para que a panlexiamodelo

Upload: luiza-samira-flores-alves

Post on 19-Jul-2015

151 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

ALEXSANDRA CIBELLY FINKLER

PARA QUE A PANLEXIA?

Dissertao apresentada ao Curso de PsGraduao em Letras, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paran, como requisito parcial para obteno de ttulo de Mestre em Letras Estudos Lingsticos. Orientadora: Prof. a Dr. a Reny Maria Gregolin.

CURITIBA 2008

ii

iii

SUMRIO

INTRODUO 1. PANLEXIA O QUE E DE ONDE VEM

01 06

1.1. DESCRIO, ORIGEM E TESTES PARA DIAGNOSTICAR DIFICULDADES 06 1.2. O MTODO PANLEXIA 12

2. DIAGNSTICO E ATENDIMENTO AO DISLXICO: A RELEVNCIA DADA AO CDIGO 2.1. DISLEXIA BASES QUE (NO) SUSTENTAM O DIAGNSTICO 3. ALFABETIZAO: CONCEPES E METODOLOGIAS 23 27 39

3.1. CAGLIARI E O B-B-BI-B-BU: UMA REFLEXO (AINDA) NECESSRIA 40 3.2. A CARTILHA: APROXIMAO METODOLGICA 3.3. CONCEPES DE LINGUAGEM: CONTRAPONTOS TERICOS 3.4. O TEXTO COMO MANIFESTAO DA LNGUA 4. APLICAO DO MTODO PANLEXIA: ANLISE DE CASOS 4.1. PANORAMA GERAL DOS DADOS ANALISADOS 4.2. ANLISE DOS DADOS PRESENTES NAS PRODUES DE S1 4.2.1. BREVE HISTRICO DO ALUNO 4.2.2. ANLISE DAS OCORRNCIAS 4.3. ANLISE DOS DADOS PRESENTES NAS PRODUES DE S2 4.3.1. BREVE HISTRICO DO ALUNO 4.3.2. ANLISE DAS OCORRNCIAS 48 50 54 58 61 68 68 71 87 87 88

iv

CONSIDERAES FINAIS REFERNCIAS ANEXOS

100 103 108

v

Ao Gabriel, que participou de todo o processo, com prolas como: Dindinha, depois que voc encher isso tudo de letras voc me conta uma historinha?

Ao Guilherme e ao Joo, que chegaram no fim, mas chegaram!

Aos meus pais, Antnio e Marlene, pelos exemplos de persistncia. Aos meus padrinhos, Jurandir e Lcia, que, de diferentes maneiras, me incentivaram a continuar agora porque a vida curta. amiga e mestre Solange Gomes, cujo carinho e confiana me deram coragem e dignidade para seguir adiante, sempre.

vi

AGRADECIMENTOS

Prof Dr Reny Maria Gregolin, pela orientao e confiana neste trabalho. Aos professores do Curso de Ps-Graduao em Letras, pela sabedoria compartilhada. Ao Odair, pelo carinho e disponibilidade, sempre! Aos profissionais dos CMAEs, pela presteza e dedicao dispensadas. Nara, Ada, Marcia, Nini, Hamminni e Sandra, por estarem sempre falando em outras coisas. Ao Marcos e ao Gilson, pelo incentivo e ajuda, sempre confiveis.

vii

RESUMO

O foco principal deste trabalho a discusso acerca de um mtodo de alfabetizao chamado Panlexia: um programa para dificuldades especficas de linguagem, que vem sendo usado pela Rede Pblica Municipal de Curitiba, em alunos diagnosticados como dislxicos. A citada instruo em lingstica estruturada, est baseada em tcnicas behavioristas e de repetio mecnica e, desse modo, contraria a perspectiva sociointeracionista, que oficialmente est instalada na instituio desde final dos anos 80. Diante dessa contradio entre concepo e mtodo, pretendemos analisar a aquisio da linguagem escrita proposta pelo mtodo Panlexia em casos de crianas ditas portadoras de dificuldade de aquisio de linguagem, com laudo neurolgico de dislexia, atendidas em Centros Municipais de Atendimento Especializado e, que estejam sendo submetidas ao mtodo Panlexia pelo perodo de, pelo menos, seis meses. Segundo a autora e difusora do mtodo esse perodo o suficiente para que o tratamento apresente resultados satisfatrios na leitura e escrita do aluno. Procuramos demonstrar, ainda, que o aluno dito dislxico um aprendiz rotulado com base em avaliaes que se baseiam no entendimento da lngua como um sistema fechado e imutvel de signos. Os erros cometidos, que permitem encaixar o aluno em determinada patologia da linguagem, so considerados, pelas bases tericas da lingstica, como instabilidades prprias da escrita em sua fase inicial de aquisio. justamente nesses eventos, considerados patologizantes, que se percebem as hipteses de que o aprendiz lana mo para compreender o sistema da escrita, pois revelam atitudes de reflexo em relao lngua.

viii

ABSTRACT The main focus of this paper is the discussion about a literacy method called Panlexia: a program for specific language difficulties, that has been used by Curitiba's Municipal Health System, with students diagnosed as dyslexics. The mentioned instruction in structured linguistic is based on behaviorist and mechanic repetition technique and, this method, contradicts the sociointeractionist perspective, that is officially installed in the institution since the end of the 80's. Facing this contradiction between conception and method, we intend to analyze the written language acquisition proposed by the method Panlexia in cases of children prescribed bearer of the language difficulty acquisition, with a neurological report of dyslexic, assisted in Specialized Municipal Centers and, that are been submitted to the Panlexia method for the period of at least six months. According to the author and diffuser of the method, this period is enough so that the treatment presents satisfactory results in students reading and writing. We still tried to demonstrate, that the so called dyslexic is a labeled apprentice based in evaluations that rest on the understanding of the language as a closed and unchangeable system of signs. The errors made, allow fitting the student in certain language pathology, they are considered, in linguistic basic theories, with proper instability of writing in its initial acquisition phase. In these specific events, considered troubleshooter, that the hypothesis the apprentice uses to understand the writing system are noticed, because reveals the reflection attitudes toward the language.

1

INTRODUO

Toda prtica voltada alfabetizao pauta-se em uma concepo de linguagem, ensino e criana. Mesmo que sem conscincia disso, professores alfabetizadores e instituies mantenedoras revelam, por meio de suas prticas metodolgicas, quais so suas opes tericas a respeito da linguagem e de como esta adquirida pelo aprendiz. A priorizao de um ou outro aspecto da lngua escrita, alm de revelar a concepo de quem ensina, submete o aprendiz apropriao de diferentes conhecimentos, que nortearo seu convvio com o mundo da escrita no futuro. De incio, convm esclarecer que em virtude dos estudos mais recentes acerca do processo de aquisio da linguagem escrita, dentre os quais destacam-se, para esse trabalho, as reflexes propostas por CAGLIARI (1989;1998), ABAURRE (1999),

ABAURRE, MAYRINK SABINSON e FIAD (2003) e GREGOLIN (2007, no prelo), instituies escolares pblicas e particulares vm propondo, no mbito da alfabetizao, prticas que contemplem a linguagem como um todo significativo. Assumem o texto como objeto de estudo da linguagem e propem que este seja produzido e reescrito desde as sries iniciais. Dentre essas instituies, destacaremos nesse trabalho as de ensino pblico, que na maioria das vezes, estabelecem Currculos calcados na perspectiva

sociointeracionista de linguagem e propem reflexes tericas acerca do como alfabetizar e como usar textos para alfabetizar, mas no estabelecem uma orientao metodolgica coerente capaz de orientar o professor alfabetizador em sua prtica pedaggica diria. Deste modo, nem sempre a sala de aula torna-se um ambiente onde se manifestem prticas realmente coerentes do ponto de vista terico com o que prope a instituio mantenedora.

2

Consequentemente, se algum aluno no segue o padro de aprendizagem esperado pela escola, no atingindo as expectativas estabelecidas no currculo, ele passa a ser rotulado como portador de algum distrbio ou dificuldade de aprendizagem da escrita e, desse modo, encaminhado para profissionais que lhe dem atendimento clnico especializado e tratem desse distrbio ou dificuldade. Esse panorama, em linhas gerais, percebido em inmeras instituies do pas na atualidade, e tem gerado discusses em mbito nacional acerca de procedimentos e mtodos de alfabetizao, em especial para portadores de dificuldade de linguagem. O foco desse trabalho, nesse contexto, a discusso acerca de um mtodo de alfabetizao chamado Panlexia: um programa para dificuldades especficas de linguagem. No material escrito que divulga esse mtodo l-se Um livro prtico para profissionais responsveis por elaborar e supervisionar programas para a reeducao da dislexia. Inclui instruo em lingstica estruturada para o ensino de alunos com dificuldades de aprendizado. (KVILEKVAL, 2004), que vem sendo usado pela Rede Pblica Municipal de Curitiba, em alunos diagnosticados como dislxicos, nos Centros Municipais de Atendimento Especializado (CMAEs)1. A citada instruo em lingstica estruturada, est baseada em tcnicas behavioristas e de repetio mecnica e, desse modo, contraria a perspectiva sociointeracionista, que oficialmente est instalada na instituio desde final dos anos 80. A adoo do Panlexia para o atendimento ao indivduo portador de dificuldade especfica de linguagem, alm de contraditria, improcedente, pois pode gerar possveis parmetros para prticas de alfabetizao nas escolas, visto que o que se considera

1

Centros Municipais de Atendimento Especializado (CMAEs), so equipamentos educacionais nos quais o aluno com dificuldade de aprendizagem atendido no perodo inverso ao da escola regular, por psiclogos, fonoaudilogos, pedagogos especializados, para que supere suas dificuldades.

3

dificuldade de aquisio de linguagem, considerado, na perspectiva interacionista, uma atitude de reflexo e anlise do aprendiz sobre a escrita em uso e construo. Assim, os erros (que so hipteses sobre a escrita), deveriam ser considerados como naturais e no caberia um treino mecanicista, como a Panlexia, para fazer o aluno aprender a escrever. Diante dessa contradio entre concepo e mtodo, pretendemos analisar a aquisio da linguagem escrita proposta pelo mtodo Panlexia em casos de crianas ditas portadoras de dificuldade de aquisio de linguagem, com laudo neurolgico de dislexia, atendidas em Centros Municipais de Atendimento Especializado (CMAEs) enfatizando-se os seguintes aspectos: 1. Descrever a proposta do mtodo Panlexia adotada para o atendimento do

aluno dislxico nos CMAEs. 2. Identificar aspectos da apropriao da linguagem escrita por crianas

atendidas pelo mtodo Panlexia. 3. Tecer consideraes a respeito dessa metodologia em comparao teoria

sociointeracionista presente no currculo da Prefeitura Municipal de Curitiba.

Para tanto, o presente trabalho est estruturado em quatro captulos. No primeiro, explicamos, em detalhes, o material usado pelo mtodo Panlexia e o modo como vem sendo usado com crianas portadoras de laudo neurolgico de dislexia. No segundo captulo, considerando o pblico para o qual se destina o uso do mtodo Panlexia na Rede Municipal de Ensino, tecemos consideraes a respeito do diagnstico da dislexia. Convm adiantar que, ao assumir uma concepo que prev a aquisio da linguagem como um trajeto singular, construdo na interao e repleto de significado, os sintomas usados por manuais oficiais para caracterizar o indivduo dislxico

4

no se sustentam, pois no consideram as situaes contextuais e interlocutrias presentes no processo. No terceiro captulo, estabelecemos, com base nos estudos de CAGLIARI (1989; 1998), ABAURRE (1999), ABAURRE, MAYRINK SABINSON e FIAD (2003), princpios tericos que justificam nossa discordncia em relao ao uso do programa Panlexia. As reflexes propostas nesse captulo so fundamentais para que se compreenda a escolha de produes textuais como dados para serem analisados, pois nos levam a considerar que o processo de apropriao e uso da linguagem escrita pressupe, naturalmente, hipteses, elaboraes e reelaboraes singulares. Tais eventos de escrita tornam-se visveis, sobretudo, em textos que se constituem como unidades lingsticas significativas. Embora o Panlexia no preveja a produo e reescrita de textos como atividades que devam ser desenvolvidas, os profissionais que atendem os alunos, baseados nas Diretrizes Curriculares da instituio, registram o processo de alfabetizao dos aprendizes por meio de produes textuais, o que no proposto pelo mtodo conforme Kvilekval.. So essas produes, realizadas margem do programa Panlexia, que compem os dados analisados nesse trabalho e evidenciam a contradio entre o discurso terico interacionista j interiorizado pelos professores, e a adoo repentina de prticas mecanicistas como a do mtodo Panlexia. No quarto captulo feita a anlise dos dados. Os sujeitos desta pesquisa so crianas portadoras de laudo neurolgico de dislexia que esto sendo submetidas ao mtodo Panlexia pelo perodo de, pelo menos, seis meses. Segundo a autora e difusora do mtodo (KVILEKVAL, 2004), esse perodo suficiente para que o tratamento apresente resultados satisfatrios na leitura e escrita do aluno. No decorrer da anlise dos dados, so

5

feitas consideraes sobre o modo como essa metodologia influi no processo de aquisio da escrita dos alunos expostos ao programa. Torna-se evidente, para tanto, a necessidade de constatar qual a concepo de linguagem presente no material e analisar os dados dos aprendizes a ele expostos, comparando as produes de um mesmo sujeito tendo por parmetro o perodo de atendimento pelo Panlexia.

6

CAPTULO 1

PANLEXIA: O QUE E DE ONDE VEM 1. 1 Descrio, origem e testes para diagnosticar dificuldades

Para atingir os objetivos deste trabalho, precisamos esclarecer, a priori, alguns aspectos a respeito do histrico de implantao do mtodo Panlexia na Rede Municipal de Ensino de Curitiba, bem como a relao particular e profissional que tivemos neste processo. Convm esclarecer, j de incio, que PANLEXIA um Mtodo de orientao diagnstica e um Programa abrangente de assistncia pedaggica ao indivduo dislxico. (KVILEKVAL, 2004:9 - V. 1). Com essa definio a autora inicia o primeiro dos dois volumes de embasamento terico e instrues ao professor que compem o material proposto para ser usado na alfabetizao de alunos com dificuldades na aquisio da linguagem escrita da Rede Municipal de Ensino de Curitiba. Para a divulgao do mtodo Panlexia, no ano de 2004, esteve em Curitiba a educadora britnica Pmela Kvilekval, criadora do mtodo e difusora dos possveis benefcios advindos de sua adequada aplicao. O evento de divulgao, que culminou com um grande Simpsio de Dificuldades de Linguagem, consistiu em uma capacitao intensiva realizada no Centro de Capacitao de Professores da Rede Municipal de Ensino, promovido pela Prefeitura Municipal de Curitiba de julho a agosto de 2004. Foram cinco semanas de curso, nas quais as aulas dividiram-se em tericas e prticas. As aulas tericas consistiram em leituras sobre dislexia, vdeos com atendimentos j realizados na Itlia e simulaes de episdios que

7

poderiam ocorrer nos atendimentos que realizaramos. Nas aulas prticas, alunos da Rede Municipal de Ensino, portadores de laudo neurolgico de dislexia, foram submetidos a sesses de cinqenta minutos de atendimento, aplicadas pelos participantes do curso. Convm salientar que os participantes do curso ali estavam para que se tornassem multiplicadores da metodologia em questo2, com o objetivo de disseminar o mtodo Panlexia na Rede Municipal de Ensino, mais especificamente entre os profissionais dos CMAES (Centros Municipais de Atendimento Especializado), que so instituies mantidas pela rede para atenderem casos comprovados de distrbios ou dificuldades de aprendizagem. No decorrer do curso, foi dada a informao de que o mtodo foi desenvolvido, originalmente, para a lngua inglesa. Foi produzida, posteriormente, uma verso para o idioma italiano e, alguns meses antes do evento no Brasil, a autora, em parceria com pesquisadora brasileira3, desenvolveu o mtodo Panlexia para o portugus. Dentre os fatos que merecem destaque nessa contextualizao inicial, destacamos uma bateria de testes que o programa de ensino Panlexia determina que devam ser aplicados a todos os alunos que sero submetidos ao mtodo. A respeito da utilizao de testes classificatrios em crianas em fase de inicial de escolarizao, comentaremos com maior profundidade no captulo 2, embora alguns comentrios e citaes presentes na descrio que segue j permitam perceber o quanto tal prtica pode ser incua e, mais do que isso: prejudicial ao aprendiz.2

Nessa ocasio, julho e agosto de 2004, eu, professora da rede municipal de ensino, era uma das participantes do curso e estava sendo treinada para aplicar o mtodo. Em virtude de, naquele momento, compor o quadro tcnico da secretaria, atuando com a formao continuada de professores na rea de Lngua Portuguesa, fui designada para participar das cinco semanas de curso. Convm ressaltar que eu era a nica professora com formao em Lngua Portuguesa no grupo, os demais participantes eram psiclogos, fonoaudilogos e pedagogos especializados. Esse histrico faz-se necessrio para que, no decorrer das postulaes e argumentaes desse trabalho, fique evidente que participei do processo de implantao desde seu incio, envolvendo-me, inclusive, nos bastidores de sua propagao. 3 O livro em portugus foi elaborado em co-autoria com Mnica Luczynski.

8

Trs testes diagnsticos iniciam o processo: o primeiro o Teste Diagnstico Lingstico (anexo I); o segundo chamado de Teste Fonolgico (anexo II); por fim, aplicado o teste chamado de Screening de Leitura e Escrita (anexo III). O teste Diagnstico Lingstico composto de atividades como: Escrever o alfabeto em letras minsculas; Dizer o alfabeto em voz alta; Nomear letras aleatoriamente listadas, em um grupo de letras no qual constam, misturadas, maisculas e minsculas; Dizer sons de determinadas letras; Ler slabas de diversos padres, iniciando pelo CV (consoante-vogal), progredindo para as slabas consideradas mais difceis para o aprendiz, como a, lho, gui e qual; Ler palavras e pseudo-palavras (logatomas) aleatrias, com variados padres silbicos, iniciando, novamente, pelo padro CV; Repetir em voz alta e depois escrever frases, tais como A fada pede uma bala e Deixe o cheque de quatro trilhes comigo, ditadas pelo examinador.

Segundo o material, tais atividades objetivam verificar algumas habilidades do estudante, como: reconhecer e identificar letras maisculas e minsculas; ler palavras isoladas, partindo da leitura de palavras mais simples at chegar s mais complexas, comeando com as combinaes CV e CVC e escrever sentenas compostas por elementos lingsticos especficos. Por meio dessa averiguao seria possvel, de acordo com o Panlexia, diagnosticar inmeras dificuldades na aquisio da escrita, alm de representar uma

9

forma segura de agrupar crianas com necessidades semelhantes de instruo, e afirma:Falha no desempenho desse teste poder demonstrar o grau de habilidade da criana em organizar suas percepes ao responder aos smbolos escritos. Por meio do diagnstico eficiente das respostas da criana no teste, ser possvel evidenciar a natureza dos problemas em: inverses; figura-fundo; abordagem ineficiente palavra; grau de palpite pela configurao; deficiente associao auditivo-vocal; habilidade em formar associaes som-smbolo; fraca memria visual; habilidade de codificao a partir de associaes, uma a uma, entre som-smbolo, omisses; inseres; transposies; confuso entre vogais; dificuldades na utilizao de sinais diacrticos; e outros que podem ser evidenciados dentro da hierarquia da estrutura lingstica. (KVILEKVAL, 2005:98 vol 1)

A respeito do carter classificatrio de testes como os aqui descritos, teceremos algumas consideraes no captulo XX. Mas j possvel, por meio da anlise dos objetivos desse primeiro teste, perceber algumas particularidades em relao concepo de escrita subjacente ao mtodo Panlexia. O teste considera problemas, em sujeitos em fase de aquisio da escrita, eventos como: inverses, habilidade em formar associaes som-smbolo, habilidade de codificao a partir de associaes, uma a uma, entre som-smbolo, omisses, inseres, transposies, confuso entre vogais e dificuldades na utilizao de sinais diacrticos e, dessa maneira, desconsidera o processo de manipulao da lngua pelo qual os indivduos passam durante sua alfabetizao. Alm disso, no fica claro quais so os problemas: abordagem ineficiente palavra e grau de palpite pela configurao. Como uma criana poderia abordar uma palavra de maneira ineficiente? De que grau a autora fala? Qual a natureza deste palpite? Configurao de qu? Ao compararmos esses objetivos s atividades propostas, a situao fica ainda mais difcil de ser compreendida, visto que se tratam de atividades em que a linguagem tratada como um aglomerado de fragmentos sem sentido, como possvel perceber em comandos

10

como: Escreva o alfabeto minsculo; Diga o alfabeto em voz alta; Diga os sons das letras ou Leia slabas. O teste Fonolgico, por sua vez, consiste na entrega de cubos coloridos, que iro representar a seqncia de sons, ditada pelo examinador. Para aplicar essa atividade, o professor (ou terapeuta) deve pronunciar sons de letras associando-os s cores dos cubos, ou seja: ao pronunciar d-d-t, dever, medida que cada som pronunciado, apresentar ao aprendiz cubos que representem os sons. Nesse caso, devem ser apresentados dois cubos da mesma cor e um de cor diferente, para estabelecer analogia entre os dois sons iguais e um som diferente apresentado nessa seqncia. Em seguida, o aluno que dever selecionar os cubos enquanto o professor pronuncia os sons. O propsito parece ser verificar se o estudante consegue perceber uma seqncia de sons, diferenciar sons, perceber e representar quantos sons so produzidos. Trata-se de uma tarefa fcil de aplicar e de mensurar o resultado, porm, para o desenvolvimento da linguagem escrita, que benefcio pode resultar a constante associao entre cores e sons, considerando que as atividades cognitivas so de categorias diferentes? O chamado Screening de leitura e escrita um teste estruturado para avaliar a capacidade em responder com preciso a quase todas as combinaes de letras possveis do portugus. Na escrita, a nfase est na discriminao auditiva. Os trs testes aplicados deveriam subsidiar o examinador, que, em geral tambm o aplicador do mtodo, a inserir o aluno em determinado nvel, de acordo com a dificuldade apresentada. No entanto, h uma contradio evidente nessa afirmao, se for considerado que todos os alunos devem passar por todos os nveis. Alm disso, sabemos que a escrita uma representao da fala e a transcrio da oralidade.

11

COUDRY (2001:11), em anlise de alguns testes aplicados em indivduos afsicos, tece algumas consideraes que permitem fazer uma extenso ao que possvel perceber nos testes propostos pelo Panlexia ao afirmar que fica evidente que esses tipos de tarefa (nomear, definir, listar, repetir, etc.) excluem o interlocutor da situao de interlocuo; esta construda do ponto de vista do locutor-examinador. A pesquisadora alerta ainda que o uso desse tipo de tarefa como parmetro de classificao exclui da linguagem seu papel primordial de representar, de maneira efetiva, as experincias do aprendiz sobre si prprio, sobre os outros e sobre o mundo, porque so atemporais, no esto localizadas em um espao concreto. Desse modo, deixa-se de considerar a histria e as singularidades de cada aluno e restringe-se anlise sobre a linguagem do aprendiz ao episdio neurolgico que o caracteriza como portador de uma dificuldade. O aprendiz deixa de ser sujeito para ser, simplesmente, mais um componente do grupo dos dislxicos. A totalidade das tarefas propostas nos testes leva em conta situaes de atividade verbal completamente descontextualizadas, pois excluem do processo qualquer possibilidade de interlocuo, ao contrrio de situaes convencionais de uso da linguagem escrita. Essa unilateralidade de perspectiva em relao manifestao da linguagem avaliada ocasiona, nesse tipo de teste, uma mudana de perspectiva terica a respeito da lngua. Segundo COUDRY (2001:12), testes baseados em atividades descontextualizadas contrapem-se a situaes de atividade verbal contextualizada.Deve-se observar que no se trata somente de uma questo terminolgica. H uma mudana de perspectiva terica: a concepo de linguagem j no a mesma, contrapondo-se a uma questo de expresses analisveis uma insistncia nos processos envolvidos na construo dessas expresses nas situaes discursivas. Quando falo que deixa de haver uma interlocuo porque no vejo interlocuo em situaes de respostas evocadas a partir de estmulos, mesmo que verbais: na interlocuo deve sempre haver interao e

12

assuno por parte dos interlocutores de seus diferentes papis discursivos. (COUDRY, 2001:12)

A maior parte dos testes apresentados toma por parmetro unidades lingsticas menores que a frase e, embora o teste diagnstico lingstico estabelea a escrita de frases ditadas pelo examinador como possibilidade de avaliao da linguagem verbal escrita, no h como pressupor interlocuo ou interao lingstica por meio de elaboraes verbais como A fada pede uma bala, Deixe o cheque de quatro trilhes comigo ou A maga Lara faz um ch de hortel e ma, que so alguns exemplos das frases para o teste de ditado proposto pelo mtodo Panlexia (ver ANEXO II). Aps concluir a bateria de testes, um Relatrio Diagnstico (anexo IV), do qual h um modelo no prprio material, preenchido, orientando o profissional a submeter o aprendiz ao mtodo.

1. 2 - O MTODO PANLEXIA

O mtodo Panlexia consiste inicialmente na repetio sistemtica da leitura de listas de slabas formadas pelo padro CV (consoante-vogal). Centra-se, posteriormente, no mesmo procedimento, repetido exaustivamente, em listas feitas no mesmo padro e que utilizem uma nica vogal (ma-ta-la-va-sa...), e culmina na leitura de um texto contendo apenas esse padro (A rata fala para a fada:/ D a bala?/A fada d a bala para a rata./ A gata fala para a fada:/D a nata?/A fada d a nata para a gata./A paca fala:/ D a jaca?/A fada d a jaca para a paca.). O procedimento se repete com cada uma das vogais. A aplicao do chamado Programa para dificuldades especficas de Linguagem consiste em sesses dirias de 50 minutos, nas quais seguido um roteiro preestabelecido

13

em cinco nveis (volumes) de ensino, nos quais, para iniciantes no processo de aquisio da escrita que apresentam lentido cada criana deve apresentar um desempenho preestabelecido para cada nvel, antes que ela possa conquistar a aprovao para um nvel subseqente. (...) Uma criana no pode ser promovida de um nvel para outro se ela no soletrar segundo o padro correspondente a esse nvel, se no for capaz de demonstrar o compasso na pronncia da palavra, e se no demonstrar possuir conscincia da seqncia de sons. (KVILEKVAL, 2004:5 V. 2). No decorrer do processo de aplicao do mtodo so preenchidas informaes em uma ficha de acompanhamento, que concludo ao final do programa e no qual constam informaes a respeito dos avanos e dificuldades de cada criana (anexo V). A fim de elucidar aspectos relevantes acerca da aplicao do Panlexia e do grau de apropriao da linguagem ao qual o aprendiz exposto em decorrncia do uso desse mtodo, sero analisados cada um dos cinco nveis separadamente. Antes, no entanto, preciso esclarecer alguns procedimentos sugeridos para o que so chamadas atividades de pr-leitura, que antecedem a aplicao das sesses previstas no material. Nos dois livros que servem de orientao para o profissional que atuar com a criana, sugerido que sejam utilizados cubos coloridos e um espelho para a criana observar a prpria boca a fim de desenvolver a conscincia fonolgica do aprendiz. As atividades com os cubos coloridos so semelhantes s usadas no teste fonolgico ao qual o aluno submetido antes de iniciar o programa. Segundo a autora do Panlexia:O emprego de cubos para avaliao de dificuldades perceptivas e em exerccios para desenvolver a conscincia fonolgica pode ajudar nos seguintes aspectos: a) descobrir se uma criana ou adulto pode ouvir as diferenas entre os sons apresentados; b) melhorar a conscientizao da sensao produzida na boca durante a emisso de determinados sons, distinguindo a sensao especfica de cada som, comparativamente a de outros sons similares;

14

c) melhorar a conscincia da seqncia de sons que vo sendo articulados no tempo, e da correspondente associao dessa seqncia a seus smbolos no espao. Em outras palavras, ao ouvir S O B, esse aluno dever saber que a palavra comea com S, que depois vem o O e, em seguida, o B; e que, ao associar esses smbolos de forma correta e em sua ordem prpria na palavra, ele ser capaz de escrev-los numa folha de papel. (KVILEKVAL, 2005: 9-10 vol II)

Esta atividade, no entanto, pode acarretar a troca de consoantes surdas por sonoras na escrita, pois o aluno est sendo conscientizado a respeito do ponto de articulao das consoantes. Poder trocar t/d; f/v; x/j etc. na escrita. Portanto, ignora-se mais uma vez que a escrita a representao da fala. Trata-se de uma evidente falta de embasamento a respeito do sistema fonolgico da lngua. Na continuidade, outras propostas do mtodo Panlexia permitem perceber essa falta de embasamento. Por exemplo, para que o aluno possa avanar do nvel de pr-leitura para o nvel 1 do programa, ele dever ter atingido os seguintes objetivos:ORIENTAO DOS OBJETIVOS DO PROGRAMA HABILIDADES DE PR-LEITURA Discriminao Visual 1. Demonstra habilidade em reconhecer e nomear seis letras. Discriminao Auditiva 2. Demonstra habilidade em discriminar o incio e o final dos sons especficos de palavras. 3. Demonstra a noo de que uma seqncia de sons pode ser representada por uma seqncia de smbolos, discutindo as similaridades e as diferenas ao emitir os sons representados por nosso alfabeto. Desenvolvimento da Linguagem 4. Fala usando sentenas completas, quando necessrio. Discriminao Visual-Motora 5. Copia letras do alfabeto em letra de forma. 6. Copia letras do alfabeto em letras minsculas. 7. Une as letras.

Nos cinco livros classificados por NVEIS, consta o roteiro hierarquizado das atividades que sero aplicadas ao aprendiz. Cada nvel possui um ttulo que apresenta o aspecto lingstico que ser privilegiado em suas atividades. Na ordem:

15

1. NVEL: Exerccios de consoantes e vogais em palavras e frases de duas e trs slabas 2. NVEL: Exerccios de palavras e frases com ditongos, influencia da letra r, acento agudo, exerccios para desenvolver a conscincia fonolgica 3. NVEL: Exerccios com encontros consonantais, grupos consonantais e palavras que iniciam com h 4. NVEL: Exerccios letras que mudam os sons das letras precedentes e pronncias diversas 5. NVEL: Todos os acentos, prefixos, sufixos, todas as outras associaes fonema/grafema menos comuns No nvel 1, o mtodo toma por base as vogais para estabelecer cinco padres, que so: Padro 1: consoantes com a vogal a. Padro 2: consoantes com a vogal o. Padro 3: consoantes com a vogal e. Padro 4: consoantes com a vogal i. Padro 5: consoantes com a vogal u. O profissional inicia a aplicao do mtodo por meio da leitura da seguinte tabela, na vertical: a ma ta la sa ba na fa ca ja E me te le se be ne fe que je i mi ti li si bi ni fi qui ji O mo to lo so bo no fo co jo U mu tu lu su bu nu fu cu ju

16

da ga pa ra va xa za

de gue pe re ve xe ze

di gui pi ri vi xi zi

do go po ro vo xo zo

du gu pu ru vu xu zu

Segundo o material, a leitura dessas slabas sem significado deve ser usada para um rpido controle da automatizao da associao de qualquer som/smbolo (KVILEKVAL, 2004:15 - vol. II). O objetivo dessa atividade fazer com que o aprendiz generalize as consoantes de modo indutivo. Essa generalizao compreendida, no material como uma resposta correta ao som referente ao smbolo apresentado, sem depender, para a decodificao de artifcios como memria, forma da palavra, primeira letra, contexto, posio na lista ou na pgina (KVILEKVAL, 2004:21 - vol. II). Os alunos que no forem capazes de generalizar indutivamente todas as slabas devem retornar aos exerccios com cubos auditivos. j neste aspecto que iniciam as contradies entre o uso do programa Panlexia e a concepo de escrita assumida nesse trabalho: se o aluno no for capaz de ler a lista completa das slabas isoladas, sem cometer nenhum tropeo, ele retornar ao incio do processo proposto, voltando ao ponto em que deve desenvolver as chamadas atividades de pr-leitura. Esse movimento de retorno acadmico parece muito similar reprovao escolar, que no considera tudo o que o aluno aprendeu, mas toma a quantificao do erro como parmetro classificatrio. Em relao leitura de slabas proposta para o nvel 1, preciso ressaltar o fato de que devem ser excludas, segundo as orientaes do programa, as slabas ti e di, sob a alegao de que elas mudam o som das consoantes. Ou seja: alm de a criana

17

permanecer restrita ao padro CV, ainda ter que limitar seu uso da lngua escrita slabas cuja relao contextual seja biunvoca. Isso por um tempo que varia de aprendiz para aprendiz, pois somente podero ser inseridos novos padres quando os j trabalhados estiverem perfeitamente dominados, habilidade que deve ser comprovada por meio da leitura sem erros ou tropeos das listas silbicas. Em relao escrita, o material prev atividades comuns a todos os nveis. Essas atividades devem ser feitas em caderno de caligrafia e consistem em ditados feitos pelo profissional que atua com a criana. As instrues so:1. 2. 3. 4. 5. As palavras devem ser extradas das lies anteriores. O aluno repete a palavra. O aluno escreve a palavra. O aluno enuncia, letra por letra, a palavra que escreveu. O professor verifica cada palavra, medida que em que vo sendo escritas, e indica o tipo de erro, se necessrio. 6. A criana corrige os prprios erros. (KVILEKVAL, 2004:26 vol. II)

A escrita, tomada pelos moldes descritos e incentivados pelo Panlexia, desconsidera as diferentes estratgias das quais o aluno pode fazer uso para escrever, pois est simplesmente seguindo um modelo apresentado, montando e desmontando palavras em slabas. Segundo CAGLIARI (1998), se o aprendiz no d conta dessa atividade simples, no raras vezes considerado portador de dificuldades mentais, neurolgicas ou fonoaudiolgicas. O autor afirma que as crianas esto acostumadas a usar a linguagem priorizando a semntica das palavras e a usar palavras em frases e no a segmentar a fala em slabas e a representar as palavras por letras (sem nenhum sentido

lexical)(CAGLIARI, 1998: 290). Quanto correo dos erros cometidos pelo sujeito em seu exerccio de escrita, preciso considerar a concepo nula de uso da linguagem que est por trs da atividade. Seguindo o raciocnio do autor, as atitudes das crianas diante da lngua escrita so

18

diferentes para atividades tradicionais de ditado e de escrita espontnea. Os erros que se manifestam nessas atividades tambm so diferentes pois, na escrita espontnea o sujeito tem algo a dizer e isso faz com que quase todos os erros cometidos possam ser explicados como parte do processo de reflexo a respeito da escrita. J no ditado de slabas e palavras isoladas, ou de frases sem sentido, a considerao dos erros no segue um critrio, fato naturalmente explicvel pela questo de que no h sentido para o aluno em escrever caracteres que no possuam significado, pois no esse o uso que ele faz da linguagem em situaes efetivas de interao social. Alm disso, acentos, cedilha so detalhes da escrita que o aprendiz interiorizar ao longo do processo escolar. O material atribui, como habilidade que deve ser desenvolvida por meio das atividades do nvel 1, a discriminao das vogais e atribui a dificuldade na apreenso dessa habilidade falta de discriminao visual das vogais, visto que os aprendizes so capazes de pronunciar o nome das vogais, mas no podem lembrar-se do mecanismo fsico da reproduo do som da vogal. Em conseqncia desse desvio, o material sugere uma srie de passos a serem dados no treinamento dessa criana (2005: 29. vol II- grifo nosso). Os passos consistem na escrita pausada e leitura simultnea, pelo professor, de uma linha da tabela inicial do programa (ba-be-bi-bo-bu). O aprendiz deve ler junto com o professor, pois o material afirma que o aluno aprende a reproduzir o som das vogais curtas simplesmente enquanto olha para o quadro e vai repetindo os padres que so exemplificados pelo professor (IDEM, IDEM). O principal questionamento acerca desse processo reside no motivo pelo qual a criana deva ler, insistentemente, uma lista de slabas para automatizar o mecanismo fsico de reproduo do som da vogal. No h, por trs dessa estratgia, uma situao real

19

de uso com significado da lngua escrita. O treinamento proposto evidencia a viso de que a lngua formada por pedacinhos independentes que devem ser unidos. A respeito da aprendizagem por nveis de incorporao de ensinamentos, como no caso descrito, CAGLIARI (1998:266) faz um questionamento relevante e perturbador: Ora, se o aluno aprende pelas informaes que vai incorporando, e no por simples e espontnea reflexo, por que, em vez de dar uma informao to reduzida, o professor j no vai ensinando de maneira mais inteligente?. O autor defende que, o ditado de famlias silbicas, como o ba-be-bi-bo-bu, apresenta um equvoco srio a respeito da avaliao da apropriao da linguagem por parte do aluno. Muitas vezes o aluno, ao escrever as slabas que lhe vo sendo ditadas, ativa a memria a respeito da palavra-chave usada para aprender uma famlia silbica. Se para sistematizar o L, o professor partiu da palavra chave LATA la-le-li-lo-lu, ele lembra dessa lio e associa a slaba LA letra L, que era o foco de aprendizagem naquele momento. Quando o professor dita LA, ele escreve L, pois foi esse o smbolo que foi aprendido. Em escritas com significado, como textos espontneos ou comentrios, o mesmo equvoco, muitas vezes, no acontece. O erro, nesse caso, vem do prprio mtodo e no de uma deficincia do aprendiz. Vale ressaltar, nesse momento, a insistente afirmao de KVILEKVAL (2004) em relao gradao dos elementos lingsticos. Segundo ela, um princpio que no pode ser violado ensine somente um elemento novo por vez. Se a criana no tiver atingido todos os objetivos propostos para o nvel que esteja sendo trabalhado, de forma alguma ela poder questionar, desejar, precisar e muito menos usar um elemento ainda no exposto pelo programa. Considerando que os acentos so estudados apenas no quinto nvel, o aprendiz no poder escrever a palavra PO, por exemplo, pois essa apresenta uma

20

dificuldade (o til) considerada inadequada para sujeitos em incio do processo de aquisio da escrita. Tamanha desconsiderao pela capacidade da criana de interagir e expor sua verdade com as mais diferentes finalidades leva a encarar o programa como um adestramento, que pressupe aprendizes passivos e no-reflexivos acerca de algo to significativo quanto a linguagem escrita. Para elucidar o modo como encarado o percurso do aprendiz na aquisio da linguagem escrita, no quadro a seguir constam os objetivos previstos para o nvel 1:NVEL 1 Discriminao Visual 1. Nomeia todas as letras do alfabeto. Discriminao Auditiva 2. Demonstra habilidade para discernir mudanas no incio e no final dos sons das slabas bsicas: consoante/vogal/consoante/vogal CVCV. Padro de Leitura da Palavra 3. L, corretamente, todas as combinaes dos exerccios: CV; CVCV. 4. L palavras com acento agudo, em uma entonao correta. Soletrao Oral de Palavras Padro 5. Soletra, corretamente, todas as combinaes dos exerccios: CV - CVCV - CVCVCV, com todas as vogais. Percepo Visual-Motora Soletrao Escrita de Palavras Padro 6. Demonstra habilidade em escrever todas as combinaes dos exerccios CVCV das listas de palavras, ou mudando somente uma letra no exerccio: Troca-Letra. Escrita cursiva 7. Escreve todas as letras utilizadas nas combinaes dos exerccios: CVCV, usando, preferencialmente, a escrita cursiva Memria Auditiva Ditado de Sentenas 8. Revoca e escreve uma sentena simples, contendo somente um sujeito e um predicado, formada com as seguintes combinaes: a) vogal = V b) consoante/vogal = CV c) consoante/vogal/consoante/vogal = CVCV d) consoante/vogal/consoante/vogal/consoante/vogal = CVCVCV 9. Se necessrio, encontra e corrige os prprios erros, quando lhe dito, simplesmente, o nmero ou o tipo de erros da sentena. Pontuao e Letra Maiscula 10. Escreve com letra maiscula o comeo de uma sentena, e coloca um ponto final no fim dessa sentena. Leitura de Histrias 11. L histrias para este nvel, com 100% de preciso. 12. L, com 100% de exatido, qualquer histria que seja composta pelos mesmos elementos lingsticos das slabas-padro e palavras-padro. Para no fim de uma sentena. Compreenso da Prpria Leitura Oral 13. Reconta uma histria prpria deste nvel, em sua seqncia apropriada, e somente com uma necessidade ocasional de examin-la, enquanto esteja recontando a histria.

21

14. Segue e l, silenciosamente, a leitura que uma outra criana esteja fazendo em voz alta, de contedo prprio deste nvel. Linguagem oral 15. Responde a uma pergunta por meio de uma sentena completa. 16. Faz afirmaes empregando sentenas completas. Gramtica 17. Identifica verbos que exprimem ao em uma sentena, respondendo, corretamente, pergunta: o que a pessoa (ou o animal, etc.) est fazendo?

Para qualquer nvel do programa, a metodologia a mesma, o professor ouve a leitura do aluno, dita palavras e sentenas para que o aprendiz escreva, l ou solicita ao aluno que leia a histria prevista no material e faz questionamentos a respeito desse texto. Como tomamos por base o texto como manifestao significativa da lngua, preciso esclarecer que as histrias oferecidas no material do Panlexia so, em sua totalidade, pseudo narrativas, elaboradas com o objetivo de consolidar certos padres silbicos ou elementos lingsticos e, por isso, aproximam-se muito dos textos cartilhescos, sem sentido para o aprendiz. Segundo o mtodo, todavia, constituem-se como textos a partir dos quais se deva trabalhar a compreenso, leitora. No livro terico que orienta o profissional que dever trabalhar com a criana, h um roteiro para ensinar o professor a trabalhar com os textos propostos, conforme transcrito a seguir:

COMPREENSO

Pergunte criana a que se refere a histria, sem indagar nada de especfico. O seu objetivo ser constatar se a criana capaz de expressar alguma idia a respeito do contedo da histria. Se ela mostrar dificuldades no entendimento da histria, o professor dever pedir-lhe que releia a primeira frase e, ento, perguntar-lhe: "Se voc fosse desenhar uma figura para representar esta sentena, o que voc colocaria no desenho?" Em seguida, leia a prxima sentena e repita a mesma pergunta.

22

Histria A rata fala para a fada: - D a bala? A fada d a bala para a rata. A gata fala para a fada: - D a nata? A fada d a nata para a gata. A paca fala: D a jaca?

No pea criana para desenhar uma figura. Os exerccios que estamos fazendo tm o objetivo de ajudar o aluno a desenvolver a capacidade de criar figuras mentais durante o ato de ler. s vezes, poder ser necessrio ler duas sentenas para completar a idia de uma ao.

(KVILEKVAL, 2005. Livro 2: p. 28)

23

CAPTULO 2 DIAGNSTICO E ATENDIMENTO AO DISLXICO: A RELEVNCIA DADA AO CDIGO

J afirmamos que o programa Panlexia um mtodo proposto, primordialmente para atender indivduos portadores de algum distrbio de linguagem. O prefixo pan, segundo Pmela Kvilekval, significa todos e sugere que o mtodo capaz de sanar dificuldades de qualquer natureza em relao leitura e escrita. Ou, como a autora prefere: curar os aprendizes de qualquer tipo de dislexia. Em virtude dessa prerrogativa de cura, as reflexes propostas nesse captulo dizem respeito, de incio, (in)definio da patologia classificada e reconhecida como dislexia em sujeitos ainda no processo de aquisio da leitura e da escrita. Tendo por base os estudos de MASSI (2004), analisaremos algumas classificaes extradas de manuais mdicos que definem a dislexia como patologia reconhecida. Compreendendo que o diagnstico de dislexia confere ao aprendiz o rtulo de portador de um distrbio, na seqncia analisado o impacto gerado pelo estabelecimento, em laudo neurolgico, desse diagnstico na vida escolar do aprendiz, doravante includo, segundo a legislao nacional, no rol de portadores de deficincia (Artigo 208, III da Constituio Federal) ou de necessidades especiais (Artigo IV da Lei de Diretrizes e Bases da Educao). Ao tratar da educao especial, a Constituio Federal diz que o dever do Estado com a educao ser efetivado mediante a garantia de atendimento educacional especializado aos portadores de deficincia, preferencialmente na rede regular de ensino (Artigo 208, III, CF). A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional -9.394/96 -, no mesmo sentido, determina que o dever do estado com a educao escolar pblica ser

24

efetivado mediante a garantia de atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino. (Art. 4, LDB). no cumprimento dessa lei que surgem instituies e programas paralelos e de suporte s redes pblicas de ensino, voltados ao atendimento especializado desses aprendizes com necessidades especiais. Calcadas na compreenso de que a dificuldade na aquisio da linguagem um distrbio patolgico, as crianas so encaminhadas aos centros de atendimento para receber o tratamento adequado ao transtorno que portam e convivem, naquele espao, com crianas portadoras de deficincia mental, visual, auditiva, do aparelho fonador, entre outras. Os dislxicos fazem parte, inclusive, dos chamados alunos de incluso, que, segundo a legislao, justificam com sua presena uma reduo de 1 a 5 alunos na sala de aula regular que freqentam. A respeito da insero dos ditos dislxicos em programas de educao especial necessria uma breve reflexo acerca da incluso de alunos especiais em escolas regulares. Embora a legislao garanta o trabalho de respeito diversidade, baseado em adaptaes curriculares comprometidas com o acesso do aprendiz a uma educao de qualidade que respeite a singularidade de cada sujeito, na prtica esse processo parece ainda no estar consolidado na maioria das instituies educacionais. Esse fato se deve, em parte, definio que regulamenta a implantao dessa modalidade de ensino. A resoluo 02/2001 da Cmara de Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao (CNE CEB) define, em seu terceiro artigo, que:Por educao especial, modalidade da educao escolar, entende-se um processo educacional definido por uma proposta pedaggica que assegure recursos e servios educacionais especiais, organizados institucionalmente para apoiar, complementar, suplementar e, em alguns casos, substituir os servios educacionais comuns, de modo a garantir a educao escolar e promover o desenvolvimento das potencialidades dos educandos que apresentam necessidades

25

educacionais especiais, em todas as etapas e modalidades da educao bsica. Pargrafo nico. Os sistemas de ensino devem constituir e fazer funcionar um setor responsvel pela educao especial, dotado de recursos humanos, materiais e financeiros que viabilizem e dem sustentao ao processo de construo da educao inclusiva.

A definio da proposta pedaggica de que trata a lei fica a cargo da instituio educacional, de acordo com a concepo assumida por esta instituio. Torna-se necessrio, em virtude do pblico selecionado para esta pesquisa, abordar o fato de que na rede municipal de educao de Curitiba, as Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental classificam a dislexia como uma necessidade especial, evidenciando-a dentre as no vinculadas a uma causa orgnica especfica, conforme as palavras do prprio documento:Conforme a Resoluo CNE/CEB N. 02/2001, no seu art. 5., consideram-se estudantes com necessidades educacionais especiais os que, durante o processo educacional, apresentarem: I dificuldades acentuadas de aprendizagem ou limitaes no processo de desenvolvimento que dificultem o acompanhamento das atividades curriculares, compreendidas em dois grupos: a) aquelas no vinculadas a uma causa orgnica especfica; (dificuldades especficas, como a dislexia e disfunes correlatas. Problemas de ateno e de memria, problemas perceptivos, emocionais, cognitivos, psicolingsticos, psicomotores, motores, comportamentais e ainda ecolgicos, socioeconmicos, socioculturais, nutricionais e socioambientais); b) aquelas relacionadas a condies, disfunes, limitaes ou deficincias; (estudantes cegos e surdos, com condutas tpicas, sndromes e quadros psicolgicos, neurolgicos ou psiquitricos, e estudantes que apresentem caso grave de deficincia mental ou mltipla); II dificuldades de comunicao e sinalizao diferenciadas dos demais estudantes, demandando a utilizao de linguagens e cdigos aplicveis; III altas habilidades/superdotao, grande facilidade de aprendizagem que os leve a dominar rapidamente conceitos, procedimentos e atitudes.

Diretrizes Curriculares Curitiba.

Dois fatores fundamentais j abordados devem ser considerados: o primeiro diz respeito impreciso da definio de dislexia nos manuais mdicos em vigor, visto que, considerando-a uma necessidade especial no vinculada causa orgnica, o documento faz

26

referncia chamada dislexia do desenvolvimento, sobre a qual residem muitas dvidas acerca da origem e do tratamento; o segundo refere-se ao estabelecimento do diagnstico ao aprendiz, feito por base em testes que j tiveram sua eficcia contestada. A partir da anlise desses fatores preciso reiterar a idia de que, ao assumir que a dificuldade de aquisio de leitura e escrita um fenmeno patolgico, a responsabilidade sobre o fracasso nesse processo recai integralmente sobre o sujeito aprendiz, isentando a escola, o mtodo e o professor de toda e qualquer falha. Essa iseno de responsabilidade impede que os demais envolvidos reflitam e reorganizem a mediao a fim de atender adequadamente cada criana em sua individualidade. Dessa maneira, o laudo neurolgico de dislexia atribudo s crianas freqentadoras do primeiro segmento do ensino fundamental as insere, efetiva e legalmente, no mbito da educao especial, visto que, conforme preconiza a LDB, elas so portadoras de necessidades especiais e devem receber atendimento especializado. Manuais e instituies oficiais, ao estigmatizarem a criana como portadora de uma doena, isentam a instituio escolar do fracasso do aluno na aquisio da linguagem, atribuindo-a exclusivamente ao aprendiz. Nesse contexto, os ditos dislxicos, j que portadores de distrbio patolgico, se tornam alunos freqentadores de espaos destinados educao especial. Vale ressaltar que a perspectiva assumida nesse trabalho entende a aquisio/domnio da lngua a partir de seu uso efetivo, compreendendo que a relao entre sujeito e linguagem se constri e se modifica continuamente. Sob essa tica, no decorrer do processo de aquisio da modalidade escrita da lngua, a criana elabora e reelabora estratgias, muitas vezes episdicas, a respeito da representao do objeto escrito. Ou seja:

27

crianas em incio do processo de alfabetizao tendem a formular hipteses sobre a escrita que nem sempre se consolidam como fatos da lngua. Quando se assume a perspectiva interacionista de aprendizagem, um ponto evidente o que assume as dificuldades na aquisio da lngua, em primeira instncia, como uma construo hipottica de representao elaborada pelo aprendiz, que pode ser redirecionada pelo processo de mediao. Somente quando essa possibilidade estiver esgotada pode-se comear a pensar em alguma outra causa.

2. 1 DISLEXIA BASES QUE (NO) SUSTENTAM O DIAGNSTICO

A aplicao do mtodo Panlexia em alunos com laudo neurolgico de dislexia, exige, a princpio, algumas reflexes acerca da definio da patologia chamada de dislexia. Patologia porque, no CID Cdigo Internacional de Doenas, classificada sob o cdigo F81.0 e definida como:[...] um comprometimento especfico e significativo no desenvolvimento das habilidades de leitura, o qual no unicamente justificado por idade mental, problemas de acuidade visual ou por escolaridade inadequada. A habilidade de compreenso de leitura, o reconhecimento de palavras na leitura, a habilidade de leitura oral e o desempenho de tarefas que requerem leitura, podem estar todos afetados. Dificuldades para soletrar esto freqentemente associadas a transtorno especfico de leitura e muitas vezes permanecem na adolescncia mesmo depois de que algum progresso na leitura tenha sido feito. [...] Crianas com transtorno especfico da leitura, seguidamente tm uma histria de transtornos especficos no desenvolvimento da fala e linguagem, e uma avaliao abrangendo funcionamento corrente da linguagem muitas vezes revela dificuldades contemporneas sutis. Em adio falha acadmica, comparecimento escolar deficiente e problemas com ajustamento social so complicaes assduas, particularmente nos ltimos anos do primrio e secundrio. A condio encontrada em todas as linguagens conhecidas, mas h incerteza se a sua freqncia afetada ou no pela natureza da linguagem e do manuscrito. ORGANIZAO MUNDIAL DA SADE (1993:240)

Acerca da indefinio e inexistncia da dislexia, Giselle Massi (MASSI, 2004: 27; 28) destaca dois pontos bsicos nessa classificao: o primeiro diz respeito

28

especificidade do transtorno, evidenciada pela no vinculao da dislexia a quaisquer outros transtornos, como retardo mental, traumatismo cerebral, deficincia visual ou auditiva, entre outros. O segundo ponto relaciona-se ao fato de que a CID 10 aborda o termo dislexia para classificar tanto um transtorno adquirido, como o caso de adultos crebro lesados, quanto um de transtorno de desenvolvimento, adotando a terminologia dislexia do desenvolvimento para os casos de dificuldade no processo de aprendizagem da leitura e da escrita. Massi salienta o fato de que o uso da mesma nomenclatura dislexia para designar aspectos referentes escrita de crianas em processo de alfabetizao e para referir-se a adultos que apresentam, comprovadamente, uma alterao cortical, aponta para a crena de que questes que dizem respeito ao desenvolvimento escolar podem ser aceitas como transtornos.4 Desse modo, esse sistema oficial de classificao de doenas propaga a noo de que mecanismos prprios da aprendizagem da escrita podem ser patologizados. (MASSI, 2004:27) Deve ser ressaltada, ainda, a noo, apresentada na classificao do CID 10, de que transtornos especficos do desenvolvimento da fala, seguidamente, precedem as dificuldades na aquisio da leitura e escrita. Tal afirmao desconsidera a diferena na materializao das linguagens oral e escrita, fundamentalmente relevante para o processo de alfabetizao. Outro manual que merece ser citado o DSM IV (2000) Manual Diagnstico e Estatstico dos Distrbios Mentais, no qual a dislexia identificada pelo cdigo 315.00, inserida na seo sobre transtornos da aprendizagem. De acordo com o manual, a dislexia um transtorno que se caracteriza, essencialmente, pelo dficit substancial do rendimento

4

Sobre dislexia adquirida e dislexia do desenvolvimento, ver MASSI (2004; 10)

29

de leitura em relao idade cronolgica, inteligncia medida e escolaridade do indivduo. O dficit estabelecido por meio da aplicao de testes padronizados administrados individualmente, nos quais so avaliadas correo, velocidade e compreenso da leitura. Algumas consideraes se fazem necessrias a respeito do diagnstico proposto para caracterizao dficit. De incio, preciso considerar que o diagnstico de dislexia feito por excluso, o que significa que, se o aprendiz apresentar dficit na leitura e escrita sem que se tenha uma causa orgnica que justifique essa defasagem, ele pode ser considerado dislxico em potencial. No que tange a inteligncia medida, preciso ressaltar a inconsistncia apontada para os resultados desse tipo de aferio. MASSI, (2004:20) aponta alguns problemas em relao ao uso desses testes, como: a ineficcia para averiguar habilidades de indivduos pertencentes a grupos que tenham experincias culturais distintas s do grupo para o qual o teste foi organizado; o padro estabelecido para determinar o nvel intelectual normal, que exclui qualquer criana que esteja fora desse padro, considerando-a anormal, ainda que sem estabelecer uma linha clara entre normalidade e anormalidade e, ainda, as condies variveis fsicas e emocionais capazes de interferir no desempenho da criana submetida aos testes, que distorcem as habilidades avaliadas e geram resultados incompatveis com o potencial real do avaliado. As mesmas consideraes feitas aos resultados obtidos em testes de inteligncia podem ser aplicadas aos testes padronizados usados para avaliar correo, velocidade e compreenso da leitura. Ainda segundo o DSM IV, em indivduos com esse transtorno, a leitura oral caracterizada por distores, substituies ou omisses. Do mesmo modo, tanto na leitura em voz alta quanto na silenciosa, esses indivduos apresentam lentido e erros de compreenso. Ora, ao analisar essas caractersticas, possvel identificar fatores comuns

30

no incio do processo de alfabetizao. Consider-las como patologizantes incluir na lista de portadores de transtorno de linguagem uma parcela significativa dos sujeitos em incio do processo de aquisio da leitura e da escrita. semelhana dos manuais citados, a Associao Brasileira de Dislexia assume a definio estabelecida pela International Dyslexia Association IDA, que define dislexia, tambm, como um distrbio especfico da linguagem. Acrescentando o fato que apesar de submetida a instruo convencional, adequada inteligncia, oportunidade scio-cultural e no possuir distrbios cognitivos e sensoriais fundamentais, a criana falha no processo de aquisio da linguagem. Considerando a natureza subjetiva e particular do processo de alfabetizao , no mnimo, perigoso afirmar que a criana falha no processo de aquisio da linguagem. Dificuldades de naturezas diversas acontecem e so sanadas por meio de intervenes pontuais para a maioria dos aprendizes. Essas dificuldades podem no significar uma falha no processo, mas hipteses a respeito da linguagem escrita. A esse respeito, preciso analisar os ditos sintomas da dislexia. Afinal, em que se baseiam os especialistas para diagnosticarem esse distrbio em uma criana em fase escolar? Para restringir o foco de anlise, os sintomas aqui analisados so os citados no volume terico do programa Panlexia, que servem de base para o diagnstico dos alunos que so atendidos pelo mtodo. Cabe ressaltar que os sintomas elencados no material analisado coincidem com os estabelecidos por outras fontes, como IANHEZ E NICO (2002) e CUBA DOS SANTOS (1987). Pmela Kvilekval distingue cinco grupos de sintomas tpicos dos dislxicos: leitura, anlise fontica, ortografia, escrita e comportamento. Nesse trabalho sero

31

analisados com maior ateno os quatro primeiros, por estarem diretamente relacionados linguagem escrita. Em relao leitura, os sintomas apresentados so:1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. Com relao aos colegas de classe, l a um nvel muito mais baixo. No l por vontade prpria, ou sozinho. Consegue ler determinadas palavras por um tempo, depois as esquece. L ao contrrio. comea com a ltima letra troca a ordem das letras. (os-so, porto-pronto, prendo-perdo). No compreende bem aquilo que l. L em voz alta com pouca expresso e pouca entonao. Comete muitos erros com palavras curtas. Omite ou substitui palavras. Quando l palavras longas, no olha letra por letra, mas tenta adivinhar as palavras partindo somente de algumas letras. L apressadamente, errando, mas continuando a leitura ainda quando a frase no tem mais senso. L muito lentamente, com muita dificuldade, tentando pronunciar todas as letras, muitas vezes errando. Muitas vezes se perde na leitura. Auto corrige-se frequentemente. Erra com muita freqncia na ultima letra da palavra. Muitas vezes no l a primeira letra de uma frase.

Com base na perspectiva de que a lngua no se restringe ao cdigo, possvel questionar todas as caractersticas listadas como sintomas de uma patologia. Inicialmente, possvel observar que, exceo do 5 sintoma, todos dizem respeito exclusivamente leitura em voz alta. Nessa modalidade, os fatos de o aprendiz ler em volume mais baixo do que o dos colegas, no ler por vontade prpria e apresentar pouca expresso ou entonao na leitura em voz alta, so, segundo CAGLIARI (1989) dificuldades comuns no ajustamento do processo da fala para a leitura. O processo de produo da leitura prev habilidades lingsticas diferentes das que ocorrem na fala. Na fala espontnea a criana organiza seu prprio pensamento; j na leitura, ela precisa processar uma programao neurolingstica para falar algo que no pensou, durante um tempo que para ela longo, tendo como referncia os sinais que a escrita lhe proporciona. Para o autor, a conjuno desses fatores leva facilmente produo de uma fala mais vagarosa, podendo, se mal

32

controlada, produzir uma realizao fontica silabada, sem o ritmo, a entoao e outras caractersticas da fala espontnea (CAGLIARI, 1989: 162). Atribuir critrios de fala leitura, j no incio do processo de alfabetizao, no parece um parmetro adequado para diagnosticar sintomas patolgicos. O mesmo pode ser aplicado aos sintomas que dizem respeito velocidade da leitura. Ao estabelecer como caractersticas de um distrbio o fato de o aprendiz ler apressadamente, errando, mas continuando a leitura mesmo quando a frase no tem mais sentido; ou ler muito lentamente, com muita dificuldade, tentando pronunciar todas as letras, muitas vezes errando, ignora-se que para ler em voz alta necessrio passar pelas etapas normais de produo de sons da fala5, que acontecem naturalmente na fala espontnea, porm, na leitura, passam a ser controladas mais conscientemente pela criana para que possa execut-las bem. O controle consciente das etapas de produo sonora acontece durante certo perodo, de durao varivel para cada aprendiz, no incio do processo de aquisio da leitura. A fluncia e entonao adequadas surgem quando essa produo se torna to automtica e inconsciente quanto a fala, num processo naturalmente gradativo de aquisio da habilidade leitora. CAGLIARI (1998) evidencia que o excesso de preocupao em relao a esse controle gera na criana pssimos hbitos de leitura, como a soletrao, a deturpao fontica ou a falta de controle sobre o pensamento ao longo da leitura. Em virtude desse ltimo, muitas vezes, ao final da leitura, o aprendiz no consegue identificar o sentido do que leu, ou seja: preocupou-se excessivamente com a decodificao nos moldes formais aceitos e no dirigiu sua ateno para o aspecto semntico do texto.5

(...) mudar a respirao, acertar o ritmo, o acento e a entonao, atravs de uma montagem de slabas, grupos tonais etc., gerar uma corrente de ar, articular os rgos do aparelho fonador a nvel da laringe, da cavidade bucal, controlar a posio do vu palatino e a configurao dos lbios e a posio da mandbula. E tudo isso variando numa mdia de doze ajustamentos por segundo.(CAGLIARI, 1989: 162)

33

A respeito de esquecer palavras j dominadas pelo aprendiz, preciso reiterar que o desenvolvimento da habilidade da leitura no linear, nem cumulativo. Trata-se de um processo de idas e vindas, de formulaes, de novas adaptaes, de checagem de vrias hipteses. Dessa forma a criana, ao equivocar-se na leitura de um vocbulo com o qual j havia demonstrado familiaridade em situaes anteriores, no est evidenciando um retrocesso, pelo contrrio: ela demonstra que seu processo de desenvolvimento no estagnou, mas que ela continua elaborando e reelaborando hipteses a respeito da linguagem escrita. A omisso ou substituio de palavras j foi apontada por KATO (1997) como uma estratgia primria no processo de aquisio da leitura e escrita. Segundo os pesquisadores, ao deparar-se com uma palavra desconhecida, a criana tende a substitu-la por outra que julgue adequada ao contexto sinttico ou semntico. A despeito do objetivo da pesquisadora, questiona-se, nesse trabalho, o fato de que quando a criana substitui a palavra na tentativa de adequ-la ao contexto ela est usando uma estratgia que pressupe sentido para a leitura. Essa busca no pode, sobremaneira, ser considerada um erro, muito menos um sintoma de patologia. Nessa direo de busca de sentido, MASSINI-CAGLIARI (1999:138) sinaliza que o aluno que no l letra por letra de determinadas palavras, fazendo adivinhaes, pode estar centrado no significado do que l. O autor afirma que a palavra manifesta uma unidade de significado, ou seja, nas palavras da prpria autora: ele (o aluno) precisa chegar at a palavra para poder dizer o que est escrito. Perder-se na leitura e auto corrigir-se tambm parecem muito mais sintomas de compreenso do processo do que de patologia. Se o aprendiz, ao perceber que a manifestao oral no faz sentido, interrompe o processo de produo de fala e procura

34

corrigir-se, ele est buscando na leitura algo que j percebeu que lhe inerente: significado. CAGLIARI (1989) inclusive afirma que a gagueira e a hesitao, longe de ser um sintoma patolgico, podem ser manifestaes da busca de sentido para a leitura. O segundo e o terceiro grupos de sintomas de dislexia apresentados no material analisado esto categorizados como dificuldades de anlise fontica e de ortografia respectivamente. H impreciso e indefinio nessa categorizao, pois os sintomas descritos por vezes se repetem ou contradizem. A impresso obtida por meio da anlise dessas caractersticas leva a crer que existe a pretenso de qualificar todo e qualquer percalo na aquisio da leitura e da escrita como sintoma de dislexia. As caractersticas apresentadas por Kvilekval (2004), so:Anlise fontica: 1. 2. 3. 4. 5. Muitas vezes no consegue associar a letra ao som. Tem muito mais dificuldade de aprender os sons das vogais que o das consoantes. Muitas vezes no consegue silabar para pronunciar as palavras, pronuncia letra por letra. Apresenta muita dificuldade em aprender a ler e escrever os dgrafos. Confunde os sons sonoros surdos. Ex: t-d, f-v, p-b.

Ortografia: 1. 2. 3. 4. 5. Inverte as letras de todos os modos. Muda a seqncia das letras. Erra com mais freqncia nas vogais. No escreve todas as letras das palavras. Parece no ouvir os sons como so, pode escrever pemissista por pessimista, rado por rato, vafe por fave. 6. Sabe escrever foneticamente, mas erra os digramas (dgrafos). 7. No escreve o acento, a apstrofe e o ponto. 8. Escreve a por h. 9. No percebe a ausncia de uma letra numa palavra que tenha escrito. 10. No sabe se uma palavra ou se so duas. Ex: amame por a mame, asmos por as mos.

Quanto dificuldade na associao entre letra e som faz-se necessrio questionar qual a natureza da relao na qual o aluno apresenta dificuldade? Sobre esse aspecto, preciso, novamente, considerar a no-linearidade do processo de aquisio da linguagem escrita. CAGLIARI (1998) ressalta o fato de que os valores sonoros das letras so

35

estabelecidos em funo da ortografia e da fala dos dialetos de uma lngua. Isso significa que o alfabeto no um sistema criado para fazer transcrio fontica, pois est vinculado a normas ortogrficas e convenes do idioma. Para ilustrar, basta pensar nas diferentes possibilidades sonoras existentes na lngua portuguesa para a letra m: mala, tampa, bem. A classificao desse fenmeno como um sintoma patolgico parece revelar falta de clareza a respeito das diferenas existentes entre fonemas e letras. Afinal, fonemas so unidades sonoras e, portanto, dizem respeito linguagem oral. (MASSI, 2005:73) Em virtude dessa anlise possvel desconstruir a veracidade do sintoma de nmero seis no que diz respeito ortografia: sabe escrever foneticamente, mas erra os dgrafos. Esperar que o aprendiz escreva foneticamente esperar um equvoco. A dificuldade de associao entre letra e som, bem como a inverso, alterao de seqncia, omisso de letras e aglutinao de palavras na escrita, ao serem tomados como sintomas de um distrbio, contrariam a viso dialgica da linguagem. Sobre esses aspectos, comuns no incio do processo de alfabetizao, ABAURRE, MAYRINK SABINSON e FIAD (2003), j afirmaram se tratar de indcios intermedirios relacionados ao processo de aquisio da linguagem verbal escrita. O fato de um aluno escrever amame para a mame pode ser interpretado como um caso de juntura intervocabular, descrito por CAGLIARI (1989) e bem justificado pelo fato de o aprendiz estar refletindo na escrita os critrios usados para analisar a fala. A lngua portuguesa tonal, por isso um dos critrios que a criana usa para separar as palavras na escrita a mudana na entonao que o falante usa em sua pronncia. Para o autor, esse tipo de erro no pode significar uma dificuldade insupervel ou falta de capacidade do aluno, mas um episdio pertencente ao processo de aprendizagem que revela reflexo na maneira com que o aprendiz interpreta o sistema de escrita.

36

Em relao s inverses e omisses, ABAURRE (1999) defende a tese de que esses dados tm relao direta com a natureza da relao entre o sistema alfabtico de escrita e a hierarquia dos constituintes silbicos, essas inverses no podem ser tratadas como meros problemas ortogrficos. A autora, ao analisar a escrita de aprendizes que materializam, por exemplo, GADI para grande, SEPER para sempre, ENTORU para entrou, SETARGA para estragar, entre outros, conclui que:As crianas, ao iniciarem a aprendizagem da escrita alfabtica, comeam tambm a analisar a estrutura interna das slabas, reajustando suas representaes fonolgicas de forma a acomodar os constituintes das slabas e sua hierarquia. Tal procedimento de anlise reflete-se em suas escritas iniciais das slabas complexas. (ABAURRE, 1999:12)

Por isso, esses aspectos no denunciam um quadro patolgico, mas compem operaes cognitivas do sujeito sobre a linguagem escrita, no processo de aquisio da escrita. Segmentaes imprprias, inverses de letras ou slabas, omisses de caracteres grficos so fenmenos que permitem inferir a prpria efetivao da aprendizagem escrita por meio de reflexes e hipteses suscitadas pelo aprendiz e no um distrbio de aprendizagem. Voltando ao quadro sintomtico apresentado no material do Panlexia, a autora define que a criana que no consegue silabar, pronunciando letra por letra, portadora de dislexia. Ora, o contrrio j foi afirmado no que diz respeito leitura: o item 7 define como portador dessa patologia o aluno que no l letra por letra. Desse modo, o sujeito ser portador do distrbio se ler todas as letras e tambm se no ler. A esse respeito, j foi apontada a possibilidade de o aluno, ao no seguir literalmente, letra por letra, a escrita de uma palavra, estar centrado mais no significado do que na ortografia da palavra. A respeito de no conseguir silabar, ou no ater-se a letra por letra na leitura, CAGLIARI (1989) afirma que:

37

Se uma criana for introduzida ao processo de leitura (em voz alta) atravs de uma tcnica que a obrigue a processar a leitura por pequenas partes, acompanhando letras na escrita, fazendo com que cada pedao seja processado e falado como um bloco, o resultado ser uma leitura aos trancos e barrancos, muito diferente da fluncia normal de quem fala espontaneamente. (CAGLIARI, 1989: 164)

O autor, a esse respeito, afirma ainda que, num sistema de escrita como o da lngua portuguesa, esperar que um aprendiz leia encadeando slabas ou pequenos segmentos da fala, no compreender que, nesse sistema de escrita, letra e som no refletem uma relao de univocidade. Dessa forma, exigir que o aluno leia acompanhando os sons e relacionando-os s letras que v escritas contraria o processo natural de leitura, visto que nossa escrita por vezes sequer permite esse tipo de procedimento. Acreditar que esse acompanhamento literal necessrio e que sua ausncia seja indcio de um transtorno na aquisio da leitura , portanto, um contra-senso em relao ao entendimento de que o processo de decifrao de escrita e de programao da fala lida seja perpassado pelas muitas reflexes de que capaz o aprendiz nesse processo. Relativo anlise fontica, so caracterizados como portadores de distrbio, os aprendizes que confundem os sons sonoros surdos. De acordo com MASSI (2004), a inexistncia de dficit em relao a esses aspectos pode ser constatada a partir do fato de que os aprendizes da escrita no ensurdecem todos os sons que articulam, nem trocam todas as consoantes sonoras por surdas. As inverses ocorrem apenas com as consoantes fricativas e oclusivas, por estarem organizadas em pares mnimos cujo nico trao distintivo a sonoridade. Considerando a hiptese de que o aluno que escreve CATO por gato manifeste essa transposio tambm na oralidade, pode-se considerar a possibilidade de, novamente, estar havendo uma confuso entre ortografia e transcrio fontica. Esse tipo de fenmeno no revela dficit por parte do aluno, segundo CAGLIARI (1998:278) assim como h pessoas que falam tchia e escrevem TIA, do mesmo modo quem fala

38

pla pode aprender a escrever BOLA. No mesmo sentido, o autor aponta o fato de que, se o aluno, na oralidade, no apresenta tais trocas, ele pode, tambm, estar seguindo rigorosamente as orientaes que recebeu: escrever observando atentamente os sons da fala. Como sussurra as apalavras para recuperar a grafia que precisa usar, identifica em seu sussurro o som surdo e no o sonoro, o que o leva a escrever FACA por vaca. A dificuldade, nesse caso, parece muito mais pertinente a quem ensina do que a quem aprende. Em resumo, a maioria dos erros que o Panlexia prope-se a sanar tratam-se de episdios naturais de quem est no processo de alfabetizao. Isso no significa que nenhuma interveno precise ser feita, mas restringir a aquisio da escrita manipulao de fragmentos isolados e fora de contexto no garante o domnio sequer, da conveno da escrita de letras e slabas em situaes de uso real e significativo da lngua.

39

CAPTULO 3 ALFABETIZAO: CONCEPES E METODOLOGIAS

preciso, nesse momento, esclarecer que consideramos a aquisio e domnio da linguagem escrita a partir de seu uso efetivo, entendendo que a relao entre sujeito e linguagem se constitui e se modifica continuamente. Dessa maneira, compreendemos alfabetizao como um processo capaz de formar um indivduo competente para discernir, decidir e atuar sobre sua prpria aprendizagem e sobre a realidade. De acordo com GREGOLIN (1991) necessrio assumir uma concepo de alfabetizao atrelada a uma concepo de linguagem, que leve em conta no apenas o aspecto material da lngua, mas tambm toda a gama de significados resultantes do uso da linguagem nas interaes sociais. Com a inteno de elucidar os aspectos que nos levam a analisar o mtodo Panlexia e estabelecer seus princpios para a alfabetizao, nesse captulo retomaremos os estudos de CAGLIARI (1989; 1998), um dos primeiros a estabelecer, fundamentalmente, duas correntes metodolgicas distintas e adversas no embasamento de atividades e procedimentos para alfabetizao, que foram chamadas pelo autor de mtodo voltado para o ensino e mtodo voltado para a aprendizagem. Discutiremos esses dois mtodos, conforme a terminologia de Cagliari (1998) estabelecendo, diante de cada uma das concepes: as tcnicas; a necessidade (ou no) de pr-requisito; as diferentes concepes de memorizao; a hierarquizao dos aspectos da linguagem e as possibilidades avaliativas para o processo de alfabetizao.

40

Em seguida, por se perceber uma aproximao entre o Panlexia e os mtodos cartilhescos, sero feitas algumas consideraes a respeito da cartilha e das implicaes advindas de seu uso e da perpetuao de metodologias por ela preconizadas. Em contrapartida, ser traado um panorama terico sobre as reflexes contemporneas a respeito da aquisio da linguagem, dos aspectos metodolgicos envolvidos no processo e do texto como produto inicial e final para a alfabetizao, a fim de estabelecer os parmetros que norteiam a pesquisa para o presente trabalho.

3.1 CAGLIARI E O B-B-BI-B-BU: UMA REFLEXO (AINDA) NECESSRIA

As concepes de linguagem que embasam prticas bastante comuns nas salas de aula no s influenciam como determinam as prticas de ensino, fixao da aprendizagem e avaliao. As implicaes decorrentes do uso de um mtodo voltado para o ensino em contraposio ao uso de um mtodo voltado para a aprendizagem j foram abordadas por CAGLIARI (Alfabetizando sem o ba-b-bi-b-bu. Scipione: 1998). Segundo o autor, no mtodo voltado para o ensino, chamado doravante de mtodo 1, a situao inicial do aprendiz considerada uma pgina em branco, remetendo ao antigo conceito de tabula rasa. O planejamento feito pelo professor interpretado como ideal para todos os alunos, sem idiossincrasias e, desta maneira, o mestre acredita estar dando chances iguais para todos, visto que comeou do comeo e de maneira igual para todos. Como o processo parte de um hipottico zero, as informaes sobre a lngua vo sendo acrescentadas, uma aps a outra e cabe ao aprendiz, gradativamente, domin-las. O contedo seguinte, estabelecido pelo seu grau de complexidade, s ser ensinado quando

41

o aprendiz demonstrar ter dominado o contedo anterior. Segundo o autor, a base desse mtodo , pois, o conhecimento j dominado. Cagliari ressalta, nessa abordagem, a importncia da memorizao, ao afirmar que, no mtodo 1, decorar fundamental, sobretudo decorar de modo a repetir um modelo dado e que ser cobrado como expectativa de resposta (1998:45). Segundo o autor, a memorizao deve fazer parte do processo de alfabetizao como parmetro para reflexo acerca dos conhecimentos sobre a lngua escrita que o aprendiz necessita para fazer as escolhas adequadas. Por meio da memorizao, o aprendiz reflete acerca do conhecimento lingstico que j construiu e seleciona, dentre seu acervo, qual fato da linguagem ser usado. J o exerccio vazio de repetio controlada, preconizado pelo mtodo 1, no considerado uma prtica escolar significativa e de aprendizagem efetiva, visto que apenas revela a apropriao de um modelo j dominado. O material do programa Panlexia serve como exemplo de um desses modelos, j que o aprendiz submetido mesma lio at que seja capaz de demonstrar que apropriou-se, com perfeio, daquele elemento da linguagem. Para que ele se aproprie desse elemento (que pode ser um padro silbico, ou um sinal diacrtico), o instrutor dever fazer exatamente um exerccio vazio de repetio controlada, quantas vezes forem necessrias, da leitura e escrita das listas de slabas e pseudo-palavras estabelecidas em cada um dos livros do material. Ora, se esse tipo de apropriao no pode ser considerado uma prtica significativa de aprendizagem efetiva, no h motivo para que as atividades sejam exaustivamente repetidas at que se tenha certeza dessa apropriao. Na mesma direo, salientamos outro ponto bastante relevante no que diz respeito apropriao do conhecimento: a hierarquizao do saber lingstico. natural que a

42

gradao das tarefas seja feita de maneira a aumentar o nvel de dificuldade dos fatos da linguagem abordados. A questo : que critrios determinam o que mais difcil dentre um conjunto de conhecimentos em que nenhum ainda dominado? Segundo CAGLIARI (1998: 47)A questo verdadeira reside no fato de a maioria dos professores e a totalidade das cartilhas considerarem, por exemplo, que a letra X intrinsecamente mais difcil do que a letra A. Isso acontece porque partem do pressuposto que escrever palavras em que ocorre a letra X mais difcil do que escrever palavras em que ocorre a letra A. Ledo engano. Na verdade, esses professores esto levando para a prtica pedaggica algo que muito peculiar a eles, e no ao processo de alfabetizao. Para uma criana que no sabe ler nem escrever, qualquer palavra igualmente difcil, no h nenhuma palavra fcil.

No mtodo 1, o estabelecimento do mais fcil e do mais difcil, no entanto, parece no interferir na avaliao que se faz da aprendizagem do aluno. A hierarquizao do ensino exige que o aprendiz domine o que foi ensinado antes de dar o prximo passo, por isso necessrio que se verifique constantemente se o aluno realmente domina o que deveria dominar segundo o planejamento do professor. Se o aluno, porventura, percebe algum mecanismo da linguagem que o professor ainda no tenha ensinado sistematicamente e fizer uso desse mecanismo de maneira adequada, no importa. J se ele no tiver se apropriado de algum ponto j passado, ter que repetir a aprendizagem at domin-lo. Isso pode significar repetir um ano inteiro de contato com a linguagem, voltando quele ponto em que se considera ser o aluno uma pgina em branco. O acerto considerado como algo natural e previsvel, portanto so os erros que estabelecem quanto o aluno j domina. Quando o aluno domina um determinado conhecimento, necessrio, segundo o mtodo 1, que se faa imediatamente a fixao da aprendizagem, com o objetivo de colar o contedo dominado na mente do aluno, para que fique sempre consciente na

43

cabea do aprendiz. Para tanto, usa-se a repetio, muitas vezes por meio de cpias extensas e extenuantes daquilo que j foi trabalhado. Quando o aluno comete erros, no lhe dada nenhuma explicao a respeito do porqu errou, da mesma maneira que no lhe explicado por que acertou. Considera-se suficiente e necessrio acertar, independente da causa desse acerto. O aprendiz precisa reproduzir o modelo, pois isso lhe d a certeza de que, seguindo as instrues, passo a passo, ir chegar ao resultado esperado. Esse processo de tentativa-e-erro no prev nenhum impasse, ou seja, se o aluno tiver alguma dvida ou imprevisto, fora do que foi efetivamente ensinado pelo professor, no ter soluo para sua dificuldade, pois deve saber tudo e somente o que foi copiado. Se o aprendiz seguir os modelos propostos, seguramente ter um bom resultado dentro da perspectiva mecanicista estabelecida por esse tipo de mtodo. Se tentar ultrapassar algum dos domnios do j ensinado, poder perder-se e no conseguir retomar o fio condutor da aquisio suave e tranqila daquilo que o professor programa e ensina. O mtodo 1 , na verdade, um excelente meio de adestramento e em geral funciona bem com animais que precisam dominar certas habilidades para desempenhar certas tarefas, agindo sempre de um nico e mesmo modo. Porm, as crianas so racionais e pensam o tempo todo, mesmo quando a escola se esquece de que so seres humanos e, portanto, escravos da prpria racionalidade. (CAGLIARI, 1998:51) exatamente esse o encaminhamento proposto pelo mtodo Panlexia, que no promove a reflexo. A reflexo, inerente racionalidade, o principal obstculo ao sucesso do mtodo 1 e, por conseqncia, do Panlexia, pois conduz os alunos por caminhos que no foram previamente preparados pelo professor. Como os alunos usam sua prpria reflexo,

44

normalmente no se saem bem quando submetidos a esse tipo de mtodo. Para eles, o sucesso seria mais facilmente conquistado com a utilizao do mtodo 2, ou mtodo voltado para a aprendizagem que ser tratado a seguir. justamente a reflexo o cerne do processo de alfabetizao para o mtodo 2. Ao contrrio do mtodo 1, que centra suas prticas no condicionamento, o mtodo 2 tem como pressuposto o fato de que o aprendiz um ser racional que assimila conhecimentos desde o momento em que nasce. A linguagem usada intencionalmente com o objetivo de interagir com o mundo. Dessa maneira, cada aprendiz tem uma caminhada diferente, pois cada um tem sua histria de vida e seus conhecimentos. Conhecer essa histria de vida e conhecimentos , segundo o autor, fundamental para uma prtica educativa que respeite o aprendiz como ser humano em sua plenitude. A melhor maneira de conhecer as diferentes realidades individuais dos aprendizes por meio da interao. O professor deve interagir com seus alunos, pois isso lhe permitir analisar os conhecimentos e habilidades dos alunos, bem como o comportamento de cada um em relao linguagem. CAGLIARI (1998:53-54) destaca:

O processo de ensino, segundo o mtodo 2, levar em conta o fato de que cada aluno diferente do outro e que, portanto, o ensino no poder ser somente coletivo, mas dever em grande parte estar voltado para as peculiaridades de cada aluno ou de grupos de alunos que necessitem do mesmo tipo de assistncia por parte do professor. Isso no significa que no haver somente aulas particulares. A aula coletiva, mas numa sala de aula podem acontecer concomitantemente coisas diferentes, sobretudo em relao s atividades realizadas pelos alunos. O professor dever dizer coisas de interesse comum, voltando-se para toda a classe, e outras de interesse particular, nos momentos adequados, ensinando uma questo ou outra a um ou mais alunos, de maneira especial. (p.5354)

Dessa maneira, a situao inicial dos aprendizes vista, de modo contrrio ao que proposto no mtodo 1 e no Panlexia, como plena e diversa, o que gera classes naturalmente

45

heterogneas, j que cada aluno traz algum conhecimento diferente. Cada aluno tem sua histria e essa histria levada em considerao no processo de alfabetizao proposto pelo mtodo 2. O professor, nesse contexto, deve auxiliar o aprendiz a construir seu conhecimento, por meio de explicaes que transmitam as informaes adequadas. A interferncia do professor, no entanto, no deve restringir-se ao contedo programtico, mas abranger tambm trabalhos que os alunos fazem por iniciativa prpria. Desse modo, o processo de ensino interfere efetivamente no processo de aprendizagem, pois quando o aluno comete erros ou tem dificuldade para realizar alguma atividade, o professor explica as causas que geraram esse desacerto. O aluno, ao receber uma explicao a respeito do que fez ou deixou de fazer, constri um novo conhecimento e, por meio da reflexo, est progredindo no processo de alfabetizao. Explicaes adequadas, nesse sentido, so as que abordam o fato que gerou dificuldade de maneira diferente. Enquanto no mtodo 1, o erro do aluno visto como um sinal da necessidade de retrocesso, no mtodo 2, encarado como uma possibilidade de avano, pois abrir um novo caminho para o raciocnio reflexivo do aprendiz, j que o professor ter que abordar o conhecimento que gerou o problema sob um ngulo diferente, seguindo caminhos alternativos. Dessa maneira, sustenta-se que, no mtodo 2, a aquisio de conhecimentos depende fundamentalmente de que o aluno entenda o que ele precisa e quer saber, por meio de explicaes adequadas dadas em momentos oportunos. Quanto maior for a abrangncia e qualidade desse entendimento, maior e melhor ser o processo de aprendizagem. Quanto ao conceito de entendimento, bem define CAGLIARI (1998) que entender ter um conjunto de informaes que expliquem a natureza, a funo e os usos do conhecimento, e destaca que o entendimento no adquirido linear nem automaticamente, pelo simples fato de se ter ouvido algum

46

falar do assunto, ainda que as palavras sejam familiares e o texto, compreensvel e correto. O autor justifica ainda que cada um reage de uma maneira individual construo do conhecimento, cada um tem um caminho prprio, cada um atribui valores prprios, muito individuais, aos elementos do conhecimento que constri no processo de aprendizagem (1998:54). justamente no processo de construo do conhecimento que se pode perceber a concepo de aprendizagem subjacente ao mtodo 2: o aprendiz no s aprende o conhecimento, mas aprende a aprender. O aprendiz deve arriscar-se no mundo do saber e procurar a maneira adequada de dar o prximo passo, levando em conta as explicaes que recebeu e entendeu. Quando o aluno realmente aprende, ele capaz de generalizar o processo de modo a ir, gradativamente, substituindo a mediao do professor pela sua prpria independncia e competncia para buscar as solues e construir seu prprio saber. Espaos para esse tipo de atividade devem ser proporcionados pela escola para que o aluno produza trabalhos espontneos, realize atividades a partir de sua prpria iniciativa. Mesmo um trabalho com objetivos definidos, como fazer um cartaz ou escrever uma carta reclamando da destruio das florestas ou da poluio das cidades, pode ser realizado de maneira a permitir que a expresso individual de cada aluno encontre liberdade de realizao. (CAGLIARI, 1998:57) Mas, como avaliar um processo que no foi minuciosamente planejado e programado, como acontece no mtodo 1? Depende da concepo de avaliao. No mtodo 2, avaliar significa realizar um estudo interpretativo daquilo que o aluno realizou, com o objetivo de verificar no apenas o que est certo e o que est errado, mas descobrir por que est certo e por que est errado. O principal objetivo da avaliao, nesse caso, analisar as decises que o aprendiz tomou para fazer o que fez da maneira que fez. Dessa

47

maneira, a avaliao deixa de ser circunstancial, localizada, e se torna cumulativa, exigindo comparao com o que j foi realizado pelo aluno. Portanto, constatar o erro, quantificar e dar nota j no so suficientes para traar um panorama do processo no qual o aluno est envolvido. preciso que os trabalhos dos alunos sejam analisados para estudar o caminho que cada aprendiz est percorrendo para construir seus conhecimentos e saber quais as hipteses que ele elabora a respeito do contedo estudado. A reflexo, que a palavra-chave para o mtodo 2, mostra-se no somente nas descobertas e na construo do aprendizado, mas tambm na consolidao da aprendizagem. Nem tudo o que o aprendiz entende ou sabe fica ao nvel da conscincia o tempo todo. Em algumas situaes, so necessrios estmulos externos para operar adequadamente com certos conhecimentos. Esse processo tambm saber, pois memorizar todas as etapas e procedimentos operacionais um exerccio de tornar conscientes fatos j entendidos e memorizados. Cagliari afirma que existe uma memorizao que intrnseca ao prprio ato de entender e aprender, e existe outra memorizao que simplesmente um ato de tornar consciente uma srie de fatos do conhecimento. No processo de aquisio da linguagem, os dois tipos de memorizao so importantes, mas o autor ressalta que o que no faz sentido a memorizao como repetio de algo, sem conhecimento nem entendimento do que est sendo feito, a no ser do prprio ato de repetir. (CAGLIARI, 1998:59) A reflexo sobre o que ensinado, a construo das descobertas, a atribuio de significados; nada disso contemplado no mtodo Panlexia.

48