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Revisão da Literatura 3 PARTE I – REVISÃO DA LITERATURA 1. A Criança E A Família: Ontem E Hoje “A evolução da família nos tempos pré-históricos (...) consiste numa redução constante do círculo em cujo seio prevalece a comunidade conjugal entre os sexos, círculo que originariamente abarcava a tribo inteira” (Engels, 1974, p.63). Engels (1974) relata que foi entre os gregos, que encontramos a nova forma de família. “Enquanto a situação das deusas na mitologia, como assinala Marx, nos fala de um período anterior, em que as mulheres ocupavam uma posição mais livre e de maior consideração, nos tempos heróicos já vemos a mulher humilhada pelo predomínio do homem e pela concorrência das escravas. (...) A existência da escravidão junto à monogamia, a presença de jovens e belas cativas que pertencem, de corpo e alma, ao homem, é o que imprime desde a origem um carácter específico à monogamia – que é monogamia só para a mulher, e não para o homem”, carácter que se conserva na actualidade (Engels, 1974, p. 82). Mas não foi só a instituição da família que sofreu alterações ao longo dos tempos. Antigamente as crianças eram a força do trabalho. Durante a Idade Média, a criança pequena rapidamente passava a jovem adulto ao iniciar o processo de aprendizagem de uma profissão. Este facto, frequente na época, não constituía uma situação de graves consequências afectivas. A família não era, neste período, um lugar de afectividade, mas sim um espaço de entreajuda que tinha como fim a sua sobrevivência (Ariès, in Sebastião, 1998). Segundo Cabral (1994), hoje em dia, a situação sofreu grandes e significativas mudanças, e ganhou novos contornos. Com a duração dos estudos, com a dificuldade em arranjar casa, com o problema da procura do primeiro emprego, a adolescência vê-se

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Revisão da Literatura

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PARTE I – REVISÃO DA LITERATURA

1. A Criança E A Família: Ontem E Hoje

“A evolução da família nos tempos pré-históricos (...) consiste numa redução constante

do círculo em cujo seio prevalece a comunidade conjugal entre os sexos, círculo que

originariamente abarcava a tribo inteira” (Engels, 1974, p.63).

Engels (1974) relata que foi entre os gregos, que encontramos a nova forma de família.

“Enquanto a situação das deusas na mitologia, como assinala Marx, nos fala de um

período anterior, em que as mulheres ocupavam uma posição mais livre e de maior

consideração, nos tempos heróicos já vemos a mulher humilhada pelo predomínio do

homem e pela concorrência das escravas. (...) A existência da escravidão junto à

monogamia, a presença de jovens e belas cativas que pertencem, de corpo e alma, ao

homem, é o que imprime desde a origem um carácter específico à monogamia – que é

monogamia só para a mulher, e não para o homem”, carácter que se conserva na

actualidade (Engels, 1974, p. 82).

Mas não foi só a instituição da família que sofreu alterações ao longo dos tempos.

Antigamente as crianças eram a força do trabalho. Durante a Idade Média, a criança

pequena rapidamente passava a jovem adulto ao iniciar o processo de aprendizagem de

uma profissão. Este facto, frequente na época, não constituía uma situação de graves

consequências afectivas. A família não era, neste período, um lugar de afectividade, mas

sim um espaço de entreajuda que tinha como fim a sua sobrevivência (Ariès, in

Sebastião, 1998).

Segundo Cabral (1994), hoje em dia, a situação sofreu grandes e significativas

mudanças, e ganhou novos contornos. Com a duração dos estudos, com a dificuldade

em arranjar casa, com o problema da procura do primeiro emprego, a adolescência vê-se

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prolongada e por esse motivo surge uma situação de grande dependência em relação aos

pais, situação essa geradora de angústias e conflitos sem precedentes na nossa história.

Actualmente a sociedade ocidental confronta-se com um paradoxo complicado

relativamente às suas crianças (Qvortrup, 2000 in Malho, 2003). O novo conceito de

criança, sistematizado por Rosseau em “Emílio”, revela-nos um ser frágil, dependente e

inocente, tendo, por essas razões originado em toda a Europa Ocidental e América do

Norte grandes campanhas em sua defesa, prolongadas em programas de intervenção no

seio das famílias, destinados a normalizar as práticas relativas à infância (Cabral, 1994).

Para Qvortrup (2000, in Malho, 2003) as crianças nuca foram tão amadas e desejadas

em privado e em contrapartida a colectividade não está capaz de as apoiar capazmente.

Por outro lado, o número de nascimentos está a diminuir e a afeição e o amor para com

a criança está a aumentar. A condição da infância é jogada em duas frentes de

socialização: a família, lugar privado de companheirismo romântico e a escola, lugar

público de instrução e de aprendizagem para a integração. Ainda segundo a mesma

investigadora, Portugal sofreu desde os anos 60 transformações profundas num curto

espaço de tempo. A realidade social portuguesa tem vários contrastes marcados por

profundas clivagens e desigualdades de acesso à infância moderna mas tal contraste é

um destino apetecível para os investigadores numa nova área de investigação.

Tendo em conta este mundo actual em que se vive e que está em completa

transformação, mundo complexo e multifacetado, de acordo com Qvortrup (2000 in

Malho, 2003) não devemos considerar apenas uma infância, um mundo infantil, mas

sim infâncias, mundos sociais e culturais infantis. A mesma autora defende que, embora

a infância esteja relacionada com um conceito posicionado numa ordem geracional, a

noção de infância não pode generalizar-se como uma única categoria social fechada e

indiscutível, pois ela está necessariamente dependente e de acordo com as

“circunstâncias” específicas da vida. A criança é “as suas circunstâncias” (Qvortrup,

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2000 in Malho, 2003; Malho e Neto, 2004). Os mundos infantis, os contextos de vida

das crianças dependem da classe social, do grupo étnico e cultural, do género a que

pertencem ou vivenciam, ou que está na retaguarda, por exemplo.

A circunstância da criança é a sua mãe. Cada um dos parceiros significativos e

preferenciais que vai tendo ao longo da sua existência o serão também, e desde o

primeiro momento. Este no verdadeiro e próprio sentido é a gestação (Santos, 1997 in

Serrano, 2003). Mas para que haja criança/pessoa psicológica é necessário que haja por

parte de quem trata dela e desde o seu nascimento, atitudes maternais (apoio, protecção,

alimentação) e atitudes paternais (separadoras).

“O bebé, imaturo e dependente, desencadeia, através das suas competências e

capacidades, os mecanismos vinculatórios essenciais à sua sobrevivência e ao

prosseguimento do seu desenvolvimento” (Trigueiros, 1998, p. 26). O processo tem

início na relação primária, a dois, para a descoberta através da mãe, de um terceiro, o

pai, ganhando assim um novo espaço, que lhe permitirá construir a sua própria

individualidade. Vai assim conquistando autonomia e, convicto de ser amado inicia a

conquista de um território cada vez mais alargado, descobrindo desta forma os seus

pares com quem partilha e cria novos laços.

A família a que pertence é outra das circunstâncias da criança. A família é ainda, fonte

de satisfação e de insatisfação para a criança. É na família que primeiro aprende; é aí

que também aprende modos de enfrentar “problemas” de acordo com as tradições

culturais e experiências do grupo a que pertence. O sistema familiar é um meio para a

adaptação biossocial. Assim, a família é uma fonte de ajuda activa para a criança se

estiver saudável, é um grupo bem organizado e estável onde o sistema de autoridade é

claro e aceitável, onde a comunicação é aberta e onde os membros exercerão mais

controlo e darão mais apoio (Malho e Neto, 2004; Malho, 2004). Esta ajuda surge

quando a família tem sensibilidade suficiente para os primeiros indícios de mal-estar

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comportamental na criança. É nestas relações interpessoais e na dinâmica que se gera à

volta delas que surge o desenvolvimento das características e competências próprias e

específicas de cada criança.

Consequentemente as experiências sociais que as crianças têm, ou possam ter estão

dependentes dos seus contextos de vida (Bronfenbrenner, 1979; 1986; 1992, in Malho e

Neto, 2004), bem como dos ritmos da vida doméstica, na comunidade e na vida escolar.

É através das experiências vivenciais que a criança selecciona, modifica e cria

percepções e representações sobre o que a rodeia. É a partir das experiências motoras

que a criança realiza o conhecimento corporal, que se compreende e interioriza o sentir,

condição indispensável para a construção da própria existência.

E desta forma caminha ao longo da vida, encontrando em cada etapa espaços próprios

que lhe permitem realizar as tarefas específicas de cada fase do desenvolvimento. Parte

do seio familiar (espaço de afectos privilegiados), sempre omnipresente, para o espaço

social (creche, ama). “Aqui se brinca, se imagina e se prepara o acesso a um novo

espaço, do conhecimento. A rua leva-nos a outros espaços e a outros mundos num

crescente alargamento de experiências, o que corresponde a um maior conhecimento de

si e dos outros” (Trigueiros, 1998, p. 26).

Mas a criança também se desenvolve, brinca, adquire experiência, tem satisfação

quando participa na vida do adulto. Nos dias de hoje é cada vez menos frequente que a

criança participe na vida dos adultos. Por um lado porque os adultos têm pouco tempo

para ela, por outro, porque estão menos disponíveis, por outro ainda, porque a própria

evolução da sociedade torna o trabalho dos adultos muitas vezes demasiadamente

complexo para que a criança possa participar.

Hoje, com as famílias nucleares, com a pouca participação na vida de grupo, já não há

convívio com os vizinhos. A criança limita-se ao convívio da escola e ao convívio da

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família que é, por vezes, uma família nuclear, com poucos componentes (Matos, 1997).

Portanto esta carência de experiência relacional também a leva a uma infância de certo

modo perdida, não suficientemente vivida (Matos, 1997).

Durante as últimas décadas temos vindo a assistir a profundas mudanças na estrutura da

família. Cada vez mais identificamo-la com a família conjugal que vê reduzida a sua

dimensão com a baixa de natalidade. “A crescente independência económica da mulher,

a par do movimento para a igualdade dos direitos, tendem a modificar o equilíbrio das

relações no seio da família nuclear, apontando para uma maior autonomia individual”

(Cabral, 1994, p. 27). Considerando esta questão numa perspectiva histórica podemos

constatar que há efectivamente uma transformação da família no sentido em que existe

uma maior igualdade de oportunidades entre o homem e a mulher.

Existe um aumento das famílias nucleares e uma larga percentagem de crianças que

experimentam as circunstâncias de pais separados. Por outro lado os problemas

resultantes do tempo de trabalho implicam soluções na gestão do tempo de vida das

crianças de forma problemática, passando estas muito tempo sós ou em espaços

previamente organizados (Neto, 1994). Muito deste tempo é passado perante um

envolvimento electrónico em substituição de actividades relacionadas com o jogo de

rua, com os amigos, ou de exploração do espaço físico próximo da habitação. As

limitações conhecidas de liberdade de acção, principalmente nos grandes centros

urbanos, devido a barreiras arquitectónicas e sociais e problemas de segurança, tem

conduzido ao aparecimento de uma cultura motora progressivamente mais sedentária e

paradoxalmente a um aumento significativo do tempo de actividades institucionalizadas

após o horário escolar. Os estudos de investigação mostram como as atitudes parentais

são essenciais para a evolução lúdica e motora das crianças (Cratty; Kooij e Hurk, in

Neto, 1997).

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Estamos a caminhar para um conceito de Homem que se reflecte na preocupação actual

em manter a criança “intelectualmente activa e corporalmente passiva” (Neto, in Arez,

2000, p. 12; Neto e Marques, 2004). As características das sociedades pós-industriais

(hábitos sedentários, stress emocional, maus hábitos de vida do ponto de vista corporal e

actividade física) e o nascimento de uma sociedade de informação que se reveste de

uma padronização excessiva de valores, atitudes e comportamentos, implica a tomada

de consciência das mudanças ocorridas na estrutura familiar, escolar e social (Neto e

Marques, 2004).

É de realçar, no entanto, o que o autor Cabral em 1992 relatava relativamente ao facto

de nos últimos 50 anos, na generalidade dos países ocidentais, se assistir à passagem de

um modelo relacional intra-familiar autoritário para um modelo democrático. “De facto,

se anteriormente o funcionamento da família assentava sobre a autoridade dos pais (em

especial do pai), hoje o exercício da autoridade passa a contar cada vez mais com a

intervenção dos filhos, quer por haver mais comunicação entre os membros da família,

quer porque o funcionamento da família se inspira, em grande parte, nos princípios da

liberdade e da igualdade” (Cabral, 1994, p. 30).

Apesar deste aspecto importante, o espaço urbano tem vindo a deteriorar-se, e as

famílias com filhos têm de se preocupar cada vez mais com problemas como a

insegurança social e a insegurança nas ruas, devido ao aumento desmesurado do tráfego

nas cidades. O espaço urbano está cada vez mais perigoso para as crianças. Por outro

lado tem vindo a aumentar a distância aos centros urbanos dos locais de recreação e

lazer, nomeadamente dos que estão consignados à prática desportiva, tendo como

consequência a diminuição da acessibilidade por parte das crianças e o aumento da

dependência do tempo disponível dos pais ou da utilização dos transportes públicos.

Uma das causas, que têm contribuído para a diminuição da liberdade das crianças

brincarem na rua, nas suas zonas residenciais, entre outras, apontadas por Treuter e

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Doyle (1996) é o facto de ambos os progenitores trabalharem. Temos, nos dias de hoje,

menos adultos em casa que poderiam acompanhar as crianças à rua (Arez, 2000).

“Para a criança a cidade deveria ser um espaço rico de encontros, interdependências,

com vizinhos e amigos, espaço de partilha com os pares de vivências e recordações

comuns. Assiste-se hoje à descaracterização das cidades com desaparecimento de locais

tradicionais de vida e encontro, e marginalização de um largo sector da população,

muitas vezes migrante. Para as comunidades urbanas torna-se fundamental garantir a

preservação de um território, definido por uma cultura e rituais próprios, que promovam

o sentimento de pertença, factor importante na construção da identidade” (Trigueiros,

1998, p.26).

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2. A Criança E O Jogo – Importância No Crescimento

“O conhecimento não provém, nem dos

objectos, nem da criança, mas sim das

interacções entre a criança e os objectos”

(Jean Piaget)

“A brincadeira é para as crianças fonte de profunda satisfação, desafio, prazer e

recompensa, seja barulhenta ou sossegada, suja ou ordeira, disparatada ou séria,

vigorosa ou não exigindo esforço” (Hohmann e Weikart, 2004, p. 87).

À medida que as crianças exploram e brincam no exterior vivenciam muitas

experiências-chave: representação criativa, linguagem e literacia, iniciativa e relações

interpessoais, movimento, música, classificação, seriação, número, espaço e tempo.

Para além disso, este tempo passado no exterior permite-lhes expressarem-se e

exercitarem-se de formas que habitualmente não lhes são acessíveis nas brincadeiras de

interior. Se bem que as crianças dos contextos de aprendizagem activa se movimentem

ao longo do dia, uma vez lá fora envolvem-se em brincadeiras mais revigorantes e

barulhentas. No exterior as crianças respiram ar fresco, exercitam o coração, pulmões e

músculos, absorvem vitaminas, e vêem horizontes mais abertos (Hohmann e Weikart,

2004, p. 433).

A necessidade de actividade física e jogo espontâneo para as crianças é crucial, se não

mesmo decisiva na delimitação de hábitos saudáveis para uma vida activa (Neto e

Marques, 2004; Neto, 2004). Vários estudos têm demonstrado uma elevada correlação

com a saúde física, psicológica e emocional. Os resultados revelam ainda efeitos

positivos do jogo e actividade física no melhoramento da percepção de si próprio, na

eficácia pessoal, na auto-estima, na interacção social e no bem-estar psicológico (Neto,

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in Arez, 2000). A atitude lúdica associada ao desenrolar das actividades motoras,

conferem a exercitação da função e sentido de intencionalidade, que, sendo imediatas,

permitem ao ser humano uma relativa e confortável capacidade de adaptação ao longo

da vida em relação aos desafios do seu envolvimento físico e social (Neto & Marques,

2004).

Jogar/brincar é uma das formas mais comuns de comportamento durante a infância,

tornando-se uma área de grande atracção e interesse para os investigadores no domínio

do desenvolvimento humano, educação, saúde e intervenção social (Neto, 1997).

Os estudos de investigação sobre o jogo, têm vindo a merecer nas últimas décadas um

interesse crescente na comunidade científica a par de uma mobilização internacional

sobre a defesa do direito da criança ao jogo e materializada em múltiplos projectos de

intervenção, sendo algumas dessas razões as mudanças progressivas dos estilos de vida

familiar e a alteração das rotinas de vida quotidiana dos filhos na gestão do espaço e

tempo livre, associada a constrangimentos relacionados a uma diminuição de autonomia

e independência de mobilidade no contexto social - insegurança, intensidade de tráfego

e ausência de espaços de jogo (Neto, 1999; 2004).

As possibilidades de acção (independência ou autonomia de mobilidade) da criança e do

jovem, têm vindo a diminuir drasticamente como consequência de um estilo de vida

padronizado (Pellegrini e Smith, 1998). Alguns estudos demonstram uma diminuição

dos níveis de mobilidade e autonomia das crianças nos meios urbanos e um aumento

considerado preocupante de sedentarismo infantil, comprometendo a vivência de

experiências próprias da idade, isto é, o jogo e a actividade física (Neto, 1999; Piéron,

1999; Van Gills, 1996; Frost, 1992; Moore, Goltsman e Iacofano, 1992; Moore, 1986).

Os espaços de convívio, de socialização, de jogo e de aventura (e.g., zonas públicas da

habitação; pontos de encontro) têm vindo a decrescer de importância nos quotidianos

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das crianças em meio urbano, devido aos constrangimentos relacionados com o

aumento do tráfego automóvel, violência e insegurança.

Esta cultura de rua é fundamental no processo de desenvolvimento da criança,

nomeadamente em experiências de jogo informal e decisivo nas aquisições motoras,

perceptivas e sociais. O aumento progressivo do sedentarismo infantil é proporcional à

diminuição da qualidade ambiental em termos de condições e oportunidades de jogo

livre. Pode constar-se pela análise das rotinas de vida das crianças (Neto, 1997; Serrano

e Neto, 1997), que a gestão do tempo escolar e o tempo adicional passado em

actividades organizadas ou institucionalizadas, não permitem às crianças o uso do

tempo considerado verdadeiramente livre (espontâneo), consequência provável das

transformações urbanas e da construção de imaginários de segurança que os pais têm na

educação dos filhos.

A tendência em institucionalizar as actividades de tempo livre das crianças e jovens é

um dos fenómenos mais intrigantes do fim deste século (Neto e Marques, 2004). A rua é

um espaço potencial de jogo que está em desaparecimento progressivo da cultura lúdica

infantil. Recentes investigações têm-nos mostrado também o efeito da alta habitação em

relação ao padrão de jogo de crianças de idades baixas (Neto, 1997; Serrano e Neto,

1997).

A densidade populacional associada à densidade de tráfego automóvel, tem vindo a

transformar os estilos de vida das crianças das grandes cidades. Os percursos entre a

habitação e a escola e vice-versa e o conjunto de experiências individuais ou de grupos

de amigos, em função do espaço físico disponível, seguem uma orientação adaptável a

essas mudanças no tecido urbano. A importância da maneira como a criança aprende o

funcionamento do próprio envolvimento, considerando os lugares onde passa, joga ou

convive com os amigos, tem permitido a alguns investigadores compreenderem melhor

como se desenvolve esta capacidade de autonomia progressiva em relação ao espaço

físico (Neto, 1999).

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Alguns estudos similares quanto a objectivos, métodos e instrumentos de estudo, têm

procurado compreender como a independência de mobilidade é um factor crucial no

desenvolvimento da criança (Kyttä, 2004a, 2004b; Kyttä, 2002; Clark e Uzzell, 2002;

O’ Brian, Jones e Rustin, 2000; Arez e Neto, 1999; Vercesi, 1999; Heurlin-Norinder,

1996; Van der Spek e Noyon, 1995; Kyttä, 1995; Hillman e Adams, 1992).

O conceito de independência de mobilidade deverá ser entendido numa perspectiva

evolutiva, isto é, como a criança desenvolve ao longo do tempo uma representação mais

consistente do espaço físico (memória, percepção, identificação) bem como uma

liberdade progressiva de acção no espaço quotidiano da vida (Neto, 1999).

Esta capacidade de autonomia de mobilidade face ao envolvimento físico permitirá o

desenvolvimento da liberdade e autonomia em jogo, a descoberta do envolvimento e o

seu funcionamento, a descoberta das relações com o mundo adulto, o sentido da

descoberta e a resolução de problemas, o desenvolvimento de hábitos saudáveis na vida

activa e a prática do jogo e da actividade física, essenciais para o equilíbrio emocional e

psicológico. Esta percepção das possibilidades de acção não se confina apenas ao facto

de a criança poder ir para a escola sozinha, mas também a um nível de independência

mais vasto: poder brincar fora de casa, visitar amigos, ir a clubes ou associações, ir às

compras, etc. (Neto, 1999).

Arez e Neto (1999) fizeram um estudo sobre independência de mobilidade e percepção

do espaço físico, onde constataram que quando são analisadas as acções diárias de

crianças entre os 8 e os 9 anos, verifica-se uma clara superioridade de autonomia de

mobilidade por parte de crianças do sexo masculino, com particular relevo para a

actividade de andar de bicicleta. As percentagens encontradas entre o meio rural e

urbano são significativamente diferentes para o primeiro grupo, principalmente em

actividades de ir para a escola, atravessar ruas e jogar no exterior. Quando comparados

os resultados com estudos em outros países europeus, encontraram-se níveis mais

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elevados de autonomia de mobilidade para as crianças Finlandesas (Kyttä, 1995) e

valores mais próximos das crianças Inglesas (Hillman e Adams, 1992).

Os dados referentes aos percursos realizados de forma individual, acompanhados por

amigos ou por adultos, são demonstrativos no sentido da protecção e segurança seguido

pelos pais, principalmente no meio urbano. Apenas uma pequena percentagem de

crianças faz esses trajectos (escola, rua, etc.) com autonomia pessoal, com ligeira

superioridade para as crianças do sexo masculino e do meio rural. Estes valores revelam

as grandes mudanças ocorridas nas áreas urbanas quanto aos padrões de vida familiar e

os constrangimentos existentes nos quotidianos de vida diária das crianças.

Parece deduzir-se pelos estudos já realizados que a educação para a saúde, procurando

fomentar estilos de vida activa, deve começar na infância a partir de condições de

estimulação oferecidos pela comunidade (espaços verdes, espaços de jogo e desportivos,

etc.), pelas escolas (espaços de recreio apropriados e ensino de Educação Física e

Desporto Escolar) e pelos pais (interacção parental). A apreciação das rotinas de vida e

a independência de mobilidade de crianças nos meios urbanos permitem concluir que a

inactividade física tem vindo a aumentar de forma considerável nos últimos anos

(Bogin, 1999; Piéron, 1999; Arez e Neto, 2000; Neto, 1999; Pereira e Neto, 1999;

Pellegrini e Smith, 1998; Pomar e Neto, 1997; Pereira, Neto e Smith, 1997; Serrano e

Neto, 1997). Ver televisão é uma das principais actividades das crianças nas sociedades

contemporâneas ocidentais, como recurso alternativo às brincadeiras de outros tempos.

É frequentemente visto como uma actividade passiva, requerendo no entanto algum

grau de esforço cognitivo e mental (Hawkins e Pingee, in Matos et al., 1998). Outros

investigadores encontraram uma relação entre o ver televisão em excesso e hábitos de

dieta pobres e um estilo de vida sedentário (Felts, 1992, Groves, 1998, Robinson e

Killen, 1995, in Matos et al., 1998).

A redução de oportunidades e tempo de jogo na infância e adolescência têm

consequências inevitáveis no aumento do sedentarismo e as patologias associadas com o

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aumento de obesidade, stress e doenças cardiovasculares. Um empobrecimento do

reportório motor e dificuldades de adaptação a novas situações são provavelmente o

resultado de uma diminuição de estimulação ocasional (experiências informais em

actividade física e relacionamento social). Admite-se que de uma forma geral 40 a 45%

de crianças e adolescentes sejam sedentários ou insuficientemente activos nas

sociedades mais desenvolvidas (Neto e Marques, 2004). O relativo baixo custo

energético dispendido pelas crianças nas actividades de vida quotidiana (casa, escola e

rua) implica um olhar mais atento no desenvolvimento de estratégias de investigação e

de políticas públicas de modo a ultrapassar este problema complexo da vida moderna.

Neste sentido, a promoção do jogo e actividade física na vida da cidade e da escola,

deverá constituir-se como um indicador decisivo da qualidade de vida (Pellegrini e

Smith, 1998).

Sempre que os investigadores procuraram analisar a origem histórica do brincar e do

jogar concluíram que são resultado da criação dos grupos sociais; actividades

universalmente consideradas como parte integrante das culturas; uma das características

inerentes às sociedades estreitamente relacionada com a educação das suas crianças.

Mas, concluíram, ademais, que o processo de desenvolvimento das brincadeiras e jogos,

no devir histórico dos grupos sociais, se fez em resultado da mudança de lugar da

criança no sistema de relações sociais (Veiga, 1998).

A modernidade propõe que as sociedades façam poucas crianças, faz passar a segurança

destas pela casa e espaços fechados, oferecendo-lhes como alternativa ao seu natural

desejo de rua, campo aberto e muitos iguais, múltiplos brinquedos prontos a consumir.

O dinheiro escasseia menos mas falta aos mais velhos o tempo para o afecto interactivo

e presencial, necessário no tempo de brincar com, e de brincar ao lado de, por que as

crianças passam no seu processo de desenvolvimento (Veiga, 1998).

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Veiga (1998) acrescenta ainda que o tempo para os mais novos tem uma finalidade

única, conceder-lhes espaço para a aprendizagem para que consigam o estatuto a que

todos aspiram, ser adultos. Nos seus processos educativos os grupos sociais servem-se

dos jogos, e o tempo de jogo é um processo único de interacções que permite a

experimentação e a repetição de situações. O jogo tem influências essenciais no

desenvolvimento motor, cognitivo e social durante a infância e adolescência (Neto e

Marques, 2004). Algumas evidências sobre a investigação animal (Byers, 1998; Bekoff

& Byers, 1995 in Neto e Marques, 2004) demonstram as vantagens na infância do jogo

de actividade física no desenvolvimento morfológico do cérebro, e um período sensível

na diferenciação do tipo de fibras musculares. Uma ligação entre a investigação no

âmbito das neurociências e a evolução humana permite colocar hipóteses mais

específicas acerca do papel do jogo no desenvolvimento do cérebro e o controlo de

comportamentos progressivamente mais complexos (Bogin, 2002 in Neto e Marques,

2004). O jogo torna-se numa das formas mais importantes formas de comportamento

humano desde o nascimento até à morte (especialmente durante a infância e

adolescência) e absolutamente essencial na formação da sobrevivência e estruturação do

processo de desenvolvimento humano.

O jogo, o brincar, mais do que uma forma especial de actividade com características

próprias, pode considerar-se uma atitude à qual está ligada um certo grau de escolha,

uma ausência de coacção por parte das formas, convencionais, de usar objectos,

materiais ou ideias. Nisso reside a sua relação com a arte e com as diferentes formas de

criatividade. Brincar ocupa dentro dos meios de expressão da criança um lugar

privilegiado. Não podemos considerá-lo só como um passatempo ou uma diversão: é

também uma aprendizagem para a vida adulta. Ao brincar e ao jogar a criança aprende a

conhecer o seu próprio corpo e as suas possibilidades, desenvolve a personalidade e

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encontra um lugar na comunidade. Poder brincar permite exteriorizar situações

agradáveis e desagradáveis (Solé, 1992).

O jogo do faz-de-conta é fundamental no desenvolvimento global da criança. Por um

lado, porque a ajuda a distinguir o seu self dos outros, por outro, porque lhe propicia

oportunidades de descentração, de tomada de perspectiva empatia. Auxilia ainda na

interacção com amigos e pares e, como consequência de todos estes aspectos, facilita o

seu desenvolvimento social, intelectual, moral e emocional (Lourenço, 1997).

Para Piaget o desenvolvimento intelectual deve-se a uma interacção entre a assimilação

e acomodação. Se a assimilação predomina e o indivíduo relaciona a percepção com a

experiência e adapta às suas necessidades, estamos perante o jogo, ao qual atribui

também uma função biológica enquanto repetição e experiência activa que compila

mentalmente novas situações e experiências (Solé, 1992).

Os jogos contribuem para o desenvolvimento, a acção, a decisão, a interpretação e para

a socialização da criança. Os jogos de regras iniciam-na na organização e na disciplina,

ao mesmo tempo que a ajudam a submeter os próprios interesses à vontade geral. A

partir do jogo em grupo a criança aprende a ser ela própria, a ser um indivíduo, a ver

que também existem os outros e a respeitar a sua personalidade (Solé, 1992).

A mesma autora (1992) salienta ainda que a criança brinca e joga para descobrir as

pessoas e as coisas que estão à sua volta, para se descobrir a si própria e para ser

reconhecida pelos outros, para aprender a observar o seu ambiente, conhecer e dominar

o mundo. Brincar é superar a frustração, distrair-se, divertir-se, investigar, criar, evoluir.

Jogar e brincar permitem crescer, integrar-se, desenvolver-se.

Arez (2000) explica que uma das características mais importantes do jogo é a auto-

determinação. Como nos alerta Gils (1996, in Arez, 2000, p. 26), “ninguém pode ser

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forçado a jogar: podemos ser convidados a fazê-lo, estimulados e até tentados, mas

ninguém pode ser obrigado a jogar. Jogar envolve uma decisão pessoal, um acordo”.

A missão do educador é então ajudar a desenvolver na criança a capacidade de se fazer

a si própria, adaptando-se continuamente a um mundo que muda cada vez mais

depressa, ajudá-la a conquistar certa autonomia e a conhecer o mundo que a rodeia.

“O direito a brincar está reconhecido no princípio 7 da Declaração dos Direitos da

Criança, adoptados pela Assembleia Geral da ONU a 30 de Novembro de 1959, e é

considerado tão fundamental para a criança como o direito à saúde, à segurança ou à

educação” (Solé, 1992, p. 18).

É necessária uma visão de desenvolvimento sustentável no âmbito das “culturas da

infância” na sua vida quotidiana no sentido de assegurar um combate ao progressivo

“analfabetismo motor” e promovendo experiências de jogo e movimento necessárias

para assegurar “estilos de vida saudáveis ao longo da vida” (Neto e Marques, 2004).

Os mesmos autores, enumeram alguns destes constrangimentos relacionados com o

desenvolvimento motor e jogo de actividade física na vida das crianças e adolescentes:

- Aumento do envolvimento electrónico: o impacto das novas tecnologias (culturas de

écran) evoluiu significativamente nas últimas décadas na vida das crianças;

- Aumento da densidade de tráfego: as limitações de espaço disponível junto às

habitações e na cidade em geral, poderá levar a considerar “o jogo de rua” como uma

espécie em vias de extinção;

- Diminuição do espaço de jogo livre: o fenómeno de urbanização e a reduzida e

institucionalizada política de equipamentos de espaço de jogo para a infância não

favorecem o desenvolvimento de experiências de jogo e aventura;

- Aumento de insegurança e protecção: de uma forma geral a família alterou os padrões

de liberdade na educação dos filhos sobre a frequência de espaços exteriores.

Diminuíram as margens de risco atribuídas pelos pais nas actividades de jogo e

Revisão da Literatura

19

actividade física e aumentaram os “medos de insegurança e abuso” na gestão da vida

diária dos filhos;

- Aumentou a formalidade da vida escolar: são maiores as actividades curriculares

organizadas na escola a par de um menor tempo de actividade livre. Os recreios

escolares não são considerados, na maior parte dos casos, como locais de

desenvolvimento e aprendizagem social;

- Aumento de actividades e jogos institucionalizados: o uso do tempo, espaço e

actividades organizadas (desportivas, artísticas e religiosas) colocam-se como “escolas

paralelas” e como consequência faz desaparecer o tempo verdadeiramente livre (jogo

espontâneo e exploratório); este tempo verdadeiramente saturado de actividades

organizadas tem levado ao desenvolvimento do conceito de “crianças de agenda”;

- Diminuição do nível de independência de mobilidade: alguns dados permitem afirmar

que a autonomia de circulação das crianças no espaço urbano tem vindo a diminuir de

forma significativa nos últimos anos - percursos, percepção do espaço físico e

possibilidades de acção (Serrano, 2004; Malho e Neto, 2004; Neto, 1999; O’Brien,

Jones e Rustin, 2000; Arez e Neto, 1999; Vercesi, 1999; Kittä, 1995; Van Der Spek e

Noyon, 1995; Neto, 1992; Sandels, 1975, in Neto e Marques, 2004).

Revisão da Literatura

20

3. Tempos E Espaços Urbanos

3.1. A Percepção E A Relação Com O Espaço Físico

Neste ponto vamos abordar a questão da percepção e da relação da criança com o

espaço físico e a forma como estes dois aspectos intervém no processo de crescimento e

maturidade da criança.

Como referido anteriormente, Piaget (in Lourenço, 1997) afirma que o conhecimento

físico provém das acções que o sujeito exerce directamente sobre os objectos.

Arez (2000) reforça a importância de focalizar a atenção no papel da motricidade e da

mobilização activa dos sujeitos no desenvolvimento do conhecimento e da

representação espaciais.

Neto (1980) também enfatiza o papel do movimento neste processo, pois permite à

criança encontrar um conjunto de relações (sujeito, coisas, espaço) necessárias ao seu

desenvolvimento motor aprendendo a inter-relacionar o vivido, o operatório e o mental.

A percepção visual do mundo que nos rodeia parece, à partida, ser um processo directo

e frontal por reconhecermos facilmente coisas simples, como objectos de diferentes

tamanhos, formas e cores, a várias distâncias e com diferentes orientações, ou até

realidades mais complexas que impliquem movimento e perspectiva. No entanto, o

simples contacto de olhar com aquilo que nos rodeia não é suficiente para ver o mundo

de um modo ordenado, organizado e previsível. Existe um mecanismo mais elaborado

que se designa percepção.

De acordo com Trevarthen (in Arez, 2000, p. 15) “percepcionar ou fazer algo, é

estabelecer uma relação entre o mundo e a mente”. Rubinstein em 1972 afirma que é na

Revisão da Literatura

21

percepção que se reflecte, por norma, “o mundo dos homens, das coisas e dos

fenómenos que para nós têm um determinado significado, sendo depois estabelecidas

uma infinidade de relações entre eles, cujo resultado é a floração de situações racionais

das quais somos testemunhas e colaboradores” (in Arez, 2000, p. 15).

Segundo Piaget e Inhelder (1993, p. 28), “as estruturas sensório-motoras ou perceptivas

antecipam muito as conquistas futuras da representação espacial”, ou seja, “antes de a

criança ser capaz de imaginar perspectivas ou medir objectos através de operações

efectivas, já está apta a perceber projectivamente e a estabelecer através da percepção

apenas certas relações métricas implícitas”.

Num nível inicial, toda a percepção está inserida numa actividade sensório-motora de

conjunto, no entanto, enquanto a primeira inclui mecanismos muito constantes, a

segunda desenvolve-se de um modo muito sensível com a idade. Como descrevem

Piaget e Inhelder (1993, p. 55), durante o primeiro estádio (até por volta dos quatro anos

de idade) a criança permanece quase passiva em presença dos objectos a reconhecer,

segura e manipula os objectos, mas não os explora visualmente. Durante o estádio dois

(dos quatro aos sete anos) dá-se a afirmação da actividade perceptiva, primeiro por

explorações globais, e a seguir pela análise de índices particulares (por exemplo,

ângulos) e por fim pela análise completa. Por último, no terceiro estádio (sete a oito

anos), assiste-se ao nível das operações concretas, explorações sistemáticas com

retornos a um ponto de partida que serve de referência.

A motricidade, que já estava implicada na actividade perceptiva ou sensório-motora e

intervinha na construção do espaço desde a percepção, é agora necessária na elaboração

da imagem representativa e, em consequência, das representações espaciais intuitivas

(Piaget e Inhelder, 1993, p. 57).

Revisão da Literatura

22

As construções perceptivas e representativas do espaço apresentam um factor em

comum que tem uma importância essencial para a interpretação da intuição espacial em

geral. Este factor é a motricidade. Segundo os autores, a motricidade é a “fonte das

operações, após ter constituído o elemento director das imagens representativas e, sem

dúvida, como é preciso insistir agora, das percepções espaciais mais elementares”

(Piaget e Inhelder, 1993, p.28). “... o movimento intervém não somente desde os inícios

da percepção, mas ainda desempenha um papel cada vez maior graças à actividade

perceptiva” (idem, p. 31) ou sensório-motora.

As relações espaciais são elaboradas graças à motricidade que age em conjunto com o

sensorial. Por exemplo, numa visão em profundidade intervêm uma série de “relações

virtuais” que ultrapassam os dados registados pelos órgãos receptores. Estas relações

são um produto da motricidade, ao passo que os elementos sensoriais preenchem a

função de índice. A actividade sensório-motora permite certas antecipações e

reconstituições (Piaget e Inhelder, 1993, p. 472).

As condições de espaço e as possibilidades de mobilidade vão ser, certamente, muito

importantes para todo o processo de desenvolvimento.

Morato (in Arez, 2000, p. 19) pôs algum ênfase sobre o “papel da motricidade no

desenvolvimento da capacidade de representação espacial da criança”, que constitui um

“alicerce fundamental da construção cognitiva que a criança vai revelar ser capaz de

realizar” (Morato, in Arez, 2000, p. 19). Nesta perspectiva, e fazendo uma ponte para os

objectivos do nosso trabalho, a motricidade, o movimento e, enfim, o comportamento

motor da criança, o qual poderá estar limitado por constrangimentos espaciais de vária

ordem, são cruciais para o desenvolvimento da sua própria representação do espaço, na

maneira como intelectualmente a criança pensa e o imagina, como ela o vê e como age

sobre ele.

De acordo com Malho e Neto (2004), é a partir da apreensão e da compreensão dos

espaços/ contextos imediatos que é possível compreender o ambiente como um todo

Revisão da Literatura

23

orgânico e funcional. E este surge se a criança progressivamente for capaz de

desenvolver imagens ambientais. Estas são um processo duplo entre o observador e o

observado e são baseadas na forma exterior do objecto – seja ele de pequenas e/ou de

grandes dimensões, como a cidade, por exemplo, mas a maneira como tal se interpreta e

se organiza e como se dirige a atenção afecta, por sua vez o que é visto (Lynch, 1982 in

Malho e Neto, 2004). É a imagem mental que permite o desenvolvimento das imagens

ambientais. A imagem mental surge e desenvolve-se a partir da percepção imediata e da

memória da experiência passada. A imagem ambiental por sua vez, é essencial para a

possibilidade de vida, permitindo desenvolver a memória topográfica e

consequentemente a mobilidade intencional (Malho, 2003).

Gibson (1986 citado por Morato, in Arez, 2000), considera que o sistema perceptivo

como sistema inter sensorial, coloca a criança em relação com o envolvimento e com a

informação, que é caracterizada na perspectiva ecológica, pela sua invariância, ou seja,

a informação do envolvimento está, do ponto de vista sensorial, permanentemente

disponível, apenas tem de ser descoberta e não construída. Gibson denomina esta teoria

por teoria ecológica da percepção.

No que diz respeito à relação da criança com o espaço físico constatamos que à medida

que a criança vai crescendo, os seus horizontes espaciais vão-se alargando.

A família é o primeiro espaço da criança, e a casa o seu universo. O grau de

afectividade proporcionado pela família à criança irá afectar profundamente a

construção da sua personalidade: “O ambiente afectivo vai condicionar, positiva ou

negativamente a sua expressão motora e a sua exploração do espaço” (Pimentel, in

Arez, 2000, p. 23).

Para além do aspecto afectivo, a qualidade do espaço é um factor de elevada

importância no desenvolvimento do ser humano. De acordo com Klein e Liesenhoff (in

Revisão da Literatura

24

Arez, 2000, p. 23) o primeiro espaço (constituído pela casa e respectivo espaço

envolvente) pode influenciar de um modo favorável ou desfavorável o desenvolvimento

do comportamento da criança durante o jogo e a actividade física. O mesmo autor

continua explicando que casas pequenas e com poucas divisões, e escassez de espaços

exteriores, são algumas das características urbanísticas que abundam nas nossas cidades

e vilas.

Nas primeiras idades, deve existir uma preocupação em assegurar um papel facilitador

da acção, através do acesso da criança a experiências de movimento diversificadas na

exploração directa de espaços e materiais. A partir dessas experiências é possível a

estruturação do espaço e do tempo à medida que se processa a maturação nervosa (Neto,

1980). O movimento e a mobilidade, o espaço e o desenvolvimento da criança são

factores intimamente relacionados (Arez, 2000, p. 23)

O segundo espaço social da criança é o jardim-de-infância (Pimentel, 1985, p. 42).

Durante este período, dá-se um grande desenvolvimento perceptivo-motor devido às

grandes solicitações de que é alvo, e ao convívio com outras crianças e adultos.

Ao entrar na idade escolar, a criança abandona o espaço puramente familiar tornando-se

mais autónoma. Os amigos passam a ter um grande significado, e, segundo Pimentel

(1985, p. 42), o espaço continua a ter uma grande relevância pois ele é “necessário ao

estabelecimento de relações entre as crianças, ajudando-as a desenvolverem-se

socialmente”.

Entre os seis e os doze anos, o espaço da criança vai-se alargando e ela vai descobrindo

a aldeia ou o bairro. As incursões vão sendo cada vez mais vastas, e vai estabelecendo

relações cada vez mais fora da família. A rua, o bairro, a escola, a casa dos amigos e os

parques, são os locais preferidos pelas crianças pertencentes a esta faixa etária. (Arez,

2000, p. 24) Como o seu grau de autonomia não é ainda muito elevado e a família ainda

protege muito a criança desta idade, à excepção do tempo passado na escola, a casa, a

rua e todo o envolvimento perto da habitação são os locais onde a criança passa a maior

Revisão da Literatura

25

do seu tempo extra-escolar (quando não está em outras actividades como as práticas

desportivas, a catequese, os tempos livres e outras actividades agendadas). No entanto, o

problema que se coloca hoje em dia é a pobreza dos espaços exteriores, em termos de

qualidade: as ruas, os bairros e as zonas residenciais estão cobertos de cimento e asfalto

e de parques de estacionamento, e pobres em espaços verdes e espaços nos quais as

crianças possam brincar livremente e em segurança. É precisamente nesta etapa do

desenvolvimento da criança que surgem os problemas da qualidade do espaço urbano,

da existência de tráfego excessivo, da falta de segurança e da dificuldade de

acessibilidade aos espaços de jogo. Este conjunto de constrangimentos surge

principalmente nas cidades e vilas.

Nilson (1985, p. 2) refere como uma das conclusões retiradas do congresso do IPA

relaizado em Otawa em 1978, a necessidade de as crianças terem acessos seguros a um

grande e diverso leque de espaços perto das suas habitações, os quais não necessitem de

uma supervisão constante por parte dos adultos. A existência de zonas próprias para as

crianças que as façam sentir-se livres para que se desenvolvam em autonomia sem

interferir no espaço de outros (Arez, 2000, p. 25). A vida da cidade é hoje um acto

desesperado de estratégias e acções do mundo adulto (Malho e Neto, 2004). É urgente

pensar a organização da vida da cidade na perspectiva das crianças e dos jovens.

Moore (1987) defende que “a qualidade de vida das crianças é directamente afectada

pelo contexto físico e pela qualidade do envolvimento local”.

As características do espaço tanto podem limitar como potenciar as oportunidades de

jogo e realização de actividades de carácter informal nas crianças.

Uma das conclusões a que Neto (1997) chegou num estudo que realizou no qual o

objectivo era a “Identificação de Obstáculos ao Desenvolvimento da Cultura Lúdica de

Crianças e Jovens do Nosso Tempo”, revelou-nos uma realidade preocupante: a

Revisão da Literatura

26

restrição progressiva do espaço habitacional está a fazer aumentar progressivamente a

dificuldade em a criança fazer amigos. (Arez, 2000, p. 26)

Uma das formas mais naturais de fazer amigos acontece durante o caminho para a

escola, e desta para casa. Contudo, à medida que nos aproximamos dos grandes centros

urbanos, verificamos que o nível de autonomia no percurso casa/escola, diminui

consideravelmente, o que vem dificultar o estabelecimento de novas relações de

amizade entre as crianças.

Mas não é só por este motivo que a situação se revela preocupante. Também no espaço

escolar encontramos situações que merecem a nossa atenção, ou seja, a pobre qualidade

do espaço e dos equipamentos e a pouca consideração que é atribuída ao seu impacto

nas actividades de jogo livre nos intervalos do tempo escolar.

Relativamente ao género, as crianças de ambos os sexos parecem preferir o mesmo tipo

de actividades. No entanto, os rapazes preferem jogos mais activos (Arez, 2000).

Segundo Trenter e Doyle (in Arez, 2000, p. 27), “as implicações da perda da rua como

espaço de jogo para as crianças são profundas. Não apenas as crianças são afectadas,

mas esta realidade traz implicações negativas para os pais, para o envolvimento e, claro,

para toda a comunidade”.

Também Heimstra e McFarling (in Arez, 2000, p. 29), no seu livro sobre Psicologia

Ambiental, focam um aspecto muito interessante quando escrevem que “o

comportamento humano está, de muitas formas, relacionado funcionalmente com os

atributos do ambiente físico”.

“A vida de um indivíduo na cidade está continuamente exposta a uma série

tremendamente variada de características ambientais, algumas possivelmente atraentes,

outras muito ameaçadoras” (Heimstra et al., 1974, p. 93).

Arthur Naftalin (1970) citado por Heimstra et al. (in Arez, 2000, p. 30), aponta alguns

atributos ambientais que contribuem de forma importante para a insatisfação da vida na

Revisão da Literatura

27

cidade, e que são comuns a vários segmentos da população. São eles a alta densidade

populacional que leva à falta de espaço, o crime, a agressão, a violência e as habitações

pobres.

As características do espaço físico e o contacto estabelecido com um envolvimento rico

e estimulante são importantes para o desenvolvimento saudável e harmonioso do

indivíduo, tanto a nível físico como psicológico. A dimensão e a qualidade do espaço

habitacional e as relações cordiais estabelecidas com quem se partilha o mesmo bairro

ou rua, parecem ser factores determinantes para a satisfação residencial (Fried e

Gleicher; Zehner in Arez, 2000, p. 32).

As características do envolvimento físico podem também influenciar em larga escala os

padrões de comportamento dos indivíduos, por exemplo, o facto dos habitantes de

determinado local serem mais ou menos fisicamente activos. De acordo com King et al.

(1995) e Sallis e Owen (1997) citados por Sallis et al. (1997, p. 345) os envolvimentos

físicos têm a capacidade de facilitar ou limitar a actividade física (Arez, 2000, p. 33).

A título conclusivo, relativamente às questões previamente focadas, gostaríamos de

deixar algumas considerações com o objectivo de procurarmos respostas adequadas para

a pergunta: O que fazer com a realidade que se impôs na nossa sociedade, no que diz

respeito, obviamente à situação das crianças nas grandes cidades?

“A razão pela qual os esforços compensatórios dos pais têm pouco efeito na vida diária

e no desenvolvimento dos seus filhos, reside na qualidade das actividades de

substituição que são oferecidas” Huttenmoser (in Arez, 2000, p. 55). Sabemos que

qualquer tipo de actividade que uma criança faça acompanhada por alguém que a

supervisione, está sempre restringida a limites temporais inerentes ao tempo disponível

do adulto que a está a acompanhar. Comparativamente com estas crianças, para as que

possuem espaços acessíveis e seguros nas imediações das suas residências, não é

Revisão da Literatura

28

excepção estarem a brincar quatro ou cinco horas num dia em que o clima o permita. Se

tivermos em consideração a questão de ganho de tempo de jogo e de lazer, as duas

situações não têm comparação possível. Por outro lado, “este tipo de envolvimento

oferece à criança a oportunidade de realizar as suas actividades de modo independente

sem quaisquer restrições, pois as regras são da sua autoria, e não existem condicionantes

impostas por terceiros” (Arez, 2000, p. 55).

Huttenmoser (1995) defende que os espaços de jogo públicos (parques infantis, parques

de lazer) parecem não compensar na totalidade as crianças em termos da oferta de

actividades. “Contêm restrições várias quer em termos de espaços quer em termos de

materiais e nem todos são acessíveis para as crianças, encontrando-se por vezes longe

das habitações, exigindo um acompanhamento por parte de adultos que irão

supervisionar a sua actividade” (Arez, 2000, p. 56). Por não conhecer as outras crianças

que brincam no mesmo espaço, torna-se muito difícil concretizar qualquer tipo de

actividades em grupo e a criança acaba por, na maioria das vezes, brincar sozinha.

Para alguns autores, como Cunningham (1995), os espaços de jogo públicos são, no

entanto, uma parte importante do envolvimento do jogo e do lazer.

Revisão da Literatura

29

3.2. Realidade Urbana: Contextos Sociais Opostos

Este trabalho tem como um dos objectivos determinar se existe ou não uma

diferenciação no desenvolvimento da independência de mobilidade, no sentido da

autonomia da mobilidade do corpo no espaço de vida de crianças de contextos sociais

diferenciados no meio urbano. Este ponto tem como finalidade situar este aspecto, do

ponto de vista de vários autores.

A noção de identidade é central na compreensão e explicação das interacções e relações

entre os grupos (Murrel, 1998). É através de experiências directas e indirectas que os

indivíduos vão construindo a sua identidade (Tajfel e Turner, 1986). Parte da identidade

é formada nas (e pelas) relações sociais dos indivíduos, e está associada à pertença a

categorias sociais ou grupos de pessoas. Esta identidade, denominada por Tajfel (1978)

de identidade social, é definida como a “parcela do auto-conceito do indivíduo que

deriva do seu conhecimento da sua pertença a um grupo (ou grupos) social, juntamente

com o significado emocional e o valor associado àquela pertença” (Tajfel, 1981, in

França e Monteiro, 2002, p. 5).

O critério determinante da pertença é que os indivíduos se definam e sejam definidos

pelos outros como membros de um determinado grupo (Tajfel e Turner, 1986). A

pertença o indivíduo a um grupo atinge o seu significado quando comparada com a

avaliação das diferenças entre esse e outros grupos. De modo que esses outros grupos

são um instrumento e um pretexto para a construção, manutenção e defesa da identidade

social (Monteiro e Ventura, 1997). A comparação pode resultar numa identidade social

positiva, na preservação e valorização da identidade e favoritismo do próprio grupo,

caso o grupo seja avaliado positivamente; ou numa identidade social negativa, caso a

avaliação do próprio grupo seja negativa (Tajfel, 1978; Tajfel, 1981; Tajfel e Turner,

1986, in França e Monteiro, 2002).

Revisão da Literatura

30

A identidade é composta por várias dimensões que variam de um pólo individual e

privado para um pólo inter grupal, público e contextual (Jackson e Smith, 1999; Trew e

Benson, 1996). Estas dimensões englobam aspectos tanto cognitivos, e emocionais

quanto motivacionais (Smith, 1997).

Ellemers, Kortekaas e Ouwerkerk (1999), propõem que a identidade social possui três

dimensões distintas, uma cognitiva, outra avaliativa e ainda a emocional. A dimensão

cognitiva é composta pela auto-categorização, que os autores definem como a

consciência cognitiva da pertença de alguém a um grupo social. A dimensão avaliativa é

representada pela auto-estima, que consiste na conotação de valor positivo ou negativo

associado ao grupo social. (França e Monteiro, 2002).

E, por fim, a dimensão emocional é composta pelo compromisso emocional, que

consiste no envolvimento emocional com o grupo. (França e Monteiro, 2002).

A avaliação emocional da pertença tem sido estudada no campo da auto-estima (Hutnik,

1991; Milner, 1993; Tajfel e Turner, 1986; Trew e Benson, 1996). Corenblum, Annis e

Tanaka (1997) afirmam que “a auto-estima das crianças é influenciada pela visão

predominante na sociedade a respeito do seu grupo” (França e Monteiro, 2002, p. 15).

As crianças de estatuto socioeconómico alto experienciam a “consistência avaliativa

entre os afectos positivos associados à pertença ao seu próprio grupo e o valor atribuído

a este pela sociedade, de modo que a sua auto-estima é acentuada por identificarem-se

com os membros do seu grupo” (França e Monteiro, 2002, p. 15).

Pelo contrário, as crianças de estatuto socioeconómico baixo, experienciam a

“discrepância entre o afecto positivo, relativo ao desenvolvimento de atitudes para o

próprio grupo, e o afecto negativo, associado à percepção da avaliação social

desfavorável do seu grupo” (França e Monteiro, 2002, p. 15). Essa avaliação

desfavorável pode ser superior nas crianças com mais de 7 anos, devido ao pensamento

operacional concreto, ou seja, crianças de grupos maioritário e minoritário podem

Revisão da Literatura

31

compreender o estatuto do seu grupo e como ele é percebido pelos outros (Yee e Brown,

1992; Corenblum, Annis e Tanaka, 1997, in França e Monteiro, 2002).

Relativamente a Lisboa, cidade na periferia da qual foi realizado o presente trabalho,

Sebastião (1998) refere que com o desenvolvimento dos mercados fundiário e

imobiliário, que ocorreram em simultâneo com o crescimento da indústria e dos

serviços, desencadearam-se mecanismos muito fortes de segregação sócio-espacial da

qual resultou a “expulsão” de certos grupos sociais de zonas mais valorizadas para

espaços periféricos degradados. A migração deste grupo (constituído essencialmente por

jovens) para a periferia da cidade teve como consequência o envelhecimento e a

tercialização do centro da cidade e realçou a permanência de pobreza urbana (Sebastião,

1998).

O mesmo autor (1998) refere ainda que o resultado deste processo foi a estruturação de

um território dividido, no qual que as camadas sociais mais desfavorecidas ocuparam,

durante o processo migratório, os espaços periféricos caracterizados pela

marginalização, e consequentemente de menor valor, e alguns as redondezas do centro

da cidade, locais onde a pressão para saírem era constante. Este processo agravou-se

com os movimentos migratórios provenientes de África, de onde chegam, ainda hoje,

desde a independência das colónias, milhares de pessoas, numa tentativa de fuga da

fome e da guerra, criando, no entanto, novos problemas sociais e culturais.

“As situações de marginalidade são geralmente consideradas como uma fatalidade em

meios vistos como maioritariamente dominados pela pobreza, desagregação familiar,

habitação degradada, baixa escolaridade, consumo de drogas, etc., sem se procurar

entender se essas afirmações possuem alguma base real” (Sebastião, 1998, p. 4).

Revisão da Literatura

32

Tendo como objectivo estudar a influência da variável classe social em adolescentes do

sexo masculino que viviam nos E.U.A., Psathas (1957, in Fleming, 1997), realizou um

estudo no qual verificou que os resultados indicavam que nas classes sociais mais

baixas se dava mais autonomia aos filhos nas “actividades fora de casa” e “actividades

relacionadas com a idade”. A vida nas famílias de classe baixa, segundo Erickson (in

Psathas, 1957) é organizada de forma menos rígida, pelo que menos exigências são

feitas à criança, o que o levou a concluir que os padrões menos rígidos nas classes

baixas levam a maior independência devido a um treino positivo para a independência,

mas a um maior abrandamento do controlo parental, verificando-se maior

permissividade quer nas actividades exteriores quer nas que se relacionam com a idade.

Nye (in Psathas, 1957) considera que o ajustamento pais-adolescente é melhor nos

níveis sócio-económicos elevados, onde os adolescentes obtêm resultados mais

elevados no sentimento de serem amados e de terem confiança nos pais (Fleming,

1997). No seu estudo, Psathas verificou que, algumas famílias restringiam a autonomia

nas actividades fora de casa, mas promoviam-na na tomada de decisão, na expressão de

ideias, opiniões e juízos dentro de casa (Psathas, in Fleming, 1997).

Relativamente à nossa realidade, podemos observar hoje em dia, e tendo em

consideração as características de cada região, uma grande quantidade de iniciativas

relacionadas com o melhoramento dos espaços urbanos, parques de jogo, jardins ao ar

livre e iniciativas de apoio a instituições públicas e privadas (Neto, 1997).

Contudo, para compreendermos a influência da realidade urbana nas pessoas, torna-se

importante clarificarmos o próprio conceito de cidade: de acordo com Lynch (1982 in

Malho, 2003) a cidade é o habitat natural do homem civilizado. É na cidade e com ela

que nasce, se amplifica e fixam as mais variadas manifestações da natureza humana. O

homem, sem ter plena consciência da sua obra ao criar a cidade, é afinal recriado por ela

mesma (Park, 1929; Wilheim, 1996; Sachs-Jeantet, 1996, in Malho, 2003).

Revisão da Literatura

33

As pessoas são e fazem parte activa da vida da cidade (Malho, 2003). Park (1929, in

Malho, 2003) refere ainda que é no meio urbano – num mundo construído pelo homem

– que surge a vida intelectual e a aquisição das características que distinguem os

homens dos outros animais (a linguagem, a imaginação...). A capacidade de criar e

desenvolver espaços é um símbolo da humanidade, e é na relação entre nós próprios e

os objectos que se desenvolve e cria a significação daquilo que rodeia o homem; é a

condição para que haja percepção e comportamento.

É na cidade que se desenvolve a maioria das experiências das novas formas de família e

é também neste contexto que os hábitos quotidianos de vida se estão a transformar

radical e aceleradamente (Neto, 1999). As condições de habitação têm consequências

imediatas no “clima” e na organização da família. Têm um efeito nos ritmos e nas

rotinas quotidianas das crianças. Estas por sua vez, estão aceleradamente a transformar-

se; o tempo espontâneo, da imprevisibilidade, da aventura, do risco, do confronto com o

espaço físico natural está a dar lugar ao tempo organizado, planeado, uniformizado.

Revisão da Literatura

34

4. Autonomia E Mobilidade Da Criança

4.1. Competências Sociais

O que são as competências sociais?

No nosso dia a dia passamos grande parte do tempo rodeados de pessoas: os nossos

pais, os nossos amigos, os nossos colegas de trabalho, os nossos chefes, etc. Por isso é

importante saber estar com estas pessoas para que todos se sintam bem (Matos, Simões

e Carvalhosa, 2000).

O comportamento social é, num sentido lato, um conjunto de acções, de atitudes e

pensamentos que o indivíduo apresenta em relação aos outros, à comunidade, e a ele

próprio. A qualidade desta interacção é resultante da conjugação de dados inatos com os

processos de socialização.

As dificuldades de relacionamento interpessoal aparecem-nos muitas vezes ligados a

outros problemas pessoais, escolares e sociais, como por exemplo, condições

psicopatológicas, insucesso escolar, consumo de aditivos (álcool, drogas,

medicamentos) e comportamentos sociais desviantes (Matos, Simões e Carvalhosa,

2000).

O conceito de competência social é um conceito de difícil definição por poder ter várias

nuances de acordo com os vários autores que o tentam definir. Uns (Argyle, 1969,

1981) privilegiam as componentes observáveis do comportamento, tanto não verbais

(contacto visual, expressão facial, gesticulação, postura, tom de voz), como verbais

(começar uma conversa, recusar, elogiar). Outros autores (Meichenbaum, Butler e

Gruson, in Boisvert e Beaudry, 1983) consideram sobretudo os aspectos cognitivos

(crenças, expectativas, auto-verbalizações), acrescentando ser impossível definir

Revisão da Literatura

35

“competência social”, uma vez que esta está sempre parcialmente dependente de cada

situação.

Desta forma talvez possamos dizer que a competência social traduz-se, pois, numa

avaliação de um comportamento social enquanto comportamento adequado. No entanto,

“o mesmo comportamento social às vezes considerado adequado outras vezes é

considerado inadequado às circunstâncias, dependendo das variáveis como quem faz o

quê, com quem, como, em que contexto, com que finalidade, com que resultado, uma

vez que os padrões de relacionamento interpessoal variam grandemente de cultura para

cultura e dentro da mesma cultura com a idade, sexo, estatuto sócio-económico e

educação” (Matos, Simões e Carvalhosa, 2000, p. 163).

Segundo Boisvert e Beaudry (1983), uma definição de competência social deverá ter em

conta comportamentos observáveis e aspectos cognitivos, bem como as consequências

de tais comportamentos sobre o envolvimento social.

Para Hargie, Saunders e Dickson (1987), a competência social consiste num conjunto de

condutas interrelacionadas, dirigidas para um objectivo, que podem aprender-se e que

estão sob o controlo do indivíduo.

Para Trower, Bryant e Argyle (1978), uma pessoa pode considerar-se socialmente

inadequada se não é capaz de afectar a conduta e os sentimentos dos outros.

Para Caballo (1987) a “competência social é o conjunto de comportamentos emitidos

por um indivíduo, num contexto interpessoal, que expresse sentimentos, atitudes,

desejos, opiniões, direitos, de um modo adequado à situação, respeitando as condutas

dos demais, e que, geralmente, resolva os problemas imediatos, minimizando a

probabilidade de futuros problemas” (Matos, Simões e Carvalhosa, 2000, p. 164 ).

Meichenbaum, Butler e Gudson (in Caballo, 1987) referem que é impossível definir

competência social uma vez que esta está dependente do contexto – o que é apropriado

para uma situação pode não ser para outro. A competência social tem também de ser

Revisão da Literatura

36

enquadrada por marcos culturais como o sexo, a idade, o estatuto sócio-cultural e a

educação (Matos, Simões e Carvalhosa, 2000).

Bellack (1979) afirma que não existe nenhuma definição de aptidões sociais que seja

universalmente aceite, para além de nenhuma delas ser suficientemente abrangente de

forma a poder representar adequadamente todo o trabalho feito nesta área (Nogueira,

2000).

Waters e Srouf (Nogueira, 2000, p. 22) definem a competência social como “...an ability

to generate and capitalize on opportunities in the environment”. Neste sentido apontam

alguns sub componentes da competência social:

1 – Os indivíduos devem contribuir para as situações, por exemplo, através das

respostas que podem dar aos outros e das questões que lhes podem colocar;

2 – As crianças devem obedecer a certas regras sociais;

3 – Os sujeitos devem possuir uma série de alternativas: responder, mudar de tópico,

pedir esclarecimentos;

4 – A escolha das alternativas deve ser apropriada às situações;

5 – Os sujeitos devem estar motivados para responder;

6 – Os sujeitos devem ser capazes de se socorrer de estratégias de forma a manter as

interacções.

Digamos que “a intervenção na área dos problemas de comportamento social deslocou-

se de uma perspectiva da diminuição dos comportamentos considerados inadequados,

concentrando-se em ajudar os indivíduos a desenvolver ao máximo as suas capacidades

pessoais e relacionais, através da aquisição de novas competências sociais” (Matos et

al., in Nogueira, 2000, p. 24).

Revisão da Literatura

37

Deste modo o meio, as circunstâncias e a matriz biológica parecem ser determinantes no

processo de desenvolvimento do indivíduo e reflectem-se no seu produto ou modos de

expressar facetas desse produto (Malina, 1987).

O termo competência remete-nos para a capacidade de interacção, de adaptação ao meio

cultural do indivíduo. Tanto os aspectos genéticos como os do envolvimento são

constituintes do sistema de desenvolvimento.

Enquanto que os genes traçam o percurso do desenvolvimento, as oportunidades para a

experimentação são necessárias para que o desenvolvimento ocorra (Scarr, 1992; Scarr

e McCartney, 1983; Schull, 1990).

O desenvolvimento de competências motoras é tarefa fundamental da infância.

A actividade física parece estender ainda a sua influência aos domínios do auto-conceito

e da auto-estima. Por auto-conceito entende-se a percepção que cada um tem de si

próprio, enquanto que a auto-estima refere-se ao valor que cada um atribui face ao auto-

conceito.

A noção de que cada um tem de si próprio altera-se com a idade (Harter e Pike in

Gomes, 1997), como se alteram outro tipo de noções onde a experiência vai

promovendo novos estádios de conhecimento.

Revisão da Literatura

38

4.2. Independência De Mobilidade Na Criança

Como já referimos anteriormente, actualmente, e devido a factores como a insegurança

em espaços públicos, receio pela segurança física e emocional das crianças, estas

passaram a viver de uma forma mais “controlada” pelos adultos e a não poderem, como

acontecia naturalmente com as gerações passadas, usufruir de liberdade, fundamental no

desenvolvimento de cada um.

A autonomia, ou independência de mobilidade, é fundamental para o desenvolvimento

da representação do espaço na criança, para que lhe seja possível aprender a orientar-se

espacialmente num mundo que deveria conhecer bem (Arez, 2000).

Há mais de uma década atrás Wohlwill e Heft (1987, in Kittä, 2004a; 2004b) referiram

que a investigação se deveria debruçar nas formas que a criança utiliza para controlar o

seu envolvimento através da manipulação dos objectos e da exploração do ambiente.

Até então, a liberdade das crianças para explorar o ambiente e para criar uma relação

individual com o mesmo era tida como certa. Actualmente esta situação mudou (Gaster,

1992, in Kittä, 2004a; 2004b). As possibilidades para a criança se mover livremente no

espaço diminuíram em muitos países. As restrições para a mobilidade no espaço

aplicam-se principalmente a crianças de países desenvolvidos, enquanto que a liberdade

para brincar em crianças de países em desenvolvimento é condicionada por outros

factores, tais como a exploração do trabalho infantil (Punch, 200 in Kittä, 2004a;

2004b).

Na investigação da independência de mobilidade em crianças, existem pelo menos três

tipos de definições e operacionalizações: nos primeiros estudos, a mobilidade era

analisada através da medição da distribuição territorial das crianças. Distribuição

territorial significa a distância geográfica da casa da criança até outros locais onde a

mesma é autorizada a deslocar-se para brincar e socializar (Van Vliet, 1983 in Kittä,

2004a; 2004b). Mais tarde a independência de mobilidade é definida como uma

Revisão da Literatura

39

“autorização” para a criança se mover independentemente no ambiente. Os estudos que

usam o terceiro tipo de definição medem o nível de mobilidade actual da criança num

certo período de tempo através por exemplo de diários (Kittä, 1997, Tillberg, 2001 in

Kittä, 2004a; 2004b; Arez, 2000).

O conceito de independência de mobilidade deverá ser entendido numa perspectiva

evolutiva, isto é, como a criança desenvolve ao longo do tempo uma representação mais

consistente do espaço físico (memória, percepção, identificação), bem como uma

liberdade progressiva de acção no espaço quotidiano (Neto, 1999; 2004; Malho e Neto,

2004). A independência de mobilidade é entendida como a capacidade de autonomia, ou

seja, a possibilidade de tomar decisões por si própria, de mobilidade face ao

envolvimento físico, das “possibilidades de acção” que a criança está capaz de realizar.

Esta possibilidade de ser e estar capaz de “se movimentar e deslocar” no espaço,

permite-lhe “pensar e agir” em função dessa experiência. Permite-lhe um Ser, um Eu

próprios (Malho e Neto, 2004).

Vários estudos (Hillman e Adams, 1992; Kittä, 1995; Heurlin-Norinder, 1996; Van Der

Spek, e Noylon, 1995; Vercesi, 1999; Arez e Neto, 1999 in Malho e Neto, 2004; Kittä,

2004) vêm defendendo a independência de mobilidade como um factor “crucial no

desenvolvimento da criança”. Um dos melhores indicadores para analisar a

independência de mobilidade na criança é tentar saber a maior distância percorrida por

ela sozinha e/ou com amigos da mesma idade, ou com idade próxima; analisar o trajecto

casa/escola/casa mais comummente feito pelas crianças; qual o meio de transporte

utilizado nesse percurso pois a distância é um dos factores mais limitantes nessa

independência; quem acompanha a criança nos seus percursos diários mais comuns;

quais os motivos referidos pela criança para a frequência ou não de locais públicos; na

realização ou não de visitas a colegas... (Malho e Neto, 2004).

A apreciação das rotinas de vida e independência de mobilidade de crianças dos meios

urbanos, permitem concluir que a inactividade física tem vindo a aumentar de forma

Revisão da Literatura

40

considerável nos últimos anos (Serrano, 2004; Serrano e Neto, 1997; Neto, 2001;

Bogin, 1999; Piéron, 1999; Arez e Neto, 1999; Pellegrini e Smith, 1998 in Neto, 2004;

Kittä, 2004a; 2004b). Estes estudos confirmam que o nível de independência de

mobilidade no espaço físico por parte das crianças nos percursos casa-escola,

conhecimento das características dos espaços próximos e percepção e memória dos

locais de jogo, tem vindo a diminuir largamente quando se considera “as culturas de

vida lúdica das crianças” nas grandes cidades. As actividades de exploração do espaço

físico são particularmente importantes no desenvolvimento de representações cognitivas

do envolvimento e essenciais para a organização de um sistema coordenado de

referências (Kittä, 1995). A ausência dessas experiências por parte das crianças, sem

capacidade de independência no seu envolvimento físico, poderá levantar a suspeição de

que muitas delas apresentam um repertório lúdico empobrecido, níveis preocupantes de

sedentarismo e uma problemática capacidade de adaptação a novas situações (Neto,

2004).

Nesta caminhada pela conquista da autonomia, Hohmann e Weikart (2004) relembram

que a acção, por si só, não é suficiente para a aprendizagem. Para compreenderem o seu

mundo imediato as crianças necessitam interagir de forma consciente e reflectida sobre

ele. Segundo os mesmos autores o “processo de aprendizagem é entendido como uma

inter-relação entre as acções do aprendiz, orientadas para um objectivo, e as realidades

ambientais que afectam essas acções” (2004, p. 22).

Segundo Kittä (in Arez, 2000) “o papel das actividades de exploração do envolvimento

é especialmente importante para as crianças até aos nove anos, no sentido da

organização de um sistema coordenado de referência” (p. 35). Van der Speck et al. (in

Arez, 2000) acrescentam que o meio envolvente deverá ser ele próprio fonte de

estimulação para a realização de diversos tipos de actividades e continuam explicando

que “se for permitido e possibilitado às crianças o acesso a uma grande variedade de

Revisão da Literatura

41

actividades e de experiências no seu envolvimento, elas serão encorajadas a

experimentá-lo, a investigar e a solucionar problemas” (p. 35).

Com o objectivo de descobrir de facto quais são as principais causas que conduzem a

esta alteração na dinâmica familiar e comunitária, e quais as suas reais consequências,

foram realizados em vários países, e por diferentes investigadores, trabalhos de

investigação científicos.

Como referência apresentamos de seguida uma breve descrição de alguns destes

trabalhos e consequentes resultados.

Em 1992 Hillman et al. (in Arez, 2000) publicaram um estudo longitudinal realizado em

cinco escolas de zonas diferentes de Inglaterra com crianças dos sete aos onze anos. Os

investigadores aplicaram questionários às crianças no ano de 1971 e repetiram o

procedimento em 1990, dezanove anos depois, nos mesmos estabelecimentos de ensino.

Após o tratamento dos dados, os autores concluíram que a idade é o factor mais

determinante para o número de restrições impostas às crianças no que se refere à

independência de mobilidade. Com o aumento da idade também aumenta a

independência, principalmente na autorização para atravessarem a rua sozinhos e fazer o

percurso de ida e volta casa-escola. Verificaram ainda que aproximadamente três

quartos das crianças mais novas eram acompanhadas à escola pelos pais, em oposição

com apenas um terço do grupo de onze anos. No entanto, mesmo no grupo de onze

anos, a maioria dos inquiridos não tinha autorização para viajar sozinho de autocarro.

“Apesar de a grande maioria possuir bicicleta própria, apenas uma em cada seis das

crianças de sete anos e uma em cada duas do grupo de onze anos está autorizada a

utilizá-la nas ruas principais” (Arez, 2000, p. 36).

A idade não parece ter grande influência no número de actividades realizadas durante os

fins-de-semana, assim como a proporção de actividades que realizam sem serem

acompanhados por adultos. Esta aumenta progressivamente desde mais de um terço para

Revisão da Literatura

42

o grupo mais novo até um pouco menos de dois terços para as crianças de onze anos.

Relativamente às diferenças entre os dois géneros, os autores encontraram algumas bem

evidentes, “nomeadamente quanto à independência de mobilidade, às atitudes dos pais e

aos tipos de viagens que os filhos podem realizar. As raparigas são menos autorizadas

que os rapazes a atravessar ruas, ir a actividades de lazer sozinhas, vir da escola, andar

de bicicleta nas ruas, andar de autocarro e sair depois de escurecer, contudo, parecem

não se importar tanto com as restrições como os rapazes” (Arez, 2000, p. 37).

Quando comparamos alguns dos resultados do estudo realizado em 1971 e novamente

em 1990, encontramos grandes discrepâncias como por exemplo, a percentagem de

crianças que podiam ir para a escola sozinhas, que em 1971 era de 80% e em 1991 era

de apenas 9%. Constataram ainda, entre outros aspectos, que a liberdade pessoal e a

liberdade de escolha que era permitida a uma criança de sete anos de idade de 1991, só é

permitida, após dezanove anos, a uma criança que tenha mais dois anos e meio, ou seja,

com cerca de nove anos e meio.

Em 1995, Kittä, uma Psicóloga Ambiental Finlandesa, desenvolveu um estudo no qual

comparou três comunidades com diferentes graus de urbanização: uma cidade, uma

pequena cidade no meio rural e uma pequena aldeia. A amostra do estudo foi

constituída por 78 crianças de oito anos, às quais foram aplicadas todos os quatro

instrumentos de avaliação: um questionário para as crianças, um questionário para os

pais, uma entrevista dirigida feita às crianças e o preenchimento de um diário de

actividades. “Um dos objectivos deste estudo era o de saber quais os efeitos do

urbanismo na liberdade das crianças. Curiosamente, os resultados demonstraram que

não existiam diferenças nas três comunidades quanto à proporção do número de

percursos que as crianças fazem sozinhas, acompanhadas por amigos e acompanhadas

por adultos” (Arez, 2000, p. 38). Quanto à liberdade das crianças para atravessarem a

rua sozinhas, irem brincar sozinhas fora de casa e fazerem o trajecto da escola a casa

Revisão da Literatura

43

também sozinhas, a percentagem é muito elevada nas três comunidades, 88 a 100% das

respostas.

À semelhança do estudo de Kittä (1995), em 2000 Ana Arez, Psicóloga Portuguesa,

desenvolveu um estudo no qual pretendia verificar, por um lado, se as características do

envolvimento físico (rural/urbano) influenciam as rotinas de vida das crianças

portuguesas, a sua independência de mobilidade e a percepção das possibilidades de

acção do envolvimento, e por outro lado, verificar se existem diferenças entre as

crianças dos dois géneros nas suas rotinas de vida, na independência de mobilidade e na

percepção das possibilidades de acção do envolvimento físico. Este trabalho de

investigação obteve como conclusões gerais as seguintes (Arez, 2000):

As crianças realizam a maioria dos trajectos diários acompanhadas por adultos;

O carro é meio de transporte mais utilizado para levar as crianças à escola e a

actividades extra-curriculares;

A competência ganha mais tarde pelas crianças foi a autorização para atravessarem

as ruas sozinhas e

Os principais factores limitadores da independência de mobilidade nas crianças

referidos pelos pais são o perigo do tráfego, seguido do receio de assaltos e molestações

por parte dos adultos.

Outros autores/investigadores como Heurlin-Norinder (1996) na Suécia, Van der Spek

et al. (1995) na Holanda, ou Hüttenmoser (1995) na Suiça (in Arez, 2000),

desenvolveram estudos semelhantes e, apesar dos resultados serem diferentes de país

para país, todos eles são unânimes nas suas conclusões: a independência de mobilidade

tem sofrido um grande decréscimo em todos os países analisados.

A principal causa encontrada por estes autores para justificar este fenómeno é a falta de

segurança crescente devido ao aumento do tráfego automóvel. Como segundo motivo

Revisão da Literatura

44

causador desta situação, os autores encontraram a falta de segurança nas ruas,

nomeadamente o perigo de molestações e assaltos.

Sabemos, no entanto, que o contacto directo, livre e espontâneo com o nosso meio

envolvente, é fundamental para um desenvolvimento equilibrado e saudável. A criança

que cresce nestas condições é mais autónoma e sã, é uma criança que domina bem o

meio no qual está inserida e que está mais apta para lidar com situações do dia-a-dia,

bem como os imprevistos devido à sua maior resiliência (capacidade de se reconstruir)

(Cyrulnik, 2001), a qual foi adquirindo através das suas experiências. Esta criança

também tem mais amigos por estar inserida num contexto onde é mais fácil estabelecer

um maior número de contactos sociais com outras crianças e adultos. A criança que

cresce e se desenvolve num ambiente com estas características (liberdade e

oportunidades de mobilidade e de realização de numerosas actividades informais)

desenvolve maiores potencialidades, aptidões motoras, criatividade e a socialização.

Baseando-se no conceito de “affordance”, Kittä (1995) pretendeu também saber quais as

actividades que as crianças sabiam possíveis de realizar no local onde habitavam, de

acordo com as vivências e as experiências que possuíam.

“Como era de supor o meio rural oferece um leque de escolhas muito mais alargado,

visto a quantidade e a qualidade dos espaços ser melhor, e se encontrar ao alcance de

todas as crianças (tudo está mais perto do que na cidade). Por outro lado, também se

conclui que, no meio rural, as crianças beneficiam de uma maior liberdade de

circulação, isto é, a independência de mobilidade é maior no meio rural (tanto na aldeia

como na pequena cidade) do que no meio urbano” (Arez, 2000, p. 39). É igualmente

previsível o facto de Kittä ter obtido, como resultado, no que diz respeito à liberdade

das crianças para circularem livremente nas imediações das suas residências, uma maior

incidência na aldeia, seguida da pequena cidade e em último lugar da cidade.

Revisão da Literatura

45

O conceito de affordance é genericamente definido como as oportunidades e perigos

físicos que o organismo percepciona enquanto se comporta num determinado contexto

(Gibson, 1979, 1986; Hefl, 1997 in Kittä, 2004a; 2004b). Ou seja, é a percepção das

possibilidades de acção no espaço físico. O conceito tem o potencial de poder ser

generalizado de modo a incluir oportunidades emocionais, sociais e culturais que o

indivíduo percepciona do ambiente. Enquanto abrange aspectos quer do ambiente quer

do indivíduo, está localizado na interface entre o contexto e a pessoa (Gibson, 1979 in

Kittä, 2004a; 2004b).

O ambiente tem que proporcionar algo que o indivíduo percepcione como oferecendo o

potencial para a actividade, mas a percepção emerge só quando as diferentes

características do sujeito, tais como as suas dimensões e características físicas,

necessidades sociais e intenções pessoais se equiparam às características do ambiente.

As affordances (doravante designadas de possibilidades de acção) podem ser vistas em

termos de estágios ou níveis variáveis. O primeiro nível comporta as potenciais

possibilidades de acção do ambiente que são especificadas em relação a um sujeito e

estão em princípio disponíveis para serem percepcionadas. A quantidade de potenciais

possibilidades de acção do ambiente é infinita. Em contraste, as possibilidades de acção

actualizadas são reveladas através das acções do sujeito (Kittä, 2004a; 2004b). Estas

podem ser diferenciadas em possibilidades de acção aperfeiçoadas (possibilidades de

acção activamente actualizadas) e possibilidades de acção percepcionadas

(possibilidades de acção passivamente actualizadas). No processo da actualização, as

possibilidades de acção são primeiramente percepcionadas e eventualmente usadas ou

aperfeiçoadas numa fase posterior (Kittä, 2003 in Kittä, 2004a; 2004b).

Clark e Uzzell (2002) desenvolveram um estudo para adolescentes com o objectivo de

construir escalas de valores para medir as possibilidades de acção da casa, do bairro, da

escola e do centro juvenil da cidade. As possibilidades de acção avaliadas relacionam-se

com duas necessidades do desenvolvimento na adolescência: a necessidade de locais

Revisão da Literatura

46

para interacção social e locais para refúgio. Participaram neste estudo 539 adolescentes

com idades compreendidas entre os 11 e os 16 anos que classificaram a quantidade de

locais disponíveis para 34 possibilidades de acção diferentes em cada um dos

envolvimentos. Quer o bairro, como a escola e o centro juvenil apoiam a interacção

social e comportamentos de refúgio. O envolvimento casa não apoiou os

comportamentos de interacção social; em vez disso, proporcionou possibilidades de

acção para dois tipos diferentes de refúgio – refúgio envolvendo amigos próximos e

refúgio com o objectivo de procurar segurança. As diferenças de género e de idade, bem

como a frequência de utilização dos envolvimentos foram também exploradas neste

estudo. De acordo com os autores, a teoria de possibilidades de acção de Gibson (1986;

1979) é uma metodologia útil para examinar a significância funcional dos

envolvimentos para grupos de utilizadores diferentes.

Kittä (2002), também com base no modelo de Gibson e na taxonomia de possibilidades

de acção de Helf (1988), desenvolveu um estudo sobre as possibilidades de acção dos

envolvimentos de crianças nos contextos de cidades, pequenas cidades, subúrbios e

vilas rurais na Finlândia e Bielo-Rússia e também uma área neste último país,

contaminada pela radioactividade. O estudo teve como base entrevistas individuais a

crianças Finlandesas (n=98) e Bielo-Rússias (n=143) com idades compreendidas entre

os 8 e os 9 anos de idade. Foram encontradas diferenças significativas entre as

comunidades e entre os países relativamente à disponibilidade, nível (percepcionada,

usada e aperfeiçoada) das possibilidades de acção e na distribuição das mesmas pelas

categorias da taxonomia. Também houve diferenças significativas entre as diferentes

comunidades relativamente à localização das possibilidades de acção: em casa, no

quintal/jardim, nas proximidades ou num local mais distante.

Kittä (2004a; 2005b) construiu um modelo hipotético (modelo Bullerby) onde o grau de

independência de mobilidade e o número de possibilidades de acção actualizadas

Revisão da Literatura

47

covariam em quatro tipos diferentes de envolvimentos para crianças: Bullerby (o

envolvimento ideal); Wasteland, Cell e Glasshouse. O modelo foi aplicado com base

nos dados da investigação de oito bairros diferentes com diferentes níveis urbanísticos,

na Finlândia e Bielo-Rússia. A amostra foi composta por 223 crianças com 8 e 9 anos

de idade, que foram estudadas através de entrevistas individuais e questionários. Os

resultados indicam que os quatro tipos de envolvimentos aparecem nos dados da

investigação. Cada bairro possuía uma combinação única de possibilidades de acção e

independência de mobilidade em termos do modelo. O modelo Bullerby abunda nas

comunidades Finlandesas; os modelos Cell, Wasteland e Glasshouse são os mais

comuns nos dados da investigação da Bielo-Rússia. De um modo geral, a proporção de

modelos Bullerby diminui na medida em que o modelo Glasshouse aumenta.

O presente trabalho utilizou uma metodologia de investigação idêntica à de Kittä (1995)

e de Arez (2000) e, no nosso caso, pretendemos, como supra mencionado, verificar:

Se existe uma diferenciação no desenvolvimento da independência de mobilidade, no

sentido da autonomia da mobilidade do corpo no espaço de vida de crianças portuguesas

de contextos sociais diferenciados no meio urbano;

Se existem diferenças entre as crianças dos dois géneros nas suas rotinas de vida, na

autonomia de mobilidade e na percepção das possibilidades de acção do envolvimento

físico;

Se existem diferenças entre as crianças dos dois contextos sociais quanto às

competências sociais.

Revisão da Literatura

48

5. Feminino E Masculino: Diferenças E Semelhanças

O termo “sexo” é utilizado para a classificação baseada na biologia humana, dependente

dos cromossomas que cada indivíduo possui com expressão nos órgãos genitais

(Gilbert, Hallet e Elldrige, 1994), nos órgãos de reprodução e nas hormonas (Reskin e

Padavic, 1994). O género, ao contrário do sexo, refere-se a uma classificação que as

sociedades construíram para valorizar as diferenças entre homens e mulheres já que

permite definir os significados sociais e culturais que são associados a cada categoria

anatómica sexual (Denzin, 1995). O género refere-se, pois, a todas a “características

psicológicas, sociais e culturais que são fortemente associadas com as categorias

biológicas de homem e mulher” (Deux, in Nogueira, 2001, p. 9).

Apesar da existência de grande número de trabalhos que afirmam a inexistência de

diferenças entre os sexos, são muitas as pessoas que continuam a acreditar em distintos

posicionamentos de homens e mulheres face à vida, atitudes relacionadas com o

trabalho ou com a família, motivações, comportamentos e traços de personalidade.

Alguns aspectos, como a independência, a agressividade e a dominância continuam a

ser associados a homens, enquanto outros, como a sensibilidade, a emocionalidade e a

gentileza são associados às mulheres (Powell, 1993).

Por este facto são muito responsáveis os cientistas sociais, por terem contribuído para

que as pessoas acreditassem nas diferenças sexuais (Crawford, 1995) ao criarem e

confirmarem esta crença, quer através da pesquisa, quer através do desenvolvimento de

teorias que se baseiam nas diferenças e que desvalorizando as semelhanças (West e

Zimmerman, 1991). Nesta perspectiva considera-se que as diferenças são concebidas

como “situando-se” dentro dos indivíduos (Nogueira, 2001).

Revisão da Literatura

49

Vários autores insistem e argumentam sobre a necessidade de dar continuidade à

pesquisa sobre diferenças sexuais. Entre eles encontramos autoras como Hyde, Eagly e

Halpern, que no entanto discordam entre si quanto à importância, por exemplo, dos

factores biológicos na explicação das diferenças. Kitzinger, Hare-Mustin e Marecek,

Hollway e Crawford “não acreditam que as diferenças sexuais tenham qualquer tipo de

‘existência, e por isso não devem sequer ser equacionadas” (in Nogueira, 2001, p. 193).

Para Eagly (in Nogueira, 2001, p. 194) “o mais importante na pesquisa sobre as

diferenças sexuais não é situá-las num continuum de magnitude, mas sim a sua

interpretação, isto é, a interpretação que todos os investigadores fornecem para as

diferenças e para as semelhanças”. Pelo facto de serem estas interpretações dos

cientistas que se alastram ao público em geral, são elas que vão afectar o

comportamento das pessoas no seu dia-a-dia e também na vida política pública

(Nogueira, 2001).

Em todas as sociedades nos parece haver um reconhecimento da existência de sexos

diferentes, motivo que conduz ao agrupamento das pessoas pelo seu sexo devido a

diferentes razões (Reskin e Padavic in Joaquim, 1994), “sendo que cada ser humano

quando nasce, na cultura ocidental pertence imediatamente a uma categoria sexual

específica” (Denzin, in Joaquim, 1994, p. 79).

E em todas as sociedades o feminino é desvalorizado. Já para Platão e Aristóteles a

mulher, era vista, em relação ao homem, como “um desvio, como uma relação

imperfeita” (Joaquim, 1994, p. 79).

No pensamento grego (condicionador da cultura ocidental) o homem era o criador da

ordem e da lei, e a mulher estava associada ao desejo e à desordem. Ela era um ser

inferior pela sua natureza. Atribuíam-se à mulher qualidades negativas que a

impossibilitavam de participar activamente de forma igual, na sociedade onde vivia

Revisão da Literatura

50

(Foucault, 1979). O estatuto de objecto que era conferido à mulher fez-se sentir a nível

da filosofia, da medicina ou da ciência (Farge e Davis, in Nogueira, 2001).

“No século XVIII, o iluminismo apresenta-se como um discurso da filosofia que

aparentemente acaba com as diferenças de raça e sexo, mas de forma algo perversa

acaba por justificar a inferioridade da mulher, já que o ‘discurso Iluminista é um

discurso do homem, quer dizer do género humano (...) racional: as distinções de raça e

de sexo esbateram-se, ainda que tenham conservado algumas especificidades” (Crampe-

Casbanet, in Nogueira, 2001. p. 172). A questão é se este discurso Iluminista é dirigido

a todo os homens, então ele é universal, o que nos remete para uma outra questão, a de

sabermos quem tem direito ao universal (Nogueira, 2001).

A partir da segunda metade de século XIX, a divisão do trabalho por sexo entre

emprego e família vai originar inúmeras teorias sobre a natureza dos homens e das

mulheres, cujo objectivo é o de explicar e justificar a posição social dos dois sexos por

disposições naturais (Poeschl, Múrias e Ribeiro, 2003).

A pesquisa acerca das diferenças sexuais está historicamente associada ao desejo

masculino de compreensão da natureza das mulheres (Hare-Mustin e Marecek, 1994) e

está imbuída de conflito e mistificação desde os seus tempos mais remotos (Hare-

Mustin e Marecek, 1990).

Bem (in Nogueira, 2001) afirma que desde Aristóteles até à actualidade, a distinção

entre os sexos afirma-se na superioridade masculina e no seu posicionamento como

grupo de referência.

“A relação entre masculino e feminino é desigual. O género da pessoa marca

ascendência ou submissão social, e é um capital de prestígio. Mas como assenta num

Revisão da Literatura

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processo de naturalização, a desigualdade não é vista como processo social mas como

realidade ontológica” (Almeida, Amâncio, Perez e Wall, 1994, p. 17).

Vamos tentar, com este trabalho, compreender qual o papel que estas afirmações

desempenham, na questão da mobilidade e da autonomia das crianças na actualidade.