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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 45 Parte Geral do Novo Código Civil

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 45

muito tempo parado no Senado, mas emseguida  houve  um  trabalho  realmenteinsano por  parte  do  relator-geral  da  co-missão,  que    o  examinou  -  o  SenadorJosaphat Marinho  e,  finalmente  com  oprojeto de volta à Câmara,  também gra-ças  ao  esforço  do  Deputado  RicardoFiúza,  foi  possível  concluir  essa  elabo-ração legislativa para termos o novo Có-digo Civil,  que muitas  vezes  é  conside-rado  absoleto  por  não  ter  tratado  dequestões,  que  ainda  são  altamente  po-lêmicas, a respeito das quais, obviamen-te, há necessidade, primeiro, de uma le-gislação  extravagante  de  experimenta-ção. Chegou-se até a  falar que ele deve-ria  considerar  assuntos  como  aclonagem,  a  fertilidade  in vitro,  a  en-genharia  genética,  e  coisas  dessa  natu-reza,  quando  é  certo  que  tudo  isso  de-manda  uma  série  de  reflexões  e  de  es-forços. Mesmo nos  países  em que  já  le-gislaram  sobre  esses  temas,  as  legisla-ções  estão  em  verdadeira  fase  experi-mental,  tendo  em  vista  as  circunstânci-as  de  que  a  própria  ciência  tem  sériasdúvidas  a  respeito  desses  problemas.

O Código Civil não foi feito para ser-vir  de  lei  de  experimentação. O CódigoCivil  não  é,  evidentemente,  uma  lei  pe-rene, mas uma lei que deve ter uma per-manência bem maior, tendo em vista quese  trata  de  um  sistema.  Falo  hoje  issosem  qualquer parti pri,  porque  apesarda apresentação do meu dileto amigo De-sembargador Manes, eu há muitos anospouco estudo direito civil,  tendo em vis-ta  a  circunstância  de  que  o  SupremoTribunal  Federal  é  uma Corte  eminen-temente de direito público, e com �aque-la�  sobrecarga de  trabalho. No  ano pas-sado  foram distribuídos  quase  100.000processos para 10 ministros,  o  que,  ob-

Senhoras  e  Senhores,  é  com mui-ta  satisfação  que  venho,  nesta manhã,fazer  uma  explanação  geral  a  respeitoda Parte  Geral do novo Código Civil.

Depois de mais de 25 anos,  o pro-jeto do Novo Código Civil, que foi para oCongresso em 1975, teve afinal sua san-ção,  transformando-se  no  Novo  CódigoCivil, que, de acordo com disposição nelecontida, deverá ter o prazo vacatio legis

de um ano.É  preciso  desde  logo  salientar  que

esta  circunstância  de  o  projeto  ter  tra-mitado pelo Congresso Nacional por poucomais de 25 anos, não é de espantar nin-guém.  Basta  atentarem  os  senhorespara  que,  por  exemplo,    o  Código CivilPortuguês de 1967 demorou 22 anos en-tre  a  sua  elaboração  inicial  e  a  sançãofinal.  O  próprio  Código  Civil  Alemão  -BGB,    o  primeiro  projeto  de  1874,  so-mente  foi  aprovado  em  1896,  para  en-trar  em  vigor  em  1900.  É  certo  que  oscódigos  que  são  feitos  e  entram  em  vi-gor  rapidamente  são  aqueles  dos  perío-dos  de  ditadura.  Assim,  por  exemplo,  oCódigo  Francês  de  1804,  se  não  fora  apessoa  de Napoleão,  que  chegou  inclu-sive  a  presidir  inúmeras  sessões  com acomissão  que  elaborara  o  anteprojeto,esse não haveria  saído. O Código  Italia-no de 1942 também saiu, graças à deci-são política  do  então dirigente  da  Itália,Mussolini.

Por  isso,  quando  se  fala  que  estenosso,  novo Código  já  nasceu  obsoleto,isso  é,  evidentemente,  muito  relativo,tendo em vista a circunstância de que oprojeto  teve  uma  tramitação  longa  pelaCâmara  dos Deputados,  depois  passou

Parte Geral do Novo Código Civil

MMMMMOREIRAOREIRAOREIRAOREIRAOREIRA A A A A ALVESLVESLVESLVESLVES

Ministro do Supremo Tribunal Federal e membro da Comissão do Projeto do Novo Código Civil

Palestra  proferida  no  Seminário  realizado  em15.02.2002.

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viamente, nos torna muito difícil um es-tudo aprofundado de direito civil. Quan-do digo que o Código Civil é sem dúvidaalguma  �O Código�,  é  porque,  na  reali-dade,  ele  é  uma  legislação  altamentecomplexa,  e  mais:  é  uma  verdadeiraconstituição  do  homem  comum,  tendoem  vista  que  disciplina  as  nossas  rela-ções jurídicas antes do nosso nascimento�  com  relação  ao  nascituro  �  e  até  de-pois  da  nossa morte.  Conseqüentemen-te,  diz  de  perto  com  toda  a  vida  do  serhumano.

Quando a comissão elaboradora doanteprojeto,  supervisionada  pelo  Profes-sor Miguel Reale, se reuniu pela primei-ra  vez  em  1969,  partiu  do  princípio  deque  era  orientação  do  governo  de  então(e a meu ver absolutamente correta), quese redigisse não uma reforma parcial doCódigo Civil, mas se fizesse uma revisãoapenas  com as modificações  que  se  afi-gurassem necessárias. Daí  a  razão  pelaqual  os  senhores  verificam que  foi  con-servado  tudo  aquilo  que merecia  ser,tendo  em  vista  a  circunstância  de  quemesmo  a  evolução  do mundo modernonão havia se alterado com relação à suadisciplina.

Na  Parte Geral,  os  senhores  verifi-cam que há  vários  dispositivos  que  sãocópia  ipsis litteris do Código Civil,  atépor uma circunstância: é sabido que umadas  grandes  tragédias  de  qualquer  le-gislação nova é justamente o fato de que,se  alterar  uma  vírgula,  jorram dezenas,centenas, milhares  de    páginas  de  in-térpretes para se saber qual  foi a  inten-ção  oculta daquela modificação,  quandomuitas vezes trata-se de um erro de da-tilografia.

De  certo  que,  por  isso  buscou-seconservar  tudo  aquilo  que merecesseser conservado, apenas modificar aqui-lo  que  devesse  ser modificado.  Enfim,inovar não apenas por inovar, mas ape-nas  quando  necessário  fosse.  O  novoCódigo  Civil  mantém  em  suas  linhasestruturais  o  sistema  do  Código  queainda continua em vigor,  a  ser  revoga-do.  Farei  alusão  a  ele  como  o  Códigode  1916.  O  sistema  é  o  germânico,

embora  na  Parte  Especial,  sabem  ossenhores,  Clóvis  Beviláqua  não  seguiua ordem do BGB  (Código Civil Alemão)que começa com as obrigações, em se-guida  passa  para  as  coisas,  família  esucessões.

Clóvis  Beviláqua,  filosoficamente,começou  pela  família,  porque  entendeuque  as  relações  do homem com a  famí-lia  deveriam  ser  colocadas  em primeiroplano. Em seguida, passou ao direito dascoisas,  ou  seja,  da  relação material  en-tre pessoa e coisa  (ou bem) e em tercei-ro  lugar,  colocou  no Código  de  1916  adisciplina  do  direito  das  obrigações,  asrelações  jurídicas  entre  pessoas,  e,  fi-nalmente,  o  direito  das  sucessões  comoparte  final  da  Parte Especial,  precedidaela  de  uma  Parte Geral  em  que  se  tra-tou,  em  três  Livros,  das  Pessoas,  dasCoisas  e  dos Fatos  Jurídicos.

Em  linhas  gerais,  o  que  sucedecom  o  novo  Código  é  isso: manteve-seessa  sistemática  e  apenas  com  rela-ção  à  Parte  Especial  se  afastou  delapara seguir o BGB. Obrigações - com odireito  das  empresas,  depois  Coisas,depois Família e finalmente Sucessões.

Na Parte Geral,  a  que nos  interes-sa  hoje,  verifica-se  que,  em  vez  de  seconstituir um Livro só, manteve-se o sis-tema do Código Civil, o de três Livros. Oprimeiro  deles,  o  das  Pessoas;  o  segun-do, o dos Bens (não se fala mais em coi-sas ou bens,  se  fala apenas  em bens)  e,finalmente, o  terceiro Livro, sobre os Fa-tos  Jurídicos  onde  se  trata  primordial-mente da  figura do negócio  jurídico.

Com  relação  às  inovações  que  seapresentam na Parte Geral,  e  quero  sa-lientar,  uma  vez mais,  que  continuou aexistir, não pelo fato de haver elaboradoo  anteprojeto  da  Parte Geral  do CódigoCivil.

Estou  convencido  de  que  fui  esco-lhido  pelo  Professor Miguel  Reale  paraintegrar a Comissão, em virtude de umaAula Magna  em  que  examinei  o CódigoCivil  Português,  principalmente  no  to-cante  à  sua  Parte  Geral  -  eu  era,  naépoca,   o mais  jovem catedrático da Fa-culdade  de Direito  de  São  Paulo.  Sali-

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entei  justamente  que  considerava  queembora a maioria dos Códigos não tenhaa Parte Geral  (até  por  influência  do Có-digo Civil  francês),  no  entanto,  esta par-te  geral  é  absolutamente  indispensávelpara um sistema que siga aquela  fórmu-la  realmente  artística    e  científica  dadapor Lafayette, no  sentido de que o  siste-ma deve  partir  justamente  de  princípiosque  vão  esclarecer  os  princípios  que  seseguem, numa ordem de sucessão da fa-cilidade para  a  dificuldade.

Com  relação  à  Parte Geral,  o  quese observa é que nela se trata  dos prin-cípios  gerais,  que  depois  são  aplicadosna  Parte  Especial.  Tanto  assim,  que  ossenhores verificam, por exemplo, que emnegócio  jurídico  -  ao  contrário  do  queocorre  com  a maioria  dos  códigos  queexaminam  os  princípios  relativos  a  elena  teoria  do  contrato  -  depois  é  precisoaplicar  essa  teoria  por  analogia  aos  de-mais  negócios  jurídicos  que  não  se  en-contrem no direito das Obrigações, e por-tanto naquele  fragmento da Parte Espe-cial. Mas  vamos  fazer  uma  análise,  evi-dentemente  perfunctória,  sobre  as  prin-cipais  inovações  contidas  nessa  ParteGeral do novo Código Civil.

O Livro I continua a tratar das pes-soas  como  sujeitos  de  direito.  Aí  nota-mos  que  há  algumas  observações  quemerecem  destaque. Quero  dizer  de  iní-cio que a substituição do termo �ser hu-mano� por �pessoa� não foi de minha la-vra, até porque quanto ao artigo 2° quan-do  diz  �a  personalidade  civil  da  pessoacomeça  do  nascimento  com  vida...�,  eupergunto:  e  a  da  pessoa  jurídica?  Seráque ela também nasce com vida? O pro-blema aqui  foi  que  o  vocábulo  �homem�não  podia  ser  utilizado,  porque  seriamachismo;  �ser  humano�  também  nãopodia,  porque  de  alguma  forma  se  vin-culava  a  �homem�  e  �humano�  vindo dehomo,  e,  conseqüentemente, não   podiaser  nem  homem,  nem  ser  humano,  etambém  quanto  a  dizer  �homem  e mu-lher�  acharam que não  ficaria  bem. As-sim, decidiram usar o vocábulo �pessoa�.

Nesse  Livro  concernente  às  Pesso-as, vamos destacar alguns aspectos. Em

primeiro  lugar,  o  problema da  incapaci-dade  de  fato.

O  artigo  3°  salienta  que:

“São absolutamente incapazes de

exercer pessoalmente os atos da

vida civil:

I – os menores de dezesseis anos”.

Mais  adiante  veremos  que  a modi-ficação que se fez foi em relação à maio-ridade  e  não  ao  problema  do  absoluta-mente  incapaz, menor  de  16  anos.

II – os que, por enfermidade ou de-

ficiência mental, não tiverem o ne-

cessário discernimento para a prá-

tica desses atos;

III – os que, mesmo por causa tran-

sitória, não puderem exprimir sua

vontade.

Afastou-se,  no  inciso  II,  a  expres-são �loucos de todo o gênero�, assim comose afastou a figura única do surdo-mudosem poder  exprimir  a  sua  vontade  e  sefoi  além:    admitiu-se  inclusive  em casosde paralisia  (que na maioria das vezes épermanente, mas  pode  ser  transitória),e  por  isso  se  determinou no  inciso  III  -�mesmo por  causa  transitória�. Essa  ex-pressão é para abarcar aqueles casos emque a pessoa durante um certo  lapso detempo não pode exprimir, de forma algu-ma, a sua vontade.

Lembro-me de um caso dramáticode  um  colega  de  faculdade,  ProfessorOscar  Barreto,  que  sofreu  uma  parali-sia  total  e  apenas  se  comunicava  peloabaixar  e  levantar  das  pálpebras, ma-neira pela qual dava sinais de estar lú-cido, porém impossibilitado de exprimira  sua  vontade.  Sua  esposa  combinoucom  ele    que  uma  piscada  significariasim,  e  duas,  não.  Em  casos  dessa  na-tureza,  portanto,  temos  uma  hipótesede  absolutamente  incapaz,  evidente-mente,  enquanto  permanecer  a  causatransitória.

Por outro lado, com relação ao arti-go 4° - e aí vem a disciplina dos relativa-

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mente  incapazes  -  temos  os maiores  dedezesseis  e  os menores de dezoito anos.Eu sempre  fui  voto vencido com relaçãoao  problema  da  idade.  Considero  que,quanto mais  se  complicam  as  relaçõesjurídicas  no mundo,  mais  se  tende  abaixar  a  idade  para  efeito  de  capacida-de.  Partindo-se  do  falso  pressuposto  deque manter-se  uma  idade,  como  era  ocaso da idade de vinte e um anos, signi-ficaria  uma  capitis diminutio.  Entãosurgem  aqueles  exemplos  clássicos:  seé  possível  ir  para  a  guerra, morrer  naguerra,  dirigir  automóvel  aos  dezoitoanos,  por  que  não  pode  ter  capacidadede  fato para regular  toda sua vida civil?Eu  sempre  fui  defensor  de  que  fossemmantidos  os  vinte  e um anos,  o  que nacomissão  prevaleceu,  mas  o  relatorJosaphat Marinho,  nas  inúmeras  vezesem que nos  encontramos  em meu  gabi-nete,  convenceu-me  de  que  não  haviapossibilidade de que fossem mantidos osvinte  e  um  anos,  porque  a  tendênciamundial era no sentido de se baixar essaidade para os dezoito anos.

Lembro-me até de um  fato  curioso,quando,  fazendo uma explanação na Câ-mara  dos Deputados,  a Deputada  RitaCamata perguntou-me: - �o que o senhorme diz dos dezoito anos?� Eu lhe respon-di que fui contra, e ela disse: - �Graças aDeus  encontrei  alguém  que  pensassecomo eu�. Eu lhe respondi: - �E veja quea  senhora não  é  como  eu,  que  sou  con-servador,  a  senhora  é uma  liberal!�

Continuando  com os  incisos:

II – os ébrios habituais, os viciados

em tóxicos, e os que, por deficiên-

cia mental, tenham o discernimento

reduzido;

IV – os excepcionais, sem desenvol-

vimento mental completo;Manteve-se a  figura dos pródigos  e

se  retirou,  na  parte  das  incapacidadesabsolutas, a indicação dos ausentes, ten-do em vista a circunstância de que o au-sente  não  é  propriamente  incapaz,  tan-to  que,  no  lugar  onde  ele  estiver  pre-sente,  ele  continua  capaz.  Assim,  tecni-

camente,  não  tinha  sentido mantê-locomo  absolutamente  incapaz.

Por  outro  lado,  o  parágrafo  únicodetermina  que  a  capacidade  dossilvícolas  -  também  se  achou  que  essaexpressão  de  certa  forma  eradiscriminatória  com  relação  aos  índios-  será  regulada  por  legislação  especial.

No  artigo  7°,  disciplinou-se  (o  quenão  ocorre  no  Código  Civil  de  1916)  amorte presumida sem ser o caso de au-sência.  Ou  seja:  quando  for  extrema-mente provável a morte de quem estavaem perigo de  vida  e  se alguém, desapa-recido  em  campanha  ou  feito  prisionei-ro, não for encontrado até dois anos apóso  término  da  guerra.

Mais  adiante  há  todo um  capítulosobre os direitos da personalidade, a res-peito  dos  quais  o  nosso Código Civil  de1916 nada  abordou.  Aliás,  isso  não  foipor culpa de Clóvis Beviláqua. Saibam ossenhores  que  essa  categoria  dos  direi-tos  da  personalidade,  até  o  final  do  sé-culo passado, era uma categoria bastan-te  contestada por  vários  autores,  consi-derando  que  não  era  possível  que,  aomesmo tempo, alguém fosse sujeito e ob-jeto de direito. Só mais adiante é que sefirmou  a  distinção  entre  a  personalida-de global e aspectos da personalidade, e,conseqüentemente,  esses  direitos  depersonalidade têm como objeto não a per-sonalidade globalmente considerada, masapenas  aspectos  da personalidade.

E  procurou-se  dar  uma  disciplinaque  segue  de  perto  a  do  projeto  revistode  1965,  do  Professor Orlando Gomes.Vejam  os  senhores  que  também  nãohouve  nenhuma  vaidade  no  sentido  dese  dizer:  �Não!  Aquilo  que  também nosprojetos  anteriores  se  apresentava  (oupelo menos  na  época  foi  redigido  comomerecedor  de  acolhimento),  foi  acolhi-do.� É certo que há um artigo, o de nú-mero 21, que não vem do projeto do Pro-fessor  Orlando Gomes,  nos  outros,  hápequenas modificações  relativas  ao pro-blema da inviolabilidade da vida privadada  pessoa natural.

Em seguida, com relação à ausên-cia,  segue-se,  em  linhas  gerais,  o  que

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está  no  Código  Civil.  Destaco  a  maisimportante  referência,  por  ser  inovado-ra,  e parece-me que atende a um crité-rio de  justiça - a do parágrafo único doartigo  33  �se  o  ausente  aparecer,  e  fi-car provado que a ausência foi voluntá-ria  e  injustificada,  perderá  ele,  em  fa-vor do sucessor, sua parte nos  frutos erendimentos.�

Segue-se  o  tratamento  das  pesso-as  jurídicas.

Com  relação  a  estas, manteve-seno  Código  Civil  a  disciplina  genéricadas  pessoas  jurídicas  de  direito  públi-co.  Isso em decorrência da circunstân-cia  de  que,  embora  não  fosse  eviden-temente  uma matéria  de  direito  civil,entendeu-se  que    seria  convenienteesta manutenção,  dado  à  circunstân-cia  de  não  termos  um  código  relativoao  direito  público,  no  qual  essa maté-ria  fosse  inserida.  O  que,  aliás,  tam-bém  ocorre  com  relação  aos  bens  pú-blicos,  que  também  foram mantidos  àsemelhança  do  que  ocorre  no  Códigode 1916.

Mas  os  senhores  verificam  que  háalgumas modificações. Assim, por exem-plo,  no  artigo  41,  inciso  IV,  alude-se  àsautarquias,  e  no  inciso  V:  �as  demaisentidades  de  direito  público  criadas  porlei.�  Este  é  um princípio  que  se  encon-tra no Código mexicano e que tem a van-tagem  de,  se  por  ventura,  a  atividadecriadora  dos  publicistas  fizer  surgir  umnovo  tipo,  já se enquadra, genericamen-te,  nesse  inciso.

Por  outro  lado no artigo 44,  os  se-nhores observam que não se alude maisàquela  literal  sinonímia  entre  socieda-

de e associação. O Código Civil  fala emassociações  ou  sociedades  quando,  naverdade, são pessoas  jurídicas distintas,tanto  é  que  se  colocam  as  associações,as  sociedades  e  as  fundações.

No parágrafo único do  referido  ar-tigo, há um dispositivo que decorre jus-tamente  do  tratamento  que  se  deu  àsassociações  (o  que  não  se  encontra  noCódigo Civil), estabelecendo que ao  invésde  os  princípios  das  sociedades  se  apli-carem por  analogia  às  associações,  fez-

se o  contrário:  os princípios das associa-ções  é que,  subsidiariamente,  se aplicamàs  sociedades,  que  são  objeto do Livro  IIda  Parte  Especial  deste  Código  que  dizrespeito ao Direito das Empresas, que eraa antiga atividade negocial do projeto en-caminhado  ao Congresso.

Em um capítulo inteiro, Capítulo II,os  senhores  encontram um  tratamentopormenorizado  das  associações,  inclusi-ve  com  a  admissão  (admissão  essa  delonga data na doutrina e na jurisprudên-cia)  da  despersonalização  da  pessoa  ju-rídica  para  o  efeito  de  que  o  associadonão  se  ocultasse  atrás  da  pessoa  jurídi-ca.

Com  relação  às  fundações,  há  umpreceito  de  importância  no  parágrafoúnico do artigo 62: �a fundação somentepoderá  constituir-se  para  fins  religiosos,morais, culturais ou de assistência.� Nãose  admitem mais  as  fundações  com  fi-nalidade  de  natureza  puramente  econô-mica.  Na  disciplina  das  fundações,  háalgumas modificações  que  o  tempo,  evi-dentemente,  não me  permite  fazer  umaanálise maior, daí a razão pela qual alu-do  a  essa  regra,  que  é,  sem  dúvida,  amais  importante  das  inovações.

Segue-se o título concernente a do-micílios,  onde há  duas modificações  im-portantes.  A  primeira  delas:  deixou  dehaver aquela duplicidade de conceitos dedomicílio, ou seja,  residência com  inten-ção  de  permanência  e  centro  habitualde  atividades. Não há mais  que  se  falarnessa  duplicidade  de  domicílio  para  osmesmos  efeitos,  tanto  que  se  consideraque  o  domicílio  da  pessoa  natural  é  olugar  onde  ela  estabelece  sua  residên-cia  com  ânimo  definitivo.  No  entanto,mais  adiante, manteve-se,  no  artigo  72,como uma parcela daquele centro de ati-vidades  habituais  e  se  estabelece  umverdadeiro domicílio profissional para asrelações  jurídicas  decorrentes  da  profis-são  da  pessoa. Dizendo  o  artigo  72:  �Étambém  domicílio  da  pessoa  natural,quanto  às  relações  concernentes  à  pro-fissão, o lugar onde esta é exercida.� Aquié quase que um  �pandam�    com  relaçãoàs  pessoas  jurídicas no  que  diz  respeito

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às  agências  ou  filiais,  com  relação,  evi-dentemente mais  restrita,  apenas às  re-lações  profissionais. No mais,  conserva-ram-se os princípios do Código de 1916.

No  livro  II  -  Dos  Bens,  partiu-separa a adoção apenas da expressão bens,sendo  certo  que  esse  conceito  de  bensnão  se  identifica  com  o  de  coisas.  En-tão,  preferiu-se  ficar  apenas  no  concei-to  de  bens.  Por  outro  lado,  nesse  Livroconcernente  aos  bens,  os  senhores  ob-servam que, em virtude da admissão ex-pressa  à  figura  da  pertença,  retiraram-se  da  enumeração  dos  bens  imóveis  osbens  imóveis  por  destinação.

É  preciso  salientar  o  seguinte:  ve-jam os  senhores  que  o Código Civil  nãoé código para se  inovar por  inovar, nempara  se  fazer  doutrina.  É  justamentepara  retratar  aquilo  que  já  estáestratificado na jurisprudência e na dou-trina,  salvo,  evidentemente,  se  houveralgum motivo de grande  relevância parase  apresentar  uma  inovação. Com  rela-ção  a  conceitos  técnicos,  evidentemen-te, isso aqui não é livro de doutrina parase  defenderem  teses.  Daí  a  razão  pelaqual  certas  inovações  são no  sentido deingressar  termos  agora  em  lei  expres-sa,  o  que,  obviamente,  facilita  o  traba-lho não só dos advogados, do MinistérioPúblico,  como  também  dos  própriosjuízes,  porque não há mais necessidadede se invocar doutrina nem jurisprudên-cia, basta  invocar  o  texto  legal.

Com  relação  aos bens divisíveis,  oCódigo  de  1916  tinha  uma  imperfeiçãopor  falta,  por  omissão.  Ele  dizia:  �Coi-sas divisíveis são as que se podem par-tir em porções reais e distintas, forman-do cada qual um todo perfeito.� É aque-la  hipótese  de  um  indivíduo  que  deixa,após a sua morte, um brilhante de, porexemplo,  500  quilates,  único  no mun-do,  com 10 herdeiros  e um  �espírito  deporco�  entre  eles  que  diz:  �bem,  isso  aíé  divisível,  porque  é  fracionável  e  cadafração  conserva  a  sua  parte,  então  va-mos  dividir.�  E  com  isso,  obviamente,10  diamantes  de  50  quilates  cada  umvalem muitíssimo menos que um únicode  500  quilates.  Por  outro  lado,  tam-

bém,  o  prejuízo  do  uso  a  que  se  desti-nam;  é  o  caso  de  um  terreno  que  seriadividido  em  várias  partes,  e  ficaria,  porexemplo,  com  uma  frente  de  2 metrospor 50 metros de fundos, obviamente vi-raria  um  corredor.

Com  isso,  ingressa  agora  no  textolegal  aquilo  que  sempre  se  seguiu  emdoutrina  e  jurisprudência.

Há  que  salientar  que,  em  relaçãoaos  bens  singulares  e  coletivos,    obser-va-se    que  no  artigo  90  conceitua-se  afigura  da  universalidade  de  fato;  e  noartigo  91,  a  universalidade  de  direito,  oque não se encontra no Código de 1916.

Em  relação aos bens  reciprocamen-te considerados, há uma inovação impor-tante:  a do artigo 93 no que diz  respeitoàs pertenças. O que  é  amplamente utili-zado.  Sabem  os  senhores,  por  exemplo,que quando se vende um automóvel, aqui-lo  que  a  doutrina  germânica  chama  depertenças  (tapetes,  ferramentas,  certascoisas  que  são  acessórias)  deveriam  se-guir  a  condição do principal,  no  entantonão  seguem,  salvo  se houver  declaraçãoexpressa  nesse  sentido.  Essas  coisasacessórias  que  não  seguem  o  principalsão as pertenças, daí dizer o artigo 93:

“São pertenças os bens que, não

constituindo partes integrantes, se

destinam, de modo duradouro,

ao uso, ao serviço ou ao afor-

moseamento de outro.”

Por  isso mesmo  é  que  não  se  falamais em imóvel por destinação, tendo emvista a adoção da  figura da pertença.

Segue-se agora um dos pontos maiscomplexos  da  Parte  Geral:  os  relativosaos  fatos  jurídicos  com relação ao negó-cio  jurídico. Manteve-se  a  denominaçãodo livro III como Dos Fatos Jurídicos, por-que,  embora  a  grande maioria  dos prin-cípios  diga  respeito  a  uma das  espéciesde  ato  jurídico,  que  é  o negócio  jurídico,é certo que continua nesse Livro o  trata-mento  de  Fatos  Jurídicos.  Assim  é  comrelação  ao  problema  da  prescrição  e  dadecadência  e  com  relação  ao  problema

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da prova, tendo em vista a circunstânciade que a prova não  é apenas de negóciojurídico, mas de qualquer  fato  jurídico.

Neste Livro III, a parte mais com-plexa é, sem dúvida,   a relativa ao ne-gócio jurídico. Adotou-se essa  nomen-clatura,  afastando-se  a  de  ato  jurídi-co do Código Civil, porque o Código de1916,  quando  foi  elaborado,  emboraClóvis  Beviláqua  fosse muito  apegadoaos  autores  alemães,  nesse  particu-lar  seguiu  a  orientação  francesa.  Nãoadotou  a  figura  do  negócio  jurídico,talvez  por  considerar  que  era  uma  fi-gura  muito  técnica,  no  sentido  demuito  abstrata.  Adotou  então  a  técni-ca,  que  vem  do  Código  de  Napoleão,de  falar  em  ato  jurídico,  como  se  to-dos  os  atos  que  produzissem  efeitosjurídicos  fossem  atos  jurídicos.

Lembro-me  de  que,  quando  estu-dante de Direito,  escrevi um artigo paraum livro, uma coletânea de trabalho, queé a vergonha de minha vida. Eu dizia alique não podia  entender quando se  fala-va nos requisitos e na validade e se exi-gia: a capacidade das partes, objeto  líci-to,  possível,  determinado  e  forma  pres-crita ou não defesa em lei. �Não dá paraentender,  será  que  na  ocupação,  porexemplo,  quando  Joãozinho  vai  pescarum peixe  é  possível  exigir-se  capacida-de das partes para efeito de anular essapescaria  que  ele  fez?  Ou  no  caso  deMariazinha  que  vai  ao  bar  da  esquinapara  comprar  um  picolé  com  trocadosdados por sua mãe? Isso sendo um con-trato,  obviamente,  daria margem à  apli-cação:  incapaz  absolutamente  de  fato  �nulidade, daria margem para que se per-guntasse:  será  que  caberia  representa-ção  pelo  pai  ou  pela mãe? E  se  não  ostivesse, caberia ao  tutor?� Por  isso mes-mo,  ainda  estudante,  escrevi  esse  arti-go, quando ainda não se  falava nisso.

Na  doutrina  brasileira,  não  conhe-ço  nenhum  trabalho  daquela  época  emque  se  tratasse  dessa matéria.  Proble-ma  aliás,  que  mesmo  na  doutrinagermânica,  os  senhores  só  vão  encon-trar  a  partir  de  Savigny,  e  portanto,  apartir  do  corifeu  da  Escola  Estóica,  os

primeiros  acenos  a  esse  respeito.  Sen-do que mesmo nos pandectistas do finaldo  século,  os  senhores  não  encontramnenhuma  teoria  sobre  as  diferentes  es-pécies dos atos jurídicos, que não aque-le disciplinado pelo Código de 1916, emque na técnica germânica usou-se o ter-mo  correspondente  de  negócio  jurídico.

Vamos  encontrar  estudos  maisaprofundados  a  esse  respeito  somentedepois da promulgação de nosso CódigoCivil,  graças  a  um  grande  civilista  ale-mão  que  foi Manick,  que  escreveu  vári-os  trabalhos  a  esse  respeito,  e  a  umentão  jovem  civilista  austríaco,  PeterKlein,  que  também  escreveu  um  livrosobre  as  atuações  humanas  que  nãoeram negócios  jurídicos, mas  sim  atosjurídicos  diversos  do negócio  jurídico.

Essa  distinção  é  importante,  e  porisso mesmo,  a  disciplina  do negócio  ju-rídico,  exigiu  que  se  fizesse  aquilo  queo  Código  Civil  Português  de  1967  fez,ou  seja:  abrir  um  título  para  os  atosjurídicos  lícitos  que  não  sejam negóci-os  jurídicos.  Este  título  deu margem  aenorme  discussão  no  Brasil,  inclusivepor  grandes  civilistas  brasileiros  quesustentavam que  era um absurdo  falarem ato  jurídico  lícito como se houvesseum ato jurídico ilícito, e tendo em vistaa  circunstância  de  que  todo  ato  jurídi-co  seria  lícito  e  todo  ato  ilícito  não  se-ria  jurídico.  Isso  evidentemente  é  ab-solutamente  falho por uma circunstân-cia: o crime por ventura não é um  ins-tituto  jurídico? E  por  que  isso?  Porqueobviamente  são  atos  jurídicos  todos  osatos  que  produzem algum  efeito  jurídi-co,  conseqüentemente,  como diria Pon-tes de Miranda, são os atos que entramno mundo  do  direito.  Daí  a  razão  pelaqual os atos  jurídicos podem ser  lícitoscomo  ilícitos,  por  isso  colocar-se  nessetítulo: Dos  Atos  Jurídicos  Lícitos.

Dirão  alguns:  �mas  por  que  nãose  falou  então  em  atos  jurídicos  ilíci-tos?�  Para manter  a  nomenclatura  doCódigo,  tendo  em  vista  a  circunstân-cia  de  que  esta  expressão  �atos  ilíci-tos�  é  uma  expressão  elíptica,  ocorreque  também  aqui  estamos  diante  de

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atos jurídicos, porém diante de atos ju-rídicos  praticados  em desconformidadecom  a  lei  ou  com  os  bons  costumes.Essa  alusão  aos  outros  atos  jurídicosfoi  feita  com  certo  caráter  didático.Sabem  os  senhores  que  Código  não  élivro  de  escola,  mas  tem  também  umcaráter  didático  em matéria  dessa  re-levância,  porque,  graças  aos  estudosque  começaram  principalmente  comManick  e  com  Klein,  verificou-se  quenão  era mais  possível  adotar-se,  tec-nicamente,  aquela  generalidade  da  ex-pressão ato jurídico, como se fosse tudoa mesma  coisa,  tendo  em  vista  o  fatode  que  distinguimos  nitidamente  es-pécies  de  atos  jurídicos  que  apresen-tam  uma  disciplina  diversa.  E  mais:alguns  atos    aparentemente  são  jurí-dicos, mas na  realidade  são  fatos  jurí-dicos  no  sentido  estrito.  Para  sinteti-zar,  é  uma  matéria  que  demandariauma  explanação muito maior,  pois  ossenhores  encontram  hoje,  em  geral,  adoutrina  aludindo  a  três  tipos  de  atojurídico.  Sendo  que  o  terceiro  nem  se-quer é propriamente ato jurídico. Aquiloque  os  alemães  chamam  de  atos-fatojurídico,  que  foi  a  nomenclatura  ado-tada  por  Pontes  de Miranda  no Brasil.Na  Itália,  Cariota  Ferrara,  por  exem-plo  fala  em meros  atos  jurídicos.  Oschamados atos jurídicos em sentido es-trito,  apresentam  uma  particularida-de:  alguns  são  bastante  semelhantesao negócio  jurídico, outros são bem di-versos.  Finalmente  o  negócio  jurídico.A  diferença  entre  eles  se  faz  ou  pelaanálise  da  vontade,  ou  pela  análise  dadisciplina  que  se  lhe  dá.

Com relação aos negócios jurídicos,são  atos  jurídicos  que  exigem,  necessa-riamente,  uma  vontade  qualificada  que,pelo princípio da autonomia da vontade,permite  que  as  partes  dêem  conteúdo  aesse  ato  jurídico  desde  que,  evidente-mente,  não  seja  ele  contrário  às  leis  eaos  bons  costumes. Mas  essa  vontade,chamada  negocial,  tem  que  ser  qualifi-cada  justamente por  isto: porque graçasa ela é possível dar-se conteúdo. Por issomesmo,  na  chamada  teoria  objetiva  do

conceito  de  negócio  jurídico,  diz-se  queo  negócio  jurídico  é  a  auto-regulamen-tação das relações entre as partes, con-seqüentemente  é  normativo,  no  sentidode  se  criarem  normas  para  disciplinaras  relações  entre  as  partes,  relaçõesque decorrem desse negócio jurídico. Daía  razão  pela  qual  verificamos  que  todaaquela disciplina que vem nos capítulosconcernentes  aos  atos  jurídicos  do Có-digo de 1916, na realidade, aplica-se aonegócio  jurídico. Ou  seja:  àqueles  atosjurídicos  que  necessitam  de  uma  von-tade qualificada e mais � que, pelo prin-cípio  da  autonomia  da  vontade,  podemdar,  até  certo  ponto,  conteúdo  a  esseato  jurídico  praticado.

Temos  os  atos  jurídicos  em  senti-do  estrito  e  aí  há  uma  subdivisão:  al-guns  demandam  apenas  consciência,não  exigem  sequer  vontade  (assim,por  exemplo,  é  o  caso  da  ocupação),adquire-se  a  propriedade  quando  al-guém  se  apodera  de  coisa  sem  dono.Ora,  o  apoderar-se  significa    ato  deassenhoreamento  e  para  isso  é  precisoque haja consciência. Então o recém-nas-cido, por exemplo, se segurar uma vari-nha    de  pesca  e,  durante  aquele  perío-do de tempo em que está agarrado àquelavara,  se  for  fisgado um peixe,  este  nãoserá  dele.  Mas  um  garoto  de  5  ou  6anos,   que  já  tenha consciência, embo-ra não sabendo o que é o direito de pro-priedade,  ele  sabe  que  está  pescandoaquele peixinho para levar para sua mãefritar.  Conseqüentemente,  nesse  últi-mo  caso,    já  temos  que  ele  se  tornaproprietário bastando apenas a simplesconsciência.  Não  se  aplicam,  é  claro,  aesses  atos,  aqueles  princípios  que    di-zem  respeito  ao  negócio  jurídico,  comoa  representação,  problema  de  capaci-dade,  de  autonomia da  vontade,  enfim,todos aqueles dispositivos que, como severifica pelo próprio exame dos atos ju-rídicos,  aplicam-se  apenas  àqueles  quenecessitam  de  uma  vontade  qualifica-da, com a possibilidade de ela dar con-teúdo  negocial  a  este  ato  jurídico.

Mas  ao  lado  desses  atos  jurídicosem  sentido  estrito,  para  os  quais  basta

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 53

a consciência, há outros  em que há ne-cessidade  não  apenas  da  consciência,mas até da vontade qualificada. Emboraisso  seja  bastante  controvertido,  a meuver, é a categoria em que se pode encai-xar a figura do ato jurídico do casamen-to,  em  virtude  do  qual  nasce  a  relaçãojurídica do casamento. Esse ato  jurídicoexige  vontade  qualificada,  não  há  dúvi-da  alguma. Mas  pergunta-se:  é  possívelaos nubentes darem conteúdo a esse atoou o  conteúdo desse  ato  é  dado  estrita-mente pela  lei? Há autonomia da vonta-de? Há a possibilidade de as partes mo-dificarem  os  efeitos  legais  que  são  atri-buídos  ao  casamento,  como,  por  exem-plo,  casar-se  sob  a  condição  de  se  dis-solver o casamento, se um dos cônjugesdeixar de gostar do outro após certo tem-po, ou casar-se a  termo?

Vejam os senhores que todos aque-les  princípios  que  dizem  respeito  à  au-tonomia da vontade, não se aplicam. Nãohá a chamada vontade negocial, de modoque fica difícil sustentar que o casamen-to  seja  um  contrato.  Além  disso,  essafigura  do  contrato  não  atenderia  ao  ca-samento,  tendo  em  vista  a  circunstân-cia  da  necessidade  daquilo  que  a  dou-trina  geralmente  chama  de  testemunhaqualificada, que é a presença de um sa-cerdote  (no  caso  do  casamento  religiosodepois  convertido  em  casamento  civil)  ea presença de uma autoridade civil  compoder  para  celebrar  o  casamento. O  atocomplexo,  criado  na Alemanha,  diz  queo casamento não é um contrato, porquese  exige  naquele  essa  vontade  qualifi-cada;  seria  sim  um  ato  dos  três,  �atocomplexo�, em que dois participavam ati-vamente e o outro era uma testemunha,embora  uma  testemunha  tão  qualifica-da  que  tinha  que  declarar  os  nubentes�casados�, pois sem essa declaração nãohaveria  casamento.  Vejam  que  esse  atojurídico  é  diferente  daquele  que  se  cha-ma negócio  jurídico,  em que  a  principalespécie é justamente a do contrato. Nes-ses  atos  jurídicos  em  sentido  estrito,quando se exige apenas consciência, nãohá maior  problema porque  aqui  não hávontade  negocial,  não  há  possibilidade

de  conteúdo negocial,  e  os  efeitos  desseatos  são  estritamente  os  efeitos  legais.Quanto  ao  casamento,  há uma  série  deprincípios que se aplicam ao negócio  ju-rídico  com  relação  à  vontade  qualifica-da, e aí há uma observação digna de serfeita:  os  senhores  reparem que  os Códi-gos  têm uma  teoria  sobre  o  casamento,uma  teoria  que  se  aparta,  de  certa  for-ma,  da  teoria  geral  do  negócio  jurídico.Assim,  por  exemplo,  não  se  admite  doloem matéria de  casamento para  efeito deanulação,  isso  devido  àquele  princípiofrancês: �Qui a fait de mariage, trompe qui

peut�,  ou  seja,  em  se  tratando  de  casa-mento, engana quem pode, e alguns maissatíricos  diriam:  enganado  quem  quer.Por  outro  lado, há  casos de  coação,  quesão  típicos  de  casamento  e  não  dos  ne-gócios  jurídicos  em  geral.  Nos  Códigoshá,  portanto,  um  tratamento  diferencia-do  do  casamento  com  relação  à  ParteGeral  concernente  ao  negócio  jurídico,justamente por  isto: certos princípios donegócio  jurídico  são  aplicáveis, mas  ou-tros não o são, tendo em vista a circuns-tância  de  que,  com  relação  aos  efeitos,não havendo a autonomia da vontade nosentido  de  poder  dar  conteúdo  ao  ato,não  temos  que  o  casamento  possa  serqualificado  como  negócio  jurídico,  pelomenos  no meu  entendimento,  emborahaja muitos  que  continuem a  sustentarisso,  mas  com  essa  dificuldade:  ondeestá a vontade negocial, que é absoluta-mente  necessária  ao  negócio  jurídico  eao  contrato,  que  é  a  principal  figura  donegócio  jurídico?

Finalmente,  aquilo  que  na  doutri-na alemã é chamado, ao mais das vezes,de atos-fato, que outros chamam de atosde  atuação. Mas  esses  atos-fato  jurídicosão,    naturalisticamente,  atos  de  vonta-de, mas  juridicamente,  não. Ou  seja:  alei  não  leva  em  consideração,  de  formaalguma,  a  vontade  de  quem  praticou  oato.  O  exemplo  clássico  é  o  daespecificação:  a  do  escultor  louco,  quepelo simples fato de ser louco não deixade poder  ser um gênio,  e um dia  verifi-ca  que  no  terreno  do  vizinho  tem  umabela  pedra  de mármore  informe,  e  ele,

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que não  é  tão  louco  para  pular  o muroenquanto o vizinho estiver  lá, espera queeste saia em  férias, e então pula o muroe  esculpe  uma  belíssima  estátua.  Comisso,  sucede  que  se  torna  proprietário,tendo  em  vista  o modo  de  aquisição  daespecificação.  Apesar  de  juridicamentenão  ter vontade e  juridicamente   não  tersequer consciência, daí a razão pela qualnão  se pode  identificar  esta  ação huma-na com aquelas outras do garoto que pes-ca  o peixe  ou a do  casamento,  ou aindaoutras  em que haja  efeitos  estritamentelegais,  tendo em vista a circunstância deque  lá há a necessidade de uma consci-ência  ou  a necessidade de uma  vontadequalificada,  embora  os  efeitos não  sejamnegociais.  Aqui,  não.  A  doutrina  alemãchama  de  ato-fato,  principalmente  porisso:  são  ações  humanas  natura-listicamente, mas  que  juridicamente  sãoconsideradas  como  fato  jurídico  em sen-tido  estrito,  assemelhados,  por  exemplo,à  queda de um  raio  em uma árvore  queextingue o direito de propriedade. Por issomesmo  é  que  a  esses  atos-fato  não  seaplica nenhum dos princípios do negóciojurídico,  ao  contrário  do  que pode  ocor-rer em relação aos fatos jurídicos em sen-tido  estrito.

Isso  é  importante  inclusive  sob umaspecto: aquele caso da compra do picolépela  criança,  não  há  dúvida  alguma  deque é uma compra e venda, que a doutri-na  chama  de  compra  e  venda manual.Pergunta-se: por que essa compra e ven-da manual não é um contrato? Não é umcontrato  justamente por ser um ato  jurí-dico em sentido estrito; aqui, basta a sim-ples  consciência  e  os  efeitos  são  rigoro-samente  legais. Não  é  possível  estabele-cerem-se  efeitos  que não os  que  estejamna  lei.  Portanto,  não há necessidade  davontade qualificada, basicamente por nãohaver  sequer  a  autonomia  da  vontade  ea lei, por isso mesmo, estabelecer que osefeitos  são,  puramente,  os  legais.

Esse  exame,  a meu  ver,  é  impor-tante,  já  que  até  hoje  não  se  conseguiufazer uma doutrina  geral  a  respeito  dosatos  jurídicos  em  sentido  estrito,  comonão  se  conseguiu  também  fazer uma  te-

oria  geral    sobre  os  fatos  jurídicos  emsentido  estrito.  Tendo  em  vista,  princi-palmente  com  relação  aos  atos  jurídicosem  sentido  estrito,  o  fato  de  eles  sereminumeráveis. Qualquer  ato  que  produzaefeitos  legais,  e  portanto  sejam atos  ju-rídicos em que não haja vontade negocial,se  enquadra nessa  categoria. Ou neces-sitando de uma  simples  consciência,  oude uma vontade qualificada, embora essavontade qualificada não dê margem à pos-sibilidade  de  se  estabelecer  um  conteú-do negocial. Daí a razão pela qual não háuma teoria geral a esse respeito. Por issomesmo é que, naquele  título  relativo aosatos  jurídicos  lícitos,  se  diz  que  se  apli-cam aos  atos  jurídicos,  que não  são ne-gócios jurídicos, tudo aquilo que for cabí-vel. Compete, evidentemente ao juiz, ten-do  em  vista  a  circunstância  de  que nãoseria  possível  fazer  no Código  algo  quenem mesmo  a  doutrina  consegue  fazer.Faremos uma análise sobre o negócio ju-rídico,  análise,  evidentemente,  sumária,destacando os pontos  importantes.

Em primeiro  lugar,  é  de  se  salien-tar  que  se mantém  no  Código  atual  aconcepção  subjetiva do negócio  jurídico.Sabem  os  senhores,  que  ao  lado  daconcepção  subjetiva  há  uma  concep-ção   defendida por alguns grandes  ju-ristas,  como Betti,  na  Itália,  que  ado-ta  uma  teoria  normativa,  que  é  umateoria objetiva do negócio  jurídico. Emque  se  considera  (também  chamadaconcepção  preceptiva)  que  do  negóciojurídico  não  nascem  propriamente  re-lações  jurídicas,  e  sim  normas  queautodisciplinam as relações que se es-tabelecem  entre  as  partes  em  virtudedo negócio jurídico. Essa doutrina, ge-ralmente,  não  tem  sido  seguida  pelosCódigos, que adotam, em geral, a con-cepção  subjetiva.  Não  uma  concepçãosubjetiva  radical,  em  que  se  conside-ra  absolutamente    predominante    achamada  vontade  interna,  ou  vontadeinterior,  tendo  em  vista  a  circunstân-cia  de  que,  se  assim  fosse,  seria mui-tas  vezes  quase  impossível  de  se  afe-rir  exatamente,  a não  ser por meio depresunções. Muito mais que isso: afas-

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tar-se-ia  inclusive  a  possibilidade  dea  parte  contrária  saber    qual  seriaesta  vontade  interna.

Jamais  vingou uma  teoria  da  con-cepção  do  negócio  jurídico  como  sendouma  declaração  de  vontade,  em  queaquilo  a  que  se  devesse  dar  relevânciaseria apenas a declaração, tendo em vis-ta  também a  circunstância  de  que  essateoria  fosse  absolutamente  objetiva,  demodo que muitas vezes a declaração nãocorresponderia  àquilo  que  realmente  aspartes  desejaram  ou  àquilo  que  se  pre-sumia  que  elas  tinham  desejado.  Porisso mesmo é que a concepção subjetivaseguida  aqui,  e  de  certa  forma  era  se-guida no Código Civil (Eduardo Espíndola,por exemplo, sempre defendeu  isso), erauma  concepção  subjetiva mitigada  pelacircunstância  de  que  o  declarante  seauto-responsabiliza  por  uma declaraçãomal  feita.  E  o  declaratário  tem  a  seufavor  a  confiança  que  emana  para  eledaquilo  que  foi  declarado.  Isso  significadizer  que  se  continua  a  considerar  queo  elemento  preponderante  é  a  vontade(ao  contrário  do  que  ocorre  com  a  con-cepção preceptista) mas não aquela von-tade  interna  absoluta,  não  é  aquilo  quea doutrina chama de dogma da vontade,como vem desde Savigny no Século XIX.É  uma  concepção  subjetiva mitigada,justamente  porque  se  leva  em  conside-ração  a  declaração  se  ela  foi mal  feitae,  conseqüentemente,  por  falha  do  de-clarante,  ele  se  auto-responsabiliza  poraquele  defeito.

E  com  relação  ao  declaratário,  eletem  a  sua  posição  preservada  desde  omomento em que aquela declaração pôdegerar  nele  a  confiança  de  que  era  umadeclaração  que  devesse  acolher.  Istodecorre,  inclusive,  de  alguns  princípiosque  se  adotam  no  projeto.  Assim,  porexemplo,  o  problema  de  uma modifica-ção  que  se  fez  no  artigo  85  do  CódigoCivil  de  1916,  que  era  o  único  preceitorelativo  à  interpretação  com  referênciaao  ato  jurídico. O  artigo  85  dizia  o  se-guinte:    �Nas  declarações  de  vontade  seatenderá mais  à  sua  intenção  que  aosentido  literal  da  linguagem.�

Desde o manual de Paulo Lacerda,naqueles  quatro  volumes,  que EduardoEspíndola  apresentou  como  comentá-rios  relativos  aos  atos  jurídicos,  ele  jásustentava que embora se  fale �se aten-derá mais  a  sua  intenção�,  dizia  ele:�Não é bem assim, isso não significa queseja  o  dogma da  vontade  interior. Deveser  interpretado  esse  dispositivo  comose  ele  dissesse  que  se  atende mais  aintenção  nas  declarações  de  vontadeconsubstanciadas.�   Essa crítica, a  meuver,  é  perfeitamente  acolhível  e,  conse-qüentemente, por  isso é que se  fez alte-ração  que,  aparentemente, muitos    po-derão dizer a mesma coisa, mas que nãoé. Isso justamente para mostrar que aquinão há  teoria  da  vontade  interna  pura,dogma  de  vontade,  tanto  que  se  disseque  �nas  declarações  de  vontade  seatenderá  mais  à  intenção  nelasconsubstanciadas.�  Quer  dizer:  leva-seem consideração a intenção, pois da sim-ples  declaração não  se  pode  interpretartambém contra a manifesta vontade daspartes. Mas  considera-se mais  a  inten-ção  nelas  consubstanciadas  do  que  osentido  literal  da  linguagem  e,  conse-qüentemente,  não  há  nem  o  dogma  dadeclaração,  pois  a  declaração  prevale-ceria  sobre  tudo, nem o dogma da  von-tade,  em  que  a  vontade  interna  é  queteria  prevalência  absoluta.

Nas  disposições  gerais,  os  senho-res  observem que  a  estrutura  do  trata-mento  do  negócio  jurídico  foi  diferenteda estrutura dada pelo Código Civil. Aquia  estrutura  inicia  com  disposições  ge-rais, em que se começa com alusão aosrequisitos de validade. Em seguida,  tra-ta-se de problemas que se relacionam àmanifestação  de  vontade  e  à  interpre-tação  dessa manifestação  de  vontade;  aseguir  vem,  um  capítulo  relativo  à  re-presentação,  que  no  anteprojeto  origi-nal, tratava tanto da legal quanto da con-vencional, mas  que,  por maioria,  a  co-missão  revisora  daquela  época  enten-deu  que  devia  tratar  apenas  da  repre-sentação  legal,  e  não  da  convencional,remetendo esta,  como é da nossa  tradi-ção,  ao  contrato  de   mandato.  A  repre-

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sentação  é  ínsita  ao  contrato  de man-dato,  ao  contrário  de  outros  sistemasjurídicos,  como,  por  exemplo,  o  sistemajurídico  romano  em que não havia  essavinculação  entre  a  representação  e  ocontrato  de mandato.

A seguir, vem o tratamento da con-dição, do termo e do encargo, porque sãoautolimitações  à  vontade.  E  tanto  sãoautolimitações  da  vontade  que,  tradici-onalmente,  denominam-se  elementosacidentais.  Contudo,  a  qualidade  deacidentalidade eles só têm enquanto sãoabstratos,  pois  no momento  em  que  onegócio  é  celebrado  sob  condição  a  ter-mo  ou  é  praticado  com  encargo,  esseschamados  tradicionalmente  elementosacidentais  se  tornam  essenciais,  porquesão  autolimitações  da  vontade.  Portan-to, vem uma seqüência lógica, depois dese  tratar dos  requisitos de  validade,  su-mariamente;  da manifestação  de  vonta-de;  da  interpretação  da  vontade;  da  re-presentação  (que  diz  respeito  também àvontade),  vem  a  disciplina  dessas  cláu-sulas  que  autolimitam  a  vontade.  Emseguida  vem  o  tratamento  dos  defeitosdo  negócio  jurídico  para,  posteriormen-te,  vir  um  capítulo  concernente  àinvalidade  do  negócio  jurídico.  E,  final-mente,  já não mais no título negócio  ju-rídico, vem o  título  II  - Dos Atos Jurídi-cos  Lícitos  -  justamente  para  caracteri-zar  a  diferença  entre  os  outros  atos  ju-rídicos  que não  são negócios  jurídicos.

Com  relação  à  disciplina  do Negó-cio  Jurídico,  temos,  nas  disposições  ge-rais,  que  atentar  para  as  seguintes  ino-vações:  em  primeiro  lugar,  a  reservamental,  do  artigo  110:  �A manifestaçãode  vontade  subsiste,  ainda  que  o  autorhaja  feito  a  reserva mental  de não  que-rer  o  que manifestou,  salvo  se  dela  oque  o  destinatário  tinha  conhecimento.�Há uma circunstância que é  importanteobservar:  aqui,  em  rigor,  se  consideraesse  negócio  jurídico  como  inexistente.Por  isso mesmo não se acatou uma dascríticas  que  fizeram  no  sentido  de  quedeve  ser  nulo.  Tanto  que  não  se  disseque  essa  manifestação  de  vontade,quando o destinatário tiver conhecimen-

to  da  reserva mental,  acarretaria  a  nu-lidade. Mas  sim:  subsiste,  se  não  tiverconhecimento  e  não  subsiste,  ou  seja,não se  forma, se  tiver esse conhecimen-to. Ao contrário do que vai ocorrer com asimulação, onde também há falta de von-tade.

Então, a reserva mental é um casode  falta  de  vontade,  como  a  simulação.Contudo,  na  reserva mental  não  há  oacordo  de  vontade  entre  os  simulantes,sendo  portanto  uma  circunstância  uni-lateral,  enquanto  que  na  simulação  hásempre  o  acordo  entre  os  simulantes.Lá há uma aparência que se cria. Daí arazão pela qual se considerou que deve-ria  ser  tratada  como  nulidade  propria-mente. É certo que, a não ser nesse dis-positivo, eu, pelo menos não encontro ne-nhum  outro  em  que  se  trate  deinexistência,  não naquele  sentido  que  érealmente difícil  de  se determinar  o  queseja,  em matéria de negócio  jurídico  emgeral,  um  negócio  jurídico  inexistente,tendo em vista o  fato que geralmente sediz:  �são  aqueles  negócios  em  que  faltaum  elemento material.�  Aqui  é  muitodiferente do  que  ocorre  com o  casamen-to, que é um ato entre um homem e umamulher.  Assim,  o  fato  de  duas  pessoasdo mesmo  sexo  se  casarem é  considera-do  um  casamento  inexistente,  assimcomo o  casamento  celebrado por delega-do de polícia, por exemplo. Mas essa teo-ria da  inexistência,  em matéria de  casa-mento  sempre  teve  relevo,  até  pela  dife-rença da  inexistência  com  relação  à nu-lidade.  Nessa  se  exige,  inclusive,  umaação declaratória  de nulidade;  enquantoque  lá,  a  nulidade  se  confunde  com  ainexistência  com  referência  aos  seusefeitos,  porém nesse  tratamento  aqui  sefalou  em  subsistência  e  insubsistênciaporque o ato não chega sequer a formar-se, tendo em vista que, quando uma par-te declarou com reservas e a outra sabiadessa  reserva,  isso  era  como uma decla-ração  jocosa de  vontade, uma brincadei-ra ou uma representação teatral, em queambas as partes sabem que aqui não háato nenhum e, portanto, o negócio jurídi-co  é  absolutamente  inexistente.

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Por  outro  lado,  tratou-se  do  silên-cio,  considerando  que  ele  importaanuência  quando  as  circunstâncias  ouos usos  o  autorizarem  e não  for  neces-sária  a  declaração  de  vontade  expres-sa.  Daí  seguem-se  três  regras  de  in-terpretação,  sendo  que  uma  foi  retira-da dos  contratos. Os negócios  jurídicosbenéficos  e  a  renúncia  interpretam-seestritamente;  isso,  no  Código  Civil,  es-tava nos contratos. E no artigo 113 (ar-tigo mais  importante  com  relação  à  in-terpretação),  adotou-se  a  boa-fé  objeti-va,  ou  seja,  aquela  boa-fé  preceptiva,que  no  nosso  direito  já  vinha  do  artigo131  do  Código  Comercial.  Esse  artigotambém falava que os contratos comer-ciais  também  deviam  ser  interpretadosconforme a boa-fé. Contudo a nossa dou-trina  em  geral  considerava  que  aquelaera a boa-fé subjetiva, o que é um erro,pois a boa-fé subjetiva é ínsita ao sujei-to.

Quando se  fala que o negócio deveser  interpretado  de  acordo  com  a  boa-fé,  isso  se  traduz  naquela  boa-fé,  cha-mada  pela  doutrina  como  boa-fénormativa,  ou  seja,  aquela  boa-fé  queimplica a  regra de que os negócios  jurí-dicos  devem  ser  celebrados  com  lealda-de,  com  transparência  e, mais,  que  im-plica  inclusive  a  possibilidade  de  o  juizconsiderar que, na declaração de vonta-de, ainda que ela seja  lacunosa com re-lação  a  certos  deveres,  chamados  deve-res  secundários  ou  instrumentais  -como,  por  exemplo,  o  dever  de  custódiada coisa, embora no contrato não se alu-da a  isto como uma obrigação da parte;o  dever  de  sigilo  pelos  segredos  que  sesabe  em  decorrência  do  negócio;  o  de-ver  de  permitir  que  se  execute  perfeita-mente o  contrato, por uma das partes  -são  deveres  que, muitas  vezes,  não  es-tão  expressos no  contrato, mas  que  de-correm  justamente  dessa  boa-fénormativa,  objetiva.

Conseqüentemente,  coloca-se  aquique  os  negócios  jurídicos  devem  ser  in-terpretados conforme a boa-fé e os usosdo lugar da sua celebração, dando ao juizuma  certa margem. Digo  isso, mas não

para que cada juiz julgue de acordo coma  sua  cabeça  e  o  seu  conceito  de  justi-ça,  até  porque  a  coisa mais  injusta  domundo é não saber, de antemão, qual ojuiz que  irá nos  julgar e qual o conceitode  justiça  que  ele  tem.

O problema aqui,  evidentemente,  éde se aplicarem aqueles princípios, pois,obviamente,  não  é  possível  estabelece-rem-se todos os deveres secundários quesão os  instrumentais, mas que se admi-tem  como  ínsitos  a  uma  regra  de  leal-dade  entre  as  partes  e  de  observânciadaquilo  que  lealmente  se  deve  observar,em  decorrência  da  celebração  de  umnegócio  jurídico de natureza bilateral ouplurilateral.

Em  seguida  vem  o  tratamento  darepresentação.  É  um  capítulo  novo,  oCódigo Civil  também não tem esse capí-tulo,  onde  se  estabelecem  princípiosapenas  com  referência  à  representaçãolegal.  Como  disse  aos  senhores,  no  an-teprojeto  também  se  aludia  à  represen-tação  convencional.  Contudo  a  Comis-são também não aderiu a isso e se man-teve  apenas  uma  disciplina  sobre  a  re-presentação  legal,  sendo  que  no  artigo120  se  diz  que na  representação  volun-tária os  requisitos e efeitos vêm na Par-te  Especial,  que  é  justamente  na  disci-plina do contrato de mandato. Nesse ca-pítulo  da  representação,  há  a  disciplinado  contrato  consigo mesmo. Há  a  disci-plina  do  conflito  entre  representante  erepresentado, sendo que com relação aocontrato consigo mesmo, os senhores en-contram no  artigo  117:  �salvo  se  o  per-mitir a  lei ou o representado, é anulávelo  negócio  jurídico  que  o  representante,no seu interesse ou por conta de outrem,celebrar consigo mesmo�. Parágrafo Úni-co:  �Para  esse  efeito,  tem-se  como  cele-brado  pelo  representante  o  negócio  rea-lizado por aquele a quem os poderes hou-verem sido substabelecidos.� De modo queé para pegar também o substabelecido atu-ando  em  lugar do  representante.

Depois vêm as autolimitações da von-tade. E aqui temos a condição, o termo ouencargo. Não se  fala mais em modalidadede negócio  jurídico.  Isso na realidade não

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são  modalidades  de  negócios,  masautolimitações da vontade. Não há propri-amente uma modalidade de negócio  sobcondição.  É um negócio  cuja  vontade  éautolimitada pela  condição. Com referên-cia a esse tratamento, destaco que o arti-go  121  diz:  �Considera-se  condição  acláusula  que,  derivando  exclusivamenteda vontade das partes, subordina o efeitodo negócio  jurídico  a  evento  futuro  e  in-certo.�  Aqui,  portanto,  estamos  em umaconcepção subjetiva, condição como cláu-sula,  e  não  o  conteúdo  dessa  cláusula,mas em seguida,  vem o aspecto objetivo,subordinado ao  efeito do negócio  jurídicoa  evento  futuro  e  incerto. E   declarou-seexpressamente que só há condição quan-do  ela deriva  exclusivamente da  vontadedas  partes.  As  chamadas  condiciones

iuris, as condições de direito, não são con-dições, mas  requisitos de  eficácia do ne-gócio jurídico, mas não condições no sen-tido técnico, por isso tirou-se do novo Có-digo Civil  a  condição  tácita,  a  qual  é  re-quisito, não é condição. Por outro lado, dis-ciplina-se  a  invalidade das  condições  in-compreensíveis ou contraditórias,  o Códi-go Civil não trata disso.

Com  relação  ao  encargo  ou modo,nesse  capítulo,  disciplina-se  o  problemade  encargo  ilícito  ou  impossível  em  quese considera não anulável o negócio, mascomo  não  escrito  o  encargo  ilícito  ouimpossível,  salvo  se  constituir um moti-vo  determinante  da  liberalidade.  Vejamos  senhores:  aqui  não  se usa  a  expres-são causa, pois o Código novo continua aser anticausalista, por isso mesmo é queno  artigo  90,  do  Código  Civil  de  1916,onde  antes  se  falava  em  causadeterminante,  modificou-se  tambémpara motivo  determinante.

Em seguida vêm os defeitos do ne-gócio  jurídico,  onde  se  incluem duas  fi-guras  novas  com  relação  ao  Código  de1916, que são o estado de perigo e a  le-são.    Aqui,  no  tratamento  do  erro,  háalgumas modificações  sendo que se dis-ciplina  especificamente  o  chamado  errode  direito,  que  não  se  confunde  comaquela  que  alguns  dizem    presunção,dizem outros ficção, de que a ninguém é

dado  ignorar a  lei,  porque o  erro aqui  éconsiderado  como  elemento  capaz  deinvalidar  o  negócio  jurídico  para  que  serespeite  a  lei,  e não para  que  se  viole  alei.  É aquele caso de um negócio jurídi-co  em  que  se  compra  um  terreno  parase erguer uma  fábrica. Ambas as partessabem disso, mas  ignoram que há umapostura municipal que proíbe que naque-le  local  se  edifiquem  fábricas,  portantonesse  caso  se  admite  (é  a  teoria  clássi-ca do erro de direito) a invalidade do ne-gócio pelo erro de direito. Por outro lado,o erro de cálculo apenas autoriza a reti-ficação  da  autorização  de  vontade.

Em seguida vem o dolo, vem o tra-tamento  do  dolo  em  que  se  continua  aobservar  aquela  diferença  entre  o  doloacidental  e  o  causal.

Depois vem o  tratamento da coação,em que se admite a coação que diz respei-to à pessoa não pertencente à  família. Ossenhores vão observar que o novo Códigoconcede ao  juiz  grandes poderes,  inclusi-ve várias cláusulas gerais, até a boa-fé ob-jetiva, justamente por isso não é possível otratamento  pormenorizado normativo  deuma série de  condutas, de uma série deatitudes, de uma série de atos.

Pois bem, então se admite que hajacoação quando a ameaça diga respeito aterceiro  que  não  seja  pertencente  à  fa-mília  do  paciente,  cabendo  ao  juiz  veri-ficar se, no caso,  realmente, ocorre essaameaça.  Aqui  continua  a  coação  comovício, compulsiva, e não, portanto, comocoação  física,  que  é  falta  de  vontade.

Por  outro  lado,  há  um  dispositivoque é bastante  importante,  o artigo 155que  diz:  �Subsistirá  o  negócio  jurídico,se  a  coação  decorrer  de  terceiro,  semque a parte a que aproveite dela  tivesseou  devesse  ter  conhecimento;  mas  oautor da coação responderá por todas asperdas  e  danos  que  houver  causado  aocoacto�.

O Código Civil, neste caso, anula onegócio  jurídico.  No  novo  Código    pre-serva-se  o  negócio,  estabelecendo-seperdas e danos para aquele que foi o cau-sador.  E  se  preserva  o  ato  justamenteporque a parte que aproveitou dessa co-

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ação  não  tinha,  ou  não  devia  ter,  esseconhecimento,  portanto  se  preserva  asua  boa-fé  subjetiva  e  se  preserva  comisso  o negócio.

O estado de perigo e a lesão são doisinstitutos novos que apresentam uma di-ferença: em um caso, há o estado de pe-rigo  em que não há possibilidade  (comoocorre  na  lesão)  de  não  se  decretar  aanulação do negócio  se  for  oferecido  su-plemento  suficiente  ou  se  a  partefavorecida  concordar  com  a  redução  doproveito.  Por  outro  lado,  na  lesão,  há  aocorrência  da  premente  necessidade  ouda inexperiência, ao passo que no estadode  perigo  é  apenas  a  premente necessi-dade  de  salvar-se. E  também,  tratando-se  de  pessoa  não  pertencente  à  famíliado  declarante,  o  juiz  decidirá  se  ocorreou  não  essa  figura  do  estado  de  perigocomo defeito do negócio  jurídico.

Na  fraude  contra  credores,  as mo-dificações  são  pequenas.  Ampliou-se  onúmero  de  legitimados,  admitindo  queigual  direito  assiste  aos  credores  cujagarantia  se  tornaria  insuficiente.  Issode maneira expressa se admitiu. Há pe-quenas modificações  a  esse  respeito.

No  capítulo  concernente  àinvalidade do negócio  jurídico,    colocou-se a simulação, que deixa de ser defeitodo negócio  jurídico e, portanto, um cha-mado  vício  social  do  negócio  jurídico,  àsemelhança, aliás, da fraude contra cre-dores,  que  não  é  propriamente  um  de-nominado  vício  da  vontade. Mas  deixade  ser,  porque  aqui  não  ocorre  propria-mente vício, o que há é falta de vontade.E,  conseqüentemente,  acaba  com  simu-lação  inocente,  simulação  não  inocen-te, não  importa o que seja.

Se a simulação é absoluta, o negó-cio  jurídico se diz nulo,  justamente por-que há uma  aparência  da  existência  denegócio jurídico.  E se a simulação é re-lativa, é nulo o negócio simulado e o ne-gócio  dissimulado  poderá  ser  válido  sese admitir a sua validade conforme a  fi-gura  que  ele  represente.  Portanto,  nes-te  caso,  continua-se  a  admitir  simula-ção  inocente. É  o  caso, por  exemplo,  dealguém  fazer  uma  doação  a  um  amigo

que  era muito  rico  e  ficou  pobre  e  quenão quer com isso parecer que está dan-do esmola. Então ele faz essa doação si-mulando uma compra e venda - o que oCódigo Civil  chamava de  simulação  ino-cente  - mas  que,  obviamente,  continuaa ser admitida, pois é nula essa simula-ção que é relativa porque na realidade oque  vai  valer  é  o  contrato  de  doação,  onegócio  jurídico  dissimulado.

Por outro  lado, também acaba comaquela  regra  de  que  um  simulante  nãopode opor-se a outro simulado, o que criaproblemas.  Por  exemplo,  com  relação  anegócio usurário,  lembro-me de que tiveum recurso extraordinário em que a saí-da  foi  a  Súmula  400.  Hoje  essa  é    asúmula mais  odiada,  contudo,  naquelaépoca,    foi  a  súmula mais  genial  que  oSupremo  fez  em  toda  a  sua  história,quando  falava  em negativa de  vigência  enão,  em  contrariedade. Ele  dizia  que  sea  interpretação  for  razoável,  não  for  ab-solutamente  desarrazoada,  não  é  nega-tiva de  vigência. Então,  como não  falavaem  contrariedade  que  diz  respeito  à  in-terpretação  - hoje  o STJ  fala  em contra-riedade ou negativa de vigência, de modoem  que  aí  se  afasta  a  Súmula  400  porcausa da contrariedade - contudo naqueletempo era diferente - a saída que se teveem um caso de simulação para dissimu-lar um negócio usurário foi  justamente ade que parte da doutrina, pelo menos,  eme  lembro  de  que  até  foi  citado  o meuprofessor  de  algumas  aulas,  que  foi  umdos Desembargadores  que mais  honra-ram  esse  Tribunal,  o  DesembargadorSerpa Lopes. Ele sustentava que emborao Código  falasse  que um  simulante nãopodia se valer da simulação para subtra-ir-se  aos  efeitos  do  negócio  simulado,nesse  caso,  tendo  em  vista  a  gravidadedo  vício,  da  nulidade  decorrente  de  umnegócio dissimulado usurário, era de ad-mitir-se  que  houvesse  a  possibilidadedessa  invocação  de  simulação  por  umsimulante; porém isso tudo acabou. Hojeé  considerado  nulo,  e  não  inexistente.Em  rigor  deveria  ser  inexistente,  contu-do  é  considerado  nulo  porque  há  essaaparência  decorrente  de  um  acordo  de

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vontades  e,  conseqüentemente,  por  issoé  que  se  fala  em nulidade.

Por  outro  lado,  ainda  com  relaçãoa esses defeitos, há o artigo concernenteà  conversão  do negócio  jurídico. O  arti-go 170 admite que o negócio jurídico nulopossa ser convertido, se tiver os requisi-tos de outro negócio que seja válido. Aca-ba com a  imprecisão técnica do CósdigoCivil  que  fala  em ratificação em matériade  anulação,  quando na  realidade,  rati-fica-se, dando poderes que não foram da-dos  em matéria  de  representação,  e  seadota  a  técnica mais moderna,  que  é  ada confirmação ou não do ato.

Com  relação  à  nulidade,  acaba  oproblema da prescrição de nulidade. Nãohá  prescrição  de  nulidade  e  nem  deanulabilidade.  Isso  sempre  foi  dito  comrelação ao  casamento.  Porém,  com  rela-ção  ao  negócio  jurídico,  há  até  umasúmula  do  Supremo  dizendo  que  pres-crevem  negócios  nulos  em  vinte  anos.Contudo, isso é uma erronia porque nes-se  caso  não  existe  violação  de  direitossubjetivos  e,  conseqüentemente,  não hánenhuma pretensão decorrente dessa vi-olação.  Logo,  não há  prescrição  nenhu-ma  tendo  em  vista  a  circunstância  deque  aqui  não  se  viola  direito  de  outro.Apenas o que  há é um fato que vicia e,portanto,  invalida um negócio  celebradoentre as partes. Por  isso, em matéria deanulação,  o  prazo  passa  a  ser  de  deca-dência. Tanto que diz o artigo 178: �É dequatro anos o prazo de decadência parapleitear-se  a  anulação  do  negócio  jurí-dico,  contado:  (...)� Enfim, aqui  se man-têm  aquelas  regras  que,  pelo Código  se1916, se aplicam com relação à prescri-ção. Mas  é  prazo  de  decadência.  E  ossenhores  irão  observar uma  circunstân-cia:  na  Parte Geral  tudo  aquilo  que  forprazo de decadência vem expresso comoprazo  de  decadência. O  que não  estiverexpresso,  mas  estiver  nos  artigosconcernentes  à  prescrição,  tratar-se-áde  prescrição.

E,  mais  ainda,  para  facilitar,  noCódigo Civil todos os prazos da Parte Es-pecial  que não  forem  expressamente  di-tos  prazos  de  prescrição,  são  de  deca-

dência. Os prazos de prescrição são ape-nas  aqueles mencionados  na  Parte Ge-ral  como:  �são  prazos  de  prescrição  detantos  anos�.

Isso  facilita  obviamente  o  que  noCódigo  Civil  sempre  foi  um  problemasério.  E mais,  gerava-se,  em matériade  casamento,  nulidade  e  anulação  -prazo de decadência; em matéria de ne-gócio  jurídico  -  prescrição.

Por outro lado, com relação ao ne-gócio  nulo,  este  não  é  sanável  por  de-curso de tempo; o que pode ocorrer é aprescrição  em  decorrência,  por  exem-plo,  da  restituição  de  alguma  coisapaga em virtude de contrato nulo. Con-tudo,  aí  o  problema  é  de  prescrição,porque se trata do direito de obter res-tituição, e não problema decorrente dadeclaração  de  nulidade  do  negócio  ju-rídico.  Por  isso  é  que  se  diz  que  o ne-gócio  jurídico  não  se  sana  pelo  decur-so de  tempo.

A seguir vem o Título II - Dos Negó-cios Jurídicos Lícitos, a que  já aludi,    eo Título III - Dos Atos Ilícitos, em que háalgumas alterações importantes: com re-lação aos atos  ilícitos se retira do artigo159 do Código atual, que fala: �violar di-reitos ou  causar  dano�.

No artigo 186 do novo Código Civilse  coloca:  �violar  direitos  e causardano�,    porque  se  trata  de  ato  ilícitoabsoluto e este decorre justamente nãode  atos  ilícitos  relativos  (como  porexemplo  o  contrato),  mas  decorre  da-queles  atos que são absolutamente ilí-citos,  ou  seja:  são  violações  de  direitosubjetivos  que  se  opõem  contra  todose por isso são chamados direitos abso-lutos.  Então  é  por  isso  que  se  coloca�violar  direito  e  causar  dano�.  Com  aadmissão  da  possibilidade  de  haveruma  violação  que  não  cause  dano  denatureza  material.

Dispõe  o  artigo  186:  �Aquele  que,por  ação  ou  omissão  voluntária,  negli-gência  ou  imprudência,  violar  direito  ecausar dano a outrem, ainda que exclu-sivamente moral,  comete  ato  ilícito.�

Confesso aos  senhores que quantoa esse problema do dano moral, sempre

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fui  um defensor  dele  antes  de  ser  juiz.Depois, quando verificamos as dificulda-des  que  há,  e  em matéria  de  dano mo-ral,  confesso-lhes  que  talvez  seja  heré-tico, mas  considero  sempre  que  o  efeitodo dano moral nada mais é do que propi-ciar uma pena privada em  favor da víti-ma. Só com uma diferença:  é uma penaprivada  que  é mais  agravada  ainda  doque  as  penas  privadas  tradicionais  quese limitam à pessoa do ofensor. Aqui essapena  privada  se  transmite  aos  herdei-ros. Contudo, vejo como uma verdadeirahipocrisia   se  falar em reparação de dorou em satisfação de dor. Pergunto o se-guinte:  um Rockfeller,  por  exemplo,  po-deria  receber  alguns milhões  de  dóla-res como dano moral  em virtude da dorque ele  sofreu por um neto seu  ter  sidoatropelado?  Isso  para  ele  causa  algumaalguma  satisfação? Não.  A  única  satis-fação que teria, é ver punido aquele queo  ofendeu.  E  isso,  em  última  análise,traduz-se  em,  sem  quaisquer  tipos  dehipocrisias  que  sejam,  sentimento  deuma  certa  vingança. Não  a  vingança  doolho por olho, dente por dente, mas, pelomenos, a de ver punido aquele que cau-sou o dano.

A grande dificuldade é quanto à  fi-xação do valor do dano. Nos Estados Uni-dos, o  indivíduo passa a vida  inteira  re-zando  para  que  alguém  o  ofenda  paraque ele  enriqueça.    Isso  tem que  ficar acritério do juiz e se espera que os  juízessejam  suficientemente  esclarecidos  nosentido  de  não  transformar  isso  em  in-dústria.

Por  outro  lado,  aqui  se  determinacomo ato ilícito a figura do abuso de di-

reito. O artigo 187 diz:  �Também come-te ato  ilícito o  titular de um direito que,ao  exercê-lo,  excede manifestamente  oslimites  impostos pelo seu fim econômicoou social, pela boa-fé ou pelos bons cos-tumes�.  A  boa-fé  aqui  é  a  boa-fé  objeti-va.

Vêm  agora  a  prescrição  e  a  deca-dência. O novo Código  tem um capítulosobre a prescrição e outro sobre a deca-dência,  baseado  naquilo  que  já  está  setornando  clássico  na  doutrina  em  que

há decadência quando não há o cum-

primento de um direito potestativo. Há

prescrição quando há a violação de um

direito subjetivo. E mais, por isso mes-mo  esses  direitos  potestativos  são  cha-mados  de  direitos  sem  pretensão  por-que não  dão margem a uma pretensão.Ao  passo  que  os  direitos  subjetivos  sãodireitos com pretensão porque dão mar-gem a uma pretensão. Então, por isso éque a nulidade e a anulação são prazosde decadência,  enquanto que a  violaçãode  um  direito  de  crédito,  por  exemplo,dá margem a um prazo de prescrição.

Por  outro  lado,  adotou-se  a  figurada pretensão para  fugir do problema deprescrever a ação ou o direito.  Isso por-que  do  direito  decai-se, mas  sabem  ossenhores que o direito subjetivo não de-saparece  integralmente  quando  ocorreprazo  de  prescrição,  tanto  assim  quesurge aquela figura tradicionalmente co-nhecida  como  a  da  obrigação  natural.Isso,  a meu  ver,  nada mais  é  do  que  aobrigação decorrente de um direito sub-jetivo  enfraquecido  que  perdeu  a  suavirtualidade  de  ataque. E  direito  subje-tivo  enfraquecido  que,  em última  análi-se, se vira um título justificativo da não-repetição no  caso de prescrição  se hou-ver, por exemplo, um pagamento volun-tário, se a parte quiser pagar, obviamen-te por  isso não é um mero dever moral,daí  a  figura  da  obrigação  natural,  quese a parte quiser solver a sua dívida cujapretensão  esteja  prescrita.  Aqui  não hádireito  de  repetição,  por  quê?  Porquecontinua  a  existir  aquele  direito  subje-tivo enfraquecido que atua como um ver-dadeiro  título  que  legitima  a  não-repe-tição.  E  portanto  legitima  a  transferên-cia  da  propriedade,  com  relação  ao  ob-jeto do pagamento, por não se  tratar dedever  meramente  moral,  mas  de  umdever  jurídico  decorrente  dessa  chama-da  obrigação natural.  A meu  ver,  é  umtítulo  justificativo  da  não-admissão  darepetição  no  caso  de  o  pagamento  tersido voluntário. E é por isso mesmo quese  fala  em pretensão.

O que é pretensão? Essa é uma dasfiguras mais  difíceis  de  se  conceituar.

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62 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

Então  diz-se  que  nasce  a  pretensãoquando há a  violação do direito  subjeti-vo. Darei um exemplo que me parece bas-tante  claro:  há  um  contrato  entre  al-guém e um pintor para que pinte o  seuretrato. O  pintor,  então,  começa  a  pin-tar, perde a inspiração e, como não querjogar  fora  o  seu  nome,  diz  que  não  irácumprir  essa  obrigação  de  pintar  o  re-trato  porque  perdeu  a  inspiração  e  nãopode fazê-lo. Então, como ninguém podeser  coagido  a  praticar  um  ato,  conse-qüentemente  aquela  prestação  que  erade fazer, por aquele pintor, no momentoem  que  ele  viola  o  direito  subjetivo  doque  seria  retratado,  na  realidade  setransforma  em uma  prestação  diversa,ou  seja,  em uma  indenização  se houveralgum prejuízo ou, então, que o que se-ria  retratado  contrate  a  pintura  do  seuretrato por um outro pintor, pague a essepintor e cobre do pintor primitivo aquiloque pagou ao que executou o seu retra-to.

Isso,  em última  análise,  é  o  que  oautor Pontes de Miranda disse que a pre-tensão  seria,  uma  ação  civil.  Por  quê?Porque  é aquela pretensão que  levada ajuízo deixa de ser ação civil, passando aser ação de direito público, que é  justa-mente  a  ação  decorrente  do  direito  quese  tem  de  se  exigir  do Estado  que  estepreste  a  jurisdição.  (Essa  prestação  éjurisdicional no momento em que ingres-sa em juízo.) Contudo, enquanto isso nãoacontece, ela continua no  terreno do di-reito privado, tanto assim que há neces-sidade  de  que  a  pretensão  seja  resisti-da,  para  que  a  proteção  seja  levada  ajuízo.

Conseqüentemente,  a  pretensãoseria aquela modalidade de prestação di-versa  da  anterior,  em  que  ainda  nãohavia  a  violação  do  direito  subjetivo  eque vai ocorrer quando houver essa vio-lação. O  que  sucede  inclusive  nas  dívi-das em dinheiro com o problema do au-mento  em  decorrência  dos  juros,  dosjuros de mora,  enfim daquelas  quantiasque por ventura sejam punitivas em vir-tude da demora. Foi  isso que se preten-deu quando se disse no artigo 189 que,

�violado o direito,  (...)�  - que é o subjeti-vo, pois só este pode ser violado. Quantoao  direito  potestativo,  como  sujeita  aoutra parte, não há que se falar em vio-lação  -    �(...) nasce para o  titular a pre-tensão,  a  qual  se  extingue,  (...)�  -  o  quese  extingue  é  a  pretensão,  não  é nem odireito subjetivo e nem a ação. Tanto queo  autor  Pontes  de Miranda  teve  que  in-terpretar  a  ação  como  ação  civil,  o  queos  alemães  chamam  de  pretensão.  E,conseqüentemente,  quando  se  fala  emação,  todos  pensam  em  ação  judicial.Contudo,  está  errado,  pois  a  ação  judi-cial  sempre  existe.  Em  última  análise,pela  teoria  abstrata  da  ação,  ela  nadamais é do que o direito de pedir ao Esta-do,  que  venha  prestar  jurisdição,  tenhaou não razão.

Por outro  lado, há um capítulo  so-bre  disposições  gerais  em  que  conservamuitas vezes o que há no Código de 1916:as  causas  que  impedem  ou  suspendeme  as  que  interrompem a  prescrição. Emseguida, vêm os prazos de prescrição comaquela observação: só é prescrição aqui-lo  cujo  prazo  estiver  nos  artigos  205  e206.  Tudo mais  será  decadência,  salvose  expressamente  se  falar  que  é  pres-crição.

Por  isso mesmo,  falou-se  em prazode  decadência  na  Parte Geral  com  rela-ção à anulação do negócio jurídico. E fez-se  a  distinção  entre  decadência  legal  ea  convencional.  A  decadência  legal  éaquela que pode ser invocada ex officio

pelo juiz, enquanto que a  convencional,não.  Na  decadência  convencional,  issodecorre da vontade das partes. É o caso,por exemplo, da retrovenda em que é pos-sível  se  estabelecer  um  prazo  de  deca-dência inferior a três anos e portanto aspartes podem renunciar a esse prazo, po-dem abrir mão dele e aí então se apli-cará  o  prazo  legal  de  três  anos,  quepode  ser  declarado  pelo  juiz  de  ofíciotendo  em  vista  que  se  trata  de  deca-dência  legal.

Por outro lado, na decadência, sal-vo disposição em contrário, não se apli-cam  as  normas  que  impedem,  suspen-dem  ou  interrompem.  Por  isso mesmo,

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 63

diz-se  que  se  aplica  a  decadência  aodisposto nos artigos 195 e 198, inciso I,que diz respeito, por exemplo, a absolu-tamente  incapaz,  em  que  não  deveriaocorrer  a  decadência.

 E,  finalmente,  vem um  título  in-teiro  sobre  prova.  Considerou-se  que,embora  judicialmente  o  que  deve  re-gular  a  prova  são  seus meios  de  pro-dução em juízo, a prova é ainda maté-ria  de  direito  privado,  tendo  em  vistaque não se aplica apenas para as ques-tões  que  estão  em  juízo, mas  se  apli-ca a todo e qualquer fato jurídico. Con-seqüentemente,  manteve-se  isso  e  seestabeleceram  alguns  princípios  no-vos. Vou aludir  ao artigo 231 que diz:�Aquele  que  se  nega  a  submeter-se  aexame médico  necessário  não  poderáaproveitar-se  de  sua  recusa.�  E  artigo232:  �A  recusa  à  perícia médica  orde-nada  pelo  juiz  poderá  suprir  a  provaque  se  pretendia  obter  com  o  exame.�Isso é  tão  importante que  já houve noSTF  uma  questão  realmente  interes-sante.  Foi  um habeas corpus,  porqueum  juiz  determinou  que  fosse  condu-zido  sob  vara  um  indivíduo  para  quese  retirasse  dele  sangue  para  efeitode  um  exame  qualquer  do  qual  havianecessidade.  E  ele  impetrou,  então,um habeas corpus.

Sendo  assim,  deu-se  um  fatocuriosíssimo:  os  liberais  do  STF  admi-tiram e os conservadores por seis votosa cinco não admitiram, dizendo que nin-guém podia obrigar a um indivíduo quediz  que  tem  terror,  pânico,  de  se  verespetado  por  uma  agulha  de  injeção,  aser  obrigado  a  fazê-lo.  Nesse  caso  che-ga-se à  conclusão de que se um  indiví-duo se recusa, isso funciona como umaverdadeira presunção  contra  ele  e,  por-tanto,  com o ônus da prova  transferidopara  ele,  dificultando  portanto  a  suadefesa.

Meus  senhores,  quando  sou  obri-gado,  portanto,  a  fazer  uma  análise  ge-nérica dessa natureza, faço sempre umabrincadeira  dizendo  que  felizmente  fizuma façanha que é atravessar o OceanoPacífico  a  nado.  É  claro  que  com  todas

as  deficiências  dessa  travessia.  Muitoobrigado.

DEBATES

Desembargador Humberto ManesA primeira pergunta é sobre a capa-

cidade  e  a  incapacidade.  Vamos usar  alinguagem do Código de 1916, não é a sen-tença de  interdição  que  cria  incapacida-de. Então, se o indivíduo estava louco,  naterminologia do Código revogado e praticaum negócio  jurídico,  este  será  nulo.  Sehouver a sentença de interdição, claro estáque  o  outro  contraente nem poderá  ale-gar que desconhecia  essa situação de  in-capacidade. Contudo, vamos imaginar quealguém abra um jornal e leia um anúnciode uma venda de um apartamento e que,através de um corretor, vá até o  imóvel econheça o vendedor,  naquele  mesmo diatire  todas  as  certidões  e mais  tarde  ve-nha a saber que, embora não interditado,o  vendedor  é  louco.  Sendo  assim,  sur-gem dois problemas: de um lado, a tute-la  do  interesse  do  incapaz,  pois  ele  élouco. E, em segundo lugar, no outro pra-to  da  balança,  a  proteção  a  quem  agiude  boa-fé  dentro  daquela  situação  deaparência.  E  para  que  lado  penderá  abalança  dentro  do  Código  Civil  novo?Como resolveríamos esse problema hoje?

Ministro Moreira AlvesO problema  se  resolve  como  resol-

vemos hoje,  ou  seja:  esse  problema nãofoi  tratado  no  novo  Código  Civil.  Essasempre  foi  uma  questão  realmente  deli-cada,  porque  sem  a  interdição,  sucedeque há muito louco, doente mental e atéretardado,  que  aparentemente  nãoexterioriza  isso.

O problema  que  surge  é  esse:  per-guntam  se  será  nulo  ou  anulável?  Atéporque  tem  que  se  demonstrar  que  eleé  louco. Será nulo mesmo ou  isso é umato  que  deverá  ser  anulado,  e  portantohá  a  necessidade  de  uma  decisão  quedesconstitua  esse  ato?

É  o  problema  que  ocorre  hoje.  Eperguntam por que o Código Civil não

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tratou  desse  tema.  Já  imaginaram  seo  Código  tratasse  de  todos  os  assun-tos?  Eu  comentava  aqui  com meu  co-lega:  agora  vem  a  hora  da  complica-ção!  É  a  hora  dos  problemas  que  noscausam  certas  perplexidades.  Confes-so  aos  senhores  que  continuo  comgrandes  dificuldades  em uma  série  deinstitutos, pois não é possível dar dis-ciplina  a  tudo.  Até  porque  essa  disci-plina,  para  integrar um Código,  preci-sa estar dentro daquelas que já se  en-contram  devidamente  estratificadas.Até  hoje  esse  é  um  problema  delica-do,  com  relação  ao  qual  não  háestratificação  alguma.  De  modo  que,infelizmente, a resposta que posso daré essa: continua o problema com rela-ção ao novo Código Civil, porque se elefosse  resolver  tudo,  viraria  aquele  li-vrinho  do  imposto  de  renda  com  per-guntas  e  respostas.

Lembro-me  daquela  anedota  quecontam do tempo de D. Pedro II. Diziamque  ele  foi  ao  antigo  hospício  na  PraiaVermelha e que,  lá chegando, encontrouum  sujeito  e  começou  a  conversar  comele  sobre  literatura  grega,  literatura  la-tina etc.. No  final da conversa, o sujeitolhe  disse  que  era  um homem absoluta-mente normal, absolutamente são, e queos  parentes  dele  o  colocaram  ali  paradizer que ele era louco. Sendo assim, D.Pedro  foi  ao  Juliano Moreira,  que  era  odiretor,  e  disse  que  o  homem  era  abso-lutamente  lúcido  e  que  havia  conversa-do  com  ele  quase  uma  hora,  demons-trando  uma  cultura  absolutamenteinvulgar. O  diretor  disse  para D.  Pedroque  ele  ainda  não  tinha  visto  quandoaquele  homem  subia  em uma  árvore  ecantava  de  galo.

Desembargador Humberto ManesO Superior Tribunal de Justiça  tem

dado indenização por dano moral à pessoajurídica. O que acha Vossa Excelência?

Ministro Moreira Alves  Confesso  que  quando  deixar  de

ser Ministro do Supremo - para que nãodigam  que  há  uma  rivalidade  entre  os

antigos Ministros do Supremo que tam-bém  julgavam  a  respeito  de  todas  asmatérias,  confesso  aos  senhores  queera  o  Supremo  dos meus  sonhos,  por-que  não  ficávamos  apenas  com  a  apli-cação do artigo tal da Constituição, pa-rágrafo  tal  -  e  ficamos  praticamenteapenas no  terreno publicístico,  que meperdoem  os  publicistas,  mas  reservo-me  o  direito  de  que,  quando me  apo-sentar no ano que vem, dar a  respostaa respeito do que penso sobre esse pro-blema.

No novo Código Civil  se diz expres-samente  que  há  direito  de  personalida-de. Dispõe o artigo 52: �Aplica às pesso-as  jurídicas,  no  que  couber,  a  proteçãodos direitos da personalidade.� De modoque  este  é  um  dispositivo  que  trata  deum aspecto  que  é,  de  certa  forma, polê-mico, por  isso mesmo é que diz  �no quecouber�.

Desembargador Humberto ManesLembro-me de que o autor José de

Alencar, no livro �A hipoteca�, reclama-va da solução então vigente de uma pes-soa  construir,  em um pântano, um cas-telo,  mas  pelo  ordenamento  vigente  aconstrução  seria  um  acessório  em  rela-ção  ao  solo,  que  seria  o  principal.  Daísurgiram  várias  conseqüências  e  o  Có-digo  de  1916  consagrou  essa  regra.  Oautor  San  Tiago Dantas  reclamou dissoe  propôs uma  outra  solução:  quando  sedemonstrasse que a  construção seria deum  valor maior  do  que  o  do  solo,  estepassaria  a  ser  o  acessório.  Isso  aconte-ceu em uma rua nobre do Leblon em queum cantor comprou um terreno, foi paraa Alemanha, onde ficou mais de um anoe  contratou  uma  empresa  que,  por  en-gano, construiu o palacete no terreno dovizinho. Quando  ele  retornou,  o  conflitojá  estava  armado. Como podemos  resol-ver  isso hoje? Será que poderíamos apli-car  esse  esquema?

Ministro Moreira AlvesO Código Civil  trata realmente des-

se aspecto, contudo, esqueceu um outromuito mais comum, porque esses aspec-

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tos  são  quase  que  anedóticos,  são  as-pectos raríssimos, obviamente. O aspectosério  é  aquele  em que há uma  invasão.Por  exemplo,  um  prédio  de  cinqüentaandares  que  invade  dez  centímetros  doterreno do  vizinho.  Pelo Código Civil,  elepassaria  a  ser  o  principal  e  o  terreno,  oacessório. O novo Código  acabou  com oproblema de  acessório  e  principal  nessecaso,  da  inversão,  e  se  estabeleceu  noDireito das Coisas  - de que foi  incumbi-do  o  Desembargador  Ebert  ViannaChamoun  -  o  princípio  de  que,  quandoisto  ocorresse,  se  houvesse  boa-fé  porparte do construtor, então haveria um tipode  indenização  e,  conseqüentemente,passaria  a  ser proprietário daquela  faixaque  foi  construída.  Se  houvesse má-fé,então haveria  também uma  indenizaçãodecuplicada  e  com  uma  série  de  agra-vantes  decorrentes  justamente  do  prin-cípio  da má-fé. Mas  se  estabeleceu por-tanto que, nesses casos, haveria não pro-priamente  que  transformar  o principal  eo  solo  passaria  a  ser  acessório, mas  seentendeu  de  resolver  o  problema  combase na indenização para o efeito de pre-servação da coisa de maior valor.

Porém não  se  tratou dessa  conver-são,  justamente  pela  circunstância  deque  se  considerou  que  essa  hipótese  édaquelas que dariam margem a uma in-denização  conforme houvesse  boa-fé  oumá-fé,  até  por  aplicação  analógica  des-se  outro  princípio.  E,  conseqüentemen-te,  seria  uma  forma  de  punir,  emboramantendo  sem  que  se  declarasse  aque-la modificação de considerar que o valordo prédio poderia ser maior do que o va-lor do terreno, o que às vezes também éum problema, porque em curto prazo detempo,  às  vezes,  pode  ocorrer  o  contrá-rio. E quando suceder o problema de osdois terem o valor parecido, como se re-solve? Será  que  a  regra  da  inversão  de-veria  ser  aplicada?

Por isso é que se afastou esse prin-cípio,  considerando,  inclusive,  que  ca-sos  dessa  natureza  são  absolutamenteraros.    São  casos,  não  digo  anedóticos,mas  são  aqueles  de  academia,  não  sãocasos que ocorram na vida prática, em-

bora,  vez  por  outra,  possam  ocorrercomo, por exemplo, o casamento de umhomem com homem ou de uma mulhercom  outra,  enquanto  o  casamento  forainda um instituto em que a união ocor-ra  somente  entre um homem com umamulher.

Desembargador Humberto ManesOutra  pergunta:  Entre  os  requisi-

tos  do  negócio  jurídico,  lembro-me  deque  Vossa  Excelência  estudou  tambémo  problema  da  legitimação  ou  legitimi-dade, mas,  como não  se  prende  a umasistematização, não foi colocado na Par-te  Geral.  Então  entendo  que  na  ParteEspecial,  em  cada  texto  de  legitimação,o  novo Código  enfrenta  a  questão  real-mente.  E  no  tocante  da  venda  a  des-cendente,  sempre  houve  uma  grandediscussão sobre a conseqüência da nãoautorização  de  um  dos  descendentespara  a  prática  do  ato.  Recordo-me  deque  há  um  acórdão  antigo  do  STF,  doMinistro  Aliomar  Baleeiro,  mostrandoque  o  ato  era  nulo,  o  que  impediria  aconfirmação  do  negócio,  porque  ele  de-clarou que era nulo. Há os que susten-tam que é ineficaz; outros, que simples-mente é anulável e que permitiria a con-firmação. Foi por isso que o Código pre-feriu  adotar  como  causa  de  anulação.No Código antigo era o art. 1.132.

Ministro Moreira AlvesO que está se sucedendo é que, na

Parte Geral,  não  se  tratou  do  problemada  ineficácia,  mas  se  observa  que  hávários  artigos  que dizem:  �essa  situaçãoé  de  ineficácia�  ou  �essa  situação  é  deanulação�.  Por  outro  lado,  esse  proble-ma do pai com relação aos filhos, ascen-dentes  com  relação  a  descendentes,  étão  sério  que  no  Supremo  houve  umagrande discussão, se eu não me enganoeu pertencia à Segunda Turma e fui, afi-nal,  voto vencedor da seguinte hipótese:um pai obteve a anuência de dez ou onzefilhos, que o casal tinha, no sentido de ven-der o bem a um deles. Acontece que, pos-teriormente, a esposa do vendedor e, por-tanto, a integrante do casal (que não sabia

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que  já havia, no momento em que  foi efe-tuada aquela  venda,  concebido uma  cri-ança), dá à luz uma criança e, vinte e umanos depois,  essa criança se  torna maiore  entra  com uma ação de  ineficácia  da-quela  venda, dizendo que  já  era  concebi-da  e,  portanto,  tinham que  ter nomeadoum curador do ventre para que ele mani-festasse a anuência por  ela. E por  três adois,  fui  voto  vencedor, mas houve pedi-dos de vista no sentido de considerar quenão havia nenhum cômodo do nascituropara esse efeito. Então, considerou-se queé  anulável,  foi  para,  possivelmente,  per-mitir  o  problema da  confirmação,  que  ébem mais  lógico do que a  ineficácia,  ten-do  em  vista  que  posteriormente  aquelesque não anuíram, porque não lhes foi per-guntado,  venham a  fazê-lo.

Para concluir, quero salientar quenão  se  seguiu  estritamente,  com  esseproblema de anulação, por exemplo nafraude  contra  credores,  o  problema  dese  saber  se  havia  inoponibilidade  ouse  havia  anulação.  Seguiu-se  a  anula-ção  justamente  por  questões  de  con-veniência prática, tendo em vista a dis-ciplina  do  Instituto.  Embora,  teorica-mente, possa ser discutível. E isso, ob-viamente  ocorre,  pois  um Código  tam-bém  não  é  simplesmente  umrepositório  de  doutrina  rigorosamentepura,  é  necessário  atender  a  aspectosde conveniência, por  isso mesmo é umato  político.

Desembargador Humberto ManesÉ como na Lei de Falência em que se

diz que é inoponível em relação à massa...Ainda  dentro  dessa  distinção  en-

tre  negócio  jurídico  e  ato  jurídico  emsentido estrito, só conheço no Brasil umcivilista  contrário  a  isso,    o  Prof.  PauloCavalcante,  salvo  engano.  Pode  ser  di-fícil  a  distinção,  mas  que  ela  existe,existe.  E  aí  vem  a  indagação  que meformularam:  A  empresta  a  B  determi-

nada  quantia  e  estabelece  que  a  dívidaé  de  natureza  quesível.  Na  datamarcada, A não procura B para recebera  quantia  devida.  Indaga-se:  quandonascerá  a  pretensão?

Ministro Moreira AlvesNo momento  em  que  foi  violado  o

direito  subjetivo  do  credor.  E  quando  éque  ocorre?  O  problema  vem  dainexecução  relativa  e  da  inexecução  ab-soluta.  Conseqüentemente,  se  a  dívidaainda  tiver  algum  interesse  para  o  cre-dor,  haverá  apenas mora.  Caso  contrá-rio, haverá o  inadimplemento absoluto eaí  não  há  dúvida  alguma  de  que  há  aviolação do direito  subjetivo e, portanto,corre  prescrição.

Desembargador Humberto ManesHá cerca de quarenta anos, li uma

petição  inicial  de  uma  ação  rescisóriareferente  ao  direito  das  sucessões.Distribuído o  feito,  caiu  com o Desem-bargador  Alcino  Pinto  Falcão  comorelator,  que  proferiu  o  seguinte  despa-cho:  �Cite-se,  todavia,  dado  o  brilhan-tismo em que foi redigida a petição ini-cial,  dificilmente  a  contestação  pode-rá  ter  êxito�. Então  indago ao MinistroMoreira  Alves:  Quem  redigiu  essa  pe-tição  inicial?

Ministro Moreira AlvesA  resposta  cabe àquele  que  expôs

esse  fato  e,  conseqüentemente,  umadas duas: ou não sabe quem foi e, por-tanto, eu também não saberia,  ou sabequem  foi  e,  conseqüentemente,  devedecliná-lo.

Desembargador Humberto ManesFoi o então jovem advogado Moreira

Alves.  Li  essa petição no DepartamentoJurídico do Banco do Brasil em 1962. ODes.  Pinto  Falcão  proferiu  esse  despa-cho, e a ação acabou logo ali..