassi-natos – cometidos pelos policiais do posto dobairro contra moradores, especialmente os ho-mens, e alguns deles pais de crianças pequenas.

Embora as seis famílias acompanhadas te-nham algum tipo de renda fixa (emprego for-mal em quatro famílias, aposentadoria em trêse bolsa-família em uma), a quantia que rece-bem é reduzida, e apenas uma das famílias temrenda fixa igual ou superior a dois salários mí-nimos. Dada a instabilidade no emprego, o ti-po de trabalho realizado pelos informantes va-ria em função das oportunidades. Contudo,trata-se de ocupações consideradas pouco qua-lificadas como serviços gerais e segurança, en-tre os homens, e trabalho doméstico e vendas,entre as mulheres, o que pode estar vinculadocom a baixa escolaridade encontrada entre osinformantes.

Os sete informantes homens se identificame são considerados pelas parceiras enquantopais das crianças com quem convivem, apesarde três deles não serem os pais biológicos deno mínimo uma de suas crianças. Isso sugereque para os informantes a paternidade está da-da pelo fato de se criar o filho, o que por suavez tem a ver com conviver com a mãe 11.

Tanto para os homens quanto para as mu-lheres os filhos são muito importantes, e mui-tas vezes estão na base da fundação da família21, porque se entende que assim deve ser e tam-bém por razões práticas, dado que para seis ca-sais a união foi precipitada por uma gravidez.

Tal como referido por Sarti 7, para os infor-mantes uma família nuclear morando perto deparentes, mas mantendo independência, é tida

como ideal. O fato de viver em casa de paren-tes, especialmente da mãe, é avaliado comoprovisório e em vias de ser resolvido, mesmoque isso se prolongue indefinidamente por di-ficuldades materiais.

Coincidindo com o conceito de Ayres 17 so-bre o cuidado, para os informantes os filhosenvolvem um projeto de vida: “porque a gentenão deve criar a criança para o presente, a gentecria para o futuro” (Alice, E4). Criação se asso-cia com educação, e cuidado se refere ao aten-dimento a necessidades básicas e a dar afeto.Ambos se complementam de forma que: “a gen-te cria e cuida ao mesmo tempo” (Carla, E3). Pa-ra os homens, assumir a responsabilidade dosfilhos, tal como colocado por Arilha 22, implicase dispor a satisfazer intensas demandas, paraas quais é preciso ter dinheiro e, portanto, tra-balhar. Implica também preocupar-se com o fi-lho e dedicar-se a ele, particularmente quandose trata de “crianças pequenas, que não têm en-tendimento” (Cristóvão, E2), em contraste coma “criança já crescida, que pode ajudar em ca-sa” (Carmem, avó E1).

A falta de recursos materiais faz necessário“ter cabeça” e limitar o número de filhos; e nissohá contraste entre gerações, pois, à diferença deseus genitores, os informantes se preocupamem controlar a própria fecundidade. No entan-to, a prática do chamado “planejamento fami-liar” é levada a cabo apenas pelas mulheres.Coincidindo com achados de pesquisas demo-gráficas no Brasil 23, assim como de pesquisasem ciências sociais que falam em tendência areduzir o número de filhos 24,11, os informantesconsideram que dois filhos é o número ideal.

Ainda que este não seja o caso de nossos in-formantes, em Prainha é comum que avós ma-ternas e paternas “peguem os netos para criar”,situação que constitui um exemplo de circula-ção de crianças. Isso tem a ver com a equiva-lência estabelecida, também por nossos infor-mantes, entre mães e avós. Dado que “a avó é asegunda mãe”, é natural que ela cuide cotidia-namente dos netos – achado também referidopor Trindade & Menandro 25 –, sobretudo, quan-do coabita com eles, como acontece em quatrodos casos acompanhados.

De maneira semelhante ao encontrado porOlavarría 21 no Chile, os filhos são fonte de gra-tificação, por serem objetos de amor: “gostomuito de criança”, explica Diogo (N2). Tambémoferecem gratificações ao permitirem que seafirmem prerrogativas dos adultos, pois devema eles respeito incondicional – Ana (N2) ex-pressa isso ao corrigir o pequeno Clever (qua-tro anos): “‘você’ não, ‘a senhora’, assim tem queme chamar” – e retribuições no futuro. Tal fato

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garantiria a perpetuação da família, tal comoDiogo coloca: “ser pai significa muita coisa, fi-car com eles, conversar, ajudar no dever, ensiná-los, ensiná-los a ser bons filhos, [para] maisadiante eles perceberem o que a gente fez poreles, e que eles façam o mesmo”.

Por outro lado, também coincidindo comachados de Olavarría 21, com os filhos se man-tém a esperança de que eles consigam mais doque os pais, tal como Cristóvão (E2) comenta:

“Ela [Anita, 3 anos] pode aprender muito,aprende mais se começar cedo, e se forma maisrápido. Quem sabe ela não faz uma faculdade eela não vira uma doutora igual à senhora [apesquisadora]? ... Por que não? A gente tem quepensar alto”.

O lugar do pai nos cuidados cotidianos: “Isso é coisa mais de mulher, entendeu?”

A participação paterna no cuidado da saúdedas crianças foi apreendida mediante três ei-xos: a preservação da integridade, os cuidadoscorporais e a formação moral, pensados emforma diferenciada para meninos e meninas.Em relação ao primeiro ponto, vemos que a in-tensa preocupação em preservar a integridadefísica e emocional da criança, compartilhadapor homens e mulheres, é relacionada aos pe-rigos que circundam o bairro: perigo de estu-pro (especialmente sentido no caso das meni-nas), de atropelamento, de presenciar episó-dios de violência, entre outros.

A casa também é percebida como um lugarperigoso, em razão da precariedade das cons-truções, o que levou Paula (N1) a dizer: “convi-ver com o risco é foda, viu?”, explicando que erao risco de Jorge (um ano) cair pela escada. To-dos os membros adultos da família, indepen-dentemente do sexo, participam das preocupa-ções e práticas que delas derivam. O envolvi-mento dos homens costuma dar-se com inten-sidade, tal como mostra a fala de Rodrigo (E2):

“Às vezes eu fico lá no trabalho pensandonessa escada aí, ó. Fico, penso muito nessa esca-da aí, que ele fica descendo aí direto. O lado delá nem me preocupo mais, entendeu? Já boteiuma cerca. É só essa escada aí mesmo, que mepreocupo muito”.

Em três das quatro famílias extensas, a preo-cupação com preservar a integridade pareceser sinônima de preocupação com a vida emo-cional. Nesse sentido, a atenção em torno dabrincadeira, que habitualmente acontece narua, centra-se em proteger do perigo, dando-semenor importância a outras dimensões tais co-mo a capacidade de “estar alegre e brincalhão”e aprender, que são destacadas por Ed (N1) e

Diogo (N2). Os mencionados informantes sãopais que fazem deveres com os filhos e partici-pam habitualmente da brincadeira deles, o queacontece com os outros cinco pais apenas deforma eventual.

O gênero da criança envolve diferenças im-portantes nos modos de cuidar. Homens e mu-lheres consideram que a menina precisa demais cuidados corporais que o menino, na higie-ne e na arrumação, como explica Diogo (N2):“em termos de banho, limpeza, esse negócio to-do, é mais sensível que o menino”. Também épreciso “ficar de olho” na menina diante de ris-co de estupro, assim o expressa Jussiara (E2):“Porque filha mulher, minha filha, a gente temque ter cuidado, né, porque sempre o homemvai desejar, né? Pode ser criança ou que for, temhomem que deseja, porque é mulher”.

Coincidindo com achados de pesquisas an-teriores 26, para os informantes os cuidadosque envolvem manipulação do corpo são con-siderados “negócio de mulher”, algo que a mu-lher faz melhor, como parte de seus instintos eporque desde cedo se preparou para isso. Emcontraposição, o pai teria um papel central naeducação, esperando-se que seja a autoridade11,21,24 e coloque limites, especialmente para ofilho homem, dada a tendência deste a quererficar na rua.

Algumas falas de mulheres deixam entrevera ambigüidade desta perspectiva ao colocarque o marido é mais “mole” ou que, em que pe-se exercer sua autoridade, não sabe qual o mo-mento certo para corrigir e qual a forma de fa-zê-lo. Isso nos deixa a impressão de que paravários informantes é a presença paterna em simesma que favorece a formação da criança,mesmo que na prática o exercício da autorida-de seja administrado pela mulher.

A presença do pai ajudaria a alcançar umdos principais objetivos da família: que a crian-ça se “crie na obediência”, sem “ousadia” nem“gaiatice”. Homens e mulheres concordam emque, para conseguir criar “filho obediente”, épreciso exigir padrões rígidos de comporta-mento. O certo e o errado estão claramente de-finidos a priori, e o certo é a criança obedecersem precisar de explicação e sem “obrigar” ospais a usar de castigo físico. Tal como encon-trado por Alatorre & Luna 24 no México, os in-formantes esperam que o filho obedeça porrespeito aos pais, não apenas por temor, o quepode ser conseguido dando-se bom exemplo.Isso ajudaria a ter sucesso na criação, o que, naperspectiva dos informantes, só será confirma-do quando o filho chegar à adolescência, portratar-se de um momento em que se fazem es-colhas marcantes, como optar por ser um “tra-

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balhador” ou se envolver com atividades ilíci-tas, por exemplo.

Alguns informantes consideram que o paitambém deve ser um modelo, um herói paraseu filho homem, assim como a pessoa maisadequada para conversar sobre sexualidadequando o filho crescer. Neste sentido, Alice(E4) explica: “... sentar, conversar, essas coisas derelações, quando vai chegando já a idade: ‘olhafilho, o mundo é violento, tem droga, tem essascoisas’. Eu acho que essa parte é obrigação dopai, entendeu?”.

Mães e “ajudantes” nas diferentes realidades familiares

Homens e mulheres coincidem em dizer que“mãe é mãe”, e pai é “ajudante”, o que correspon-de a achados de pesquisas anteriores 11,21,25,27

e aos nossos pressupostos, por mais que usan-do diferentes termos. Ser mãe implica saberadministrar a casa, oferecer uma alimentaçãoadequada, “na hora certa”, para a criança. Talcomo referido por Loyola 28, para os informan-tes são atribuições da mãe os cuidados corpo-rais e as práticas de saúde, tanto as caseirasquanto as que envolvem serviços de saúde epráticas alternativas, tais como a reza.

A forma em que se concretiza o papel de“ajudante”, ou o auxílio, não é a mesma em to-das as famílias. Nas famílias extensas, a ajudanos cuidados cotidianos, que envolve satisfa-ção de necessidades básicas, prevenção e cui-dados diante de sintomas ou doenças, é poucoexpressiva, dando a impressão de que nessasfamílias a participação paterna nas tarefas émenos necessária: “O pai é o ajudador da famí-lia, ele tem o seu papel de trabalhar, trazer osustento da família, estar presente dentro de ca-sa porque impõe respeito dentro de casa. E acriança criada sem o pai, é difícil, né?” (DonaAurelina, avó da E1).

Mesmo que tenham em comum com as fa-mílias extensas a centralidade dos papéis de“dar a despesa”, “ser autoridade”, “dar o respei-to”, nas duas famílias nucleares a participaçãonos cuidados cotidianos seria mais necessária;logo, mais expressiva, tal como vemos na falade Ana (N2):

“Na semana, ele cuida deles; eu quando che-go de noite passo um pano na casa, faço a comi-da para deixar para outro dia para ele não terque fazer comida. Mas tem hora que não dátempo, que eu tou cansada ou então a comidatá na geladeira, tá empedrada, não dá; no outrodia, ele tem que tirar, e temperar e cozinhar. Masfora disso não, ele cuida dos meninos direitinhotambém”.

Para homens e mulheres, o bom pai é o queestá presente na vida do filho, especialmentequando este precisa. Daí o papel de “ajudante”ser definido também como estar presente emcasos de doença ou acidentes que excedem oalcance imediato da mulher: levar ao hospital,acompanhar internamento etc. Os trabalhosde Aquino & Menezes 29 e Woortmann 30 des-crevem achados semelhantes.

“Hoje, com a mudança de algumas coisas”

Num primeiro nível, percebemos que nossosachados correspondem aos resultados de tra-balhos já publicados 11,21,24,27,31 assim comoaos nossos pressupostos, ao apontar o predo-mínio do discurso tradicional em que a presen-ça paterna é definida como prover, ser autori-dade, e estar perto do filho; porém, sem neces-sariamente participar de cuidados cotidianos.No entanto, pensamos que uma contribuiçãooriginal deste trabalho, facilitada por seu cará-ter etnográfico, diz respeito à observação decontrastes entre discursos e práticas.

O principal contraste aconteceu no sentidoinverso ao que esperávamos originalmente. Tí-nhamos como suposição que o desejo de mos-trar-se o melhor possível, natural em qualquerinformante, levaria os homens a afirmar queparticipam ativamente no cuidado dos filhos,ainda que isto não acontecesse de fato. Nenhumdos informantes se comportou segundo o es-perado, e inclusive os dois homens que partici-pam ativamente no cuidado dos filhos se colo-caram num lugar secundário e subordinado àsparceiras, transmitindo a impressão contrária:dizem que fazem menos do que de fato fazem.Isto foi claramente expresso por Ed (N1) – “éque eu faço tudo, mas eu falo que não faço” –,quem por sua vez fez referência às mudançasna forma de pensar que nem sempre se con-cretizam na prática:

“Oh, o pai também é essencial, porque ospais do passado, eles tinham a concepção deque o pai só é feito para trabalhar e sustentar afamília; hoje com a mudança de algumas coi-sas, da mãe sair para trabalhar, então o traba-lho é dividido, porém não acontece tanto assim,porque eu não faço tanta coisa assim como Pau-la diz (risos), ela olha muito mais do que eu”.

Consideramos que a coexistência de traçosde permanências e mudanças está presente,ainda que de forma incipiente, nas seis famí-lias acompanhadas. A dinâmica familiar de Car-la e Tinho (E3) é ilustrativa desta tensão. Porum lado, Tinho se dispõe a realizar trabalho do-méstico e a cuidar das crianças quando é pre-ciso, apesar do discurso que desvaloriza esse

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comportamento, trazido por Iara, a filha maisvelha da primeira união de Carla: “mãe, na ruadisseram que homem que cozinha é veado”. Noentanto, a resposta de Carla questiona tal opi-nião e valoriza a participação masculina: “Oxen-te, isso não é verdade; aqui Tinho cozinha, lim-pa a casa, ele é veado?... Tem que ser assim, énormal que homem ajude”.

Por outro lado, Tinho tem estado “sumido”da vida dos cinco filhos que teve em duasuniões anteriores. Este comportamento é asso-ciado com a frustração que lhe produz não po-der contribuir para o sustento dos filhos: “Eunão vou lá, não vou porque chego e o menino táprecisando de alguma coisa e no momento nãoposso dar nada para eles”. Apesar disso, Tinhoexpressa seu desejo de ter proximidade afetivacom seus filhos: “No momento não posso daruma boa atenção para os meninos, porque euqueria ter uma casa grande com um quarto, sópara um domingo pegar eles, ficar com eles”.

Consideramos importante notar que o fatode sumir pode também estar vinculado à ten-dência a perder contato com os filhos quandohá separação da mãe, independentemente dacapacidade de prover, fenômeno observadoem pesquisas anteriores 11,21 e freqüentementereferido pelos moradores de Prainha.

Considerações finais

O presente estudo nos permite conhecer al-guns aspectos envolvidos na freqüente ausên-cia dos homens na vida dos filhos. É comumque se trate não de falta de interesse, mas daimpossibilidade de manter a divisão sexual dotrabalho – segundo a qual o homem é provedore a mulher cuidadora – e que, como conse-qüência, o homem que não pode ser provedoreconômico de seus filhos tenda a perder con-tato com eles.

Por outro lado, é preciso reconhecer que,com base na divisão sexual do trabalho, homense mulheres têm formas diferenciadas de cuidar.Freqüentemente os homens cuidam do que tan-ge a eles como, por exemplo, a integridade físicavinculada com as instalações domésticas, já quecabe a eles construir a casa (Sarti CA. Comuni-cação pessoal; 2004). Dessa forma, quando, pornecessidade, os pais oferecem cuidados catalo-gados como “negócio de mulher” – dar banho,dar comida, entre outros – eles se consideram, esão considerados pelas mulheres da família, fo-ra de lugar. Para lidar com esta incongruênciaentre o que é esperado e o que acontece na prá-tica aparece a idéia de que o homem estaria aju-dando ou auxiliando a mulher.

Olhar para as mencionadas dimensões –tanto os motivos da ausência masculina quan-to as múltiplas formas de estar presente –constitui um desafio para futuras pesquisas etambém para a atual construção das práticasde saúde, particularmente no contexto do PSF.

Perguntamo-nos: como ajudar homens emulheres a lidar com as mudanças – no âmbitodoméstico, no mercado de trabalho, entre ou-tros – a construir práticas satisfatórias e com-patíveis com a realidade em que vivem? Porexemplo, como ajudar homens como Tinho,que por não serem provedores perdem contatocom os filhos, em que pese desejarem exercer apaternidade? E como oferecer às crianças umaalteridade de presença materna e paterna cons-truída em liberdade?

Ainda que sem pretender dar resposta a es-sas perguntas, sobre as quais é preciso conti-nuar refletindo, o trabalho realizado nos per-mite fazer algumas sugestões. Questionar asequivalências entre casa e família 30 e entre paie provedor – em um contexto de crescentes se-parações, aumento do número de famílias che-fiadas por mulheres e altíssimo desemprego –parece-nos uma tarefa prioritária. Com tal ob-jetivo, faz-se necessário oferecer espaços alter-nativos à casa: espaços de lazer acessíveis, as-sim como serviços de saúde, tanto em atençãobásica – especialmente no contexto do PSF –como nos demais níveis de atenção, e institui-ções educativas sensibilizadas com esta temá-tica. A expectativa é de que ditos espaços pos-sam acolher o desejo de exercer a paternidade,presente em muitos homens, reconhecendo-onas suas mais diversas formas, juntamentecom as dúvidas e contradições vivenciadas porhomens e mulheres.

Além disso, os dados apresentados podemsubsidiar estratégias orientadas à inclusão doshomens nas práticas de saúde, respondendo auma necessidade já apontada em estudos an-teriores 32. É preciso, certamente, dar continui-dade às presentes reflexões e, para isso, conti-nuar estudando a paternidade em relação como cuidado da saúde, procurando integrar a ex-periência individual com a vida familiar e asrelações com o contexto social mais amplo. Pa-ra tal propósito, a abordagem etnográfica nosparece particularmente útil.

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Agradecimentos

O presente trabalho foi beneficiado por uma bolsa deestudos concedida à primeira autora pelo ProgramaInterinstitucional de Metodologia de Pesquisa emGênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, financia-do pela Fundação Ford. A pesquisa contou ainda coma orientação das professoras Estela Aquino, ReginaBarbosa e Fabíola Rohden. Agradecemos aos doisconsultores anônimos pelos comentários e sugestões.

Colaboradores

V. Bustamante redigiu a maior parte do conteúdo doartigo e contribuiu na coleta e análise de dados. L. A.B. Trad redigiu segmentos do artigo.

Resumo

O presente estudo focaliza a participação paterna nocuidado da saúde de crianças menores de seis anos emfamílias de camadas populares. Trata-se de um estudode cunho etnográfico desenvolvido mediante observa-ção participante e entrevistas. Visitamos famílias deum bairro de periferia de uma capital nordestina, du-rante um período de nove meses, e encontramos queter filhos constitui uma dimensão fundamental na vi-da de homens e mulheres, constituindo causa comumda formação de novos núcleos familiares. A participa-ção paterna é sintetizada em três dimensões: a educa-ção, em que o pai é fundamental; os cuidados corpo-rais, entendidos como atribuição feminina; e a preser-vação da integridade, considerada dever de todos osmembros da família. Embora persista a identificaçãocom papéis de gênero tradicionais, ao contrastarmosdiscursos com práticas, percebemos que em todas asfamílias, e mais intensamente nas nucleares, existemdimensões nas que os homens participam ativamente,evidenciando proximidade física e emocional com osfilhos.

Paternidade; Família; Cuidados do Lactente

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Recebido em 09/Nov/2004Versão reapresentada em 14/Mar/2005Aprovado em 20/Mai/2005