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PARTE III- SOMÁLIA: UM CAMPO DE TESTES PARA AS “NOVAS” OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU
O fim da Guerra Fria e a conseqüente superação das tensões entre Estados
Unidos e União Soviética conduziram a um exagerado otimismo acerca do futuro
da ONU expresso, sobretudo, por meio da expansão do número e escopo das suas
operações de paz. De acordo com Boutros-Ghali (1996), o envolvimento da ONU
no conflito somali ocorreu justamente neste ponto de virada na história da
Organização, quando o fim da Guerra Fria (i) renovou o otimismo acerca da
habilidade do Conselho de Segurança em cumprir a promessa da Carta da ONU
de “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra” e (ii) conduziu a uma
tremenda expansão das atividades de “peace-keeping”. De acordo com Barnett
(1995) a decisão do Comitê Nobel de conceder o prêmio da paz em 1988 aos
“peacekeepers” da ONU foi profética, visto que desde o fim da Guerra Fria, a
ONU se tornou o principal ator incumbido da manutenção da paz e da segurança
internacionais. Para Barnett (1995), não há melhor símbolo do ressuscitar da ONU
do que as suas “novas” operações de paz. Enquanto apenas treze operações foram
levadas a cabo de 1956 até 1987 (Barnett, 1995:79), desde então até 2008, 50
“novas” operações haviam sido enviadas80.
Talvez o ápice deste ambiente triunfalista tenha sido representado pela
aclamada vitória da ONU/Estados Unidos na Guerra do Golfo e pelo subseqüente
anúncio de uma “Nova Ordem Mundial” pelo então presidente dos Estados
Unidos, George Bush. Nesse sentido, no momento da atuação na Somália, os
Estados Unidos e as Nações Unidas estavam investidos do poder simbólico que
lhes foi conferido pela “vitória” prévia no Golfo (Debrix, 1999). De acordo com
Debrix (1999:97):
Reinvested by George Bush’s post-Gulf War vision of a New World Order, the United Nations has been given in Somalia a chance to perform as an undisputable ‘international actor’, as a symbolic and legitimate power to be reckoned with as the century draws to an end.
80 Informação encontrada em: http://www.un.org/events/peacekeeping60/index.shtml
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Todavia, essa pretensão da ONU, salientada por Debrix (1999:128), de, na
esteira da vitória na Guerra do Golfo, tentar reeditar na Somália a idéia da “Nova
Ordem Mundial” foi extremamente mal-sucedida; fazendo com que a ONU se
visse obrigada a deixar o país com imagens de uma “nova desordem mundial”.
O mencionado fracasso da intervenção foi objeto de inúmeros debates e
avaliações sobre os erros cometidos pela ONU/Estados Unidos na Somália, os
quais forneceram importantes lições para as operações de paz posteriores. Como
reconhece Boutros-Ghali (1996), no momento da ação da ONU na Somália não
existiam modelos para ONU seguir. Todavia, a operação na Somália forneceu
lições importantes para futuros conflitos envolvendo “Estados falidos” (Boutros-
Ghali, 1996). Nesse sentido, embora produzida discursivamente como um caso
excepcional, tal operação teve um enorme papel em forjar o consenso para as
operações de paz seguintes, conforme veremos no capítulo 8 dessa tese.
Essa parte tem por objetivo abordar o período de 1992 a 1995, quando a
Somália foi alvo de três operações de paz da ONU conhecidas pelas siglas:
UNOSOM I, UNITAF e UNOSOM II. A resolução 751 do Conselho de
Segurança de março de 1992 estabeleceu a missão especial chamada UNOSOM
(United Nations Operation in Somalia) incumbida de prover ajuda na entrega e
distribuição de assistência humanitária à população vítima da fome. A resolução
794 do Conselho de Segurança da ONU de dezembro de 1992 estabelece a
UNITAF (Unified Task Force) conhecida como “Operação Restaurar a
Esperança” que, através de um envio massivo de tropas dos Estados Unidos,
estava encarregada de garantir acesso à ajuda humanitária ao povo somali.
Finalmente, em março de 1993, foi estabelecida a UNOSOM II a partir da
resolução 814 do Conselho de Segurança, a qual dispunha de um mandato mais
amplo que incluía não apenas o fornecimento de ajuda humanitária, mas também
os objetivos de desarmamento, de reconciliação política e de reconstrução do
Estado somali (ver Boutros-Ghali, 1996).
Objetiva-se, nessa parte, mostrar como os somalis e a Somália foram
discursivamente representados no momento dessas operações. Uma vez já tendo
feito o mesmo em relação aos períodos da colonização e da tutela, será possível,
nessa parte, destacar os elementos de continuidade entre tais discursos. Destarte,
portanto, será possível verificar como as “novas” operações de paz da ONU
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continuam informadas por um discurso logocêntrico evidente desde os tempos
coloniais e, nesse sentido, continuam conferindo um tratamento depreciativo à
diferença representada pelo “Outro” somali. As operações de paz da ONU, nesse
sentido, corresponderiam a apenas mais um capítulo de uma longa trajetória
ocidental de desvalorização de formas alternativas de organização política,
econômica e social, e de insistência em lidar com os “problemas” somalis a partir
de um enfoque logocêntrico, o qual é ele mesmo, constitutivo desses problemas.
Ou seja, os ditos “problemas” somalis não fazem parte de um mundo lá fora a ser
decifrado objetivamente por especialistas, mas são (re) produzidos pelos próprios
agentes externos que se propõem a “resolvê-lo”. Com isso, essa parte da tese não
tem como intenção de modo algum de negar o sofrimento humano derivado da
fome e do conflito na Somália desencadeado a partir da queda do ditador Siad
Barre, em 1991, mas, antes, mostrar que o discurso e a interpretação a partir dos
quais tais eventos vêm sendo apreendidos são cúmplices de tal sofrimento e o
retroalimentam.
7 O Envolvimento da ONU/Estados Unidos na Somália
Antes de analisarmos o discurso das operações de paz levadas a cabo na
Somália, esse capítulo fará uma breve introdução apresentando cronologicamente
as principais fases dessas operações; o que será feito, sobretudo, a partir de
informações fornecidadas pelo Secretário-Geral da ONU de então, Boutros
Boutros-Ghali.
No item 6.1, vimos que, nos anos 80, Barre passou a se valer de uma
política cada vez mais repressiva contra os grupos opositores, organizados, em
larga medida, em linhas clânicas e que cresceram, sobretudo, após a guerra do
Ogaden.
Diante de tal quadro de abuso dos direitos humanos por parte do governo
Barre, os Estados Unidos suspenderam a assistência militar e econômica para a
Somália (Sahnoun, 2005). E, assim, pressionado internacionalmente, Barre
prometeu democratizar o país por meio de uma revisão constitucional e da
realização de eleições multipartidárias (Lauderdale; Toggia, 1999, Sahnoun,
2005). A despeito de tais promessas, Barre foi deposto por rebeldes somalis e
junto com seguidores foi expulso da capital Mogadíscio pelas forças da USC
(Congresso Nacional Somali) em janeiro de 1991 (Sahnoun, 2005; Lewis, 2002).
Em novembro desse mesmo ano, os principais líderes da USC, o general
Mohammed Farah Aidid e o empresário Ali Mahdi Mohammed, organizados em
milícias armadas, passaram a travar uma batalha pelo controle da capital
(Sahnoun, 2005; Lewis, 2002; Tripodi, 1999). Embora ambos os líderes fossem
membros de um mesmo clã, o Hawiye, eles pertenciam a diferentes subclãs.
Aidid, do subclã Habar Gidir, contestou a proclamação de Mahdi, do subclã
Abgal, como presidente da Somália, promovendo a cisão do USC de acordo com
tal clivagem clânica; o que resultou na divisão da cidade em dois campos
armados: o norte controlado pelos Abgal e o sul pelos Habar Gidir (ver Lewis,
2002). Cabe ressaltar que com a intensificação do conflito em Mogadíscio em
dezembro de 1990, a ONU fechou seus escritórios na Somália e abandonou o país
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junto com a maioria das missões diplomáticas e organizações internacionais
alegando insegurança (Boutros-Ghali, 1996; Sahnoun, 2005; Lewis, 2002)81.
O conflito, porém, se estendeu para além de Mogadíscio, causando
devastação e fome entre a população do sul da Somália (Lewis, 2002). Nesse
processo, como nos mostra Lewis (2002), quem mais sofreu foram os agricultores,
obrigados a sair das suas terras fugindo das milícias armadas. Com a produção
agrícola e pecuária devastadas, a fome se espalhou, sobretudo, pelas áreas
ribeirinhas do sul (Lewis, 2002). No começo de 1992, estima-se que,
aproximadamente, três mil pessoas estivessem morrendo de fome diariamente e
que em torno de quinhentas mil pessoas tivessem se refugiado em campos na
Etiópia, no Quênia e em Djibuti (Sahnoun, 2005:16).
A conjuntura acima foi representada pelo Secretário-Geral da ONU,
Boutros-Ghali, da seguinte forma:
Since November 1991, heavy fighting between the two factions has persisted in the capital city, Mogadiscio, with civilian-inhabited areas subjected to persistent direct fire, including from artillery and mortar units. There are also several heavily armed elements who control parts of the city, including the seaport and airport. Some have declared alliance with one or the other of the two protagonists in Mogadiscio, while others are not controlled by either of them. (…) The fighting has resulted in widespread death and destruction, forced hundreds of thousands of civilians to flee the city, caused dire need for emergency humanitarian assistance, and brought about a grave threat of widespread famine. It has also seriously impeded United Nations efforts to deliver much-needed humanitarian assistance to the affected population in and around Mogadiscio. Furthermore, the conflict has threatened instability in the Horn of Africa region and its continuation has occasioned threats to international peace and security in the area (…)” (S/23693:11-2, par. 11, apud Boutros-Ghali, 1996:123).
Apesar do quadro descrito acima, o envolvimento da ONU na Somália
começou tardiamente, já que, segundo Boutros-Ghali (1996:16): “Unfortunately,
Somalia’s crisis was occurring at roughly the same time as the break-up of the
Soviet Union and the beginning of the war in the former Yugoslavia, events which
attracted the greater part of the international community’s attention”. Assim, foi
apenas em janeiro de 1992, que o Subsecretário Geral de Assuntos Políticos, Mr.
James Jonah, foi enviado para Mogadíscio com o objetivo de negociar um cessar-
fogo para a capital bem como de assegurar o acesso para o fornecimento de ajuda 81 Em agosto de 1991, escritórios foram reabertos em Mogadíscio, mas novamente fechados em novembro desse ano quando estourou a luta entre as facções rivais da USC (Sahnoun, 2005).
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humanitária por parte das agências internacionais e organizações não-
governamentais (Boutros-Ghali, 1996).
No dia 23 de janeiro de 1992, o Conselho de Segurança da ONU adotou a
sua primeira resolução sobre a Somália (resolução 733) na qual urgia todas as
partes envolvidas no conflito a cessarem as hostilidades, promoverem a
reconciliação nacional bem como a facilitarem a entrega da ajuda humanitária
(Boutros-Ghali, 1996).
No dia 31 de janeiro, Boutros-Ghali convidou os dois líderes em conflito
para participarem de consultas em Nova York a serem realizadas durante o mês de
fevereiro com os objetivos de: explorar a melhor forma de se chegar a um cessar-
fogo e de esboçar um acordo de paz sustentável para Mogadíscio (Boutros-Ghali,
1996). Os dois líderes enviaram representantes para Nova York onde foi acordado
o envio de uma delegação de alto nível composta por representantes da ONU bem
como de três organizações: da Organização da Unidade Africana (OUA), da Liga
de Estados Árabes (LEA), e da Organização da Conferência Islâmica (OCI) para
Mogadíscio para elaborar o acordo de cessar-fogo e trabalhar na sua implantação
(Boutros-Ghali, 1996). A delegação conjunta liderada pelo enviado especial para
Somália, Mr. Jonah chegou a Mogadíscio no dia 29 de fevereiro e, no dia 3 de
março, após intensas negociações, persuadiu Mahdi e Aidid a concordarem com
um acordo de cessar-fogo por meio de um mecanismo de monitoramento das
Nações Unidas (Boutros-Ghali, 1996).
Em decorrência do acordo de cessar-fogo, estabeleceu-se uma paz, ainda
que precária, em Mogadíscio, a qual serviu de pano de fundo para a adoção da
resolução 751, de abril de 1992, que autorizou por unanimidade o estabelecimento
da UNOSOM (United Nations Operation in Somalia), posteriormente referida
como UNOSOM I, a qual tinha como propósito central o de tornar possível a
distribuição de assistência humanitária para a população civil somali (Boutros-
Ghali, 1996). Todavia, como nos mostra Boutros-Ghali (1996), a UNOSOM I foi
concebida como uma operação de peacekeeping e, nesse sentido, a força de
segurança enviada para a Somália deveria, essencialmente por meio dissuasórios,
impedir ataques armados às operações de ajuda humanitária e, caso a dissuasão
falhasse, deveria usar apenas armas de autodefesa.
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O sucesso de uma operação de peacekeeping depende, segundo Boutros-
Ghali, do consentimento de todas as partes envolvidas num dado conflito. No caso
do conflito somali, contudo, o consentimento era difícil de ser obtido e mantido, já
que as tensões em Mogadíscio entre as facções de Aidid e Mahdi foram
relacionadas a uma série de lutas de poder localizadas em outras regiões criando,
segundo o Secretário-Geral, uma reunião altamente instável e complexa de
alianças e divisões (Boutros-Ghali, 1996).
No dia 28 de abril de 1992, Boutros-Ghali apontou Mohamed Sahnoun,
diplomata argelino, como seu Representante Especial para a Somália. Sua função
seria a de coordenar todos os esforços de peacekeeping e humanitários e encorajar
as facções somalis a encontrarem uma solução pacífica para o conflito (Boutros-
Ghali, 1996). Suas prioridades ao chegar a Mogadíscio no dia 4 de maio foram as
de se encontrar com os principais líderes, organizar o rápido envio de 50
monitores de cessar-fogo desarmados, realizar consultas com os líderes das
facções em conflito sobre o envio da força de segurança proposta para proteger as
operações de ajuda em Mogadíscio bem como fazer avançar o programa de
assistência humanitária nacionalmente, particularmente no sul, região mais
afetada pela fome (Boutros-Ghali, 1996). Todas essas tarefas, contudo, se
revelaram difíceis de serem levadas a cabo na medida em que a emergência
humanitária se aprofundou e a luta entre as facções continuou ocorrendo
(Boutros-Ghali, 1996:20, par. 54).
Numa carta de novembro de 1992, Boutros-Ghali informou ao Conselho
de Segurança sobre a deterioração da situação na Somália chamando a atenção,
particularmente, para a falta de cooperação por parte de várias facções somalis, a
qual estaria impedindo a UNOSOM de cumprir o mandato que lhe foi confiado
pela resolução 751 (Boutros-Ghali, 1996). E, assim, em função da alegada
recalcitrância das principais facções na Somália em permitir a distribuição segura
de assistência humanitária, o Conselho de Segurança aprovou, em dezembro de
1992, a substituição da até então operação de peacekeeping por uma operação de
peace-enforcement, a qual seria comandada pelos Estados Unidos e teria como
objetivo o de garantir as condições de segurança para a provisão da ajuda
humanitária (Boutros-Ghali, 1996). Essa nova operação, formalmente denominada
UNITAF (Unified Task Force), mas conhecida por “Operation Restore Hope”
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(Operação Restaurar a Esperança), foi autorizada pela resolução 794 a agir sob o
capítulo VII da Carta da ONU e, daí, a recorrer a todos os meios coercitivos
considerados necessários para cumprir o seu mandato (Boutros-Ghali, 1996).
Em dezembro de 1992, as primeiras unidades da UNITAF, compostas por
marines dos Estados Unidos, desembarcaram na praia de Mogadíscio por meio de
uma ação representada por Boutros-Ghali como um “show de força” (show of
force) e, depois de assegurarem o controle sobre o porto da cidade, rapidamente,
se espalharam pelo sul e pelo centro da Somália, as quais correspondiam às áreas
mais afetadas pela fome (Boutros-Ghali, 1996). Como nos mostra Boutros-Ghali
(1996), ao sancionar a UNITAF, o objetivo principal do Conselho de Segurança
era o de lidar com a crise humanitária imediata.
Concebida como um exercício temporário de peace-enforcement, a
UNITAF entregaria a responsabilidade operacional para uma missão da ONU tão
logo o seu mandato fosse cumprido (Boutros-Ghali, 1996). Logo, uma vez que a
situação emergencial de forme foi considerada normalizada, a UNITAF foi
substituída pela UNOSOM II, a qual foi estabelecida pela resolução 814, de
março de 1993, como a primeira operação de peace-enforcement, organizada e
comandada pela ONU, explicitamente autorizada sob o capítulo VII da Carta da
ONU (ver Boutros-Ghali, 1996).
O ineditismo da operação também residiu no seu amplo mandato, o qual
visava não apenas concluir, por meio do desarmamento e da reconciliação
nacional, a tarefa iniciada pela UNITAF de restauração da lei e da ordem, mas,
também, reconstruir as instituições políticas, administrativas, policiais e judiciais
da Somália recriando um Estado com base na governança democrática (Boutros-
Ghali, 1996). Referindo-se à esse ineditismo, o representante permanente dos
Estados Unidos chamou a UNOSOM II de: “an unprecedented enterprise aimed
at nothing less than the restoration of an entire country as a proud, functioning
and viable member of the community of nations” (apud Boutros-Ghali, 1996:44,
par. 126). Nunca antes, conforme mostrado por Boutros-Ghali (1996: 45, par.
131), as Nações Unidas tinham tentado “help build governments structures from
the ground up”.
O principal passo em direção ao acordo político foi dado no dia 27 de
março de 1993 com a assinatura do “Acordo de Adis Abeba”, o qual, segundo
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Boutros-Ghali (1996:47, par. 138), marcou: “a milestone in the combined efforts
of Somalis and the international community to restore security and rebuild
political institutions on democratic foundations”. Todavia, tal Acordo nunca
chegou a ser implantado devido às crescentes tensões em Mogadíscio no primeiro
semestre de 1993. No dia 5 de junho, a UNOSOM II tentou levar a cabo uma
inspeção em cinco depósitos de armas da facção de Aidid, tanto em Mogadíscio
como em torno da capital, sendo uma delas realizada na propriedade da Rádio
Mogadíscio (Boutros-Ghali, 1996). No dia das referidas inspeções, contudo, uma
emboscada matou 24 soldados paquistaneses e feriu 56 outros soldados da
operação (Boutros-Ghali, 1996:50, par. 144). Uma investigação conduzida pelo
professor da American University, Tom Farer, concluiu que os ataques
simultâneos às tropas da UNOSOM II em diferentes partes do sul de Mogadíscio,
todas as áreas controladas pela facção de Aidid, só poderia ter sido conduzidos
por tal facção e de forma premeditada sob as ordens do general Aidid (Boutros-
Ghali, 1996). O relatório colocou: “A large and complex body of evidence leads
ineluctably to the conclusion not simply that General Aidid had the requisite
means, motive and opportunity [for the attacks], but that he had that trinity
uniquely” (S/26351, par. 15, apud Boutros-Ghali, 1996:299).
Como conseqüência desse incidente, o Conselho de Segurança condenou o
ataque de forma veemente e aprovou a resolução 837 reafirmando que o
Secretário-Geral estava autorizado, sob a resolução 814, a tomar todas as medidas
necessárias contra todos aqueles responsáveis pelos ataques armados contra o
pessoal da UNOSOM II (Boutros-Ghali, 1996). Também voltou a enfatizar a
importância crucial do desarmamento de todas as facções somalis e da
neutralização do sistema de rádio, a qual estava, de acordo com Boutros-Ghali
(1996), contribuindo para a violência contra a UNOSOM II.
Respaldadas por tal resolução, as forças da UNOSOM II iniciaram um
movimento de restauração da lei e da ordem no sul de Mogadíscio tanto
destruindo e confiscando grande quantidade de armas pesadas e munições como
desabilitando a Rádio Mogadíscio (Boutros-Ghali, 1996). O grande complicador
apontado por Boutros-Ghali (1996) para o sucesso de tais investidas foi a fato das
facções de Aidid terem recorrido a táticas de guerrilha urbana mobilizando
multidões de civis, incluindo crianças e mulheres; o que, segundo o Secretário-
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Geral, inevitavelmente fez com que as investidas da UNOSOM II tenham causado
a morte de civis somalis.
Tendo em vista que a responsabilidade pela emboscada foi atribuída ao
general Aidid, a UNOSOM II passou a persegui-lo. Admiral Howe, representante
especial da ONU na Somália ofereceu uma recompensa de 25 mil dólares pela sua
captura e os Estados Unidos disponibilizaram um contingente de Rangers e outro
do Comando Delta para tal fim. A partir de tal orientação, no dia 3 de outubro,
uma invasão das tropas dos Estados Unidos ao “Hotel Olympic”, onde
supostamente estaria ocorrendo uma reunião entre os seguidores de Aidid,
resultou na morte de 18 soldados norte-americanos e no seqüestro de Michel
Durant, piloto do helicóptero Black Hawk; enquanto do lado somali 312 morreram
(Butler, 2002, Lang, 2003). Em poucas horas, a mídia passou a exibir
mundialmente imagens dos corpos de alguns dos soldados mortos sendo
arrastados pelas ruas de Mogadíscio e, a seguir, do piloto refém com a face
contundida, coberta de sangue; as quais geraram uma reação internacional
imediata demandando a retirada das tropas norte-americanas da Somália (Butler,
2002; Debrix, 1999). Exortado pela opinião pública, o presidente Clinton
anunciou, quatro dias depois do incidente, que todas as forças dos Estados Unidos
seriam retiradas da Somália no dia 31 de março de 1994, fazendo com que uma
série de governos europeus seguisse o mesmo caminho (Lang, 2003).
Segundo Boutros-Ghali (1996), tal decisão por parte dos Estados Unidos
afetou seriamente a capacidade da UNOSOM II de levar a cabo o seu amplo
mandato. E, desse modo, a resolução 897 de 4 de fevereiro de 1994, conferiu à
UNOSOM um novo mandato menos ambicioso que já não mais a autorizava a se
engajar no desarmamento coercitivo e a se valer da força em resposta às violações
de cessar-fogo por parte das facções somalis (Boutros-Ghali, 1996).
Conseqüentemente, a UNOSOM voltava a ser uma operação tradicional de
peacekeeping; o que significa que ela poderia usar armas apenas para a
autodefesa, o que, na prática, já vinha acontecendo desde o episódio do dia 3 de
outubro (Boutros-Ghali, 1996).
Por outro lado, em decorrência do anúncio da retirada norte-americana, a
facção de Aidid declarou um cessar-fogo unilateral em Mogadíscio no dia 9 de
outubro - o que pavimentou o caminho para um esforço concertado pela ONU
224
para reviver o processo de reconciliação nacional (Boutros-Ghali, 1996). Para
facilitar a reconciliação política, os funcionários da ONU negociaram com os
líderes das facções, inclusive com Aidid, assim como com outros representantes
da sociedade somali a exemplo dos anciãos e líderes religiosos (Boutros-Ghali,
1996). No final, contudo, Boutros-Ghali (1996) avaliou os esforços como
“infrutíferos” devido à resistência à cooperação por parte dos somalis, a qual teria
levado a conclusão do mandato da UNOSOM pelo Conselho de Segurança. E,
assim, alegando falta de cooperação por parte das facções somalis, a missão da
ONU se retirou da Somália em março de 1995, mas, conforme nos mostra
Boutros-Ghali (1996), manteve uma forte presença humanitária no país.
7.1 Somalia e Somalis: "Fora da Nova Ordem Mundial"
“I knew that policy was made by the written word, that texts made things happen in the realm of high diplomacy and statecraft. Writing forces concepts into life” (Boutros-Ghali, 1999:26) O objetivo, a partir daqui, será o de mostrar como a Somália e os somalis
foram produzidos pelo discurso dominante e como tal construção criou as
condições de possibilidade para as operações de paz na Somália entre 1992 e
1995, já brevemente apresentadas.
7.1.1 Somália: Um "Estado em Ruínas"
Em primeiro lugar, é importante destacar que o discurso dominante sobre a
Somália pós-Barre continuava a representá-la, do mesmo modo que vinha fazendo
desde os tempos coloniais, como uma “falta”. Subjacente ao discurso da “falta
somali”, encontram-se definições implícitas do que se entende por um Estado bem
sucedido, onde os elementos que faltavam à Somália estariam presentes de forma
abundante. Em julho de 1992, Boutros-Ghali (S/24343, par. 24 apud Boutros-
Ghali, 1996: 174, grifo meu) representou a situação da Somália da seguinte forma:
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Somalia is today a country without central, regional or local administration, and without services: no electricity, no communications, no transport, no schools and no health services. Throughout the country, there are incredible scenes of hunger, disease and dying children. (…) The absence of food is both the cause and the result of lack of security.
Segundo consta no discurso dominante, tal como mostrado acima, o
colapso do Estado somali e a guerra civil subseqüente conduziu a uma falência
generalizada de todas as instituições, serviços e infra-estrutura do país; o que
significa que o esforço de reconstrução teria de ser feito a partir das ruínas de um
país. No documento denominado: “United Nations Relief and Rehabilitation
Programme for Somalia”82, de maio de 1993 fica clara tal falência generalizada:
Somalia as a nation lies in ruins. Two years of civil war followed by factional fighting have created extensive social upheaval, massive population displacement and widespread destruction of the country’s infrastructure and services. The breakdown of law and order, coupled with the worst looting and extortion ever experienced by relief operations, has prevented relief supplies from reaching the sick and the starving (apud Boutros-Ghali, 1996:258).
Lauderdale e Toggia (1999) nos mostram que a principal referência usada
para analisar a extensão da crise somali foi sua condição de “statelessness”
avaliada pela falta de uma autoridade política central, evidente no país desde a
queda de Barre em janeiro de 1991. Na ausência de tal autoridade, a Somália era
vista como um espaço de caos e perigo, conforme consta na seguinte passagem do
artigo de Keith Richburg publicado no The Washington Post em setembro de
1992:
Just over 30 years after it officially became an independent nation, Somalia essentially has ceased to exist. The land mass on world maps that defines the horn of Africa is now a dangerous and chaotic place of clan-based warfare (…).
O editorial do The New York Times de 23 de julho de 1992, com o título
“The Hell Called Somalia”, também colocou em xeque a própria existência do
país, quando apresentou o seguinte quadro sobre a Somália: “War, drought,
collapse of civil authority: these are the malign toxins that threaten the very
existence of Somalia, a husk of a country on the Horn of Africa”. Sobre a capital,
Mogadíscio, o acadêmico Tripodi colocou (1999:46): “In the early 1990s,
82 Não emitido como um documento da ONU.
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Mogadishu was like a ghost town where there was no law, no any resemblance of
social life”.
Como conseqüência da condição somali de “statelessness”, duas imagens
foram largamente utilizadas para representar a Somália pós-Barre, a de uma
Somália “anárquica” e a de uma Somália imersa num “estado de natureza
hobbesiano”. Discursando desde a sala Oval da Casa Branca, no dia 4 de
dezembro de 1992, o presidente Bush, por exemplo, colocou: “There is no
government in Somalia. Law and order have broken down. Anarchy prevails”’83.
Nesse sentido, o colapso do Estado somali teria resultado, segundo o discurso
dominante, numa situação de anarquia entendida não apenas como ausência de
governo, mas como caos e desordem. Por outro lado, a metáfora do “estado de
natureza” também se revelou recorrente no período pós-Barre. Em outubro de
1992, num artigo publicado no The Washington Post, Charles Krauthammer disse:
Somalia has no government. It is in a Hobbesian state of nature. It desperately needs to be taken over and run by some outside power so that its suffering people can be afforded the minimal human decencies of food, medicine and personal safety.84
Tal metáfora também foi utilizada por William Durch para descrever a situação da
Somália pós-Barre: “When its narrowly based government finally toppled in early
1991, no single group had legitimate claim to power and the country collapsed
into Hobbesian anarchy” (Durch,1996: 311, grifo meu).
A imagem do “estado de natureza hobbesiano” sugere a idéia de um
ambiente natural, não domesticado, violento e, ademais, temporalmente anterior
ao Estado moderno. Como já visto na primeira parte da tese, o próprio Hobbes
colocou os ameríndios na condição de estado de natureza, isto é, na condição de
um ambiente que temporalmente precede o contrato social, o qual dá origem ao
Estado soberano. Vimos que, de acordo com Walker (2005), a narrativa
hobbesiana do contrato social dá legitimidade ao Estado moderno ao projetar os
problemas do homem em outro tempo e lugar (o estado de natureza), pensado
como a negação do protótipo do homem liberal moderno. Segundo Walker
(2005), a narrativa hobbesiana nos mostra como os indivíduos podem amadurecer.
Para tanto, faz-se necessário que eles se submetam às estruturas modernas de
83 Grifo meu. 84 Grifo meu.
227
autoridade. Na ausência das mesmas, o que resta é um ambiente natural, não
domesticado. Desse modo, na medida em que a Somália é caracterizada como
inserida num “estado de natureza hobbesiano”, os somalis são deslocados da
história e, por conseqüência, desprovidos da possibilidade de vida política, já que,
na modernidade, com nos mostra Walker (1993), a prática política efetiva e
progressiva é impensável fora das fronteiras do Estado soberano. Nessa
perspectiva, o presente, o Estado moderno, se torna a norma, enquanto o passado
ou o “Outro” espaço-temporal dos Estados modernos se torna a exceção (Walker,
2005).
Tanto a noção de “anarquia” como a de “estado de natureza” sugerem uma
“ausência”, a do Estado soberano que, caso existisse, poderia vir, segundo o
discurso dominante, a corrigir a situação de destruição, de fome e de guerra que
vinha assolando a Somália desde a queda do governo Barre.
Segundo a literatura dominante sobre o colapso dos Estados africanos no
pós-Guerra Fria, a principal característica do colapso estatal, comum às diferentes
experiências do fenômeno, refere-se à perda do monopólio dos meios legítimos de
violência e na medida em que isso acontece tais sociedades já não podem ser
entendidas como “Estados” segundo a definição clássica de Max Weber (ver
Ignatieff, 2003). A perda do controle sobre os meios coercitivos é apresentada
como a principal razão da violência e da instabilidade dessas sociedades. De
acordo com o discurso dominante, os indivíduos dependem de Estados
centralizados para se sentirem seguros. Tal assertiva foi explicitamente expressa
pelo acadêmico Robert Rotberg (2002:87) quando disse: “Citizens depend on
states and central governments to secure their persons and free them from fear”.
A visão do Estado centralizado, detentor do monopólio do uso legítimo da força
se torna, de acordo com a literatura dominante, uma condição compulsória para o
fornecimento daquela que é considerada a benesse política principal, a saber: a
segurança. Em condições de “anarquia” e de “estado de natureza”, não existe
Estado e, por conseguinte, não existe segurança. Esse discurso, portanto, nos
impede de imaginar qualquer organização política séria alternativa ao Estado já
que nos condiciona a pensar que na ausência do Estado, nós sempre vamos ter
violência anárquica muitas vezes representada pelo “estado de natureza
hobbesiano”. De acordo com o discurso dominante, o colapso do Estado somali
228
teria resultado no colapso de toda forma de autoridade, sem a qual a Somália
estaria condenada à anarquia perpétua. Como colocado por Keith Richburg no
artigo já mencionado de setembro de 1992: “Without some form of governmental
authority, Somalia is likely to be a perpetual ward of the international community,
living of relief and relegated to anarchy’.
No marco do discurso dominante, com o colapso do Estado somali, o
poder coercitivo, antes centralizado pelo Estado, foi pulverizado entre diferentes
atores, os quais passaram a impor o terror e a impedir a entrega da ajuda
humanitária através do país. Esses atores violentos aparecem, muitas vezes, no
discurso, como os únicos agentes a povoar uma Somália “vazia”, “destruída” e
“faminta”. Algumas passagens de Boutros-Ghali (1996) iluminam a sua
preocupação advinda dessa proliferação dos meios coercitivos numa Somália
arrasada. Abaixo aparecem três dessas citações que datam do começo de 1992:
(I) I have earlier drawn attention to the absence of any civil society and the breakdown of law and order in Mogadiscio, which has been compounded by the proliferation of arms among civilians. Banditry, looting and reckless firing have complicated all efforts to bring humanitarian assistance to the people of Somalia (…) (S/23693, par. 77, apud Boutros-Ghali, 1996: 130: 77).
(II) The situation in Somalia continues to be of great concern to the international community. There is hardly any governmental infrastructure in the country that could be relied upon. Physical infrastructure (…) is also largely non-existent. Banditry is widespread and there is wide proliferation of weapons (S/23829, par. 56, apud Boutros-Ghali, 1996:141). (III) Somalia today is a divided country, fragmented on clan and family lines, without any recognized channels for political action. The quantity of arms in the hands of individuals, factions and groups is enormous. The defeat of the Somali Army, which as a result of the cold war became, under the President Siad Barre, one of the best-equipped military machines in Africa, resulted in a vast number of arms falling into the hands of individuals, factions and groups, thus feeding the conflict as well as the bandity and looting which are taking place all over Somalia (S/24343, par. 54, apud Boutros-Ghali, 1996: 177).
As imagens acima sugerem, portanto, a idéia de uma Somália em ruínas
onde além de inexistir qualquer idéia de sociedade civil (“absence of any civil
society”)85 também inexistia qualquer estrutura governamental com a qual os
85 É interessante notar que, embora, no curso da operação da ONU, Boutros-Ghali tenha chamado a atenção diversas vezes para a “falta” de uma sociedade civil na Somália, em 1996, quando ele faz referência aos participantes da “Conferência de Adis Abeba”, ele coloca: “The Conference also
229
somalis pudessem contar (“any governmental infrastructure in the country that
could be relied upon”). A Somália encontrava-se, segundo o discurso dominante,
completamente vulnerável diante de grupos armados que proliferavam no país na
esteira do colapso da autoridade política central.
Vale notar que, subjacente à construção do “fracasso somali”, reside uma
definição implícita do que seria uma Somália bem sucedida, a qual teria de ser
construída necessariamente a partir da figura do Estado soberano centralizado
capaz de prover, sobretudo, segurança aos seus cidadãos, mas, também, de prestar
serviços de modo eficiente aos mesmos bem como de alimentá-los.
A guerra civil na Somália teria gerado, de acordo com o discurso
dominante, não apenas a destruição física e institucional da Somália, mas,
também, como já mostrado, a grave ameaça da “fome generalizada” (ver por
S/23693:11-2, par. 12 apud Boutros-Ghali, 1996:123). Em julho de 1992,
Boutros-Ghali observou sobre tal ameaça:
The food situation is critical. Civil conflict has prevented agricultural activity in the normally productive areas of the south (…). The threat of widespread famine in rural areas has become a reality. Food prices are rising sharply everywhere, but most of the population have no money to buy food on the market since virtually all economic activity has been disrupted by war. (S/24343, par. 25, apud Boutros-Ghali, 1996: 174).
Articula-se nessa passagem que a falta de segurança teria gerado a falta de
comida, a qual, por sua vez, teria acirrado o problema da insegurança, resultando
num ciclo vicioso difícil de ser rompido. Segundo Boutros-Ghali (S/24343, par.
25, apud Boutros-Ghali, 1996: 174): “Breaking the vicious cycle may be the key
to resolving the complex and inextricably linked social and political problems in
Somalia”.
Diante desse espectro de ameaças interconectadas, da fome e do conflito,
as operações de paz da ONU/Estados Unidos foram representadas como
operações voltadas para a “salvação” do povo somali vitimado pelos seus próprios
compatriotas, capazes de trazer-lhes um futuro de esperança. Segundo Boutros-
Ghali (S/24343, par. 30, apud Boutros-Ghali, 174, grifo meu), diante das
condições prevalecentes em julho de 1992: “[P]eople in Somalia have begun to
included clan elders, leaders of community and women’s organizations, and other proeminent representatives of Somali civil society” (Boutros-Ghali, 1996:46, par. 132, grifo meu).
230
lose any sense of hope for the future. There is thus a need not only for life-saving
interventions but also for reconstruction activities and institution-building which
would offer promise of a better future”.
De acordo com o discurso dominante, a necessidade de “salvar” o povo
somali dos seus rivais internos foi se tornando cada vez mais evidente na medida
em que a ajuda humanitária internacional se tornou alvo cada vez mais freqüente
de ataques armados e em que cresceu a percepção entre os somalis de que as
Nações Unidas estariam decididas a abandonar a política de cooperação e
“invadir” o país (Boutros-Ghali, 1996). Diante de tal cenário, no dia 21 de
novembro de 1992, o porta-voz de Boutros-Ghali, visando a dispersar tais
percepções “equivocadas”, declarou: “It is the occasion for renewed cooperation
and partnership between Somalia and the international community. Its object is to
save lives, defeat the spectre of famine and civil strife and pave the way to
political reconciliation” (apud Boutros-Ghali, 1996:207).
Para Boutros-Ghali (1996), até que a segurança não fosse restabelecida na
Somália, o esforço humanitário correria o risco permanente de reveses. E, assim, a
partir da constatação feita pelo Secretário-Geral acerca da inabilidade do
contingente das Nações Unidas de minar o poder das facções somalis86 bem como
acerca da deterioração da situação da Somália para além da necessidade de um
tratamento de peacekeeping, inicia-se a segunda etapa da operação doravante com
o envio massivo de tropas de peace-enforcent dos Estados Unidos, as quais, como
vimos, compunham a UNITAF, conhecida pela alcunha “Operação Restaurar a
Esperança” (ver Boutros-Ghali, 1996).
7.1.2 ONU: Construindo a Exceção Somali
Argumenta-se aqui que a passagem de uma operação de peacekeeping para
uma operação de peace-enforcement não foi necessária ou inevitável, tal como
Boutros-Ghali (1996) alegou em seus discursos. Embora no dia 24 de novembro
86 Gangues armadas, que, segundo Boutros-Ghali (1996: 12, par. 29), se autodenominavam “autoridades”, mas que, por vezes, não passavam de dois ou três bandidos armados, extraíam propinas no porto, no aeroporto e nas estradas da Somália, além de cobrarem por “proteção” para o pessoal e para os comboios das agências e organizações internacionais.
231
de 1992, o Secretário-Geral tenha enviado uma carta para o Conselho de
Segurança destacando cinco opções para lidar com a deterioração da situação da
Somália, ele, claramente, desqualifica quatro delas e, implicitamente, reconhece a
indispensabilidade de uma delas, de enforcement, conforme mostraremos a seguir.
A primeira opção seria a de se chegar a um acordo com os líderes somalis
para o envio de 4.200 tropas autorizadas pela resolução do Conselho de Segurança
775. A partir de tal opção, a UNOSOM continuaria a ser guiada pelos princípios e
pelas práticas existentes de peacekeeping, isto é: “it would not deploy without the
agreement of the de facto authorities at each location where it was to operate and
that it would not use force except in self-defence” (S/24868, apud Boutros-Ghali,
1996:210). Todavia, conforme já dito, o Secretário-Geral chegou a conclusão que
essa opção era inviável já que: “the situation in Somalia has deteriorated beyond
the point at which it is susceptible to the peace-keeping treatment” (S/24868,
apud Boutros-Ghali, 1996:210).
A segunda opção seria a de abandonar a idéia de utilizar peacekeeping
para proteger as atividades humanitárias na Somália, retirando os elementos
militares da UNOSOM e deixando as agências humanitárias negociarem os
melhores acordos de proteção com as facções e os líderes locais. Todavia, essa
opção foi igualmente rejeitada a priori, pois, segundo Boutros-Ghali (S/24868,
apud Boutros-Ghali, 1996: 210): “[T]he difficulties being experienced in Somalia
were attributable not to the presence of international military personnel but to the
fact that not enough of them were there and that they did not have the right
mandate”.
A terceira opção seria a de promover um “show de força” em Mogadíscio
para criar as condições necessárias para a distribuição segura de ajuda humanitária
na capital. Todavia, essa opção também foi descartada pelo Secretário-Geral sob
alegação de que: [T]here are reasons to doubt whether a successful operation in
Mogadishu alone would be sufficient to persuade the factions elsewhere to
cooperate fully with UNOSOM and the relief effort (…)”” (S/24868, apud
Boutros-Ghali, 1996: 211).
A seguir, o Secretário-Geral expõe a sua opção “preferida”, a saber, a de
uma operação nacional de enforcement, autorizada pelo Conselho de Segurança e
levada a cabo por um grupo de Estados-membros (Boutros-Ghali, 1996). Como
232
nos mostra Boutros-Ghali (1996), os Estados Unidos rapidamente se
prontificaram a assumir a liderança do comando dessa operação. De acordo com o
Secretário-Geral, o propósito da operação deveria ser o de resolver o problema de
segurança imediato da Somália e, para tal fim, deveria buscar desarmar todas as
gangues irregularmente armadas e transferir o controle de armas pesadas das
facções somalis para a esfera internacional (Boutros-Ghali, 1996).
A quinta e última opção era a de uma operação análoga àquela proposta
pela quarta opção, mas organizada sob o comando e o controle das Nações
Unidas. Todavia, o Secretário-Geral também a rechaçou ao reconhecer que a
ONU não teria a capacidade de comandar e de controlar uma operação de tal
tamanho, complexidade e urgência. E, assim, com base na quarta opção
apresentada por Boutros-Ghali, o Conselho de Segurança adotou a resolução 794,
a qual autorizou os Estados membros a usarem todos os meios possíveis para
estabelecer um ambiente seguro para a provisão de ajuda humanitária na Somália.
De acordo com Boutros-Ghali (1996:33, par. 91):
In Somalia, the United Nations for the first time in its history authorized a group of Member States to use military force not under United Nations command for humanitarian ends in an internal conflict, albeit one with serious ramifications for regional peace and security because of the huge influxes of Somali refugees, many of them armed, into neighbouring countries.
A utilização inédita do capítulo VII da Carta, inicialmente concebido para deter
atos de agressão contra Estados soberanos, foi possível, graças à representação da
situação da Somália como uma exceção, conforme veremos a seguir. Sem deixar
de mencionar o impacto do caso somali para a paz e a segurança internacionais,
argumenta-se nessa tese que a autorização do uso da força na Somália foi
informada pela excepcionalidade da condição de falência do Estado somali.
Argumenta-se, nesse capítulo, que Boutros-Ghali (1996) produziu a naturalidade
da transição de uma operação de peacekeeping para uma operação de peace-
enforcement mediante três construções discursivas principais, a saber: (i) a
construção da situação somali como uma situação única, sui generis,
demandando, por conseguinte, respostas excepcionais, (ii) a idéia, que é um
corolário da primeira, de que o consentimento das partes somalis não podia mais
ser requerido devido à excepcionalidade da situação de falência estatal somali e
233
(iii) a construção de um inimigo interno armado e pouco confiável capaz de
sabotar qualquer missão humanitária que não contasse com o respaldo do capítulo
VII da Carta da ONU.
A singularidade da crise somali foi produzida a partir da constatação,
acima referida, da falência do Estado somali. No “100-Day Programme for
Accelerated Humanitarian Assistance for Somalia” de 06 de outubro de 1992,
Boutros-Ghali (1996:195, par.2, grifo meu) colocou:
The situation in Somalia is unique. There is no functioning government. The country’s infrastructure, administration, power and water systems, as well as communications, has been largely destroyed or has ceased to function. Clan, sub-clan and factional fighting continue. In many areas, law and order has broken down. In addition to greatly impeding relief efforts, the proliferation of weapons and gangs remains a threat to the lives of Somalis and to international relief workers.
Na resolução 794, de dezembro de 1992, que, conforme já visto, autorizou
as Nações Unidas a se valerem do capítulo VII da Carta para cumprir o seu
mandato na Somália, aparece: “Recognizing the unique character of the present
situation in Somalia and mindful of its deterioring, complex and extraordinary
nature, requering and immediate and exceptional response” (S/RES/799, apud
Boutros-Ghali, 214, grifo meu). Em março de 1993, num relatório do Secretário-
Geral propondo que o mandato da UNOSOM II cobrisse todo o país e incluísse os
poderes conferidos pelo capítulo VII da Carta, Boutros-Ghali (S/25354, par. 100,
apud Boutros-Ghali, 1996: 255, grifo meu) voltou a enfatizar o caráter único da
situação somali:
It was the uniqueness of the situation in Somalia that led to the adoption of resolution 794 (1992) by the Security Council. While the emergency operation launched by the international community in the form of UNITAF has achieved, to a considerable extent, the immediate objective of making sure humanitarian assistance reaches the needy, I must emphasize that the unique features of the situation continue to prevail. There is still no effective functioning government in the country. There is still no disciplined national armed force. As recent events have tragically demonstrated, the atmosphere of lawlessness and tension is far from being eliminated. I have repeatedly stated that my major concern has been with the existence of large amounts of armaments in the hands of factions and guerrilla bands. .
Nessa citação, fica evidente que, para Boutros-Ghali (1996), as características
únicas da situação somali não residiam na fome vivenciada por grande parte da
234
população somali, mas, sim, nas condições consideradas geradoras dessa fome,
isto é, na ausência de um governo funcional e na conseqüente descentralização
dos meios coercitivos nas mãos de grupos armados que aterrorizavam um país
onde a lei e a ordem colapsaram. Nota-se também o abandono de um dos
requisitos considerados fundamentais nas clássicas operações de peacekeeping,
qual seja: o consentimento das partes em conflito sob a alegação de que, dada a
falência do Estado somali, não havia autoridade legítima capaz de expressar tal
consentimento. Como afirma Boutros-Ghali:
At present no government exists in Somalia that could request and allow such use of force. It would therefore be necessary for the Security Council to make a determination under Article 39 of the Charter that a threat to the peace exists, as a result of the Somali conflict on the entire regions, and to decide what measures should be taken to maintain international peace and security (S/24868, apud Boutros-Ghali, 1996:210, grifo meu).
Ao qualificar o Estado somali como “não-existente”87, o discurso
dominante deslegitimou as auto-proclamadas “autoridades” nacionais e, por
conseqüência, criou as condições de possibilidade para que a Somália fosse
disciplinada desde fora por meio de uma operação de peace-enforcement. Tal
ação, inclusive, passou a ser concebida como o único curso de ação possível para
uma Organização como a ONU que, conforme já visto, se apresentava como
“salvadora” dos somalis. Na medida em que os discursos dominantes apontavam
para a não-existência do Estado somali ou para, no máximo, a existência de um
“Estado em ruínas”, eles produziam a impossibilidade de se aplicar sobre os
mesmos, o princípio da soberania e, por conseqüência, da não- intervenção.
Afinal, como nos mostra Cynthia Weber (1995), quando as práticas estatais não se
encaixam no entendimento intersubjetivo do que seja o Estado, a interferência nos
seus assuntos “internos” raramente é denominada intervenção. Deste modo, ao
não dispor dos sinais identificadores de um Estado e, portanto, ao ser vista como
uma ausência, um não-Estado, as únicas alternativas que se impunham à Somália
eram, na percepção dominante, a de reconstruí-la ou de relegá-la à anarquia.
Em terceiro lugar, vale ressaltar que a ONU construiu a necessidade de
utilização do capítulo VII a partir da produção de um inimigo interno com acesso
87 Já vimos que Richburg em setembro de 1992 havia colocado que a Somália “essentially ceased to exist” e que em inúmeras declarações, Boutros-Ghali havia colocado que não existia Estado em funcionamento na Somália.
235
a armas e pouco disposto a cooperar com os esforços humanitários da
Organização. Na mesma carta em que o Boutros-Ghali apresenta as cinco opções
supracitadas para o presidente do Conselho de Segurança, ele destacou que a
inabilidade da UNOSOM de ser bem sucedida no cumprimento do seu mandato se
devia principalmente:
[T]o the (…) lack of government in Somalia, to the failure of various factions to cooperate with UNOSOM, to the extortion, blackmail and robbery to which the international relief effort is subjected and to the repeated attacks on the personnel and equipment of the United Nations and other relief agencies (S/24868, apud Boutros-Ghali, 1996:209).
Para fazer frente a tais ataques, portanto, revela-se necessário, segundo
Boutros-Ghali, o recurso ao capítulo VII da Carta da ONU.
7.1.3 Estados Unidos e a Temporalização da Diferença na Intervenção na Somália
O aspecto central da UNITAF foi o fato do comando da mesma ter sido
delegado aos Estados Unidos quem, por conseguinte, também contribui
sobremaneira para a produção dos somalis, embora de uma forma não
inteiramente congruente à forma pela qual o discurso da ONU os produzia.
A percepção de que os Estados Unidos deveriam ter uma participação mais
ativa na Somália foi expressa pelo presidente Bush após o embaixador norte-
americano no Quênia, Smith Hempstone, ter lhe apresentado, em maio de 1992,
um relato dramático das condições de devastação e de fome de um campo de
refugiados somalis por ele visitado na fronteira entre o Quênia e a Somália (ver
Tripodi, 1999; Kansteiner, 1996). Todavia, foi somente a partir do final de junho
de 1992 que o alerta da fome na Somália foi acionado nos Estados Unidos uma
vez que o apuro da população somali começou a ganhar destaque na cobertura da
mídia. As reportagens da CNN (Cable News Network) chamando a atenção para a
fome nas áreas do sul e do centro da Somália foram reforçadas a partir de julho de
1992 por diversos artigos da jornalista Jane Perlez no New York Times que, desde
Boidoa, no sul agrícola da Somália, estimularam outras mídias a cobrir a mesma
estória (Kansteiner, 1996; Petterson, 2000; Sahnoun, 2005). Desde então, imagens
236
de somalis imersos em carnificina e fome passaram a causar desconforto não
apenas na mídia internacional, mas, especialmente, nas audiências ocidentais.
Segundo o presidente Bush, a fome na Somália não se explicaria devido à
falta de comida no país uma vez que os Estados Unidos estariam enviando
toneladas de comida para lá. No discurso proferido no dia 4 de dezembro de 1992,
isto é, no dia seguinte à aprovação da resolução 794, o presidente Bush disse que
durante muitos meses antes de julho, os Estados Unidos estavam ativamente
engajados num esforço de ajuda internacional massiva voltado para amenizar o
sofrimento da Somália (Bush, 1992). Segundo o presidente: “[A]merica has sent
Somalia 200,000 tons of food, more than half the world total”. Todavia, continua
Bush, no verão de 1992, o sistema de distribuição colapsou, já que os comboios
que saíam dos portos da Somália estavam sendo bloqueados e, assim, impedidos
de alimentar o interior do país (Bush, 1992). Em agosto, os Estados Unidos
responderam a essa situação da seguinte forma:
In connection with the United Nations, we sent in the U.S. Air Force to help fly food to the towns. To date, American pilots have flown over 1,400 flights, delivering over 17,000 tons of food aid. And when the U.N. authorized 3,500 U.N. guards to protect the relief operation, we flew in the first of them, 500 soldiers from Pakistan (Bush, 1992).
A insuficiência dessa operação vai ser justificada por Bush a partir de argumentos
aparentemente similares àqueles usados por Boutros-Ghali para justificar a
necessidade de substituir a UNOSOM pela UNITAF. Vimos que o Secretário-
Geral se referiu a um inimigo potente capaz de obstruir qualquer esforço
humanitário promovido pelos agentes externos e, daí, para conter esse inimigo, ele
urgiu por uma operação baseada no capítulo VII da Carta.
No discurso acima, o presidente norte-americano vai se referir à situação
de deterioração da segurança nos meses que precedem ao estabelecimento da
UNITAF. Nas palavras do presidente norte-americano: “The U.N. has been
prevented from deploying its initial commitment of troops. In many cases, food
from relief flights is being looted upon landing: food convoys have been hijacked;
aid workers assaulted; ships with food have been subjected to artillery attacks
that prevented them from docking” (Bush, 1992). Bush adiciona uma estória para
representar o tom dramático da situação vivenciada pelos somalis:
237
Imagine 7,000 tons of food and literally bursting out of a warehouse on a dock of Mogadishu, while Somalis starve less than a kilometre away because relief workers cannot run the gauntlet of armed gangs roving the city. Confronted with these conditions, relief groups called for outside troops to provide security so they could feed people.
E, logo a seguir, ele conclui acerca da necessidade de apoio militar para
garantir a entrega segura de alimentos para os somalis quando diz: “It’s now clear
that military support is necessary to ensure the safe delivery of the food Somalis
needs to survive” (Bush, 1992, grifo meu).
Como nos mostra Sahnoun (2005:53), o governo dos Estados Unidos
utilizou a alta porcentagem de comida roubada, dizia-se que em torno de 80%,
para justificar a “Operação Restaurar a Esperança”. Esses dados, como nos mostra
De Waal (1997:183), foram pela primeira vez apresentados numa carta de Ismat
Kittani para Boutros-Ghali, a qual seria apresentada na reunião do Conselho de
Segurança de 25 de novembro de 1992, ou seja, pouco tempo depois88 que Kittani
havia chegado a Mogadísicio para substituir Sahnoun, como Representante
Especial do Secretário-Geral. Nessa carta, Kittani não só informou que 2 milhões
de somalis estavam enfrentando fome, mas também que 70 a 80% da comida que
chegava no país estava sendo desviada (apud De Waal, 1997:183). Apesar da
origem desse dado não ser rastreável, ele foi produzido como uma “verdade” e
repetido pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, pelo Secretariado da
ONU e, poderíamos acrescentar, pela mídia internacional (ver De Waal,
1997:183). No dia 2 de dezembro de 1992, por exemplo, a jornalista Jane Perlez
reproduziu essa porcentagem no New York Times: “United Nations officials
acknowledge the possibility that 80 percent of United Nations food that has moved
through Mogadishu, the main port, has disappeared through theft, ambushes and
extortion”. Apesar de sistematicamente empregada, tal porcentagem, como
denuncia De Waal (1997:183), estava em total desacordo com aquela apresentada
por Sahnoun apenas um mês antes, em outubro, quando se estimou que em torno
de 15 a 40 por cento da ajuda estava sendo perdida. O consenso em torno dos 80
por cento foi disputado apenas por alguns poucos. Além de Sahnoun, De Waal
cita Dominique Martin, da ONG internacional “Médicos Sem Fronteiras”, quem
88 Kittani chegou a Mogadíscio no dia 8 de novembro de 1992, de acordo com Boutros-Ghali (1996:28, par. 77).
238
também colocou em dúvida esses dados quando disse: “nobody could seriouly
claim that such a large proportion was not getting through” (apud De Waal,
1997:183).
Ainda que caracterizados como uma “ficção” por De Waal (1997:184), tais
dados cotribuiram para criar as condições de possibilidade para a UNITAF não
apenas porque o número de famintos decorrentes de tais roubos se revelou
intolerável, mas também porque denunciaram o poder daqueles que estavam
impedindo que a ajuda chegasse aos seus destinatários. Dado o poder atribuído a
tais grupos, só uma ação militar autorizada pelo capítulo VII da Carta da ONU se
revelaria eficaz. Por outro lado, tais dados também contribuíram para produzir a
ajuda externa como abundante de tal sorte que o problema da continuidade da
fome não pudesse ser atribuído à falta de generosidade ou às falhas operacionais
por parte dos atores internacionais. O problema se devia, de acordo com o
discurso dominante, exclusivamente, à ação de gangues armadas que eram,
conforme colocado por Bush, responsáveis pelo desperdício de enormes
quantidades de comida.
Conforme observado por Petterson (2000:44), o seguinte raciocínio se
tornou o distintivo da fome na Somália: “The problem was not always lack of
food, but the inability to get it to the hungry”. Segundo o senso comum
estabelecido sobre a situação da Somália, o problema da fome não derivava da
falta de comida, que era provida pelas agências internacionais de forma
abundante, mas do roubo de em torno de 80 por cento dessa comida que estava
sendo levado a cabo pelos próprios somalis. Tal visão, contudo, contrasta com
aquela apresentada por Sahnoun que, em 1992, criticou a burocracia da ONU por
complicar sobremaneira os esforços das agências de ajuda de alimentar os
necessitados (ver Sahnoun, 2005:18). Para Sahnoun, se a ajuda humanitária
tivesse ocorrido no nível esperado tanto por trabalhadores humanitários como
pelos somalis, ela teria contribuído para uma atmosfera propícia ao diálogo e
compromisso. Mas, segundo o Representante Especial do Secretário-Geral, pelo
fato do programa de assistência da ONU ter sido deveras limitado e lento ele se
tornou contraprodutivo, pois suscitou a luta pela comida escassamente fornecida,
introduzindo novos pontos de animosidade e de violência. Nesse sentido, para
Sahnoun, o que estava gerando o conflito não era a abundância, mas a escassez de
239
comida que estava chegando aos necessitados, não devido ao fato de grande parte
do seu montante estar sendo desviado pelos somalis, mas sim devido à
incompetência da burocracia onusiana. Nas palavras de Sahnoun: “The scarcity of
food exacerbated the atmosphere of insecurity that already prevailed within the
country. Bureaucratic haggling and obstructions within the UN relief agencies
hampered efforts to feed the hungry” (Sahnoun, 2005:18).
Argumenta-se aqui que o discurso de Bush, apresentado em fragmentos
acima, simplifica a complexidade da sociedade somali, ao dividi-la entre culpados
e vítimas.89 Enquanto a origem do conflito somali não é mencionada no discurso
de Bush, as causas da reprodução e da intensificação da fome na Somália são
localizadas nas gangues armadas, as quais vinham impedindo que a ajuda
humanitária chegasse aos seus destinatários. No mesmo discurso mais adiante, o
presidente Bush (1992, grifo meu) colocou: “The outlaw elements in Somalia
must understand this is serious business”.
Quatro dias depois, numa carta dirigida ao presidente Bush, o Secretário-
Geral (Boutros-Ghali, 1996:217, grifo meu) volta a enfatizar as medidas que ele
considerava de importância crucial para garantir o sucesso da nova operação,
sendo a primeira delas: [T]he need to disarm the lawless gangs which have been
terrorizing Somalia in recent months”. Apesar da caracterização aparentemente
similar das gangues em operação na Somália pós-Barre, definidas pelos
predicativos “outlaw” e “lawless” respectivamente, não existe uma menção sequer
no documento de Bush à necessidade de desarmar tais gangues, necessidade essa
fortemente enfatizada no documento de Boutros-Ghali.
Argumenta-se nessa tese que tal silêncio se deve à idéia amplamente
veiculada na mídia norte-americana de que o problema da Somália não residiria
nas armas per se, adquiridas, sobretudo, das superpotências durante a Guerra
Fria90, mas, sim, no encontro dessas armas modernas com ódios clânicos
ancestrais. Nesse sentido, o problema desde tal visão não estaria localizado,
primordialmente, na condição estrutural de ausência de governo na Somália e na
conseqüente descentralização dos meios coercitivos, mas, sim, no caráter violento
89 Essa é a racionalidade, que segundo Jabri (2010), vem informando as operações policiais cosmopolitas. 90 Segundo Jeffrey Lefebvre (apud Lauderdale; Toggia, 1999), entre 1967 e 1976, a Somália importou 181 milhões de dólares em armas da União Soviética e, entre 1980 e 1987, comprou 500 milhões de dólares de armas dos Estados Unidos.
240
da cultura clânica somali inalterável desde os tempos pré-modernos. Desse modo,
a ausência de governo seria o agravante e não a causa do conflito. E, assim, o
discurso norte-americano continuava refletindo o racismo cultural que, conforme
vimos no capítulo 5, havia informado a tutela italiana para a Somália no pós-
Segunda Guerra. Todavia, tal racismo cultural, o qual aponta para a existência de
uma cultura atrasada e, por vezes, violenta, se expressa no discurso norte-
americano em relação à situação da Somália pós-Barre por meio de inúmeros
recursos que sugerem a sua imutabilidade e intratabilidade; fazendo com que tal
discurso se aproxime da lógica do Grande Cadeia do Ser apresentada na primeira
parte da tese. A seguir, pretende-se chamar a atenção para alguns desses discursos
presentes na mídia norte-americana.
7.1.3.1 Eternizando a Fome num Tempo Pré-Moderno
A fome na Somália foi lida como derivada da guerra civil ativada depois
da queda do ditador Barre em 1991. No entanto, essa guerra foi narrada pela mídia
norte-americana como uma mera reincidência, talvez de maiores proporções, de
rivalidades advindas de uma Somália pré-moderna. E ao conferir tal tratamento
racista ao conflito, a fome foi, por conseqüência, despolitizada e eternizada junto
com conflito. Essa visão fica clara no artigo de Keith Richburg publicado no The
Washington Post em 9 de dezembro de 1992, o qual explica a fome somali da
seguinte maneira: “[I]n Somalia, clan warfare seems doubly senseless since it has
turned what was once a nation into a land of mass starvation where the economy
has collapsed and chaotic streets are ruled by marauding gunmen”. E mais
adiante, o jornalista complementa: “[T]he clan feuds help to explain why there is
a famine here in the first place, and why it will prove difficult to put the puzzle of
Somalia back together again”.
Diferentemente da fome etíope nos anos 80, a qual foi lida pelo discurso
dominante como um desastre natural (ver, por exemplo, Edkins, 2000), na
Somália existiu uma preocupação no sentido de reforçar o caráter deliberado da
fome, decorrente da guerra civil somali. Como nos mostra Hunter num artigo
publicado no The Washington Post em dezembro de 1992:
241
[T]elevision is bringing into the American living room a horror that even in the late 20th century is impossible to understand –or ignore. Somalia is not primarily a natural disaster, like the draught that caused a major part of the suffering in Ethiopia a few years ago. Nor is it a civil war, like that in Cambodia in the 1970s, when choosing sides – even the side of humanity - also meant becoming mixed up in Cold War debates. (….) In Somalia, the deliberate starving of so much of a nation’s people sees to defy rational explanation (Hunter, 1992, grifo meu). A passagem acima reflete a visão predominante sobre a fome na Somália,
segundo a qual ela teria sido deliberada ou, como usualmente se coloca: “man-
made”. Nessa tese argumento que ainda que a fome na Somália tenha sido
representada como “man-made”, a leitura do conflito somali pelas lentes das
rivalidades clânicas contaminou as interpretações sobre a fome, naturalizando-a.
A seguir pretendo chamar a atenção para alguns desses discursos para,
mais adiante, iluminar os efeitos práticos dos mesmos.
O mesmo embaixador, Hempstone, quem havia alertado Bush para a
situação deplorável dos somalis quando visitou um campo de refugiados na
fronteira do Quênia, advertiu o Departamento de Estado no dia 06 de dezembro de
1992, por meio de um telegrama,91 a não iria “embrace the Somali tar baby”92.
Para Hempstone (1992), os Estados Unidos deveriam abster-se de enviar tropas e
de sofrer baixas nas mãos de “natural-born guerrillas”. Nas palavras do
embaixador (1992, grifo meu): “Somalis, as the Italians and British discovered to
their discomfiture, are natural-born guerrillas. They will mine the roads. They
will lay ambushes. They will launch hit and run attacks. They will not be able to
stop the convoys from getting through. But they will inflict--and take—
casualties”. A idéia de que os somalis seriam “guerreiros naturais” foi
reproduzida, também, pelo ativista de direitos humanos, John Drysdale, na fase
final do envolvimento da ONU na Somália, quando disse: “Somalis know all
about tactics, and are natural fighters. It is second nature to surround and
ambush effectively” (apud Petterson, 2000:77, grifo meu).
91 O telegrama foi dirigido ao subsecretário de Estado Frank Wisner. Excertos do mesmo foram publicados no U.S. News & World Report, de 06 de dezembro de 1992. 92 De acordo com o Dicionário Babylon: “The Tar-Baby is a doll made of tar and turpentine used to entrap Br'er Rabbit in the second of the Uncle Remus stories. The more that Br'er Rabbit fights the Tar-Baby, the more entangled he becomes. In modern usage, "tar baby" refers to any "sticky situation" that is only aggravated by additional contact. The only way to solve such a situation is by separation. It is considered a racist slur by many”.
242
Localizando a causa do caos no comportamento inato dos Somalis, antes
do que no sistema clânico, Hempstone reproduziu o tom racista das declarações
italianas do século XIX quando disse no telegrama:
Finally, what will we leave behind when we depart? The Somali is treacherous. The Somali is a killer. The Somali is as tough as his country, and just as unforgiving. The one "beneficial" effect a major American intrusion into Somalia is likely to have may be to reunite the Somali nation: against us, the invaders, the outsiders, the kaffirs (unbelievers) who may have fed their children but also have killed their young men. ... In the old days, the Somalis raided for camels, women and slaves. Today they raid for camels, women, slaves and food.
Se, durante a tutela italiana, como vimos, os somalis deixaram de ser
representados como biologicamente e inatamente inferiores e passaram a ser
representados, sobretudo, como culturalmente atrasados, Hempstone volta a
empregar, tal como nos tempos coloniais, adjetivos pejorativos (traiçoeiros,
assassinos, agressivos) para caracterizar a natureza dos somalis. A partir dessa
naturalização do conflito, Hemsptone não prevê qualquer solução de curto-prazo
para o mesmo, mas um envolvimento indeterminado no país. Assim ele indaga
acerca do envolvimento norte-americano na Somália:
To what end? To keep tens of thousands of Somali kids from starving to death in 1993 who, in all probability, will starve to death in 1994 (unless we are prepared to remain through 1994)? Just how long are we prepared to remain in Somalia, and what are we prepared to do: Provide food, guard and distribute food, hunt guerrillas, establish a judicial system, form a police force, create an army, encourage the formation of political parties, hold free and fair multi-party elections? I have heard estimates, and I do not feel they are unreasonable, that it will take five years to get Somalia not on its feet but just on its knees. Cambodia is costing $2 billion a year. How much will Somalia cost? $10 billion?
Tendo constatado que o problema da Somália exigiria uma atuação deveras
duradoura e dispendiosa por parte dos Estados Unidos, Hempstone se posiciona a
favor da inação se valendo das duras palavras: “Leave them alone, in short, to
work out their own destiny, brutal as it may be”.
Ainda que o presidente Bush não tenha seguido o conselho de Hempstone
de deixar a Somália à sua própria sorte, ele vai optar por um envolvimento
limitado por meio do qual os Estados Unidos seriam guiados pelo propósito
humanitário mínimo de, apenas, alimentar os somalis. O objetivo era o de garantir
um ambiente seguro para a distribuição de ajuda humanitária para que o centro e o
243
sul da Somália pudessem vencer a fome (Tripodi, 1999). Segundo o presidente
norte-americano declarou no discurso já citado: “Our mission has a limited
objective: To open the supply routes, to get the food moving, and to prepare the
way for a U.N. peacekeeping force to keep it moving. The operation is not open-
ended. We will not stay one day longer than is absolutely necessary”. Mais
adiante ele volta a enfatizar com outras palavras a natureza do propósito limitado
dos Estados Unidos na Somália: “To the people of Somalia I promise this: We do
not plan to dictate political outcomes. (…) We come to your country for one
reason only, to enable the starving to be fed”. Por conseguinte, a operação passa a
ser produzida como uma operação apolítica, técnica; voltada para um objetivo
único: o de alimentar a população somali a fim de “salvar vidas”.
Argumenta-se aqui que o discurso acerca da imutabilidade do conflito
somali criou as condições de possibilidade para esse envolvimento pontual por
parte dos Estados Unidos, cujo foco exclusivo era o de garantir o acesso do
faminto à comida e, daí, garantir a sua mera sobrevivência. Nesse sentido, os
Estados Unidos se propunham a lidar apenas de uma forma emergencial com os
efeitos do conflito e, não, com as causas do mesmo. Argumenta-se nessa tese que
em função da construção discursiva do conflito como enraizado na natureza da
cultura somali ou dos próprios somalis a ponto de precisar de muitas gerações
para se solucionado. Segundo Madeleine Albright colocou num artigo do New
York Times de 10 de agosto de 1993: “[P]eace cannot be made overnight. It will
take time for people who have been shooting at each other to start trusting each
other”.
A natureza emergencial da intervenção dos Estados Unidos na Somália
aparece de forma clara numa metáfora utilizada pelo presidente Clinton no seu
discurso do dia 07 de outubro de 1993, onde ele recorda os motivos iniciais da
missão do seu país na Somália. Nesse discurso, o presidente faz uma analogia
entre a ação norte-americana com uma ação de resgate de pessoas inocentes numa
casa em chamas: “In a sense, we came to Somalia to rescue innocent people in a
burning house. We’ve nearly put the fire out, but some somoldering embers
remain. If we leave them now, these embers will reignite into flames, and people
will die again”.
244
Vale lembrar que, similarmente, no conflito da Bósnia, ocorrido no mesmo
ano do conflito da Somália (1992), o presidente Clinton, que sucedeu Bush,
utilizou, segundo David Campbell (1996), a estratégica retórica de eternizar o
conflito, mostrando-o como um conflito étnico derivado de ódios arraigados para
justificar a omissão por parte dos Estados Unidos. A inação foi justificada por
meio de uma estratégia temporal na medida em que, conforme Cambpell observa,
o conflito na Bósnia foi construído miticamente como uma expressão de velhas e
arraigadas animosidades étnicas, que refletiam um sentido imutável de tempo. O
conflito étnico foi eternizado e naturalizado a partir de um ato de violência
interpretativa que silenciou estórias alternativas – a exemplo de um passado de
convivência pacífica entre as etnias bem como quanto ao papel da União Soviética
e da Iugoslávia no fomento dessas rivalidades - que poderiam vir a subverter a
racionalidade construída pelos Estados Unidos para legitimar sua passividade
diante do conflito (Campbell, 1996). Portanto, esse determinismo histórico criou
as condições de possibilidade para a omissão por parte dos Estados Unidos, pois,
afinal, vis-à-vis um conflito intratável não haveria outro caminho a não ser ignorá-
lo, tal qual a proposta de Hempstone no caso somali.
Sugiro aqui, que o discurso acerca da continuidade ou da imutabilidade do
conflito somali criou as condições de possibilidade para a tamanha hesitação por
parte da Administração Bush de se envolver no mesmo, pois como Robin Wright
(1993) colocou no artigo do Los Angeles Times já citado93: “most analystis agree
that there is virtually no chance that mediators can end the clan rivalries that date
back to the nomadic origins of the clan themselves”. Segundo o acadêmico Paul
Diehl, a visão popular entre os diplomatas internacionais na Somália era que o
conflito ainda não era maduro de solução ou que: “[T]he Somalis (...) .just hadn’t
grown adequately weary of war yet and perhaps needed a decade or two (...)
before they were ready to sit at the negotiating table in good faith” (Diehl,
1994:57).
Nesse quadro, o desafio de reconstrução de Estado foi deixado para a
UNOSOM II que substituiu a UNITAF por meio da resolução 814 de março de
1993. Como nos mostra Tripodi (1999), a posição de Boutros-Ghali divergiu da
posição de Bush desde o início, já que o Secretário-Geral insistiu na necessidade
93 Citado anteriormente no início do item 4.4.2.
245
de uma força internacional voltada para a tarefa de desarmar as facções somalis e
de promover o “nation-building”. Todavia, tais demandas não foram acolhidas
pelo Secretário de Defesa, Dick Cheney, para quem o desarmamento ativo não
deveria ser parte da UNITAF (Tripodi, 1999). Como veremos mais adiante, no
capitulo 8, essa disputa de visões entre os Estados Unidos e a ONU foi o que
permitiu que os primeiros tivessem considerado a operação um sucesso, já que,
segundo o discurso dominante sobre a UNITAF, ela conseguiu, de fato, “vencer”
a fome somali.
Voltamos então ao argumento aqui elaborado de que o desarmamento não
foi perseguido pelos Estados Unidos justamente devido à crença discursivamente
construída de que a militarização do país durante a Guerra Fria não era um
problema em si, já que o que explicava o conflito somali era o fato das armas
modernas terem caídos nas mãos de somalis movidos por animosidades
ancestrais. De acordo com a antropóloga Besteman (1999:4), o discurso
dominante representa o conflito somali como dando continuidade à: “Stone Age
ancestral clan rivalries, but with Star Wars military technology”. Scott Petterson,
jornalista do jornal London’s Daily Telegraph apresenta uma visão informada por
tal lógica no livro “Me Against My Brother. At War in Somalia, Sudan, and
Rwanda. A Journalist Reports from the battlefields of Africa” quando diz:
I wanted to understand ‘these people’ – these ancient nomadic warriors and peacemakers – who were thrown by default into a new era in which the measured calculus of killing with a spear had been displaced by weapons of much greater efficiency. This dangerous cocktail was, curiously, both ancient and modern and it mixed medieval demands for vengeance with today’s disturbing ability to thoughtlessly kill vast numbers of people. This disease is not limited to Somalia. Several African states (…) have been similarly driven to battle for ethnic or tribal differences. In Africa it has always been so, but has proved all the more potent when destructive firepower is easier to find than food and when government disappears or is complicit (Petterson, 2000:6-7). Conforme a narrativa de Petterson, portanto, foi esse “coquetel perigoso”
formado pela mistura de demandas medievais por vingança com armas modernas
e eficientes que gerou a “doença” somali. Mais adiante, Petterson (2000:7) volta a
expressar a mesma lógica quando diz: “It was the efficient modern methods of
taking life –in such hard-worn and pitiless hands –that complicated the equation.
Because Somalis are (…) as hard as their country”.
246
Krauthammer, em dezembro de 1992, também expressa essa idéia quando
declara num artigo do The Washington Post: “The United States and the Soviet
Union shipped M-16s and AK-47s to every corner of the Earth. Yet only in
Somalia have the guns been used for cruelty beyond barbarism: stealing food
from the mouths of starving children”. Outro artigo publicado no mesmo jornal
um ano depois por John Burgess (1993) expressa uma visão coincidente quando
coloca: “ancient clan enmity, pursued with modern weapons that are so abundant
in Somalia, is at the root of the country’s conflict”.
É interessante notar que a visão exposta acima - de que as armas modernas
teriam apenas acentuado um conflito derivado de ódios ancestrais- já se
encontrava embrionariamente presente nos prognósticos feitos pelo explorador
inglês Richard Burton sobre os somalis: “At present, a man armed with a revolver
would be a terror to the country; the day, however will come when the matchlock
will supersede the assegai, and then the harmless spearman is his strong
mountains will become (…) a formidable foe” (Burton, 1984:88).
Assim, ora destacando a natureza violenta dos somalis ora destacando o
caráter violento da cultura clânica somali, argumenta-se que o discurso dominante
nos Estados Unidos atribuía ao conflito uma dimensão meramente endógena, isto
é, sem qualquer conexão com o colonialismo e com o Estado pós-colonial
vivenciados pela Somália. E, ao fazê-lo, relacionavam o conflito a um passado
pré-moderno, temporalizando a violência, a qual passava a ser vista como símbolo
do atraso da sociedade somali.
Besteman (1996) argumenta que por meio do discurso dominante, a
Somália apenas simulou ser um Estado quando, de fato, permaneceu tribal. Daí,
segundo Besteman (1996), se imaginou a Somália retornando desde um pseudo-
Estado para uma organização social baseada em laços de parentesco. Tal visão é
claramente colocada, por exemplo, no artigo já citado de Richburg do The
Washington Post, de setembro 1992, segundo o qual: “As rebels opposing Barre
closed in on the capital, the artificial Somali state unravelled, and Somalis were
left in essentially their pre-colonial condition -a collection of regionally based
clans, newly laden with modern arms”.
E, assim, o discurso dominante retratava o conflito somali como derivado
de rivalidades pré-coloniais que voltaram a explodir no cenário do pós-Guerra
247
Fria (ver Besteman, 1996). Em conformidade com tal visão, as notícias sobre o
conflito somali enfatizavam a idéia de que após a queda de Barre o que de fato
sucedeu foi o reaparecimento das velhas rivalidades clânicas, congeladas no
tempo. No rastro da queda de Barre, Scott Petterson (2000:15) observou: “The
power vacuum was readily filled by the ferocious ghosts of Somali warriors past”.
Essa visão também foi compartilhada, por exemplo, por Sophronia Gregory que
escrevendo no Time Magazine em dezembro de 1992 argumentou que: “[A]
divisiveness has infected them [the Somalis] since ancient times, when rival
groups laid claim to the same wells and grazing lands”. Também em dezembro
de 1992, mas no Chicago Tribune, Liz Sly temporaliza o conflito, todavia,
localizando-o não no passado da própria Somália, mas, curiosamente, no passado
europeu, já que a jornalista argumenta que a Somália estaria regressando à “Idade
Média”. Sly, portanto, se vale de uma referência temporal européia para julgar a
condição da Somália no final de 1992 ao dizer: Segundo Sly: “Within days, Siad
Barre fell and Somalia began its long and bloody decline into a state of anarchy
unprecedented in recent history. Over the next two years, vicious clan fighting
reduced downtown Mogadishu to rubble and plunged the city back into the
Middle Ages”94.
As visões apresentadas na mídia e acima expostas foram corroboradas por
Ioan M. Lewis (2002:263), um dos mais conhecidos acadêmicos sobre a Somália,
quando ele descreveu a situação da Somália no momento pós-Barre por meio de
uma analogia com a situação do século XIX, conforme consta abaixo:
The general situation now vividly recalls the descriptions of Burton and other nineteenth-century European explorers: a land of clan …republics where the would-be traveller needs to secure the protection of each group whose territory he seeks to traverse.
Lewis (2002), contudo, reconhece que a intensidade da “limpeza clânica”, termo
usado, segundo Lewis, pelos próprios somalis, nunca havia sido vista antes. O
problema da abordagem de Lewis é que, para ele, existe apenas uma diferença de
grau ou de intensidade e não de espécie entre as rivalidades pré-coloniais e as que
assolaram a Somália no pós-Guerra Fria. Nas palavras de Lewis (2002:263):
94 Grifo meu.
248
The only substantial difference, now, was that the volatile relations between these clan units across the whole country had been raised to fever pitch by the experience of Darod [Siad Barre`s clan] (...) hegemony and oppression, and the bitter fighting which, with modern weapons, wrought death and destruction on an unprecedented scale.
Contudo, por mais que nos fale na citação acima de uma “diferença
substantiva”, Lewis (2002) não concebe uma diferença ontológica entre os
conflitos do passado e do presente, mas unicamente uma diferença em termos de
intensidade, já que, para ele, no momento da guerra civil somali as rivalidades
clânicas estariam apenas se expressando de modo mais destrutivo e mortal. Essa
mesma visão é também expressa pelo jornalista Petterson que afirma que: “The
warlords simply extended traditional clashes among nomads over grazing and
water rights to a more destructive level” (Petterson, 2000:25)
A representação do conflito somali como um conflito pré-moderno, por
sua vez, criou as condições de possibilidade para o seu entendimento como
intratável e, conseqüentemente, para a atitude distante dos Estados Unidos em
relação ao mesmo bem como para a sua retirada prematura do conflito. Afinal,
como já visto, no dia 11 de outubro de 1993, ou seja, pouco depois do incidente
dos soldados norte-americanos arrastados pelas ruas de Mogadíscio - estopim para
a retirada dos Estados Unidos do conflito -, o jornalista Wright argumentou sobre
a impossibilidade de se resolver um conflito que tem suas origens no sistema
clânico. A culpa pelo conflito somali acabou sendo atribuída, portanto,
unicamente a fatores endógenos relacionados ao atraso do modo de vida somali e,
mais especificamente, a facções e líderes hostis que por estarem embebidos nessa
cultura violenta são tidos como resistentes aos múltiplos esforços de paz
intentados pelos agentes externos.
Usualmente entendido como um conflito com causas meramente
endógenas, diversos artigos se referem ao mesmo como um “suicídio nacional”
(ver, por exemplo, Editorial Desk, The New York Times, fevereiro, 1992). Tal
visão foi, em grande medida, introduzida por Jane Perlez que, num artigo para o
The New York Times em 29 de dezembro de 1991, definiu a guerra civil em
Mogadíscio do seguinte modo: “Far more than a month now, Mogadishu (...) has
been enveloped in a mad swirl of self-genocide”95.
95 Grifo meu.
249
A imagem do suicídio, por sua vez, nos sugere uma forma de violência
irracional e antinatural, tendo em vista que ações suicidas ou, como chamadas por
Perlez, “autogenocidas”, entram em contradição com a lógica do contrato social
hobbesiano internalizada nos Estados ocidentais, segundo a qual, os indivíduos se
submetem ao Estado em função do medo que sentem da morte violenta e
inesperada, motivação aparentemente ausente entre os somalis. Nesse sentido,
argumenta-se que tais ações suicidas são deslocadas para o espectro da
anormalidade, não sendo passíveis de explicação e entendimento racionais. Tão
logo o governo de Barre foi deposto, um artigo na Time Magazine descrevia o
conflito da seguinte maneira:
The rebel factions have no political program; the only principle that unites them is their hatred of Siad Barre and their determination to oust him. Their organizations are completely clan-based and are divided by hundreds of years of intramural fighting. With no restraining influences from abroad and the superpowers attending to other concerns, Somalia’s future is likely to be sadly similar to its bloody past (Nelan et al., 1991).
De acordo com tal artigo, portanto, as facções somalis que depuseram
Barre careciam de programa político e, no rastro de tal deposição, estavam
destinadas a, apenas, dar seguimento a séculos de lutas clânicas; fazendo do
presente uma mera reprise de um “passado sangrento”. Em outubro de 1992,
Richburg definiu, no The Washington Post, o conflito na Somália de forma
similar: “a dirty little war with no borders, no real armies and no particular
meaning behind the chaos”.
O argumento que se procura elabora nessa tese é que a leitura dominante
do conflito, a qual o representa como “sem sentido”96 e “suicida”, o despolitiza.
Defende-se também que a atribuição de irracionalidade ao “Outro”, por sua vez,
ajuda a construir a “racionalidade” dos atores externos representados como
salvadores e como condutores de ordem e organização para uma sociedade
desestruturada e descontrolada.
Se até aqui nos concentramos nos ditos “culpados” do conflito somali,
identificados em figuras ou bandos ligados à irracionalidade e ao atraso do
sistema clânico somali, a partir de agora voltaremos nossa atenção para as
96 Essa visão de um conflito “senseless” também aparece na carta dirigida por Boutros-Ghali para o representante dos Estados Unidos, Bill Emerson (ver S/24480, apud Boutros-Ghali, 1996:183).
250
“vítimas”, ou seja, para aqueles que deveriam ser salvos ou socorridos das “hordas
de bárbaros” que dominavam a Somália.
7.1.4 Salvando o futuro da Nação: As Crianças Somalis
“Famines seem anachronist. They appear to belong to an era more primitive and less technologically advance than ours” (Jenny Edkins, 2000:vx) “We had come here to do a job, dispatched by our government to stem the rampant corruption that was bleeding Somalia dry and decimating its people. Already a famine of Old Testament proportions had swept the country, starving more than 300.000 Somalis to death”. (Michel Durant, 2004:20, grifo meu)
Conforme visto no item anterior, a Somália foi representada pelo discurso
dominante como uma nação destruída e impotente face ao poder de gangues
armadas. E, assim, para além dos elementos violentos da sociedade somali, o resto
da sociedade foi produzido pelo discurso dominante como uma massa amorfa,
faminta, vulnerável, desprotegida e impotente, a qual necessitava ser resgatada
pelos agentes externos. Tal representação foi construída tanto por meio de
discursos como de imagens, as quais identificam as vítimas predominantemente
na figura das crianças e das mulheres, e os agentes da violência na figura de
jovens ou de homens armados.
No discurso de Bush de 04 de dezembro de 1992, por exemplo, ele diz:
“The people of Somalia, especially the children, need our help. We’re able to ease
their suffering. We must help them live. We must give them hope. America must
act”97. O envolvimento dos Estados Unidos na Somália é representado por Bush,
portanto, como um dever moral voltado para oferecer esperança às crianças
somalis. Mais adiante ele volta a enfatizar o foco da operação nas crianças
somalis: “When we see Somalia’s children starving, all of America hurts”. Ao
criticar o aparato midiático montado para a chegada das forças de marines norte-
americanos na praia de Mogadíscio no dia 9 de dezembro de 1992, o político
francês, Alain Juppé expressou uma visão similar acerca do propósito da
operação: “I thought we were down there to save children who were dying of
97 Grifo meu.
251
hunger. But if it is to organize a gigantic media show, I don’t think it’s right”
(apud Riding, 1992, grifo meu).
A idéia de que a operação na Somália se destinava a “salvar crianças” era
igualmente produzida por imagens comoventes que invadiam, conforme colocado
por Bush, o lar dos norte-americanos98. As imagens chocantes as quais Bush se
refere representavam a fome somali sobretudo na face de crianças mortas e
esquálidas. Conforme consta no artigo do New York Times de 07 de outubro de
1993, o envolvimento dos Estados Unidos na Somália começou com a exibição de
fotos de crianças morrendo de fome: “news footage of children, skeletons with
black-hole eyes, starving in the villages of Somalia, dying and being buried where
they had fallen because there were so many dead” (Quindlen, 1993).
Argumenta-se nessa tese, portanto, que as fotos, assim como os discursos
veiculados por jornalistas, políticos e acadêmicos também participaram da
construção discursiva do sujeito sobre o qual a UNITAF atuou. Conforme
veremos a seguir, a partir das três fotos selecionadas, esses sujeitos foram
construídos como “vítimas”, “vulneráveis” e “a mercê de gangues armadas” que
os aterrorizavam.
As duas primeiras imagens são da coleção do fotógrafo norte-americano
James Nachtwey sobre a fome na Somália em 1992, denominada “Inferno”, e a
terceira, também do ano de 1992, do fotógrafo francês Joel Robine, da Agência
France-Press. Na primeira foto, vemos a imagem de uma mãe levantando o filho
morto do chão num terreno vazio, descampado e árido. A imagem em questão
sugere uma Somália seca, estéril, incapaz de alimentar e oferecer esperança para
os seus filhos. Uma mãe, que assim como a nação deveria conferir proteção aos
seus, se revela impotente e sozinha diante do filho morto num ambiente
caracterizado por uma imensidão inóspita. Aqui há claramente uma perspectiva de
gênero na qual a nação, a mãe e a criança são substantivos femininos que
representam o que deve ser protegido99.
A foto seguinte nos oferece uma clara representação iconográfica dessa
realidade simplificada construída pelo discurso dominante, a saber, a idéia de um
adulto violento, portando uma arma, que cruza o caminho, se interpondo entre a
casa que protege e a criança morta, desprotegida e despida. A legenda da foto diz: 98 Ver, por exemplo, citação III do item 4.4.2. 99 Essa idéia foi sugerida por Maira Gomes.
252
“Child starved by famine, a man-made weapon of mass extermination”100 nos
oferece com clareza a idéia já apresentada da vítima representada na figura da
criança e do vilão representado na figura do adulto armado que, como nos diz a
legenda, seria o responsável por um “extermínio em massa”.
A terceira foto, contudo, nos mostra a esperança garantida pelas forças
externas que, segundo o discurso dominante, seriam as únicas capazes de salvar a
Somália de si mesma, já que, conforme vimos, nem as mães, nem a nação,
símbolo da proteção e do conforto, teriam condições de fazê-lo. Assim, na terceira
foto, um garoto somali corre na direção de um comboio de ajuda, protegido por
um legionário francês, que havia acabado de chegar perto de Baidoa, o epicentro
da fome.101
100 Disponível em: http://www.jamesnachtwey.com/ 101 Informação disponível no site: http://www.archive.worldpressphoto.org/search/layout/result/indeling/detailwpp/form/wpp/start/3/q/ishoofdafbeelding/true/trefwoord/year/1992
253
As imagens de fome da Somália tendem a se focar no sofrimento das
mulheres e das crianças. As mulheres são representadas como impotentes diante
do sofrimento e da morte dos seus filhos, os quais, para sobreviverem, precisam
ser salvos pelas agências e organizações internacionais. Por outro lado, as
crianças, emblema da esperança de uma nação, nos são apresentadas, por meio de
tais imagens, como sofredoras, fracas, esquálidas, desnudas e mortas.
254
Durante os anos de fome na Somália, essas imagens que representavam
uma parte da Somália, sobretudo, mulheres e crianças em situações de sofrimento
e agonia, passaram a representar a Somália na sua totalidade. E, assim, a nação
somali (o todo) foi construída, por analogia às suas partes, iconograficamente
representadas, na sua maior parte, por crianças, como uma nação sofredora,
moribunda e desesperançada, conforme consta nas passagens selecionadas abaixo.
Num discurso de 06 de setembro de 1992, por exemplo, o presidente do
Subcomitê de África, do Comitê de Relações Exteriores da Câmara dos
Representantes dos Estados Unidos, Mervyn M. Dymally (U.S.G.P.O., 1993:2,
grifo meu) se manifestou a favor de uma participação mais ativa do seu país na
Somália com base no seguinte chamado: “We cannot content ourselves by just
doing what we feel is our share while the entire country perishes”. E quase no
final do discurso ele volta a enfatizar: “I also think that American private
voluntary agencies who had to leave when the civil war broke out should return to
Somalia and help nurse that broken nation back to life”. Numa fala do
Secretário-Geral da ONU (UN Press Release SG/SM/4874, apud Boutros-Ghali,
1996:218, grifo meu) para o povo somali no dia 08 de dezembro de 1992, ele
coloca, novamente ressaltando a natureza singular da crise somali:
The people of the world have been deeply moved by the unique and desperate situation in Somalia. The world refuses to accept your suffering and death. An end to hopelessness and despair is possible. (…). The United Nations intends to restore the hope of the Somali people. The unified military command which is arriving in Somalia under the United Nations mandate comes to feed the starving, protect the defenceless and prepare the way for political, economic and social reconstruction. (…) Together we can restore peace to your suffering land. Nesse sentido, fica claro que o discurso dominante nesse momento
estabelecia uma clivagem na sociedade somali entre os culpados pelo conflito e
pela fome e as suas vítimas inertes e passivas. Os predicativos atribuídos às
vítimas, tais como: sofredoras e à beira da morte são, por sua vez, estendidos à
nação que, assim como suas vítimas, se torna sofredora e agonizante. Através de
tal artifício, a nação passa a se igualar à vítima, e por conseqüência, à criança
faminta e sem defesa. Esse processo, aqui chamado de “infantilização da nação”,
por sua vez, criou as condições de possibilidade para a UNITAF que, conforme já
visto, tinha como propósito declarado o de “salvar” e “proteger” vidas. Esse
255
processo de “infantilização da nação”, por sua vez, produziu uma distância
temporal entre os agentes externos (salvadores) e os somalis (crianças)
autorizando uma operação levada a cabo em nome, como já visto, da “restauração
da esperança” e da garantia de um futuro para crianças à beira da morte.
As vítimas representadas, sobretudo, na figura de crianças indefesas
requerem proteção para sobreviverem. Segundo Edkins (2000:39-40): “What
modernity’s picture of famine produces is bare life, a life that is mere existence
with no political voice and no particular way of life”. Desse modo, as imagens
modernas da fome não nos dizem sobre a sobrevivência de um modo de vida
particular, mas do que Giorgio Agamben (2010) denominou “vida nua” (bare
life), ou seja, a vida reduzida a uma mera existência biológica e não a um modo
particular de vida, capaz de resistência. O objeto da política deixa de ser, portanto,
a promoção de uma vida politicamente qualificada, como o era para Aristóteles, e
passa a ser, doravante, a vida per se, como mera oposição à morte (ver Agamben,
2010).
Agamben (2010) nos mostra que Foucault, ao final de “Vontade de Saber”
(1976) resume o processo através do qual, nos limiares da Idade Moderna, a vida
natural, “nua”, começa a ser incluída nos mecanismos e cálculos do poder estatal
transformando a política em biopolítica. Segundo Foucault (apud Agamben,
2010:11): “Por milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um
animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é
um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente”.
Na sua aula de 17 de março de 1976 no Collège de France, Foucault
(2005c) argumenta que logo depois de uma primeira tomada de poder sobre o
corpo através do modo de individuação, temos, no fim do século XVIII e no
século XIX, uma segunda tomada de poder massificante chamada “biopolítica”. O
campo de intervenção da biopolítica passa a ser não o corpo individual, mas, sim,
a vida da população. O biopoder intervém para aumentar a vida da população e
controlar seus acidentes, tentando alcançar estados globais de equilíbrio e de
regularidade. Nas palavras de Foucault:
[A] nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem aos corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios
256
da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. (Foucault, 2005c: 289)
Se de acordo com a lógica clássica da soberania um dos atributos
fundamentais do soberano era o de fazer morrer agora, com a emergência da
biopolítica, o poder soberano se preocupava com o fazer viver (ver Foucault,
2005c). Nesse sentido, como nos mostra Edkins (2000), a política se despolitiza,
já que passa a zelar pela preservação da vida enquanto tal e não pela continuação
de uma forma específica de vida. Nesse processo de valorização da “vida nua”, a
morte só recebe atenção sob a forma estatística das taxas de mortalidade, as quais
afetam a população como um todo, campo de intervenção do biopoder (ver
Foucault, 2005c).
Para Edkins (2000) e Hendrie (1997), as ocorrências de fome na
modernidade nos são apresentadas como episódios de “mortalidade em massa”
nos quais milhares de pessoas perdem suas vidas por falta de comida. A gravidade
das ocorrências de fome é medida por meio das taxas de mortalidade de um
agregado de indivíduos diagnosticados por profissionais médicos, as quais são
comparadas com os padrões de normalidade estabelecidos (Hendrie, 1997). Tais
taxas, por sua vez, são causalmente relacionadas à diminuição da oferta de comida
(Hendrie, 1997). Logo, os episódios de fome são tratados como disfunções
técnicas ou como alterações, quantitativamente verificadas, do estado geral das
populações afetadas (ver Hendrie, 1997). Os programas de ajuda destinam-se a
salvar o máximo possível de vidas de forma a obter uma redução das taxas de
mortalidade (Hendrie, 1997; Edkins, 2000). Nesse raciocínio, a ajuda humanitária
se volta para o fornecimento de comida e dos meios necessários para a garantia da
“vida nua” e não a continuação de uma forma particular de vida.
Edkins (2000) nos mostra que a fome nem sempre foi tratada da forma
apresentada acima. Nos marcos da visão não moderna, a fome era entendida como
derivada de catástrofes sociais. No contexto não moderno, os esforços principais
se dirigiam não para evitar a fome ou para minimizar o número absoluto de
mortes, mas sim para preservar os recursos necessários para regenerar uma
determinada comunidade e garantir a sobrevivência de uma forma particular de
vida (Edkins, 2000). Conseqüentemente, mesmo reconhecendo a angústia gerada
pela morte de crianças, a sobrevivência dos adultos em idade reprodutiva era
257
considerada prioritária tendo em vista a importância dos mesmos para a
sobrevivência da comunidade (Edkins, 2000). A vida, objeto de preocupação
política, era, portanto, uma vida qualificada e não simplesmente a vida biológica.
Já na modernidade, como nos mostra Edkins (2000), as grandes fomes são aquelas
que ocasionam grande número de mortes. A partir de tal visão, prossegue a autora,
crianças e bebês são priorizados vis-à-vis os adultos e a sobrevivência dos
mesmos em orfanatos ou em campos de refugiados passa a ser entendida como
uma solução e não como uma falência dos programas de ajuda tendo em vista que
a ajuda está direcionada para preservar a vida do organismo biológico antes do
que para restaurar os meios de vida da comunidade.
Sugere-se nessa tese que a valorização da vida das crianças assume uma
importância crucial nas operações de ajuda humanitária não apenas devido à
grande incidência de mortes entre elas, mas, também, devido ao fato de que a
criança simboliza a tabula rasa, o terreno ainda não inscrito pela cultura clânica
somali. Ao simbolizar o novo, o começo, a criança inspira esperança num futuro
melhor, já que, mesmo o jovem, tão enfatizado pelos discursos dominantes como
os autores dos saques de alimentos e, por conseqüência, como reprodutores da
fome somali, já se encontraria corrompido. Nesse sentido, a esperança da nação
somali não recairia em absoluto sobre o jovem, mas sobre a criança, e necessitaria
de várias gerações ou, nos termos do discurso dominante, de um investimento de
longo prazo, para ser, de fato, restabelecida.
A associação do jovem com a violência aparece abusivamente no discurso
sobre a perpetuação da violência na Somália. Num artigo do The Washington
Post, Jim Hoagland (1992, grifo meu) observa que o pesado aparato militar da
UNITAF estava voltado para: “[T]o chase teenage gunmen away from relief
workers in Somalia”. Nesse mesmo sentido, Dymally (U.S.G.P.O., 1993:2, grifo
meu), identificou os seguintes culpados pela obstrução do trabalho das agências
de ajuda voltadas para salvar uma nação em agonia: “Undisciplined youths, in the
name of warring factions, prey on the starving populace or steal from the relief
agencies there to help save a dying nation”102. Já na fase final da operação, uma
reportagem da Newsweek relativa ao ataque norte-americano ao grupo de Aidid no
102 A frase de Dymally reflete a contradição presente no discurso dominante sobre tais jovens ora descritos como “indisciplinados” ora descritos como “seguidores” das ordens das facções em guerra na Somália
258
Hotel Olympic, ofereceu a seguinte representação sobre um dos momentos desse
episódio: “Hours after the fighting ends (...) a trembling young teenager with a
long knife in his hand screamed ‘are you American? We will kill all Americans”
(apud Butler, 2002:8). Na medida em que tais jovens são vistos, em grande
medida, como bárbaros e irrecuperáveis, eles são excluídos do objetivo anunciado
pelos Estados Unidos e pela ONU de garantir um futuro de esperança para a
Somália. O futuro, como já foi dito, só poderia pertencer às crianças ainda não
contaminadas pela corrupção que, segundo o discurso dominante, afligia a
Somália de então.
Vimos que a operação dos Estados Unidos foi destinada apenas a “salvar”
a vida dos somalis, devolvendo-lhes a esperança, mas, sem pretender envidar
esforços pela preservação dos seus modos de vida. Tal limitação se fez possível
em razão do discurso dominante, o qual qualificou o modo de vida somali ora
como não mais existente, já que o país encontrava-se em ruínas, ora como não
desejável devido à conexão já ressaltada entre o sistema clânico somali e a
violência em curso na Somália desde a queda de Barre. Se o conflito era intratável
e cíclico, pois resultante da cultura imutável dos somalis, então o futuro estaria
indefinidamente comprometido até que tais traços culturais não fossem
eliminados.
Para Duffield (2001), mesmo que a destruição derivada dos conflitos do
pós-Guerra Fria seja deplorada, seus efeitos mais amplos nem sempre são
considerados negativos, já que a violência pode, segundo o entendimento
dominante, erodir a coesão das tradições, costumes e cultura de uma sociedade.
De acordo com Duffield (2001:123):
Given that a radicalised development now seeks to transform societies as a whole including the beliefs and attitudes of the people concerned, this Hobbesian outcome of violence has a certain utility. In ideological terms, it makes the process of transition easier. While the rolling back of development and the deepening of poverty provide the urgency to intervene, the destruction of culture furnishes the opportunity for aid agencies to establish new and replacement forms of collective identity and social organisation. .
Duffield (2001) nos mostra que o entendimento dominante sobre os
conflitos é de que os mesmos têm efeitos hobbesianos sobre as relações sociais e
culturais. Todavia, tais efeitos são, curiosamente, bem vistos, já que criariam
oportunidades para o objetivo, perseguido pelas agências de desenvolvimento, na
259
fase de reconstrução de Estados, de radical reestruturação dessas sociedades; o
que demandaria a completa eliminação das velhas identidades culturais e sociais
(ver Duffield, 2001). Citado por Duffield (2001:122), o ex-economista chefe do
Banco Mundial, Joseph Stiglitz, por exemplo, argumentou que a persistência de
formas tradicionais de costume e prática constitui um entrave na busca por um
novo paradigma de desenvolvimento visando a modificar sociedades inteiras.
Conforme observado por Young (1995) são as velhas lealdades e obrigações
comunitárias que as agências externas voltadas para a promoção da governança e
do desenvolvimento visam a remover. Por conseguinte, as guerras que levam ao
caos as sociedades em conflito, ainda que lastimáveis, são, conforme Duffield
(2001), percebidas como oportunidades para o desenvolvimento.
Todavia, vale ressaltar, Duffield (2001) se mostra cético em relação a tal
entendimento hobbesiano do conflito e nos oferece uma perspectiva histórica
como um corretivo para tal entendimento. Segundo o autor, se o conflito violento
de fato tem tal efeito, vislumbrado por muitas agências de desenvolvimento,
depois de séculos de tumulto na Europa todos deveriam ser um vazio cultural.
Diferentemente da abordagem dominante, Duffield (2001) argumenta em prol da
necessidade de examinarmos os conflitos em termos mais inovadores, isto é,
averiguando a possibilidade de que a violência possa ser um meio pelo qual as
formas culturais são mantidas, modificadas ou expandidas.
7.1.5 Da Fase Emergencial para a Fase de Reabilitação
Em poucos meses após o envio da UNITAF, em maio de 1993, a nova
Administração Clinton, que assumiu em janeiro de 1993, anunciou que o objetivo
da missão havia sido cumprido. Para validar o êxito da missão contrastou a
situação daquela data com aquela em vigor seis meses antes:
To understand the magnitude of what our forces in Somalia accomplished, the world need only look back at Somalia’s condition just 6 months ago. Hundreds of thousands of people were starving; armed anarchy ruled the land the streets of every city and town. Today, food is flowing; crops are growing; schools and hospitals are reopening. Although there is still much to be done if enduring peace is to prevail, one can now envision a day when Somalia will be reconstructed as a functioning civil society (Clinton, maio, 1993).
260
Por meio desse discurso, o presidente Clinton representou a missão da UNITAF
como bem sucedida ao ter cumprido seu objetivo de “salvar vidas”. Nas palavras
de Clinton:
If all of you who served had not gone, it is absolutely certain that tens of thousands would have died by now. You saved their lives. You gave the people of Somalia the opportunity to look beyond starvation and focus on their future and the future of their children. O excerto do discurso de Clinton nos mostra que o presidente considerou,
seis meses após o envio da UNITAF, que a situação de emergência vivenciada
pela Somália encontrava-se encerrada e que, a partir de então, deveria ser iniciado
o período de reabilitação do país, a ser liderado pela ONU. No discurso do dia 7
de outubro de 1993, o presidente Clinton nos fala sobre esse momento divisor de
águas afirmando que: “Our troops created a secure environment so that food and
medicine could get through. We save close to one million lives. And throughout
most of Somalia, everywhere but in Mogadishu, life began to returning to
normal”.103
Argumenta-se aqui que, embora a consideração de Clinton acerca da
normalização da vida somali a partir da decretação do fim da situação emergencial
seja disputada, tal consideração articulou-se como uma “verdade política” sobre a
Somália que criou as condições de possibilidade para a segunda fase da operação
voltada para a reconstrução política e econômica da Somália. A “verdade” do fim
da situação emergencial foi desafiada, por exemplo, por Mark Bradbury (2000),
para quem a Somália continuava numa situação de desastre crônico mesmo depois
da operação.
A fixação desse momento, embassada por estatísticas confirmando uma
alteração positiva das taxas de mortalidade da população somali, permitiu ao
presidente Clinton decretar finalizada a operação emergencial, de exceção, e
considerar o país pronto para uma segunda etapa de desenvolvimento e
reconstrução. Nesse sentido, se, antes vimos que as estatísticas relativas ao desvio
de comida tiveram uma participação no envolvimento norte-americano na
Somália, agora vemos que as estatísticas também tiveram um papel determinante
em legitimar o fim da UNITAF uma vez que a situação somali foi considerada
103 Grifo meu
261
normalizada e pronta para a etapa seguinte, de reabilitação. Para Mark Bradbury
(2000), um dos discursos compartilhados pela ONU, pelas ONGs e pelos
doadores internacionais é que a ajuda deve ser temporária até que a normalidade
seja restabelecida e que se possa dar início ao desenvolvimento. Todavia, a
passagem da fase emergencial para a fase de desenvolvimento104, confome já
argumentado, é política e quem determina o momento divisor de águas dessa
transição é o poder soberano que, no caso em questão, foram os Estados Unidos.
Essa decisão, por sua vez, tem uma série de efeitos sobre as populações que vem
sendo normalizadas por tais práticas. Um deles é bem descrito por Bradbury
(2000:335), quem diz: “The real danger is that a programme change from relief
to development, far from being a progressive shift towards the provision of
sustainable services, entitlements and access are actually being cut”. Enfim,
percebe-se que Bradbury está chamando a atenção para o perigo de que a
decretação prematura do fim da situação emergencial crie as condições para a
redução e cortes na ajuda humanitária (2000).
À separação entre uma operação emergencial e a seguinte, de
reconstrução, também foi agregada outra separação, entre uma operação dita
“apolítica” e outra, dita, “política”. A substituição da UNITAF pela UNOSOM II
em março de 1993 foi produzida, por conseguinte, como uma passagem desde
uma operação técnica para uma operação de natureza política. Nesse sentido, a
separação entre técnica e política foi artificialmente produzida por meio da
diferenciação entre essas duas operações. Argumenta-se nessa tese que tal
separação criou as condições de possibilidade para que o discurso dominante,
diante do insucesso da UNOSOM II, proclamasse a vitória da técnica sobre a
política e, desse modo, a vitória da operação liderada pelos Estados Unidos em
detrimento da operação conduzida pelas Nações Unidas. No ambiente pós-
UNOSOM II, como veremos no capítulo 8, algumas das lições aprendidas a partir
do envolvimento no conflito somali aconselhavam que as operações subseqüentes
devessem ater-se, exclusivamente, à técnica, sem buscar um envolvimento na
104 Fukuyama (2006a), contudo, estabelece uma diferença entre as fases de reconstrução e de desenvolvimento. Enquanto a reconstrução envolve o retorno da sociedade dilacerada por guerra ou desastre natural para algo como status quo ante, o desenvolvimento envolve a criação de novas instituições políticas e sociais que vão ser auto-sustentáveis após a retirada da “comunidade internacional”.
262
política do país alvo da operação de paz. Agamben interpreta do seguinte modo tal
pretensão:
A separação entre o humanitário e o político, que estamos hoje vivendo, é a fase extrema do descolamento entre os direitos do homem e os direitos do cidadão. As organizações humanitárias, que hoje em número crescente se unem aos organismos supranacionais não podem, entretanto, em última análise, fazer mais do que compreender a vida humana na figura da vida nua ou da vida sacra e, por isto mesmo mantêm a contragosto uma secreta solidariedade com as forças que deveriam combater (Agamben, 2010:130).
Lyons e Samatar (1995) discordam do entendimento da ação humanitária
como apolítica. Segundo os autores:
Despite the insistence by policymakers in Washington that the goals of the international intervention were narrowly humanitarian, the operation had significant political consequences from the moment it was announced. As Somali actors tried to uncover how the deployment would affect their relative fortunes, they adopted responses that for good or ill shaped the framework for political reconciliation and the reestablishement of governing institutions. Every international action, from providing food to a famine region to meeting with factional leaders to sign a cease-fire, had unmistakable and often significant political repercussions (Lyons, Samatar, 1995: 67-8)
Essa tese concorda acerca da artificialidade e a impossibilidade de se
separar o humanitário do político. Conforme vimos até aqui, a UNITAF não pode
ser considerada uma operação meramente técnica, já que ela não estava, apenas,
se envolvendo num mundo lá fora, chamado “Somália”, com o fito de resolver um
problema bem específico, qual seja: o de “salvar vidas”. No curso da sua ação, a
UNITAF estava, ao contrário, produzindo esse “mundo”.
Partindo de uma perspectiva foucaultiana, entende-se aqui, como vimos na
introdução da tese, que o “mundo” não tem uma fundação ontológica, mas, antes,
é um produto do poder que opera através da linguagem. Com base em tal
perspetiva, argumenta-se, portanto, que os agentes envolvidos nessa operação
ajudaram a construir esse “mundo” por meio de práticas discursivas, as quais
produziram não apenas as “vítimas”, mas também os “culpados” pela situação de
fome na qual a Somália se encontrava. Além disso, a UNITAF produziu a
situação de normalidade somali no momento em que determinou que o seu
trabalho de “salvar vidas” fora cumprido e com louvor.
263
Por outro lado, argumenta-se aqui que um dos principais embates
vivenciados no curso da operação da ONU e dos Estados Unidos na Somália não
foi um problema de ordem técnica, relativo à coordenação das forças desses
atores, como freqüentemente alegado105, mas um problema de natureza política.
Tal problema se referiu a uma disputa entre eles acerca de quem seria a autoridade
soberana na Somália e quem, portanto, poderia decretar a exceção e a normalidade
das condições do país. Ou seja, a definição da situação de exceção ou de
normalidade num dado contexto tem um papel importante no sentido de que o
agente que o faz, se investe e se constrói como o ator soberano naquele espaço106.
A disputa entre esses dois atores sobre quem seria a autoridade soberana na
Somália, por sua vez, mostra com enorme clareza que as decisões sobre a
normalização dos corpos e espaços somalis eram tomadas por outros, alhures,
enquanto os próprios somalis continuavam desprovidos de voz e vida política.
Assim, mesmo reconhecendo como exitosa a missão comandada pelos
Estados Unidos na Somália, Boutros-Ghali fez questão de recordar, em março de
1993 que a excepcionalidade da situação somali não dizia respeito à situação
emergencial de fome vivenciada pelos somalis, mas, sim, como já visto, à situação
de ausência de um Estado centralizado no país e, por conseqüência, de ausência de
uma força armada disciplinada.
De fato, como nos mostra Bolton (1994), durante a UNITAF existiram
uma série de atritos entre os Estados Unidos e a ONU em função dos diferentes
objetivos buscados por esses atores. Segundo Bolton, o objetivo da Administração
Bush na Somália era claro: “The Bush administration sent U.S. troops into
Somalia strictly to clear the relief channels that could avert mass starvation”
(Bolton, 1994:56). E, nesse sentido, Bush teria resistido todas as tentativas da
ONU de ampliar o escopo da missão, seja para desarmar as várias facções
somalis, seja para reconstruir a nação somali (ver Bolton, 1994). Para ilustrar as
desavenças entre a ONU e os Estados Unidos, Bolton (1994:60-1) nos conta que
no mesmo dia em que as forças dos Estados Unidos entraram na Somália (9 de
dezembro), o Secretário-Geral disse a uma delegação de Washington que ele
105 Esse debate será feito no capítulo 8 da tese. 106 Essa lógica guarda uma óbvia similaridade com aquela exposta por Schmitt, visto que, para ele, é o soberano que determina a exceção. Ver em: Carl Schmitt: Teologia política, Belo Horizonte, Ed. Del Rey, 2006. Segundo Agamben (2010:23) o soberano é aquele que decide de modo definitivo se o estado de nornalidade reina de fato.
264
queria que a coalizão desarmasse as facções somalis e que, além disso, desativasse
as minas terrestres sobretudo no norte do país, estabelecesse uma adminitração
civil e começasse a treinar a polícia somali. O objetivo de Boutros-Ghali era,
portanto, o de colocar um fim à situação de excepcionalidade na qual a Somália se
encontrava caracterizada pela falta de uma autoridade central com o monopólio do
uso legítimo da força, conforme fica claro na passagem já citada onde ele diz: “I
must emphasize that the unique features of the situation continue to prevail. There
is still no disciplined armed force”. (S/25354, par. 100, apud Boutros-Ghali,
1996:255).
Da mesma forma que foi essa situação única que, como vimos, havia
autorizado uma resposta excepcional - ao uso do capítulo VII da Carta -, tal
resposta vai continuar sendo requerida pelo Secretário-Geral já que a
excepcionalidade somali continuaria estando presente no momento de finalização
da UNITAF e de início da UNOSOM II. No mesmo documento, Boutros-Ghali
(S/25354, par. 41, apud Boutros-Ghali, 1996: 249, grifo meu) coloca:
Ultimately, all the efforts being undertaken by the United Nations in Somalia are directed towards one central goal: to assist the people of Somalia to create and maintain order and new institutions for their own governance. The absence of a central government has aggravated the social, economic and political difficulties in the country. In fact, the non-existence of a government in Somalia is one of the main reasons for the now more robust role of the Organization in the country.
Nesse sentido, Boutros-Ghali insistiu desde a fase inicial da operação e
continuou a insistir após a finalização do mandato da UNITAF que o objetivo da
ONU na Somália não deveria ser apenas o de conter o conflito e alimentar os
somalis necessitados. Embora notadamente importante, “salvar vidas” não deveria
ser um fim em si mesmo, mas, apenas, o primeiro passo adotado para que a
Somália pudesse retornar a sua condição de normalidade, ou seja, para que ela
pudesse se reestabelecer como um Estado centralizado.
Ainda que a Administração Clinton tenha prestado apoio à UNOSOM II e
tenha, portanto, se comprometido com o esforço da ONU de “nation-building”,
ele enfrentou uma série de pressões domésticas, sobretudo depois dos incidentes
do dia 3 de outubro, que o fizeram retornar ao espírito original da missão
defendido pelo seu antecessor. Informado por um “multilateralismo assertivo”,
Bolton (1994) nos mostra que Clinton pressionou pela votação da resolução 814, a
265
qual envolucrava a ONU na reabilitação das instituições políticas e da economia
somali. Tal compromisso foi confirmado pela nova Representante Especial dos
Estados Unidos na ONU, Madeleine Albright, quem disse: "With this resolution,
we will embark on an unprecedented enterprise aimed at nothing less than the
restoration of an entire country as a proud, fiinctioning and viable member of the
community of nations” (apud Bolton, 1994:62).
Depois do incidente que resultou na morte dos soldados paquistaneses em
junho, autoridades norte-americanas continuaram insistindo no curso adotado. No
artigo já citado de agosto de 1993, Albright colocou: “The decision we must make
is whether to pull up stakes and allow Somalia to fall back into abyss or to stay
the course and help lift the country and its people from the category of a failed
state into that of an emerging democracy”107. A seguir, no dia 27 de agosto, o
secretário de defesa norte-americano, Les Aspin, disse: “We went there to save
people, and we succeeded. We are staying there now to help those same people
rebuild their nation” (apud Bolton, 1994:634). Essa pretensão modernizadora,
contudo, foi negada, por Clinton, nos discursos que antecederam a retirada norte-
americana da Somália. No dia 13 de outubro de 1993, por exemplo, Clinton
asseverou: “We went to Somalia because without us a million people would have
died. We, uniquely, were in a position to save them (…).The U.S. military mission
is not now nor was it ever of ‘nation-building’”.
Nesse sentido, fica claro que os Estados Unidos, durante a maior parte do
seu envolvimento na Somália, consideraram que a normalização foi atingida uma
vez que as altas taxas de mortalidade foram diminuídas e que, diferentemente, a
ONU, nunca considerou a situação somali normalizada, visto que, até a sua saída,
a Somália não havia conseguido ter tido sucesso em estabelecer um Estado
centralizado sobre todo o seu território.
Vimos nesse capítulo que a decisão dos Estados Unidos de passarem a
competência da operação para a ONU tão logo que a situação foi tida como
normalizada refletiu, em grande medida, a visão depreciativa dos somalis e dos
seus modos de vidas dominante no país, a qual sugeria a incapacidade de
modernizar povos que viveram desde sempre guerreando. A ONU,
diferentemente, trabalhava com a possibilidade de que os somalis pudessem, com
107 Grifo meu.
266
o tempo, e com a ajuda internacional, evoluírem na escala temporal transferindo
as velhas lealdades clânicas que, segundo a ONU teriam reaparecido com a queda
do governo Barre, para a lealdade a um Estado centralizado. A situação pós-Barre
é descrita por Boutros-Ghali da seguinte forma: “As economic, social, and
political conditions deteriored in the late 1970s and the 1980s, traditional clan
loyalties came to the fore, fragmenting the Somali nation, and by 1988 the
country was in the throes of a civil war” (Boutros-Ghali, 1996:11, grifo meu).
Segundo o Secretário-Geral, foi com a queda do governo Barre que as lealdades
clânicas tradicionais teriam vindo à tona, fragmentando a nação somali e dando
início a guerra civil somali. Para que as rivalidades em curso nesse então fossem
superadas, a direção proposta pela ONU é clara: a construção de um Estado
centralizado e, ademais, democrático, como fica claro no mandato confiado à
UNOSOM II:
“The mandate would also empower UNOSOM II to provide assistance to the Somali people in rebuilding their shattered economy and social and political life, re-establishing the country’s institutional structure, achieving national political reconciliation, recreating a Somali state based on democratic governance and rehabilitating the country’s economy and infrastructure” (S/25354, par. 91, apud Boutros-Ghali, 1996:254, grifo meu).
Veremos, no capítulo 8, como os padrões de normalização da ONU foram
se tornando no cenário do pós-Guerra Fria cada vez mais exigentes e elevados.
7.1.6 Aidid: "Procurado"
Até então, como vimos, os responsáveis pela violência na Somália foram,
em grande medida, despersonalizados e representados na figura de gangues
armadas ou de líderes clânicos envolvidos numa dinâmica de guerra vigente desde
os tempos pré-coloniais. Na medida em que a violência era representada como
naturalmente atrelada à cultura clânica somali, a culpa por tal violência não recaia
em líderes específicos, mas em bandos armados desprovidos de nomes e
identidades.
Ainda assim, conforme vimos, a UNITAF não fez desses bandos,
considerados culpados pela reprodução da fome na Somália, seus inimigos. O
267
grande inimigo da operação foi, de fato, a fome, a qual os Estados Unidos
buscaram derrotar por meio de uma abordagem supostamente apolítica voltada
apenas para conter as gangues, e não para desarmá-las ou eliminá-las, mesmo que
essas estivessem impedindo que a ajuda humanitária chegasse aos necessitados.
Todavia, a partir dos incidentes do dia 5 de junho, a causa da violência na
Somália foi se tornando crescentemente personalizada na figura do general Aidid
quem, previamente, era tido como um representante e negociador legítimo dos
interesses de parte dos somalis. Tais eventos de junho marcam, portanto, o
momento em que Aidid é deslocado para fora da fronteira da legitimidade e passa
a ser construído como o principal obstáculo à tentativa, liderada pela ONU, de
estabilizar e reconstruir a Somália e se torna o inimigo número 1 da operação.
A mudança em relação à atribuição de culpa ficou clara ainda no mês de
junho (1993) quando o presidente Clinton colocou: “We cannot have a situation
where on of the warlords, while everybody else is cooperating, decides he can go
out and slaughter 20 peacekeepers” (apud Murray, 2009:40). A visão do
presidente é corroborada no dia 10 de agosto de 1993 pela Representante
Permanente dos Estados Unidos nas Nações Unidas, Madeleine Albright, quem
relê a fome recém-sanada, atribuindo um nome ao seu suposto causador. Segundo
Albright:
The famine of 1991-92 did not result from the laws of nature but from the lawlessness of men like Mr. Aidid. Warlords used thugs who terrorized their fellow citizens, disrupting economic activities and forcing thousands from their homes. Mr. Aidid extorted money from relief workers trying to deliver food to starving children. Unlike other Somali warlords, Mr. Aidid has obstructed U.N. efforts to end the violence and rebuild the country. He violated commitments made to the U.N. as soon he realised that he could not operate in a society governed by law. For him, piracy meant prosperity. His aim is to return Somalia to anarchy (Albright, 1993, grifo meu). Na passagem acima, Aidid é representado como um “senhor da guerra”
único, incomparável aos demais, em termos da sua não-confiabilidade e ambição.
Agravando tal descrição negativa sobre Aidid, Albright recorre à figura retórica
da pirataria, símbolo do crime contra a humanidade, para representar suas
atividades na Somália. Além disso, impressiona a similaridade entre a passagem
grifada no discurso e a passagem do artigo já mencionado de Krauthammer no
The Washington Post, em dezembro de 1992, onde se lê: “Yet only in Somalia
268
have the guns been used for cruelty beyond barbarism: stealing food from the
mouths of starving children”. Todavia, enquanto no momento anterior
Krauthammer não identificou qualquer líder específico como responsável por tais
atos bárbaros, em agosto de 1993 a responsabilidade pelos mesmos foi atribuída,
por Albright, ao general Aidid.
A demonização retórica da figura de Aidid, por sua vez, se assemelha,
sobremaneira, àquela em vigor no curso da Guerra do Golfo em relação a Saddam
Hussein, também representado como um inimigo não confiável e que, por isso,
não podia ser apaziguado. No discurso de Bush de 08 de agosto de 1990, ele
colocou sobre o perigo de apaziguar Saddam:
Appeasement does not work. As was the case in the 1930's, we see in Saddam Hussein an aggressive dictator threatening his neighbors. Only 14 days ago, Saddam Hussein promised his friends he would not invade Kuwait. And 4 days ago, he promised the world he would withdraw. And twice we have seen what his promises mean: His promises mean nothing
Do mesmo modo, Albright descreve Aidid como um líder face ao qual o
apaziguamento não seria uma estratégia viável:
The Security Council has responded by ordering the capture, detention and trial of Mr. Aidid. Failure to take action would have signalled to other clan leaders that the U.N. is not serious. Advocates of appeasement seem to forget that last year the U.N. tried to cooperate with Mr. Aidid and his counterparts. It did not succeed. Como nos mostra Debrix (1999), Aidid, assim como Saddam Hussein,
podia facilmente representar tudo aquilo ao qual a ONU se opunha num mundo de
esperanças liberais renovadas, a saber: reivindicações separatistas, poder pessoal e
ambição, e traição política. Dessa forma, Aidid poderia representar para Clinton o
que Hussein havia representado para Bush, isto é, a figura do mal encarnado ou a
antítese dos valores americanos básicos (Debrix, 1999).
Em setembro de 1993, um artigo de Caleb Carr no New York Times
representava Aidid como um criminoso, ao qual, erroneamente havia recebido o
aval internacional para operar como um líder legítimo:
We now hunt General Aidid like the criminal he has always been; yet our delay in beginning that hunt, and our willingness to seat him and the other gang leaders at an internationally sanctioned peace conference in Addis Ababa early
269
this year, gave him the time, media attention and the setting in which to portray himself as a legitimate leader (Carr, 1993, grifo meu).
A retratação de Aidid como a personificação das mazelas somalis foi
reproduzida no best-seller escrito pelo piloto seqüestrado no curso dos incidentes
do dia 3 de outubro, Michel Durant. Nas suas memórias do dia 3 de outubro,
Durant (2004:19-20, grifo meu) recorda o porquê da presença norte-americana na
Somália:
Now a vicious warlord, Mohamed Farrah Aidid, had stormed into the power vacuum, leading a coalition of thugs called the Somali National Alliance. A sand dune buccaneer, he was pillaging our humanitarian aid and selling it off for a profit, while cold-bloodedly murdering any and all who tried to interfere and stop him.
A identificação de um líder criminoso, corrupto e violento como a fonte
dos males somalis, por sua vez, produziu a missão da ONU e dos Estados Unidos
na Somália como uma missão extremamente fácil e simples de ser empreendida.
Isto porque o discurso dominante sugeriu que bastava que esse líder fosse
removido ou neutralizado para que o desenvolvimento pudesse seguir seu curso
(ver, por exemplo, Duffield, 2001:132). Tal representação simplista da solução
dos problemas somalis nessa fase da operação conduziu a uma caçada grotesca ao
general Aidid, cujos detalhes serão expostos a seguir.
A representação de Aidid como o líder de uma quadrilha de bandidos criou
as condições de possibilidade para a resposta da ONU/Estados Unidos de caçá-lo
ao estilo do Velho Oeste. Seguindo tal estilo, do lado de fora das instalações da
ONU em Mogadíscio, foi colado um pôster amarelo com um desenho não
refinado do procurado “Aidid”, pelo qual o Representante Especial do Secretário-
Geral, Howe, oferecia a recompensa de 25 mil dólares (ver Petterson, 2000,
Lewis, 2002, Debrix, 1999). E, assim, contrastando com as imagens amorfas
prévias dos culpados somalis, o novo vilão, agora, tinha nome, imagem e um
valor correspondente. No entanto, os somalis zombaram de tal caçada e Aidid
respondeu à mesma oferecendo igual recompensa pela cabeça do almirante Howe
(ver Petterson, 2000 e Lewis, 2002). Segundo Petterson (2000:93): “[T]he
WANTED poster was greeted with knowing laughter, and within hours a counter
270
price was put on the head of ‘Animal’ Howe: Aidid would pay $ 1 million for
capture of the UN envoy”.
Ao encenarem o Velho Oeste em Mogadíscio, a ONU e os Estados Unidos
ajudaram a produzir aquilo que eles mesmos diziam buscar reverter, a saber: a
existência de uma “cidade sem lei”. Refletindo esse espírito de faroeste, Michel
Durant, o piloto seqüestrado por somalis no dia 3 de outubro de 1993 falou sobre
o seu trabalho em Mogadíscio da seguinte forma: “To must of us, the job seemd
pretty straightfoward and simple. Mogadishu was Tombstone, and we were Wyatt
Earp. We were goint to clean up the town” (Durant, 2004:21). Com essa frase,
Durant estava se referindo ao filme de faroeste “Tombstone- A Justiça está
chegando”, de 1993 que conta a história dos irmãos Earp, figuras míticas do
Velho Oeste americano, os quais lutavam para levar a lei à cidade de Tombstone
contra um grupo de bandoleiros que aterrorizavam a região.
Na esteira da determinação da ONU de perseguir Aidid, a imagem de uma
“cidade sem lei” foi ganhando contornos mais claros na medida em que os ataques
subseqüentes por parte da ONU produziram, segundo De Waal (1997) e Lewis
(2002), inúmeras mortes de civis somalis, sem, no entanto, conseguirem realizar
seu objetivo primeiro de capturar o general. Segundo o então co-diretor da
Organização “African Rights”, De Waal (1997:187), a guerra travada pela ONU
contra Aidid estabeleceu um perigoso precedente, o da não aplicabilidade das
Convenções de Genebra para as forças da ONU que, por diversas vezes, violaram
as leis de guerra108. O desprezo da ONU pelas leis de guerra foi exemplificado por
De Waal a partir da declaração do porta-voz da ONU, Major David Stockwell,
quem após um incidente no dia 09 de setembro no qual um helicóptero abriu fogo
contra uma multidão, matando pelo menos 60 pessoas, disse: “There are no
sidelines or spectator seats – the people on the ground are considered
combatants” (apud De Waal, 1997:188). Bhuta (2003: 371) reproduz um diálogo
entre o presidente Clinton e o seu consultor de segurança nacional, Anthony Lake
(Tony Lake), que nos oferece uma clara evidência de que, de fato, Clinton não se
considerava sujeito à legalidade internacional:
108 Para uma apresentação de tais violações, ver De Waal (1997:187). Ver também em Petterson (2000), caps. 4 e 5, e em Alex de Waal, “US War Crimes in Somalia”, New Left Review 230, 1998.
271
We’re not inflicting pain on these fuckers [Aideed’s faction],” Clinton said, softly at first. “When people kill us, they should be killed in greater numbers.” Then, his face reddening, his voice rising, and his fist pounding his thigh, he leaned into Tony [Lake], as if it was his fault. “I believe in killing people who try to hurt you . . . And I can’t believe we are being pushed around by these two-bit pricks.
Assim, durante o curso dos eventos pós- 5 de junho, a ONU passou a agir
de modo cada vez mais próximo àquele que ela dizia ser próprio do seu
perseguido109. Segundo, por exemplo, o subchefe da Embaixada norte-americana
em Mogadíscio, Walter Clarke (1997:5): “Aideed’s lust for personal power was
not tempered by any squeamishness about human rights or the effects of his
operations on the innocent”.
Nesse momento, a complexidade operacional e política da operação na
Somália foram simplificadas (Debrix, 1999), tendo em vista que o vasto mandato
conferido à UNOSOM II foi praticamente deixado de lado em nome da
perseguição à Aidid. Os predicativos pejorativos atribuídos ao general, tais como
“cruel”, “um criminoso desde sempre”, “pirata” e “líder de uma coalizão de
marginais” criaram as condições de possibilidade para a perseguição com tons de
faroeste. Ao tratar as ações da aliança política de Aidid, a SNA (Somali National
Alliance), como “criminosas” e os seguidores de Aidid como uma “coalition of
thugs”, simplificando a complexidade do conflito somali, o discurso dominante
tendeu a despolitizar as ações de Aidid e da SNA. Ao impor um clima de faroeste
à Mogadíscio, a luta entre a ONU e o general Aidid assumiu a forma de uma luta
do bem, representado pelos agentes externos, contra o mal, personificado na
figura do general.
O general, contudo, era simbolizado como um vilão moderno, um agente
do mal, manipulador e calculista que perseguia os seus objetivos egoístas sem
levar em consideração o bem dos somalis. Representado como um inimigo
moderno, o general Aidid se assemelhava mais aos vilões da Guerra Fria do que
aos índios americanos, popularizados nos filmes de faroeste, os quais, como
sabemos, eram vistos como atrasados em relação aos caubóis portadores do
progresso e da civilização. Conforme colocado por Petterson (2000:95)
Howe gave the conflict an anachronist Cold War taste, portraying the battle as one between the forces of Light and Darkness which defeat would jeopardize the
109 Ver, por exemplo, o Relatório do professor Tom Farer (apud Boutros-Ghali, 1996: 296-300).
272
future of the Free World. In a dusty Horn of Africa nation so removed from real geopolitical calculations that, until the famine, few people could have pointed it out on a map –here the UN identified the Evil.
O fato de Aidid ser percebido como um líder moderno, promotor de atos
entendidos como racionais, lhe tornava passível de responsabilidade pelos seus
atos e, daí, objeto de criminalização. No relatório do professor Tom Farer sobre os
incidentes do dia 5 de outubro, as motivações por trás dos mesmos são
representadas como racionais e calculadas. Segue as conclusões do relatório nesse
sentido:
With regard to motive, in the case of General Aidid, means and opportunity coincided with ample motive. Simply by being in place as the dominant military force in the country, UNOSOM reduced the influence of those political leaders, General Aidid eminent among them, who had hitherto disposed of substantial forces. While UNOSOM remained in place, guns would no longer trump all other sources of influence. And to the extent UNOSOM succeeded in substantially disarming the warlords, they could not lood forward to playing their trump after UNOSOM departed. The weapons site inspections of 5 June were an important stepo in that disarmament process. The General’s influence also was threatened by UNOSOM’s incipient effort to re-establish a formal judicial system and a neutral police force, i.e, a functional system of justice (…). General Aidid could rationally have concluded that, by demonstrating his ability to turn Mogadishu into a zone of grave insecurity, he could force UNOSOM to alter its programmes so that they were compatible with his bid to play a, and probably the, leading political role in reconstituded Somalia. (…) Aidid’s calculations of risk could also have been influenced by the passivity of the United Nations forces in the former Yugoslavia. (S/26351, par. 19-22, apud Boutros-Ghali, 1996: 299-30).
Farer parece ter feito questão de frisar a faceta moderna de Aidid de forma
a conferir uma maior gravidade aos seus atos, quando diz: “The general is, after
all, a well-travelled man familiar with international relations. He attended
military academics in Italy and the former Soviet Union and was for some years
the Somali Ambassador to Índia” (S/26351, par. 22, apud Boutros-Ghali, 1996:
300). O fato de Aidid ser representado como um líder familiarizado com as
relações internacionais e como alguém que teve contato com o sistema de
educação moderno, constrói a sua responsabilidade pelos eventos de uma forma
indisputada. As ações imputadas à Ghali pelo relatório de Farer, portanto, passam
a ser vistas como fruto de escolhas políticas conscientes, não podendo ser
justificadas por um desconhecimento das normas internacionais.
De acordo com o discurso despolitizante em voga, portanto, Aidid era
representado como um vilão moderno que, enquanto encarnação do mal, deveria
273
ser tirado de cena para que a lei e o progresso trazidos pelos atores internacionais
pudessem prevalecer em “Tombstone”. O objetivo a seguir será o de
desestabilizar essa retórica prevalecente, por meio da politização das ações da
SNA, liderada por Aidid, a partir da exposição de uma série de antecedentes,
silenciados no discurso dominante e que culminaram nos eventos do dia 5 de
junho.
Como nos mostra Petterson (2000), os atritos entre Aidid e Boutros-Ghali,
datam de quando esse último foi Ministro de Estado das Relações Exteriores do
Egito (1977-1991). Nesse contexto, Aidid, um líder da oposição somali, foi
deportado do Egito por Boutros-Ghali, que, na ocasião, era amigo do ditador
Barre (Petterson, 2000). No curso do envolvimento das Nações Unidas na
Somália, o clã Habar Gidir, ao qual Aidid pertencia, acreditava que a Organização
sob a liderança do diplomata egípcio não simpatizava com a idéia de que tal clã
assumisse o poder na Somália devido ao presumido desprezo que, desde antes da
queda de Barre, o Secretário-Geral nutria pelas forças da SNA (ver Butler, 2002).
O primeiro representante especial do Secretário-Geral para a Somália,
Mohamed Sahnoun110, nos revela, no livro “Somalia. The Missed Opportunities”
(2005), alguns dos episódios, ocorridos no período do seu mandato, que
contribuíram para o aumento da desconfiança do general Aidid e da SNA em
relação à ONU. Sahnoun nos mostra que, após difíceis e lentas negociações com
os líderes somalis, ele conseguiu obter o apoio dos mesmos para o envio de 500
tropas da ONU a fim de garantir a segurança da assistência humanitária em agosto
de 1992, no marco da UNOSOM I. Tais tropas, contudo, ainda não tinham sido
sequer enviadas quando foi feito um anúncio em Nova York de que mais 3.000
tropas seriam enviadas para a Somália. Nem a delegação da UNOSOM em
Mogadíscio nem os líderes e anciões somalis com os quais ele havia negociado o
acordo anterior haviam sido informados previamente de tal decisão; o que teria
acentuado a desconfiança desses líderes, inclusive de Aidid, em relação à
Organização (ver Sahnoun, 2005).
Além disso, Sahnoun (2005) mostra que no momento em que a ONU
começou a ganhar a confiança das partes em conflito e a aceitação e simpatia
entre os somalis em geral, a equipe da UNOSOM em Mogadíscio soube que um 110 Sahnoun se demitiu do cargo em outubro de 1992 após ter sido advertido por Boutros-Ghali a cessar as críticas dirigidas à ONU.
274
avião russo com o emblema da ONU e fretado por uma agência da ONU
distribuiu dinheiro e equipamento militar para o norte de Mogadíscio,
aparentemente para as tropas apoiando o presidente interino Ali Mahdi; o que,
segundo Sahnoun, naturalmente enfureceu seu inimigo, o general Aidid. Tal
episódio - uma clara contradição à resolução 733 de janeiro de 1992, a qual impôs
um embargo geral de todas as entregas de equipamento militar para a Somália -
reacendeu, segundo Sahnoun, a velha percepção de que ONU era favorável à
Mahdi. E o que foi mais surpreendente segundo Sahnoun foi que: [A]lthough the
UN’s name and reputation were at stake, no serious investigation was undertaken
and no legal action for redress was pursued” (Sahnoun, 2005:39).
A tais antecedentes se somam outros incidentes denunciados pela
Comissão de Investigação estabelecida pela resolução 855 de 1993 para investigar
os ataques armados do dia 5 de junho, a qual viajou para Mogadíscio no dia 30 de
novembro de 1993 (S/1994/653 apud Boutros-Ghali, 1996: 368-416). O Relatório
produzido pela Comissão concluiu, assim como havia sido afirmado, ainda que
mais categoricamente, pela investigação conduzida pelo professor Tom Farer, que
os ataques de 5 de junho foram orquestrados pela USC/SNA. Todavia, o Relatório
não corrobora a visão de que os mesmos tivessem sido premeditados. Segundo a
Comissão: “[I]t is quite possible that the attacks on 5 June were orchestrated by
the SNA on the spur of the moment after the inspection had begun” (apud
Boutros-Ghali, 1996:381).
O referido relatório aponta cinco razões principais para o estremecimento
das relações entre a USC/SNA e a ONU. Em primeiro lugar, ele expõe um aspecto
silenciado sobre a já mencionada “Conferência de Adis Abeba” em março de
1993. De acordo com o documento aprovado ao final dessa conferência, no dia 27
de março, denominado Addis Ababa Agreement of the First Session of the
Conference on National Reconciliation in Somalia seria estabelecido no período
transitório de dois anos o TNC (Transitional National Council), o qual
funcionaria como órgão político supremo e depositário da soberania somali.
Abaixo desse órgão haveria 18 conselhos regionais e 92 conselhos distritais. O
TNC seria composto por um representante escolhido por cada um dos quinze
movimentos políticos, três representantes de cada região, um dos quais deveria ser
uma mulher, e cinco membros adicionais representando Mogadíscio. Nesse
275
sentido, o Acordo garantiu que os quinze movimentos políticos não dominassem
as instituições de transição. A participação democrática foi garantida por meio da
(i) restrição do número de membros do TNC apontado pelas facções, (ii) a reserva
de uma quota do TNC para as mulheres e (iii) a eleição ou seleção popular dos
membros do conselho distrital.
Todavia, o Relatório nos conta que quando tal Conferência chegou ao fim,
no dia 27 de março, os 15 movimentos políticos somalis presentes não se
dispersaram imediatamente, mas, continuaram as discussões, as quais resultaram
num novo documento denominado: Agreeements Reached Between the Political
Leaders at the Consultations Held in Addis Ababa, 30 March 1993. Esse
documento ia contra a carta e o espírito do Acordo do dia 27 ao estipular que os
nomes dos três membros do TNC a serem escolhidos de cada distrito seriam
submetidos pelas facções políticas e caso as facções políticas não chegassem a um
acordo as diferenças seriam resolvidas em Adis Abeba ou na região em questão.
Apesar de conter a assinatura dos mesmos 15 movimentos que assinaram o acordo
do dia 27 de março, a UNOSOM II nunca considerou a validade desse último
documento; o que, segundo o Relatório, contribui para os futuros choques entre a
UNOSOM II e alguns dos grupos políticos somalis.
Uma segunda razão apontada pela Comissão para o agravamento da
hostilidade da USC/SNA em relação à UNOSOM II está relacionada à influência
exercida pela operação da ONU nos procedimentos para a indicação dos juízes e
da polícia somali. No momento em que a UNOSOM II substituiu a UNITAF,
alguns juízes apontados pela USC/SNA presidiam o que restava das cortes em
Mogadíscio. No começo de maio, porém, uma equipe do “United States Foreign
Service Officers”, designada pela UNOSOM II, promoveu um encontro em
Mogadíscio, liderado pela especialista do serviço externo dos Estados Unidos,
Ann Wright, com juízes e outros grupos locais somalis interessados na
reabilitação do judiciário do país. Tal encontro resultou no estabelecimento de um
comitê e na adoção de procedimentos para a seleção de juízes, os quais
permitiram que a UNOSOM II nominasse alguns dos juízes. Como era de se
esperar, a USC/SNA se ressentiu da erosão do seu poder nessa seara e se opôs à
seleção de juízes pela UNOSOM II e não pelo TNC, conforme o estipulado pelo
Acordo do dia 27 de março.
276
Em terceiro lugar, o Relatório cita a batalha na cidade portuária do sul,
Kismayo, como determinante para o acirramento das suspeitas da UCS/SNA em
relação à ONU. Como nos relata a Comissão de Investigação, enquanto ocorria a
Conferência de Adis Abeba em março, as forças pró-Siad Barre sob o comando do
general Heisi Morgan (genro de Barre) usaram crianças e mulheres para disfarçar
a infiltração de armas em Kismayo; o que lhes permitiram retirar da cidade as
forças do coronel Ahmed Omar Jess, aliado de Aidid, e controlar a cidade111. No
dia 7 de maio, Jess realizou uma marcha “corajosa” em direção a Kismayo a fim
de recapturar a cidade. Todavia, o contingente belga da UNITAF estacionado na
cidade considerou tal ato um ataque direto às suas posições e repeliu as forças de
Jess, infringindo sérias perdas às mesmas. Considerando que essa cidade tinha um
significado especial para Aidid, já que a sua milícia a tinha capturado numa
batalha feroz contra as forças leais a Barre, sua perda para as forças de Morgan
enfureceu a SNA, a qual acusou o contingente belga de não ter impedido a entrada
da milícia de Morgan na cidade e, depois, de ter bloqueado a recaptura da mesma
por Jess. O Relatório observa que, em razão da incapacidade do contingente belga
de impedir a infiltração de Morgan em Kismayo, a SNA acusou a UNOSOM II de
parcialidade no conflito. Entretanto, o Relatório observa que, ao dirigir tal
acusação à UNOSOM II, a SNA não fez qualquer diferenciação entre a UNITAF,
encarregada de Kismayo em março, da UNOSOM II, a qual assumiu a
responsabilidade da cidade a partir de maio de 1993.
O quarto motivo para a acentuação das animosidades entre a SNA e a
ONU apontado pelo Relatório esteve ligado à “Conferência de Galcayo”. O
Relatório explica que depois da “Conferência de Adis Abeba”, o general Aidid
iniciou consultas com coronel Ahmed Abdillahi Yusuf, diretor do “Political,
Defence and Emergency Matter Committe”, do SSDF (Somali Salvation
Democratic Front), as quais resultaram num acordo para a realização de uma
conferência de paz voltada para a região central da Somália. Na visão de Aidid, a
participação na conferência deveria ser restrita aos líderes políticos da região em
questão. Caberia à UNOSOM II fornecer o apoio logístico da conferência bem
como a segurança fora do hall da conferência. Na posição daquele que convocou a
conferência, o general Aidid pretendia dirigir seus procedimentos e estabelecer a
111 Para batalha de Kismayo, ver também Tripodi, 1999:147.
277
sua agenda. Ainda assim, convidou o Representante Especial do Secretário-Geral,
o almirante Howe, para abrir a conferência. Não obstante, a UNOSOM II passou a
suspeitar das intenções de Aidid. Levando em conta as disputas no âmbito do
SSDF, entre Yusuf e o diretor do SSDF, o general Mohamed Abshir Mussa, a
UNOSOM II começou a suspeitar de uma trama entre Yusuf e Aidid para minar
Mussa e, em função disso, buscou ampliar a participação na conferência,
especialmente com vistas a incluir Mussa. Quando a conferência estava a ponto de
começar, a UNOSOM II forneceu transporte e segurança para Mussa a fim de
garantir sua presença na reunião. Ademais, insistiu para que a conferência não
fosse presidida por Aidid, mas sim pelo ex-presidente da República da Somália
Abdalla Osman, um inimigo de Aidid que ao chegar a Mogadíscio pediu
imediatamente a sua prisão. Houve, além disso, desacordo sobre a agenda da
conferência. Enquanto a UNOSOM II adotou a mesma posição de Mussa
insistindo que a situação de Kismayo fosse tratada na conferência, Aidid
considerava que os problemas envolvendo outras regiões da Somália deveriam ser
discutidos em outros fóruns com os líderes relativos às tais regiões. Novamente,
Aidid interpretou as manobras da UNOSOM II como uma interferência na política
da Somália e fez de tais disputas, objeto de propaganda virulenta contra a
UNOSOM na Rádio Mogadíscio.
De fato, o último motivo mencionado pelo Relatório, diz respeito
justamente à propaganda contra a UNOSOM II veiculada na Rádio Mogadíscio. A
Comissão nos conta que a SNA considerava a Rádio um prêmio de guerra -
capturado da milícia do seu rival, Ali Mahdi - particularmente importante como
meio de comunicação devido à forte tradição oral bem como ao baixo nível de
alfabetização dos somalis. Com a deterioração das relações entre a UNOSOM II e
a SNA no meio de maio de 1993 devido, como já visto, aos eventos de Kimayo, à
seleção de juízes pela UNOSOM II e aos desacordos relativos à “Conferência de
Galcayo”, as transmissões da rádio se tornaram cada vez mais hostis à missão da
ONU no país. Tal hostilidade se refletiu nas transmissões entre os dias 01 de maio
e 04 de junho, dia anterior à morte dos 24 soldados paquistaneses. As
transmissões, segundo o Relatório, ganharam um tom xenófobo na medida em
que, se rementendo à história somali de resistência à dominação externa, passaram
a acusar a UNOSOM II e os Estados Unidos de agressores tentando colonizar e
278
estabelecer uma tutela sobre a Somália. Conforme consta no Relatório, tais
transmissões geraram apreensão na UNOSOM II que: “was very concerned about
this propaganda which gave a negative perception of the United Nations and
could stir up hostile sentiments towards UNOSOM II personnel from the Somali
public” (S/1994/653, par. 84, apud Boutros-Ghali, 1996: 374). Somado a isso,
também existia a percepção no marco da UNOSOM II de que o controle exclusivo
da Rádio por Aidid pudesse lhe conferir uma injusta vantagem sobre seus rivais
políticos, permitindo-lhe projetar sua imagem e alcançar suas ambições políticas.
Alegava-se que a estação de rádio era um bem nacional e que, sendo assim, todos
os movimentos políticos deveriam ter acesso à mesma. De fato, conforme exposto
pelo Relatório, representantes de outros grupos políticos somalis haviam escrito
para UNOSOM II insistindo que a estação de rádio fosse retirada do controle da
SNA.
Tais fatores fizeram com que, no meio de maio, a UNOSOM II solicitasse
à Brigada Paquistanesa, responsável pela segurança da área sul de Mogadíscio,
que esboçasse planos de como a Rádio Mogadíscio poderia ser fechada ou
silenciada caso a mesma continuasse a difamar a missão da ONU. Os
paquistaneses, contudo, informaram à UNOSOM II que eles não tinham a
capacidade técnica para levar a cabo tal operação e sugeriram que os Estados
Unidos fornecessem os especialistas necessários (S/1994/653, apud Boutros-
Ghali, 2006:375).
Aproveitando que o espaço da estação de rádio havia sido declarado uma
AWSS, isto é, “authorized weapons storage site”, se decidiu que durante a
inspeção de armas a ser realizada no dia 5 de junho, forças especiais de técnicos
norte-americanos, acompanhariam a equipe de inspeção para fiscalizar as
instalações da rádio. Todavia, o Relatório nos mostra que Aidid e outros líderes da
SNA estavam inteirados de que a UNOSOM II vinha discutindo os destinos da
Rádio e que, ao mesmo tempo, rumores se espalhavam de que a UNOSOM II
tentava capturá-la. Devido à piora substancial das relações entre a UNOSOM II e
a SNA, o Relatório considerou inapropriado o contexto no qual as inspeções de
armas foram levadas a cabo (S/1994/653, apud Boutros-Ghali, 1996: 375).
Todavia, o Relatório não confirmou a suspeita levantada pela SNA de que, de
fato, as inspeções estariam voltadas para a captura da Rádio, já que como
279
colocado no Relatório: “Opinions differ even among UNOSOM officials, on
whether the weapons inspections of 05 June 1993 was genuine, or was merely a
cover-up for reconnaissance and subsequent seizure of Radio Mogadishu”
(S/1994/653, par. 94, apud Boutros-Ghali, 1996:375).
As motivações longamente expostas acima para o crescimento dos atritos
entre a SNA e a UNOSOM II nos permitem politizar os eventos do dia 5 de junho,
antes do que tratá-lo por meio do registro dominante que, como vimos, o entende
como uma batalha do bem contra o mal encarnado na figura de Aidid.
O exposto acima também deixa claro que, apesar da insistência das Nações
Unidas, expressa em diversas resoluções do Conselho de Segurança e em
inúmeros relatórios do Secretário-Geral de que o processo de reconstrução do
Estado na Somália deveria ser conduzido pelos próprios somalis, era a ONU
quem, em última instância, decidia quais os somalis que estavam aptos para
representarem o Estado em construção. De fato, essa visão foi exposta a posteriori
pelo Subchefe da Embaixada norte-americana na Somália durante a “Operação
Restaurar a Esperança”, Walter Clarke quem argumentou que somente uma força
de paz interventora seria portadora de legitimidade, outorgada pelo Conselho de
Segurança, num Estado falido como a Somália. Segundo Clarke (1997:11): “In a
failed-state environment, by definition, no local leader can claim authority on the
basis of legitimate selection by the broader national community”.
O que vimos acima é que a ONU objetava todas as iniciativas dos somalis
voltadas para a organização de conferências e aprovação de documentos por conta
própria, sem a intermediação da Organização. Desse modo, fica evidente, o
caráter limitado da chamada por participação dos somalis na reconstrução do seu
próprio país, tendo em vista que a ONU arrogava para si a autoridade final de
decidir sobre o caráter dessa participação. Ao estabelecer quem deveria ser
incluído e excluído nesse processo, argumenta-se que a ONU reintroduziu na
Somália a lógica do Conselho de Tutela, o qual, conforme já visto, estabelecia os
critérios apropriados para a participação dos somalis nas suas instituições e, dessa
forma, disciplinava seus corpos e regulava seus espaços políticos.
Ao não aceitar o documento aprovado pelos somalis após a Conferência de
Adis Abeba, quando a ONU já não se encontrava presente, ao buscar controlar os
procedimentos para a escolha dos juízes somalis e ao modificar a agenda e a
280
participação na “Conferência de Galcayo”, as Nações Unidas estabeleciam os
limites da participação somali, fiscalizando e regulando os processos políticos da
Somália.
Por outro lado, ao tentar coibir a resistência contra a intervenção veiculada
na Rádio Mogadíscio, a ONU desqualificava a “voz” da Somália transmitida pela
estação, questionando a sua autenticidade. De acordo com Lang (2003), foi
justamente a tentativa por parte de Aidid de declarar a Rádio Mogadíscio como a
“voz oficial” da Somália que suscitou a contrariedade das Nações Unidas. Afinal,
a ONU acreditava que apenas uma entidade como ela, representante da
“comunidade internacional”, poderia decidir quem poderia vestir o manto da
soberania num “Estado falido” como a Somália (Lang, 2003). Isso explica,
segundo o autor, porque a habilidade de Aidid de articular razões para a
resistência, sobretudo após ter se tornado objeto de perseguição, através da Rádio
Mogadíscio, parece ter incomodado tanto a ONU que passou, ainda que de forma
velada, a tentar capturar esta estação de rádio, apontada como uma de fonte de
propaganda anti-ONU.
7.1.7 A Retirada dos Estados e da ONU diante da "ingratidão" dos somalis
O corpo de um soldado norte-americano sendo arrastado pelas ruas de
Mogadíscio. Fonte: History Channel
281
Sherife Caubói arrastando um bandido por uma corda. Disponível no link: WWW.shutterstock.com
Assim como imagens contribuíram para a criação das condições de
possibilidade para o envolvimento dos Estados Unidos na Somália, também foram
elas que possibilitaram a sua retirada. Enquanto, no primeiro caso, como visto, as
imagens expunham, sobretudo, crianças e mulheres famintas, produzindo uma
Somália vulnerável necessitando urgentemente de proteção, no segundo caso,
essas imagens mostravam os corpos de soldados norte-americanos mortos sendo
arrastados através das ruas de Mogadíscio. Diante dessas imagens, o senador do
Texas, Phil Gramm fez a seguinte constatação: “The people who are dragging
American bodies don’t look very hungry to the people of Texas” (apud Quindlen,
1993).
A idéia de que os somalis salvos pelos Estados Unidos durante a operação
“Restaurar a Esperança” agora se voltavam contra aqueles que lhe alimentaram
serviu para reforçar a imagem, presente desde os tempos coloniais, da
“ingratidão" dos somalis. O general norte-americano, John Brown, por exemplo,
282
introduz o pequeno livro de Richard Stewart, “The United States in Somalia,
1992-1994”, contrastando o senso de “missão cumprida” derivado do trabalho
realizado pela UNITAF com os eventos dos dias 3 e 4 de outubro: “That sense of
mission accomplished" made the events of 3-4 October 1993 more startling, as
Americans reacted to the spectacle of dead U.S. soldiers being dragged through
the streets by chcleering Somali mobs-the very people Americans thought they
had rescued from starvation” (apud Stewart, 2002:4, grifo meu). A frase de
Brown estabelece uma equivalência exata entre os somalis que arrastaram os
corpos dos soldados norte-americanos e aqueles que foram alimentados pela
ONU; o que tem um efeito poderoso no sentido de produzir a “ingratidão” dos
somalis. Na conclusão do livro, Stewart reforça o sentido de ingratidão dos
somalis sugerido por Brown, quando coloca: “In a country where the United
States, perhaps naively, expected some measure of gratitude for its help, its forces
received increasing hostility as they became more deeply embroiled into trying to
establish a stable government” (Stewart, 2004:26).
De modo similar, ao se referir aos eventos do dia 3 de outubro, o piloto
Durant, chamou a atenção para a ingratidão dos somalis, os quais estariam
atacando justamente aqueles que tentavam alimentá-los:
Within hours, the images of my comrades’ corpses being dragged through the streets by celebrating Somalis would be seen my millions. The African did not realize it at the time, but their hideous revenge would completely alter the world’s perception about who had committed atrocities in Somalia. They are literally biting the hands that are trying to feed them. No one would forget those images. No one should (Durant, 2004:132, grifo meu).
A partir da leitura das passagens acima também fica claro que a
personificação do “inimigo” somali na figura de Aidid teve vida curta, já que,
após os episódios dos dias 3-4 de outubro, quando o piloto Durant foi seqüestrado
e os corpos de soldados norte-americanos mortos foram arrastados pelas ruas de
Mogadíscio, Aidid foi excluído da narrativa dominante e o culpado pela situação
somali passou a ser representado por hordas de somalis raivosos e ingratos.
Se, por um lado, como já mostrado, o piloto seqüestrado, Durant, inicia
seu livro recordando que a perseguição ao general Aidid constituiu a principal
razão da sua presença na Somália, por outro lado, ao descrever o que lhe acontece
no dia 3 de outubro, o piloto recorre à imagem das massas enfurecidas. Relatando
283
a queda do seu helicóptero e o que lhe ocorre em seguida, Durant (2004:68, grifo
meu) coloca: “In seconds, the Somalis would come for me. Not an organized
military enemy, but a mob of enraged civilians and militia with only one thing on
their minds: vengeance”. Mais adiante, Durant (2004:76-7, grifo meu) descreve
seu estado físico por meio das seguintes palavras: “I was shot down and badly
wounded, an American in the clutches of an infuriated enemy, a hated symbol of
Caucasian Western power, fallen from the sky into a swarm of African tribal
rage. I was a man in a land of no futures, without a hint of what might happen
next (….)”. Ao se indagar sobre o destino dos seus amigos após os eventos do dia
3 de outubro, ele conclui desesperançado: “Could any of them have possibly
escaped this mass fury that seemed to engulf the entire city?” (Durant, 2004:80,
grifo meu).
Esses discursos nos revelam, portanto, que, dos incidentes de 3 de outubro
em diante, o “inimigo” começou a ser descrito como uma “massa furiosa” ou
como uma “multidão de civis enfurecidos”. Enquanto nos primeiros discursos, o
“inimigo” era formado por bandos armados esparsos que aterrorizavam uma
Somália impotente e desprotegida, agora, esse “inimigo”, como colocado por
Durant, parecia “engolir toda a cidade (Mogadíscio)”. Um “inimigo” que,
conforme Durant aponta, é movido pela “raiva tribal africana” e que habita uma
“terra sem qualquer futuro”.
Se, como vimos, Aidid foi representado como um vilão “moderno”, as
“massas raivosas” supracitadas foram localizadas, pelo discurso dominante, como
estando num estágio de desmedido atraso em relação ao mundo moderno. Para
exemplificar tal atraso, basta que recorramos à narração de alguns momentos do
encontro entre Durant e seus seqüestradores. Durant, por exemplo, ridicularizou,
em inúmeras passagens, o inglês falado pelos seus seqüestradores. Para citar
apenas uma dessas passagens: “It was hard to understand his African mixed with
bursts of incongruous American slang (...)” (Durant, 2004:95). Por outro lado,
Durant nos mostra que tais homens, diferente da representação feita de Aidid,
desconheciam as leis humanitárias, como fica claro no seguinte diálogo
estabelecido entre ele e os seus seqüestradores:
“’You are pilot of helicopters?’ ‘I`m sorry, Sir. In accordance with the Geneva Convention, I am not required to give that information’.
284
The ‘brothers’ exchange confused frowns, ‘What`s the name of your military group?’ ‘I’m sorry Sir’, I said again. ‘But in accordance with the Geneva Convention, I am not required to give that information’. ‘But this is not Geneva’, said Frick. ‘This is Somalia, and we require it’” (Durant, 2004:154, grifo meu). . A tranformação da retórica dominante desde a identificação de um culpado
centralizado para a menção a culpados concebidos abstratamente também pôde ser
verificada no discurso de Clinton do dia 7 de outubro de 1993, no qual o
presidente anunciou a data da retirada dos Estados Unidos da Somália (31 de
março de 1994). Nesse discurso, ele tratou de invalidar a tendência de identificar
na figura de Aidid a culpa pela situação da Somália. Se referindo ao contingente
adicional por ele requerido nessa mesma data, ele enfatizou que um dos seus
objetivos seria o de: “[T]o keep the pressure on those who cut off relief supplies
and attacked our people, not to personalize the conflict but to prevent a return to
anarchy”.
Clinton iniciou o seu discurso recordando o motivo, relacionado ao
combate à fome, pelo qual os Estados Unidos se decidiram pelo envolvimento
militar na Somália. Todavia, curiosamente, nota-se um grande silêncio no
discurso do presidente norte-americano, já que não foram sequer mencionados os
esforços militares dos Estados Unidos no sentido de capturar Aidid (ver Butler,
2002). Se, em agosto de 1993, Albright havia, como já dito, estabelecido uma
relação direta entre a fome somali de 1991-2 e a figura do general Aidid, agora,
retornava-se aos causadores originais da fome, a saber, as gangues armadas
somalis. Nesse sentido, argumenta-se que o tempo presente foi lido, no discurso
de Clinton, por meio dos referenciais do passado, momento esse em que a
UNITAF se disse bem-sucedida no combate à fome que assolava o país e em que
as gangues armadas eram entendidas como a principal ameaça ao trabalho
humanitário realizado na Somália. A seguir transcrevo as palavras que abrem o
discurso de Clinton (1993, grifo meu):
Today, I want to talk with you about our Nation’s military involvement in Somalia. A year ago, we all watched with horror as Somali children and their families lay dying by tens of thousands, dying the slow, agonizing death of starvation, a starvation brought on not only by drought, but also by the anarchy that then prevailed in that country. This past weekend we all reacted with anger and horror as an armed Somali gang desecrated the bodies of our American
285
soldiers and displayed a captured American pilot, all of them soldiers who were taking part in an international effort to end the starvation of the Somali people themselves..
Como fica claro no discurso acima, portanto, Clinton não faz qualquer
alusão à idéia de que os soldados americanos mortos estavam, de fato, naquele
momento, participando de uma missão voltada para a captura dos seguidores de
Aidid, e não, como por ele colocado, integrando um esforço internacional para
acabar com a fome dos somalis. Não só a missão levada a cabo naquele momento
não era de caráter humanitário, mas, mais do que isso, a ONU e os Estados
Unidos vinham recebendo uma série de críticas por estarem priorizando as
operações militares em detrimento dos esforços humanitários. Tais críticas foram
lideradas pela Itália que advertiu para o risco das operações militares
sobrepujarem em gastos a ajuda humanitária (Reuter, 1993). A Itália, que havia
enviado o terceiro maior contingente da força de paz para a Somália, protestou
contra a ênfase exagerada colocada na confrontação militar com o general Aidid
em detrimento da negociação (ver Reuter, 1993; Tripodi, 1999). Condenando as
ações voltadas para a captura de Aidid em Mogadísico, o ministro de defesa
italiano, Fabio Fabbri, por exemplo, enfatizou que uma ação humanitária não era
compatível com uma ação que resultasse na morte de civis (Tripodi, 1999). De
acordo com Tripodi (1999:149):“UN orders were in stark contrast to what Italy
perceived as the aim of the humanitarian intervention. (…) According to
[General] Loi 112the UN retaliation campaign was a blunder as the UN was now
fully engaged in the Somali war as a belligerent group”. Ao encampar tal
perspectiva crítica, as tropas italianas foram progressivamente excluídas do
comando da UNOSOM II (ver Tripodi, 1999). Todavia, conforme observado por
Tripodi (1999), a literatura sobre a operação da ONU na Somália negligenciou
sobremaneira a posição italiana e o que vimos é que a opção militar focada na
captura de Aidid e dos seus seguidores foi construída como a única possível dada
a truculência atribuída ao “inimigo”. Por outro lado, desde o início da caçada à
Aidid, alguns trabalhadores humanitários não governamentais reclamaram com
repórteres que as ruas do sul de Mogadíscio se tornaram inseguras para europeus e
norte-americanos, forçando, desse modo, a um retrocesso nos programas de 112 Comandante da IBIS (Italian Operation in Somalia). Para saber mais sobre a IBIS, ver Tripodi (1999: 142-146).
286
fornecimento de comida para os somalis (Reuter, 1993). Tais críticas, contudo,
foram minizadas por Albright no seu artigo do dia 10 de agosto de 1993, quem
colocou: “Yes, military operations can complicate and temporarily slow
humanitarian efforts. But critics are wrong to suggest that relief and development
work in Somalia has stopped”.
Contudo, de acordo com a lógica exposta por Clinton no seu discurso do
dia 7 de outubro, a violência observada na Somália que teve seu clímax na cena
trágica dos corpos dos soldados norte-americanos arrastados pelas ruas de
Mogadíscio, foram ações visando a obstruir os trabalhos humanitários que
supostamente estariam sendo desenvolvidos na Somália. Não obstante, tal retórica
omite que, tal cena resultou, de fato, de uma operação de cunho militar que, para
muitos, estava, ela mesma, obstruindo os trabalhos humanitários no país.
Sem expressar o mesmo pessimismo de Durant, para quem os somalis que
lhe fizeram de refém viviam numa “terra sem qualquer futuro”, Clinton buscou,
no discurso supracitado, dar uma continuidade retórica ao papel dos Estados
Unidos de provedor da esperança para os somalis. E, para tal fim, alegou que o
prazo de seis meses para a retirada dos Estados Unidos da Somália seria
necessário para “demonstrate to the world, as generations of Americans have
done before us, that when Americans take on a challenge, they do the job right”.
Contudo, para que os norte-americanos pudessem ser bem-sucedidos no desafio
de completar o trabalho iniciado na Somália, os culpados somalis não podiam ser
confundidos com toda uma sociedade em pé de guerra, mas tinham que continuar
sendo circunscritos, tal como no momento da UNITAF, a gangues armadas;
afinal, era importante que existissem pessoas bem intencionadas com as quais
pudesse se negociar a reconstrução do país.
Todavia, Clinton deixa claro que a Somália só teria salvação se os somalis
aproveitassem a última chance que lhes estava sendo ofertada. Caso contrário, eles
retornariam ao passado de anarquia e de fome prévio à chegada dos Estados
Unidos. Esse discurso de Clinton nos lembra, ainda que de uma forma
modificada, aquele de Hempstone quem, como visto, defendeu a inação dos
Estados Unidos na Somália partindo do pressuposto de que a participação do seu
país na Somália teria de ser feita por tempo indeterminado, pois caso contrário a
fome e anarquia retornariam. Ainda que Clinton tenha aventado a possibilidade de
287
que tal ajuda internacional pudesse surtir efeito num período tão curto como seis
meses, ambos os argumentos, de Clinton e de Hempstone, creditam unicamente
aos atores externos a possibilidade de salvar a Somália de si mesma,
desenredando-a do ciclo perpétuo de anarquia e de fome na qual ela se
encontrava. Assim, Clinton alerta para os perigos de uma retirada prematura dos
Estados Unidos, alegando que: “[I]f we were to leave Somalia tomorrow, other
nations would leave, too. Chaos would resume. The relief effort would stop, and
starvation soon would return”. Mais adiante, ao expor seu plano de salvação para
a Somália, Clinton volta a se posicionar de forma similar:
I am proposing this plan because it will let us finish leaving Somalia on our own terms and without destroying all that two administrations have accomplished there. For if we were to leave today, we know that would happen. Within months, Somali children again would be dying in the streets.
Para que o caos e fome não retornassem era preciso que os somalis
aproveitassem a chance que os Estados Unidos estavam dispostos a lhes conceder
e assumissem a responsabilidade pelo seu futuro. Retornando ao espírito original
da missão norte-americana na Somália, Clinton deixou claro, tal como Bush havia
feito em 1992, que o objetivo do seu país na Somália não era o de ditar os
resultados políticos. Nas palavras de Clinton: “It is no our job to rebuild
Somalia’s society or even to create a political process that can allow Somalia’s
clans to live and work in peace. The Somalis must do that for themselves”. Essa
visão foi corroborada na mensagem ao Congresso do dia 13 de outubro de 1993,
quando Clinton releu a atuação dos Estados Unidos na Somália asseverando que
nunca esteve em nos planos do país o de reconstruir o país. Conforme já vimos,
Clinton colocou categoricamente que os Estados Unidos foram para a Somália
unicamente para salvar vidas e que nunca teve a pretensão de reconstruir a nação
somali.
Para serem capazes de se autogerirem, os somalis tinham, de acordo com o
discurso de Clinton de 7 de outubro, que aceitarem a chance que estava sendo
oferecida pelos Estados Unidos, a qual foi colocada por Clinton para o público
norte-americano da seguinte forma: “Do we invite a return of mass suffering, or
do we leave in a way that gives the Somalis a decent chance to survive?”. Butler
(2002) chama a atenção, contudo, para o fato de que tal retórica surpreende dada a
288
impossibilidade de se chegar a um acordo pacífico entre esse momento e a data de
partida anunciada pelos Estados Unidos, no dia 31 de março de 1993.
Nesse discurso de Clinton, com já dito, os culpados continuavam sendo os
mesmos de outrora: as gangues armadas somalis. Desse modo, o presidente
construiu uma coerência entre os primeiros perturbadores da ordem na Somália
durante a operação da UNITAF e os daquele momento subseqüente, ao afirmar:
“[T]hen in June, the people who caused much of the problem in the beginning
started attacking American, Pakistani, and other troops who were there just to
keep the peace”. Ao congelar os agentes da violência somali, representando-os
como sendo os mesmos que causaram a fome dos somalis na fase inicial da
operação, pode se destacar no discurso de Clinton, pelo menos, cinco efeitos: (i) o
de despolitizar tais agentes, visto que eles não estariam agindo em relação a uma
ação específica voltada para a caça dos seguidores de Aidid no hotel Olympic e
seus atencedentes, mas contra toda e qualquer ação levada a cabo pelos agentes
externos desde a fase inicial da operação, independente do seu conteúdo; (ii) o de
desumanizá-los, já que eles seriam os mesmos que haviam se voltado contra uma
operação caracterizada como “estritamente humanitária” voltada para “salvar”
crianças e não estariam, portanto, lutando uma guerra contra as forças da ONU;
(iii) o de silenciar acerca do papel dos agentes externos no fomento de novos
opositores às ações internacionais na Somália, agentes esses não relacionados aos
primeiros episódios de violência dirigidos contra a UNITAF; internalizando, desse
modo, as causas do conflito, (iv) o de cancelar a transformação da natureza da
operação de uma operação “humanitária” para uma operação de captura de Aidid,
a fim de que a mesma pudesse ser vista como uma operação “vitoriosa” que como
Clinton colocou nesse mesmo discurso “saved close to one million lives”; e,
finalmente, (v) para que Aidid fosse, novamente, incluído nas negociações que,
segundo ele, deveriam ser retomadas113, já que conforme coloca: “While we’re
taking military steps to protect our own people and to help the U.N. maintain a
113 Segundo Murray (2009:41), Clinton já havia alertado sobre a necessidade de uma solução política para os problemas somalis e, desse modo, tentado esvaziar o aspecto militar da missão desde o mês de setembro. Nesse momento, segundo Murray (2009:41), Clinton havia enfatizado que os próprios somalis deveriam ficar a cargo dos seus destinos. Todavia, como nos mostra Murray (2009:41), infelizmente, ninguém pensou em informar às tropas no campo da suposta mudança política e tampouco foi votada qualquer resolução alterando o mandato das forças da UNOSOM II. Na ausência de tais diretrizes, portanto, a perseguição de Aidid continuou até o dia 3 de outubro (Murray, 2009).
289
secure environment, we must pursue new diplomatic efforts to help the Somalis
find a political solution to their problems. That is the only kind of outcome that
can endure”.
O curioso é que, conforme bem observado por Butler (2002), os Estados
Unidos, agora, se apresentavam como intermediários dos esforços diplomáticos,
apesar da clara evidência de que o país foi parte do combate na Somália ao se
decidir pela perseguição de Aidid e dos seus seguidores. De fato, como nos
mostra Lewis (2002:273), o embaixador Robert Oakley, quem havia dirigido a
“Operação Restaurar a Esperança” retornou a Mogadíscio para tentar conduzir
Aidid de volta para a mesa de negociações. Nesse sentido, Aidid, que, fazia pouco
tempo, era o líder mais procurado de Mogadíscio, no cenário pós-3 de outubro,
retorna a sua posição inicial, qual seja: a de um interlecutor legítimo das
aspirações somalis.
A ONU, por sua vez, seguiu o mesmo caminho e intensificou os esforços
para persuadir os líderes das facções a formarem um governo a fim de que as
forças internacionais reminiscentes pudessem sair de forma ordeira (ver Lewis,
2002). Em junho de 1994, uma frase dita pelo embaixador Lansane Kouyate,
enviado especial do Secretário-Geral para a Somália, refletiu tal mudança de
posição por parte da ONU: “The warlords are now peacelords” (apud Menkhaus,
1997:42). Finalmente, a ONU anunciou, por meio da resolução 954, de 4 de
novembro de 1994, que a operação se retiraria da Somália em março de 1995 (ver
S/RES/954, apud Boutros-Ghali, 1996:462-3).
Sem ter pretendido aqui, de modo algum, avaliar o teor das intenções dos
líderes somalis, esse capítulo intentou mostrar o caráter político de muitos dos
predicados que lhes foram conferidos nos diferentes momentos da operação.
Longe dos Estados Unidos e da ONU se oporem a um “inimigo” auto-evidente, as
fronteiras do mesmo eram móveis, sendo fixadas por meio da autoridade dos
agentes internacionais. Aidid, por exemplo, foi subjetivado pelos agentes externos
de diferentes formas ao longo do envolvimento da ONU/Estados Unidos na
Somália. Na medida em que tais fronteiras se mostram móveis e, portanto, não
necessárias, as respostas dirigidas aos mesmos, muitas vezes apresentadas como
as únicas possíveis, também se revelam contingentes, fruto de escolhas políticas
adotadas em momentos históricos específicos.
290
É interessante notar, para finalizar esse item, que os mesmos fatores (a
existência de facções e líderes resistentes) invocados para a criação da UNITAF,
também serviram para explicar a retirada dos Estados Unidos e da ONU após os
incidentes do dia 03 de outubro. Em novembro de 1993, um funcionário da ONU
teria dito: (apud Atkinson, 1993).
It’s their choice. If they want to continue doing battle, then we’re leaving...We’re telling them, “You destroyed your country, not us. You created the situation where nearly 1 million people died of starvation. The world doesn’t owe you anything. Nesse sentido, conforme já mencionado anteriormente, assistimos a uma
internalização da culpa pela guerra, a qual é atribuída unicamente aos somalis; o
que, por sua vez, cria as condições de possibilidade para a saída dos agentes
internacionais. Tal internalização da culpa pela guerra pode ser percebida num
pseudo-dialógo estabelecido entre um somali e Durant no período do seu
cativeiro. O piloto, na ocasião, teria sido interpelado por um somali que se
dirigindo a uma criança disse: “This kid fight much years. He brothers dead. All
brothers dead!”. Sem respondê-lo, Durant pensou: “We didn’t create the turmoil
that decimated this kid’s home and country, I thought. YOU Somalis did that
without our involvement, and we only came here to help resolve the situation”
(Durant, 2004: 95).
Refletindo essa mesma ênfase nos aspectos domésticos do conflito somali,
em novembro de 1995, o Representante Permanente da Espanha no Conselho de
Segurança expôs os seguintes motivos para o término do mandato:
The Council’s decision today to terminate the mandate of UNOSOM II on 31 March 1995 cannot be construed as a failure of the United Nations involvement in Somalia. It is, rather, evidence that without the effective cooperation of the parties involved any peace-keeping operation will be unable to reach all its objectives: stability, reconstruction and progress in Somalia must be fruit of a joint of the population as a whole. As long as Somali factions continue to place their partisan interests before those of the people as a whole, Somalia will be enable to regain a normal existence or fully reincorporate itself into the mainstream of today’s world. (apud Boutros-Ghali, 1996:74, par. 210)
Assim, ao ser construído como um conflito endógeno, cuja culpa recaiu
sobre os próprios somalis, o “mundo” automaticamente se eximiu do dever moral
de ajudá-los, afinal, esse “mundo” não teria tido, segundo o discurso dominante,
291
qualquer participação no mesmo. Por conseguinte, o envolvimento internacional
no conflito passou a ser construído nesse momento final como um ato de
generosidade sistematicamente sabotado por somalis ingratos.
Nesse sentido, nota-se uma mudança retórica, a qual transferiu a
responsabilidade pela solução dos problemas somalis desde os atores
internacionais para os próprios somalis. O prenúncio de tal mudança já havia
começado a se mostrar, mesmo antes, dos incidentes do dia 3 de outubro. Numa
coletiva do dia 28 de setembro, quando a estratégia de perseguição à Aidid ainda
seguia seu curso na Somália, Clinton colocou: “[W]hat I want to emphasize (...)
was that there has to be a political strategy that puts the affairs of Somalia back
into the hands of Somalia”. Clinton reforça tal posição dizendo mais adiante:
“[E]very peacekeeping mission or every humanitarian mission has to have a date
certain when it’s over and you have to in the end turn the affairs of the country
back over the people who live there. We were not asked to go to Somalia to
establish a protectorate or a trust relationship or to run the country”.
A leitura que internaliza as causas e, por conseqüência, as soluções do
conflito somali silencia, contudo, a participação dos atores externos nas condições
que conduziram ao conflito em primeiro lugar, por exemplo, por meio da ajuda
em armas para o Chifre da África, bem como silencia acerca das falências
sistemáticas da dita “comunidade internacional” de remediar o mesmo conflito,
falências essas que, por muitas vezes, acabaram, de fato, por estimulá-lo, como foi
o caso da caça à Aidid. Ao situar as causas do conflito somali assim como da
retirada dos Estados Unidos e da ONU meramente nas condições internas desse
país, o discurso dominante ajuda a produzir os atores externos como altruístas e
salvadores, eximindo-os de qualquer responsabilidade moral pelos trágicos
eventos do presente.
7.2 Os Efeitos do Discurso Intervencionista sobre a Identidade dos Estados Unidos e da ONU
Conforme vimos no início dessa parte, o envolvimento dos Estados Unidos
e da ONU na Somália se deu no contexto de uma proclamada “Nova Ordem
Mundial”, a qual teria sido impulsionada pela vitória da ONU/Estados Unidos na
292
Guerra do Golfo. De fato, foi nesse contexto que a idéia de uma “nova ordem
mundial” começou a ser forjada de forma a conferir uma determinada coerência às
relações internacionais do pós-Guerra Fria. Alega-se aqui, portanto, que o slogan
da “nova ordem mundial” foi o meio pelo qual o discurso dominante de então
buscou disciplinar as contingências do momento que seguiu à queda do Muro de
Berlim, arranjando-as numa estória de progresso e coerência.
Foi George Bush quem conferiu o tom da “nova ordem mundial” no
contexto da guerra contra o Iraque. No dia 11 de setembro de 1990, ele colocou:
“We stand today at a unique and extraordinary moment. The crisis in the Persian
Gulf, as grave as it is, also offers a rare opportunity to move toward an historic
period of cooperation”. E, definindo a “nova ordem” que, segundo ele estava
lutando por nascer, Bush seguiu dizendo:
[A] new era –freer from the threat of terror, stronger in the pursuit of justice, and more secure in the quest for peace. An era in which nations of the world, East and West, North and South, can prosper and live in harmony. A hundred generations have searched for this elusive path to peace, while a thousand wars raged across the span of human endeavour. Today that the new world is struggling to be born, a world quite different from the one we’ve known. A world where the rule of law supplants the rule of the jungle. A world where in which nations recognize the shared responsibility fro freedom and justice. A world where the stronger respect the rights of the weak114.
O que se apresenta quase como uma prescrição em 1990, a saber: um mundo
marcado pela paz, harmonia, cooperação e justiça, vai ganhando contornos mais
factuais, segundo Bush, em março de 1991, logo após a vitória na guerra do Golfo
quando ela passa pelo seu primeiro teste:
Now, we can see a new world into view. A world in which there is the very real prospect of a new world order. (….). A world where the United Nations, freed from cold war stalemate, is poised to fulfil the historic vision of its founders. A world in which freedom and respect for human rights find a home among all nations. The Gulf War put this new world to its first test. And my fellow Americans, we passed the test115.
Essa “nova ordem mundial”, portanto, não estava pronta, acabada, mas ainda
encontrava-se no seu momento de teste, segundo a retórica do presidente Bush.
Nesse sentido, essa “nova ordem” precisava ser praticada e testada a fim de
114 Grifo meu. 115 Grifo meu.
293
ganhar robustez e durabilidade. É possível pensar que a segunda grande
oportunidade de teste surge, precisamente, na Somália. Nesse sentido, a Somália
passa a ser concebida como um laboratório para essa “nova ordem mundial” em
gestação.116
Nessa “nova ordem mundial”, conforme colocado por Bush anteriormente,
a ONU teria um papel de destaque na medida em que deixava de estar limitada
pelos impasses da Guerra Fria. Todavia, tanto a Administração Bush como a
Administração Clinton, deixaram claro que os Estados Unidos estariam à frente da
“nova ordem mundial”, liderando-a. A liderança norte-americana do “novo
mundo” teria ficado clara não apenas no momento da Guerra do Golfo, quando
uma operação da ONU comandada pelos Estados Unidos foi bem sucedida em
retirar o Iraque do Kuwait, mas, também, no momento seguinte, da Somália,
quando, conforme vimos, o Secretário-Geral da ONU aceitou que os Estados
Unidos assumissem o comando da UNITAF já que, nas suas palavras: “The
Secretariat, already overstretched in managing greatly enlarged peace-keeping
commitments, does not at present have the capability to command and control an
enforcement operation of the size and urgency required by the present crisis in
Somalia” (S/24868, apud Boutros-Ghali, 1996: 212).
A necessidade do comprometimento norte-americano para lidar com as
novas crises internacionais é igualmente enfatizada pelo acadêmico Lewis quem
colocou, referindo-se à situação somali:
It had now become clear that, without strong logistic and other support from the United States, for all the Secretary-General’s enthusiasm to make Somalia a test case extending the U.N. Charter, member states did not possess the resources, interests or political will to build a coherent action plan to address this challenging new crisis (Lewis, 2002:268). A indispensabilidade dos Estados Unidos nesse “novo mundo” foi
explicada por Bush, durante a ação dos Estados Unidos na Somália, no seu
discurso de 4 de dezembro de 1992, da seguinte maneira:
In taking this action, I want to emphasize that I understand that the United States alone cannot right the world’s wrongs. But we also know that some crises in the world cannot be resolved without American involvement, that American action is often necessary as a catalyst for broader involvement of the community of
116 No próximo capítulo, essa idéia da Somália como um “laboratório” será retomada.
294
nations. Only the United States has the global reach to place a large security force on the ground in such a distant place quickly and efficiently and thus save thousands of innocents from death..
No ano seguinte, o presidente Clinton reafirmou a necessidade da
liderança dos Estados Unidos no “novo mundo” ao dizer no seu discurso sobre a
situação da Somália proferido no dia 5 de maio:
You have shown that the work of the just can prevail over the arms of the warlords. You have demonstrated that the world is ready to mobilize its resources in new ways to face the challenges of a new age. And you have proved yet again that American leadership can help mobilize international action to a better world.(…) The world has not seen the end of evil, and America can lead other countries to share more of the responsibilities that they ought to be shouldering. Some will ask why we must so often be the one to lead. Well, of course we cannot be the world’s policeman, but we are, and we must continue to be, the world’s leader.
A liderança dos Estados Unidos no “novo mundo”, contudo, tinha de ser
permanentemente enfatizada, pois ela já não era tão óbvia e natural como parecia
ter sido durante a Guerra Fria. Naquele então, a União Soviética foi construída
como a encarnação do mal que ameaçava, militar e ideologicamente, o “mundo
livre” e que, por isso, exigia uma permanente militarização e liderança dos
Estados Unidos. No novo contexto, onde o “inimigo” do mundo livre foi dito
“derrotado”, novos perigos passaram a ser retoricamente enfatizados; justificando,
desse modo, a continuidade da liderança norte-americana no mundo em
transformação. Nesse sentido, conforme foi observado, Clinton fez questão de
frisar que o mundo não assistiu ao fim de todos os males e, justamente por isso, a
liderança dos Estados Unidos ainda fazia-se imprescindível. A questão que se
coloca é: o que estava em jogo nessa insistência por parte dos Estados Unidos de
fabricar não só novos perigos, mas, também, a sua indispensabilidade para
neutralizá-los?
Uma resposta a essa questão nos é dada por David Campbell (1996), para
quem o fim da Guerra Fria e a conseqüente dissolução do inimigo que, até então,
havia definido de forma clara o interesse nacional dos Estados Unidos, relançou
de forma vigorosa os debates domésticos sobre o interesse nacional do país,
doravante mais difícil de ser articulado em virtude da ausência de um inimigo
externo claro. Campbell (1996) argumenta que, por se constituírem enquanto uma
295
comunidade imaginária, os Estados Unidos têm de recorrer a uma série de
estratégias, a exemplo da política externa, a fim de assegurar a estabilidade da sua
identidade. Desse modo, Campbell (1996) problematiza o entendimento
convencional de política externa enquanto uma expressão das relações entre atores
pré-estabelecidos dotados de identidades seguras, e passa a entendê-la como uma
prática produtora de fronteiras, crucial para a produção e reprodução da identidade
dos Estados. Segundo Campbell (1996), a constituição do self é alcançada por
meio da inscrição de fronteiras que servem para diferenciá-lo de um “Outro”
construído como ameaçador e moralmente inferior, de tal sorte que as constantes
articulações do perigo através da política externa não constituem uma ameaça à
identidade, mas sua própria condição de possibilidade. Por conseguinte, o
principal ímpeto por trás da localização da ameaça e da diferença no domínio
externo reside no fato de que, assim como o domínio anárquico do qual busca
distinguir-se, o próprio Estado soberano se constitui enquanto uma fonte de
incertezas. Nesse sentido, para Campbell, a política externa é um instrumento
produtor da dicotomia dentro/fora que resolve, através de um recurso espacial, o
problema da identidade política dos Estados ao conferir-lhes plenitude a despeito
das suas ambigüidades e indeterminações.
Ademais, o que Campbell (1996) nos mostra é que, no contexto do
imediato fim da Guerra Fria, teria se tornado bem mais difícil para os Estados
Unidos disciplinarem tais ambigüidades e incertezas devido à derrota do
“inimigo”, o qual havia contribuído, durante mais de quarenta anos, para conferir
um claro sentido à identidade norte-americana. Portanto, para Campbell (1996),
nesse momento de indefinição, revelou-se imprescindível para os Estados Unidos
o reforço do compromisso moderno com um self resolvido e unificado. Para tal
fim, fez-se necessário localizar novos inimigos que para serem enfrentados
exigissem a liderança norte-americana. Se seguirmos o argumento de Campbell
(1996), tais inimigos antes de ameaçarem a identidade dos Estados Unidos, a
produziriam.
Durante a Guerra do Golfo, esse “inimigo” foi identificado na figura de
Saddam Hussein, quem teria empreendido a primeira agressão ao “novo mundo”
que se desenhava (ver Bush, 1990). Em 1991, no término da Guerra do Golfo,
Bush identificou a ameaça que fora neutralizada pela coalizão da ONU liderada
296
pelos Estados Unidos de uma forma extremamente clara: “The recent challenge
could not have been clearer. Saddam Hussein was the villain; Kuwait, the victim.
(…) Our uncommon coalition must now work in common purpose: to forge a
future that should never again be held hostage to the darker side of human
nature”117. Para libertar os cidadãos do Kuwait, reféns desse vilão, Bush havia
proposto em setembro de 1990 que os Estados Unidos se unissem e
transcendessem seus particularismos, conforme consta no seguinte chamado do
presidente à nação: “So, if there ever was a time to put country before self and
patriotism before party, the time is now”. Seguindo os passos de Campbell
(1996), contudo, podemos argumentar que esse chamado não era um chamado a
uma nação norte-americana pré-existente, mas era, antes, um chamado à
imaginação, por meio da qual essa nação se reinventava com o auxílio de novos
“inimigos”.
Argumenta-se nessa tese que o segundo campo de experimentação da
“nova ordem mundial” foi aquele estabelecido na Somália. Todavia, excetuando o
breve momento de perseguição ao general Aidid, as ameaças somalis, conforme
previamente mencionado, não foram antropomorfizadas. A Somália foi
representada como vítima dela mesma ou, mais especificamente, de um conflito
que deita suas raízes no seu passado pré-colonial. Nesse sentido, pode se perceber
que enquanto Hussein foi representado como um ditador moderno, o problema da
Somália foi inserido numa outra dinâmica temporal, a qual situou os somalis num
tempo muito aquém da modernidade. Embora ambos os “inimigos” (moderno e
não- moderno) tenham participado da produção da identidade dos Estados Unidos,
eles o fizeram de diferentes formas. No segundo caso, objeto de estudo dessa tese,
ao produzir o atraso somali, os Estados Unidos, ao mesmo tempo, produziram a
sua identidade de vanguarda, tão importante para construí-los como o líder da
“nova ordem mundial”.
É interessante notar que no seu sentido literal, a palavra “vanguarda”, que
vem do francês Avant Garde, faz referência ao batalhão militar que precede as
tropas em ataque durante uma batalha, de onde se deduz que vanguarda é aquilo
que “está à frente”118. Os Estados Unidos, durante a ação na Somália, não só se
posicionaram a frente das tropas multinacionais enviadas, comandando-as, mas, 117 Grifo meu. 118 Segundo o dicionário Babylon.
297
também, ao fazê-lo, demandaram para si uma contrapartida política, qual seja: a
de serem reconhecidos como os líderes da “nova ordem mundial”. Ao se
projetarem como um país na vanguarda das transformações internacionais daquele
momento, os Estados Unidos afastavam-se retoricamente do mundo da política de
poder característico da Guerra Fria, o qual, por sua vez, se confundia com o
próprio passado das relações internacionais que outrora foram predominantemente
lidas pelas lentes do realismo político. Nesse sentido, buscava-se liderar um
movimento de descontinuidade em relação ao passado que, conforme o realismo
nos conta, seria um passado marcado pelo congelamento das relações de poder
evidentes desde os tempos de Tucídides. Essa “nova ordem mundial”, em
oposição ao mundo inerte, no qual o futuro repetiria o passado, dos realistas, é
representada como dinâmica, nova, na qual o futuro ainda estaria sem fechamento
e necessitando dos Estados Unidos para lhe conferir direção e impedir o seu
retorno à condição de anarquia.
Argumenta-se aqui que essa “nova ordem” precisou ser continuamente
reafirmada através de práticas discursivas logocêntricas, as quais localizavam
determinados espaços “fora da nova ordem mundial”, por ainda estarem
estacionados num tempo pré-moderno, como foi o caso da Somália. A Somália
estaria situada, portanto, naquilo que Walker (2006) denominou “o fora do fora”
(double outside), isto é, fora do moderno sistema de Estados soberanos e dos seus
excepcionalismos. O excepcionalismo somali seria traçado na fronteira do sistema
de Estados ou da modernidade. Nesse sentido, o “Outro” somali não se
enquadraria no tropo espacial amigo/inimigo característico do conflito
Leste/Oeste da Guerra Fria, mas no tropo temporal civilizado/bárbaro (ver
Walker, 2006).
Argumenta-se aqui, portanto, que as práticas discursivas dos Estados
Unidos ao lidarem com a Somália e com os somalis por meio da temporalização
da diferença, tiveram efeitos sobre a sua própria identidade, participando da sua
projeção como os líderes da “nova ordem mundial”. A população somali foi
concebida como física e imaginariamente remota do Ocidente (ver Debrix, 1999),
já que é difícil conceber nos países ditos civilizados a ocorrência de uma guerra
genocida movida por ódios clânicos (ver Besteman, 1996). Besteman (1996)
argumenta que a representação dominante dos somalis imersos em ódios clânicos
298
ancestrais, envolvidos numa espiral destrutiva de tradição, permitiu aos
americanos imaginá-los como indivíduos radicalmente diferentes, chegarem a ter
pena deles quando as imagens de um povo faminto foram veiculadas pela mídia e,
ainda assim, se sentirem seguros. Nesse sentido, David Spurr escreveu o seguinte
sobre as imagens chocantes exibidas após os incidentes no Hotel Olympic: “The
visual enframing and metaphorical transformations that characterize such images
have a distancing effect (...) calling attention to suffering, they show it as out
there: contained, defined, localized in a realm of understood to be cultural apart”
(apud Butler, 2002:8).
O efeito de distanciamento salientado por Spurr tem uma conotação
temporal conforme tem se argumentado nessa tese. Vimos que o discurso norte-
americano reintroduziu o racismo cultural do período da tutela italiana e, ao fazê-
lo, traçou uma fronteira temporal bem demarcada entre os somalis e o Ocidente.
Por meio dessa fronteira temporal discursivamente produzida, os Estados Unidos
arremessam a diferença para fora das suas fronteiras nacionais garantindo a
homogeneidade do seu espaço doméstico atravessado por incertezas e
ambigüidades acentuadas pelo fim da Guerra Fria (ver Blaney, Inayatullah, 2002;
Campbell, 1996).
Besteman (1996) argumenta também que o processo de “othering” visível
na retórica norte-americana em relação à Somália resultou numa grosseira redução
da complexidade da sociedade somali atravessada por poderosas estratificações de
raça e de classe, para além das estratificações clânicas. Segundo a antropóloga, a
representação da Somália como uma sociedade dividida em clãs, alguns aliados,
outros em conflito perpétuo, sugeriu a idéia de uma sociedade de unidades
relativamente iguais perseguindo objetivos relativamente similares e vivendo em
mundos culturais similares. O espaço somali foi representado como um espaço
monocultural, ainda que temporalmente atrasado, sugerindo, desse modo, a idéia
de um sistema baseado numa única temporalidade pré-moderna. E, assim,
quaisquer sinais de maior complexidade, como as estratificações de raça e classe
mencionadas por Besteman, igualmente presentes na sociedade norte-americana,
tenderam a ser silenciados. Quaisquer liminaridades entre as sociedades norte-
americana e somali foram, portanto, ignoradas por meio de um discurso que
construiu tais sociedades como radicalmente diferentes e temporalmente distantes.
299
O processo de localizar a diferença no espaço exterior (numa sociedade clânica
representada como inteiramente distinta à norte-americana), por sua vez, ajudou a
preservar a identidade dos Estados Unidos num momento particularmente
delicado para eles em razão de dois fatores apontados por Campbell (1996): (i) do
fim do inimigo soviético contra o qual a nação norte-americana se definia e (ii) do
subseqüente crescimento dos riscos de que o multiculturalismo dos Estados
Unidos pudesse fragmentar a nação americana. Desse modo, a demarcação de
fronteiras rígidas entre as duas sociedades ajudou os Estados Unidos a
preservarem a integridade da sua sociedade também atravessada por complexas
estratificações raciais, de classe e étnicas. Nesse sentido, no ato de “salvar” o
“Outro” somali, os Estados Unidos estavam, de fato, salvando a si mesmo, isto é,
tentando resguardar a sua identidade e protagonismo numa nova ordem
internacional fluida, em processo de transformação.
Conforme vimos, os Estados Unidos vislumbraram um papel de destaque
para a ONU no “novo mundo”, agora, liberta da paralisia que lhe foi característica
durante a Guerra Fria. As expectativas de revitalização da ONU aparecem de
forma bastante clara na “Agenda da Paz”, elaborada por Boutros-Ghali em janeiro
de 1992. Na Agenda, o Secretário-Geral observa que as décadas adversas da
Guerra Fria, as quais tinham obstaculizado a ONU de cumprir as promessas da
sua Carta, haviam chegado ao fim e dado lugar a crescentes expectativas entre os
Estados acerca das oportunidades de atuação da Organização. Conforme Boutros-
Ghali (1992, par. 3):
In these past months a conviction has grown, among nations large and small, that an opportunity has been regained to achieve the great objectives of the Charter - a United Nations capable of maintaining international peace and security, of securing justice and human rights and of promoting, in the words of the Charter, ‘social progress and better standards of life in larger freedom’. This opportunity must not be squandered. The Organization must never again be crippled as it was in the era that has now passed. Na “Agenda para Paz”, Boutros-Ghali buscou inaugurar novas avenidas
para a manutenção da paz e da segurança internacionais nessa era de
oportunidades abertas pelo fim da Guerra Fria. A grande inovação da Agenda
300
residiu no novo conceito proposto: o de peacebuilding119. Segundo o Secretário-
Geral (1992, par.55, grifo meu):
Peacemaking and peace-keeping operations, to be truly successful, must come to include comprehensive efforts to identify and support structures which will tend to consolidate peace and advance a sense of confidence and well-being among people. Through agreements ending civil strife, these may include disarming the previously warring parties and the restoration of order, the custody and possible destruction of weapons, repatriating refugees, advisory and training support for security personnel, monitoring elections, advancing efforts to protect human rights, reforming or strengthening governmental institutions and promoting formal and informal processes of political participation. Desse modo, é possível notar que, já na sua “Agenda para Paz”, Boutros-
Ghali ressaltava a necessidade, enfatizada durante o conflito somali, mas
negligenciada pelos Estados Unidos, de desarmar as partes previamente em guerra
para que a ordem pós-conflito fosse restaurada. Nessa citação fica clara, ademais,
a sua defesa do processo de reforma e de fortalecimento das instituições estatais.
Todavia, para além da defesa do processo de reconstrução do Estado, conforme
vimos na primeira parte da tese, Boutros-Ghali também argumenta em prol de
uma forma particular de governança: a democrática, tida como condutora de uma
verdadeira paz, como consta na passagem que se segue:
There is a new requirement for technical assistance which the United Nations has an obligation to develop and provide when requested: support for the transformation of deficient national structures and capabilities, and for the strengthening of new democratic institutions. The authority of the United Nations system to act in this field would rest on the consensus that social peace is as important as strategic or political peace. There is an obvious connection between democratic practices - such as the rule of law and transparency in decision-making - and the achievement of true peace and security in any new and stable political order. These elements of good governance need to be promoted at all levels of international and national political communities (Boutros-Ghali, 1992: par. 59). Por outro lado, também nota-se na “Agenda para Paz” uma defesa da
combinação de tal modelo democrático com o modelo econômico liberal. Quando
Boutros-Ghali se refere ao novo contexto do pós-Guerra Fria, ele destaca o senso
de dinamismo e movimento proporcionado pela adoção das políticas econômicas
liberais, como consta na citação a seguir: “Authoritarian regimes have given way
119 Ver mais sobre peacebuilding no item 2.5.
301
to more democratic forces and responsive Governments.(…) Parallel to these
political changes, many States are seeking more open forms of economic policy,
creating a world wide sense of dynamism and movement” (Boutros-Ghali, 1992:
par.9, grifo meu). Esse vai ser, portanto, o marco normativo que vai informar o
envolvimento da ONU na Somália três meses depois da publicação da “Agenda
para Paz”. Ainda que inicialmente concebida como uma operação destinada a
alimentar a população somali, vimos que desde o começo da operação, Boutros-
Ghali insistiu que somente com o desarmamento das facções e com a reconstrução
do Estado, a situação da Somália seria normalizada. Para que essa paz fosse
estável e duradoura, contudo, além de reconstruir o Estado, fazia-se necessário
erguê-lo em bases democráticas, missão essa confiada à UNOSOM II.
A Somália se tornou, portanto, o primeiro terreno onde tal modelo liberal
democrático seria colocado à prova na era do pós-Guerra Fria. Como colocado por
Tripodi (1999:139-140):
Somalia represented the first important peacekeeping commitment of the post-Cold War era, a new generation of peacekeeping never before tested. Therefore, the main international actors, the UN, and the only remaining superpower, the USA, did not yet have a strategy or plan of action. On the other hand, the schemes adopted in 1992 by the international community to stop the civil war and deal with starvation in Somalia were novel –they had to be tested on the ground and often adapted to a quickly changing situation. Como consta na passagem acima, portanto, a Somália foi o primeiro
campo de experimentação de uma nova geração de operações de paz que, se
preciso, deveriam ser adaptadas à luz da prática cambiante. Boutros-Ghali
também enfatizou o ineditismo da operação na Somália ao declarar: “There was
no precedent for the Organization to follow as it embarked on this course, no
example but the one it was about to set, and there were many unanswered
questions about the undertaking to which the international community had
committed itself” (Boutros-Ghali, 1996: 44, par. 127).
Uma possível interpretação, segundo Nogueira (1997), das razões para o
investimento de tantos recursos para a reconstrução do Estado somali pode estar
no esforço de representação da ONU como guardiã de um mundo regulado pelo
princípio da soberania estatal. Daí, a ONU acredita-se capaz de fundar novos
Estados e de desenhar fronteiras em “zonas selvagens” onde não existe autoridade
302
ou identidade coletiva, mantendo, desse modo, a esperança num mundo ordenado
e composto por Estados soberanos autônomos (Nogueira, 1997).
Nesse sentido, conforme já destacado, as práticas discursivas empregadas
pela ONU para caracterizar a Somália no curso do conflito, a representou como
imersa numa situação de falência generalizada das suas instituições estatais e
clamou pela reconstrução das mesmas como o único meio de normalizá-la.
Embora voltado para um “Outro”, esse discurso, argumenta-se aqui, participou da
produção da própria identidade da ONU como uma Organização de Estados
soberanos e, como colocado por Nogueira (1997), como guardiã de um mundo
regulado pela soberania estatal.
A “falta” da Somália – representada, sobretudo, pela ausência de
instituições estatais e, por conseqüência, da centralização dos meios coercitivos - é
construída, pelo discurso da ONU, como uma disfunção que deveria ser corrigida
para que ela voltasse a integrar a comunidade de nações soberanas de onde ela
teria se afastado voluntariamente e temporariamente. Como colocado por Boutros-
Ghali (1996:87, par. 256): “A State that loses its Government –a failed State-loses
its place as a member of the international community”.
Essa disfunção, por sua vez, se expressou, em grande medida, sob a forma
de atraso em relação às formas modernas de organização política que, embora
contingentes, nos foram apresentadas como as únicas capazes de forjar um
ambiente internacional pacífico, harmonioso e progressivo. A importância
continuada do Estado soberano como pilar da nova ordem mundial é destacada de
modo claro por Boutros-Ghali na sua “Agenda para Paz”, onde se lê:
To the hundreds of millions who gained their independence in the surge of decolonization following the creation of the United Nations, have been added millions more who have recently gained freedom. Once again new States are taking their seats in the General Assembly. Their arrival reconfirms the importance and indispensability of the sovereign State as the fundamental entity of the international community (Boutros-Ghali, 1992: par. 10, grifo meu).
Ainda que Boutros-Ghali ressalte a importância do Estado soberano, ele
faz questão de salientar que não está se referindo a qualquer soberania, mas sim a
uma noção qualificada de soberania orientada para uma “boa governança interna”,
ou seja, uma governança democrático-liberal tal como por ele sugerido nesse
303
mesmo documento. A seguir, portanto, Boutros-Ghali matiza a soberania que a
ONU deve promover:
The foundation-stone of this work is and must remain the State. Respect for its fundamental sovereignty and integrity are crucial to any common international progress. The time of absolute and exclusive sovereignty, however, has passed; its theory was never matched by reality. It is the task of leaders of States today to understand this and to find a balance between the needs of good internal governance and the requirements of an ever more interdependent world (Boutros-Ghali, 1992:par. 17, grifo meu).
Conforme destacado por Boutros-Ghali, portanto, o respeito pela soberania
e integridade do Estado é uma condição essencial para o progresso internacional.
No entanto, não é qualquer soberania que contribui para um mundo mais pacífico
e estável e sim uma soberania específica que atenda aos critérios democráticos
liberais por ele estabelecidos. O perigo vislumbrado por Bhuta (2008), como visto
na primeira parte da tese, é que, embora o conjunto de prescrições alocadas sob a
legenda da “boa governança” seja contingente, produto de uma história particular,
ele nos é apresentado como a única solução para sociedades como a somali.
Partindo da abordagem de Campbell já apresentada, podemos perceber o
caráter intimidante da identidade somali para a integridade da ONU da qual ela
faz parte. Por se construir como uma Organização promotora do progresso e do
bem-estar dos povos, a ONU precisa estar continuamente demarcando fronteiras
vis-à-vis a um ambiente externo indeterminado, resisitndo ao máximo que ilhas de
anarquia possam ser trazidas para dentro da Organização de forma a comprometer
a sua integridade. Na medida em que a identidade da ONU é atravessada por
ambigüidades, ela precisa estar continuamente inscrevendo fronteiras para
localizar tais Estados como desviantes, pois caso contrário tais Estados poderiam
vir a macular a identidade da Organização.
Assim, argumenta-se que a operação de paz da ONU na Somália, mais
especificamente a UNOSOM II, pode ser entendida como uma ação exterior da
ONU voltada para corrigir o desvio da Somália por meio da modernização da
sociedade somali, a qual, desde a guerra civil em 1991 teria regressado ao velho
arranjo das lealdades clânicas tradicionais. Tal operação teria como propósito,
portanto, o de reestruturar o Estado somali permitindo seu reingresso na
comunidade internacional, isto é, a sua coexistência harmoniosa com os seus
pares.
304
Quando analisamos a prática de reconstrução de Estados da ONU na
Somália à luz da interpretação de Campbell, podemos percebê-la, portanto, como
uma prática de produção de fronteiras a partir da qual a diferença é construída.
Essa diferença ao mesmo tempo em que constitui uma ameaça à identidade da
ONU é a própria condição da sua possibilidade. Pois ao se considerar capaz de
preencher a “falta” somali levando a “boa governança” a um país em ruínas,
transformando conflito em consenso, desordem em ordem e atraso em progresso,
a ONU se constrói como detentora de todas as qualidades que faltam aos somalis.
São os discursos da ONU que lhe conferem o status privilegiado de portadora da
liberdade, da ordem, da democracia e da eficiência administrativa capaz de
corrigir esse “Estado falido”. Essa plenitude conferida à Organização, por sua vez,
ajuda a preservá-la face aos escândalos de corrupção, às críticas relativas à sua
redundância administrativa bem como à sua natureza antidemocrática expressa no
Conselho de Segurança.
Argumenta-se, nessa tese, que a construção discursiva dessas sociedades
como marcadas pelo atraso, anarquia, diferença e violência contribui para a
produção do progresso da dita “comunidade internacional”, em nome de quem a
ONU diz falar. O “progresso” dessa comunidade, informado pela idéia já
discutida, da paz liberal, se contrapõe, desse modo, à “tradição” dos povos
sujeitos a tais práticas de reconstrução. O discurso logocêntrico
(tradicional/moderno) participa da construção do Internacional com um espaço de
progresso e, portanto, contribui para a superação da sua imagem clássica,
apresentada pelos teóricos realistas, de repetição e de violência. Para tal fim,
continua revelando-se essencial a demarcação de fronteiras entre esses dois
planos, o doméstico e o internacional, viso que as regiões indisciplinadas, como a
Somália, precisam estar continuamente sob supervisão para impedir que anarquia
doméstica extravase e contamine o progresso desse domínio internacional em
transformação. Nesse sentido, no ato de “modernizar” o “Outro” somali, a ONU
estava, de fato, se modernizando, e, ao mesmo tempo, modernizando a
“comunidade internacional” em nome da qual falava.
Contudo, conforme já foi mostrado, a ONU não foi bem-sucedida na sua
pretensão de modernizar a Somália visto que não conseguiu cumprir o seu
propósito de levar o Estado centralizado para os somalis e, com ele, a ordem e o
305
progresso. De acordo com Debrix (1999), a ONU saiu da Somália com a sua
identidade seriamente comprometida. Segundo esse autor, as imagens grotescas
dos soldados norte-americanos arrastados começaram a desvelar a impotência da
ONU e a sua incapacidade de reeditar na Somália a idéia de “nova ordem
mundial” em construção desde a Guerra do Golfo. Enfim, o autor nos mostra que,
em vez de seguirem seus scripts, alguns atores, sobretudo os somalis, preferiram
improvisar; o que transformou o envolvimento dos Estados Unidos/ONU na
Somália (lido por Debrix como um filme) num “atoleiro”. Nesse sentido, o enredo
do filme passou a se assemelhar mais ao tipo de produção de Oliver Stone, onde,
como no caso de Platoon, sobre a guerra do Vietnã, os bons moços se vêem
envolvidos no drama sem sentido e irracional da guerra terminando como vítimas
ou “bad guys” do que com roteiro de John Ford, onde os caubóis norte-
americanos estão prontos para salvar vítimas de hordas de bandidos mal-
intencionados (Debrix, 1999). Num sentido similar, Lewis (2002:273, grifo meu)
coloca, referindo-se à imagem dos soldados norte-americanos arrastados, estopim
da retirada dos Estados Unidos da Somália:
The American public had in any case had enough and, horrified by the grisly television pictures of dead US personnel being dragged ignominiously through the streets of Mogadishu, vociferously clamoured for immediate withdrawal from an African misadventure that was becoming alarmingly reminiscent of Vietnam.
Segundo Debrix (1999) o resultado para os atores envolvidos foi que, em
vez de terminarem glorificando a vitória na guerra e tendo suas identidades
reafirmadas, acabaram questionando a justificativa para a guerra e imersos em
dúvidas (Debrix, 1999)120. E, assim, os “caubóis” que tinham ido para Somália a
fim de “salvar” os somalis dos seus vilões, acabam, eles mesmos, arrastados
através das ruas de Mogadíscio, invertendo, desse modo, o script clássico do
gênero de cinema norte-americano.
120 A crise supostamente gerada na identidade dos atores envolvidos será relativizada no item 8.2 da tese quando essa questão será retomada.
306
7.3 As (Des)Continuidades das “Novas” Operações de Paz da ONU
Na introdução busquei mostrar que essa tese é informada pela estratégia
foucaultiana de distinguir descontinuidade naquilo que se apresenta como
contínuo e de tentar examinar as possíveis continuidades daquilo que se apresenta
como único e novo.
Primeiramente, naquilo que se apresenta como novo, a saber, nas “novas”
operações de paz da ONU, a tese pretendeu desvelar os elementos de continuidade
em relação ao passado, de forma a desestabilizar o discurso de inovação
dominante no discurso sobre as mesmas. A tese sugere, conforme vimos, que
essas operações continuam informadas por práticas discursivas logocêntricas que
informaram tanto as ações coloniais como aquelas do Conselho de Tutela. Desse
modo, a Somália ainda continua sendo construída como “tradicional” e como
incapaz de se modernizar sem a benevolência de Estados temporalmente
avançados.
As “novas” operações de paz da ONU vêm sendo, desde o fim da Guerra
Fria, discursivamente apresentadas como algo novo, completamente diferente das
práticas imperialistas dos tempos passados. Elas são usualmente entendidas como
um sinal de “progresso” da política mundial expresso por meio da caracterização
das mesmas como: empreendimentos consensuais e multilaterais desprovidos de
quaisquer objetivos exploratórios, conduzidos por períodos limitados com a
aprovação das organizações internacionais, e, até mesmo, como um “ato
caritativo” levado a cabo pela comunidade internacional em nome da humanidade
(ver Paris, 2002). Na medida em que elas se apresentam como um processo
distinto e “civilizado” vis-à-vis as práticas colonialistas prévias, o discurso que
permeia tais operações ilumina os elementos originais da ação presente em
comparação com um passado de dominação face ao qual elas tentam se
desconectar.
Mesmo reconhecendo as diferenças evidentes entre as “novas” operações
da ONU e o colonialismo121, Roland Paris argumenta que a prática contemporânea
121 Paris (2002) mostra que enquanto o colonialismo europeu foi levado a cabo para o benefício dos Estados imperiais, a motivação das operações de peacebuilding é menos mercenária. Além
307
do peacebuilding pode ser entendida como uma versão moderna da “missão
civilizatória” através da qual as potências imperiais européias assumiram o dever
de civilizar as possessões ultramarinas. Embora tais operações tenham
abandonado a linguagem que fazia referência aos povos “civilizados” versus
“não-civilizados” ou “bárbaros”, elas parecem, de acordo com Paris (2002), agir
de acordo com a crença de que um determinado modelo de governança doméstica,
a saber, a democracia liberal, é superior. E, desse modo, elas continuam
transferindo regras de comportamento “aceitável” – visto no passado como
“civilizado” - para a arena doméstica dos Estados menos desenvolvidos.
Desse modo, embora as “novas” operações de paz tenham lugar no
domínio discursivo de uma “nova ordem mundial” que, aparentemente, não
guardaria qualquer relação com a velha ordem imperialista prévia à criação da
ONU, elas continuam sendo informadas, de acordo com Paris (2002), pela lógica
da “missão civilizatória” que orientou o movimento imperialista do século XIX.
Essa tese, contudo, diverge do argumento de Paris de três formas
principais: em primeiro lugar e tal como vimos na introdução, essa tese não
entende ser possível estabelecer comparações diretas ou vínculos causais entre o
velho e o novo imperialismo manifestado nas “novas” operações de paz da ONU.
Ou seja, a tese, informada pela genealogia foucaultiana, pretendeu ter o cuidado
de não estabelecer qualquer analogia simplificada entre o momento colonial e o
momento pós-colonial das operações de paz na Somália, mas, apenas, mostrar tais
continuidades no nível discursivo. Nesse sentido, a tese buscou iluminar como
determinados aspectos do discurso colonial encontraram-se presentes no discurso
das “novas” operações de paz. Tais discursos, como vimos, criaram as condições
de possibilidade para diferentes políticas voltadas para os corpos e espaços
somalis ao longo da história. No presente item, pretendo mostrar, ademais, como
tal continuidade discursiva também se fez notar no discurso empregado pelos
atores sujeitos às práticas da ONU, os quais resistiram às mesmas por meio da
mobilização de determinadas memórias coloniais.
Em segundo lugar, a tese diverge de Paris na medida em que esse autor
aceita, sem problematizar, o modelo democrático-liberal que segundo ele, vem
sendo globalizado por meio das operações de reconstrução de Estados. Paris trata disso, a colonização foi empreendida com base em teorias de superioridade racial, as quais foram abandonadas.
308
o modelo de democracia de mercado liberal como “o” modelo, se limitando a
criticar o modus operandi pelo qual tal modelo vem sendo transportado para os
países “menos desenvolvidos” (ver Paris, 2004). Para ele, o processo de
reconstrução de Estados para ser bem sucedido deve se pautar, primeiramente, na
edificação de instituições sólidas e, só num segundo momento, no fomento da
participação política (Paris, 2004). A presente tese diverge de Paris não apenas
porque busca desnaturalizar o modelo de governança doméstica que vem sendo
“exportado” para as sociedades alvo das “novas” operações de paz, mas, também,
porque não acredita na possibilidade de uma conversão bem sucedida. Como já
dito e, como veremos mais detalhadamente no último capítulo da tese, ao propor
uma releitura pós-colonialista das “novas” operações de paz da ONU, não acredita
aqui na possibilidade de que o ideal ocidental de governança vingue nas
sociedades pós-coloniais, tendo em vista que essas sociedades, dotadas de
agência, sempre vão corromper ou reler o modelo “exportado” pelos agentes
externos a partir dos seus valores e experiências. As operações de paz não podem
ser entendidas, como Paris o faz, como processos de via única (ver Charbonneau,
2009), direcionados do “centro” para “periferia”, pois, argumenta-se nessa tese
que, no curso de tais operações, tanto as sociedades alvo das mesmas como os
agentes “externos” são constituídos e transformados por tais práticas. O modelo
que vem sendo exportado (Estados democráticos liberais) depende de um “Outro”
não democrático e não liberal para se constituir como o melhor e único modelo
possível. Como viemos argumentando até então, o “moderno”, que hoje se
expressa sob a forma dos Estados democráticos liberais, depende da “tradição”
para se constituir discursivamente enquanto tal. Tais binarismos -
moderno/tradicional, democrático/não-democrático e/ou liberal/não-liberal -,
velam as inúmeras ambigüidades e sobreposições.
Em terceiro lugar, a comparação feita por Paris (2002) entre as duas
lógicas - da colonização e das operações de peacebuilding- acaba por reificar
uma única “colonização” movida pela lógica da “mission civilisatrice”,
universalizando, desse modo, o modelo francês de colonização. Todavia, ao
optarmos por estudar as especificidades históricas de uma determinada
colonização, a italiana, vimos que esta foi movida por uma lógica racial que,
309
durante o regime fascista, congelou a diferença de tal forma que inviabilizou
qualquer pretensão civilizatória.
Ao invés de buscar uma essência comum entre as lógicas colonial e das
“novas” operações de paz da ONU, a presente tese pretendeu identificar, no nível
discursivo, os ecos coloniais que ainda se fazem presentes no discurso subjacente
às práticas contemporâneas das operações de paz. Vimos, ao longo desse capítulo,
que é possível identificar nesse discurso sinais de continuidade em relação ao
passado colonial e à experiência da tutela do pós-Segunda Guerra, uma vez que tal
discurso segue informado pelo mesmo logocentrismo presente nessas experiências
prévias e, logo, os somalis continuam sendo representados como uma versão
“atrasada” e/ou “inferior” do “Eu” europeu. Desse modo, esse discurso continua
operando através de oposições binárias que dividem o mundo entre certas áreas
“modernas” e outras “tradicionais”. Como vimos, os somalis continuam sendo
representados como “naturalmente guerreiros”, “não-confiáveis” e/ou “atrasados”
em oposição a um domínio internacional entendido, cada vez mais, como uma
arena de progresso.
Também com base numa análise discursiva, mas focando exclusivamente
no imperialismo norte-americano, Butler (2002) chamou a atenção para as
continuidades entre a retórica do presidente Clinton em relação ao conflito na
Somália e o discurso imperialista dos Estados Unidos no século XIX. Segundo
esse autor, o discurso de Clinton transmitiu a imagem de somalis primitivos,
rearticulando, desse modo, a imagem histórica do selvagem presente no discurso
imperialista dos Estados Unidos no final do século XIX expresso, por exemplo,
para apoiar a anexação das Filipinas122. Nesse momento, a América se
autoproclamou a nação escolhida por Deus, imbuída do dever de erradicar ou
civilizar o selvagem primitivo. No caso somali, duas estratégias retóricas cruciais
presentes na ocasião da anexação filipina reaparecem: (i) o desenvolvimento de
uma sociedade selvagem primitiva incapaz de apreciar seus próprios problemas e
que rejeita, em virtude da sua ignorância, as intenções benevolentes daqueles que
desejam ajudar e (ii) a identificação de uma solução que busca levar a civilização
para uma cultura perturbadora (Butler, 2002). Dessa forma, o discurso dos
Estados Unidos na Somália reproduziu, segundo Butler (2002), o discurso 122 Ver Doty (1993) para uma análise interessante do discurso norte-americano durante a ocupação das Filipinas.
310
imperial dos Estados Unidos do final do século XIX. Esse discurso, por sua vez,
criou as condições de possibilidade para uma ação voltada para a propagação da
civilização para uma cultura representada como primitiva e desolada por um
conflito sem sentido, causado pelos próprios somalis e que, além disso, resiste em
aceitar as chances de paz fomentadas pela liderança norte-americana (ver Butler,
2002).
Além de podermos detectar tais continuidades na estrutura do próprio
discurso sobre as “novas” operações de paz, elas também aparecem nos discursos
articulados pelos próprios somalis durante as operações de paz na Somália, os
quais identificavam similaridades entre a ONU e as práticas colonialistas. Enfim,
os próprios somalis estabeleceram um vínculo entre as práticas da ONU e as
práticas imperialistas passadas a partir da mobilização de memórias coloniais o
que, alega-se aqui, contribuiu para a perda de credibilidade da UNOSOM II.
Em novembro de 1992, o Secretário Geral da ONU, Boutros-Ghali
advertiu o presidente do Conselho de Segurança sobre a crescente percepção entre
os somalis de que a ONU seria uma organização “invasora”, conforme consta a
seguir:
Another disturbing trend, which has evolved in recent weeks, apparently at the instigation of local faction leaders, is the widespread perception among Somalis that the United Nations has decided to abandon its policy of cooperation and is planning to ‘invade’ the country (S/24859, apud Boutros-Ghali, 1996:207, grifo meu).
Um mês depois, num artigo do Washington Post, o acadêmico somali, Said
Samatar aconselhou os Estados Unidos a evitarem dar qualquer impressão de que
estariam desejando recolonizar o país, já que:
Ridiculous as this may sound, Somalis, with their bitter experience of colonial occupation, are born xenophobic paranoids. The United States must impress upon the Somalis that it has no hidden agenda, but only a humanitarian interest (Samatar, 1992).
De fato, especialmente a partir do momento em que a operação da UNOSOM II
passou a ter como objetivo a captura do líder clânico, Aidid, as forças
interventoras rapidamente começaram a ser associadas aos velhos colonizadores
(Lang, 2003). Segundo Aidid: “The UN and the US are trying to impose colonial
311
rule on us. God will destroy Washington as surely as they have destroyed
Mogadishu” (apud Purvis, 1993).
Como nos mostra Lang (2003), tais apelos de resistência à presença da
ONU na Somália combinados com a narrativa de uma história somali de oposição
às tentativas prévias de imposição externa123 foram bem recebidos em
Mogadíscio, nesse momento, repleta de tropas militares estrangeiras. De acordo
com o Relatório da Comissão de Investigação dos ataques do dia 5 de junho, a
hostilidade exibida pelas transmissões da Rádio Mogadíscio em relação à
UNOSOM II e aos Estados Unidos fizeram-se notar, sobretudo, na esteira da
emboscada aos soldados paquistaneses. De acordo com o Relatório:
[T]he broadcasts had a xenophobic tone, especially starting on 11 May, when they accuse UNOSOM II and the United States of being aggressors trying to colonise Somalia and to establish a trusteeship. They speak highly of Somalia’s history of resistance to foreign domination and imposition. UNOSOM II was very concerned about this propaganda which could give a negative perception of the United Nations could stir up hostile sentiments towards UNOSOM II personnel from the Somali public.(S/1994/653, apud Boutros-Ghali, 1996:374).
É importante notar que as transmissões da Rádio Mogadíscio acusando a
ONU e os Estados Unidos de tentarem estabelecer uma tutela sobre a Somália não
são completamente infundadas, sem apoiadores ou uma mera imaginação de
“paranóicos xenófobos” para usar a expressão de Samatar. No editorial do NYT
de fevereiro de 1992, se pode ler, por exemplo: “If the only alternative to anarchy
is a UN trusteeship then the Security Council needs to ponder that case”. Em
setembro do ano seguinte, no mesmo jornal, Carr coloca:
The UN leadership is not swayed by their accusations of imperialism. If the multinational force moves with their heightened vigor, Somalia could be a UN protectorate within the year. Freed from the fighting, the UN officials could see whether there are leaders who care about Somalis than personal power. If not, the protectorate status would have to be extended until such leaders emerged. That might take months –or years.
Refletindo a respeito da experiência da ONU na Somália, Rotberg
(1997:253), por exemplo, coloca: “As anachronistic as it may seem, we need to
consider finding ways to recommit countries (like Somalia) to the good offices of
123 A história de oposição somali à intervenção colonial está bem sintetizada em Issa-Salwe (1996).
312
the UN Trusteeship Council”. O autor (1997:253) agrega que tal tutelagem seria,
no final das contas, aplaudida pelos próprios somalis: “Somalis themselves might,
at the appropriate moment, have welcome such temporary recommitment to the
UN”. Escrevendo no The Washington Post, em outubro de 1992 e, portanto, antes
das transmissões na Rádio Mogadíscio terem começado a insinuar que os agentes
externos, de fato, queriam impor uma tutela sobre o país, Krauthammer deixa
clara sua posição nesse sentido:
Somalia needs to be occupied. It needs an outside force to suppress the bandits, feed its people and provide medical care. The best way to do this is the old mandate system of the League of Nations, under which a great power under international supervision is given quasi-colonial power over another people. A formal mandate would give the outside power the dignity and legitimacy to justify its otherwise thankless task of pacification.
A idéia da tutela sugerida por Krauthammer é prontamente apoiada por
leitores do The Washington Post. Iris Kapil, da França, por exemplo, expressa tal
apoio nas Cartas ao Editor:
Mr. Krauthammer is correct. A long-term trusteeship is needed for Somalia. Without a stable government to maintain order, to provide essential service and under which the Somalis can acquire experience in governance, the extreme suffering and the high cost of relief efforts will continue indefinitely. (…). Somalia’s trusteeship was conducted under more benign circumstances than exist today. The people were not armed. They were less politized. Severe drought had not damaged agriculture. Of critical importance, population pressure on that desert land was far less.
Tripodi (1999:11) também não deixa passar despercebido o desejo, por
parte de alguns, de reintroduzir a velha prática da tutela sobre a Somália. Ele nos
mostra que durante a intervenção humanitária no país, quando a situação começou
a piorar, a subsecretária do Ministério Exterior Italiano, Laura Fincato, sugeriu
que a Itália deveria voltar a considerar o estabelecimento de um mandato de tutela
sobre a Somália desde que a população local estivesse a favor da mesma e que a
ONU desse o seu aval a tal projeto internacional. Do mesmo modo, Sergio
Romano, um ex-embaixador italiano, escreveu que para aumentar as chances de
sucesso da ONU na Somália, o Conselho de Segurança tinha que estabelecer uma
administração de tutela internacional (Tripodi, 1999:11). Ele alegou que:
“wherever decolonisation failed it is necessary, in the interest of local
313
populations, to resume the old trusteeship administrations” (apud Tripodi,
1999:11).
Além do conteúdo das transmissões na Rádio Mogadíscio, o qual alertava
os somalis para o desejo da ONU de colonizar o país, ter provocado hostilidade à
Organização, Lang (2003), como já dito, expõe um fator adicional para essa
posição de hostilidade, qual seja: a tentativa por parte de Aidid de declarar a
Rádio Mogadíscio como a “voz oficial” da Somália. Lang (2003) mostra que
Aidid foi capaz de apresentar sua propaganda na Rádio não apenas como a reação
de um líder clânico decepcionado, mas, também, como a voz das aspirações
políticas somalis. Ao tratar Aidid como um criminoso, a ONU apenas contribuiu
para sua transformação num mártir, fazendo com que ele e sua facção assumissem
o papel de vítimas em oposição à ONU e aos Estados Unidos, representados como
vilões (Lang, 2003). Como colocado por Peter Woodward (2003:78, grifo meu):
With forty-seven UN forces and an estimated 300 Somalis killed, it was soon being suggested that the UN was becoming the biggest warlord of all and the greatest threat to the people of Mogadishu..
Assim, na medida em que a ONU abandonou a sua posição de
imparcialidade e se tornou explicitamente comprometida a lutar contra uma das
facções do conflito, a relação entre a Organização e o imperialismo foi facilmente
estabelecida pelos próprios somalis.
Ao desempoderar a “voz” da Somália veiculada na Rádio Mogadíscio,
desqualificando-a, a ONU, reproduziu as velhas hierarquias presentes desde a
colonização, entre um “Eu”/ONU dotado de autoridade moral e um “Outro”
destituído de voz e de razão. Tal discurso, extremamente familiar para os somalis,
por sua vez, teve o efeito de potencializar a resistência, expressa, como visto, por
meio da releitura do presente à luz das memórias coloniais.
Expusemos até aqui as continuidades entre as “novas” operações de paz da
ONU e o passado colonial, silenciados no discurso dominante. Doravante,
apresentaremos os elementos de descontinuidade em relação àquilo que se
apresenta como continuidade, a saber, a sociedade e o conflito somalis,
representados como “pré-modernos” e congelados no tempo.
Como já dito na introdução da tese, o objetivo aqui não foi o de
estabelecer uma “estória correta”, mas sim de considerar ambíguos os discursos
314
dominantes, demonstrando, assim, a natureza inerentemente política dos mesmos
(Campbell, apud Milliken, 1999). Essa abordagem pretendeu mostrar que, em
alguns casos, o “mundo” foi interpretado diferentemente de forma a revelar o
caráter instável e contingente do discurso dominante (Milliken, 1999). O objetivo
aqui foi o de trazer a tona um discurso silenciado sobre o conflito somali, o qual
destoa do dominante ao considerar o impacto dos processos e agentes
internacionais sobre a Somália, enfatizando, desse modo, a sua descontinuidade.
Como foi mostrado nessa parte da tese, o conflito da Somália foi
interpretado pelo discurso dominante como derivado da tradição somali centrada
na organização clânica da sociedade. Walter Rodney nos mostra que tal leitura
etnocêntrica em relação à representação da Somália contemporânea se estende
para os Estados africanos em geral conforme ele explica a seguir:
[T]ribalism is understood by Europeans to mean each tribe still retains a fundamental hostility towards its neighbouring tribes (...) their accounts suggest that Europeans tried to make a nation out of the tribes, but they failed, because the various tribes had their age-long hatreds; and, as soon as the colonial power went, the nations returned to killing each other. To this phenomenon, Europeans often attach the word ‘atavism’, to carry the notion that Africans were returning to this primitive savagery. Even a cursory survey of the African past shows that such assertions are the exact opposite of the truth (apud Lauderdale, Toggia, 1999:157, grifo meu).
Argumenta-se aqui que o determinismo histórico que informa essa visão
sobre os conflitos africanos do pós-Guerra Fria é etnograficamente duvidosa124,
pois negligencia o impacto dos principais eventos dos séculos XIX e XX, tais
como o colonialismo e a Guerra Fria, sobre os mesmos.
Besteman (1996), Abdi I. Samatar (1992) e Virginia Luling (1997) nos
ajudam a desfazer a idéia de que a identidade somali permaneceu inalterada a
despeito da presença do colonizador na Somália e de que, portanto, o conflito
entre clãs, ao qual assistimos a partir de 1991, foi derivado, exclusivamente, das
dinâmicas internas somalis.
Besteman argumenta que o que ficou conhecido no começo dos anos 90
como “tribalismo” produziu uma visão distorcida da sociedade somali tendo em
vista que o conflito em curso na Somália pós-Barre não guardava qualquer
124 Essa visão é compartilhada por Campbell (1996) em relação à leitura norte-americana sobre o conflito na Bósnia.
315
correspondência com a organização social somali pré-colonial. Segundo a
antropóloga, os chamados “senhores da guerra” que, de fato, roubavam comida e
incitavam a violência, não eram parte das antigas rivalidades somalis tal como foi
assumido pelo discurso dominante. Segundo a autora, esses novos atores, como já
se comentou, pertenciam a uma nova elite urbana que durante a Administração
Barre passou a lutar por enriquecimento pessoal através do acesso ao poder do
Estado e, para alcançar tal fim, empregou uma retórica clânica125. Dessa forma,
embora, de fato, a maioria das lutas entre “senhores da guerra” na Somália pós-
Barre tenha ocorrido entre grupos com bases clânicas, tal identificação clânica não
era algo natural, mas, antes, fruto de uma mobilização levada a cabo por diversas
milícias nacionais que lutavam pelo controle do Estado. Assim, de acordo com
Besteman, o conflito somali não resultou de hostilidades profundas e ancestrais,
mas sim de padrões particulares de lutas pelo controle sobre os recursos do
Estado, estabelecidas nos anos 80. Conseqüentemente, tais lutas eram
historicamente específicas.
Também adotando um argumento que enfatiza as transformações da
sociedade somali através dos anos, Samatar defende que a natureza da competição
entre clãs mudou com a introdução do Estado colonial. De acordo com Samatar
(1992:634) “the leadership in the old tradition had no public resources that they
could compete for and loot, and as such the nature of the allocations made under
that regime was qualitatively at variance with the modern order”. Luling
(1997:290) concorda com Samatar dizendo que:
Clans always had to competed for resources such as land, grazing and water, but now that control of all these resources and much more was vested in the state, competition between clans, which before had been only one aspect of their existence, became its permanent condition.
Nesse sentido, para os autores acima, o problema que a Somália passou a
enfrentar no pós-Guerra Fria não estava ligado ao modo de vida somali pré-
125 Essa mobilização política da identidade foi identificada por Mary Kaldor (1999) nas chamadas “novas guerras”. Para ela, a política da identidade é o meio pelo qual as elites políticas reproduzem o seu poder. O termo “policy of identity” utilizado por Kaldor designa os movimentos que se mobilizam em torno das identidades étnicas, religiosas e raciais com o objetivo de clamar pelo controle do Estado. Essas identidades ainda que baseadas em fissuras pré-existentes de tribo, nação e religião, em geral, usam memórias e experiências de injustiças passadas com o objetivo de mobilização política. Ver: Mary Kaldor, New and Old Wars-Organized Violence in a Global Era, Stanford University Press, 1999.
316
colonial, mas, predominantemente, à introdução do Estado e à alteração que tal
introdução, imposta pelos colonizadores, gerou nas práticas somalis. O problema
enfrentado pela Somália, portanto, foi resultado, em parte, da introdução de
elementos associados com a modernidade no âmbito da sociedade somali e não,
como usualmente se alega, derivado exclusivamente de elementos pré-modernos.
Além disso, como bem nos mostra Luling (2006), a proibição, já
mencionada, de se referir abertamente aos clãs durante o governo Barre,
sobretudo, nas escolas, teve efeitos sobre as identidades somalis; o que, significa
que elas não permaneceram inalteradas conforme assumido pelo discurso
dominante. A autora mostra, ademais, que a crescente mobilidade e mistura de
pessoas de diferentes origens em Mogadíscio bem como em outras cidades,
contribuíram para o surgimento de uma geração de jovens urbanos
comprometidos, em grande parte, com a rejeição ao sistema clânico (Luling,
2006).
Uma estória de Ahmed Ismail Yusuf, chamada “A Delicate Hope” que
começou a circular em Mogadíscio após o início da guerra civil nos oferece um
exemplo bastante claro de tal rejeição (apud Luling, 2006:476-7). Aar e Arbaab,
irmãos gêmeos, estudavam em Mogadíscio quando Barre foi deposto. Embora
fossem hostis ao governo Barre, os irmãos eram membros da família clânica
Darod de onde proveio a principal base de apoio a tal governo. Isso explica
porque quando a cidade foi liberada por uma coalizão de outra base clânica,
Hawiye, eles automaticamente passaram a correr perigo tendo em vista a
perseguição indiscriminada que se instalou em Mogadíscio contra os Darod.
Todavia, a mãe dos gêmeos, pertencia à família clânica Isaaq, a qual havia
libertado o território do norte – hoje “Somalilândia” - do exército de Barre. Desse
modo, foi elaborado um plano para que os gêmeos escapassem para o norte e se
orientassem pelo seguinte conselho da mãe: “You have to know your maternal
clan affiliation and my ancestor’s names to use them if need be, all by heart”. No
entanto, o conselho da mãe para que os filhos decorassem o nome dos seus
ancestrais, foi prontamente rejeitado por um deles que alegou:
Over and over you keep insisting that we have to know the names of a bunch of ancestors, who’ve been dead for centuries, mom, I know you’re from the Northern clans of Isaaq and I know my father is Daarood, also from the north, So, Mom, I will never affiliate myself with either one if I can’t belong to
317
both…If we are going to die anyhow…for an unjust tribal war, let us not sow a poison seed for generations to came by choosing one tribe over another.126
. Uma vez no norte, os gêmeos foram instruídos por soldados a saírem do
carro e a se identificarem. Embora tendo conseguido citar os nomes dos clãs e dos
subclãs aos quais pertenciam, eles não foram capazes de provar a afiliação Isaaq,
recitando o “abtirsiinyo” (genealogia) e, conseqüentemente, foram considerados
suspeitos de serem espiões do regime Barre e, por isso, executados. Quando o
comandante sênior, irmão da mãe dos gêmeos - uma relação afetuosa e protetora
para os somalis - chegou para checar seus subordinados, reconheceu
imediatamente os corpos e voltando as armas para os guardas e depois para si
disse, antes de se matar: “My flesh and blood....they were my nephews, my
nephew, my nephews...”.
No marco dessa narrativa somali, portanto, o sistema clânico nos é
apresentado como algo amargo e assassino (Luling, 2006), reproduzindo, desse
modo, os discursos dominantes sobre o conflito. Na estória, o ato de recitar o
“abtirsiinyo”, ou seja, a lista de ancestrais mortos há séculos, parece carecer de
sentido e a sua evocação como garantia de segurança se assemelha a uma espécie
de fraude (Luling, 2006). Todavia, essa estória, nos oferece a possibilidade de
vislumbrar outras narrativas de identidade que não aquela oferecida pelo discurso
dominante, já que nos mostra que nem todos na sociedade somali se identificavam
com o sistema clânico.
Luling (2006) argumenta que a rejeição ao sistema clânico exemplificada
pela estória acima nos lembram as rejeições européias ao nacionalismo. Shapiro
(2009) se detém com mais atenção nesse tema em seu artigo “How does the
Nation-State Work?”, no qual oferece exemplos de identidades que estariam em
tensão com a obediência nacional. Só para citar um desses exemplos: Shapiro
(2009), por exemplo, nos conta que o filme “Sammy and Rosie Get Laid” de 1987,
nos fornece um momento exemplar de uma diferente face do alinhamento
nacional no Reino Unido. Num dado momento do filme, um imigrante
paquistanês, diz à sua mulher, Rosie, uma inglesa nativa: “We are not British,
we’re Londoners”. Da mesma forma que a narrativa nacional silencia acerca dessa
126 Grifo meu.
318
e de outras identidades que colocam em xeque o alinhamento nacional127, o
discurso dominante sobre o “Outro” somali o construiu de uma forma deveras
simplificada, a qual silenciou acerca de experiências mais complexas informadas
por imaginários não captados pela narrativa clânica.
Como nos mostra Besteman (1996), a caracterização da sociedade somali
como “clãnica” por parte do discurso dominante se baseou em tipologias
evolucionárias familiares. Isto é, a representação da Somália como uma sociedade
baseada exclusivamente num sistema de clãs reforçou o entendimento
antropológico tradicional de formação do Estado e claramente indicou a direção
para a qual ela deve se mover, a saber: das relações de parentesco para o contrato
social (Besteman, 1996). Essas relações (de parentesco e do contrato social), por
sua vez, nos foram apresentadas como distintas e irreconciliáveis e, desse modo,
como temporalmente dissociadas. Por conseqüência, as tipologias evolucionárias,
subjacentes aos discursos dominantes, localizaram tais categorias (clãs/Estados)
como passos distintos de uma trajetória evolucionária de sociedade (ver
Besteman, 1996). Refletindo essa visão evolucionária, Abdalla O. Mansur, por
exemplo, argumenta:
The most serious problem in Somalia today is that our cultural traditions are not compatible with the constructs of a modern state. We Somalis are prisoners of a culture that we created in the past and which we refuse to re-examine. What is needed is to educate our people and exhort them to free themselves from the dependency of clanism, charity, and family parasitism. Only after creating this new culture will it be possible for us to reinvent ourselves and in the process to launch the construction of a new, viable state (Mansur, 1995:115-6).
A passagem acima nos mostra com clareza a tentativa mítica de se separar,
depois de séculos de colonialismo e pós-colonialismo, os elementos ditos
“tradicionais” dos “modernos” da sociedade somali, apresentados como
normativamente hierarquizados e irreconciliáveis128.
Besteman (1996) mostra que quando a linguagem evolucionária é usada, a
imagem que vem a tona é a de uma sociedade atrasada e rígida, baseada em
práticas darwinianas de sobrevivência, desprovida de outras hierarquias
127 Vimos, por exemplo, no item anterior, que, nos Estados Unidos, essas identidades alternativas, as quais ganharam maior visibilidade com o fim da Guerra Fria, foram vistas como uma ameaça à integridade à nação, imaginária, norte-americana. 128 Essa idéia será trabalhada com maior profundidade no último capítulo da tese dedicado ao pós-colonialismo.
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concorrentes, as quais, se levadas em conta, dariam uma maior complexidade à
sociedade somali do que normalmente se sugere. Poderíamos acrescentar que os
clãs, por meio dessa narrativa, são representados como “mini-Estados”, na medida
em que são entendidos, de modo análogo ao entendimento convencional sobre os
Estados, como entidades unitárias, sem fissuras, face às quais os somalis
devotariam sua obediência primeira e unívoca, sem que outras identidades
competitivas lhe rivalizassem. Na estória “A Delicate Hope” acima apresentada,
contudo, essa imagem é colocada em xeque, visto que os irmãos se sentem
igualmente pertencentes a dois clãs diferentes, ao do pai e ao da mãe e se recusam,
portanto, a terem que devotar uma lealdade excludente.
Besteman (1996) nos oferece um entendimento da sociedade somali que
traz a tona a flexibilidade e complexidade dessa sociedade, negligenciadas pelo
discurso dominante, o qual torna o sistema clânico não só a essência da sociedade
somali, mas também sua totalidade129. A antropóloga nos mostra que nem todos
os cidadãos somalis no marco da prévia estrutura estatal eram membros de um clã,
já que a sociedade somali continha grupos que existiam fora do sistema clânico,
como o eram muitos moradores costeiros que reivindicavam descender dos
primeiros colonizadores árabes e persas, assim como muitos dos moradores dos
vales dos rios Juba e Shabelle.
Besteman também deixa claro que o pertencimento a um clã não constitui
um atributo irrevogável adquirido a partir do nascimento, já que a mobilidade
entre clãs não é apenas possível, como também bastante difundida no sul, onde os
somalis costumam comutar a afiliação a clãs, por, por exemplo: proteção,
casamento, direito a terra, trabalho ou ainda por razões políticas (Besteman,
1996). Ao apresentar o processo de afiliação a um clã como um processo
relativamente simples, mostrando que em alguns clãs do sul existem inclusive
mais membros adotados do que descendentes do fundador ancestral, a antropóloga
coloca em xeque a visão prevalecente acerca do caráter permanente e estático do
sistema de clãs. A flexibilidade do sistema clânico somali também é ressaltada por
Luling (2006:474) quando diz: “Far from being something that sets one set of
people permanently against a fixed ‘other’, it is a flexible scale by means of which
alliances can be constantly reshuffled”.
129 Sobre a tendência de tratar o “Outro” como uma totalidade, ver: Appadurai, 1998.
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Além disso, como foi já dito, a ênfase da narrativa dominante na Somália
clânica, obscureceu, como nos mostra Besteman (1996), outras identidades que
atravessam o sistema de clãs. Vale recordar que os povos Gosha, descendentes de
escravos da linhagem Bantu adquiriram um status inferior no seio da sociedade
somali devido a essa herança tida como “impura” (Besteman, 1996). Agravando
tais discriminações, esses povos também foram construídos por meio do discurso
colonial como racialmente distintos e inferiores (Besteman, 1996). Em função
disso, os clãs do sul que obtiveram um grande número de Bantus acabaram sendo
considerados de status inferior na arena nacional (Besteman, 1996). Ademais,
como também já vimos, uma parte substantiva da população do sul praticava a
agricultura, considerada por muitos somalis como uma ocupação inferior. Assim,
uma combinação de fatores, como as construções discursivas de linhagem, de raça
e de ocupação, deixou muitos agricultores e agro-pastores do sul marginalizados
no Estado pós-colonial, independente do fato de fazerem parte ou não de um clã
(ver Besteman, 1996).
Em suma, segundo Besteman (1996), tais concepções acima apresentadas
de raça, linhagem e status dotaram a identidade somali de maior complexidade do
que o simples pressuposto de uma identificação exclusivamente clânica sugere. O
retrato alternativo da sociedade somali esboçado por Besteman (1996) revela, por
conseguinte, não só um grande fluxo e dinamismo na mesma, mas também a
presença de uma variedade de identidades sociais que atravessam, minam, mudam
e substituem as identidades clãnicas.
Com isso, a autora buscou mostrar que a identidade que emerge como
proeminente num dado momento é contextualmente específica e historicamente
condicionada e não, como nos sugere o discurso dominante, inalterável. Na maior
parte do século XX, por exemplo, o status derivado das construções sociais de
raça e pureza apresentou um maior constrangimento para a agência individual do
que o pertencimento a um clã que, no sul da Somália, podia ser facilmente
alterado, oferecendo, portanto, maior potencial de mobilidade (Besteman, 1996).
Sobre a especificidade histórica do conflito somali, Besteman (1996) no
conta que no contexto pós-Barre, os clãs que depuseram o ditador reivindicaram
como recompensa o controle sobre os mesmos tipos de recursos, a exemplo das
terras, exigidos pelas elites urbanas na década de 80 (Besteman, 1996). E, assim,
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os ataques às vilas do sul do país, que resultaram na fome na região, seguiram o
mesmo padrão de apropriação de recursos. E, desse modo, os sulistas rurais, cuja
maior parte não havia desempenhado qualquer papel no Estado de Barre e
tampouco no seu desmantelamento se tornaram alvos das milícias de outras partes
do país, muitos tendo que sobreviver, desde 1991, em campos de refugiados
(Besteman, 1996). Esses habitantes do sul foram excluídos da política nacional
com base na sua raça, linhagem e status, aspectos inapropriadamente capturados
apenas pela rubrica clânica (Besteman, 1996).
Assim, para autora, as causas do conflito não foram, tais como os meios de
comunicação expuseram exaustivamente, as rivalidades clânicas ancestrais, mas,
sim: (i) os crescentes investimentos nas identidades clânicas por parte do governo
Barre, (ii) a emergência de uma virulenta competição de classe num ambiente de
influxos massivos de ajuda externa, e (iii) a crescente militarização do Chifre da
África, internacionalmente apoiada.
A partir dos argumentos de Besteman, fica nítida a participação dos atores
“externos” no conflito somali, lido, por esses mesmos atores, como um conflito de
dimensões meramente domésticas e, portanto, face aos quais eles não tinham
qualquer responsabilidade moral.
Por outro lado, vimos também que a razão da retirada dos Estados Unidos
e da ONU na Somália foi atribuída meramente às facções hostis internas que se
recusavam a cooperar com os agentes internacionais, silenciando, desse modo,
acerca dos equívocos da dita “comunidade internacional” em remediar o conflito.
Argumenta-se aqui, diferentemente, que o discurso dominante foi cúmplice dos
inúmeros equívocos cometidos pelos agentes internacionais na Somália.
Na medida em que o discurso da ONU concebeu o Estado centralizado
como a única alternativa possível para reorganizar politicamente a vida somali, os
esforços da Organização se concentraram na capital, em detrimento do campo,
onde ocorreram os principais atos de violência e onde a fome se generalizou.
Como colocou Samatar (2002), os povos agrícolas do sul foram os que pagaram
os maiores custos materiais e humanos derivados da guerra. No auge da fome e da
destruição, as comunidades agrícolas dessa região morreram aos milhares com a
cidade de Baidoa se transformando no epicentro da morte e, em função disso,
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ficando conhecida como a “city of the walking dead” (Samatar, 2002, Mukhtar,
1996).
Argumenta-se aqui que dois fatores fizeram com que a ONU
marginalizasse a destruição em curso no sul agrícola do país, se focando, como
observado pelo relatório da Organização Human Rights Watch (1995), nas
batalhas da capital e do porto de Mogadíscio. Em primeiro lugar: o fato dela se
guiar pela norma de um Estado politicamente centralizado, o qual teria de ser
construído desde a capital. Em segundo lugar, a leitura do conflito como
“clânico”, a qual não levou em consideração as discriminações de raça, linhagem
e status que ao longo dos anos incidiram sobre os agricultores do sul e que
culminaram, segundo Mukhtar (1996), numa política genocida dirigida a esses
agricultores no curso do conflito. Mukhtar (1996:551) cita um Sheik do sul, Eedin
Alyow, quem teria dito sobre tais atos de violência:
The Hawithe and Darod had a master plan of extinguishing our people. For example, they started to take all our stored grain first, then they took all the animals that we kept. After several weeks, the villages were dead or still alive. When they realized that we were eating garas (an edible wild fruit) they started systematically to burn all the garas trees in the area. What could this mean?
Na medida em que o conflito somali foi lido primordialmente sob a rubrica
clânica e o Estado centralizado passou a ser o ideal perseguido pela ONU no país,
os líderes clânicos, altamente armados, foram privilegiados como interlocutores
em detrimento de outras autoridades que apontavam para um exercício de poder
mais descentralizado e local. Conforme colocado por esse mesmo relatório da
Human Rights Watch (1995) supracitado:
[M]any observers fall to note the importance of the UN’s overwhelming emphasis on brokering deals between powerful military leaders, to the detriment of those in Somali society seeking reconstruction and reconciliations (...) We conclude (…) that a principal problem of the Somalia operation was that it was pursued firstly as an exercise in conflict resolution between powerful individuals without addressing the policies each pursued which led to Somalia’s continuing devastation.
De um modo geral, o relatório acima mencionado critica o foco da ONU e
dos Estados Unidos em poucas personalidades, primeiro tratadas como “colegas”,
depois como “fora da lei” e finalmente, de novo, como negociadores legítimos em
detrimento das autoridades locais.
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Por outro lado, a já referida simplificação promovida pela leitura ocidental
acerca da sociedade somali teve efeitos imprevistos, os quais acabaram por
reproduzir e mesmo reforçar a dinâmica clânica. Para Foucault, a relação entre os
objetivos declarados de um programa específico e os efeitos de poder que ele
produz é de “não-correspondência”; o que significa que os discursos não criam
automaticamente nas sociedades os efeitos exatos antecipados pelo seu conteúdo
(ver Hendrie, 1997). É justamente por isso que, para ele, as relações de poder
devem ser examinadas no nível da vida diária (ver Hendrie, 1997). Quando, com a
ajuda de Luling (2006), tais relações são examinadas na vida diária é possível
perceber que a idéia que informou os agentes internacionais, segundo a qual os
somalis eram divididos exclusivamente em clãs, fez com que novos clãs fossem
formados a partir de 1991 a fim de garantirem um lugar nas negociações políticas
em curso. Esse foi justamente o caso dos Bantus, os quais passaram a asseverar
uma identidade clânica comum clânica, a “qowmiyad”, junto à ONU e aos Estados
Unidos. Desse modo, ainda que o objetivo da ONU na Somália tenha sido o de
criar um Estado centralizado que colocasse um fim às lealdades clânicas
tradicionais, durante a sua operação, muitos grupos não identificados com tais
lealdades se viram estimulados a entrar no “jogo clânico” a fim de terem suas
vozes reconhecidas pelos agentes internacionais.