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PARTE III- SOMÁLIA: UM CAMPO DE TESTES PARA AS “NOVAS” OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU O fim da Guerra Fria e a conseqüente superação das tensões entre Estados Unidos e União Soviética conduziram a um exagerado otimismo acerca do futuro da ONU expresso, sobretudo, por meio da expansão do número e escopo das suas operações de paz. De acordo com Boutros-Ghali (1996), o envolvimento da ONU no conflito somali ocorreu justamente neste ponto de virada na história da Organização, quando o fim da Guerra Fria (i) renovou o otimismo acerca da habilidade do Conselho de Segurança em cumprir a promessa da Carta da ONU de “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra” e (ii) conduziu a uma tremenda expansão das atividades de “peace-keeping”. De acordo com Barnett (1995) a decisão do Comitê Nobel de conceder o prêmio da paz em 1988 aos peacekeepers” da ONU foi profética, visto que desde o fim da Guerra Fria, a ONU se tornou o principal ator incumbido da manutenção da paz e da segurança internacionais. Para Barnett (1995), não há melhor símbolo do ressuscitar da ONU do que as suas “novas” operações de paz. Enquanto apenas treze operações foram levadas a cabo de 1956 até 1987 (Barnett, 1995:79), desde então até 2008, 50 “novas” operações haviam sido enviadas 80 . Talvez o ápice deste ambiente triunfalista tenha sido representado pela aclamada vitória da ONU/Estados Unidos na Guerra do Golfo e pelo subseqüente anúncio de uma “Nova Ordem Mundial” pelo então presidente dos Estados Unidos, George Bush. Nesse sentido, no momento da atuação na Somália, os Estados Unidos e as Nações Unidas estavam investidos do poder simbólico que lhes foi conferido pela “vitória” prévia no Golfo (Debrix, 1999). De acordo com Debrix (1999:97): Reinvested by George Bush’s post-Gulf War vision of a New World Order, the United Nations has been given in Somalia a chance to perform as an undisputable ‘international actor’, as a symbolic and legitimate power to be reckoned with as the century draws to an end. 80 Informação encontrada em: http://www.un.org/events/peacekeeping60/index.shtml

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PARTE III- SOMÁLIA: UM CAMPO DE TESTES PARA AS “NOVAS” OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU

O fim da Guerra Fria e a conseqüente superação das tensões entre Estados

Unidos e União Soviética conduziram a um exagerado otimismo acerca do futuro

da ONU expresso, sobretudo, por meio da expansão do número e escopo das suas

operações de paz. De acordo com Boutros-Ghali (1996), o envolvimento da ONU

no conflito somali ocorreu justamente neste ponto de virada na história da

Organização, quando o fim da Guerra Fria (i) renovou o otimismo acerca da

habilidade do Conselho de Segurança em cumprir a promessa da Carta da ONU

de “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra” e (ii) conduziu a uma

tremenda expansão das atividades de “peace-keeping”. De acordo com Barnett

(1995) a decisão do Comitê Nobel de conceder o prêmio da paz em 1988 aos

“peacekeepers” da ONU foi profética, visto que desde o fim da Guerra Fria, a

ONU se tornou o principal ator incumbido da manutenção da paz e da segurança

internacionais. Para Barnett (1995), não há melhor símbolo do ressuscitar da ONU

do que as suas “novas” operações de paz. Enquanto apenas treze operações foram

levadas a cabo de 1956 até 1987 (Barnett, 1995:79), desde então até 2008, 50

“novas” operações haviam sido enviadas80.

Talvez o ápice deste ambiente triunfalista tenha sido representado pela

aclamada vitória da ONU/Estados Unidos na Guerra do Golfo e pelo subseqüente

anúncio de uma “Nova Ordem Mundial” pelo então presidente dos Estados

Unidos, George Bush. Nesse sentido, no momento da atuação na Somália, os

Estados Unidos e as Nações Unidas estavam investidos do poder simbólico que

lhes foi conferido pela “vitória” prévia no Golfo (Debrix, 1999). De acordo com

Debrix (1999:97):

Reinvested by George Bush’s post-Gulf War vision of a New World Order, the United Nations has been given in Somalia a chance to perform as an undisputable ‘international actor’, as a symbolic and legitimate power to be reckoned with as the century draws to an end.

80 Informação encontrada em: http://www.un.org/events/peacekeeping60/index.shtml

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Todavia, essa pretensão da ONU, salientada por Debrix (1999:128), de, na

esteira da vitória na Guerra do Golfo, tentar reeditar na Somália a idéia da “Nova

Ordem Mundial” foi extremamente mal-sucedida; fazendo com que a ONU se

visse obrigada a deixar o país com imagens de uma “nova desordem mundial”.

O mencionado fracasso da intervenção foi objeto de inúmeros debates e

avaliações sobre os erros cometidos pela ONU/Estados Unidos na Somália, os

quais forneceram importantes lições para as operações de paz posteriores. Como

reconhece Boutros-Ghali (1996), no momento da ação da ONU na Somália não

existiam modelos para ONU seguir. Todavia, a operação na Somália forneceu

lições importantes para futuros conflitos envolvendo “Estados falidos” (Boutros-

Ghali, 1996). Nesse sentido, embora produzida discursivamente como um caso

excepcional, tal operação teve um enorme papel em forjar o consenso para as

operações de paz seguintes, conforme veremos no capítulo 8 dessa tese.

Essa parte tem por objetivo abordar o período de 1992 a 1995, quando a

Somália foi alvo de três operações de paz da ONU conhecidas pelas siglas:

UNOSOM I, UNITAF e UNOSOM II. A resolução 751 do Conselho de

Segurança de março de 1992 estabeleceu a missão especial chamada UNOSOM

(United Nations Operation in Somalia) incumbida de prover ajuda na entrega e

distribuição de assistência humanitária à população vítima da fome. A resolução

794 do Conselho de Segurança da ONU de dezembro de 1992 estabelece a

UNITAF (Unified Task Force) conhecida como “Operação Restaurar a

Esperança” que, através de um envio massivo de tropas dos Estados Unidos,

estava encarregada de garantir acesso à ajuda humanitária ao povo somali.

Finalmente, em março de 1993, foi estabelecida a UNOSOM II a partir da

resolução 814 do Conselho de Segurança, a qual dispunha de um mandato mais

amplo que incluía não apenas o fornecimento de ajuda humanitária, mas também

os objetivos de desarmamento, de reconciliação política e de reconstrução do

Estado somali (ver Boutros-Ghali, 1996).

Objetiva-se, nessa parte, mostrar como os somalis e a Somália foram

discursivamente representados no momento dessas operações. Uma vez já tendo

feito o mesmo em relação aos períodos da colonização e da tutela, será possível,

nessa parte, destacar os elementos de continuidade entre tais discursos. Destarte,

portanto, será possível verificar como as “novas” operações de paz da ONU

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continuam informadas por um discurso logocêntrico evidente desde os tempos

coloniais e, nesse sentido, continuam conferindo um tratamento depreciativo à

diferença representada pelo “Outro” somali. As operações de paz da ONU, nesse

sentido, corresponderiam a apenas mais um capítulo de uma longa trajetória

ocidental de desvalorização de formas alternativas de organização política,

econômica e social, e de insistência em lidar com os “problemas” somalis a partir

de um enfoque logocêntrico, o qual é ele mesmo, constitutivo desses problemas.

Ou seja, os ditos “problemas” somalis não fazem parte de um mundo lá fora a ser

decifrado objetivamente por especialistas, mas são (re) produzidos pelos próprios

agentes externos que se propõem a “resolvê-lo”. Com isso, essa parte da tese não

tem como intenção de modo algum de negar o sofrimento humano derivado da

fome e do conflito na Somália desencadeado a partir da queda do ditador Siad

Barre, em 1991, mas, antes, mostrar que o discurso e a interpretação a partir dos

quais tais eventos vêm sendo apreendidos são cúmplices de tal sofrimento e o

retroalimentam.

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7 O Envolvimento da ONU/Estados Unidos na Somália

Antes de analisarmos o discurso das operações de paz levadas a cabo na

Somália, esse capítulo fará uma breve introdução apresentando cronologicamente

as principais fases dessas operações; o que será feito, sobretudo, a partir de

informações fornecidadas pelo Secretário-Geral da ONU de então, Boutros

Boutros-Ghali.

No item 6.1, vimos que, nos anos 80, Barre passou a se valer de uma

política cada vez mais repressiva contra os grupos opositores, organizados, em

larga medida, em linhas clânicas e que cresceram, sobretudo, após a guerra do

Ogaden.

Diante de tal quadro de abuso dos direitos humanos por parte do governo

Barre, os Estados Unidos suspenderam a assistência militar e econômica para a

Somália (Sahnoun, 2005). E, assim, pressionado internacionalmente, Barre

prometeu democratizar o país por meio de uma revisão constitucional e da

realização de eleições multipartidárias (Lauderdale; Toggia, 1999, Sahnoun,

2005). A despeito de tais promessas, Barre foi deposto por rebeldes somalis e

junto com seguidores foi expulso da capital Mogadíscio pelas forças da USC

(Congresso Nacional Somali) em janeiro de 1991 (Sahnoun, 2005; Lewis, 2002).

Em novembro desse mesmo ano, os principais líderes da USC, o general

Mohammed Farah Aidid e o empresário Ali Mahdi Mohammed, organizados em

milícias armadas, passaram a travar uma batalha pelo controle da capital

(Sahnoun, 2005; Lewis, 2002; Tripodi, 1999). Embora ambos os líderes fossem

membros de um mesmo clã, o Hawiye, eles pertenciam a diferentes subclãs.

Aidid, do subclã Habar Gidir, contestou a proclamação de Mahdi, do subclã

Abgal, como presidente da Somália, promovendo a cisão do USC de acordo com

tal clivagem clânica; o que resultou na divisão da cidade em dois campos

armados: o norte controlado pelos Abgal e o sul pelos Habar Gidir (ver Lewis,

2002). Cabe ressaltar que com a intensificação do conflito em Mogadíscio em

dezembro de 1990, a ONU fechou seus escritórios na Somália e abandonou o país

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junto com a maioria das missões diplomáticas e organizações internacionais

alegando insegurança (Boutros-Ghali, 1996; Sahnoun, 2005; Lewis, 2002)81.

O conflito, porém, se estendeu para além de Mogadíscio, causando

devastação e fome entre a população do sul da Somália (Lewis, 2002). Nesse

processo, como nos mostra Lewis (2002), quem mais sofreu foram os agricultores,

obrigados a sair das suas terras fugindo das milícias armadas. Com a produção

agrícola e pecuária devastadas, a fome se espalhou, sobretudo, pelas áreas

ribeirinhas do sul (Lewis, 2002). No começo de 1992, estima-se que,

aproximadamente, três mil pessoas estivessem morrendo de fome diariamente e

que em torno de quinhentas mil pessoas tivessem se refugiado em campos na

Etiópia, no Quênia e em Djibuti (Sahnoun, 2005:16).

A conjuntura acima foi representada pelo Secretário-Geral da ONU,

Boutros-Ghali, da seguinte forma:

Since November 1991, heavy fighting between the two factions has persisted in the capital city, Mogadiscio, with civilian-inhabited areas subjected to persistent direct fire, including from artillery and mortar units. There are also several heavily armed elements who control parts of the city, including the seaport and airport. Some have declared alliance with one or the other of the two protagonists in Mogadiscio, while others are not controlled by either of them. (…) The fighting has resulted in widespread death and destruction, forced hundreds of thousands of civilians to flee the city, caused dire need for emergency humanitarian assistance, and brought about a grave threat of widespread famine. It has also seriously impeded United Nations efforts to deliver much-needed humanitarian assistance to the affected population in and around Mogadiscio. Furthermore, the conflict has threatened instability in the Horn of Africa region and its continuation has occasioned threats to international peace and security in the area (…)” (S/23693:11-2, par. 11, apud Boutros-Ghali, 1996:123).

Apesar do quadro descrito acima, o envolvimento da ONU na Somália

começou tardiamente, já que, segundo Boutros-Ghali (1996:16): “Unfortunately,

Somalia’s crisis was occurring at roughly the same time as the break-up of the

Soviet Union and the beginning of the war in the former Yugoslavia, events which

attracted the greater part of the international community’s attention”. Assim, foi

apenas em janeiro de 1992, que o Subsecretário Geral de Assuntos Políticos, Mr.

James Jonah, foi enviado para Mogadíscio com o objetivo de negociar um cessar-

fogo para a capital bem como de assegurar o acesso para o fornecimento de ajuda 81 Em agosto de 1991, escritórios foram reabertos em Mogadíscio, mas novamente fechados em novembro desse ano quando estourou a luta entre as facções rivais da USC (Sahnoun, 2005).

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humanitária por parte das agências internacionais e organizações não-

governamentais (Boutros-Ghali, 1996).

No dia 23 de janeiro de 1992, o Conselho de Segurança da ONU adotou a

sua primeira resolução sobre a Somália (resolução 733) na qual urgia todas as

partes envolvidas no conflito a cessarem as hostilidades, promoverem a

reconciliação nacional bem como a facilitarem a entrega da ajuda humanitária

(Boutros-Ghali, 1996).

No dia 31 de janeiro, Boutros-Ghali convidou os dois líderes em conflito

para participarem de consultas em Nova York a serem realizadas durante o mês de

fevereiro com os objetivos de: explorar a melhor forma de se chegar a um cessar-

fogo e de esboçar um acordo de paz sustentável para Mogadíscio (Boutros-Ghali,

1996). Os dois líderes enviaram representantes para Nova York onde foi acordado

o envio de uma delegação de alto nível composta por representantes da ONU bem

como de três organizações: da Organização da Unidade Africana (OUA), da Liga

de Estados Árabes (LEA), e da Organização da Conferência Islâmica (OCI) para

Mogadíscio para elaborar o acordo de cessar-fogo e trabalhar na sua implantação

(Boutros-Ghali, 1996). A delegação conjunta liderada pelo enviado especial para

Somália, Mr. Jonah chegou a Mogadíscio no dia 29 de fevereiro e, no dia 3 de

março, após intensas negociações, persuadiu Mahdi e Aidid a concordarem com

um acordo de cessar-fogo por meio de um mecanismo de monitoramento das

Nações Unidas (Boutros-Ghali, 1996).

Em decorrência do acordo de cessar-fogo, estabeleceu-se uma paz, ainda

que precária, em Mogadíscio, a qual serviu de pano de fundo para a adoção da

resolução 751, de abril de 1992, que autorizou por unanimidade o estabelecimento

da UNOSOM (United Nations Operation in Somalia), posteriormente referida

como UNOSOM I, a qual tinha como propósito central o de tornar possível a

distribuição de assistência humanitária para a população civil somali (Boutros-

Ghali, 1996). Todavia, como nos mostra Boutros-Ghali (1996), a UNOSOM I foi

concebida como uma operação de peacekeeping e, nesse sentido, a força de

segurança enviada para a Somália deveria, essencialmente por meio dissuasórios,

impedir ataques armados às operações de ajuda humanitária e, caso a dissuasão

falhasse, deveria usar apenas armas de autodefesa.

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O sucesso de uma operação de peacekeeping depende, segundo Boutros-

Ghali, do consentimento de todas as partes envolvidas num dado conflito. No caso

do conflito somali, contudo, o consentimento era difícil de ser obtido e mantido, já

que as tensões em Mogadíscio entre as facções de Aidid e Mahdi foram

relacionadas a uma série de lutas de poder localizadas em outras regiões criando,

segundo o Secretário-Geral, uma reunião altamente instável e complexa de

alianças e divisões (Boutros-Ghali, 1996).

No dia 28 de abril de 1992, Boutros-Ghali apontou Mohamed Sahnoun,

diplomata argelino, como seu Representante Especial para a Somália. Sua função

seria a de coordenar todos os esforços de peacekeeping e humanitários e encorajar

as facções somalis a encontrarem uma solução pacífica para o conflito (Boutros-

Ghali, 1996). Suas prioridades ao chegar a Mogadíscio no dia 4 de maio foram as

de se encontrar com os principais líderes, organizar o rápido envio de 50

monitores de cessar-fogo desarmados, realizar consultas com os líderes das

facções em conflito sobre o envio da força de segurança proposta para proteger as

operações de ajuda em Mogadíscio bem como fazer avançar o programa de

assistência humanitária nacionalmente, particularmente no sul, região mais

afetada pela fome (Boutros-Ghali, 1996). Todas essas tarefas, contudo, se

revelaram difíceis de serem levadas a cabo na medida em que a emergência

humanitária se aprofundou e a luta entre as facções continuou ocorrendo

(Boutros-Ghali, 1996:20, par. 54).

Numa carta de novembro de 1992, Boutros-Ghali informou ao Conselho

de Segurança sobre a deterioração da situação na Somália chamando a atenção,

particularmente, para a falta de cooperação por parte de várias facções somalis, a

qual estaria impedindo a UNOSOM de cumprir o mandato que lhe foi confiado

pela resolução 751 (Boutros-Ghali, 1996). E, assim, em função da alegada

recalcitrância das principais facções na Somália em permitir a distribuição segura

de assistência humanitária, o Conselho de Segurança aprovou, em dezembro de

1992, a substituição da até então operação de peacekeeping por uma operação de

peace-enforcement, a qual seria comandada pelos Estados Unidos e teria como

objetivo o de garantir as condições de segurança para a provisão da ajuda

humanitária (Boutros-Ghali, 1996). Essa nova operação, formalmente denominada

UNITAF (Unified Task Force), mas conhecida por “Operation Restore Hope”

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(Operação Restaurar a Esperança), foi autorizada pela resolução 794 a agir sob o

capítulo VII da Carta da ONU e, daí, a recorrer a todos os meios coercitivos

considerados necessários para cumprir o seu mandato (Boutros-Ghali, 1996).

Em dezembro de 1992, as primeiras unidades da UNITAF, compostas por

marines dos Estados Unidos, desembarcaram na praia de Mogadíscio por meio de

uma ação representada por Boutros-Ghali como um “show de força” (show of

force) e, depois de assegurarem o controle sobre o porto da cidade, rapidamente,

se espalharam pelo sul e pelo centro da Somália, as quais correspondiam às áreas

mais afetadas pela fome (Boutros-Ghali, 1996). Como nos mostra Boutros-Ghali

(1996), ao sancionar a UNITAF, o objetivo principal do Conselho de Segurança

era o de lidar com a crise humanitária imediata.

Concebida como um exercício temporário de peace-enforcement, a

UNITAF entregaria a responsabilidade operacional para uma missão da ONU tão

logo o seu mandato fosse cumprido (Boutros-Ghali, 1996). Logo, uma vez que a

situação emergencial de forme foi considerada normalizada, a UNITAF foi

substituída pela UNOSOM II, a qual foi estabelecida pela resolução 814, de

março de 1993, como a primeira operação de peace-enforcement, organizada e

comandada pela ONU, explicitamente autorizada sob o capítulo VII da Carta da

ONU (ver Boutros-Ghali, 1996).

O ineditismo da operação também residiu no seu amplo mandato, o qual

visava não apenas concluir, por meio do desarmamento e da reconciliação

nacional, a tarefa iniciada pela UNITAF de restauração da lei e da ordem, mas,

também, reconstruir as instituições políticas, administrativas, policiais e judiciais

da Somália recriando um Estado com base na governança democrática (Boutros-

Ghali, 1996). Referindo-se à esse ineditismo, o representante permanente dos

Estados Unidos chamou a UNOSOM II de: “an unprecedented enterprise aimed

at nothing less than the restoration of an entire country as a proud, functioning

and viable member of the community of nations” (apud Boutros-Ghali, 1996:44,

par. 126). Nunca antes, conforme mostrado por Boutros-Ghali (1996: 45, par.

131), as Nações Unidas tinham tentado “help build governments structures from

the ground up”.

O principal passo em direção ao acordo político foi dado no dia 27 de

março de 1993 com a assinatura do “Acordo de Adis Abeba”, o qual, segundo

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Boutros-Ghali (1996:47, par. 138), marcou: “a milestone in the combined efforts

of Somalis and the international community to restore security and rebuild

political institutions on democratic foundations”. Todavia, tal Acordo nunca

chegou a ser implantado devido às crescentes tensões em Mogadíscio no primeiro

semestre de 1993. No dia 5 de junho, a UNOSOM II tentou levar a cabo uma

inspeção em cinco depósitos de armas da facção de Aidid, tanto em Mogadíscio

como em torno da capital, sendo uma delas realizada na propriedade da Rádio

Mogadíscio (Boutros-Ghali, 1996). No dia das referidas inspeções, contudo, uma

emboscada matou 24 soldados paquistaneses e feriu 56 outros soldados da

operação (Boutros-Ghali, 1996:50, par. 144). Uma investigação conduzida pelo

professor da American University, Tom Farer, concluiu que os ataques

simultâneos às tropas da UNOSOM II em diferentes partes do sul de Mogadíscio,

todas as áreas controladas pela facção de Aidid, só poderia ter sido conduzidos

por tal facção e de forma premeditada sob as ordens do general Aidid (Boutros-

Ghali, 1996). O relatório colocou: “A large and complex body of evidence leads

ineluctably to the conclusion not simply that General Aidid had the requisite

means, motive and opportunity [for the attacks], but that he had that trinity

uniquely” (S/26351, par. 15, apud Boutros-Ghali, 1996:299).

Como conseqüência desse incidente, o Conselho de Segurança condenou o

ataque de forma veemente e aprovou a resolução 837 reafirmando que o

Secretário-Geral estava autorizado, sob a resolução 814, a tomar todas as medidas

necessárias contra todos aqueles responsáveis pelos ataques armados contra o

pessoal da UNOSOM II (Boutros-Ghali, 1996). Também voltou a enfatizar a

importância crucial do desarmamento de todas as facções somalis e da

neutralização do sistema de rádio, a qual estava, de acordo com Boutros-Ghali

(1996), contribuindo para a violência contra a UNOSOM II.

Respaldadas por tal resolução, as forças da UNOSOM II iniciaram um

movimento de restauração da lei e da ordem no sul de Mogadíscio tanto

destruindo e confiscando grande quantidade de armas pesadas e munições como

desabilitando a Rádio Mogadíscio (Boutros-Ghali, 1996). O grande complicador

apontado por Boutros-Ghali (1996) para o sucesso de tais investidas foi a fato das

facções de Aidid terem recorrido a táticas de guerrilha urbana mobilizando

multidões de civis, incluindo crianças e mulheres; o que, segundo o Secretário-

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Geral, inevitavelmente fez com que as investidas da UNOSOM II tenham causado

a morte de civis somalis.

Tendo em vista que a responsabilidade pela emboscada foi atribuída ao

general Aidid, a UNOSOM II passou a persegui-lo. Admiral Howe, representante

especial da ONU na Somália ofereceu uma recompensa de 25 mil dólares pela sua

captura e os Estados Unidos disponibilizaram um contingente de Rangers e outro

do Comando Delta para tal fim. A partir de tal orientação, no dia 3 de outubro,

uma invasão das tropas dos Estados Unidos ao “Hotel Olympic”, onde

supostamente estaria ocorrendo uma reunião entre os seguidores de Aidid,

resultou na morte de 18 soldados norte-americanos e no seqüestro de Michel

Durant, piloto do helicóptero Black Hawk; enquanto do lado somali 312 morreram

(Butler, 2002, Lang, 2003). Em poucas horas, a mídia passou a exibir

mundialmente imagens dos corpos de alguns dos soldados mortos sendo

arrastados pelas ruas de Mogadíscio e, a seguir, do piloto refém com a face

contundida, coberta de sangue; as quais geraram uma reação internacional

imediata demandando a retirada das tropas norte-americanas da Somália (Butler,

2002; Debrix, 1999). Exortado pela opinião pública, o presidente Clinton

anunciou, quatro dias depois do incidente, que todas as forças dos Estados Unidos

seriam retiradas da Somália no dia 31 de março de 1994, fazendo com que uma

série de governos europeus seguisse o mesmo caminho (Lang, 2003).

Segundo Boutros-Ghali (1996), tal decisão por parte dos Estados Unidos

afetou seriamente a capacidade da UNOSOM II de levar a cabo o seu amplo

mandato. E, desse modo, a resolução 897 de 4 de fevereiro de 1994, conferiu à

UNOSOM um novo mandato menos ambicioso que já não mais a autorizava a se

engajar no desarmamento coercitivo e a se valer da força em resposta às violações

de cessar-fogo por parte das facções somalis (Boutros-Ghali, 1996).

Conseqüentemente, a UNOSOM voltava a ser uma operação tradicional de

peacekeeping; o que significa que ela poderia usar armas apenas para a

autodefesa, o que, na prática, já vinha acontecendo desde o episódio do dia 3 de

outubro (Boutros-Ghali, 1996).

Por outro lado, em decorrência do anúncio da retirada norte-americana, a

facção de Aidid declarou um cessar-fogo unilateral em Mogadíscio no dia 9 de

outubro - o que pavimentou o caminho para um esforço concertado pela ONU

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para reviver o processo de reconciliação nacional (Boutros-Ghali, 1996). Para

facilitar a reconciliação política, os funcionários da ONU negociaram com os

líderes das facções, inclusive com Aidid, assim como com outros representantes

da sociedade somali a exemplo dos anciãos e líderes religiosos (Boutros-Ghali,

1996). No final, contudo, Boutros-Ghali (1996) avaliou os esforços como

“infrutíferos” devido à resistência à cooperação por parte dos somalis, a qual teria

levado a conclusão do mandato da UNOSOM pelo Conselho de Segurança. E,

assim, alegando falta de cooperação por parte das facções somalis, a missão da

ONU se retirou da Somália em março de 1995, mas, conforme nos mostra

Boutros-Ghali (1996), manteve uma forte presença humanitária no país.

7.1 Somalia e Somalis: "Fora da Nova Ordem Mundial"

“I knew that policy was made by the written word, that texts made things happen in the realm of high diplomacy and statecraft. Writing forces concepts into life” (Boutros-Ghali, 1999:26) O objetivo, a partir daqui, será o de mostrar como a Somália e os somalis

foram produzidos pelo discurso dominante e como tal construção criou as

condições de possibilidade para as operações de paz na Somália entre 1992 e

1995, já brevemente apresentadas.

7.1.1 Somália: Um "Estado em Ruínas"

Em primeiro lugar, é importante destacar que o discurso dominante sobre a

Somália pós-Barre continuava a representá-la, do mesmo modo que vinha fazendo

desde os tempos coloniais, como uma “falta”. Subjacente ao discurso da “falta

somali”, encontram-se definições implícitas do que se entende por um Estado bem

sucedido, onde os elementos que faltavam à Somália estariam presentes de forma

abundante. Em julho de 1992, Boutros-Ghali (S/24343, par. 24 apud Boutros-

Ghali, 1996: 174, grifo meu) representou a situação da Somália da seguinte forma:

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Somalia is today a country without central, regional or local administration, and without services: no electricity, no communications, no transport, no schools and no health services. Throughout the country, there are incredible scenes of hunger, disease and dying children. (…) The absence of food is both the cause and the result of lack of security.

Segundo consta no discurso dominante, tal como mostrado acima, o

colapso do Estado somali e a guerra civil subseqüente conduziu a uma falência

generalizada de todas as instituições, serviços e infra-estrutura do país; o que

significa que o esforço de reconstrução teria de ser feito a partir das ruínas de um

país. No documento denominado: “United Nations Relief and Rehabilitation

Programme for Somalia”82, de maio de 1993 fica clara tal falência generalizada:

Somalia as a nation lies in ruins. Two years of civil war followed by factional fighting have created extensive social upheaval, massive population displacement and widespread destruction of the country’s infrastructure and services. The breakdown of law and order, coupled with the worst looting and extortion ever experienced by relief operations, has prevented relief supplies from reaching the sick and the starving (apud Boutros-Ghali, 1996:258).

Lauderdale e Toggia (1999) nos mostram que a principal referência usada

para analisar a extensão da crise somali foi sua condição de “statelessness”

avaliada pela falta de uma autoridade política central, evidente no país desde a

queda de Barre em janeiro de 1991. Na ausência de tal autoridade, a Somália era

vista como um espaço de caos e perigo, conforme consta na seguinte passagem do

artigo de Keith Richburg publicado no The Washington Post em setembro de

1992:

Just over 30 years after it officially became an independent nation, Somalia essentially has ceased to exist. The land mass on world maps that defines the horn of Africa is now a dangerous and chaotic place of clan-based warfare (…).

O editorial do The New York Times de 23 de julho de 1992, com o título

“The Hell Called Somalia”, também colocou em xeque a própria existência do

país, quando apresentou o seguinte quadro sobre a Somália: “War, drought,

collapse of civil authority: these are the malign toxins that threaten the very

existence of Somalia, a husk of a country on the Horn of Africa”. Sobre a capital,

Mogadíscio, o acadêmico Tripodi colocou (1999:46): “In the early 1990s,

82 Não emitido como um documento da ONU.

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Mogadishu was like a ghost town where there was no law, no any resemblance of

social life”.

Como conseqüência da condição somali de “statelessness”, duas imagens

foram largamente utilizadas para representar a Somália pós-Barre, a de uma

Somália “anárquica” e a de uma Somália imersa num “estado de natureza

hobbesiano”. Discursando desde a sala Oval da Casa Branca, no dia 4 de

dezembro de 1992, o presidente Bush, por exemplo, colocou: “There is no

government in Somalia. Law and order have broken down. Anarchy prevails”’83.

Nesse sentido, o colapso do Estado somali teria resultado, segundo o discurso

dominante, numa situação de anarquia entendida não apenas como ausência de

governo, mas como caos e desordem. Por outro lado, a metáfora do “estado de

natureza” também se revelou recorrente no período pós-Barre. Em outubro de

1992, num artigo publicado no The Washington Post, Charles Krauthammer disse:

Somalia has no government. It is in a Hobbesian state of nature. It desperately needs to be taken over and run by some outside power so that its suffering people can be afforded the minimal human decencies of food, medicine and personal safety.84

Tal metáfora também foi utilizada por William Durch para descrever a situação da

Somália pós-Barre: “When its narrowly based government finally toppled in early

1991, no single group had legitimate claim to power and the country collapsed

into Hobbesian anarchy” (Durch,1996: 311, grifo meu).

A imagem do “estado de natureza hobbesiano” sugere a idéia de um

ambiente natural, não domesticado, violento e, ademais, temporalmente anterior

ao Estado moderno. Como já visto na primeira parte da tese, o próprio Hobbes

colocou os ameríndios na condição de estado de natureza, isto é, na condição de

um ambiente que temporalmente precede o contrato social, o qual dá origem ao

Estado soberano. Vimos que, de acordo com Walker (2005), a narrativa

hobbesiana do contrato social dá legitimidade ao Estado moderno ao projetar os

problemas do homem em outro tempo e lugar (o estado de natureza), pensado

como a negação do protótipo do homem liberal moderno. Segundo Walker

(2005), a narrativa hobbesiana nos mostra como os indivíduos podem amadurecer.

Para tanto, faz-se necessário que eles se submetam às estruturas modernas de

83 Grifo meu. 84 Grifo meu.

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autoridade. Na ausência das mesmas, o que resta é um ambiente natural, não

domesticado. Desse modo, na medida em que a Somália é caracterizada como

inserida num “estado de natureza hobbesiano”, os somalis são deslocados da

história e, por conseqüência, desprovidos da possibilidade de vida política, já que,

na modernidade, com nos mostra Walker (1993), a prática política efetiva e

progressiva é impensável fora das fronteiras do Estado soberano. Nessa

perspectiva, o presente, o Estado moderno, se torna a norma, enquanto o passado

ou o “Outro” espaço-temporal dos Estados modernos se torna a exceção (Walker,

2005).

Tanto a noção de “anarquia” como a de “estado de natureza” sugerem uma

“ausência”, a do Estado soberano que, caso existisse, poderia vir, segundo o

discurso dominante, a corrigir a situação de destruição, de fome e de guerra que

vinha assolando a Somália desde a queda do governo Barre.

Segundo a literatura dominante sobre o colapso dos Estados africanos no

pós-Guerra Fria, a principal característica do colapso estatal, comum às diferentes

experiências do fenômeno, refere-se à perda do monopólio dos meios legítimos de

violência e na medida em que isso acontece tais sociedades já não podem ser

entendidas como “Estados” segundo a definição clássica de Max Weber (ver

Ignatieff, 2003). A perda do controle sobre os meios coercitivos é apresentada

como a principal razão da violência e da instabilidade dessas sociedades. De

acordo com o discurso dominante, os indivíduos dependem de Estados

centralizados para se sentirem seguros. Tal assertiva foi explicitamente expressa

pelo acadêmico Robert Rotberg (2002:87) quando disse: “Citizens depend on

states and central governments to secure their persons and free them from fear”.

A visão do Estado centralizado, detentor do monopólio do uso legítimo da força

se torna, de acordo com a literatura dominante, uma condição compulsória para o

fornecimento daquela que é considerada a benesse política principal, a saber: a

segurança. Em condições de “anarquia” e de “estado de natureza”, não existe

Estado e, por conseguinte, não existe segurança. Esse discurso, portanto, nos

impede de imaginar qualquer organização política séria alternativa ao Estado já

que nos condiciona a pensar que na ausência do Estado, nós sempre vamos ter

violência anárquica muitas vezes representada pelo “estado de natureza

hobbesiano”. De acordo com o discurso dominante, o colapso do Estado somali

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teria resultado no colapso de toda forma de autoridade, sem a qual a Somália

estaria condenada à anarquia perpétua. Como colocado por Keith Richburg no

artigo já mencionado de setembro de 1992: “Without some form of governmental

authority, Somalia is likely to be a perpetual ward of the international community,

living of relief and relegated to anarchy’.

No marco do discurso dominante, com o colapso do Estado somali, o

poder coercitivo, antes centralizado pelo Estado, foi pulverizado entre diferentes

atores, os quais passaram a impor o terror e a impedir a entrega da ajuda

humanitária através do país. Esses atores violentos aparecem, muitas vezes, no

discurso, como os únicos agentes a povoar uma Somália “vazia”, “destruída” e

“faminta”. Algumas passagens de Boutros-Ghali (1996) iluminam a sua

preocupação advinda dessa proliferação dos meios coercitivos numa Somália

arrasada. Abaixo aparecem três dessas citações que datam do começo de 1992:

(I) I have earlier drawn attention to the absence of any civil society and the breakdown of law and order in Mogadiscio, which has been compounded by the proliferation of arms among civilians. Banditry, looting and reckless firing have complicated all efforts to bring humanitarian assistance to the people of Somalia (…) (S/23693, par. 77, apud Boutros-Ghali, 1996: 130: 77).

(II) The situation in Somalia continues to be of great concern to the international community. There is hardly any governmental infrastructure in the country that could be relied upon. Physical infrastructure (…) is also largely non-existent. Banditry is widespread and there is wide proliferation of weapons (S/23829, par. 56, apud Boutros-Ghali, 1996:141). (III) Somalia today is a divided country, fragmented on clan and family lines, without any recognized channels for political action. The quantity of arms in the hands of individuals, factions and groups is enormous. The defeat of the Somali Army, which as a result of the cold war became, under the President Siad Barre, one of the best-equipped military machines in Africa, resulted in a vast number of arms falling into the hands of individuals, factions and groups, thus feeding the conflict as well as the bandity and looting which are taking place all over Somalia (S/24343, par. 54, apud Boutros-Ghali, 1996: 177).

As imagens acima sugerem, portanto, a idéia de uma Somália em ruínas

onde além de inexistir qualquer idéia de sociedade civil (“absence of any civil

society”)85 também inexistia qualquer estrutura governamental com a qual os

85 É interessante notar que, embora, no curso da operação da ONU, Boutros-Ghali tenha chamado a atenção diversas vezes para a “falta” de uma sociedade civil na Somália, em 1996, quando ele faz referência aos participantes da “Conferência de Adis Abeba”, ele coloca: “The Conference also

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somalis pudessem contar (“any governmental infrastructure in the country that

could be relied upon”). A Somália encontrava-se, segundo o discurso dominante,

completamente vulnerável diante de grupos armados que proliferavam no país na

esteira do colapso da autoridade política central.

Vale notar que, subjacente à construção do “fracasso somali”, reside uma

definição implícita do que seria uma Somália bem sucedida, a qual teria de ser

construída necessariamente a partir da figura do Estado soberano centralizado

capaz de prover, sobretudo, segurança aos seus cidadãos, mas, também, de prestar

serviços de modo eficiente aos mesmos bem como de alimentá-los.

A guerra civil na Somália teria gerado, de acordo com o discurso

dominante, não apenas a destruição física e institucional da Somália, mas,

também, como já mostrado, a grave ameaça da “fome generalizada” (ver por

S/23693:11-2, par. 12 apud Boutros-Ghali, 1996:123). Em julho de 1992,

Boutros-Ghali observou sobre tal ameaça:

The food situation is critical. Civil conflict has prevented agricultural activity in the normally productive areas of the south (…). The threat of widespread famine in rural areas has become a reality. Food prices are rising sharply everywhere, but most of the population have no money to buy food on the market since virtually all economic activity has been disrupted by war. (S/24343, par. 25, apud Boutros-Ghali, 1996: 174).

Articula-se nessa passagem que a falta de segurança teria gerado a falta de

comida, a qual, por sua vez, teria acirrado o problema da insegurança, resultando

num ciclo vicioso difícil de ser rompido. Segundo Boutros-Ghali (S/24343, par.

25, apud Boutros-Ghali, 1996: 174): “Breaking the vicious cycle may be the key

to resolving the complex and inextricably linked social and political problems in

Somalia”.

Diante desse espectro de ameaças interconectadas, da fome e do conflito,

as operações de paz da ONU/Estados Unidos foram representadas como

operações voltadas para a “salvação” do povo somali vitimado pelos seus próprios

compatriotas, capazes de trazer-lhes um futuro de esperança. Segundo Boutros-

Ghali (S/24343, par. 30, apud Boutros-Ghali, 174, grifo meu), diante das

condições prevalecentes em julho de 1992: “[P]eople in Somalia have begun to

included clan elders, leaders of community and women’s organizations, and other proeminent representatives of Somali civil society” (Boutros-Ghali, 1996:46, par. 132, grifo meu).

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lose any sense of hope for the future. There is thus a need not only for life-saving

interventions but also for reconstruction activities and institution-building which

would offer promise of a better future”.

De acordo com o discurso dominante, a necessidade de “salvar” o povo

somali dos seus rivais internos foi se tornando cada vez mais evidente na medida

em que a ajuda humanitária internacional se tornou alvo cada vez mais freqüente

de ataques armados e em que cresceu a percepção entre os somalis de que as

Nações Unidas estariam decididas a abandonar a política de cooperação e

“invadir” o país (Boutros-Ghali, 1996). Diante de tal cenário, no dia 21 de

novembro de 1992, o porta-voz de Boutros-Ghali, visando a dispersar tais

percepções “equivocadas”, declarou: “It is the occasion for renewed cooperation

and partnership between Somalia and the international community. Its object is to

save lives, defeat the spectre of famine and civil strife and pave the way to

political reconciliation” (apud Boutros-Ghali, 1996:207).

Para Boutros-Ghali (1996), até que a segurança não fosse restabelecida na

Somália, o esforço humanitário correria o risco permanente de reveses. E, assim, a

partir da constatação feita pelo Secretário-Geral acerca da inabilidade do

contingente das Nações Unidas de minar o poder das facções somalis86 bem como

acerca da deterioração da situação da Somália para além da necessidade de um

tratamento de peacekeeping, inicia-se a segunda etapa da operação doravante com

o envio massivo de tropas de peace-enforcent dos Estados Unidos, as quais, como

vimos, compunham a UNITAF, conhecida pela alcunha “Operação Restaurar a

Esperança” (ver Boutros-Ghali, 1996).

7.1.2 ONU: Construindo a Exceção Somali

Argumenta-se aqui que a passagem de uma operação de peacekeeping para

uma operação de peace-enforcement não foi necessária ou inevitável, tal como

Boutros-Ghali (1996) alegou em seus discursos. Embora no dia 24 de novembro

86 Gangues armadas, que, segundo Boutros-Ghali (1996: 12, par. 29), se autodenominavam “autoridades”, mas que, por vezes, não passavam de dois ou três bandidos armados, extraíam propinas no porto, no aeroporto e nas estradas da Somália, além de cobrarem por “proteção” para o pessoal e para os comboios das agências e organizações internacionais.

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de 1992, o Secretário-Geral tenha enviado uma carta para o Conselho de

Segurança destacando cinco opções para lidar com a deterioração da situação da

Somália, ele, claramente, desqualifica quatro delas e, implicitamente, reconhece a

indispensabilidade de uma delas, de enforcement, conforme mostraremos a seguir.

A primeira opção seria a de se chegar a um acordo com os líderes somalis

para o envio de 4.200 tropas autorizadas pela resolução do Conselho de Segurança

775. A partir de tal opção, a UNOSOM continuaria a ser guiada pelos princípios e

pelas práticas existentes de peacekeeping, isto é: “it would not deploy without the

agreement of the de facto authorities at each location where it was to operate and

that it would not use force except in self-defence” (S/24868, apud Boutros-Ghali,

1996:210). Todavia, conforme já dito, o Secretário-Geral chegou a conclusão que

essa opção era inviável já que: “the situation in Somalia has deteriorated beyond

the point at which it is susceptible to the peace-keeping treatment” (S/24868,

apud Boutros-Ghali, 1996:210).

A segunda opção seria a de abandonar a idéia de utilizar peacekeeping

para proteger as atividades humanitárias na Somália, retirando os elementos

militares da UNOSOM e deixando as agências humanitárias negociarem os

melhores acordos de proteção com as facções e os líderes locais. Todavia, essa

opção foi igualmente rejeitada a priori, pois, segundo Boutros-Ghali (S/24868,

apud Boutros-Ghali, 1996: 210): “[T]he difficulties being experienced in Somalia

were attributable not to the presence of international military personnel but to the

fact that not enough of them were there and that they did not have the right

mandate”.

A terceira opção seria a de promover um “show de força” em Mogadíscio

para criar as condições necessárias para a distribuição segura de ajuda humanitária

na capital. Todavia, essa opção também foi descartada pelo Secretário-Geral sob

alegação de que: [T]here are reasons to doubt whether a successful operation in

Mogadishu alone would be sufficient to persuade the factions elsewhere to

cooperate fully with UNOSOM and the relief effort (…)”” (S/24868, apud

Boutros-Ghali, 1996: 211).

A seguir, o Secretário-Geral expõe a sua opção “preferida”, a saber, a de

uma operação nacional de enforcement, autorizada pelo Conselho de Segurança e

levada a cabo por um grupo de Estados-membros (Boutros-Ghali, 1996). Como

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nos mostra Boutros-Ghali (1996), os Estados Unidos rapidamente se

prontificaram a assumir a liderança do comando dessa operação. De acordo com o

Secretário-Geral, o propósito da operação deveria ser o de resolver o problema de

segurança imediato da Somália e, para tal fim, deveria buscar desarmar todas as

gangues irregularmente armadas e transferir o controle de armas pesadas das

facções somalis para a esfera internacional (Boutros-Ghali, 1996).

A quinta e última opção era a de uma operação análoga àquela proposta

pela quarta opção, mas organizada sob o comando e o controle das Nações

Unidas. Todavia, o Secretário-Geral também a rechaçou ao reconhecer que a

ONU não teria a capacidade de comandar e de controlar uma operação de tal

tamanho, complexidade e urgência. E, assim, com base na quarta opção

apresentada por Boutros-Ghali, o Conselho de Segurança adotou a resolução 794,

a qual autorizou os Estados membros a usarem todos os meios possíveis para

estabelecer um ambiente seguro para a provisão de ajuda humanitária na Somália.

De acordo com Boutros-Ghali (1996:33, par. 91):

In Somalia, the United Nations for the first time in its history authorized a group of Member States to use military force not under United Nations command for humanitarian ends in an internal conflict, albeit one with serious ramifications for regional peace and security because of the huge influxes of Somali refugees, many of them armed, into neighbouring countries.

A utilização inédita do capítulo VII da Carta, inicialmente concebido para deter

atos de agressão contra Estados soberanos, foi possível, graças à representação da

situação da Somália como uma exceção, conforme veremos a seguir. Sem deixar

de mencionar o impacto do caso somali para a paz e a segurança internacionais,

argumenta-se nessa tese que a autorização do uso da força na Somália foi

informada pela excepcionalidade da condição de falência do Estado somali.

Argumenta-se, nesse capítulo, que Boutros-Ghali (1996) produziu a naturalidade

da transição de uma operação de peacekeeping para uma operação de peace-

enforcement mediante três construções discursivas principais, a saber: (i) a

construção da situação somali como uma situação única, sui generis,

demandando, por conseguinte, respostas excepcionais, (ii) a idéia, que é um

corolário da primeira, de que o consentimento das partes somalis não podia mais

ser requerido devido à excepcionalidade da situação de falência estatal somali e

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(iii) a construção de um inimigo interno armado e pouco confiável capaz de

sabotar qualquer missão humanitária que não contasse com o respaldo do capítulo

VII da Carta da ONU.

A singularidade da crise somali foi produzida a partir da constatação,

acima referida, da falência do Estado somali. No “100-Day Programme for

Accelerated Humanitarian Assistance for Somalia” de 06 de outubro de 1992,

Boutros-Ghali (1996:195, par.2, grifo meu) colocou:

The situation in Somalia is unique. There is no functioning government. The country’s infrastructure, administration, power and water systems, as well as communications, has been largely destroyed or has ceased to function. Clan, sub-clan and factional fighting continue. In many areas, law and order has broken down. In addition to greatly impeding relief efforts, the proliferation of weapons and gangs remains a threat to the lives of Somalis and to international relief workers.

Na resolução 794, de dezembro de 1992, que, conforme já visto, autorizou

as Nações Unidas a se valerem do capítulo VII da Carta para cumprir o seu

mandato na Somália, aparece: “Recognizing the unique character of the present

situation in Somalia and mindful of its deterioring, complex and extraordinary

nature, requering and immediate and exceptional response” (S/RES/799, apud

Boutros-Ghali, 214, grifo meu). Em março de 1993, num relatório do Secretário-

Geral propondo que o mandato da UNOSOM II cobrisse todo o país e incluísse os

poderes conferidos pelo capítulo VII da Carta, Boutros-Ghali (S/25354, par. 100,

apud Boutros-Ghali, 1996: 255, grifo meu) voltou a enfatizar o caráter único da

situação somali:

It was the uniqueness of the situation in Somalia that led to the adoption of resolution 794 (1992) by the Security Council. While the emergency operation launched by the international community in the form of UNITAF has achieved, to a considerable extent, the immediate objective of making sure humanitarian assistance reaches the needy, I must emphasize that the unique features of the situation continue to prevail. There is still no effective functioning government in the country. There is still no disciplined national armed force. As recent events have tragically demonstrated, the atmosphere of lawlessness and tension is far from being eliminated. I have repeatedly stated that my major concern has been with the existence of large amounts of armaments in the hands of factions and guerrilla bands. .

Nessa citação, fica evidente que, para Boutros-Ghali (1996), as características

únicas da situação somali não residiam na fome vivenciada por grande parte da

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população somali, mas, sim, nas condições consideradas geradoras dessa fome,

isto é, na ausência de um governo funcional e na conseqüente descentralização

dos meios coercitivos nas mãos de grupos armados que aterrorizavam um país

onde a lei e a ordem colapsaram. Nota-se também o abandono de um dos

requisitos considerados fundamentais nas clássicas operações de peacekeeping,

qual seja: o consentimento das partes em conflito sob a alegação de que, dada a

falência do Estado somali, não havia autoridade legítima capaz de expressar tal

consentimento. Como afirma Boutros-Ghali:

At present no government exists in Somalia that could request and allow such use of force. It would therefore be necessary for the Security Council to make a determination under Article 39 of the Charter that a threat to the peace exists, as a result of the Somali conflict on the entire regions, and to decide what measures should be taken to maintain international peace and security (S/24868, apud Boutros-Ghali, 1996:210, grifo meu).

Ao qualificar o Estado somali como “não-existente”87, o discurso

dominante deslegitimou as auto-proclamadas “autoridades” nacionais e, por

conseqüência, criou as condições de possibilidade para que a Somália fosse

disciplinada desde fora por meio de uma operação de peace-enforcement. Tal

ação, inclusive, passou a ser concebida como o único curso de ação possível para

uma Organização como a ONU que, conforme já visto, se apresentava como

“salvadora” dos somalis. Na medida em que os discursos dominantes apontavam

para a não-existência do Estado somali ou para, no máximo, a existência de um

“Estado em ruínas”, eles produziam a impossibilidade de se aplicar sobre os

mesmos, o princípio da soberania e, por conseqüência, da não- intervenção.

Afinal, como nos mostra Cynthia Weber (1995), quando as práticas estatais não se

encaixam no entendimento intersubjetivo do que seja o Estado, a interferência nos

seus assuntos “internos” raramente é denominada intervenção. Deste modo, ao

não dispor dos sinais identificadores de um Estado e, portanto, ao ser vista como

uma ausência, um não-Estado, as únicas alternativas que se impunham à Somália

eram, na percepção dominante, a de reconstruí-la ou de relegá-la à anarquia.

Em terceiro lugar, vale ressaltar que a ONU construiu a necessidade de

utilização do capítulo VII a partir da produção de um inimigo interno com acesso

87 Já vimos que Richburg em setembro de 1992 havia colocado que a Somália “essentially ceased to exist” e que em inúmeras declarações, Boutros-Ghali havia colocado que não existia Estado em funcionamento na Somália.

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a armas e pouco disposto a cooperar com os esforços humanitários da

Organização. Na mesma carta em que o Boutros-Ghali apresenta as cinco opções

supracitadas para o presidente do Conselho de Segurança, ele destacou que a

inabilidade da UNOSOM de ser bem sucedida no cumprimento do seu mandato se

devia principalmente:

[T]o the (…) lack of government in Somalia, to the failure of various factions to cooperate with UNOSOM, to the extortion, blackmail and robbery to which the international relief effort is subjected and to the repeated attacks on the personnel and equipment of the United Nations and other relief agencies (S/24868, apud Boutros-Ghali, 1996:209).

Para fazer frente a tais ataques, portanto, revela-se necessário, segundo

Boutros-Ghali, o recurso ao capítulo VII da Carta da ONU.

7.1.3 Estados Unidos e a Temporalização da Diferença na Intervenção na Somália

O aspecto central da UNITAF foi o fato do comando da mesma ter sido

delegado aos Estados Unidos quem, por conseguinte, também contribui

sobremaneira para a produção dos somalis, embora de uma forma não

inteiramente congruente à forma pela qual o discurso da ONU os produzia.

A percepção de que os Estados Unidos deveriam ter uma participação mais

ativa na Somália foi expressa pelo presidente Bush após o embaixador norte-

americano no Quênia, Smith Hempstone, ter lhe apresentado, em maio de 1992,

um relato dramático das condições de devastação e de fome de um campo de

refugiados somalis por ele visitado na fronteira entre o Quênia e a Somália (ver

Tripodi, 1999; Kansteiner, 1996). Todavia, foi somente a partir do final de junho

de 1992 que o alerta da fome na Somália foi acionado nos Estados Unidos uma

vez que o apuro da população somali começou a ganhar destaque na cobertura da

mídia. As reportagens da CNN (Cable News Network) chamando a atenção para a

fome nas áreas do sul e do centro da Somália foram reforçadas a partir de julho de

1992 por diversos artigos da jornalista Jane Perlez no New York Times que, desde

Boidoa, no sul agrícola da Somália, estimularam outras mídias a cobrir a mesma

estória (Kansteiner, 1996; Petterson, 2000; Sahnoun, 2005). Desde então, imagens

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de somalis imersos em carnificina e fome passaram a causar desconforto não

apenas na mídia internacional, mas, especialmente, nas audiências ocidentais.

Segundo o presidente Bush, a fome na Somália não se explicaria devido à

falta de comida no país uma vez que os Estados Unidos estariam enviando

toneladas de comida para lá. No discurso proferido no dia 4 de dezembro de 1992,

isto é, no dia seguinte à aprovação da resolução 794, o presidente Bush disse que

durante muitos meses antes de julho, os Estados Unidos estavam ativamente

engajados num esforço de ajuda internacional massiva voltado para amenizar o

sofrimento da Somália (Bush, 1992). Segundo o presidente: “[A]merica has sent

Somalia 200,000 tons of food, more than half the world total”. Todavia, continua

Bush, no verão de 1992, o sistema de distribuição colapsou, já que os comboios

que saíam dos portos da Somália estavam sendo bloqueados e, assim, impedidos

de alimentar o interior do país (Bush, 1992). Em agosto, os Estados Unidos

responderam a essa situação da seguinte forma:

In connection with the United Nations, we sent in the U.S. Air Force to help fly food to the towns. To date, American pilots have flown over 1,400 flights, delivering over 17,000 tons of food aid. And when the U.N. authorized 3,500 U.N. guards to protect the relief operation, we flew in the first of them, 500 soldiers from Pakistan (Bush, 1992).

A insuficiência dessa operação vai ser justificada por Bush a partir de argumentos

aparentemente similares àqueles usados por Boutros-Ghali para justificar a

necessidade de substituir a UNOSOM pela UNITAF. Vimos que o Secretário-

Geral se referiu a um inimigo potente capaz de obstruir qualquer esforço

humanitário promovido pelos agentes externos e, daí, para conter esse inimigo, ele

urgiu por uma operação baseada no capítulo VII da Carta.

No discurso acima, o presidente norte-americano vai se referir à situação

de deterioração da segurança nos meses que precedem ao estabelecimento da

UNITAF. Nas palavras do presidente norte-americano: “The U.N. has been

prevented from deploying its initial commitment of troops. In many cases, food

from relief flights is being looted upon landing: food convoys have been hijacked;

aid workers assaulted; ships with food have been subjected to artillery attacks

that prevented them from docking” (Bush, 1992). Bush adiciona uma estória para

representar o tom dramático da situação vivenciada pelos somalis:

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Imagine 7,000 tons of food and literally bursting out of a warehouse on a dock of Mogadishu, while Somalis starve less than a kilometre away because relief workers cannot run the gauntlet of armed gangs roving the city. Confronted with these conditions, relief groups called for outside troops to provide security so they could feed people.

E, logo a seguir, ele conclui acerca da necessidade de apoio militar para

garantir a entrega segura de alimentos para os somalis quando diz: “It’s now clear

that military support is necessary to ensure the safe delivery of the food Somalis

needs to survive” (Bush, 1992, grifo meu).

Como nos mostra Sahnoun (2005:53), o governo dos Estados Unidos

utilizou a alta porcentagem de comida roubada, dizia-se que em torno de 80%,

para justificar a “Operação Restaurar a Esperança”. Esses dados, como nos mostra

De Waal (1997:183), foram pela primeira vez apresentados numa carta de Ismat

Kittani para Boutros-Ghali, a qual seria apresentada na reunião do Conselho de

Segurança de 25 de novembro de 1992, ou seja, pouco tempo depois88 que Kittani

havia chegado a Mogadísicio para substituir Sahnoun, como Representante

Especial do Secretário-Geral. Nessa carta, Kittani não só informou que 2 milhões

de somalis estavam enfrentando fome, mas também que 70 a 80% da comida que

chegava no país estava sendo desviada (apud De Waal, 1997:183). Apesar da

origem desse dado não ser rastreável, ele foi produzido como uma “verdade” e

repetido pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, pelo Secretariado da

ONU e, poderíamos acrescentar, pela mídia internacional (ver De Waal,

1997:183). No dia 2 de dezembro de 1992, por exemplo, a jornalista Jane Perlez

reproduziu essa porcentagem no New York Times: “United Nations officials

acknowledge the possibility that 80 percent of United Nations food that has moved

through Mogadishu, the main port, has disappeared through theft, ambushes and

extortion”. Apesar de sistematicamente empregada, tal porcentagem, como

denuncia De Waal (1997:183), estava em total desacordo com aquela apresentada

por Sahnoun apenas um mês antes, em outubro, quando se estimou que em torno

de 15 a 40 por cento da ajuda estava sendo perdida. O consenso em torno dos 80

por cento foi disputado apenas por alguns poucos. Além de Sahnoun, De Waal

cita Dominique Martin, da ONG internacional “Médicos Sem Fronteiras”, quem

88 Kittani chegou a Mogadíscio no dia 8 de novembro de 1992, de acordo com Boutros-Ghali (1996:28, par. 77).

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também colocou em dúvida esses dados quando disse: “nobody could seriouly

claim that such a large proportion was not getting through” (apud De Waal,

1997:183).

Ainda que caracterizados como uma “ficção” por De Waal (1997:184), tais

dados cotribuiram para criar as condições de possibilidade para a UNITAF não

apenas porque o número de famintos decorrentes de tais roubos se revelou

intolerável, mas também porque denunciaram o poder daqueles que estavam

impedindo que a ajuda chegasse aos seus destinatários. Dado o poder atribuído a

tais grupos, só uma ação militar autorizada pelo capítulo VII da Carta da ONU se

revelaria eficaz. Por outro lado, tais dados também contribuíram para produzir a

ajuda externa como abundante de tal sorte que o problema da continuidade da

fome não pudesse ser atribuído à falta de generosidade ou às falhas operacionais

por parte dos atores internacionais. O problema se devia, de acordo com o

discurso dominante, exclusivamente, à ação de gangues armadas que eram,

conforme colocado por Bush, responsáveis pelo desperdício de enormes

quantidades de comida.

Conforme observado por Petterson (2000:44), o seguinte raciocínio se

tornou o distintivo da fome na Somália: “The problem was not always lack of

food, but the inability to get it to the hungry”. Segundo o senso comum

estabelecido sobre a situação da Somália, o problema da fome não derivava da

falta de comida, que era provida pelas agências internacionais de forma

abundante, mas do roubo de em torno de 80 por cento dessa comida que estava

sendo levado a cabo pelos próprios somalis. Tal visão, contudo, contrasta com

aquela apresentada por Sahnoun que, em 1992, criticou a burocracia da ONU por

complicar sobremaneira os esforços das agências de ajuda de alimentar os

necessitados (ver Sahnoun, 2005:18). Para Sahnoun, se a ajuda humanitária

tivesse ocorrido no nível esperado tanto por trabalhadores humanitários como

pelos somalis, ela teria contribuído para uma atmosfera propícia ao diálogo e

compromisso. Mas, segundo o Representante Especial do Secretário-Geral, pelo

fato do programa de assistência da ONU ter sido deveras limitado e lento ele se

tornou contraprodutivo, pois suscitou a luta pela comida escassamente fornecida,

introduzindo novos pontos de animosidade e de violência. Nesse sentido, para

Sahnoun, o que estava gerando o conflito não era a abundância, mas a escassez de

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comida que estava chegando aos necessitados, não devido ao fato de grande parte

do seu montante estar sendo desviado pelos somalis, mas sim devido à

incompetência da burocracia onusiana. Nas palavras de Sahnoun: “The scarcity of

food exacerbated the atmosphere of insecurity that already prevailed within the

country. Bureaucratic haggling and obstructions within the UN relief agencies

hampered efforts to feed the hungry” (Sahnoun, 2005:18).

Argumenta-se aqui que o discurso de Bush, apresentado em fragmentos

acima, simplifica a complexidade da sociedade somali, ao dividi-la entre culpados

e vítimas.89 Enquanto a origem do conflito somali não é mencionada no discurso

de Bush, as causas da reprodução e da intensificação da fome na Somália são

localizadas nas gangues armadas, as quais vinham impedindo que a ajuda

humanitária chegasse aos seus destinatários. No mesmo discurso mais adiante, o

presidente Bush (1992, grifo meu) colocou: “The outlaw elements in Somalia

must understand this is serious business”.

Quatro dias depois, numa carta dirigida ao presidente Bush, o Secretário-

Geral (Boutros-Ghali, 1996:217, grifo meu) volta a enfatizar as medidas que ele

considerava de importância crucial para garantir o sucesso da nova operação,

sendo a primeira delas: [T]he need to disarm the lawless gangs which have been

terrorizing Somalia in recent months”. Apesar da caracterização aparentemente

similar das gangues em operação na Somália pós-Barre, definidas pelos

predicativos “outlaw” e “lawless” respectivamente, não existe uma menção sequer

no documento de Bush à necessidade de desarmar tais gangues, necessidade essa

fortemente enfatizada no documento de Boutros-Ghali.

Argumenta-se nessa tese que tal silêncio se deve à idéia amplamente

veiculada na mídia norte-americana de que o problema da Somália não residiria

nas armas per se, adquiridas, sobretudo, das superpotências durante a Guerra

Fria90, mas, sim, no encontro dessas armas modernas com ódios clânicos

ancestrais. Nesse sentido, o problema desde tal visão não estaria localizado,

primordialmente, na condição estrutural de ausência de governo na Somália e na

conseqüente descentralização dos meios coercitivos, mas, sim, no caráter violento

89 Essa é a racionalidade, que segundo Jabri (2010), vem informando as operações policiais cosmopolitas. 90 Segundo Jeffrey Lefebvre (apud Lauderdale; Toggia, 1999), entre 1967 e 1976, a Somália importou 181 milhões de dólares em armas da União Soviética e, entre 1980 e 1987, comprou 500 milhões de dólares de armas dos Estados Unidos.

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da cultura clânica somali inalterável desde os tempos pré-modernos. Desse modo,

a ausência de governo seria o agravante e não a causa do conflito. E, assim, o

discurso norte-americano continuava refletindo o racismo cultural que, conforme

vimos no capítulo 5, havia informado a tutela italiana para a Somália no pós-

Segunda Guerra. Todavia, tal racismo cultural, o qual aponta para a existência de

uma cultura atrasada e, por vezes, violenta, se expressa no discurso norte-

americano em relação à situação da Somália pós-Barre por meio de inúmeros

recursos que sugerem a sua imutabilidade e intratabilidade; fazendo com que tal

discurso se aproxime da lógica do Grande Cadeia do Ser apresentada na primeira

parte da tese. A seguir, pretende-se chamar a atenção para alguns desses discursos

presentes na mídia norte-americana.

7.1.3.1 Eternizando a Fome num Tempo Pré-Moderno

A fome na Somália foi lida como derivada da guerra civil ativada depois

da queda do ditador Barre em 1991. No entanto, essa guerra foi narrada pela mídia

norte-americana como uma mera reincidência, talvez de maiores proporções, de

rivalidades advindas de uma Somália pré-moderna. E ao conferir tal tratamento

racista ao conflito, a fome foi, por conseqüência, despolitizada e eternizada junto

com conflito. Essa visão fica clara no artigo de Keith Richburg publicado no The

Washington Post em 9 de dezembro de 1992, o qual explica a fome somali da

seguinte maneira: “[I]n Somalia, clan warfare seems doubly senseless since it has

turned what was once a nation into a land of mass starvation where the economy

has collapsed and chaotic streets are ruled by marauding gunmen”. E mais

adiante, o jornalista complementa: “[T]he clan feuds help to explain why there is

a famine here in the first place, and why it will prove difficult to put the puzzle of

Somalia back together again”.

Diferentemente da fome etíope nos anos 80, a qual foi lida pelo discurso

dominante como um desastre natural (ver, por exemplo, Edkins, 2000), na

Somália existiu uma preocupação no sentido de reforçar o caráter deliberado da

fome, decorrente da guerra civil somali. Como nos mostra Hunter num artigo

publicado no The Washington Post em dezembro de 1992:

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[T]elevision is bringing into the American living room a horror that even in the late 20th century is impossible to understand –or ignore. Somalia is not primarily a natural disaster, like the draught that caused a major part of the suffering in Ethiopia a few years ago. Nor is it a civil war, like that in Cambodia in the 1970s, when choosing sides – even the side of humanity - also meant becoming mixed up in Cold War debates. (….) In Somalia, the deliberate starving of so much of a nation’s people sees to defy rational explanation (Hunter, 1992, grifo meu). A passagem acima reflete a visão predominante sobre a fome na Somália,

segundo a qual ela teria sido deliberada ou, como usualmente se coloca: “man-

made”. Nessa tese argumento que ainda que a fome na Somália tenha sido

representada como “man-made”, a leitura do conflito somali pelas lentes das

rivalidades clânicas contaminou as interpretações sobre a fome, naturalizando-a.

A seguir pretendo chamar a atenção para alguns desses discursos para,

mais adiante, iluminar os efeitos práticos dos mesmos.

O mesmo embaixador, Hempstone, quem havia alertado Bush para a

situação deplorável dos somalis quando visitou um campo de refugiados na

fronteira do Quênia, advertiu o Departamento de Estado no dia 06 de dezembro de

1992, por meio de um telegrama,91 a não iria “embrace the Somali tar baby”92.

Para Hempstone (1992), os Estados Unidos deveriam abster-se de enviar tropas e

de sofrer baixas nas mãos de “natural-born guerrillas”. Nas palavras do

embaixador (1992, grifo meu): “Somalis, as the Italians and British discovered to

their discomfiture, are natural-born guerrillas. They will mine the roads. They

will lay ambushes. They will launch hit and run attacks. They will not be able to

stop the convoys from getting through. But they will inflict--and take—

casualties”. A idéia de que os somalis seriam “guerreiros naturais” foi

reproduzida, também, pelo ativista de direitos humanos, John Drysdale, na fase

final do envolvimento da ONU na Somália, quando disse: “Somalis know all

about tactics, and are natural fighters. It is second nature to surround and

ambush effectively” (apud Petterson, 2000:77, grifo meu).

91 O telegrama foi dirigido ao subsecretário de Estado Frank Wisner. Excertos do mesmo foram publicados no U.S. News & World Report, de 06 de dezembro de 1992. 92 De acordo com o Dicionário Babylon: “The Tar-Baby is a doll made of tar and turpentine used to entrap Br'er Rabbit in the second of the Uncle Remus stories. The more that Br'er Rabbit fights the Tar-Baby, the more entangled he becomes. In modern usage, "tar baby" refers to any "sticky situation" that is only aggravated by additional contact. The only way to solve such a situation is by separation. It is considered a racist slur by many”.

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Localizando a causa do caos no comportamento inato dos Somalis, antes

do que no sistema clânico, Hempstone reproduziu o tom racista das declarações

italianas do século XIX quando disse no telegrama:

Finally, what will we leave behind when we depart? The Somali is treacherous. The Somali is a killer. The Somali is as tough as his country, and just as unforgiving. The one "beneficial" effect a major American intrusion into Somalia is likely to have may be to reunite the Somali nation: against us, the invaders, the outsiders, the kaffirs (unbelievers) who may have fed their children but also have killed their young men. ... In the old days, the Somalis raided for camels, women and slaves. Today they raid for camels, women, slaves and food.

Se, durante a tutela italiana, como vimos, os somalis deixaram de ser

representados como biologicamente e inatamente inferiores e passaram a ser

representados, sobretudo, como culturalmente atrasados, Hempstone volta a

empregar, tal como nos tempos coloniais, adjetivos pejorativos (traiçoeiros,

assassinos, agressivos) para caracterizar a natureza dos somalis. A partir dessa

naturalização do conflito, Hemsptone não prevê qualquer solução de curto-prazo

para o mesmo, mas um envolvimento indeterminado no país. Assim ele indaga

acerca do envolvimento norte-americano na Somália:

To what end? To keep tens of thousands of Somali kids from starving to death in 1993 who, in all probability, will starve to death in 1994 (unless we are prepared to remain through 1994)? Just how long are we prepared to remain in Somalia, and what are we prepared to do: Provide food, guard and distribute food, hunt guerrillas, establish a judicial system, form a police force, create an army, encourage the formation of political parties, hold free and fair multi-party elections? I have heard estimates, and I do not feel they are unreasonable, that it will take five years to get Somalia not on its feet but just on its knees. Cambodia is costing $2 billion a year. How much will Somalia cost? $10 billion?

Tendo constatado que o problema da Somália exigiria uma atuação deveras

duradoura e dispendiosa por parte dos Estados Unidos, Hempstone se posiciona a

favor da inação se valendo das duras palavras: “Leave them alone, in short, to

work out their own destiny, brutal as it may be”.

Ainda que o presidente Bush não tenha seguido o conselho de Hempstone

de deixar a Somália à sua própria sorte, ele vai optar por um envolvimento

limitado por meio do qual os Estados Unidos seriam guiados pelo propósito

humanitário mínimo de, apenas, alimentar os somalis. O objetivo era o de garantir

um ambiente seguro para a distribuição de ajuda humanitária para que o centro e o

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sul da Somália pudessem vencer a fome (Tripodi, 1999). Segundo o presidente

norte-americano declarou no discurso já citado: “Our mission has a limited

objective: To open the supply routes, to get the food moving, and to prepare the

way for a U.N. peacekeeping force to keep it moving. The operation is not open-

ended. We will not stay one day longer than is absolutely necessary”. Mais

adiante ele volta a enfatizar com outras palavras a natureza do propósito limitado

dos Estados Unidos na Somália: “To the people of Somalia I promise this: We do

not plan to dictate political outcomes. (…) We come to your country for one

reason only, to enable the starving to be fed”. Por conseguinte, a operação passa a

ser produzida como uma operação apolítica, técnica; voltada para um objetivo

único: o de alimentar a população somali a fim de “salvar vidas”.

Argumenta-se aqui que o discurso acerca da imutabilidade do conflito

somali criou as condições de possibilidade para esse envolvimento pontual por

parte dos Estados Unidos, cujo foco exclusivo era o de garantir o acesso do

faminto à comida e, daí, garantir a sua mera sobrevivência. Nesse sentido, os

Estados Unidos se propunham a lidar apenas de uma forma emergencial com os

efeitos do conflito e, não, com as causas do mesmo. Argumenta-se nessa tese que

em função da construção discursiva do conflito como enraizado na natureza da

cultura somali ou dos próprios somalis a ponto de precisar de muitas gerações

para se solucionado. Segundo Madeleine Albright colocou num artigo do New

York Times de 10 de agosto de 1993: “[P]eace cannot be made overnight. It will

take time for people who have been shooting at each other to start trusting each

other”.

A natureza emergencial da intervenção dos Estados Unidos na Somália

aparece de forma clara numa metáfora utilizada pelo presidente Clinton no seu

discurso do dia 07 de outubro de 1993, onde ele recorda os motivos iniciais da

missão do seu país na Somália. Nesse discurso, o presidente faz uma analogia

entre a ação norte-americana com uma ação de resgate de pessoas inocentes numa

casa em chamas: “In a sense, we came to Somalia to rescue innocent people in a

burning house. We’ve nearly put the fire out, but some somoldering embers

remain. If we leave them now, these embers will reignite into flames, and people

will die again”.

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Vale lembrar que, similarmente, no conflito da Bósnia, ocorrido no mesmo

ano do conflito da Somália (1992), o presidente Clinton, que sucedeu Bush,

utilizou, segundo David Campbell (1996), a estratégica retórica de eternizar o

conflito, mostrando-o como um conflito étnico derivado de ódios arraigados para

justificar a omissão por parte dos Estados Unidos. A inação foi justificada por

meio de uma estratégia temporal na medida em que, conforme Cambpell observa,

o conflito na Bósnia foi construído miticamente como uma expressão de velhas e

arraigadas animosidades étnicas, que refletiam um sentido imutável de tempo. O

conflito étnico foi eternizado e naturalizado a partir de um ato de violência

interpretativa que silenciou estórias alternativas – a exemplo de um passado de

convivência pacífica entre as etnias bem como quanto ao papel da União Soviética

e da Iugoslávia no fomento dessas rivalidades - que poderiam vir a subverter a

racionalidade construída pelos Estados Unidos para legitimar sua passividade

diante do conflito (Campbell, 1996). Portanto, esse determinismo histórico criou

as condições de possibilidade para a omissão por parte dos Estados Unidos, pois,

afinal, vis-à-vis um conflito intratável não haveria outro caminho a não ser ignorá-

lo, tal qual a proposta de Hempstone no caso somali.

Sugiro aqui, que o discurso acerca da continuidade ou da imutabilidade do

conflito somali criou as condições de possibilidade para a tamanha hesitação por

parte da Administração Bush de se envolver no mesmo, pois como Robin Wright

(1993) colocou no artigo do Los Angeles Times já citado93: “most analystis agree

that there is virtually no chance that mediators can end the clan rivalries that date

back to the nomadic origins of the clan themselves”. Segundo o acadêmico Paul

Diehl, a visão popular entre os diplomatas internacionais na Somália era que o

conflito ainda não era maduro de solução ou que: “[T]he Somalis (...) .just hadn’t

grown adequately weary of war yet and perhaps needed a decade or two (...)

before they were ready to sit at the negotiating table in good faith” (Diehl,

1994:57).

Nesse quadro, o desafio de reconstrução de Estado foi deixado para a

UNOSOM II que substituiu a UNITAF por meio da resolução 814 de março de

1993. Como nos mostra Tripodi (1999), a posição de Boutros-Ghali divergiu da

posição de Bush desde o início, já que o Secretário-Geral insistiu na necessidade

93 Citado anteriormente no início do item 4.4.2.

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de uma força internacional voltada para a tarefa de desarmar as facções somalis e

de promover o “nation-building”. Todavia, tais demandas não foram acolhidas

pelo Secretário de Defesa, Dick Cheney, para quem o desarmamento ativo não

deveria ser parte da UNITAF (Tripodi, 1999). Como veremos mais adiante, no

capitulo 8, essa disputa de visões entre os Estados Unidos e a ONU foi o que

permitiu que os primeiros tivessem considerado a operação um sucesso, já que,

segundo o discurso dominante sobre a UNITAF, ela conseguiu, de fato, “vencer”

a fome somali.

Voltamos então ao argumento aqui elaborado de que o desarmamento não

foi perseguido pelos Estados Unidos justamente devido à crença discursivamente

construída de que a militarização do país durante a Guerra Fria não era um

problema em si, já que o que explicava o conflito somali era o fato das armas

modernas terem caídos nas mãos de somalis movidos por animosidades

ancestrais. De acordo com a antropóloga Besteman (1999:4), o discurso

dominante representa o conflito somali como dando continuidade à: “Stone Age

ancestral clan rivalries, but with Star Wars military technology”. Scott Petterson,

jornalista do jornal London’s Daily Telegraph apresenta uma visão informada por

tal lógica no livro “Me Against My Brother. At War in Somalia, Sudan, and

Rwanda. A Journalist Reports from the battlefields of Africa” quando diz:

I wanted to understand ‘these people’ – these ancient nomadic warriors and peacemakers – who were thrown by default into a new era in which the measured calculus of killing with a spear had been displaced by weapons of much greater efficiency. This dangerous cocktail was, curiously, both ancient and modern and it mixed medieval demands for vengeance with today’s disturbing ability to thoughtlessly kill vast numbers of people. This disease is not limited to Somalia. Several African states (…) have been similarly driven to battle for ethnic or tribal differences. In Africa it has always been so, but has proved all the more potent when destructive firepower is easier to find than food and when government disappears or is complicit (Petterson, 2000:6-7). Conforme a narrativa de Petterson, portanto, foi esse “coquetel perigoso”

formado pela mistura de demandas medievais por vingança com armas modernas

e eficientes que gerou a “doença” somali. Mais adiante, Petterson (2000:7) volta a

expressar a mesma lógica quando diz: “It was the efficient modern methods of

taking life –in such hard-worn and pitiless hands –that complicated the equation.

Because Somalis are (…) as hard as their country”.

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Krauthammer, em dezembro de 1992, também expressa essa idéia quando

declara num artigo do The Washington Post: “The United States and the Soviet

Union shipped M-16s and AK-47s to every corner of the Earth. Yet only in

Somalia have the guns been used for cruelty beyond barbarism: stealing food

from the mouths of starving children”. Outro artigo publicado no mesmo jornal

um ano depois por John Burgess (1993) expressa uma visão coincidente quando

coloca: “ancient clan enmity, pursued with modern weapons that are so abundant

in Somalia, is at the root of the country’s conflict”.

É interessante notar que a visão exposta acima - de que as armas modernas

teriam apenas acentuado um conflito derivado de ódios ancestrais- já se

encontrava embrionariamente presente nos prognósticos feitos pelo explorador

inglês Richard Burton sobre os somalis: “At present, a man armed with a revolver

would be a terror to the country; the day, however will come when the matchlock

will supersede the assegai, and then the harmless spearman is his strong

mountains will become (…) a formidable foe” (Burton, 1984:88).

Assim, ora destacando a natureza violenta dos somalis ora destacando o

caráter violento da cultura clânica somali, argumenta-se que o discurso dominante

nos Estados Unidos atribuía ao conflito uma dimensão meramente endógena, isto

é, sem qualquer conexão com o colonialismo e com o Estado pós-colonial

vivenciados pela Somália. E, ao fazê-lo, relacionavam o conflito a um passado

pré-moderno, temporalizando a violência, a qual passava a ser vista como símbolo

do atraso da sociedade somali.

Besteman (1996) argumenta que por meio do discurso dominante, a

Somália apenas simulou ser um Estado quando, de fato, permaneceu tribal. Daí,

segundo Besteman (1996), se imaginou a Somália retornando desde um pseudo-

Estado para uma organização social baseada em laços de parentesco. Tal visão é

claramente colocada, por exemplo, no artigo já citado de Richburg do The

Washington Post, de setembro 1992, segundo o qual: “As rebels opposing Barre

closed in on the capital, the artificial Somali state unravelled, and Somalis were

left in essentially their pre-colonial condition -a collection of regionally based

clans, newly laden with modern arms”.

E, assim, o discurso dominante retratava o conflito somali como derivado

de rivalidades pré-coloniais que voltaram a explodir no cenário do pós-Guerra

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Fria (ver Besteman, 1996). Em conformidade com tal visão, as notícias sobre o

conflito somali enfatizavam a idéia de que após a queda de Barre o que de fato

sucedeu foi o reaparecimento das velhas rivalidades clânicas, congeladas no

tempo. No rastro da queda de Barre, Scott Petterson (2000:15) observou: “The

power vacuum was readily filled by the ferocious ghosts of Somali warriors past”.

Essa visão também foi compartilhada, por exemplo, por Sophronia Gregory que

escrevendo no Time Magazine em dezembro de 1992 argumentou que: “[A]

divisiveness has infected them [the Somalis] since ancient times, when rival

groups laid claim to the same wells and grazing lands”. Também em dezembro

de 1992, mas no Chicago Tribune, Liz Sly temporaliza o conflito, todavia,

localizando-o não no passado da própria Somália, mas, curiosamente, no passado

europeu, já que a jornalista argumenta que a Somália estaria regressando à “Idade

Média”. Sly, portanto, se vale de uma referência temporal européia para julgar a

condição da Somália no final de 1992 ao dizer: Segundo Sly: “Within days, Siad

Barre fell and Somalia began its long and bloody decline into a state of anarchy

unprecedented in recent history. Over the next two years, vicious clan fighting

reduced downtown Mogadishu to rubble and plunged the city back into the

Middle Ages”94.

As visões apresentadas na mídia e acima expostas foram corroboradas por

Ioan M. Lewis (2002:263), um dos mais conhecidos acadêmicos sobre a Somália,

quando ele descreveu a situação da Somália no momento pós-Barre por meio de

uma analogia com a situação do século XIX, conforme consta abaixo:

The general situation now vividly recalls the descriptions of Burton and other nineteenth-century European explorers: a land of clan …republics where the would-be traveller needs to secure the protection of each group whose territory he seeks to traverse.

Lewis (2002), contudo, reconhece que a intensidade da “limpeza clânica”, termo

usado, segundo Lewis, pelos próprios somalis, nunca havia sido vista antes. O

problema da abordagem de Lewis é que, para ele, existe apenas uma diferença de

grau ou de intensidade e não de espécie entre as rivalidades pré-coloniais e as que

assolaram a Somália no pós-Guerra Fria. Nas palavras de Lewis (2002:263):

94 Grifo meu.

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The only substantial difference, now, was that the volatile relations between these clan units across the whole country had been raised to fever pitch by the experience of Darod [Siad Barre`s clan] (...) hegemony and oppression, and the bitter fighting which, with modern weapons, wrought death and destruction on an unprecedented scale.

Contudo, por mais que nos fale na citação acima de uma “diferença

substantiva”, Lewis (2002) não concebe uma diferença ontológica entre os

conflitos do passado e do presente, mas unicamente uma diferença em termos de

intensidade, já que, para ele, no momento da guerra civil somali as rivalidades

clânicas estariam apenas se expressando de modo mais destrutivo e mortal. Essa

mesma visão é também expressa pelo jornalista Petterson que afirma que: “The

warlords simply extended traditional clashes among nomads over grazing and

water rights to a more destructive level” (Petterson, 2000:25)

A representação do conflito somali como um conflito pré-moderno, por

sua vez, criou as condições de possibilidade para o seu entendimento como

intratável e, conseqüentemente, para a atitude distante dos Estados Unidos em

relação ao mesmo bem como para a sua retirada prematura do conflito. Afinal,

como já visto, no dia 11 de outubro de 1993, ou seja, pouco depois do incidente

dos soldados norte-americanos arrastados pelas ruas de Mogadíscio - estopim para

a retirada dos Estados Unidos do conflito -, o jornalista Wright argumentou sobre

a impossibilidade de se resolver um conflito que tem suas origens no sistema

clânico. A culpa pelo conflito somali acabou sendo atribuída, portanto,

unicamente a fatores endógenos relacionados ao atraso do modo de vida somali e,

mais especificamente, a facções e líderes hostis que por estarem embebidos nessa

cultura violenta são tidos como resistentes aos múltiplos esforços de paz

intentados pelos agentes externos.

Usualmente entendido como um conflito com causas meramente

endógenas, diversos artigos se referem ao mesmo como um “suicídio nacional”

(ver, por exemplo, Editorial Desk, The New York Times, fevereiro, 1992). Tal

visão foi, em grande medida, introduzida por Jane Perlez que, num artigo para o

The New York Times em 29 de dezembro de 1991, definiu a guerra civil em

Mogadíscio do seguinte modo: “Far more than a month now, Mogadishu (...) has

been enveloped in a mad swirl of self-genocide”95.

95 Grifo meu.

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A imagem do suicídio, por sua vez, nos sugere uma forma de violência

irracional e antinatural, tendo em vista que ações suicidas ou, como chamadas por

Perlez, “autogenocidas”, entram em contradição com a lógica do contrato social

hobbesiano internalizada nos Estados ocidentais, segundo a qual, os indivíduos se

submetem ao Estado em função do medo que sentem da morte violenta e

inesperada, motivação aparentemente ausente entre os somalis. Nesse sentido,

argumenta-se que tais ações suicidas são deslocadas para o espectro da

anormalidade, não sendo passíveis de explicação e entendimento racionais. Tão

logo o governo de Barre foi deposto, um artigo na Time Magazine descrevia o

conflito da seguinte maneira:

The rebel factions have no political program; the only principle that unites them is their hatred of Siad Barre and their determination to oust him. Their organizations are completely clan-based and are divided by hundreds of years of intramural fighting. With no restraining influences from abroad and the superpowers attending to other concerns, Somalia’s future is likely to be sadly similar to its bloody past (Nelan et al., 1991).

De acordo com tal artigo, portanto, as facções somalis que depuseram

Barre careciam de programa político e, no rastro de tal deposição, estavam

destinadas a, apenas, dar seguimento a séculos de lutas clânicas; fazendo do

presente uma mera reprise de um “passado sangrento”. Em outubro de 1992,

Richburg definiu, no The Washington Post, o conflito na Somália de forma

similar: “a dirty little war with no borders, no real armies and no particular

meaning behind the chaos”.

O argumento que se procura elabora nessa tese é que a leitura dominante

do conflito, a qual o representa como “sem sentido”96 e “suicida”, o despolitiza.

Defende-se também que a atribuição de irracionalidade ao “Outro”, por sua vez,

ajuda a construir a “racionalidade” dos atores externos representados como

salvadores e como condutores de ordem e organização para uma sociedade

desestruturada e descontrolada.

Se até aqui nos concentramos nos ditos “culpados” do conflito somali,

identificados em figuras ou bandos ligados à irracionalidade e ao atraso do

sistema clânico somali, a partir de agora voltaremos nossa atenção para as

96 Essa visão de um conflito “senseless” também aparece na carta dirigida por Boutros-Ghali para o representante dos Estados Unidos, Bill Emerson (ver S/24480, apud Boutros-Ghali, 1996:183).

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“vítimas”, ou seja, para aqueles que deveriam ser salvos ou socorridos das “hordas

de bárbaros” que dominavam a Somália.

7.1.4 Salvando o futuro da Nação: As Crianças Somalis

“Famines seem anachronist. They appear to belong to an era more primitive and less technologically advance than ours” (Jenny Edkins, 2000:vx) “We had come here to do a job, dispatched by our government to stem the rampant corruption that was bleeding Somalia dry and decimating its people. Already a famine of Old Testament proportions had swept the country, starving more than 300.000 Somalis to death”. (Michel Durant, 2004:20, grifo meu)

Conforme visto no item anterior, a Somália foi representada pelo discurso

dominante como uma nação destruída e impotente face ao poder de gangues

armadas. E, assim, para além dos elementos violentos da sociedade somali, o resto

da sociedade foi produzido pelo discurso dominante como uma massa amorfa,

faminta, vulnerável, desprotegida e impotente, a qual necessitava ser resgatada

pelos agentes externos. Tal representação foi construída tanto por meio de

discursos como de imagens, as quais identificam as vítimas predominantemente

na figura das crianças e das mulheres, e os agentes da violência na figura de

jovens ou de homens armados.

No discurso de Bush de 04 de dezembro de 1992, por exemplo, ele diz:

“The people of Somalia, especially the children, need our help. We’re able to ease

their suffering. We must help them live. We must give them hope. America must

act”97. O envolvimento dos Estados Unidos na Somália é representado por Bush,

portanto, como um dever moral voltado para oferecer esperança às crianças

somalis. Mais adiante ele volta a enfatizar o foco da operação nas crianças

somalis: “When we see Somalia’s children starving, all of America hurts”. Ao

criticar o aparato midiático montado para a chegada das forças de marines norte-

americanos na praia de Mogadíscio no dia 9 de dezembro de 1992, o político

francês, Alain Juppé expressou uma visão similar acerca do propósito da

operação: “I thought we were down there to save children who were dying of

97 Grifo meu.

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hunger. But if it is to organize a gigantic media show, I don’t think it’s right”

(apud Riding, 1992, grifo meu).

A idéia de que a operação na Somália se destinava a “salvar crianças” era

igualmente produzida por imagens comoventes que invadiam, conforme colocado

por Bush, o lar dos norte-americanos98. As imagens chocantes as quais Bush se

refere representavam a fome somali sobretudo na face de crianças mortas e

esquálidas. Conforme consta no artigo do New York Times de 07 de outubro de

1993, o envolvimento dos Estados Unidos na Somália começou com a exibição de

fotos de crianças morrendo de fome: “news footage of children, skeletons with

black-hole eyes, starving in the villages of Somalia, dying and being buried where

they had fallen because there were so many dead” (Quindlen, 1993).

Argumenta-se nessa tese, portanto, que as fotos, assim como os discursos

veiculados por jornalistas, políticos e acadêmicos também participaram da

construção discursiva do sujeito sobre o qual a UNITAF atuou. Conforme

veremos a seguir, a partir das três fotos selecionadas, esses sujeitos foram

construídos como “vítimas”, “vulneráveis” e “a mercê de gangues armadas” que

os aterrorizavam.

As duas primeiras imagens são da coleção do fotógrafo norte-americano

James Nachtwey sobre a fome na Somália em 1992, denominada “Inferno”, e a

terceira, também do ano de 1992, do fotógrafo francês Joel Robine, da Agência

France-Press. Na primeira foto, vemos a imagem de uma mãe levantando o filho

morto do chão num terreno vazio, descampado e árido. A imagem em questão

sugere uma Somália seca, estéril, incapaz de alimentar e oferecer esperança para

os seus filhos. Uma mãe, que assim como a nação deveria conferir proteção aos

seus, se revela impotente e sozinha diante do filho morto num ambiente

caracterizado por uma imensidão inóspita. Aqui há claramente uma perspectiva de

gênero na qual a nação, a mãe e a criança são substantivos femininos que

representam o que deve ser protegido99.

A foto seguinte nos oferece uma clara representação iconográfica dessa

realidade simplificada construída pelo discurso dominante, a saber, a idéia de um

adulto violento, portando uma arma, que cruza o caminho, se interpondo entre a

casa que protege e a criança morta, desprotegida e despida. A legenda da foto diz: 98 Ver, por exemplo, citação III do item 4.4.2. 99 Essa idéia foi sugerida por Maira Gomes.

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“Child starved by famine, a man-made weapon of mass extermination”100 nos

oferece com clareza a idéia já apresentada da vítima representada na figura da

criança e do vilão representado na figura do adulto armado que, como nos diz a

legenda, seria o responsável por um “extermínio em massa”.

A terceira foto, contudo, nos mostra a esperança garantida pelas forças

externas que, segundo o discurso dominante, seriam as únicas capazes de salvar a

Somália de si mesma, já que, conforme vimos, nem as mães, nem a nação,

símbolo da proteção e do conforto, teriam condições de fazê-lo. Assim, na terceira

foto, um garoto somali corre na direção de um comboio de ajuda, protegido por

um legionário francês, que havia acabado de chegar perto de Baidoa, o epicentro

da fome.101

100 Disponível em: http://www.jamesnachtwey.com/ 101 Informação disponível no site: http://www.archive.worldpressphoto.org/search/layout/result/indeling/detailwpp/form/wpp/start/3/q/ishoofdafbeelding/true/trefwoord/year/1992

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As imagens de fome da Somália tendem a se focar no sofrimento das

mulheres e das crianças. As mulheres são representadas como impotentes diante

do sofrimento e da morte dos seus filhos, os quais, para sobreviverem, precisam

ser salvos pelas agências e organizações internacionais. Por outro lado, as

crianças, emblema da esperança de uma nação, nos são apresentadas, por meio de

tais imagens, como sofredoras, fracas, esquálidas, desnudas e mortas.

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Durante os anos de fome na Somália, essas imagens que representavam

uma parte da Somália, sobretudo, mulheres e crianças em situações de sofrimento

e agonia, passaram a representar a Somália na sua totalidade. E, assim, a nação

somali (o todo) foi construída, por analogia às suas partes, iconograficamente

representadas, na sua maior parte, por crianças, como uma nação sofredora,

moribunda e desesperançada, conforme consta nas passagens selecionadas abaixo.

Num discurso de 06 de setembro de 1992, por exemplo, o presidente do

Subcomitê de África, do Comitê de Relações Exteriores da Câmara dos

Representantes dos Estados Unidos, Mervyn M. Dymally (U.S.G.P.O., 1993:2,

grifo meu) se manifestou a favor de uma participação mais ativa do seu país na

Somália com base no seguinte chamado: “We cannot content ourselves by just

doing what we feel is our share while the entire country perishes”. E quase no

final do discurso ele volta a enfatizar: “I also think that American private

voluntary agencies who had to leave when the civil war broke out should return to

Somalia and help nurse that broken nation back to life”. Numa fala do

Secretário-Geral da ONU (UN Press Release SG/SM/4874, apud Boutros-Ghali,

1996:218, grifo meu) para o povo somali no dia 08 de dezembro de 1992, ele

coloca, novamente ressaltando a natureza singular da crise somali:

The people of the world have been deeply moved by the unique and desperate situation in Somalia. The world refuses to accept your suffering and death. An end to hopelessness and despair is possible. (…). The United Nations intends to restore the hope of the Somali people. The unified military command which is arriving in Somalia under the United Nations mandate comes to feed the starving, protect the defenceless and prepare the way for political, economic and social reconstruction. (…) Together we can restore peace to your suffering land. Nesse sentido, fica claro que o discurso dominante nesse momento

estabelecia uma clivagem na sociedade somali entre os culpados pelo conflito e

pela fome e as suas vítimas inertes e passivas. Os predicativos atribuídos às

vítimas, tais como: sofredoras e à beira da morte são, por sua vez, estendidos à

nação que, assim como suas vítimas, se torna sofredora e agonizante. Através de

tal artifício, a nação passa a se igualar à vítima, e por conseqüência, à criança

faminta e sem defesa. Esse processo, aqui chamado de “infantilização da nação”,

por sua vez, criou as condições de possibilidade para a UNITAF que, conforme já

visto, tinha como propósito declarado o de “salvar” e “proteger” vidas. Esse

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processo de “infantilização da nação”, por sua vez, produziu uma distância

temporal entre os agentes externos (salvadores) e os somalis (crianças)

autorizando uma operação levada a cabo em nome, como já visto, da “restauração

da esperança” e da garantia de um futuro para crianças à beira da morte.

As vítimas representadas, sobretudo, na figura de crianças indefesas

requerem proteção para sobreviverem. Segundo Edkins (2000:39-40): “What

modernity’s picture of famine produces is bare life, a life that is mere existence

with no political voice and no particular way of life”. Desse modo, as imagens

modernas da fome não nos dizem sobre a sobrevivência de um modo de vida

particular, mas do que Giorgio Agamben (2010) denominou “vida nua” (bare

life), ou seja, a vida reduzida a uma mera existência biológica e não a um modo

particular de vida, capaz de resistência. O objeto da política deixa de ser, portanto,

a promoção de uma vida politicamente qualificada, como o era para Aristóteles, e

passa a ser, doravante, a vida per se, como mera oposição à morte (ver Agamben,

2010).

Agamben (2010) nos mostra que Foucault, ao final de “Vontade de Saber”

(1976) resume o processo através do qual, nos limiares da Idade Moderna, a vida

natural, “nua”, começa a ser incluída nos mecanismos e cálculos do poder estatal

transformando a política em biopolítica. Segundo Foucault (apud Agamben,

2010:11): “Por milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um

animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é

um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente”.

Na sua aula de 17 de março de 1976 no Collège de France, Foucault

(2005c) argumenta que logo depois de uma primeira tomada de poder sobre o

corpo através do modo de individuação, temos, no fim do século XVIII e no

século XIX, uma segunda tomada de poder massificante chamada “biopolítica”. O

campo de intervenção da biopolítica passa a ser não o corpo individual, mas, sim,

a vida da população. O biopoder intervém para aumentar a vida da população e

controlar seus acidentes, tentando alcançar estados globais de equilíbrio e de

regularidade. Nas palavras de Foucault:

[A] nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem aos corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios

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da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. (Foucault, 2005c: 289)

Se de acordo com a lógica clássica da soberania um dos atributos

fundamentais do soberano era o de fazer morrer agora, com a emergência da

biopolítica, o poder soberano se preocupava com o fazer viver (ver Foucault,

2005c). Nesse sentido, como nos mostra Edkins (2000), a política se despolitiza,

já que passa a zelar pela preservação da vida enquanto tal e não pela continuação

de uma forma específica de vida. Nesse processo de valorização da “vida nua”, a

morte só recebe atenção sob a forma estatística das taxas de mortalidade, as quais

afetam a população como um todo, campo de intervenção do biopoder (ver

Foucault, 2005c).

Para Edkins (2000) e Hendrie (1997), as ocorrências de fome na

modernidade nos são apresentadas como episódios de “mortalidade em massa”

nos quais milhares de pessoas perdem suas vidas por falta de comida. A gravidade

das ocorrências de fome é medida por meio das taxas de mortalidade de um

agregado de indivíduos diagnosticados por profissionais médicos, as quais são

comparadas com os padrões de normalidade estabelecidos (Hendrie, 1997). Tais

taxas, por sua vez, são causalmente relacionadas à diminuição da oferta de comida

(Hendrie, 1997). Logo, os episódios de fome são tratados como disfunções

técnicas ou como alterações, quantitativamente verificadas, do estado geral das

populações afetadas (ver Hendrie, 1997). Os programas de ajuda destinam-se a

salvar o máximo possível de vidas de forma a obter uma redução das taxas de

mortalidade (Hendrie, 1997; Edkins, 2000). Nesse raciocínio, a ajuda humanitária

se volta para o fornecimento de comida e dos meios necessários para a garantia da

“vida nua” e não a continuação de uma forma particular de vida.

Edkins (2000) nos mostra que a fome nem sempre foi tratada da forma

apresentada acima. Nos marcos da visão não moderna, a fome era entendida como

derivada de catástrofes sociais. No contexto não moderno, os esforços principais

se dirigiam não para evitar a fome ou para minimizar o número absoluto de

mortes, mas sim para preservar os recursos necessários para regenerar uma

determinada comunidade e garantir a sobrevivência de uma forma particular de

vida (Edkins, 2000). Conseqüentemente, mesmo reconhecendo a angústia gerada

pela morte de crianças, a sobrevivência dos adultos em idade reprodutiva era

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considerada prioritária tendo em vista a importância dos mesmos para a

sobrevivência da comunidade (Edkins, 2000). A vida, objeto de preocupação

política, era, portanto, uma vida qualificada e não simplesmente a vida biológica.

Já na modernidade, como nos mostra Edkins (2000), as grandes fomes são aquelas

que ocasionam grande número de mortes. A partir de tal visão, prossegue a autora,

crianças e bebês são priorizados vis-à-vis os adultos e a sobrevivência dos

mesmos em orfanatos ou em campos de refugiados passa a ser entendida como

uma solução e não como uma falência dos programas de ajuda tendo em vista que

a ajuda está direcionada para preservar a vida do organismo biológico antes do

que para restaurar os meios de vida da comunidade.

Sugere-se nessa tese que a valorização da vida das crianças assume uma

importância crucial nas operações de ajuda humanitária não apenas devido à

grande incidência de mortes entre elas, mas, também, devido ao fato de que a

criança simboliza a tabula rasa, o terreno ainda não inscrito pela cultura clânica

somali. Ao simbolizar o novo, o começo, a criança inspira esperança num futuro

melhor, já que, mesmo o jovem, tão enfatizado pelos discursos dominantes como

os autores dos saques de alimentos e, por conseqüência, como reprodutores da

fome somali, já se encontraria corrompido. Nesse sentido, a esperança da nação

somali não recairia em absoluto sobre o jovem, mas sobre a criança, e necessitaria

de várias gerações ou, nos termos do discurso dominante, de um investimento de

longo prazo, para ser, de fato, restabelecida.

A associação do jovem com a violência aparece abusivamente no discurso

sobre a perpetuação da violência na Somália. Num artigo do The Washington

Post, Jim Hoagland (1992, grifo meu) observa que o pesado aparato militar da

UNITAF estava voltado para: “[T]o chase teenage gunmen away from relief

workers in Somalia”. Nesse mesmo sentido, Dymally (U.S.G.P.O., 1993:2, grifo

meu), identificou os seguintes culpados pela obstrução do trabalho das agências

de ajuda voltadas para salvar uma nação em agonia: “Undisciplined youths, in the

name of warring factions, prey on the starving populace or steal from the relief

agencies there to help save a dying nation”102. Já na fase final da operação, uma

reportagem da Newsweek relativa ao ataque norte-americano ao grupo de Aidid no

102 A frase de Dymally reflete a contradição presente no discurso dominante sobre tais jovens ora descritos como “indisciplinados” ora descritos como “seguidores” das ordens das facções em guerra na Somália

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Hotel Olympic, ofereceu a seguinte representação sobre um dos momentos desse

episódio: “Hours after the fighting ends (...) a trembling young teenager with a

long knife in his hand screamed ‘are you American? We will kill all Americans”

(apud Butler, 2002:8). Na medida em que tais jovens são vistos, em grande

medida, como bárbaros e irrecuperáveis, eles são excluídos do objetivo anunciado

pelos Estados Unidos e pela ONU de garantir um futuro de esperança para a

Somália. O futuro, como já foi dito, só poderia pertencer às crianças ainda não

contaminadas pela corrupção que, segundo o discurso dominante, afligia a

Somália de então.

Vimos que a operação dos Estados Unidos foi destinada apenas a “salvar”

a vida dos somalis, devolvendo-lhes a esperança, mas, sem pretender envidar

esforços pela preservação dos seus modos de vida. Tal limitação se fez possível

em razão do discurso dominante, o qual qualificou o modo de vida somali ora

como não mais existente, já que o país encontrava-se em ruínas, ora como não

desejável devido à conexão já ressaltada entre o sistema clânico somali e a

violência em curso na Somália desde a queda de Barre. Se o conflito era intratável

e cíclico, pois resultante da cultura imutável dos somalis, então o futuro estaria

indefinidamente comprometido até que tais traços culturais não fossem

eliminados.

Para Duffield (2001), mesmo que a destruição derivada dos conflitos do

pós-Guerra Fria seja deplorada, seus efeitos mais amplos nem sempre são

considerados negativos, já que a violência pode, segundo o entendimento

dominante, erodir a coesão das tradições, costumes e cultura de uma sociedade.

De acordo com Duffield (2001:123):

Given that a radicalised development now seeks to transform societies as a whole including the beliefs and attitudes of the people concerned, this Hobbesian outcome of violence has a certain utility. In ideological terms, it makes the process of transition easier. While the rolling back of development and the deepening of poverty provide the urgency to intervene, the destruction of culture furnishes the opportunity for aid agencies to establish new and replacement forms of collective identity and social organisation. .

Duffield (2001) nos mostra que o entendimento dominante sobre os

conflitos é de que os mesmos têm efeitos hobbesianos sobre as relações sociais e

culturais. Todavia, tais efeitos são, curiosamente, bem vistos, já que criariam

oportunidades para o objetivo, perseguido pelas agências de desenvolvimento, na

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fase de reconstrução de Estados, de radical reestruturação dessas sociedades; o

que demandaria a completa eliminação das velhas identidades culturais e sociais

(ver Duffield, 2001). Citado por Duffield (2001:122), o ex-economista chefe do

Banco Mundial, Joseph Stiglitz, por exemplo, argumentou que a persistência de

formas tradicionais de costume e prática constitui um entrave na busca por um

novo paradigma de desenvolvimento visando a modificar sociedades inteiras.

Conforme observado por Young (1995) são as velhas lealdades e obrigações

comunitárias que as agências externas voltadas para a promoção da governança e

do desenvolvimento visam a remover. Por conseguinte, as guerras que levam ao

caos as sociedades em conflito, ainda que lastimáveis, são, conforme Duffield

(2001), percebidas como oportunidades para o desenvolvimento.

Todavia, vale ressaltar, Duffield (2001) se mostra cético em relação a tal

entendimento hobbesiano do conflito e nos oferece uma perspectiva histórica

como um corretivo para tal entendimento. Segundo o autor, se o conflito violento

de fato tem tal efeito, vislumbrado por muitas agências de desenvolvimento,

depois de séculos de tumulto na Europa todos deveriam ser um vazio cultural.

Diferentemente da abordagem dominante, Duffield (2001) argumenta em prol da

necessidade de examinarmos os conflitos em termos mais inovadores, isto é,

averiguando a possibilidade de que a violência possa ser um meio pelo qual as

formas culturais são mantidas, modificadas ou expandidas.

7.1.5 Da Fase Emergencial para a Fase de Reabilitação

Em poucos meses após o envio da UNITAF, em maio de 1993, a nova

Administração Clinton, que assumiu em janeiro de 1993, anunciou que o objetivo

da missão havia sido cumprido. Para validar o êxito da missão contrastou a

situação daquela data com aquela em vigor seis meses antes:

To understand the magnitude of what our forces in Somalia accomplished, the world need only look back at Somalia’s condition just 6 months ago. Hundreds of thousands of people were starving; armed anarchy ruled the land the streets of every city and town. Today, food is flowing; crops are growing; schools and hospitals are reopening. Although there is still much to be done if enduring peace is to prevail, one can now envision a day when Somalia will be reconstructed as a functioning civil society (Clinton, maio, 1993).

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Por meio desse discurso, o presidente Clinton representou a missão da UNITAF

como bem sucedida ao ter cumprido seu objetivo de “salvar vidas”. Nas palavras

de Clinton:

If all of you who served had not gone, it is absolutely certain that tens of thousands would have died by now. You saved their lives. You gave the people of Somalia the opportunity to look beyond starvation and focus on their future and the future of their children. O excerto do discurso de Clinton nos mostra que o presidente considerou,

seis meses após o envio da UNITAF, que a situação de emergência vivenciada

pela Somália encontrava-se encerrada e que, a partir de então, deveria ser iniciado

o período de reabilitação do país, a ser liderado pela ONU. No discurso do dia 7

de outubro de 1993, o presidente Clinton nos fala sobre esse momento divisor de

águas afirmando que: “Our troops created a secure environment so that food and

medicine could get through. We save close to one million lives. And throughout

most of Somalia, everywhere but in Mogadishu, life began to returning to

normal”.103

Argumenta-se aqui que, embora a consideração de Clinton acerca da

normalização da vida somali a partir da decretação do fim da situação emergencial

seja disputada, tal consideração articulou-se como uma “verdade política” sobre a

Somália que criou as condições de possibilidade para a segunda fase da operação

voltada para a reconstrução política e econômica da Somália. A “verdade” do fim

da situação emergencial foi desafiada, por exemplo, por Mark Bradbury (2000),

para quem a Somália continuava numa situação de desastre crônico mesmo depois

da operação.

A fixação desse momento, embassada por estatísticas confirmando uma

alteração positiva das taxas de mortalidade da população somali, permitiu ao

presidente Clinton decretar finalizada a operação emergencial, de exceção, e

considerar o país pronto para uma segunda etapa de desenvolvimento e

reconstrução. Nesse sentido, se, antes vimos que as estatísticas relativas ao desvio

de comida tiveram uma participação no envolvimento norte-americano na

Somália, agora vemos que as estatísticas também tiveram um papel determinante

em legitimar o fim da UNITAF uma vez que a situação somali foi considerada

103 Grifo meu

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normalizada e pronta para a etapa seguinte, de reabilitação. Para Mark Bradbury

(2000), um dos discursos compartilhados pela ONU, pelas ONGs e pelos

doadores internacionais é que a ajuda deve ser temporária até que a normalidade

seja restabelecida e que se possa dar início ao desenvolvimento. Todavia, a

passagem da fase emergencial para a fase de desenvolvimento104, confome já

argumentado, é política e quem determina o momento divisor de águas dessa

transição é o poder soberano que, no caso em questão, foram os Estados Unidos.

Essa decisão, por sua vez, tem uma série de efeitos sobre as populações que vem

sendo normalizadas por tais práticas. Um deles é bem descrito por Bradbury

(2000:335), quem diz: “The real danger is that a programme change from relief

to development, far from being a progressive shift towards the provision of

sustainable services, entitlements and access are actually being cut”. Enfim,

percebe-se que Bradbury está chamando a atenção para o perigo de que a

decretação prematura do fim da situação emergencial crie as condições para a

redução e cortes na ajuda humanitária (2000).

À separação entre uma operação emergencial e a seguinte, de

reconstrução, também foi agregada outra separação, entre uma operação dita

“apolítica” e outra, dita, “política”. A substituição da UNITAF pela UNOSOM II

em março de 1993 foi produzida, por conseguinte, como uma passagem desde

uma operação técnica para uma operação de natureza política. Nesse sentido, a

separação entre técnica e política foi artificialmente produzida por meio da

diferenciação entre essas duas operações. Argumenta-se nessa tese que tal

separação criou as condições de possibilidade para que o discurso dominante,

diante do insucesso da UNOSOM II, proclamasse a vitória da técnica sobre a

política e, desse modo, a vitória da operação liderada pelos Estados Unidos em

detrimento da operação conduzida pelas Nações Unidas. No ambiente pós-

UNOSOM II, como veremos no capítulo 8, algumas das lições aprendidas a partir

do envolvimento no conflito somali aconselhavam que as operações subseqüentes

devessem ater-se, exclusivamente, à técnica, sem buscar um envolvimento na

104 Fukuyama (2006a), contudo, estabelece uma diferença entre as fases de reconstrução e de desenvolvimento. Enquanto a reconstrução envolve o retorno da sociedade dilacerada por guerra ou desastre natural para algo como status quo ante, o desenvolvimento envolve a criação de novas instituições políticas e sociais que vão ser auto-sustentáveis após a retirada da “comunidade internacional”.

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política do país alvo da operação de paz. Agamben interpreta do seguinte modo tal

pretensão:

A separação entre o humanitário e o político, que estamos hoje vivendo, é a fase extrema do descolamento entre os direitos do homem e os direitos do cidadão. As organizações humanitárias, que hoje em número crescente se unem aos organismos supranacionais não podem, entretanto, em última análise, fazer mais do que compreender a vida humana na figura da vida nua ou da vida sacra e, por isto mesmo mantêm a contragosto uma secreta solidariedade com as forças que deveriam combater (Agamben, 2010:130).

Lyons e Samatar (1995) discordam do entendimento da ação humanitária

como apolítica. Segundo os autores:

Despite the insistence by policymakers in Washington that the goals of the international intervention were narrowly humanitarian, the operation had significant political consequences from the moment it was announced. As Somali actors tried to uncover how the deployment would affect their relative fortunes, they adopted responses that for good or ill shaped the framework for political reconciliation and the reestablishement of governing institutions. Every international action, from providing food to a famine region to meeting with factional leaders to sign a cease-fire, had unmistakable and often significant political repercussions (Lyons, Samatar, 1995: 67-8)

Essa tese concorda acerca da artificialidade e a impossibilidade de se

separar o humanitário do político. Conforme vimos até aqui, a UNITAF não pode

ser considerada uma operação meramente técnica, já que ela não estava, apenas,

se envolvendo num mundo lá fora, chamado “Somália”, com o fito de resolver um

problema bem específico, qual seja: o de “salvar vidas”. No curso da sua ação, a

UNITAF estava, ao contrário, produzindo esse “mundo”.

Partindo de uma perspectiva foucaultiana, entende-se aqui, como vimos na

introdução da tese, que o “mundo” não tem uma fundação ontológica, mas, antes,

é um produto do poder que opera através da linguagem. Com base em tal

perspetiva, argumenta-se, portanto, que os agentes envolvidos nessa operação

ajudaram a construir esse “mundo” por meio de práticas discursivas, as quais

produziram não apenas as “vítimas”, mas também os “culpados” pela situação de

fome na qual a Somália se encontrava. Além disso, a UNITAF produziu a

situação de normalidade somali no momento em que determinou que o seu

trabalho de “salvar vidas” fora cumprido e com louvor.

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Por outro lado, argumenta-se aqui que um dos principais embates

vivenciados no curso da operação da ONU e dos Estados Unidos na Somália não

foi um problema de ordem técnica, relativo à coordenação das forças desses

atores, como freqüentemente alegado105, mas um problema de natureza política.

Tal problema se referiu a uma disputa entre eles acerca de quem seria a autoridade

soberana na Somália e quem, portanto, poderia decretar a exceção e a normalidade

das condições do país. Ou seja, a definição da situação de exceção ou de

normalidade num dado contexto tem um papel importante no sentido de que o

agente que o faz, se investe e se constrói como o ator soberano naquele espaço106.

A disputa entre esses dois atores sobre quem seria a autoridade soberana na

Somália, por sua vez, mostra com enorme clareza que as decisões sobre a

normalização dos corpos e espaços somalis eram tomadas por outros, alhures,

enquanto os próprios somalis continuavam desprovidos de voz e vida política.

Assim, mesmo reconhecendo como exitosa a missão comandada pelos

Estados Unidos na Somália, Boutros-Ghali fez questão de recordar, em março de

1993 que a excepcionalidade da situação somali não dizia respeito à situação

emergencial de fome vivenciada pelos somalis, mas, sim, como já visto, à situação

de ausência de um Estado centralizado no país e, por conseqüência, de ausência de

uma força armada disciplinada.

De fato, como nos mostra Bolton (1994), durante a UNITAF existiram

uma série de atritos entre os Estados Unidos e a ONU em função dos diferentes

objetivos buscados por esses atores. Segundo Bolton, o objetivo da Administração

Bush na Somália era claro: “The Bush administration sent U.S. troops into

Somalia strictly to clear the relief channels that could avert mass starvation”

(Bolton, 1994:56). E, nesse sentido, Bush teria resistido todas as tentativas da

ONU de ampliar o escopo da missão, seja para desarmar as várias facções

somalis, seja para reconstruir a nação somali (ver Bolton, 1994). Para ilustrar as

desavenças entre a ONU e os Estados Unidos, Bolton (1994:60-1) nos conta que

no mesmo dia em que as forças dos Estados Unidos entraram na Somália (9 de

dezembro), o Secretário-Geral disse a uma delegação de Washington que ele

105 Esse debate será feito no capítulo 8 da tese. 106 Essa lógica guarda uma óbvia similaridade com aquela exposta por Schmitt, visto que, para ele, é o soberano que determina a exceção. Ver em: Carl Schmitt: Teologia política, Belo Horizonte, Ed. Del Rey, 2006. Segundo Agamben (2010:23) o soberano é aquele que decide de modo definitivo se o estado de nornalidade reina de fato.

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queria que a coalizão desarmasse as facções somalis e que, além disso, desativasse

as minas terrestres sobretudo no norte do país, estabelecesse uma adminitração

civil e começasse a treinar a polícia somali. O objetivo de Boutros-Ghali era,

portanto, o de colocar um fim à situação de excepcionalidade na qual a Somália se

encontrava caracterizada pela falta de uma autoridade central com o monopólio do

uso legítimo da força, conforme fica claro na passagem já citada onde ele diz: “I

must emphasize that the unique features of the situation continue to prevail. There

is still no disciplined armed force”. (S/25354, par. 100, apud Boutros-Ghali,

1996:255).

Da mesma forma que foi essa situação única que, como vimos, havia

autorizado uma resposta excepcional - ao uso do capítulo VII da Carta -, tal

resposta vai continuar sendo requerida pelo Secretário-Geral já que a

excepcionalidade somali continuaria estando presente no momento de finalização

da UNITAF e de início da UNOSOM II. No mesmo documento, Boutros-Ghali

(S/25354, par. 41, apud Boutros-Ghali, 1996: 249, grifo meu) coloca:

Ultimately, all the efforts being undertaken by the United Nations in Somalia are directed towards one central goal: to assist the people of Somalia to create and maintain order and new institutions for their own governance. The absence of a central government has aggravated the social, economic and political difficulties in the country. In fact, the non-existence of a government in Somalia is one of the main reasons for the now more robust role of the Organization in the country.

Nesse sentido, Boutros-Ghali insistiu desde a fase inicial da operação e

continuou a insistir após a finalização do mandato da UNITAF que o objetivo da

ONU na Somália não deveria ser apenas o de conter o conflito e alimentar os

somalis necessitados. Embora notadamente importante, “salvar vidas” não deveria

ser um fim em si mesmo, mas, apenas, o primeiro passo adotado para que a

Somália pudesse retornar a sua condição de normalidade, ou seja, para que ela

pudesse se reestabelecer como um Estado centralizado.

Ainda que a Administração Clinton tenha prestado apoio à UNOSOM II e

tenha, portanto, se comprometido com o esforço da ONU de “nation-building”,

ele enfrentou uma série de pressões domésticas, sobretudo depois dos incidentes

do dia 3 de outubro, que o fizeram retornar ao espírito original da missão

defendido pelo seu antecessor. Informado por um “multilateralismo assertivo”,

Bolton (1994) nos mostra que Clinton pressionou pela votação da resolução 814, a

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qual envolucrava a ONU na reabilitação das instituições políticas e da economia

somali. Tal compromisso foi confirmado pela nova Representante Especial dos

Estados Unidos na ONU, Madeleine Albright, quem disse: "With this resolution,

we will embark on an unprecedented enterprise aimed at nothing less than the

restoration of an entire country as a proud, fiinctioning and viable member of the

community of nations” (apud Bolton, 1994:62).

Depois do incidente que resultou na morte dos soldados paquistaneses em

junho, autoridades norte-americanas continuaram insistindo no curso adotado. No

artigo já citado de agosto de 1993, Albright colocou: “The decision we must make

is whether to pull up stakes and allow Somalia to fall back into abyss or to stay

the course and help lift the country and its people from the category of a failed

state into that of an emerging democracy”107. A seguir, no dia 27 de agosto, o

secretário de defesa norte-americano, Les Aspin, disse: “We went there to save

people, and we succeeded. We are staying there now to help those same people

rebuild their nation” (apud Bolton, 1994:634). Essa pretensão modernizadora,

contudo, foi negada, por Clinton, nos discursos que antecederam a retirada norte-

americana da Somália. No dia 13 de outubro de 1993, por exemplo, Clinton

asseverou: “We went to Somalia because without us a million people would have

died. We, uniquely, were in a position to save them (…).The U.S. military mission

is not now nor was it ever of ‘nation-building’”.

Nesse sentido, fica claro que os Estados Unidos, durante a maior parte do

seu envolvimento na Somália, consideraram que a normalização foi atingida uma

vez que as altas taxas de mortalidade foram diminuídas e que, diferentemente, a

ONU, nunca considerou a situação somali normalizada, visto que, até a sua saída,

a Somália não havia conseguido ter tido sucesso em estabelecer um Estado

centralizado sobre todo o seu território.

Vimos nesse capítulo que a decisão dos Estados Unidos de passarem a

competência da operação para a ONU tão logo que a situação foi tida como

normalizada refletiu, em grande medida, a visão depreciativa dos somalis e dos

seus modos de vidas dominante no país, a qual sugeria a incapacidade de

modernizar povos que viveram desde sempre guerreando. A ONU,

diferentemente, trabalhava com a possibilidade de que os somalis pudessem, com

107 Grifo meu.

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o tempo, e com a ajuda internacional, evoluírem na escala temporal transferindo

as velhas lealdades clânicas que, segundo a ONU teriam reaparecido com a queda

do governo Barre, para a lealdade a um Estado centralizado. A situação pós-Barre

é descrita por Boutros-Ghali da seguinte forma: “As economic, social, and

political conditions deteriored in the late 1970s and the 1980s, traditional clan

loyalties came to the fore, fragmenting the Somali nation, and by 1988 the

country was in the throes of a civil war” (Boutros-Ghali, 1996:11, grifo meu).

Segundo o Secretário-Geral, foi com a queda do governo Barre que as lealdades

clânicas tradicionais teriam vindo à tona, fragmentando a nação somali e dando

início a guerra civil somali. Para que as rivalidades em curso nesse então fossem

superadas, a direção proposta pela ONU é clara: a construção de um Estado

centralizado e, ademais, democrático, como fica claro no mandato confiado à

UNOSOM II:

“The mandate would also empower UNOSOM II to provide assistance to the Somali people in rebuilding their shattered economy and social and political life, re-establishing the country’s institutional structure, achieving national political reconciliation, recreating a Somali state based on democratic governance and rehabilitating the country’s economy and infrastructure” (S/25354, par. 91, apud Boutros-Ghali, 1996:254, grifo meu).

Veremos, no capítulo 8, como os padrões de normalização da ONU foram

se tornando no cenário do pós-Guerra Fria cada vez mais exigentes e elevados.

7.1.6 Aidid: "Procurado"

Até então, como vimos, os responsáveis pela violência na Somália foram,

em grande medida, despersonalizados e representados na figura de gangues

armadas ou de líderes clânicos envolvidos numa dinâmica de guerra vigente desde

os tempos pré-coloniais. Na medida em que a violência era representada como

naturalmente atrelada à cultura clânica somali, a culpa por tal violência não recaia

em líderes específicos, mas em bandos armados desprovidos de nomes e

identidades.

Ainda assim, conforme vimos, a UNITAF não fez desses bandos,

considerados culpados pela reprodução da fome na Somália, seus inimigos. O

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grande inimigo da operação foi, de fato, a fome, a qual os Estados Unidos

buscaram derrotar por meio de uma abordagem supostamente apolítica voltada

apenas para conter as gangues, e não para desarmá-las ou eliminá-las, mesmo que

essas estivessem impedindo que a ajuda humanitária chegasse aos necessitados.

Todavia, a partir dos incidentes do dia 5 de junho, a causa da violência na

Somália foi se tornando crescentemente personalizada na figura do general Aidid

quem, previamente, era tido como um representante e negociador legítimo dos

interesses de parte dos somalis. Tais eventos de junho marcam, portanto, o

momento em que Aidid é deslocado para fora da fronteira da legitimidade e passa

a ser construído como o principal obstáculo à tentativa, liderada pela ONU, de

estabilizar e reconstruir a Somália e se torna o inimigo número 1 da operação.

A mudança em relação à atribuição de culpa ficou clara ainda no mês de

junho (1993) quando o presidente Clinton colocou: “We cannot have a situation

where on of the warlords, while everybody else is cooperating, decides he can go

out and slaughter 20 peacekeepers” (apud Murray, 2009:40). A visão do

presidente é corroborada no dia 10 de agosto de 1993 pela Representante

Permanente dos Estados Unidos nas Nações Unidas, Madeleine Albright, quem

relê a fome recém-sanada, atribuindo um nome ao seu suposto causador. Segundo

Albright:

The famine of 1991-92 did not result from the laws of nature but from the lawlessness of men like Mr. Aidid. Warlords used thugs who terrorized their fellow citizens, disrupting economic activities and forcing thousands from their homes. Mr. Aidid extorted money from relief workers trying to deliver food to starving children. Unlike other Somali warlords, Mr. Aidid has obstructed U.N. efforts to end the violence and rebuild the country. He violated commitments made to the U.N. as soon he realised that he could not operate in a society governed by law. For him, piracy meant prosperity. His aim is to return Somalia to anarchy (Albright, 1993, grifo meu). Na passagem acima, Aidid é representado como um “senhor da guerra”

único, incomparável aos demais, em termos da sua não-confiabilidade e ambição.

Agravando tal descrição negativa sobre Aidid, Albright recorre à figura retórica

da pirataria, símbolo do crime contra a humanidade, para representar suas

atividades na Somália. Além disso, impressiona a similaridade entre a passagem

grifada no discurso e a passagem do artigo já mencionado de Krauthammer no

The Washington Post, em dezembro de 1992, onde se lê: “Yet only in Somalia

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have the guns been used for cruelty beyond barbarism: stealing food from the

mouths of starving children”. Todavia, enquanto no momento anterior

Krauthammer não identificou qualquer líder específico como responsável por tais

atos bárbaros, em agosto de 1993 a responsabilidade pelos mesmos foi atribuída,

por Albright, ao general Aidid.

A demonização retórica da figura de Aidid, por sua vez, se assemelha,

sobremaneira, àquela em vigor no curso da Guerra do Golfo em relação a Saddam

Hussein, também representado como um inimigo não confiável e que, por isso,

não podia ser apaziguado. No discurso de Bush de 08 de agosto de 1990, ele

colocou sobre o perigo de apaziguar Saddam:

Appeasement does not work. As was the case in the 1930's, we see in Saddam Hussein an aggressive dictator threatening his neighbors. Only 14 days ago, Saddam Hussein promised his friends he would not invade Kuwait. And 4 days ago, he promised the world he would withdraw. And twice we have seen what his promises mean: His promises mean nothing

Do mesmo modo, Albright descreve Aidid como um líder face ao qual o

apaziguamento não seria uma estratégia viável:

The Security Council has responded by ordering the capture, detention and trial of Mr. Aidid. Failure to take action would have signalled to other clan leaders that the U.N. is not serious. Advocates of appeasement seem to forget that last year the U.N. tried to cooperate with Mr. Aidid and his counterparts. It did not succeed. Como nos mostra Debrix (1999), Aidid, assim como Saddam Hussein,

podia facilmente representar tudo aquilo ao qual a ONU se opunha num mundo de

esperanças liberais renovadas, a saber: reivindicações separatistas, poder pessoal e

ambição, e traição política. Dessa forma, Aidid poderia representar para Clinton o

que Hussein havia representado para Bush, isto é, a figura do mal encarnado ou a

antítese dos valores americanos básicos (Debrix, 1999).

Em setembro de 1993, um artigo de Caleb Carr no New York Times

representava Aidid como um criminoso, ao qual, erroneamente havia recebido o

aval internacional para operar como um líder legítimo:

We now hunt General Aidid like the criminal he has always been; yet our delay in beginning that hunt, and our willingness to seat him and the other gang leaders at an internationally sanctioned peace conference in Addis Ababa early

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this year, gave him the time, media attention and the setting in which to portray himself as a legitimate leader (Carr, 1993, grifo meu).

A retratação de Aidid como a personificação das mazelas somalis foi

reproduzida no best-seller escrito pelo piloto seqüestrado no curso dos incidentes

do dia 3 de outubro, Michel Durant. Nas suas memórias do dia 3 de outubro,

Durant (2004:19-20, grifo meu) recorda o porquê da presença norte-americana na

Somália:

Now a vicious warlord, Mohamed Farrah Aidid, had stormed into the power vacuum, leading a coalition of thugs called the Somali National Alliance. A sand dune buccaneer, he was pillaging our humanitarian aid and selling it off for a profit, while cold-bloodedly murdering any and all who tried to interfere and stop him.

A identificação de um líder criminoso, corrupto e violento como a fonte

dos males somalis, por sua vez, produziu a missão da ONU e dos Estados Unidos

na Somália como uma missão extremamente fácil e simples de ser empreendida.

Isto porque o discurso dominante sugeriu que bastava que esse líder fosse

removido ou neutralizado para que o desenvolvimento pudesse seguir seu curso

(ver, por exemplo, Duffield, 2001:132). Tal representação simplista da solução

dos problemas somalis nessa fase da operação conduziu a uma caçada grotesca ao

general Aidid, cujos detalhes serão expostos a seguir.

A representação de Aidid como o líder de uma quadrilha de bandidos criou

as condições de possibilidade para a resposta da ONU/Estados Unidos de caçá-lo

ao estilo do Velho Oeste. Seguindo tal estilo, do lado de fora das instalações da

ONU em Mogadíscio, foi colado um pôster amarelo com um desenho não

refinado do procurado “Aidid”, pelo qual o Representante Especial do Secretário-

Geral, Howe, oferecia a recompensa de 25 mil dólares (ver Petterson, 2000,

Lewis, 2002, Debrix, 1999). E, assim, contrastando com as imagens amorfas

prévias dos culpados somalis, o novo vilão, agora, tinha nome, imagem e um

valor correspondente. No entanto, os somalis zombaram de tal caçada e Aidid

respondeu à mesma oferecendo igual recompensa pela cabeça do almirante Howe

(ver Petterson, 2000 e Lewis, 2002). Segundo Petterson (2000:93): “[T]he

WANTED poster was greeted with knowing laughter, and within hours a counter

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price was put on the head of ‘Animal’ Howe: Aidid would pay $ 1 million for

capture of the UN envoy”.

Ao encenarem o Velho Oeste em Mogadíscio, a ONU e os Estados Unidos

ajudaram a produzir aquilo que eles mesmos diziam buscar reverter, a saber: a

existência de uma “cidade sem lei”. Refletindo esse espírito de faroeste, Michel

Durant, o piloto seqüestrado por somalis no dia 3 de outubro de 1993 falou sobre

o seu trabalho em Mogadíscio da seguinte forma: “To must of us, the job seemd

pretty straightfoward and simple. Mogadishu was Tombstone, and we were Wyatt

Earp. We were goint to clean up the town” (Durant, 2004:21). Com essa frase,

Durant estava se referindo ao filme de faroeste “Tombstone- A Justiça está

chegando”, de 1993 que conta a história dos irmãos Earp, figuras míticas do

Velho Oeste americano, os quais lutavam para levar a lei à cidade de Tombstone

contra um grupo de bandoleiros que aterrorizavam a região.

Na esteira da determinação da ONU de perseguir Aidid, a imagem de uma

“cidade sem lei” foi ganhando contornos mais claros na medida em que os ataques

subseqüentes por parte da ONU produziram, segundo De Waal (1997) e Lewis

(2002), inúmeras mortes de civis somalis, sem, no entanto, conseguirem realizar

seu objetivo primeiro de capturar o general. Segundo o então co-diretor da

Organização “African Rights”, De Waal (1997:187), a guerra travada pela ONU

contra Aidid estabeleceu um perigoso precedente, o da não aplicabilidade das

Convenções de Genebra para as forças da ONU que, por diversas vezes, violaram

as leis de guerra108. O desprezo da ONU pelas leis de guerra foi exemplificado por

De Waal a partir da declaração do porta-voz da ONU, Major David Stockwell,

quem após um incidente no dia 09 de setembro no qual um helicóptero abriu fogo

contra uma multidão, matando pelo menos 60 pessoas, disse: “There are no

sidelines or spectator seats – the people on the ground are considered

combatants” (apud De Waal, 1997:188). Bhuta (2003: 371) reproduz um diálogo

entre o presidente Clinton e o seu consultor de segurança nacional, Anthony Lake

(Tony Lake), que nos oferece uma clara evidência de que, de fato, Clinton não se

considerava sujeito à legalidade internacional:

108 Para uma apresentação de tais violações, ver De Waal (1997:187). Ver também em Petterson (2000), caps. 4 e 5, e em Alex de Waal, “US War Crimes in Somalia”, New Left Review 230, 1998.

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We’re not inflicting pain on these fuckers [Aideed’s faction],” Clinton said, softly at first. “When people kill us, they should be killed in greater numbers.” Then, his face reddening, his voice rising, and his fist pounding his thigh, he leaned into Tony [Lake], as if it was his fault. “I believe in killing people who try to hurt you . . . And I can’t believe we are being pushed around by these two-bit pricks.

Assim, durante o curso dos eventos pós- 5 de junho, a ONU passou a agir

de modo cada vez mais próximo àquele que ela dizia ser próprio do seu

perseguido109. Segundo, por exemplo, o subchefe da Embaixada norte-americana

em Mogadíscio, Walter Clarke (1997:5): “Aideed’s lust for personal power was

not tempered by any squeamishness about human rights or the effects of his

operations on the innocent”.

Nesse momento, a complexidade operacional e política da operação na

Somália foram simplificadas (Debrix, 1999), tendo em vista que o vasto mandato

conferido à UNOSOM II foi praticamente deixado de lado em nome da

perseguição à Aidid. Os predicativos pejorativos atribuídos ao general, tais como

“cruel”, “um criminoso desde sempre”, “pirata” e “líder de uma coalizão de

marginais” criaram as condições de possibilidade para a perseguição com tons de

faroeste. Ao tratar as ações da aliança política de Aidid, a SNA (Somali National

Alliance), como “criminosas” e os seguidores de Aidid como uma “coalition of

thugs”, simplificando a complexidade do conflito somali, o discurso dominante

tendeu a despolitizar as ações de Aidid e da SNA. Ao impor um clima de faroeste

à Mogadíscio, a luta entre a ONU e o general Aidid assumiu a forma de uma luta

do bem, representado pelos agentes externos, contra o mal, personificado na

figura do general.

O general, contudo, era simbolizado como um vilão moderno, um agente

do mal, manipulador e calculista que perseguia os seus objetivos egoístas sem

levar em consideração o bem dos somalis. Representado como um inimigo

moderno, o general Aidid se assemelhava mais aos vilões da Guerra Fria do que

aos índios americanos, popularizados nos filmes de faroeste, os quais, como

sabemos, eram vistos como atrasados em relação aos caubóis portadores do

progresso e da civilização. Conforme colocado por Petterson (2000:95)

Howe gave the conflict an anachronist Cold War taste, portraying the battle as one between the forces of Light and Darkness which defeat would jeopardize the

109 Ver, por exemplo, o Relatório do professor Tom Farer (apud Boutros-Ghali, 1996: 296-300).

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future of the Free World. In a dusty Horn of Africa nation so removed from real geopolitical calculations that, until the famine, few people could have pointed it out on a map –here the UN identified the Evil.

O fato de Aidid ser percebido como um líder moderno, promotor de atos

entendidos como racionais, lhe tornava passível de responsabilidade pelos seus

atos e, daí, objeto de criminalização. No relatório do professor Tom Farer sobre os

incidentes do dia 5 de outubro, as motivações por trás dos mesmos são

representadas como racionais e calculadas. Segue as conclusões do relatório nesse

sentido:

With regard to motive, in the case of General Aidid, means and opportunity coincided with ample motive. Simply by being in place as the dominant military force in the country, UNOSOM reduced the influence of those political leaders, General Aidid eminent among them, who had hitherto disposed of substantial forces. While UNOSOM remained in place, guns would no longer trump all other sources of influence. And to the extent UNOSOM succeeded in substantially disarming the warlords, they could not lood forward to playing their trump after UNOSOM departed. The weapons site inspections of 5 June were an important stepo in that disarmament process. The General’s influence also was threatened by UNOSOM’s incipient effort to re-establish a formal judicial system and a neutral police force, i.e, a functional system of justice (…). General Aidid could rationally have concluded that, by demonstrating his ability to turn Mogadishu into a zone of grave insecurity, he could force UNOSOM to alter its programmes so that they were compatible with his bid to play a, and probably the, leading political role in reconstituded Somalia. (…) Aidid’s calculations of risk could also have been influenced by the passivity of the United Nations forces in the former Yugoslavia. (S/26351, par. 19-22, apud Boutros-Ghali, 1996: 299-30).

Farer parece ter feito questão de frisar a faceta moderna de Aidid de forma

a conferir uma maior gravidade aos seus atos, quando diz: “The general is, after

all, a well-travelled man familiar with international relations. He attended

military academics in Italy and the former Soviet Union and was for some years

the Somali Ambassador to Índia” (S/26351, par. 22, apud Boutros-Ghali, 1996:

300). O fato de Aidid ser representado como um líder familiarizado com as

relações internacionais e como alguém que teve contato com o sistema de

educação moderno, constrói a sua responsabilidade pelos eventos de uma forma

indisputada. As ações imputadas à Ghali pelo relatório de Farer, portanto, passam

a ser vistas como fruto de escolhas políticas conscientes, não podendo ser

justificadas por um desconhecimento das normas internacionais.

De acordo com o discurso despolitizante em voga, portanto, Aidid era

representado como um vilão moderno que, enquanto encarnação do mal, deveria

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ser tirado de cena para que a lei e o progresso trazidos pelos atores internacionais

pudessem prevalecer em “Tombstone”. O objetivo a seguir será o de

desestabilizar essa retórica prevalecente, por meio da politização das ações da

SNA, liderada por Aidid, a partir da exposição de uma série de antecedentes,

silenciados no discurso dominante e que culminaram nos eventos do dia 5 de

junho.

Como nos mostra Petterson (2000), os atritos entre Aidid e Boutros-Ghali,

datam de quando esse último foi Ministro de Estado das Relações Exteriores do

Egito (1977-1991). Nesse contexto, Aidid, um líder da oposição somali, foi

deportado do Egito por Boutros-Ghali, que, na ocasião, era amigo do ditador

Barre (Petterson, 2000). No curso do envolvimento das Nações Unidas na

Somália, o clã Habar Gidir, ao qual Aidid pertencia, acreditava que a Organização

sob a liderança do diplomata egípcio não simpatizava com a idéia de que tal clã

assumisse o poder na Somália devido ao presumido desprezo que, desde antes da

queda de Barre, o Secretário-Geral nutria pelas forças da SNA (ver Butler, 2002).

O primeiro representante especial do Secretário-Geral para a Somália,

Mohamed Sahnoun110, nos revela, no livro “Somalia. The Missed Opportunities”

(2005), alguns dos episódios, ocorridos no período do seu mandato, que

contribuíram para o aumento da desconfiança do general Aidid e da SNA em

relação à ONU. Sahnoun nos mostra que, após difíceis e lentas negociações com

os líderes somalis, ele conseguiu obter o apoio dos mesmos para o envio de 500

tropas da ONU a fim de garantir a segurança da assistência humanitária em agosto

de 1992, no marco da UNOSOM I. Tais tropas, contudo, ainda não tinham sido

sequer enviadas quando foi feito um anúncio em Nova York de que mais 3.000

tropas seriam enviadas para a Somália. Nem a delegação da UNOSOM em

Mogadíscio nem os líderes e anciões somalis com os quais ele havia negociado o

acordo anterior haviam sido informados previamente de tal decisão; o que teria

acentuado a desconfiança desses líderes, inclusive de Aidid, em relação à

Organização (ver Sahnoun, 2005).

Além disso, Sahnoun (2005) mostra que no momento em que a ONU

começou a ganhar a confiança das partes em conflito e a aceitação e simpatia

entre os somalis em geral, a equipe da UNOSOM em Mogadíscio soube que um 110 Sahnoun se demitiu do cargo em outubro de 1992 após ter sido advertido por Boutros-Ghali a cessar as críticas dirigidas à ONU.

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avião russo com o emblema da ONU e fretado por uma agência da ONU

distribuiu dinheiro e equipamento militar para o norte de Mogadíscio,

aparentemente para as tropas apoiando o presidente interino Ali Mahdi; o que,

segundo Sahnoun, naturalmente enfureceu seu inimigo, o general Aidid. Tal

episódio - uma clara contradição à resolução 733 de janeiro de 1992, a qual impôs

um embargo geral de todas as entregas de equipamento militar para a Somália -

reacendeu, segundo Sahnoun, a velha percepção de que ONU era favorável à

Mahdi. E o que foi mais surpreendente segundo Sahnoun foi que: [A]lthough the

UN’s name and reputation were at stake, no serious investigation was undertaken

and no legal action for redress was pursued” (Sahnoun, 2005:39).

A tais antecedentes se somam outros incidentes denunciados pela

Comissão de Investigação estabelecida pela resolução 855 de 1993 para investigar

os ataques armados do dia 5 de junho, a qual viajou para Mogadíscio no dia 30 de

novembro de 1993 (S/1994/653 apud Boutros-Ghali, 1996: 368-416). O Relatório

produzido pela Comissão concluiu, assim como havia sido afirmado, ainda que

mais categoricamente, pela investigação conduzida pelo professor Tom Farer, que

os ataques de 5 de junho foram orquestrados pela USC/SNA. Todavia, o Relatório

não corrobora a visão de que os mesmos tivessem sido premeditados. Segundo a

Comissão: “[I]t is quite possible that the attacks on 5 June were orchestrated by

the SNA on the spur of the moment after the inspection had begun” (apud

Boutros-Ghali, 1996:381).

O referido relatório aponta cinco razões principais para o estremecimento

das relações entre a USC/SNA e a ONU. Em primeiro lugar, ele expõe um aspecto

silenciado sobre a já mencionada “Conferência de Adis Abeba” em março de

1993. De acordo com o documento aprovado ao final dessa conferência, no dia 27

de março, denominado Addis Ababa Agreement of the First Session of the

Conference on National Reconciliation in Somalia seria estabelecido no período

transitório de dois anos o TNC (Transitional National Council), o qual

funcionaria como órgão político supremo e depositário da soberania somali.

Abaixo desse órgão haveria 18 conselhos regionais e 92 conselhos distritais. O

TNC seria composto por um representante escolhido por cada um dos quinze

movimentos políticos, três representantes de cada região, um dos quais deveria ser

uma mulher, e cinco membros adicionais representando Mogadíscio. Nesse

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sentido, o Acordo garantiu que os quinze movimentos políticos não dominassem

as instituições de transição. A participação democrática foi garantida por meio da

(i) restrição do número de membros do TNC apontado pelas facções, (ii) a reserva

de uma quota do TNC para as mulheres e (iii) a eleição ou seleção popular dos

membros do conselho distrital.

Todavia, o Relatório nos conta que quando tal Conferência chegou ao fim,

no dia 27 de março, os 15 movimentos políticos somalis presentes não se

dispersaram imediatamente, mas, continuaram as discussões, as quais resultaram

num novo documento denominado: Agreeements Reached Between the Political

Leaders at the Consultations Held in Addis Ababa, 30 March 1993. Esse

documento ia contra a carta e o espírito do Acordo do dia 27 ao estipular que os

nomes dos três membros do TNC a serem escolhidos de cada distrito seriam

submetidos pelas facções políticas e caso as facções políticas não chegassem a um

acordo as diferenças seriam resolvidas em Adis Abeba ou na região em questão.

Apesar de conter a assinatura dos mesmos 15 movimentos que assinaram o acordo

do dia 27 de março, a UNOSOM II nunca considerou a validade desse último

documento; o que, segundo o Relatório, contribui para os futuros choques entre a

UNOSOM II e alguns dos grupos políticos somalis.

Uma segunda razão apontada pela Comissão para o agravamento da

hostilidade da USC/SNA em relação à UNOSOM II está relacionada à influência

exercida pela operação da ONU nos procedimentos para a indicação dos juízes e

da polícia somali. No momento em que a UNOSOM II substituiu a UNITAF,

alguns juízes apontados pela USC/SNA presidiam o que restava das cortes em

Mogadíscio. No começo de maio, porém, uma equipe do “United States Foreign

Service Officers”, designada pela UNOSOM II, promoveu um encontro em

Mogadíscio, liderado pela especialista do serviço externo dos Estados Unidos,

Ann Wright, com juízes e outros grupos locais somalis interessados na

reabilitação do judiciário do país. Tal encontro resultou no estabelecimento de um

comitê e na adoção de procedimentos para a seleção de juízes, os quais

permitiram que a UNOSOM II nominasse alguns dos juízes. Como era de se

esperar, a USC/SNA se ressentiu da erosão do seu poder nessa seara e se opôs à

seleção de juízes pela UNOSOM II e não pelo TNC, conforme o estipulado pelo

Acordo do dia 27 de março.

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Em terceiro lugar, o Relatório cita a batalha na cidade portuária do sul,

Kismayo, como determinante para o acirramento das suspeitas da UCS/SNA em

relação à ONU. Como nos relata a Comissão de Investigação, enquanto ocorria a

Conferência de Adis Abeba em março, as forças pró-Siad Barre sob o comando do

general Heisi Morgan (genro de Barre) usaram crianças e mulheres para disfarçar

a infiltração de armas em Kismayo; o que lhes permitiram retirar da cidade as

forças do coronel Ahmed Omar Jess, aliado de Aidid, e controlar a cidade111. No

dia 7 de maio, Jess realizou uma marcha “corajosa” em direção a Kismayo a fim

de recapturar a cidade. Todavia, o contingente belga da UNITAF estacionado na

cidade considerou tal ato um ataque direto às suas posições e repeliu as forças de

Jess, infringindo sérias perdas às mesmas. Considerando que essa cidade tinha um

significado especial para Aidid, já que a sua milícia a tinha capturado numa

batalha feroz contra as forças leais a Barre, sua perda para as forças de Morgan

enfureceu a SNA, a qual acusou o contingente belga de não ter impedido a entrada

da milícia de Morgan na cidade e, depois, de ter bloqueado a recaptura da mesma

por Jess. O Relatório observa que, em razão da incapacidade do contingente belga

de impedir a infiltração de Morgan em Kismayo, a SNA acusou a UNOSOM II de

parcialidade no conflito. Entretanto, o Relatório observa que, ao dirigir tal

acusação à UNOSOM II, a SNA não fez qualquer diferenciação entre a UNITAF,

encarregada de Kismayo em março, da UNOSOM II, a qual assumiu a

responsabilidade da cidade a partir de maio de 1993.

O quarto motivo para a acentuação das animosidades entre a SNA e a

ONU apontado pelo Relatório esteve ligado à “Conferência de Galcayo”. O

Relatório explica que depois da “Conferência de Adis Abeba”, o general Aidid

iniciou consultas com coronel Ahmed Abdillahi Yusuf, diretor do “Political,

Defence and Emergency Matter Committe”, do SSDF (Somali Salvation

Democratic Front), as quais resultaram num acordo para a realização de uma

conferência de paz voltada para a região central da Somália. Na visão de Aidid, a

participação na conferência deveria ser restrita aos líderes políticos da região em

questão. Caberia à UNOSOM II fornecer o apoio logístico da conferência bem

como a segurança fora do hall da conferência. Na posição daquele que convocou a

conferência, o general Aidid pretendia dirigir seus procedimentos e estabelecer a

111 Para batalha de Kismayo, ver também Tripodi, 1999:147.

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sua agenda. Ainda assim, convidou o Representante Especial do Secretário-Geral,

o almirante Howe, para abrir a conferência. Não obstante, a UNOSOM II passou a

suspeitar das intenções de Aidid. Levando em conta as disputas no âmbito do

SSDF, entre Yusuf e o diretor do SSDF, o general Mohamed Abshir Mussa, a

UNOSOM II começou a suspeitar de uma trama entre Yusuf e Aidid para minar

Mussa e, em função disso, buscou ampliar a participação na conferência,

especialmente com vistas a incluir Mussa. Quando a conferência estava a ponto de

começar, a UNOSOM II forneceu transporte e segurança para Mussa a fim de

garantir sua presença na reunião. Ademais, insistiu para que a conferência não

fosse presidida por Aidid, mas sim pelo ex-presidente da República da Somália

Abdalla Osman, um inimigo de Aidid que ao chegar a Mogadíscio pediu

imediatamente a sua prisão. Houve, além disso, desacordo sobre a agenda da

conferência. Enquanto a UNOSOM II adotou a mesma posição de Mussa

insistindo que a situação de Kismayo fosse tratada na conferência, Aidid

considerava que os problemas envolvendo outras regiões da Somália deveriam ser

discutidos em outros fóruns com os líderes relativos às tais regiões. Novamente,

Aidid interpretou as manobras da UNOSOM II como uma interferência na política

da Somália e fez de tais disputas, objeto de propaganda virulenta contra a

UNOSOM na Rádio Mogadíscio.

De fato, o último motivo mencionado pelo Relatório, diz respeito

justamente à propaganda contra a UNOSOM II veiculada na Rádio Mogadíscio. A

Comissão nos conta que a SNA considerava a Rádio um prêmio de guerra -

capturado da milícia do seu rival, Ali Mahdi - particularmente importante como

meio de comunicação devido à forte tradição oral bem como ao baixo nível de

alfabetização dos somalis. Com a deterioração das relações entre a UNOSOM II e

a SNA no meio de maio de 1993 devido, como já visto, aos eventos de Kimayo, à

seleção de juízes pela UNOSOM II e aos desacordos relativos à “Conferência de

Galcayo”, as transmissões da rádio se tornaram cada vez mais hostis à missão da

ONU no país. Tal hostilidade se refletiu nas transmissões entre os dias 01 de maio

e 04 de junho, dia anterior à morte dos 24 soldados paquistaneses. As

transmissões, segundo o Relatório, ganharam um tom xenófobo na medida em

que, se rementendo à história somali de resistência à dominação externa, passaram

a acusar a UNOSOM II e os Estados Unidos de agressores tentando colonizar e

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estabelecer uma tutela sobre a Somália. Conforme consta no Relatório, tais

transmissões geraram apreensão na UNOSOM II que: “was very concerned about

this propaganda which gave a negative perception of the United Nations and

could stir up hostile sentiments towards UNOSOM II personnel from the Somali

public” (S/1994/653, par. 84, apud Boutros-Ghali, 1996: 374). Somado a isso,

também existia a percepção no marco da UNOSOM II de que o controle exclusivo

da Rádio por Aidid pudesse lhe conferir uma injusta vantagem sobre seus rivais

políticos, permitindo-lhe projetar sua imagem e alcançar suas ambições políticas.

Alegava-se que a estação de rádio era um bem nacional e que, sendo assim, todos

os movimentos políticos deveriam ter acesso à mesma. De fato, conforme exposto

pelo Relatório, representantes de outros grupos políticos somalis haviam escrito

para UNOSOM II insistindo que a estação de rádio fosse retirada do controle da

SNA.

Tais fatores fizeram com que, no meio de maio, a UNOSOM II solicitasse

à Brigada Paquistanesa, responsável pela segurança da área sul de Mogadíscio,

que esboçasse planos de como a Rádio Mogadíscio poderia ser fechada ou

silenciada caso a mesma continuasse a difamar a missão da ONU. Os

paquistaneses, contudo, informaram à UNOSOM II que eles não tinham a

capacidade técnica para levar a cabo tal operação e sugeriram que os Estados

Unidos fornecessem os especialistas necessários (S/1994/653, apud Boutros-

Ghali, 2006:375).

Aproveitando que o espaço da estação de rádio havia sido declarado uma

AWSS, isto é, “authorized weapons storage site”, se decidiu que durante a

inspeção de armas a ser realizada no dia 5 de junho, forças especiais de técnicos

norte-americanos, acompanhariam a equipe de inspeção para fiscalizar as

instalações da rádio. Todavia, o Relatório nos mostra que Aidid e outros líderes da

SNA estavam inteirados de que a UNOSOM II vinha discutindo os destinos da

Rádio e que, ao mesmo tempo, rumores se espalhavam de que a UNOSOM II

tentava capturá-la. Devido à piora substancial das relações entre a UNOSOM II e

a SNA, o Relatório considerou inapropriado o contexto no qual as inspeções de

armas foram levadas a cabo (S/1994/653, apud Boutros-Ghali, 1996: 375).

Todavia, o Relatório não confirmou a suspeita levantada pela SNA de que, de

fato, as inspeções estariam voltadas para a captura da Rádio, já que como

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colocado no Relatório: “Opinions differ even among UNOSOM officials, on

whether the weapons inspections of 05 June 1993 was genuine, or was merely a

cover-up for reconnaissance and subsequent seizure of Radio Mogadishu”

(S/1994/653, par. 94, apud Boutros-Ghali, 1996:375).

As motivações longamente expostas acima para o crescimento dos atritos

entre a SNA e a UNOSOM II nos permitem politizar os eventos do dia 5 de junho,

antes do que tratá-lo por meio do registro dominante que, como vimos, o entende

como uma batalha do bem contra o mal encarnado na figura de Aidid.

O exposto acima também deixa claro que, apesar da insistência das Nações

Unidas, expressa em diversas resoluções do Conselho de Segurança e em

inúmeros relatórios do Secretário-Geral de que o processo de reconstrução do

Estado na Somália deveria ser conduzido pelos próprios somalis, era a ONU

quem, em última instância, decidia quais os somalis que estavam aptos para

representarem o Estado em construção. De fato, essa visão foi exposta a posteriori

pelo Subchefe da Embaixada norte-americana na Somália durante a “Operação

Restaurar a Esperança”, Walter Clarke quem argumentou que somente uma força

de paz interventora seria portadora de legitimidade, outorgada pelo Conselho de

Segurança, num Estado falido como a Somália. Segundo Clarke (1997:11): “In a

failed-state environment, by definition, no local leader can claim authority on the

basis of legitimate selection by the broader national community”.

O que vimos acima é que a ONU objetava todas as iniciativas dos somalis

voltadas para a organização de conferências e aprovação de documentos por conta

própria, sem a intermediação da Organização. Desse modo, fica evidente, o

caráter limitado da chamada por participação dos somalis na reconstrução do seu

próprio país, tendo em vista que a ONU arrogava para si a autoridade final de

decidir sobre o caráter dessa participação. Ao estabelecer quem deveria ser

incluído e excluído nesse processo, argumenta-se que a ONU reintroduziu na

Somália a lógica do Conselho de Tutela, o qual, conforme já visto, estabelecia os

critérios apropriados para a participação dos somalis nas suas instituições e, dessa

forma, disciplinava seus corpos e regulava seus espaços políticos.

Ao não aceitar o documento aprovado pelos somalis após a Conferência de

Adis Abeba, quando a ONU já não se encontrava presente, ao buscar controlar os

procedimentos para a escolha dos juízes somalis e ao modificar a agenda e a

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participação na “Conferência de Galcayo”, as Nações Unidas estabeleciam os

limites da participação somali, fiscalizando e regulando os processos políticos da

Somália.

Por outro lado, ao tentar coibir a resistência contra a intervenção veiculada

na Rádio Mogadíscio, a ONU desqualificava a “voz” da Somália transmitida pela

estação, questionando a sua autenticidade. De acordo com Lang (2003), foi

justamente a tentativa por parte de Aidid de declarar a Rádio Mogadíscio como a

“voz oficial” da Somália que suscitou a contrariedade das Nações Unidas. Afinal,

a ONU acreditava que apenas uma entidade como ela, representante da

“comunidade internacional”, poderia decidir quem poderia vestir o manto da

soberania num “Estado falido” como a Somália (Lang, 2003). Isso explica,

segundo o autor, porque a habilidade de Aidid de articular razões para a

resistência, sobretudo após ter se tornado objeto de perseguição, através da Rádio

Mogadíscio, parece ter incomodado tanto a ONU que passou, ainda que de forma

velada, a tentar capturar esta estação de rádio, apontada como uma de fonte de

propaganda anti-ONU.

7.1.7 A Retirada dos Estados e da ONU diante da "ingratidão" dos somalis

O corpo de um soldado norte-americano sendo arrastado pelas ruas de

Mogadíscio. Fonte: History Channel

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Sherife Caubói arrastando um bandido por uma corda. Disponível no link: WWW.shutterstock.com

Assim como imagens contribuíram para a criação das condições de

possibilidade para o envolvimento dos Estados Unidos na Somália, também foram

elas que possibilitaram a sua retirada. Enquanto, no primeiro caso, como visto, as

imagens expunham, sobretudo, crianças e mulheres famintas, produzindo uma

Somália vulnerável necessitando urgentemente de proteção, no segundo caso,

essas imagens mostravam os corpos de soldados norte-americanos mortos sendo

arrastados através das ruas de Mogadíscio. Diante dessas imagens, o senador do

Texas, Phil Gramm fez a seguinte constatação: “The people who are dragging

American bodies don’t look very hungry to the people of Texas” (apud Quindlen,

1993).

A idéia de que os somalis salvos pelos Estados Unidos durante a operação

“Restaurar a Esperança” agora se voltavam contra aqueles que lhe alimentaram

serviu para reforçar a imagem, presente desde os tempos coloniais, da

“ingratidão" dos somalis. O general norte-americano, John Brown, por exemplo,

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introduz o pequeno livro de Richard Stewart, “The United States in Somalia,

1992-1994”, contrastando o senso de “missão cumprida” derivado do trabalho

realizado pela UNITAF com os eventos dos dias 3 e 4 de outubro: “That sense of

mission accomplished" made the events of 3-4 October 1993 more startling, as

Americans reacted to the spectacle of dead U.S. soldiers being dragged through

the streets by chcleering Somali mobs-the very people Americans thought they

had rescued from starvation” (apud Stewart, 2002:4, grifo meu). A frase de

Brown estabelece uma equivalência exata entre os somalis que arrastaram os

corpos dos soldados norte-americanos e aqueles que foram alimentados pela

ONU; o que tem um efeito poderoso no sentido de produzir a “ingratidão” dos

somalis. Na conclusão do livro, Stewart reforça o sentido de ingratidão dos

somalis sugerido por Brown, quando coloca: “In a country where the United

States, perhaps naively, expected some measure of gratitude for its help, its forces

received increasing hostility as they became more deeply embroiled into trying to

establish a stable government” (Stewart, 2004:26).

De modo similar, ao se referir aos eventos do dia 3 de outubro, o piloto

Durant, chamou a atenção para a ingratidão dos somalis, os quais estariam

atacando justamente aqueles que tentavam alimentá-los:

Within hours, the images of my comrades’ corpses being dragged through the streets by celebrating Somalis would be seen my millions. The African did not realize it at the time, but their hideous revenge would completely alter the world’s perception about who had committed atrocities in Somalia. They are literally biting the hands that are trying to feed them. No one would forget those images. No one should (Durant, 2004:132, grifo meu).

A partir da leitura das passagens acima também fica claro que a

personificação do “inimigo” somali na figura de Aidid teve vida curta, já que,

após os episódios dos dias 3-4 de outubro, quando o piloto Durant foi seqüestrado

e os corpos de soldados norte-americanos mortos foram arrastados pelas ruas de

Mogadíscio, Aidid foi excluído da narrativa dominante e o culpado pela situação

somali passou a ser representado por hordas de somalis raivosos e ingratos.

Se, por um lado, como já mostrado, o piloto seqüestrado, Durant, inicia

seu livro recordando que a perseguição ao general Aidid constituiu a principal

razão da sua presença na Somália, por outro lado, ao descrever o que lhe acontece

no dia 3 de outubro, o piloto recorre à imagem das massas enfurecidas. Relatando

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a queda do seu helicóptero e o que lhe ocorre em seguida, Durant (2004:68, grifo

meu) coloca: “In seconds, the Somalis would come for me. Not an organized

military enemy, but a mob of enraged civilians and militia with only one thing on

their minds: vengeance”. Mais adiante, Durant (2004:76-7, grifo meu) descreve

seu estado físico por meio das seguintes palavras: “I was shot down and badly

wounded, an American in the clutches of an infuriated enemy, a hated symbol of

Caucasian Western power, fallen from the sky into a swarm of African tribal

rage. I was a man in a land of no futures, without a hint of what might happen

next (….)”. Ao se indagar sobre o destino dos seus amigos após os eventos do dia

3 de outubro, ele conclui desesperançado: “Could any of them have possibly

escaped this mass fury that seemed to engulf the entire city?” (Durant, 2004:80,

grifo meu).

Esses discursos nos revelam, portanto, que, dos incidentes de 3 de outubro

em diante, o “inimigo” começou a ser descrito como uma “massa furiosa” ou

como uma “multidão de civis enfurecidos”. Enquanto nos primeiros discursos, o

“inimigo” era formado por bandos armados esparsos que aterrorizavam uma

Somália impotente e desprotegida, agora, esse “inimigo”, como colocado por

Durant, parecia “engolir toda a cidade (Mogadíscio)”. Um “inimigo” que,

conforme Durant aponta, é movido pela “raiva tribal africana” e que habita uma

“terra sem qualquer futuro”.

Se, como vimos, Aidid foi representado como um vilão “moderno”, as

“massas raivosas” supracitadas foram localizadas, pelo discurso dominante, como

estando num estágio de desmedido atraso em relação ao mundo moderno. Para

exemplificar tal atraso, basta que recorramos à narração de alguns momentos do

encontro entre Durant e seus seqüestradores. Durant, por exemplo, ridicularizou,

em inúmeras passagens, o inglês falado pelos seus seqüestradores. Para citar

apenas uma dessas passagens: “It was hard to understand his African mixed with

bursts of incongruous American slang (...)” (Durant, 2004:95). Por outro lado,

Durant nos mostra que tais homens, diferente da representação feita de Aidid,

desconheciam as leis humanitárias, como fica claro no seguinte diálogo

estabelecido entre ele e os seus seqüestradores:

“’You are pilot of helicopters?’ ‘I`m sorry, Sir. In accordance with the Geneva Convention, I am not required to give that information’.

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The ‘brothers’ exchange confused frowns, ‘What`s the name of your military group?’ ‘I’m sorry Sir’, I said again. ‘But in accordance with the Geneva Convention, I am not required to give that information’. ‘But this is not Geneva’, said Frick. ‘This is Somalia, and we require it’” (Durant, 2004:154, grifo meu). . A tranformação da retórica dominante desde a identificação de um culpado

centralizado para a menção a culpados concebidos abstratamente também pôde ser

verificada no discurso de Clinton do dia 7 de outubro de 1993, no qual o

presidente anunciou a data da retirada dos Estados Unidos da Somália (31 de

março de 1994). Nesse discurso, ele tratou de invalidar a tendência de identificar

na figura de Aidid a culpa pela situação da Somália. Se referindo ao contingente

adicional por ele requerido nessa mesma data, ele enfatizou que um dos seus

objetivos seria o de: “[T]o keep the pressure on those who cut off relief supplies

and attacked our people, not to personalize the conflict but to prevent a return to

anarchy”.

Clinton iniciou o seu discurso recordando o motivo, relacionado ao

combate à fome, pelo qual os Estados Unidos se decidiram pelo envolvimento

militar na Somália. Todavia, curiosamente, nota-se um grande silêncio no

discurso do presidente norte-americano, já que não foram sequer mencionados os

esforços militares dos Estados Unidos no sentido de capturar Aidid (ver Butler,

2002). Se, em agosto de 1993, Albright havia, como já dito, estabelecido uma

relação direta entre a fome somali de 1991-2 e a figura do general Aidid, agora,

retornava-se aos causadores originais da fome, a saber, as gangues armadas

somalis. Nesse sentido, argumenta-se que o tempo presente foi lido, no discurso

de Clinton, por meio dos referenciais do passado, momento esse em que a

UNITAF se disse bem-sucedida no combate à fome que assolava o país e em que

as gangues armadas eram entendidas como a principal ameaça ao trabalho

humanitário realizado na Somália. A seguir transcrevo as palavras que abrem o

discurso de Clinton (1993, grifo meu):

Today, I want to talk with you about our Nation’s military involvement in Somalia. A year ago, we all watched with horror as Somali children and their families lay dying by tens of thousands, dying the slow, agonizing death of starvation, a starvation brought on not only by drought, but also by the anarchy that then prevailed in that country. This past weekend we all reacted with anger and horror as an armed Somali gang desecrated the bodies of our American

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soldiers and displayed a captured American pilot, all of them soldiers who were taking part in an international effort to end the starvation of the Somali people themselves..

Como fica claro no discurso acima, portanto, Clinton não faz qualquer

alusão à idéia de que os soldados americanos mortos estavam, de fato, naquele

momento, participando de uma missão voltada para a captura dos seguidores de

Aidid, e não, como por ele colocado, integrando um esforço internacional para

acabar com a fome dos somalis. Não só a missão levada a cabo naquele momento

não era de caráter humanitário, mas, mais do que isso, a ONU e os Estados

Unidos vinham recebendo uma série de críticas por estarem priorizando as

operações militares em detrimento dos esforços humanitários. Tais críticas foram

lideradas pela Itália que advertiu para o risco das operações militares

sobrepujarem em gastos a ajuda humanitária (Reuter, 1993). A Itália, que havia

enviado o terceiro maior contingente da força de paz para a Somália, protestou

contra a ênfase exagerada colocada na confrontação militar com o general Aidid

em detrimento da negociação (ver Reuter, 1993; Tripodi, 1999). Condenando as

ações voltadas para a captura de Aidid em Mogadísico, o ministro de defesa

italiano, Fabio Fabbri, por exemplo, enfatizou que uma ação humanitária não era

compatível com uma ação que resultasse na morte de civis (Tripodi, 1999). De

acordo com Tripodi (1999:149):“UN orders were in stark contrast to what Italy

perceived as the aim of the humanitarian intervention. (…) According to

[General] Loi 112the UN retaliation campaign was a blunder as the UN was now

fully engaged in the Somali war as a belligerent group”. Ao encampar tal

perspectiva crítica, as tropas italianas foram progressivamente excluídas do

comando da UNOSOM II (ver Tripodi, 1999). Todavia, conforme observado por

Tripodi (1999), a literatura sobre a operação da ONU na Somália negligenciou

sobremaneira a posição italiana e o que vimos é que a opção militar focada na

captura de Aidid e dos seus seguidores foi construída como a única possível dada

a truculência atribuída ao “inimigo”. Por outro lado, desde o início da caçada à

Aidid, alguns trabalhadores humanitários não governamentais reclamaram com

repórteres que as ruas do sul de Mogadíscio se tornaram inseguras para europeus e

norte-americanos, forçando, desse modo, a um retrocesso nos programas de 112 Comandante da IBIS (Italian Operation in Somalia). Para saber mais sobre a IBIS, ver Tripodi (1999: 142-146).

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fornecimento de comida para os somalis (Reuter, 1993). Tais críticas, contudo,

foram minizadas por Albright no seu artigo do dia 10 de agosto de 1993, quem

colocou: “Yes, military operations can complicate and temporarily slow

humanitarian efforts. But critics are wrong to suggest that relief and development

work in Somalia has stopped”.

Contudo, de acordo com a lógica exposta por Clinton no seu discurso do

dia 7 de outubro, a violência observada na Somália que teve seu clímax na cena

trágica dos corpos dos soldados norte-americanos arrastados pelas ruas de

Mogadíscio, foram ações visando a obstruir os trabalhos humanitários que

supostamente estariam sendo desenvolvidos na Somália. Não obstante, tal retórica

omite que, tal cena resultou, de fato, de uma operação de cunho militar que, para

muitos, estava, ela mesma, obstruindo os trabalhos humanitários no país.

Sem expressar o mesmo pessimismo de Durant, para quem os somalis que

lhe fizeram de refém viviam numa “terra sem qualquer futuro”, Clinton buscou,

no discurso supracitado, dar uma continuidade retórica ao papel dos Estados

Unidos de provedor da esperança para os somalis. E, para tal fim, alegou que o

prazo de seis meses para a retirada dos Estados Unidos da Somália seria

necessário para “demonstrate to the world, as generations of Americans have

done before us, that when Americans take on a challenge, they do the job right”.

Contudo, para que os norte-americanos pudessem ser bem-sucedidos no desafio

de completar o trabalho iniciado na Somália, os culpados somalis não podiam ser

confundidos com toda uma sociedade em pé de guerra, mas tinham que continuar

sendo circunscritos, tal como no momento da UNITAF, a gangues armadas;

afinal, era importante que existissem pessoas bem intencionadas com as quais

pudesse se negociar a reconstrução do país.

Todavia, Clinton deixa claro que a Somália só teria salvação se os somalis

aproveitassem a última chance que lhes estava sendo ofertada. Caso contrário, eles

retornariam ao passado de anarquia e de fome prévio à chegada dos Estados

Unidos. Esse discurso de Clinton nos lembra, ainda que de uma forma

modificada, aquele de Hempstone quem, como visto, defendeu a inação dos

Estados Unidos na Somália partindo do pressuposto de que a participação do seu

país na Somália teria de ser feita por tempo indeterminado, pois caso contrário a

fome e anarquia retornariam. Ainda que Clinton tenha aventado a possibilidade de

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que tal ajuda internacional pudesse surtir efeito num período tão curto como seis

meses, ambos os argumentos, de Clinton e de Hempstone, creditam unicamente

aos atores externos a possibilidade de salvar a Somália de si mesma,

desenredando-a do ciclo perpétuo de anarquia e de fome na qual ela se

encontrava. Assim, Clinton alerta para os perigos de uma retirada prematura dos

Estados Unidos, alegando que: “[I]f we were to leave Somalia tomorrow, other

nations would leave, too. Chaos would resume. The relief effort would stop, and

starvation soon would return”. Mais adiante, ao expor seu plano de salvação para

a Somália, Clinton volta a se posicionar de forma similar:

I am proposing this plan because it will let us finish leaving Somalia on our own terms and without destroying all that two administrations have accomplished there. For if we were to leave today, we know that would happen. Within months, Somali children again would be dying in the streets.

Para que o caos e fome não retornassem era preciso que os somalis

aproveitassem a chance que os Estados Unidos estavam dispostos a lhes conceder

e assumissem a responsabilidade pelo seu futuro. Retornando ao espírito original

da missão norte-americana na Somália, Clinton deixou claro, tal como Bush havia

feito em 1992, que o objetivo do seu país na Somália não era o de ditar os

resultados políticos. Nas palavras de Clinton: “It is no our job to rebuild

Somalia’s society or even to create a political process that can allow Somalia’s

clans to live and work in peace. The Somalis must do that for themselves”. Essa

visão foi corroborada na mensagem ao Congresso do dia 13 de outubro de 1993,

quando Clinton releu a atuação dos Estados Unidos na Somália asseverando que

nunca esteve em nos planos do país o de reconstruir o país. Conforme já vimos,

Clinton colocou categoricamente que os Estados Unidos foram para a Somália

unicamente para salvar vidas e que nunca teve a pretensão de reconstruir a nação

somali.

Para serem capazes de se autogerirem, os somalis tinham, de acordo com o

discurso de Clinton de 7 de outubro, que aceitarem a chance que estava sendo

oferecida pelos Estados Unidos, a qual foi colocada por Clinton para o público

norte-americano da seguinte forma: “Do we invite a return of mass suffering, or

do we leave in a way that gives the Somalis a decent chance to survive?”. Butler

(2002) chama a atenção, contudo, para o fato de que tal retórica surpreende dada a

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impossibilidade de se chegar a um acordo pacífico entre esse momento e a data de

partida anunciada pelos Estados Unidos, no dia 31 de março de 1993.

Nesse discurso de Clinton, com já dito, os culpados continuavam sendo os

mesmos de outrora: as gangues armadas somalis. Desse modo, o presidente

construiu uma coerência entre os primeiros perturbadores da ordem na Somália

durante a operação da UNITAF e os daquele momento subseqüente, ao afirmar:

“[T]hen in June, the people who caused much of the problem in the beginning

started attacking American, Pakistani, and other troops who were there just to

keep the peace”. Ao congelar os agentes da violência somali, representando-os

como sendo os mesmos que causaram a fome dos somalis na fase inicial da

operação, pode se destacar no discurso de Clinton, pelo menos, cinco efeitos: (i) o

de despolitizar tais agentes, visto que eles não estariam agindo em relação a uma

ação específica voltada para a caça dos seguidores de Aidid no hotel Olympic e

seus atencedentes, mas contra toda e qualquer ação levada a cabo pelos agentes

externos desde a fase inicial da operação, independente do seu conteúdo; (ii) o de

desumanizá-los, já que eles seriam os mesmos que haviam se voltado contra uma

operação caracterizada como “estritamente humanitária” voltada para “salvar”

crianças e não estariam, portanto, lutando uma guerra contra as forças da ONU;

(iii) o de silenciar acerca do papel dos agentes externos no fomento de novos

opositores às ações internacionais na Somália, agentes esses não relacionados aos

primeiros episódios de violência dirigidos contra a UNITAF; internalizando, desse

modo, as causas do conflito, (iv) o de cancelar a transformação da natureza da

operação de uma operação “humanitária” para uma operação de captura de Aidid,

a fim de que a mesma pudesse ser vista como uma operação “vitoriosa” que como

Clinton colocou nesse mesmo discurso “saved close to one million lives”; e,

finalmente, (v) para que Aidid fosse, novamente, incluído nas negociações que,

segundo ele, deveriam ser retomadas113, já que conforme coloca: “While we’re

taking military steps to protect our own people and to help the U.N. maintain a

113 Segundo Murray (2009:41), Clinton já havia alertado sobre a necessidade de uma solução política para os problemas somalis e, desse modo, tentado esvaziar o aspecto militar da missão desde o mês de setembro. Nesse momento, segundo Murray (2009:41), Clinton havia enfatizado que os próprios somalis deveriam ficar a cargo dos seus destinos. Todavia, como nos mostra Murray (2009:41), infelizmente, ninguém pensou em informar às tropas no campo da suposta mudança política e tampouco foi votada qualquer resolução alterando o mandato das forças da UNOSOM II. Na ausência de tais diretrizes, portanto, a perseguição de Aidid continuou até o dia 3 de outubro (Murray, 2009).

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secure environment, we must pursue new diplomatic efforts to help the Somalis

find a political solution to their problems. That is the only kind of outcome that

can endure”.

O curioso é que, conforme bem observado por Butler (2002), os Estados

Unidos, agora, se apresentavam como intermediários dos esforços diplomáticos,

apesar da clara evidência de que o país foi parte do combate na Somália ao se

decidir pela perseguição de Aidid e dos seus seguidores. De fato, como nos

mostra Lewis (2002:273), o embaixador Robert Oakley, quem havia dirigido a

“Operação Restaurar a Esperança” retornou a Mogadíscio para tentar conduzir

Aidid de volta para a mesa de negociações. Nesse sentido, Aidid, que, fazia pouco

tempo, era o líder mais procurado de Mogadíscio, no cenário pós-3 de outubro,

retorna a sua posição inicial, qual seja: a de um interlecutor legítimo das

aspirações somalis.

A ONU, por sua vez, seguiu o mesmo caminho e intensificou os esforços

para persuadir os líderes das facções a formarem um governo a fim de que as

forças internacionais reminiscentes pudessem sair de forma ordeira (ver Lewis,

2002). Em junho de 1994, uma frase dita pelo embaixador Lansane Kouyate,

enviado especial do Secretário-Geral para a Somália, refletiu tal mudança de

posição por parte da ONU: “The warlords are now peacelords” (apud Menkhaus,

1997:42). Finalmente, a ONU anunciou, por meio da resolução 954, de 4 de

novembro de 1994, que a operação se retiraria da Somália em março de 1995 (ver

S/RES/954, apud Boutros-Ghali, 1996:462-3).

Sem ter pretendido aqui, de modo algum, avaliar o teor das intenções dos

líderes somalis, esse capítulo intentou mostrar o caráter político de muitos dos

predicados que lhes foram conferidos nos diferentes momentos da operação.

Longe dos Estados Unidos e da ONU se oporem a um “inimigo” auto-evidente, as

fronteiras do mesmo eram móveis, sendo fixadas por meio da autoridade dos

agentes internacionais. Aidid, por exemplo, foi subjetivado pelos agentes externos

de diferentes formas ao longo do envolvimento da ONU/Estados Unidos na

Somália. Na medida em que tais fronteiras se mostram móveis e, portanto, não

necessárias, as respostas dirigidas aos mesmos, muitas vezes apresentadas como

as únicas possíveis, também se revelam contingentes, fruto de escolhas políticas

adotadas em momentos históricos específicos.

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É interessante notar, para finalizar esse item, que os mesmos fatores (a

existência de facções e líderes resistentes) invocados para a criação da UNITAF,

também serviram para explicar a retirada dos Estados Unidos e da ONU após os

incidentes do dia 03 de outubro. Em novembro de 1993, um funcionário da ONU

teria dito: (apud Atkinson, 1993).

It’s their choice. If they want to continue doing battle, then we’re leaving...We’re telling them, “You destroyed your country, not us. You created the situation where nearly 1 million people died of starvation. The world doesn’t owe you anything. Nesse sentido, conforme já mencionado anteriormente, assistimos a uma

internalização da culpa pela guerra, a qual é atribuída unicamente aos somalis; o

que, por sua vez, cria as condições de possibilidade para a saída dos agentes

internacionais. Tal internalização da culpa pela guerra pode ser percebida num

pseudo-dialógo estabelecido entre um somali e Durant no período do seu

cativeiro. O piloto, na ocasião, teria sido interpelado por um somali que se

dirigindo a uma criança disse: “This kid fight much years. He brothers dead. All

brothers dead!”. Sem respondê-lo, Durant pensou: “We didn’t create the turmoil

that decimated this kid’s home and country, I thought. YOU Somalis did that

without our involvement, and we only came here to help resolve the situation”

(Durant, 2004: 95).

Refletindo essa mesma ênfase nos aspectos domésticos do conflito somali,

em novembro de 1995, o Representante Permanente da Espanha no Conselho de

Segurança expôs os seguintes motivos para o término do mandato:

The Council’s decision today to terminate the mandate of UNOSOM II on 31 March 1995 cannot be construed as a failure of the United Nations involvement in Somalia. It is, rather, evidence that without the effective cooperation of the parties involved any peace-keeping operation will be unable to reach all its objectives: stability, reconstruction and progress in Somalia must be fruit of a joint of the population as a whole. As long as Somali factions continue to place their partisan interests before those of the people as a whole, Somalia will be enable to regain a normal existence or fully reincorporate itself into the mainstream of today’s world. (apud Boutros-Ghali, 1996:74, par. 210)

Assim, ao ser construído como um conflito endógeno, cuja culpa recaiu

sobre os próprios somalis, o “mundo” automaticamente se eximiu do dever moral

de ajudá-los, afinal, esse “mundo” não teria tido, segundo o discurso dominante,

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qualquer participação no mesmo. Por conseguinte, o envolvimento internacional

no conflito passou a ser construído nesse momento final como um ato de

generosidade sistematicamente sabotado por somalis ingratos.

Nesse sentido, nota-se uma mudança retórica, a qual transferiu a

responsabilidade pela solução dos problemas somalis desde os atores

internacionais para os próprios somalis. O prenúncio de tal mudança já havia

começado a se mostrar, mesmo antes, dos incidentes do dia 3 de outubro. Numa

coletiva do dia 28 de setembro, quando a estratégia de perseguição à Aidid ainda

seguia seu curso na Somália, Clinton colocou: “[W]hat I want to emphasize (...)

was that there has to be a political strategy that puts the affairs of Somalia back

into the hands of Somalia”. Clinton reforça tal posição dizendo mais adiante:

“[E]very peacekeeping mission or every humanitarian mission has to have a date

certain when it’s over and you have to in the end turn the affairs of the country

back over the people who live there. We were not asked to go to Somalia to

establish a protectorate or a trust relationship or to run the country”.

A leitura que internaliza as causas e, por conseqüência, as soluções do

conflito somali silencia, contudo, a participação dos atores externos nas condições

que conduziram ao conflito em primeiro lugar, por exemplo, por meio da ajuda

em armas para o Chifre da África, bem como silencia acerca das falências

sistemáticas da dita “comunidade internacional” de remediar o mesmo conflito,

falências essas que, por muitas vezes, acabaram, de fato, por estimulá-lo, como foi

o caso da caça à Aidid. Ao situar as causas do conflito somali assim como da

retirada dos Estados Unidos e da ONU meramente nas condições internas desse

país, o discurso dominante ajuda a produzir os atores externos como altruístas e

salvadores, eximindo-os de qualquer responsabilidade moral pelos trágicos

eventos do presente.

7.2 Os Efeitos do Discurso Intervencionista sobre a Identidade dos Estados Unidos e da ONU

Conforme vimos no início dessa parte, o envolvimento dos Estados Unidos

e da ONU na Somália se deu no contexto de uma proclamada “Nova Ordem

Mundial”, a qual teria sido impulsionada pela vitória da ONU/Estados Unidos na

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Guerra do Golfo. De fato, foi nesse contexto que a idéia de uma “nova ordem

mundial” começou a ser forjada de forma a conferir uma determinada coerência às

relações internacionais do pós-Guerra Fria. Alega-se aqui, portanto, que o slogan

da “nova ordem mundial” foi o meio pelo qual o discurso dominante de então

buscou disciplinar as contingências do momento que seguiu à queda do Muro de

Berlim, arranjando-as numa estória de progresso e coerência.

Foi George Bush quem conferiu o tom da “nova ordem mundial” no

contexto da guerra contra o Iraque. No dia 11 de setembro de 1990, ele colocou:

“We stand today at a unique and extraordinary moment. The crisis in the Persian

Gulf, as grave as it is, also offers a rare opportunity to move toward an historic

period of cooperation”. E, definindo a “nova ordem” que, segundo ele estava

lutando por nascer, Bush seguiu dizendo:

[A] new era –freer from the threat of terror, stronger in the pursuit of justice, and more secure in the quest for peace. An era in which nations of the world, East and West, North and South, can prosper and live in harmony. A hundred generations have searched for this elusive path to peace, while a thousand wars raged across the span of human endeavour. Today that the new world is struggling to be born, a world quite different from the one we’ve known. A world where the rule of law supplants the rule of the jungle. A world where in which nations recognize the shared responsibility fro freedom and justice. A world where the stronger respect the rights of the weak114.

O que se apresenta quase como uma prescrição em 1990, a saber: um mundo

marcado pela paz, harmonia, cooperação e justiça, vai ganhando contornos mais

factuais, segundo Bush, em março de 1991, logo após a vitória na guerra do Golfo

quando ela passa pelo seu primeiro teste:

Now, we can see a new world into view. A world in which there is the very real prospect of a new world order. (….). A world where the United Nations, freed from cold war stalemate, is poised to fulfil the historic vision of its founders. A world in which freedom and respect for human rights find a home among all nations. The Gulf War put this new world to its first test. And my fellow Americans, we passed the test115.

Essa “nova ordem mundial”, portanto, não estava pronta, acabada, mas ainda

encontrava-se no seu momento de teste, segundo a retórica do presidente Bush.

Nesse sentido, essa “nova ordem” precisava ser praticada e testada a fim de

114 Grifo meu. 115 Grifo meu.

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ganhar robustez e durabilidade. É possível pensar que a segunda grande

oportunidade de teste surge, precisamente, na Somália. Nesse sentido, a Somália

passa a ser concebida como um laboratório para essa “nova ordem mundial” em

gestação.116

Nessa “nova ordem mundial”, conforme colocado por Bush anteriormente,

a ONU teria um papel de destaque na medida em que deixava de estar limitada

pelos impasses da Guerra Fria. Todavia, tanto a Administração Bush como a

Administração Clinton, deixaram claro que os Estados Unidos estariam à frente da

“nova ordem mundial”, liderando-a. A liderança norte-americana do “novo

mundo” teria ficado clara não apenas no momento da Guerra do Golfo, quando

uma operação da ONU comandada pelos Estados Unidos foi bem sucedida em

retirar o Iraque do Kuwait, mas, também, no momento seguinte, da Somália,

quando, conforme vimos, o Secretário-Geral da ONU aceitou que os Estados

Unidos assumissem o comando da UNITAF já que, nas suas palavras: “The

Secretariat, already overstretched in managing greatly enlarged peace-keeping

commitments, does not at present have the capability to command and control an

enforcement operation of the size and urgency required by the present crisis in

Somalia” (S/24868, apud Boutros-Ghali, 1996: 212).

A necessidade do comprometimento norte-americano para lidar com as

novas crises internacionais é igualmente enfatizada pelo acadêmico Lewis quem

colocou, referindo-se à situação somali:

It had now become clear that, without strong logistic and other support from the United States, for all the Secretary-General’s enthusiasm to make Somalia a test case extending the U.N. Charter, member states did not possess the resources, interests or political will to build a coherent action plan to address this challenging new crisis (Lewis, 2002:268). A indispensabilidade dos Estados Unidos nesse “novo mundo” foi

explicada por Bush, durante a ação dos Estados Unidos na Somália, no seu

discurso de 4 de dezembro de 1992, da seguinte maneira:

In taking this action, I want to emphasize that I understand that the United States alone cannot right the world’s wrongs. But we also know that some crises in the world cannot be resolved without American involvement, that American action is often necessary as a catalyst for broader involvement of the community of

116 No próximo capítulo, essa idéia da Somália como um “laboratório” será retomada.

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nations. Only the United States has the global reach to place a large security force on the ground in such a distant place quickly and efficiently and thus save thousands of innocents from death..

No ano seguinte, o presidente Clinton reafirmou a necessidade da

liderança dos Estados Unidos no “novo mundo” ao dizer no seu discurso sobre a

situação da Somália proferido no dia 5 de maio:

You have shown that the work of the just can prevail over the arms of the warlords. You have demonstrated that the world is ready to mobilize its resources in new ways to face the challenges of a new age. And you have proved yet again that American leadership can help mobilize international action to a better world.(…) The world has not seen the end of evil, and America can lead other countries to share more of the responsibilities that they ought to be shouldering. Some will ask why we must so often be the one to lead. Well, of course we cannot be the world’s policeman, but we are, and we must continue to be, the world’s leader.

A liderança dos Estados Unidos no “novo mundo”, contudo, tinha de ser

permanentemente enfatizada, pois ela já não era tão óbvia e natural como parecia

ter sido durante a Guerra Fria. Naquele então, a União Soviética foi construída

como a encarnação do mal que ameaçava, militar e ideologicamente, o “mundo

livre” e que, por isso, exigia uma permanente militarização e liderança dos

Estados Unidos. No novo contexto, onde o “inimigo” do mundo livre foi dito

“derrotado”, novos perigos passaram a ser retoricamente enfatizados; justificando,

desse modo, a continuidade da liderança norte-americana no mundo em

transformação. Nesse sentido, conforme foi observado, Clinton fez questão de

frisar que o mundo não assistiu ao fim de todos os males e, justamente por isso, a

liderança dos Estados Unidos ainda fazia-se imprescindível. A questão que se

coloca é: o que estava em jogo nessa insistência por parte dos Estados Unidos de

fabricar não só novos perigos, mas, também, a sua indispensabilidade para

neutralizá-los?

Uma resposta a essa questão nos é dada por David Campbell (1996), para

quem o fim da Guerra Fria e a conseqüente dissolução do inimigo que, até então,

havia definido de forma clara o interesse nacional dos Estados Unidos, relançou

de forma vigorosa os debates domésticos sobre o interesse nacional do país,

doravante mais difícil de ser articulado em virtude da ausência de um inimigo

externo claro. Campbell (1996) argumenta que, por se constituírem enquanto uma

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comunidade imaginária, os Estados Unidos têm de recorrer a uma série de

estratégias, a exemplo da política externa, a fim de assegurar a estabilidade da sua

identidade. Desse modo, Campbell (1996) problematiza o entendimento

convencional de política externa enquanto uma expressão das relações entre atores

pré-estabelecidos dotados de identidades seguras, e passa a entendê-la como uma

prática produtora de fronteiras, crucial para a produção e reprodução da identidade

dos Estados. Segundo Campbell (1996), a constituição do self é alcançada por

meio da inscrição de fronteiras que servem para diferenciá-lo de um “Outro”

construído como ameaçador e moralmente inferior, de tal sorte que as constantes

articulações do perigo através da política externa não constituem uma ameaça à

identidade, mas sua própria condição de possibilidade. Por conseguinte, o

principal ímpeto por trás da localização da ameaça e da diferença no domínio

externo reside no fato de que, assim como o domínio anárquico do qual busca

distinguir-se, o próprio Estado soberano se constitui enquanto uma fonte de

incertezas. Nesse sentido, para Campbell, a política externa é um instrumento

produtor da dicotomia dentro/fora que resolve, através de um recurso espacial, o

problema da identidade política dos Estados ao conferir-lhes plenitude a despeito

das suas ambigüidades e indeterminações.

Ademais, o que Campbell (1996) nos mostra é que, no contexto do

imediato fim da Guerra Fria, teria se tornado bem mais difícil para os Estados

Unidos disciplinarem tais ambigüidades e incertezas devido à derrota do

“inimigo”, o qual havia contribuído, durante mais de quarenta anos, para conferir

um claro sentido à identidade norte-americana. Portanto, para Campbell (1996),

nesse momento de indefinição, revelou-se imprescindível para os Estados Unidos

o reforço do compromisso moderno com um self resolvido e unificado. Para tal

fim, fez-se necessário localizar novos inimigos que para serem enfrentados

exigissem a liderança norte-americana. Se seguirmos o argumento de Campbell

(1996), tais inimigos antes de ameaçarem a identidade dos Estados Unidos, a

produziriam.

Durante a Guerra do Golfo, esse “inimigo” foi identificado na figura de

Saddam Hussein, quem teria empreendido a primeira agressão ao “novo mundo”

que se desenhava (ver Bush, 1990). Em 1991, no término da Guerra do Golfo,

Bush identificou a ameaça que fora neutralizada pela coalizão da ONU liderada

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pelos Estados Unidos de uma forma extremamente clara: “The recent challenge

could not have been clearer. Saddam Hussein was the villain; Kuwait, the victim.

(…) Our uncommon coalition must now work in common purpose: to forge a

future that should never again be held hostage to the darker side of human

nature”117. Para libertar os cidadãos do Kuwait, reféns desse vilão, Bush havia

proposto em setembro de 1990 que os Estados Unidos se unissem e

transcendessem seus particularismos, conforme consta no seguinte chamado do

presidente à nação: “So, if there ever was a time to put country before self and

patriotism before party, the time is now”. Seguindo os passos de Campbell

(1996), contudo, podemos argumentar que esse chamado não era um chamado a

uma nação norte-americana pré-existente, mas era, antes, um chamado à

imaginação, por meio da qual essa nação se reinventava com o auxílio de novos

“inimigos”.

Argumenta-se nessa tese que o segundo campo de experimentação da

“nova ordem mundial” foi aquele estabelecido na Somália. Todavia, excetuando o

breve momento de perseguição ao general Aidid, as ameaças somalis, conforme

previamente mencionado, não foram antropomorfizadas. A Somália foi

representada como vítima dela mesma ou, mais especificamente, de um conflito

que deita suas raízes no seu passado pré-colonial. Nesse sentido, pode se perceber

que enquanto Hussein foi representado como um ditador moderno, o problema da

Somália foi inserido numa outra dinâmica temporal, a qual situou os somalis num

tempo muito aquém da modernidade. Embora ambos os “inimigos” (moderno e

não- moderno) tenham participado da produção da identidade dos Estados Unidos,

eles o fizeram de diferentes formas. No segundo caso, objeto de estudo dessa tese,

ao produzir o atraso somali, os Estados Unidos, ao mesmo tempo, produziram a

sua identidade de vanguarda, tão importante para construí-los como o líder da

“nova ordem mundial”.

É interessante notar que no seu sentido literal, a palavra “vanguarda”, que

vem do francês Avant Garde, faz referência ao batalhão militar que precede as

tropas em ataque durante uma batalha, de onde se deduz que vanguarda é aquilo

que “está à frente”118. Os Estados Unidos, durante a ação na Somália, não só se

posicionaram a frente das tropas multinacionais enviadas, comandando-as, mas, 117 Grifo meu. 118 Segundo o dicionário Babylon.

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também, ao fazê-lo, demandaram para si uma contrapartida política, qual seja: a

de serem reconhecidos como os líderes da “nova ordem mundial”. Ao se

projetarem como um país na vanguarda das transformações internacionais daquele

momento, os Estados Unidos afastavam-se retoricamente do mundo da política de

poder característico da Guerra Fria, o qual, por sua vez, se confundia com o

próprio passado das relações internacionais que outrora foram predominantemente

lidas pelas lentes do realismo político. Nesse sentido, buscava-se liderar um

movimento de descontinuidade em relação ao passado que, conforme o realismo

nos conta, seria um passado marcado pelo congelamento das relações de poder

evidentes desde os tempos de Tucídides. Essa “nova ordem mundial”, em

oposição ao mundo inerte, no qual o futuro repetiria o passado, dos realistas, é

representada como dinâmica, nova, na qual o futuro ainda estaria sem fechamento

e necessitando dos Estados Unidos para lhe conferir direção e impedir o seu

retorno à condição de anarquia.

Argumenta-se aqui que essa “nova ordem” precisou ser continuamente

reafirmada através de práticas discursivas logocêntricas, as quais localizavam

determinados espaços “fora da nova ordem mundial”, por ainda estarem

estacionados num tempo pré-moderno, como foi o caso da Somália. A Somália

estaria situada, portanto, naquilo que Walker (2006) denominou “o fora do fora”

(double outside), isto é, fora do moderno sistema de Estados soberanos e dos seus

excepcionalismos. O excepcionalismo somali seria traçado na fronteira do sistema

de Estados ou da modernidade. Nesse sentido, o “Outro” somali não se

enquadraria no tropo espacial amigo/inimigo característico do conflito

Leste/Oeste da Guerra Fria, mas no tropo temporal civilizado/bárbaro (ver

Walker, 2006).

Argumenta-se aqui, portanto, que as práticas discursivas dos Estados

Unidos ao lidarem com a Somália e com os somalis por meio da temporalização

da diferença, tiveram efeitos sobre a sua própria identidade, participando da sua

projeção como os líderes da “nova ordem mundial”. A população somali foi

concebida como física e imaginariamente remota do Ocidente (ver Debrix, 1999),

já que é difícil conceber nos países ditos civilizados a ocorrência de uma guerra

genocida movida por ódios clânicos (ver Besteman, 1996). Besteman (1996)

argumenta que a representação dominante dos somalis imersos em ódios clânicos

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ancestrais, envolvidos numa espiral destrutiva de tradição, permitiu aos

americanos imaginá-los como indivíduos radicalmente diferentes, chegarem a ter

pena deles quando as imagens de um povo faminto foram veiculadas pela mídia e,

ainda assim, se sentirem seguros. Nesse sentido, David Spurr escreveu o seguinte

sobre as imagens chocantes exibidas após os incidentes no Hotel Olympic: “The

visual enframing and metaphorical transformations that characterize such images

have a distancing effect (...) calling attention to suffering, they show it as out

there: contained, defined, localized in a realm of understood to be cultural apart”

(apud Butler, 2002:8).

O efeito de distanciamento salientado por Spurr tem uma conotação

temporal conforme tem se argumentado nessa tese. Vimos que o discurso norte-

americano reintroduziu o racismo cultural do período da tutela italiana e, ao fazê-

lo, traçou uma fronteira temporal bem demarcada entre os somalis e o Ocidente.

Por meio dessa fronteira temporal discursivamente produzida, os Estados Unidos

arremessam a diferença para fora das suas fronteiras nacionais garantindo a

homogeneidade do seu espaço doméstico atravessado por incertezas e

ambigüidades acentuadas pelo fim da Guerra Fria (ver Blaney, Inayatullah, 2002;

Campbell, 1996).

Besteman (1996) argumenta também que o processo de “othering” visível

na retórica norte-americana em relação à Somália resultou numa grosseira redução

da complexidade da sociedade somali atravessada por poderosas estratificações de

raça e de classe, para além das estratificações clânicas. Segundo a antropóloga, a

representação da Somália como uma sociedade dividida em clãs, alguns aliados,

outros em conflito perpétuo, sugeriu a idéia de uma sociedade de unidades

relativamente iguais perseguindo objetivos relativamente similares e vivendo em

mundos culturais similares. O espaço somali foi representado como um espaço

monocultural, ainda que temporalmente atrasado, sugerindo, desse modo, a idéia

de um sistema baseado numa única temporalidade pré-moderna. E, assim,

quaisquer sinais de maior complexidade, como as estratificações de raça e classe

mencionadas por Besteman, igualmente presentes na sociedade norte-americana,

tenderam a ser silenciados. Quaisquer liminaridades entre as sociedades norte-

americana e somali foram, portanto, ignoradas por meio de um discurso que

construiu tais sociedades como radicalmente diferentes e temporalmente distantes.

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O processo de localizar a diferença no espaço exterior (numa sociedade clânica

representada como inteiramente distinta à norte-americana), por sua vez, ajudou a

preservar a identidade dos Estados Unidos num momento particularmente

delicado para eles em razão de dois fatores apontados por Campbell (1996): (i) do

fim do inimigo soviético contra o qual a nação norte-americana se definia e (ii) do

subseqüente crescimento dos riscos de que o multiculturalismo dos Estados

Unidos pudesse fragmentar a nação americana. Desse modo, a demarcação de

fronteiras rígidas entre as duas sociedades ajudou os Estados Unidos a

preservarem a integridade da sua sociedade também atravessada por complexas

estratificações raciais, de classe e étnicas. Nesse sentido, no ato de “salvar” o

“Outro” somali, os Estados Unidos estavam, de fato, salvando a si mesmo, isto é,

tentando resguardar a sua identidade e protagonismo numa nova ordem

internacional fluida, em processo de transformação.

Conforme vimos, os Estados Unidos vislumbraram um papel de destaque

para a ONU no “novo mundo”, agora, liberta da paralisia que lhe foi característica

durante a Guerra Fria. As expectativas de revitalização da ONU aparecem de

forma bastante clara na “Agenda da Paz”, elaborada por Boutros-Ghali em janeiro

de 1992. Na Agenda, o Secretário-Geral observa que as décadas adversas da

Guerra Fria, as quais tinham obstaculizado a ONU de cumprir as promessas da

sua Carta, haviam chegado ao fim e dado lugar a crescentes expectativas entre os

Estados acerca das oportunidades de atuação da Organização. Conforme Boutros-

Ghali (1992, par. 3):

In these past months a conviction has grown, among nations large and small, that an opportunity has been regained to achieve the great objectives of the Charter - a United Nations capable of maintaining international peace and security, of securing justice and human rights and of promoting, in the words of the Charter, ‘social progress and better standards of life in larger freedom’. This opportunity must not be squandered. The Organization must never again be crippled as it was in the era that has now passed. Na “Agenda para Paz”, Boutros-Ghali buscou inaugurar novas avenidas

para a manutenção da paz e da segurança internacionais nessa era de

oportunidades abertas pelo fim da Guerra Fria. A grande inovação da Agenda

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300

residiu no novo conceito proposto: o de peacebuilding119. Segundo o Secretário-

Geral (1992, par.55, grifo meu):

Peacemaking and peace-keeping operations, to be truly successful, must come to include comprehensive efforts to identify and support structures which will tend to consolidate peace and advance a sense of confidence and well-being among people. Through agreements ending civil strife, these may include disarming the previously warring parties and the restoration of order, the custody and possible destruction of weapons, repatriating refugees, advisory and training support for security personnel, monitoring elections, advancing efforts to protect human rights, reforming or strengthening governmental institutions and promoting formal and informal processes of political participation. Desse modo, é possível notar que, já na sua “Agenda para Paz”, Boutros-

Ghali ressaltava a necessidade, enfatizada durante o conflito somali, mas

negligenciada pelos Estados Unidos, de desarmar as partes previamente em guerra

para que a ordem pós-conflito fosse restaurada. Nessa citação fica clara, ademais,

a sua defesa do processo de reforma e de fortalecimento das instituições estatais.

Todavia, para além da defesa do processo de reconstrução do Estado, conforme

vimos na primeira parte da tese, Boutros-Ghali também argumenta em prol de

uma forma particular de governança: a democrática, tida como condutora de uma

verdadeira paz, como consta na passagem que se segue:

There is a new requirement for technical assistance which the United Nations has an obligation to develop and provide when requested: support for the transformation of deficient national structures and capabilities, and for the strengthening of new democratic institutions. The authority of the United Nations system to act in this field would rest on the consensus that social peace is as important as strategic or political peace. There is an obvious connection between democratic practices - such as the rule of law and transparency in decision-making - and the achievement of true peace and security in any new and stable political order. These elements of good governance need to be promoted at all levels of international and national political communities (Boutros-Ghali, 1992: par. 59). Por outro lado, também nota-se na “Agenda para Paz” uma defesa da

combinação de tal modelo democrático com o modelo econômico liberal. Quando

Boutros-Ghali se refere ao novo contexto do pós-Guerra Fria, ele destaca o senso

de dinamismo e movimento proporcionado pela adoção das políticas econômicas

liberais, como consta na citação a seguir: “Authoritarian regimes have given way

119 Ver mais sobre peacebuilding no item 2.5.

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to more democratic forces and responsive Governments.(…) Parallel to these

political changes, many States are seeking more open forms of economic policy,

creating a world wide sense of dynamism and movement” (Boutros-Ghali, 1992:

par.9, grifo meu). Esse vai ser, portanto, o marco normativo que vai informar o

envolvimento da ONU na Somália três meses depois da publicação da “Agenda

para Paz”. Ainda que inicialmente concebida como uma operação destinada a

alimentar a população somali, vimos que desde o começo da operação, Boutros-

Ghali insistiu que somente com o desarmamento das facções e com a reconstrução

do Estado, a situação da Somália seria normalizada. Para que essa paz fosse

estável e duradoura, contudo, além de reconstruir o Estado, fazia-se necessário

erguê-lo em bases democráticas, missão essa confiada à UNOSOM II.

A Somália se tornou, portanto, o primeiro terreno onde tal modelo liberal

democrático seria colocado à prova na era do pós-Guerra Fria. Como colocado por

Tripodi (1999:139-140):

Somalia represented the first important peacekeeping commitment of the post-Cold War era, a new generation of peacekeeping never before tested. Therefore, the main international actors, the UN, and the only remaining superpower, the USA, did not yet have a strategy or plan of action. On the other hand, the schemes adopted in 1992 by the international community to stop the civil war and deal with starvation in Somalia were novel –they had to be tested on the ground and often adapted to a quickly changing situation. Como consta na passagem acima, portanto, a Somália foi o primeiro

campo de experimentação de uma nova geração de operações de paz que, se

preciso, deveriam ser adaptadas à luz da prática cambiante. Boutros-Ghali

também enfatizou o ineditismo da operação na Somália ao declarar: “There was

no precedent for the Organization to follow as it embarked on this course, no

example but the one it was about to set, and there were many unanswered

questions about the undertaking to which the international community had

committed itself” (Boutros-Ghali, 1996: 44, par. 127).

Uma possível interpretação, segundo Nogueira (1997), das razões para o

investimento de tantos recursos para a reconstrução do Estado somali pode estar

no esforço de representação da ONU como guardiã de um mundo regulado pelo

princípio da soberania estatal. Daí, a ONU acredita-se capaz de fundar novos

Estados e de desenhar fronteiras em “zonas selvagens” onde não existe autoridade

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ou identidade coletiva, mantendo, desse modo, a esperança num mundo ordenado

e composto por Estados soberanos autônomos (Nogueira, 1997).

Nesse sentido, conforme já destacado, as práticas discursivas empregadas

pela ONU para caracterizar a Somália no curso do conflito, a representou como

imersa numa situação de falência generalizada das suas instituições estatais e

clamou pela reconstrução das mesmas como o único meio de normalizá-la.

Embora voltado para um “Outro”, esse discurso, argumenta-se aqui, participou da

produção da própria identidade da ONU como uma Organização de Estados

soberanos e, como colocado por Nogueira (1997), como guardiã de um mundo

regulado pela soberania estatal.

A “falta” da Somália – representada, sobretudo, pela ausência de

instituições estatais e, por conseqüência, da centralização dos meios coercitivos - é

construída, pelo discurso da ONU, como uma disfunção que deveria ser corrigida

para que ela voltasse a integrar a comunidade de nações soberanas de onde ela

teria se afastado voluntariamente e temporariamente. Como colocado por Boutros-

Ghali (1996:87, par. 256): “A State that loses its Government –a failed State-loses

its place as a member of the international community”.

Essa disfunção, por sua vez, se expressou, em grande medida, sob a forma

de atraso em relação às formas modernas de organização política que, embora

contingentes, nos foram apresentadas como as únicas capazes de forjar um

ambiente internacional pacífico, harmonioso e progressivo. A importância

continuada do Estado soberano como pilar da nova ordem mundial é destacada de

modo claro por Boutros-Ghali na sua “Agenda para Paz”, onde se lê:

To the hundreds of millions who gained their independence in the surge of decolonization following the creation of the United Nations, have been added millions more who have recently gained freedom. Once again new States are taking their seats in the General Assembly. Their arrival reconfirms the importance and indispensability of the sovereign State as the fundamental entity of the international community (Boutros-Ghali, 1992: par. 10, grifo meu).

Ainda que Boutros-Ghali ressalte a importância do Estado soberano, ele

faz questão de salientar que não está se referindo a qualquer soberania, mas sim a

uma noção qualificada de soberania orientada para uma “boa governança interna”,

ou seja, uma governança democrático-liberal tal como por ele sugerido nesse

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mesmo documento. A seguir, portanto, Boutros-Ghali matiza a soberania que a

ONU deve promover:

The foundation-stone of this work is and must remain the State. Respect for its fundamental sovereignty and integrity are crucial to any common international progress. The time of absolute and exclusive sovereignty, however, has passed; its theory was never matched by reality. It is the task of leaders of States today to understand this and to find a balance between the needs of good internal governance and the requirements of an ever more interdependent world (Boutros-Ghali, 1992:par. 17, grifo meu).

Conforme destacado por Boutros-Ghali, portanto, o respeito pela soberania

e integridade do Estado é uma condição essencial para o progresso internacional.

No entanto, não é qualquer soberania que contribui para um mundo mais pacífico

e estável e sim uma soberania específica que atenda aos critérios democráticos

liberais por ele estabelecidos. O perigo vislumbrado por Bhuta (2008), como visto

na primeira parte da tese, é que, embora o conjunto de prescrições alocadas sob a

legenda da “boa governança” seja contingente, produto de uma história particular,

ele nos é apresentado como a única solução para sociedades como a somali.

Partindo da abordagem de Campbell já apresentada, podemos perceber o

caráter intimidante da identidade somali para a integridade da ONU da qual ela

faz parte. Por se construir como uma Organização promotora do progresso e do

bem-estar dos povos, a ONU precisa estar continuamente demarcando fronteiras

vis-à-vis a um ambiente externo indeterminado, resisitndo ao máximo que ilhas de

anarquia possam ser trazidas para dentro da Organização de forma a comprometer

a sua integridade. Na medida em que a identidade da ONU é atravessada por

ambigüidades, ela precisa estar continuamente inscrevendo fronteiras para

localizar tais Estados como desviantes, pois caso contrário tais Estados poderiam

vir a macular a identidade da Organização.

Assim, argumenta-se que a operação de paz da ONU na Somália, mais

especificamente a UNOSOM II, pode ser entendida como uma ação exterior da

ONU voltada para corrigir o desvio da Somália por meio da modernização da

sociedade somali, a qual, desde a guerra civil em 1991 teria regressado ao velho

arranjo das lealdades clânicas tradicionais. Tal operação teria como propósito,

portanto, o de reestruturar o Estado somali permitindo seu reingresso na

comunidade internacional, isto é, a sua coexistência harmoniosa com os seus

pares.

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Quando analisamos a prática de reconstrução de Estados da ONU na

Somália à luz da interpretação de Campbell, podemos percebê-la, portanto, como

uma prática de produção de fronteiras a partir da qual a diferença é construída.

Essa diferença ao mesmo tempo em que constitui uma ameaça à identidade da

ONU é a própria condição da sua possibilidade. Pois ao se considerar capaz de

preencher a “falta” somali levando a “boa governança” a um país em ruínas,

transformando conflito em consenso, desordem em ordem e atraso em progresso,

a ONU se constrói como detentora de todas as qualidades que faltam aos somalis.

São os discursos da ONU que lhe conferem o status privilegiado de portadora da

liberdade, da ordem, da democracia e da eficiência administrativa capaz de

corrigir esse “Estado falido”. Essa plenitude conferida à Organização, por sua vez,

ajuda a preservá-la face aos escândalos de corrupção, às críticas relativas à sua

redundância administrativa bem como à sua natureza antidemocrática expressa no

Conselho de Segurança.

Argumenta-se, nessa tese, que a construção discursiva dessas sociedades

como marcadas pelo atraso, anarquia, diferença e violência contribui para a

produção do progresso da dita “comunidade internacional”, em nome de quem a

ONU diz falar. O “progresso” dessa comunidade, informado pela idéia já

discutida, da paz liberal, se contrapõe, desse modo, à “tradição” dos povos

sujeitos a tais práticas de reconstrução. O discurso logocêntrico

(tradicional/moderno) participa da construção do Internacional com um espaço de

progresso e, portanto, contribui para a superação da sua imagem clássica,

apresentada pelos teóricos realistas, de repetição e de violência. Para tal fim,

continua revelando-se essencial a demarcação de fronteiras entre esses dois

planos, o doméstico e o internacional, viso que as regiões indisciplinadas, como a

Somália, precisam estar continuamente sob supervisão para impedir que anarquia

doméstica extravase e contamine o progresso desse domínio internacional em

transformação. Nesse sentido, no ato de “modernizar” o “Outro” somali, a ONU

estava, de fato, se modernizando, e, ao mesmo tempo, modernizando a

“comunidade internacional” em nome da qual falava.

Contudo, conforme já foi mostrado, a ONU não foi bem-sucedida na sua

pretensão de modernizar a Somália visto que não conseguiu cumprir o seu

propósito de levar o Estado centralizado para os somalis e, com ele, a ordem e o

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progresso. De acordo com Debrix (1999), a ONU saiu da Somália com a sua

identidade seriamente comprometida. Segundo esse autor, as imagens grotescas

dos soldados norte-americanos arrastados começaram a desvelar a impotência da

ONU e a sua incapacidade de reeditar na Somália a idéia de “nova ordem

mundial” em construção desde a Guerra do Golfo. Enfim, o autor nos mostra que,

em vez de seguirem seus scripts, alguns atores, sobretudo os somalis, preferiram

improvisar; o que transformou o envolvimento dos Estados Unidos/ONU na

Somália (lido por Debrix como um filme) num “atoleiro”. Nesse sentido, o enredo

do filme passou a se assemelhar mais ao tipo de produção de Oliver Stone, onde,

como no caso de Platoon, sobre a guerra do Vietnã, os bons moços se vêem

envolvidos no drama sem sentido e irracional da guerra terminando como vítimas

ou “bad guys” do que com roteiro de John Ford, onde os caubóis norte-

americanos estão prontos para salvar vítimas de hordas de bandidos mal-

intencionados (Debrix, 1999). Num sentido similar, Lewis (2002:273, grifo meu)

coloca, referindo-se à imagem dos soldados norte-americanos arrastados, estopim

da retirada dos Estados Unidos da Somália:

The American public had in any case had enough and, horrified by the grisly television pictures of dead US personnel being dragged ignominiously through the streets of Mogadishu, vociferously clamoured for immediate withdrawal from an African misadventure that was becoming alarmingly reminiscent of Vietnam.

Segundo Debrix (1999) o resultado para os atores envolvidos foi que, em

vez de terminarem glorificando a vitória na guerra e tendo suas identidades

reafirmadas, acabaram questionando a justificativa para a guerra e imersos em

dúvidas (Debrix, 1999)120. E, assim, os “caubóis” que tinham ido para Somália a

fim de “salvar” os somalis dos seus vilões, acabam, eles mesmos, arrastados

através das ruas de Mogadíscio, invertendo, desse modo, o script clássico do

gênero de cinema norte-americano.

120 A crise supostamente gerada na identidade dos atores envolvidos será relativizada no item 8.2 da tese quando essa questão será retomada.

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7.3 As (Des)Continuidades das “Novas” Operações de Paz da ONU

Na introdução busquei mostrar que essa tese é informada pela estratégia

foucaultiana de distinguir descontinuidade naquilo que se apresenta como

contínuo e de tentar examinar as possíveis continuidades daquilo que se apresenta

como único e novo.

Primeiramente, naquilo que se apresenta como novo, a saber, nas “novas”

operações de paz da ONU, a tese pretendeu desvelar os elementos de continuidade

em relação ao passado, de forma a desestabilizar o discurso de inovação

dominante no discurso sobre as mesmas. A tese sugere, conforme vimos, que

essas operações continuam informadas por práticas discursivas logocêntricas que

informaram tanto as ações coloniais como aquelas do Conselho de Tutela. Desse

modo, a Somália ainda continua sendo construída como “tradicional” e como

incapaz de se modernizar sem a benevolência de Estados temporalmente

avançados.

As “novas” operações de paz da ONU vêm sendo, desde o fim da Guerra

Fria, discursivamente apresentadas como algo novo, completamente diferente das

práticas imperialistas dos tempos passados. Elas são usualmente entendidas como

um sinal de “progresso” da política mundial expresso por meio da caracterização

das mesmas como: empreendimentos consensuais e multilaterais desprovidos de

quaisquer objetivos exploratórios, conduzidos por períodos limitados com a

aprovação das organizações internacionais, e, até mesmo, como um “ato

caritativo” levado a cabo pela comunidade internacional em nome da humanidade

(ver Paris, 2002). Na medida em que elas se apresentam como um processo

distinto e “civilizado” vis-à-vis as práticas colonialistas prévias, o discurso que

permeia tais operações ilumina os elementos originais da ação presente em

comparação com um passado de dominação face ao qual elas tentam se

desconectar.

Mesmo reconhecendo as diferenças evidentes entre as “novas” operações

da ONU e o colonialismo121, Roland Paris argumenta que a prática contemporânea

121 Paris (2002) mostra que enquanto o colonialismo europeu foi levado a cabo para o benefício dos Estados imperiais, a motivação das operações de peacebuilding é menos mercenária. Além

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do peacebuilding pode ser entendida como uma versão moderna da “missão

civilizatória” através da qual as potências imperiais européias assumiram o dever

de civilizar as possessões ultramarinas. Embora tais operações tenham

abandonado a linguagem que fazia referência aos povos “civilizados” versus

“não-civilizados” ou “bárbaros”, elas parecem, de acordo com Paris (2002), agir

de acordo com a crença de que um determinado modelo de governança doméstica,

a saber, a democracia liberal, é superior. E, desse modo, elas continuam

transferindo regras de comportamento “aceitável” – visto no passado como

“civilizado” - para a arena doméstica dos Estados menos desenvolvidos.

Desse modo, embora as “novas” operações de paz tenham lugar no

domínio discursivo de uma “nova ordem mundial” que, aparentemente, não

guardaria qualquer relação com a velha ordem imperialista prévia à criação da

ONU, elas continuam sendo informadas, de acordo com Paris (2002), pela lógica

da “missão civilizatória” que orientou o movimento imperialista do século XIX.

Essa tese, contudo, diverge do argumento de Paris de três formas

principais: em primeiro lugar e tal como vimos na introdução, essa tese não

entende ser possível estabelecer comparações diretas ou vínculos causais entre o

velho e o novo imperialismo manifestado nas “novas” operações de paz da ONU.

Ou seja, a tese, informada pela genealogia foucaultiana, pretendeu ter o cuidado

de não estabelecer qualquer analogia simplificada entre o momento colonial e o

momento pós-colonial das operações de paz na Somália, mas, apenas, mostrar tais

continuidades no nível discursivo. Nesse sentido, a tese buscou iluminar como

determinados aspectos do discurso colonial encontraram-se presentes no discurso

das “novas” operações de paz. Tais discursos, como vimos, criaram as condições

de possibilidade para diferentes políticas voltadas para os corpos e espaços

somalis ao longo da história. No presente item, pretendo mostrar, ademais, como

tal continuidade discursiva também se fez notar no discurso empregado pelos

atores sujeitos às práticas da ONU, os quais resistiram às mesmas por meio da

mobilização de determinadas memórias coloniais.

Em segundo lugar, a tese diverge de Paris na medida em que esse autor

aceita, sem problematizar, o modelo democrático-liberal que segundo ele, vem

sendo globalizado por meio das operações de reconstrução de Estados. Paris trata disso, a colonização foi empreendida com base em teorias de superioridade racial, as quais foram abandonadas.

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o modelo de democracia de mercado liberal como “o” modelo, se limitando a

criticar o modus operandi pelo qual tal modelo vem sendo transportado para os

países “menos desenvolvidos” (ver Paris, 2004). Para ele, o processo de

reconstrução de Estados para ser bem sucedido deve se pautar, primeiramente, na

edificação de instituições sólidas e, só num segundo momento, no fomento da

participação política (Paris, 2004). A presente tese diverge de Paris não apenas

porque busca desnaturalizar o modelo de governança doméstica que vem sendo

“exportado” para as sociedades alvo das “novas” operações de paz, mas, também,

porque não acredita na possibilidade de uma conversão bem sucedida. Como já

dito e, como veremos mais detalhadamente no último capítulo da tese, ao propor

uma releitura pós-colonialista das “novas” operações de paz da ONU, não acredita

aqui na possibilidade de que o ideal ocidental de governança vingue nas

sociedades pós-coloniais, tendo em vista que essas sociedades, dotadas de

agência, sempre vão corromper ou reler o modelo “exportado” pelos agentes

externos a partir dos seus valores e experiências. As operações de paz não podem

ser entendidas, como Paris o faz, como processos de via única (ver Charbonneau,

2009), direcionados do “centro” para “periferia”, pois, argumenta-se nessa tese

que, no curso de tais operações, tanto as sociedades alvo das mesmas como os

agentes “externos” são constituídos e transformados por tais práticas. O modelo

que vem sendo exportado (Estados democráticos liberais) depende de um “Outro”

não democrático e não liberal para se constituir como o melhor e único modelo

possível. Como viemos argumentando até então, o “moderno”, que hoje se

expressa sob a forma dos Estados democráticos liberais, depende da “tradição”

para se constituir discursivamente enquanto tal. Tais binarismos -

moderno/tradicional, democrático/não-democrático e/ou liberal/não-liberal -,

velam as inúmeras ambigüidades e sobreposições.

Em terceiro lugar, a comparação feita por Paris (2002) entre as duas

lógicas - da colonização e das operações de peacebuilding- acaba por reificar

uma única “colonização” movida pela lógica da “mission civilisatrice”,

universalizando, desse modo, o modelo francês de colonização. Todavia, ao

optarmos por estudar as especificidades históricas de uma determinada

colonização, a italiana, vimos que esta foi movida por uma lógica racial que,

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durante o regime fascista, congelou a diferença de tal forma que inviabilizou

qualquer pretensão civilizatória.

Ao invés de buscar uma essência comum entre as lógicas colonial e das

“novas” operações de paz da ONU, a presente tese pretendeu identificar, no nível

discursivo, os ecos coloniais que ainda se fazem presentes no discurso subjacente

às práticas contemporâneas das operações de paz. Vimos, ao longo desse capítulo,

que é possível identificar nesse discurso sinais de continuidade em relação ao

passado colonial e à experiência da tutela do pós-Segunda Guerra, uma vez que tal

discurso segue informado pelo mesmo logocentrismo presente nessas experiências

prévias e, logo, os somalis continuam sendo representados como uma versão

“atrasada” e/ou “inferior” do “Eu” europeu. Desse modo, esse discurso continua

operando através de oposições binárias que dividem o mundo entre certas áreas

“modernas” e outras “tradicionais”. Como vimos, os somalis continuam sendo

representados como “naturalmente guerreiros”, “não-confiáveis” e/ou “atrasados”

em oposição a um domínio internacional entendido, cada vez mais, como uma

arena de progresso.

Também com base numa análise discursiva, mas focando exclusivamente

no imperialismo norte-americano, Butler (2002) chamou a atenção para as

continuidades entre a retórica do presidente Clinton em relação ao conflito na

Somália e o discurso imperialista dos Estados Unidos no século XIX. Segundo

esse autor, o discurso de Clinton transmitiu a imagem de somalis primitivos,

rearticulando, desse modo, a imagem histórica do selvagem presente no discurso

imperialista dos Estados Unidos no final do século XIX expresso, por exemplo,

para apoiar a anexação das Filipinas122. Nesse momento, a América se

autoproclamou a nação escolhida por Deus, imbuída do dever de erradicar ou

civilizar o selvagem primitivo. No caso somali, duas estratégias retóricas cruciais

presentes na ocasião da anexação filipina reaparecem: (i) o desenvolvimento de

uma sociedade selvagem primitiva incapaz de apreciar seus próprios problemas e

que rejeita, em virtude da sua ignorância, as intenções benevolentes daqueles que

desejam ajudar e (ii) a identificação de uma solução que busca levar a civilização

para uma cultura perturbadora (Butler, 2002). Dessa forma, o discurso dos

Estados Unidos na Somália reproduziu, segundo Butler (2002), o discurso 122 Ver Doty (1993) para uma análise interessante do discurso norte-americano durante a ocupação das Filipinas.

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imperial dos Estados Unidos do final do século XIX. Esse discurso, por sua vez,

criou as condições de possibilidade para uma ação voltada para a propagação da

civilização para uma cultura representada como primitiva e desolada por um

conflito sem sentido, causado pelos próprios somalis e que, além disso, resiste em

aceitar as chances de paz fomentadas pela liderança norte-americana (ver Butler,

2002).

Além de podermos detectar tais continuidades na estrutura do próprio

discurso sobre as “novas” operações de paz, elas também aparecem nos discursos

articulados pelos próprios somalis durante as operações de paz na Somália, os

quais identificavam similaridades entre a ONU e as práticas colonialistas. Enfim,

os próprios somalis estabeleceram um vínculo entre as práticas da ONU e as

práticas imperialistas passadas a partir da mobilização de memórias coloniais o

que, alega-se aqui, contribuiu para a perda de credibilidade da UNOSOM II.

Em novembro de 1992, o Secretário Geral da ONU, Boutros-Ghali

advertiu o presidente do Conselho de Segurança sobre a crescente percepção entre

os somalis de que a ONU seria uma organização “invasora”, conforme consta a

seguir:

Another disturbing trend, which has evolved in recent weeks, apparently at the instigation of local faction leaders, is the widespread perception among Somalis that the United Nations has decided to abandon its policy of cooperation and is planning to ‘invade’ the country (S/24859, apud Boutros-Ghali, 1996:207, grifo meu).

Um mês depois, num artigo do Washington Post, o acadêmico somali, Said

Samatar aconselhou os Estados Unidos a evitarem dar qualquer impressão de que

estariam desejando recolonizar o país, já que:

Ridiculous as this may sound, Somalis, with their bitter experience of colonial occupation, are born xenophobic paranoids. The United States must impress upon the Somalis that it has no hidden agenda, but only a humanitarian interest (Samatar, 1992).

De fato, especialmente a partir do momento em que a operação da UNOSOM II

passou a ter como objetivo a captura do líder clânico, Aidid, as forças

interventoras rapidamente começaram a ser associadas aos velhos colonizadores

(Lang, 2003). Segundo Aidid: “The UN and the US are trying to impose colonial

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rule on us. God will destroy Washington as surely as they have destroyed

Mogadishu” (apud Purvis, 1993).

Como nos mostra Lang (2003), tais apelos de resistência à presença da

ONU na Somália combinados com a narrativa de uma história somali de oposição

às tentativas prévias de imposição externa123 foram bem recebidos em

Mogadíscio, nesse momento, repleta de tropas militares estrangeiras. De acordo

com o Relatório da Comissão de Investigação dos ataques do dia 5 de junho, a

hostilidade exibida pelas transmissões da Rádio Mogadíscio em relação à

UNOSOM II e aos Estados Unidos fizeram-se notar, sobretudo, na esteira da

emboscada aos soldados paquistaneses. De acordo com o Relatório:

[T]he broadcasts had a xenophobic tone, especially starting on 11 May, when they accuse UNOSOM II and the United States of being aggressors trying to colonise Somalia and to establish a trusteeship. They speak highly of Somalia’s history of resistance to foreign domination and imposition. UNOSOM II was very concerned about this propaganda which could give a negative perception of the United Nations could stir up hostile sentiments towards UNOSOM II personnel from the Somali public.(S/1994/653, apud Boutros-Ghali, 1996:374).

É importante notar que as transmissões da Rádio Mogadíscio acusando a

ONU e os Estados Unidos de tentarem estabelecer uma tutela sobre a Somália não

são completamente infundadas, sem apoiadores ou uma mera imaginação de

“paranóicos xenófobos” para usar a expressão de Samatar. No editorial do NYT

de fevereiro de 1992, se pode ler, por exemplo: “If the only alternative to anarchy

is a UN trusteeship then the Security Council needs to ponder that case”. Em

setembro do ano seguinte, no mesmo jornal, Carr coloca:

The UN leadership is not swayed by their accusations of imperialism. If the multinational force moves with their heightened vigor, Somalia could be a UN protectorate within the year. Freed from the fighting, the UN officials could see whether there are leaders who care about Somalis than personal power. If not, the protectorate status would have to be extended until such leaders emerged. That might take months –or years.

Refletindo a respeito da experiência da ONU na Somália, Rotberg

(1997:253), por exemplo, coloca: “As anachronistic as it may seem, we need to

consider finding ways to recommit countries (like Somalia) to the good offices of

123 A história de oposição somali à intervenção colonial está bem sintetizada em Issa-Salwe (1996).

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the UN Trusteeship Council”. O autor (1997:253) agrega que tal tutelagem seria,

no final das contas, aplaudida pelos próprios somalis: “Somalis themselves might,

at the appropriate moment, have welcome such temporary recommitment to the

UN”. Escrevendo no The Washington Post, em outubro de 1992 e, portanto, antes

das transmissões na Rádio Mogadíscio terem começado a insinuar que os agentes

externos, de fato, queriam impor uma tutela sobre o país, Krauthammer deixa

clara sua posição nesse sentido:

Somalia needs to be occupied. It needs an outside force to suppress the bandits, feed its people and provide medical care. The best way to do this is the old mandate system of the League of Nations, under which a great power under international supervision is given quasi-colonial power over another people. A formal mandate would give the outside power the dignity and legitimacy to justify its otherwise thankless task of pacification.

A idéia da tutela sugerida por Krauthammer é prontamente apoiada por

leitores do The Washington Post. Iris Kapil, da França, por exemplo, expressa tal

apoio nas Cartas ao Editor:

Mr. Krauthammer is correct. A long-term trusteeship is needed for Somalia. Without a stable government to maintain order, to provide essential service and under which the Somalis can acquire experience in governance, the extreme suffering and the high cost of relief efforts will continue indefinitely. (…). Somalia’s trusteeship was conducted under more benign circumstances than exist today. The people were not armed. They were less politized. Severe drought had not damaged agriculture. Of critical importance, population pressure on that desert land was far less.

Tripodi (1999:11) também não deixa passar despercebido o desejo, por

parte de alguns, de reintroduzir a velha prática da tutela sobre a Somália. Ele nos

mostra que durante a intervenção humanitária no país, quando a situação começou

a piorar, a subsecretária do Ministério Exterior Italiano, Laura Fincato, sugeriu

que a Itália deveria voltar a considerar o estabelecimento de um mandato de tutela

sobre a Somália desde que a população local estivesse a favor da mesma e que a

ONU desse o seu aval a tal projeto internacional. Do mesmo modo, Sergio

Romano, um ex-embaixador italiano, escreveu que para aumentar as chances de

sucesso da ONU na Somália, o Conselho de Segurança tinha que estabelecer uma

administração de tutela internacional (Tripodi, 1999:11). Ele alegou que:

“wherever decolonisation failed it is necessary, in the interest of local

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populations, to resume the old trusteeship administrations” (apud Tripodi,

1999:11).

Além do conteúdo das transmissões na Rádio Mogadíscio, o qual alertava

os somalis para o desejo da ONU de colonizar o país, ter provocado hostilidade à

Organização, Lang (2003), como já dito, expõe um fator adicional para essa

posição de hostilidade, qual seja: a tentativa por parte de Aidid de declarar a

Rádio Mogadíscio como a “voz oficial” da Somália. Lang (2003) mostra que

Aidid foi capaz de apresentar sua propaganda na Rádio não apenas como a reação

de um líder clânico decepcionado, mas, também, como a voz das aspirações

políticas somalis. Ao tratar Aidid como um criminoso, a ONU apenas contribuiu

para sua transformação num mártir, fazendo com que ele e sua facção assumissem

o papel de vítimas em oposição à ONU e aos Estados Unidos, representados como

vilões (Lang, 2003). Como colocado por Peter Woodward (2003:78, grifo meu):

With forty-seven UN forces and an estimated 300 Somalis killed, it was soon being suggested that the UN was becoming the biggest warlord of all and the greatest threat to the people of Mogadishu..

Assim, na medida em que a ONU abandonou a sua posição de

imparcialidade e se tornou explicitamente comprometida a lutar contra uma das

facções do conflito, a relação entre a Organização e o imperialismo foi facilmente

estabelecida pelos próprios somalis.

Ao desempoderar a “voz” da Somália veiculada na Rádio Mogadíscio,

desqualificando-a, a ONU, reproduziu as velhas hierarquias presentes desde a

colonização, entre um “Eu”/ONU dotado de autoridade moral e um “Outro”

destituído de voz e de razão. Tal discurso, extremamente familiar para os somalis,

por sua vez, teve o efeito de potencializar a resistência, expressa, como visto, por

meio da releitura do presente à luz das memórias coloniais.

Expusemos até aqui as continuidades entre as “novas” operações de paz da

ONU e o passado colonial, silenciados no discurso dominante. Doravante,

apresentaremos os elementos de descontinuidade em relação àquilo que se

apresenta como continuidade, a saber, a sociedade e o conflito somalis,

representados como “pré-modernos” e congelados no tempo.

Como já dito na introdução da tese, o objetivo aqui não foi o de

estabelecer uma “estória correta”, mas sim de considerar ambíguos os discursos

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dominantes, demonstrando, assim, a natureza inerentemente política dos mesmos

(Campbell, apud Milliken, 1999). Essa abordagem pretendeu mostrar que, em

alguns casos, o “mundo” foi interpretado diferentemente de forma a revelar o

caráter instável e contingente do discurso dominante (Milliken, 1999). O objetivo

aqui foi o de trazer a tona um discurso silenciado sobre o conflito somali, o qual

destoa do dominante ao considerar o impacto dos processos e agentes

internacionais sobre a Somália, enfatizando, desse modo, a sua descontinuidade.

Como foi mostrado nessa parte da tese, o conflito da Somália foi

interpretado pelo discurso dominante como derivado da tradição somali centrada

na organização clânica da sociedade. Walter Rodney nos mostra que tal leitura

etnocêntrica em relação à representação da Somália contemporânea se estende

para os Estados africanos em geral conforme ele explica a seguir:

[T]ribalism is understood by Europeans to mean each tribe still retains a fundamental hostility towards its neighbouring tribes (...) their accounts suggest that Europeans tried to make a nation out of the tribes, but they failed, because the various tribes had their age-long hatreds; and, as soon as the colonial power went, the nations returned to killing each other. To this phenomenon, Europeans often attach the word ‘atavism’, to carry the notion that Africans were returning to this primitive savagery. Even a cursory survey of the African past shows that such assertions are the exact opposite of the truth (apud Lauderdale, Toggia, 1999:157, grifo meu).

Argumenta-se aqui que o determinismo histórico que informa essa visão

sobre os conflitos africanos do pós-Guerra Fria é etnograficamente duvidosa124,

pois negligencia o impacto dos principais eventos dos séculos XIX e XX, tais

como o colonialismo e a Guerra Fria, sobre os mesmos.

Besteman (1996), Abdi I. Samatar (1992) e Virginia Luling (1997) nos

ajudam a desfazer a idéia de que a identidade somali permaneceu inalterada a

despeito da presença do colonizador na Somália e de que, portanto, o conflito

entre clãs, ao qual assistimos a partir de 1991, foi derivado, exclusivamente, das

dinâmicas internas somalis.

Besteman argumenta que o que ficou conhecido no começo dos anos 90

como “tribalismo” produziu uma visão distorcida da sociedade somali tendo em

vista que o conflito em curso na Somália pós-Barre não guardava qualquer

124 Essa visão é compartilhada por Campbell (1996) em relação à leitura norte-americana sobre o conflito na Bósnia.

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correspondência com a organização social somali pré-colonial. Segundo a

antropóloga, os chamados “senhores da guerra” que, de fato, roubavam comida e

incitavam a violência, não eram parte das antigas rivalidades somalis tal como foi

assumido pelo discurso dominante. Segundo a autora, esses novos atores, como já

se comentou, pertenciam a uma nova elite urbana que durante a Administração

Barre passou a lutar por enriquecimento pessoal através do acesso ao poder do

Estado e, para alcançar tal fim, empregou uma retórica clânica125. Dessa forma,

embora, de fato, a maioria das lutas entre “senhores da guerra” na Somália pós-

Barre tenha ocorrido entre grupos com bases clânicas, tal identificação clânica não

era algo natural, mas, antes, fruto de uma mobilização levada a cabo por diversas

milícias nacionais que lutavam pelo controle do Estado. Assim, de acordo com

Besteman, o conflito somali não resultou de hostilidades profundas e ancestrais,

mas sim de padrões particulares de lutas pelo controle sobre os recursos do

Estado, estabelecidas nos anos 80. Conseqüentemente, tais lutas eram

historicamente específicas.

Também adotando um argumento que enfatiza as transformações da

sociedade somali através dos anos, Samatar defende que a natureza da competição

entre clãs mudou com a introdução do Estado colonial. De acordo com Samatar

(1992:634) “the leadership in the old tradition had no public resources that they

could compete for and loot, and as such the nature of the allocations made under

that regime was qualitatively at variance with the modern order”. Luling

(1997:290) concorda com Samatar dizendo que:

Clans always had to competed for resources such as land, grazing and water, but now that control of all these resources and much more was vested in the state, competition between clans, which before had been only one aspect of their existence, became its permanent condition.

Nesse sentido, para os autores acima, o problema que a Somália passou a

enfrentar no pós-Guerra Fria não estava ligado ao modo de vida somali pré-

125 Essa mobilização política da identidade foi identificada por Mary Kaldor (1999) nas chamadas “novas guerras”. Para ela, a política da identidade é o meio pelo qual as elites políticas reproduzem o seu poder. O termo “policy of identity” utilizado por Kaldor designa os movimentos que se mobilizam em torno das identidades étnicas, religiosas e raciais com o objetivo de clamar pelo controle do Estado. Essas identidades ainda que baseadas em fissuras pré-existentes de tribo, nação e religião, em geral, usam memórias e experiências de injustiças passadas com o objetivo de mobilização política. Ver: Mary Kaldor, New and Old Wars-Organized Violence in a Global Era, Stanford University Press, 1999.

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colonial, mas, predominantemente, à introdução do Estado e à alteração que tal

introdução, imposta pelos colonizadores, gerou nas práticas somalis. O problema

enfrentado pela Somália, portanto, foi resultado, em parte, da introdução de

elementos associados com a modernidade no âmbito da sociedade somali e não,

como usualmente se alega, derivado exclusivamente de elementos pré-modernos.

Além disso, como bem nos mostra Luling (2006), a proibição, já

mencionada, de se referir abertamente aos clãs durante o governo Barre,

sobretudo, nas escolas, teve efeitos sobre as identidades somalis; o que, significa

que elas não permaneceram inalteradas conforme assumido pelo discurso

dominante. A autora mostra, ademais, que a crescente mobilidade e mistura de

pessoas de diferentes origens em Mogadíscio bem como em outras cidades,

contribuíram para o surgimento de uma geração de jovens urbanos

comprometidos, em grande parte, com a rejeição ao sistema clânico (Luling,

2006).

Uma estória de Ahmed Ismail Yusuf, chamada “A Delicate Hope” que

começou a circular em Mogadíscio após o início da guerra civil nos oferece um

exemplo bastante claro de tal rejeição (apud Luling, 2006:476-7). Aar e Arbaab,

irmãos gêmeos, estudavam em Mogadíscio quando Barre foi deposto. Embora

fossem hostis ao governo Barre, os irmãos eram membros da família clânica

Darod de onde proveio a principal base de apoio a tal governo. Isso explica

porque quando a cidade foi liberada por uma coalizão de outra base clânica,

Hawiye, eles automaticamente passaram a correr perigo tendo em vista a

perseguição indiscriminada que se instalou em Mogadíscio contra os Darod.

Todavia, a mãe dos gêmeos, pertencia à família clânica Isaaq, a qual havia

libertado o território do norte – hoje “Somalilândia” - do exército de Barre. Desse

modo, foi elaborado um plano para que os gêmeos escapassem para o norte e se

orientassem pelo seguinte conselho da mãe: “You have to know your maternal

clan affiliation and my ancestor’s names to use them if need be, all by heart”. No

entanto, o conselho da mãe para que os filhos decorassem o nome dos seus

ancestrais, foi prontamente rejeitado por um deles que alegou:

Over and over you keep insisting that we have to know the names of a bunch of ancestors, who’ve been dead for centuries, mom, I know you’re from the Northern clans of Isaaq and I know my father is Daarood, also from the north, So, Mom, I will never affiliate myself with either one if I can’t belong to

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both…If we are going to die anyhow…for an unjust tribal war, let us not sow a poison seed for generations to came by choosing one tribe over another.126

. Uma vez no norte, os gêmeos foram instruídos por soldados a saírem do

carro e a se identificarem. Embora tendo conseguido citar os nomes dos clãs e dos

subclãs aos quais pertenciam, eles não foram capazes de provar a afiliação Isaaq,

recitando o “abtirsiinyo” (genealogia) e, conseqüentemente, foram considerados

suspeitos de serem espiões do regime Barre e, por isso, executados. Quando o

comandante sênior, irmão da mãe dos gêmeos - uma relação afetuosa e protetora

para os somalis - chegou para checar seus subordinados, reconheceu

imediatamente os corpos e voltando as armas para os guardas e depois para si

disse, antes de se matar: “My flesh and blood....they were my nephews, my

nephew, my nephews...”.

No marco dessa narrativa somali, portanto, o sistema clânico nos é

apresentado como algo amargo e assassino (Luling, 2006), reproduzindo, desse

modo, os discursos dominantes sobre o conflito. Na estória, o ato de recitar o

“abtirsiinyo”, ou seja, a lista de ancestrais mortos há séculos, parece carecer de

sentido e a sua evocação como garantia de segurança se assemelha a uma espécie

de fraude (Luling, 2006). Todavia, essa estória, nos oferece a possibilidade de

vislumbrar outras narrativas de identidade que não aquela oferecida pelo discurso

dominante, já que nos mostra que nem todos na sociedade somali se identificavam

com o sistema clânico.

Luling (2006) argumenta que a rejeição ao sistema clânico exemplificada

pela estória acima nos lembram as rejeições européias ao nacionalismo. Shapiro

(2009) se detém com mais atenção nesse tema em seu artigo “How does the

Nation-State Work?”, no qual oferece exemplos de identidades que estariam em

tensão com a obediência nacional. Só para citar um desses exemplos: Shapiro

(2009), por exemplo, nos conta que o filme “Sammy and Rosie Get Laid” de 1987,

nos fornece um momento exemplar de uma diferente face do alinhamento

nacional no Reino Unido. Num dado momento do filme, um imigrante

paquistanês, diz à sua mulher, Rosie, uma inglesa nativa: “We are not British,

we’re Londoners”. Da mesma forma que a narrativa nacional silencia acerca dessa

126 Grifo meu.

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e de outras identidades que colocam em xeque o alinhamento nacional127, o

discurso dominante sobre o “Outro” somali o construiu de uma forma deveras

simplificada, a qual silenciou acerca de experiências mais complexas informadas

por imaginários não captados pela narrativa clânica.

Como nos mostra Besteman (1996), a caracterização da sociedade somali

como “clãnica” por parte do discurso dominante se baseou em tipologias

evolucionárias familiares. Isto é, a representação da Somália como uma sociedade

baseada exclusivamente num sistema de clãs reforçou o entendimento

antropológico tradicional de formação do Estado e claramente indicou a direção

para a qual ela deve se mover, a saber: das relações de parentesco para o contrato

social (Besteman, 1996). Essas relações (de parentesco e do contrato social), por

sua vez, nos foram apresentadas como distintas e irreconciliáveis e, desse modo,

como temporalmente dissociadas. Por conseqüência, as tipologias evolucionárias,

subjacentes aos discursos dominantes, localizaram tais categorias (clãs/Estados)

como passos distintos de uma trajetória evolucionária de sociedade (ver

Besteman, 1996). Refletindo essa visão evolucionária, Abdalla O. Mansur, por

exemplo, argumenta:

The most serious problem in Somalia today is that our cultural traditions are not compatible with the constructs of a modern state. We Somalis are prisoners of a culture that we created in the past and which we refuse to re-examine. What is needed is to educate our people and exhort them to free themselves from the dependency of clanism, charity, and family parasitism. Only after creating this new culture will it be possible for us to reinvent ourselves and in the process to launch the construction of a new, viable state (Mansur, 1995:115-6).

A passagem acima nos mostra com clareza a tentativa mítica de se separar,

depois de séculos de colonialismo e pós-colonialismo, os elementos ditos

“tradicionais” dos “modernos” da sociedade somali, apresentados como

normativamente hierarquizados e irreconciliáveis128.

Besteman (1996) mostra que quando a linguagem evolucionária é usada, a

imagem que vem a tona é a de uma sociedade atrasada e rígida, baseada em

práticas darwinianas de sobrevivência, desprovida de outras hierarquias

127 Vimos, por exemplo, no item anterior, que, nos Estados Unidos, essas identidades alternativas, as quais ganharam maior visibilidade com o fim da Guerra Fria, foram vistas como uma ameaça à integridade à nação, imaginária, norte-americana. 128 Essa idéia será trabalhada com maior profundidade no último capítulo da tese dedicado ao pós-colonialismo.

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concorrentes, as quais, se levadas em conta, dariam uma maior complexidade à

sociedade somali do que normalmente se sugere. Poderíamos acrescentar que os

clãs, por meio dessa narrativa, são representados como “mini-Estados”, na medida

em que são entendidos, de modo análogo ao entendimento convencional sobre os

Estados, como entidades unitárias, sem fissuras, face às quais os somalis

devotariam sua obediência primeira e unívoca, sem que outras identidades

competitivas lhe rivalizassem. Na estória “A Delicate Hope” acima apresentada,

contudo, essa imagem é colocada em xeque, visto que os irmãos se sentem

igualmente pertencentes a dois clãs diferentes, ao do pai e ao da mãe e se recusam,

portanto, a terem que devotar uma lealdade excludente.

Besteman (1996) nos oferece um entendimento da sociedade somali que

traz a tona a flexibilidade e complexidade dessa sociedade, negligenciadas pelo

discurso dominante, o qual torna o sistema clânico não só a essência da sociedade

somali, mas também sua totalidade129. A antropóloga nos mostra que nem todos

os cidadãos somalis no marco da prévia estrutura estatal eram membros de um clã,

já que a sociedade somali continha grupos que existiam fora do sistema clânico,

como o eram muitos moradores costeiros que reivindicavam descender dos

primeiros colonizadores árabes e persas, assim como muitos dos moradores dos

vales dos rios Juba e Shabelle.

Besteman também deixa claro que o pertencimento a um clã não constitui

um atributo irrevogável adquirido a partir do nascimento, já que a mobilidade

entre clãs não é apenas possível, como também bastante difundida no sul, onde os

somalis costumam comutar a afiliação a clãs, por, por exemplo: proteção,

casamento, direito a terra, trabalho ou ainda por razões políticas (Besteman,

1996). Ao apresentar o processo de afiliação a um clã como um processo

relativamente simples, mostrando que em alguns clãs do sul existem inclusive

mais membros adotados do que descendentes do fundador ancestral, a antropóloga

coloca em xeque a visão prevalecente acerca do caráter permanente e estático do

sistema de clãs. A flexibilidade do sistema clânico somali também é ressaltada por

Luling (2006:474) quando diz: “Far from being something that sets one set of

people permanently against a fixed ‘other’, it is a flexible scale by means of which

alliances can be constantly reshuffled”.

129 Sobre a tendência de tratar o “Outro” como uma totalidade, ver: Appadurai, 1998.

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Além disso, como foi já dito, a ênfase da narrativa dominante na Somália

clânica, obscureceu, como nos mostra Besteman (1996), outras identidades que

atravessam o sistema de clãs. Vale recordar que os povos Gosha, descendentes de

escravos da linhagem Bantu adquiriram um status inferior no seio da sociedade

somali devido a essa herança tida como “impura” (Besteman, 1996). Agravando

tais discriminações, esses povos também foram construídos por meio do discurso

colonial como racialmente distintos e inferiores (Besteman, 1996). Em função

disso, os clãs do sul que obtiveram um grande número de Bantus acabaram sendo

considerados de status inferior na arena nacional (Besteman, 1996). Ademais,

como também já vimos, uma parte substantiva da população do sul praticava a

agricultura, considerada por muitos somalis como uma ocupação inferior. Assim,

uma combinação de fatores, como as construções discursivas de linhagem, de raça

e de ocupação, deixou muitos agricultores e agro-pastores do sul marginalizados

no Estado pós-colonial, independente do fato de fazerem parte ou não de um clã

(ver Besteman, 1996).

Em suma, segundo Besteman (1996), tais concepções acima apresentadas

de raça, linhagem e status dotaram a identidade somali de maior complexidade do

que o simples pressuposto de uma identificação exclusivamente clânica sugere. O

retrato alternativo da sociedade somali esboçado por Besteman (1996) revela, por

conseguinte, não só um grande fluxo e dinamismo na mesma, mas também a

presença de uma variedade de identidades sociais que atravessam, minam, mudam

e substituem as identidades clãnicas.

Com isso, a autora buscou mostrar que a identidade que emerge como

proeminente num dado momento é contextualmente específica e historicamente

condicionada e não, como nos sugere o discurso dominante, inalterável. Na maior

parte do século XX, por exemplo, o status derivado das construções sociais de

raça e pureza apresentou um maior constrangimento para a agência individual do

que o pertencimento a um clã que, no sul da Somália, podia ser facilmente

alterado, oferecendo, portanto, maior potencial de mobilidade (Besteman, 1996).

Sobre a especificidade histórica do conflito somali, Besteman (1996) no

conta que no contexto pós-Barre, os clãs que depuseram o ditador reivindicaram

como recompensa o controle sobre os mesmos tipos de recursos, a exemplo das

terras, exigidos pelas elites urbanas na década de 80 (Besteman, 1996). E, assim,

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os ataques às vilas do sul do país, que resultaram na fome na região, seguiram o

mesmo padrão de apropriação de recursos. E, desse modo, os sulistas rurais, cuja

maior parte não havia desempenhado qualquer papel no Estado de Barre e

tampouco no seu desmantelamento se tornaram alvos das milícias de outras partes

do país, muitos tendo que sobreviver, desde 1991, em campos de refugiados

(Besteman, 1996). Esses habitantes do sul foram excluídos da política nacional

com base na sua raça, linhagem e status, aspectos inapropriadamente capturados

apenas pela rubrica clânica (Besteman, 1996).

Assim, para autora, as causas do conflito não foram, tais como os meios de

comunicação expuseram exaustivamente, as rivalidades clânicas ancestrais, mas,

sim: (i) os crescentes investimentos nas identidades clânicas por parte do governo

Barre, (ii) a emergência de uma virulenta competição de classe num ambiente de

influxos massivos de ajuda externa, e (iii) a crescente militarização do Chifre da

África, internacionalmente apoiada.

A partir dos argumentos de Besteman, fica nítida a participação dos atores

“externos” no conflito somali, lido, por esses mesmos atores, como um conflito de

dimensões meramente domésticas e, portanto, face aos quais eles não tinham

qualquer responsabilidade moral.

Por outro lado, vimos também que a razão da retirada dos Estados Unidos

e da ONU na Somália foi atribuída meramente às facções hostis internas que se

recusavam a cooperar com os agentes internacionais, silenciando, desse modo,

acerca dos equívocos da dita “comunidade internacional” em remediar o conflito.

Argumenta-se aqui, diferentemente, que o discurso dominante foi cúmplice dos

inúmeros equívocos cometidos pelos agentes internacionais na Somália.

Na medida em que o discurso da ONU concebeu o Estado centralizado

como a única alternativa possível para reorganizar politicamente a vida somali, os

esforços da Organização se concentraram na capital, em detrimento do campo,

onde ocorreram os principais atos de violência e onde a fome se generalizou.

Como colocou Samatar (2002), os povos agrícolas do sul foram os que pagaram

os maiores custos materiais e humanos derivados da guerra. No auge da fome e da

destruição, as comunidades agrícolas dessa região morreram aos milhares com a

cidade de Baidoa se transformando no epicentro da morte e, em função disso,

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ficando conhecida como a “city of the walking dead” (Samatar, 2002, Mukhtar,

1996).

Argumenta-se aqui que dois fatores fizeram com que a ONU

marginalizasse a destruição em curso no sul agrícola do país, se focando, como

observado pelo relatório da Organização Human Rights Watch (1995), nas

batalhas da capital e do porto de Mogadíscio. Em primeiro lugar: o fato dela se

guiar pela norma de um Estado politicamente centralizado, o qual teria de ser

construído desde a capital. Em segundo lugar, a leitura do conflito como

“clânico”, a qual não levou em consideração as discriminações de raça, linhagem

e status que ao longo dos anos incidiram sobre os agricultores do sul e que

culminaram, segundo Mukhtar (1996), numa política genocida dirigida a esses

agricultores no curso do conflito. Mukhtar (1996:551) cita um Sheik do sul, Eedin

Alyow, quem teria dito sobre tais atos de violência:

The Hawithe and Darod had a master plan of extinguishing our people. For example, they started to take all our stored grain first, then they took all the animals that we kept. After several weeks, the villages were dead or still alive. When they realized that we were eating garas (an edible wild fruit) they started systematically to burn all the garas trees in the area. What could this mean?

Na medida em que o conflito somali foi lido primordialmente sob a rubrica

clânica e o Estado centralizado passou a ser o ideal perseguido pela ONU no país,

os líderes clânicos, altamente armados, foram privilegiados como interlocutores

em detrimento de outras autoridades que apontavam para um exercício de poder

mais descentralizado e local. Conforme colocado por esse mesmo relatório da

Human Rights Watch (1995) supracitado:

[M]any observers fall to note the importance of the UN’s overwhelming emphasis on brokering deals between powerful military leaders, to the detriment of those in Somali society seeking reconstruction and reconciliations (...) We conclude (…) that a principal problem of the Somalia operation was that it was pursued firstly as an exercise in conflict resolution between powerful individuals without addressing the policies each pursued which led to Somalia’s continuing devastation.

De um modo geral, o relatório acima mencionado critica o foco da ONU e

dos Estados Unidos em poucas personalidades, primeiro tratadas como “colegas”,

depois como “fora da lei” e finalmente, de novo, como negociadores legítimos em

detrimento das autoridades locais.

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Por outro lado, a já referida simplificação promovida pela leitura ocidental

acerca da sociedade somali teve efeitos imprevistos, os quais acabaram por

reproduzir e mesmo reforçar a dinâmica clânica. Para Foucault, a relação entre os

objetivos declarados de um programa específico e os efeitos de poder que ele

produz é de “não-correspondência”; o que significa que os discursos não criam

automaticamente nas sociedades os efeitos exatos antecipados pelo seu conteúdo

(ver Hendrie, 1997). É justamente por isso que, para ele, as relações de poder

devem ser examinadas no nível da vida diária (ver Hendrie, 1997). Quando, com a

ajuda de Luling (2006), tais relações são examinadas na vida diária é possível

perceber que a idéia que informou os agentes internacionais, segundo a qual os

somalis eram divididos exclusivamente em clãs, fez com que novos clãs fossem

formados a partir de 1991 a fim de garantirem um lugar nas negociações políticas

em curso. Esse foi justamente o caso dos Bantus, os quais passaram a asseverar

uma identidade clânica comum clânica, a “qowmiyad”, junto à ONU e aos Estados

Unidos. Desse modo, ainda que o objetivo da ONU na Somália tenha sido o de

criar um Estado centralizado que colocasse um fim às lealdades clânicas

tradicionais, durante a sua operação, muitos grupos não identificados com tais

lealdades se viram estimulados a entrar no “jogo clânico” a fim de terem suas

vozes reconhecidas pelos agentes internacionais.

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