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UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO MESTRADO EM EDUCAO

VALDIRA GOMES VALADARES

CONCEPES FUNDANTES NO DISCURSO DOS PROFESSORES E CONSTRUO DE VALORES PEDAGGICOS NUM CURSO DE PEDAGOGIA

So Bernardo do Campo 2010

FICHA CATALOGRFICAV23c Valadares, Valdira Gomes Concepes fundantes no discurso dos professores e construo de valores pedaggicos num curso de Pedagogia / Valdira Gomes Valadares. 2010. 119 f. Dissertao (Mestrado em Educao) --Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de So Paulo, So Bernardo do Campo, 2010. Orientao: Elydio dos Santos Neto. 1. Valores educacionais 2. Professores Formao profissional 3. Freire, Paulo, 1921-1997 Crtica e interpretao I. Ttulo. CDD 374.012

VALDIRA GOMES VALADARES

CONCEPES FUNDANTES NO DISCURSO DOS PROFESSORES E CONSTRUO DE VALORES PEDAGGICOS NUM CURSO DE PEDAGOGIA

Dissertao apresentada em cumprimento parcial s exigncias do Programa de Ps Graduao da Universidade Metodista de So Paulo, para obteno de Grau de Mestre. Linha de Pesquisa: Formao de Educadores. Orientador: Prof. Dr. Elydio dos Santos Neto.

So Bernardo do Campo 2010

Ao meu amigo e marido Antonio Ruzza, pela presena marcante.

AGRADECIMENTOS

Em especial ao Prof. Dr. Elydio dos Santos Neto, pela f que instaurou, antes do dilogo, o rigor e a humildade dedicados a esta pesquisa. Aos integrantes do corpo docente, que contriburam para com as tentativas de satisfazer minha curiosidade pelos saberes necessrios docncia.

RESUMO

Esta pesquisa surge da minha preocupao sobre os valores pedaggicos no ensino superior: quais so, quais os seus fundamentos filosficos, como so concebidos e aplicados na prtica docente e especificamente na formao de professores em um curso de Pedagogia. Os conhecimentos, saber-fazer, mtodos e habilidades que so mobilizados diariamente, nas salas de aula, com o fim de formar outros professores, tambm so partes desta busca. O referencial fundamenta-se nas concepes de Paulo Freire sobre valores pedaggicos e sobre educao, a partir da sua viso antropolgica, gnosiolgica e poltica do ser humano e de uma sociedade mais justa e equilibrada. O objetivo freiriano uma educao libertadora que supere as contradies entre opressores e oprimidos, para evitar, por meio da educao, que elas sejam mantidas ou resolvidas a partir de uma soluo individual ou por meios violentos. Somente um conjunto de valores pedaggicos bem assimilados e praticados, por parte dos docentes e daqueles que participam do processo educativo, permitem a superao da opresso: dilogo, humildade, f nos homens, pensar crtico, tica, amor. A aceitao e realizao desses valores permitiro no somente melhorar a educao em si, mas a sociedade como um todo. A pesquisa inclui reflexes sobre o ensino brasileiro e a qualidade dos professores com relao ao agir na formao e na sua prpria transformao individual como seres crticos, ao usar os valores pedaggicos objeto do pensamento de Freire. Como instrumentos metodolgicos, foram utilizados: leitura de textos e artigos de Paulo Freire e de outros comentadores e educadores brasileiros e estrangeiros; questionrios fechados que permitiram coletar dados sobre o clima e a cultura organizacional e verificar que a educao nacional ainda est presa a estruturas histricas tradicionais, as quais se manifestam em contedos e metodologias que no resolvem a crise educacional do nosso pas. Esses questionrios foram aplicados a alguns professores, escolhidos por amostragem, do curso de Pedagogia de uma instituio superior em So Paulo. Os resultados desta pesquisa apontam que as opinies dos professores entrevistados revelam um enfoque pouco participativo. Em alguns aspectos, eles demonstram que no h o hbito de dilogo sobre os problemas educacionais, como tambm no h abertura para medidas inovadoras que poderiam contribuir para com a qualidade do ensino e aprendizado.

Isso demonstra o abismo entre o discurso e a prtica docente colaborando para a falta de inspirao e de conscincia crtica que todo profissional deve possuir, como valor pedaggico.

Palavras-chave: Dilogo, tica, Formao, Paulo Freire, Pedagogia e Valores.

AbstractThis research highlights my concern about pedagogical values in higher education: their nature, their philosophical foundations, how they are conceived and applied to teaching, or more specifically, to teacher formation in a pedagogy course. The various kinds of knowledge, methods and abilities in the classroom are also an essential part of the research. One major focus refers to Paulo Freires conceptions about pedagogical values and education, derived from an anthropological, gnosiological and political perspective of the human being and of a more humane society. Freire attaches importance to freedom-oriented education which is destined to minimize the contrast between the oppressed and oppressors and which discards individualistic solutions or angry responses. In this sense, only with the endurance of those who favor sound pedagogical values will oppression lose its strength, and will interaction, humbleness, critical thinking and ethics lay the groundwork for education and society. The research includes reflections on teaching in Brazil and how its excellence, in the light of ongoing transformation, unveils Freires invaluable contributions. The following methodological tools were applied to the research: the reading of texts and articles by Paulo Freire, and of other Brazilian and foreign authors; questionnaires completed by some teachers which reveal to what extent education in Brazil is tradition-bound. The results of the research indicate that education-related issues are not explicitly addressed, which widens a substantial gap between theory and practice and inhibits critical thinking.

Key words: interaction, ethics, formation, Paulo Freire, pedagogy, values

SUMRIO

INTRODUO _____________________________________________________ 12 CAPTULO I - FUNDAMENTAO DOS VALORES HUMANOS E PEDAGGICOS _________________________________________________________________ 19 1.1 Definies ____________________________________________________ 19 1.2. O que a pedagogia? __________________________________________ 26 1.3. Uma concepo de valores pedaggicos. ___________________________ 32 CAPITULO II - CONCEPES FUNDANTES DE PAULO FREIRE E VALORES QUE DA DECORREM ______________________________________________ 40 2.1. Minha leitura da Pedagogia do oprimido ____________________________ 40 2.1.1. A contradio entre opressores e oprimidos: superao possvel, segundo Paulo Freire. ___________________________________________________ 42 2.1.2. A situao concreta de opresso e os opressores _________________ 48 2.1.3. A situao concreta de opresso e os oprimidos __________________ 50 2.1.4. Ningum liberta ningum, ningum se liberta sozinho: os homens se libertam em comunho.___________________________________________ 51 2.1.5. A concepo "bancria" da educao como instrumento da opresso: pressupostos e crtica. ___________________________________________ 51 2.2. As concepes de Paulo Freire ___________________________________ 52 2.2.1 Concepo antropolgica. ____________________________________ 52 2.2.2. A concepo gnosiolgica. ___________________________________ 54 2.2.3. A concepo poltica. _______________________________________ 55 2.2.4. Concepo de educao. ____________________________________ 56 2.2.5. Os valores pedaggicos de Paulo Freire ________________________ 62 2.2.6. Consideraes sobre os valores freirianos _______________________ 72 CAPTULO III - UM BREVE HISTRICO DA EDUCAO BRASILEIRA E DO CURSO DE PEDAGOGIA NO BRASIL __________________________________ 74 3.1. A educao brasileira __________________________________________ 74 3. 2 Um breve histrico do curso de Pedagogia no Brasil __________________ 75 3.3. O curso de Pedagogia investigado ________________________________ 82 3.3.1. A Histria do curso investigado ________________________________ 82 3.3.2. Perfil do professor do curso __________________________________ 83 3.3.3. O projeto poltico pedaggico do curso investigado: anlise documental.83 CAPTULO IV - O CAMINHO DA PESQUISA E ANLISE DOS DADOS _______ 89 4.1 Questionrio Exploratrio ________________________________________ 89 4.2 Anlise documental dos dados luz das referncias tericas.____________ 90 4.2.1. Leitura sobre o curso analisado. _______________________________ 90 4.2.2. Leitura sobre os dados colhidos a partir do questionrio exploratrio. __ 90 4.3. Respondendo pergunta desta pesquisa. _________________________ 101 CONSIDERAES FINAIS. _________________________________________ 103 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ___________________________________ 105 ANEXOS ________________________________________________________ 109

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INTRODUOPrimeiramente, compartilho informaes sobre minha vida ou, simplesmente, singularidades do meu percurso profissional at chegar docncia. Entendo que, na inveno de si, que uma busca muito ampla para apreendermos arqueolgicamente1 nossos smbolos, no devemos nos limitar ao cumprimento de um roteiro ou ceder inclinao de escrever uma autobiografia. Simone de Beauvoir, desde uma perspectiva existencialista, afirma que ningum nasce mulher, mas torna-se mulher. Vejo assim a docncia, que historicamente foi destinada ao gnero feminino: ningum nasce professora, mas torna-se professora. Para ilustrar meu percurso at o mestrado, retorno, rememoro e revejo a cidade de So Francisco, no estado de Minas Gerais, onde nasci e que hoje faz parte da minha identidade como docente. A histria de vida das pessoas est intimamente ligada ou relacionada com as caractersticas de identidade ou at mesmo com a escolha da profisso. Mas tambm exige que o indivduo esteja atento melhor dizendo, que saiba ler a realidade para suas escolhas. Ns seres humanos, da mesma forma que estamos submetidos s novidades da histria tambm fazemos nossas escolhas, at mesmo os oprimidos. O que vai variar? Poder ser o resultado de sua formao desde a infncia que agir modificando em conjunto as condies concretas e o grau de conscincia de si. O trabalho biogrfico nos permite ampliar o olhar docente no sentido de se olhar para si prprio. Acrescento que, se voc conhecedor de si mesmo, certamente contribuir no conhecimento do outro. Gustav Jung, em seus vrios escritos de pesquisa, sempre afirmou que o profissional s vai com o "cliente" at onde este j foi; portanto, se o professor faz releituras de sua trajetria, estar se "retotalizando",2 segundo Paulo Freire. Acrescento ainda que a retomada, na ps-graduao, deste mergulho interior e saudvel no fcil de ser feita e, em alguns casos, exige enfrentar a tendncia que muitos de ns temos em fugir de ns mesmos. Vivemos num tipo de sociedade que nos acostumou a certo tipo de individualismo que termina por favorecer uma leitura reducionista da realidade. S mergulhamos neste universo subjetivo quando estamos adoecidos e foram esgotados a maioria dos recursos mais comuns e o uso

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Arqueologicamente no sentido de "escavar" a vida, buscar origens e sentidos anteriores. Ver, adiante, a discusso do conceito de "retotalizao" de Paulo Freire.

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das plulas da felicidade3. Estamos treinados a olhar o outro, mas no a partir de ns, pois entendemos que o outro no uma dimenso de ns e de vrios "eus". Vejo como um hbito aprendido, dissociado do exerccio reflexivo, porque muitas vezes os homens nem se percebem cidados de uma mesma sociedade. "A conscincia do mundo e a conscincia de si crescem juntas e em razo direta; uma a luz interior da outra, uma comprometida com a outra" (FREIRE, 2005, p. 15). uma viso tradicional que nos leva a erros, a comportamentos, no adequados em torno do problema da docncia, exigindo novas formar de ser no mundo como professor, suas posturas, etc. Trato deste tema no primeiro captulo deste texto. So partes das patologias modernas: a dificuldade de se conhecer, o medo do desconhecido. Podemos pensar do ponto de vista do pensamento simples e complexo tratado por Morin (MORIN, apud AGUIAR, 2005, p. 24) e compreender o paradigma de pensamento, usando aqui a histria de vida. Retomando a questo da minha histria docente, fui criada num espao abundante. Minha av costumava dizer que tnhamos fartura das coisas. Muita liberdade, mas tambm muita regra hora de cuidar dos animais, principalmente debulhar o milho para as galinhas; hora de buscar gua no rio, vrias idas at abastecer homens e animais; depois, hora da brincadeira, isso antes do perodo escolar, e que se repetia nas frias. Era adorvel a convivncia no campo. Em dezembro de 2008, retornei a So Francisco, por conta do mestrado que em algumas disciplinas influenciaram de forma grandiosa a retomada, revivncia da trajetria escolar, etc. Foi um modo de "retotalizar" minhas lembranas, das escolas da cidade, que naquela poca eram grandes. Eram por demais grandiosas, pois cumpriram a misso de preparar para a vida prtica uma pliade de jovens que se projetaram e prosperam na vida pblica como servidores da terra de So Francisco; outros esto pelas grandes capitais do Pas ou pelo mundo. Lembro-me da sensao do primeiro contato com a escola. Ocasio em que meu pai, o Sr. Waldemar, vendeu as terras para morar na cidade, pois os filhos, que eram um grande nmero (12), precisavam aprender a ler e a escrever, porque ele s frequentara a escola por seis meses. Avisou que eu estava matriculada. Nossa casa ficava a uma quadra do Grupo Escolar Coelho Neto (cujo prdio ainda hoje est muito bem conservado o mais bonito da cidade, at por causa de seus3

Medicamentos cientificamente indicados pela medicina.

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aspectos arquitetnicos), inaugurado em 30 de junho de 1934. Sua primeira diretora foi dona Alice Mendona, senhora muito sria. Seu primeiro corpo docente era formado por mulheres, as normalistas, d. Osvaldina Gonalves de Mendona, a estagiria d. Hilda Guimares Pinto, as senhoras Carmenia Castro Maria Eunicia Gomes, Graziela Pereira (minha professora) e Emilia Augusta, professora de artes manuais, dentre outras tantas. De acordo com o dr. Braziliano Brs, ex-prefeito da cidade, j falecido, d. Alice foi muito dedicada e amiga dos alunos4. O relato acima um recuo a 1966. Vale lembrar que, nesse perodo de estudos at o ginsio, correspondente ao atual Ensino Fundamental, minha vida era baseada em estudar e brincar muito. J adulta, com quase 18 anos, terminado o Ensino Mdio, senti que a cidade de So Francisco estava pequena para mim, no atendia as minhas necessidades existenciais, minhas angstias. Nesta poca meu pai comprou uma televiso, que veio de outra cidade, Montes Claros. Foi uma festa, porque todos os vizinhos tinham entrada livre para os programas transmitidos enfim, tnhamos mais um que fazer com a chegada desde ilustre aparelho. Nas minhas reflexes adolescentes, conclui que deveria aproveitar o fato de que, na cidade de So Paulo, j viviam parentes, e vir para c. Vim e aqui estou. Processo de adaptao: aprender andar na cidade, entender o porqu de tantos prdios, tanta gente, fazer passeios de metr, bom demais. Trabalhar, outra necessidade; fui telefonista, depois auxiliar de tesouraria. Cresci um pouco mais e me casei. Tive trs filhos, fiquei viva e junto com a viuvez veio a necessidade de trabalhar mais, dar conta da responsabilidade familiar. Fiz concurso pblico na Prefeitura Municipal de So Paulo, onde trabalho desde 1982. Neste novo universo que a sade, de novo vi-me desejosa de estudar e fiz o curso tcnico de Radiologia Mdica. Trabalhava de noite no Hospital Municipal do Jabaquara e durante o dia nos laboratrios de radiologia do Hospital das Clnicas, mais precisamente na Radioterapia e no Hospital do Cncer. Na Radiologia, a carga horria de quatro horas e 48 minutos por dia, o que permitia que eu trabalhasse durante o dia em mais de um local. Difcil mais necessrio. Profisso que me satisfez por alguns anos, at ser convidada por uma amiga para dar aulas em um curso para tcnicos em Radiologia em um Colgio que se localiza na avenida Brigadeiro Luiz Antonio; de pronto aceitei, e para minha surpresa, me vi de frente com vrias4

Esta obra ser relanada at dezembro de 2009, como informa o filho do autor, meu amigo dr. Petrnio Braz.

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indagaes sobre o ser professor, a ao. Curiosamente, eu no me fazia estas perguntas sobre o ser profissional tcnico. Eram tantas dvidas; geralmente recorria a algum colega, que sempre me dizia: "Bobagem! Voc vai conseguir. Eles no sabem nada, e qualquer coisa que disser ser suficiente". Isso doa na minha alma, pois pensava: "Ser que os meus professores pensavam assim de mim?" No ficava satisfeita. Buscava respostas nos congressos da categoria e na literatura voltada para a formao tcnica. Percebi que o discurso dos colegas no era adequado e para o que eu desejava para a sociedade; isto , nos laboratrios, precisavam de pessoas com bom senso, humanizadas, no profissionais que repetiam os "posicionamentos" 5, falas muito tcnicas. Havia, no meu entendimento, uma lacuna imensa, a necessidade de formar pessoas humildes para respeitar, que entendessem a importncia do dilogo no grupo, na execuo da tarefa, para que os clientes no ficassem to ansiosos na sala de exames, crticos, autnomos e, sobretudo, humanizadas. Passei a verificar que os alunos s se preocupavam em aprender como posicionar e qual a tcnica (cargas de radiao) era suficiente para obter uma boa imagem do local a ser investigado, da patologia, etc. Comecei a introduzir nas minhas aulas o tema da humanizao da radiologia, tentei incentivar a pensar em como se poderia ser melhor. Decidi fazer um curso superior, e escolhi a Psicologia. Longos cinco anos, mas muito ricos. Fui convidada para dar aulas nos cursos tcnicos de Radiologia Mdica, Podologia e Segurana do Trabalho do Senac, em So Paulo. Nesta fase, eu j tinha mais conhecimentos, e meu pensamento complexo ajudava a conectar o que poderia ser necessrio a estes futuros tcnicos, no sentido de humanizar o ambiente de trabalho, mas principalmente de serem humanos. Ainda hoje dou aulas para estes cursos, esporadicamente. Decidi fazer alguns cursos de ps-graduao, dentre os quais o de Docncia para o Ensino Superior. Hoje continuo angustiada com as questes relacionadas docncia, principalmente com as posturas profissionais. Talvez esta minha angstia sobre as relaes humanas seja uma justificativa para cursar o mestrado na linha de Formao de Educadores, na busca de entender o universo docente e melhorar minha postura docente, at por receio de repetir comportamentos antiprofissionais com os quais no concordo, a partir de minhas concepes fundantes de ser humano, em seus aspectos antropolgico,5

Linguagem usada na literatura, posio anatmica para realizar os exames de radiologia(raio x), mamografia, etc.

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gnosiolgico e poltico. As perguntas que procuro responder nesta dissertao so: Quais as concepes fundantes do discurso dos professores de num curso de Pedagogia? Como estas concepes fundamentam os valores pedaggicos? Dito em outras palavras: defendendo a proposta de Freire de uma docncia humanizadora, libertadora e construtiva6 a partir das suas concepes fundantes que criam certos valores pedaggicos, desejamos fazer uma comparao entre esse iderio (como deveria ser) e a realidade de um curso atual de Pedagogia (como ). Desejamos verificar se, apesar das dificuldades objetivas do nosso pas no qual a educao apresenta uma srie de problemas de soluo no imediata, os professores conseguem pr em prtica um conjunto de valores pedaggicos. O quadro terico est constitudo por Paulo Freire (2009, 2006, 2004, 1997, 1996, 1992, 1979, 1977), Adolfo Snchez Vzquez (2004), Ives de La Taille e Cortella (2005). Escolhi tais educadores e pesquisadores porque acreditam que a educao um dos mais potentes meios de construo de multiplicadores de conscincias crticas; acredito que o critico ou pode ser tico. A partir desta crena, estou em constante reconstruo. Por ser uma educadora em construo, sinto-me na obrigao de encontrar meios de desenvolver habilidades que auxiliem na compreenso e na transformao da sociedade de que fao parte. Paulo Freire, mais precisamente o seu pensamento pedaggico, foi apresentado, por meio das leituras na disciplina Educao e Realidade Brasileira do Mestrado em Educao, ministrada pelo professor doutor Elydio dos Santos Neto, e tambm as ideias e as aspiraes sociais de outros educadores brasileiros, grandes figuras do cenrio educacional. Devemos insistir em discusses e pesquisas para melhorar a qualidade do ensino, a qualidade dos professores, a relao da educao com o individuo a ser educado, na condio de educador, com relao a como agir na formao de educadores ou profissionais de outras reas. Para justificar, vejo a escola como um mundo especfico, ela vale por sua especificidade, ela permita abrir janelas sobre o espao e sobre o tempo, para entender a comunidade, a sociedade. Como? A partir da relao que se tem com o outro na sala, no dilogo, na reflexo, etc. Encontro em Paulo Freire, mais precisamente na sua obra Pedagogia do oprimido, luzes para uma prtica mais reflexiva, que permitem verificar na reflexo qual a nossa relao com o saber, a didtica, novas vises das questes valorativas no processo de6

O significado desses termos ser esclarecido ao longo da nossa dissertao.

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educar para formar. La Taille e Cortella tambm focalizam de forma especfica os problemas contemporneos de sala de aula e que vo ao encontro do pensamento de Paulo Freire. Em Adolfo Sanchez Vzquez encontro as fundamentaes sobre os valores ticos, suas razes e a importncia do conhecimento das relaes entre os indivduos ou entre eles e a comunidade e a escola. Percebo ainda, dentro da minha inquietao, que a cada nova matria de jornal ou atividade de simpsios, aparece a questo da urgncia de reavaliar a ao docente. O problema maior a ser esclarecido como melhorar a docncia, no sentido que seja humanizadora, libertadora e construtiva, conforme objetivo de Paulo Freire. Vejo a tarefa da docncia mais sensvel, ela exige conhecimentos acerca de variaes entre o que ministrado e a forma, e como percebida pelo aluno. Escapa um aspecto que me parece alm da formao nos fundamentos da educao que : o ideal de professor construdo nas atuais reflexes. De alguma forma deve estimular a associao entre o exerccio docente e a busca permanente de um slido repertrio cultural, que faam parte das preocupaes do professor para oferecer aos alunos um leque de relaes mais rico dando sentido a certo modo de pensar por meio de anlises de seu contexto, expressos na literatura, no teatro, o cinema e as artes. introduzir a interdisciplinaridade de forma mais simples e natural (Revista Educao, n. 150, de Novembro de 2009, p. 30-31). No Captulo I, "Valores, pedagogia e valores pedaggicos", tratamos de questes sobre a moral, como construda pelo indivduo, como a sociedade a entende. Trata-se de um tema tratado por vrios pesquisadores, socilogos, como um termmetro das transformaes sociais: a crise com a educao e crise na educao. Consideramos o professor preparado para atender s crescentes exigncias do ensino? O Captulo II, cujo ttulo "Concepes fundamentais de Paulo Freire e valores que da decorrem", uma leitura das concepes que o autor fez sobre os problemas humanos e, consequentemente, educacionais: as concepes,

antropolgica, gnosiolgica, poltica.

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No Captulo III, est construdo o perfil do curso investigado numa Instituio privada, o perfil dos professores, o projeto poltico pedaggico e a metodologia da pesquisa. No captulo IV, ser visto o caminho da pesquisa e a anlise dos dados: procedimentos tais como a anlise documental do projeto poltico pedaggico e questionrio exploratrio.

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CAPTULO IFUNDAMENTAO DOS VALORES HUMANOS E PEDAGGICOS

1.1 Definies

Estamos discutindo e falando de "valores": este um dos problemas humanos que mais gera controvrsias. Quando tomamos esta questo para fundamentar os valores humanos (que aqui definiremos a partir de pesquisadores da rea da educao), valores que a rigor chamaremos de "morais", isso diz respeito tambm aos deveres.7 Todo ser humano dotado de conscincia moral que o leva a se empenhar para distinguir o bem do mal no contexto em que vive; a moral surge realmente quando o homem passa a fazer parte de agrupamentos, isto , quando surgem as primeiras sociedades. A educao, por sua vez, sempre objetivou formar o homem a partir de necessidades das suas pocas. As tenses, que se expressam atravs dos meios de comunicao de massas e at por comportamentos agressivos no sistema educacional, so indicadores, ou termmetros, das transformaes sociais e das novas exigncias que se apresentam necessrias na formao de novas geraes de professores. Nesse contexto, o que necessrio? Para responder a esta questo, recorramos ao conceito de re-totalizao de Paulo Freire. Vivemos e experimentamos momentos em que um tipo de formao, de profisso ou de necessidade se encontra em agonia e outro comea a surgir, isto , os valores e objetivos da sociedade (ocidental) encontram-se em estado de transio. Quais so especificamente esses valores? Uma das crenas

fundamentais dos tempos modernos, desde o Renascimento, o valor da competio individual. Que sentido ter a educao se no estiver voltada para a promoo do homem? Os rumos que a cincia e a tecnologia tomam podem favorecer o individualismo moderno: vista antes como um bem, por facilitar nossa vida e dar explicaes racionais a certas dvidas, a cincia hoje encarada comoEsta confuso pode ser resolvida com o esclarecimento dos dois temas: moral um conjunto de normas que regulam o comportamento do homem em sociedade, e estas normas so adquiridas pela educao, pela tradio e tambm no cotidiano.7

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algo possivelmente perigoso por parte de grupos ambientalistas ou instituies religiosas, temerosos de que o conhecimento cientfico possa violar a natureza e suas leis naturais ou divinas. Nietzsche, em fins do sculo XIX, observou que a cincia estava se transformando numa indstria; ele temia que o grande avano tcnico do homem, sem progresso paralelo no campo da tica e da

autocompreenso, conduzisse ao niilismo. Ele apontou o que acontecia quando uma sociedade perdia seu eixo e props a soluo, que seria encontrar um novo centro de apoio, o que ele chamou "reavaliao" ou "transvaliao" de todos os valores e proclamou: "Eis a frmula para o ato de derradeira auto-anlise da humanidade" (MAY, 2002, p. 46). Seria a perda do sentido de valor e dignidade do ser humano, pois o homem estava sendo absorvido pela multido e vivendo segundo sua "moralidade de escravo". Em Marx, o diagnstico que o homem moderno estava sendo "desumanizado". A velocidade tecnolgica exige homens com "velocidade" de pensar, para acompanhar todas as mudanas, mas isso pode provocar a extino de valores humanos relacionados a atos como a prudncia, a bondade, a compreenso do outro. O estudo da problemtica dos valores denominado axiologia, um termo derivado do grego axia e que significa "valor". conveniente, antes de tudo, esclarecer, pelo menos em termos gerais, o sentido do conceito de valor, apontando tambm algumas das dificuldades que lhe so inerentes. Segundo Vzquez (2004, p. 142), os valores tm caractersticas de significado subjetivo e objetivo. Vamos, em primeiro lugar, examinar a subjetividade. Um valor subjetivo, porque as coisas so mais ou menos estimadas ou desejadas por um sujeito (ou, mais comumente, por um grupo de sujeitos determinados), que lhes atribui (ou atribuem) valores. Podemos tambm pensar "valor" como a importncia que se d a algo ou algum. O valor atribudo pelo homem, que valora o objeto, alm das qualidades objetivas que o objeto possui. Por exemplo, a prata tem propriedades e, consequentemente, valores fsico-naturais que s podem ser objetivos. Entretanto, cada sujeito pode atribuir-lhe um valor pessoal, valorizando sua beleza, ou sua utilidade ou ainda a riqueza que fornece. A prata pode ser valorizada na sua dupla existncia: como objeto natural e como objeto natural humano ou humanizado. Como objeto natural, simplesmente um fragmento da natureza ou da fabricao. Por exemplo: para seu fabricante, um lpis da marca Pentel n 9, usado para escrever algo especial, tem apenas valor objetivo determinado pelo que , por sua estrutura e suas propriedades

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essenciais. J para o usurio, o lpis pode ter uma relao de conhecimento, no mais um simples objeto natural, que o cientista se abstm de apreciar. O objeto, criado pelo homem, que atrai o homem e estabelece uma relao que no meramente cognitiva, j tem uma srie de propriedades novas, como, por exemplo, a de servir para escrever uma tese de doutorado, como foi o caso do lpis. O lpis no s existe no estado natural (como objeto para o fabricante), mas tambm como objeto dotado de certas propriedades (estticas, prtico-utilitrias ou econmicas), que s possui quando posto numa relao especial com o homem. Assim, adquire um valor na medida em que seu modo natural de existncia se humaniza, assumindo propriedades que no existem no objeto em si, isto , margem da relao com o homem; so propriedades que podemos chamar tambm de humanas (VZQUEZ, 2004, p. 138), porque o objeto que as possui s existe como tal em relao ao homem vale no como objeto em si, mas para o homem. Em suma, o objeto valioso no pode existir sem certa relao com um sujeito nem independentemente das propriedades naturais, sensveis e fsicas que sustentam o seu valor. um valor que satisfaz a necessidade humana. Retomemos a questo do objetivismo e do subjetivismo axiolgicos, para esboar a unilateralidade existente nestas posies. Em tese, o subjetivismo axiolgico reduz o valor do objeto a um estado psquico subjetivo, a uma vivncia pessoal, porque, para existir, necessita da existncia de determinadas reaes psquicas do sujeito individual, com as quais se identifica. No desejado porque vale porque satisfaz uma necessidade , vale porque o desejamos ou necessitamos. O subjetivismo, portanto, transfere o valor do objeto para o sujeito e o faz depender do modo como a presena do objeto me afeta (a beleza do objeto, por exemplo). No existe um objeto valioso sem um sujeito. O objetivismo axiolgico, segundo Vzquez (2004, p.143), tem

antecedentes na doutrina metafsica de Plato sobre as ideias, na qual o belo e o bom existem idealmente como entidades intemporais, imutveis e absolutas, subsistentes em si e por si, independentemente da relao que o homem possa manter com tais entidades ao conhec-las. Plato defendia uma concepo absoluta dos valores, porque estes existiriam em forma de ideias que deveriam ser conhecidas pelo homem aps longo processo dialtico, o qual poderia durar vrias vidas. Assim, o filsofo grego se posicionava sobre aquilo que hoje chamado de relativismo. Em nosso tempo, o objetivismo pode ser caracterizado por duas concepes.

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A primeira concepo a de que os valores objetivos constituem um reino particular, so absolutos, imutveis e incondicionados; esto numa relao especial com as coisas reais, que chamamos de bens; so independentes, isto , para existir no precisam se encarnar nas coisas reais; dependem, por outro lado, do valor que representam, so valiosos apenas quando concretizam um valor (dado pelo homem); so imutveis, no mudam com o tempo ou com a sociedade. Somente os bens nos quais os valores se realizam mudam. Os valores tm uma existncia real: seu modo de existir maneira das ideias platnicas, ideal e marca a separao entre valor que no muda e bem que muda. A segunda concepo axiolgica sobre a objetividade a da interdependncia dos valores com respeito a todo sujeito. Os valores existem em si e por si, independentemente da relao com o homem como sujeito; no precisam ser postos em relao com os homens e nem serem relacionado com as coisas; o homem pode manter diversas relaes com os valores, percebendo-os e os captando, mas os valores existem em si. Os valores continuam os mesmos, independentemente da compreenso do sujeito. Essa concepo marca a separao entre valor que no muda e existncia humana que muda. Vzquez (2004, p. 143-146) faz crticas s duas concepes de objetivismo axiolgico, porque ainda que o objetivismo atribua ao valor um carter absoluto, intemporal e incondicionado, separado dos bens ou coisas valiosas, no podemos deixar de reconhecer que o bem no poderia existir como tal sem a avaliao do homem, que est inserido em determinada poca e cultura no universal. A ateno que cabe na questo de existncia de um valor que, se o valor no for encarnado, ou seja, se no for concretizado em uma coisa real, suscitar problemas que, se no resolvidos, levam a consequncias absurdas. Por exemplo, a solidariedade transforma-se em algo vazio e abstrato, se no existir um sujeito que lhe d um valor e determine os meios de realiz-la na prtica. A solidariedade concebida de forma diferente em culturas diferentes; pode consistir na esmola ou na tentativa de real transformao da sociedade ou na criao de mecanismos que impeam a permanncia do sujeito na situao de precisar de solidariedade. Em suma, a solidariedade no existe com ideia absoluta, de tipo platnico ou cristo. Concluindo, no existe uma regra nica que objetive os valores, no mbito do objetivismo ou subjetivismo. No avaliam, no existem em si independentes; existem para o sujeito no no sentido de individuo, mas de sujeito

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num contexto social, para uma sociedade, porque o homem um ser histrico-social que cria valores e bens na sua poca, que, por sua vez, dependem das transformaes que este mesmo homem provoca. "Os valores so, pois, criaes humanas, e s existem e se realizam no homem e pelo homem" (VZQUEZ, 2004, p. 146). Os valores, em determinada sociedade, tm sua objetividade, de forma especial, no seu tempo real; no podem ser reduzidos apenas ao "individual", mas devem ser transcendentes isto , ir alm do indivduo e do grupo , no ultrapassando, porm, os limites do homem como ser histrico-social, pois so produzidos na relao do homem com o homem. Tomemos agora os rumos dos valores, numa qualificao de significados da moral. Vimos que os valores existem em atos e como produtos humanos, que tm significados humanos, sem atribuio moral. No dilogo de Mrio Sergio Cortella e Yves de La Taille, no livro Nos labirintos da moral (CORTELLA & LA TAILLE, 2005, p. 7), h a seguinte questo: por que, neste momento, estamos to preocupados com os valores? Os dois debatedores enfrentam temas que esto relacionados com as questes de comportamentos humanos, na realidade a "moral", os "valores humanos". A rigor tudo valor, mas aqui, a preocupao no sentido de revelar o mal-estar moral. Quando tratamos dos valores, temos presentes a utilidade, a bondade, a beleza, etc., assim como os plos negativos, como maldade, injustia, inutilidade (VZQUEZ, 2004, p. 136). Para Vzquez, os objetos adquirem valor se tm uma relao especial com o homem, integrando-se no seu mundo como coisas humanas ou humanizadas. Em suma, os valores no existem em si e por si: existem unicamente em um mundo social, So os valores que se concretizam nas coisas reais, no substrato material. Atrs dos sistemas polticos e econmicos e tambm dos movimentos dos seres humanos, individuais ou coletivos , encontraremos sempre valores que influenciam os comportamentos. No to difcil perceber o quanto a competio, o autoritarismo, o poder centralizado, o individualismo, o egosmo, a ganncia, a apropriao e a acumulao so valores que permeiam o modo de vida de muitos de ns e geram a situao em que vivemos. Conscientemente ou no, os rumos de nossa civilizao carecem de direcionamento. Nos bastidores da educao, em qualquer conversa com educadores, verificamos a preocupao ou mais especificamente uma queixa, que, segundo Cortella & La Taille (2005, p. 8), estaria ligada a aspectos disciplinares, no com a

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formao do cidado. Quem tem que se preocupar com esta formao? Para estes autores, a moral est relacionada a um dever, que implica respeito coletividade, universalidade, isto , pertence esfera do coletivo, enquanto a tica est mais relacionada com a felicidade. Portanto o "mal-estar tico" que La Taille discute com Cortella a falta de sentido de uma pessoa, entendendo como sentido um significado e uma direo. Isto , na sociedade, o homem deve dar um significado s coisas que vivencia e, ao mesmo tempo, deve ter uma direo, um rumo na sua vida. Sem esse sentido, as coisas em geral perdem valor, podendo levar a situaes extremas como o crime ou o suicdio (CORTELLA & LA TAILLE, 2005, p. 11). Como outros pensadores da educao, os dois debatedores acreditam que a educao e a escola precisaro se debruar sobre as questes da crise dos valores no para responder s queixas morais de pais em relao a comportamentos de filhos, mas para se preocupar com a responsabilidade que cada pai, cada professor, cada cidado tem com todas as questes ligadas formao de um ser "Humano". Trata-se de questes que podemos tomar como graves e que sempre foram tratadas pela filosofia. Neste momento, preciso organizar programas educativos, pensar nas questes existenciais do homem e nos dramticos problemas contemporneos, como o alcoolismo, a drogadio, as aflies de um mundo "desencantado". O desencantamento observado por Cortella & La Taille no sentido de que no sonhamos mais, no acreditamos mais no ser humano, na capacidade de ser amigo, estar junto, compartilhar. Lembro-me de que o professor Srgio Cortella, em uma de suas palestras, "Novos Paradigmas da Educao" (ATTA mdia, s/data), afirmou: "Vivemos momentos graves, e h necessidade de momentos grvidos na educao", com a possibilidade de dar luz um re-olhar, rever e alterar os modos e as prticas. A leviandade com que tratado o tema das questes dos valores humanos desemboca nos receiturios de como se comportar, ter sucesso, passar na entrevista, etc., isto , um lado ruim, por ser, digamos, consumista e interesseiro. A negatividade por trazer solues s prticas para o dia a dia, numa sociedade que precisa ser educada numa prtica de reflexo de seus costumes e valores. A

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felicidade no tem mais o sentido de estado de esprito, como era no mundo grego, de estar em paz consigo mesmo.8 No nosso cotidiano, existe a "felicidade individual", que consiste em realizar certos objetivos e por isso desaparece a qualquer momento. algo volvel, uma fratura. A felicidade algo to complexo de se definir e de se construir que, com frequncia, o tipo de sociedade no qual vivemos faz gerar em torno dela uma grande confuso. Por exemplo: hoje, no se propem limites busca da felicidade pessoal. H uma distoro do conceito, um vcio de interpretao, um apodrecimento de alguns valores, como a dignidade e a capacidade de convivncia. Tudo isso pode gerar depresso. No dilogo entre Cortella e La Taille, foram privilegiadas as discusses sobre individualidade, coletividade, esperana,

indisciplina, honra, lealdade, moral e sentido da vida. So temas que, segundo os autores, no podemos deixar de lado. Seria tarefa inadivel da escola lidar com a formao moral e tica dos cidados. No s tarefa da escola, mas tarefa prioritria da escola. Apontam tambm a importncia de saber lidar com o sentido da vida, sob pena de, em primeiro lugar, deixar "apodrecer" a cabea (CORTELLA & LA TAILLE, 2005, p. 22) e, em segundo, impedir a estruturao, a construo da dignidade coletiva. A escola ocupa um lugar central, embora hoje seja colocada a reboque da sociedade. No sculo XX, grandes educadores, como Freinet, Montessori, Paulo Freire e outros, faziam cumprir este papel, com honra e responsabilidade. A escola organizada por adultos, dirigida por adultos, pensada por adultos. Mas eles esto dispostos, eles sabem que um dever deles, para eles? Sobre os problemas educacionais, podemos adiantar que eles trazem uma "queixa" por parte das pessoas comuns, usando as palavras de La Taille (CORTELLA & LA TAILLE, 2005, p. 8), de apontar para problemas de comportamento e de disciplina, e no de falta de formao de um aluno que futuramente ter um papel na sociedade. Para mexer na "gravidez", cabe olhar em volta: a partir do conhecimento da realidade humana que podemos entender o problema dos valores.

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Conceito de eudaimonia: em Aristteles. Significa possuir um "bom esprito", que faz com que o indivduo aja corretamente e virtuosamente na sociedade e por isso se sinta feliz a vida inteira e no de forma passageira (tica a Nicmaco).

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1.2. O que a pedagogia?Brinquei tanto "aos professores" quando era adolescente que, quando dei as minhas primeiras aulas num curso de orientao na Escola Osvaldo Cruz, no Recife, tive dificuldade em distinguir o professor imaginrio do professor real e sentia-me feliz em ambos os mundos (FREIRE, apud BOCK, 2006, p. 272).

Afinal: por que, em vrios momentos da histria, devemos responder a esse tipo de perguntas? Objetivamente, apresentaremos elementos que permitem situar no contexto atual, a discusso sobre a pedagogia. Podemos pensar o pedagogo como um especialista no aquele que se forma no curso de Pedagogia, mas o profissional que, de forma intencional e crtica, se torna um "pedagogo". No temos inteno de descrever os cursos de Pedagogia, os campos de atuao, as leis, etc. Iniciaremos com leituras de educadores que debatem com criticismo sobre a formao de pedagogos e professores, em relao a legislaes vigentes e realidade nas organizaes formadoras. Por coerncia epistemolgica, em nossa pesquisa fica explicitado o entendimento de pedagogia na mesma concepo de Paulo Freire, visto que este educador tem uma compreenso ou sentido de interdisciplinaridade em suas "pedagogias". Retomando a pergunta: o que queremos dizer com "pedagogia"? Em toda a literatura existente, esse termo se presta a vrios significados, conforme a tradio, a epistemologia e a cultura. H uma diversidade de significados. Na Europa, segundo LIBNEO (2006, p. 59), a pedagogia reconhecida como cincia investigativa; em outros lugares, como didtica. No Brasil, recorrente a identificao com o curso de Pedagogia, isto , pedagogo quem recebe uma formao nesse curso, para ser professor ou exercer alguma outra funo para as sries escolares iniciais. O autor anota que a pedagogia, no Brasil, est ainda ligada ao exerccio pedaggico ou formao de professores, que ele chama de "pedagogos em sentido estrito", mas no considerada campo cientifico, com o qual se poderia falar de "pedagogia em sentido amplo". Para entender o termo "pedagogia", cabe fazer uma reviso terminolgica ou um rpido passeio histrico pela educao. Para compreender o que pedagogia, preciso explicitar o seu objeto de estudo, a educao ou prtica educativa (PIMENTA, 2006, p. 64).

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Entendemos ser a educao, um conjunto de processos, influncias, estruturas e aes que ocorrem nas relaes humanas, isto , nos grupos, no meio social e natural, visando formao do ser humano. Os gregos, desde os mais remotos tempos de sua histria, usavam o substantivo pais, paid para designar "criana". medida que suas formaes sociais foram se estratificando em classes, surgiram os escravos, a quem os cidados atenienses abastados confiavam suas crianas. Baseada na ginstica, na msica e na gramtica, a antiga educao, a partir do sculo V a.C, deixa de ser suficiente, e exige-se mais: o objetivo no s de formar o homem, mas tambm o cidado. Surge a Paideia.9 Esta no consiste apenas em transmitir conhecimentos, que na poca eram evidentemente escassos, mas em preparar a criana para cultuar certos valores, como a participao poltica, o patriotismo, o bem comum e outras virtudes cvicas. Em certos perodos, era uma responsabilidade da famlia; em outros, do Estado (essa era, por exemplo, a sugesto de Plato). A palavra composta "paidagogs" era uma ntida combinao do genitivo paids (da criana) com a forma agogs (que conduz, condutor). O "pedagogo" era, portanto, o "condutor de crianas" ou o "acompanhante de crianas" enfim, uma espcie de guardio, protetor, mestre (LIBNEO, 2006, p. 62). Hoje, a pedagogia uma rea que busca refletir, ordenar e sistematizar os princpios e mtodos utilizados no ensino, alm dos problemas de ordem educacional. A pedagogia no se limita s prticas escolares, mas abrange outras prticas educativas, que se encontram fora da escola: na famlia, nos movimentos sociais e civis, no lugar de trabalho, etc. O especialista que intervm em todas essas reas denomina-se pedagogo. uma concepo restrita aquela segundo a qual a pedagogia a parte normativa do conjunto de saberes que precisamos adquirir e manter para desenvolver uma boa educao. Esse termo, tomado em um sentido estrito, designa um conjunto de normas a serem seguidas em relao educao. "Que que devemos fazer e que instrumentos didticos devemos usar para nossa educao?" esta a pergunta que norteia toda e qualquer corrente pedaggica, e o que tambm deve estar na mente do pedagogo. Devemos tomar a palavra "pedagogia" em um sentido lato. Trata-se do campo de conhecimentos que abriga no s o que chamamos de "saberes da rea da educao", mas tambm a9

Paideia, na sua origem e acepo comum, indicava o tipo de formao da criana (pais) mais idneo para faz-la crescer e se tornar homem. Para os filsofos, assume pouco a pouco o significado de formao, de perfeio espiritual, ou seja, de formao do homem no seu mais alto valor. Assim, podese dizer que a Paideia, entendida ao modo grego, a formao da perfeio humana.

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prtica cultural, a ser realizada em ambientes diferentes. Mas vale lembrar que, para Freire, havia outras pedagogias como aquela dos dominantes, na qual a educao, privilgio de uma minoria, seria exercida para a dominao e a pedagogia do oprimido, que precisa ser desenvolvida pela maioria desprovida de condies, por meio da prtica da liberdade, com um trabalho que transforme uma realidade difcil e precria. Em sua opinio, a educao deve buscar uma insero na realidade, um contato analtico com o existente, para comprov-lo, para viv-lo e viv-lo plenamente, praticamente: "Neste sentido que teorizar contemplar. No no sentido distorcido que lhe damos, de oposio realidade" (FREIRE, 2009, p. 101).10 Verifica-se que a pedagogia, para Paulo Freire, tem toda uma

problematizao na dialgica, com participao ativa, do professor e do aluno, e considerando a experincia de vida dos alunos para construo dos conhecimentos. As exposies do aluno ajudam a formar redes de conhecimentos, pois existe a interao entre o cientifico e o popular, entre o terico e o prtico. Freire aponta as matrizes necessrias para conquistar ou chegar prxis atravs do dilogo: a) o amor ao mundo e aos homens (como ato de criao e recriao); b) a humildade, como qualidade compatvel com o dilogo; c) a f, que deve ser algo instaurado antes do dilogo; d) a esperana, caracterstica para a luta; e) a confiana; f) a criticidade, por onde percebida a realidade. sobre esta base que Freire enfatiza o ato pedaggico, como ao que consiste em criar dialogicamente um conhecimento do mundo. Para este autor, s com o dilogo o homem pode se comunicar com a realidade e aprofundar sua tomada de conscincia sobre esta, at perceber qual ser sua prxis na realidade opressora para desnud-la e transform-la.11 Por meio do dilogo, a relao entre educador e educando deixa de ser uma doao ou uma imposio, mas estabelece uma relao horizontal, eliminando as fronteiras entre os sujeitos. Num dilogo entre Adriano Nogueira e Paulo Freire (1994, p. 89 a 93), proposto o entendimento do conceito de pedagogia numa perspectiva

interdisciplinar. Eles pensam a pedagogia como cincia terica e prtica ao mesmo

Aristteles chama de theoria a cincia que consistia em "contemplar" o objeto de pesquisa sem uma atividade ou uma ao de transformao sobre este. Exemplo de cincias "tericas: matemtica, fsica, teologia. As cincias que comportavam uma ao humana eram classificadas de prxis, como a poltica e tica. No sentido popular, teoria significa algo desligado da realidade, em oposio prtica. 11 A questo da realidade opressora, ponto fundamental da crtica social de Freire, ser tratada adiante.

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tempo.12 Por ser uma cincia terica, a pedagogia forma as pessoas dentro de uma viso sistmica para responder as eternas perguntas da filosofia Por qu? Como? e dentro de certa postura diante do mundo. Com essa finalidade terica, o educador cita as bases a seguir. Em primeiro lugar, Paulo Freire parte de uma concepo, no racionalista ou inatista, segundo a qual o ser humano no nasce "pronto", mas se educa e se forma o tempo inteiro, dentro da realidade em que est inserido. Esse processo consequncia da sua faculdade de autodeterminao esta, sim, inata, porque prpria de sua natureza. Ele se educa continuamente, observando e analisando o ambiente e a sociedade onde vive (porque estes esto em contnuas mudanas) e os resultados das suas atuaes. Tais mudanas so descobertas e estudadas pela reflexo, que consiste na operao espiritual de se voltar sobre si mesmo, para descobrir erros e acertos, e para atualizar sua teoria a partir das prticas vivenciadas. Dessa maneira, ele cria modelos ou critrios conforme a sociedade e a poca em que vive. Finalmente, o ser humano amadurece, aprimorando sua capacidade de formao, com criatividade, com autodeterminao, numa viso mais sistemtica, na qual a pedagogia no entendida como algo esttico ou desligada da realidade. Assim, ele chega a uma "cultura acumulada" no seu processo transformador. A funo da pedagogia, pensada num sentido de cincia prtica, realiza-se somente nas interaes humanas, ajudando a construir conhecimentos. Quanto a estas vrias interaes, usado o termo "didatizar", a partir da interao entre professor e aluno, entre aluno e aluno (que pode acontecer nos trabalhos em grupos, nas relaes de amizades, etc.) e entre ambos e sua prpria formao, seu material didtico, sua sociedade, sua famlia, sua cultura, seu mundo. por isso que a prtica permite atualizar continuamente a teoria pedaggica. Observamos que Nogueira (1994) recorre ao termo de uso comum "didtica", que vem da lngua grega e denota certo tipo de habilidade, com um aspecto tico e at virtuoso, porque permite desenvolver um comportamento social. Por isso, a prtica pedaggica no pode ser desligada da realidade social e deve ter um carter subjetivo, por causa dos processos, antes mencionados, na atividade terica, de autodeterminao, autoformao, desenvolvimento, reflexo. Mas o professor Nogueira no se limita ao aspecto terico e prtico da pedagogia. Ele quer12

Aqui tambm devemos entender teoria e prtica no sentido aristotlico, conforme a nota anterior.

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estabelecer certos pressupostos para que a pedagogia seja realmente til e funcional. No primeiro pressuposto, a cincia pedaggica tem aspectos tericos e prticos, que ocorrem dinamicamente e no podem ser separados. Quanto ao segundo pressuposto, entendemos que as atividades pedaggicas devem claramente definir o objetivo e o mtodo (as perguntas "por qu?" e "como?" de Nogueira) e aproveitar "democraticamente" todo o conhecimento humano que est disponvel. Dessa maneira, tais atividades so pedagogicamente humanizadoras, permitindo o desenvolvimento da subjetividade e a sua contnua transformao e aperfeioamento, mas no respeito da diversidade por causa das interaes sociais. A pedagogia contribui cientificamente com a reaproximao do ser humano sua essncia, por causa da sua produo, ou seja: toda produo humana devolvida para si mesmo, atravs da cultura, pedagogicamente. No terceiro pressuposto, Nogueira (1994) esclarece que a cincia no s um conjunto de conhecimentos, conforme a definio que encontramos em textos de metodologia cientfica. tambm uma postura, um conjunto de atitudes. Por isso, alm da deliberao objetiva e da explicitao dos mtodos, o pedagogo insiste nas formas democrticas de lidar com a herana cultural da humanidade. No quarto pressuposto, Nogueira ressalta, dentro da viso da pedagogia como conjunto de procedimentos cientficos, a funo do indivduo. Nesse ponto tambm h uma recusa ao reducionismo. Queremos dizer que o indivduo no pode ser reduzido a um conjunto de habilidades, talvez produtos de faculdades ou ideias inatas. O motivo que existem, ou deveriam existir, vrias formas de interaes com o individuo, que lida consigo mesmo, com outros professores, com o ambiente, com a sociedade. O conhecimento conseguido dessa forma fica mais organizado. A pedagogia como procedimento interage com a essncia do ser humano, documenta (revela) aos seres humanos suas transformaes, por causa das interaes (NOGUEIRA, 1994, p. 96). Uma manifestao tpica dessa pedagogia elaborar uma proposta curricular por meio da qual professores e alunos se (re) conheam, ou se (re)conheam as capacidades de aprender. Isso cria uma documentao que ser reaproveitada pelas geraes futuras, permitindo a contnua atualizao. Assim, o educador Adriano Nogueira conclui sua primeira concepo a partir dos pressupostos e conceitos que foram utilizados e explicitados acima. A pedagogia no puro instrumento didtico, embora o carter instrumental seja sua caracterstica indispensvel. Lida o tempo inteiro com o ser humano, que est em

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contnua transformao (e nunca chega a um ponto de concluso e acabamento) e imerso em uma sociedade flutuante, com problemas de conflitos no trabalho, na famlia, etc. Por causa disso, a pedagogia est relacionada com as cincias humanas, que, para Nogueira, no so apenas aquelas tradicionalmente chamadas assim (psicologia, literatura, filosofia, sociologia, etc.), mas tambm as cincias exatas e naturais, como a matemtica, a biologia, a fsica, etc. Por que estas tambm so "humanas"? A resposta que so todas humanas, pois permitem o conhecimento da realidade por meio da educao e estimulam a busca e o desejo por esse conhecimento, que pode at ser considerado um desafio a ser vencido. Tal a concepo da pedagogia interdisciplinar. Esse processo envolve um lado tcnico ou de congruncia, e um lado tico ou de coerncia. Tudo isso permite o avano tanto do sujeito quanto da sociedade, porque a realidade est em contnua transformao, e devemos tentar acompanh-la da melhor forma. Isso possvel por meio dessa concepo da pedagogia: no um simples recurso didtico, mas uma viso humanizadora e civilizadora. Cada educador, a partir destes pensamentos, organiza de seu modo realidade histrica, levando em considerao o saber construdo pedagogicamente e recolocando as questes numa nova realidade. Nesse momento, Adriano Nogueira faz uma derradeira "definio" de Pedagogia como instrumento cientfico.A Pedagogia uma cincia daquilo que o Ser Humano capaz de fazer consigo mesmo. Ela um instrumento com o 13 14 qual ele busca congruncia e coerncia ingredientes das interaes entre a personalidade humana e ambiental e a herana cultural da civilizao (NOGUEIRA,1994, p. 99).

A estas definies e contribuies esclarecedoras das questes cientficas e pedaggicas, feitas pelo professor Adriano Nogueira, o professor Paulo Freire reage, como ele mesmo diz, para provocar (FREIRE, 1994, p.100). Na sua forma de pensar, a pedagogia uma reflexo critica do que ele chama de "que fazeres", expresso na qual o "que" designa a busca de uma direo e contedo para a ao e o "fazer" diz de forma direta que se trata de um "agir no sentido de produzir algo" (STRECK, REDIN & ZITKOSKI, 2008, p. 339). Dessa maneira, quer

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Congruncia: coisa da tcnica; harmonia causal entre o objeto e sua finalidade. Coerncia: coisa da tica; harmonia recproca dos seres humanos.

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atuar em duas frentes: a construo terica de uma pedagogia da libertao (tema que ser abordado adiante) e a luta concreta para um mundo mais humanizado. A pedagogia arte, no sentido dos usos tcnicos, estticos, ticos, orientando qualquer atividade humana metodicamente, uma demonstrao da nossa curiosidade. A pedagogia crtica, por devolver o ser humano para si mesmo, espelhando o estar-sendo, reconhecendo-se em si. No poderia sozinha cada cincia formar seres humanos, mas formaria especialistas. Somente quando so interligadas, as cincias tendem a formar seres humanos, por dar corpo pedaggico a qualquer conhecimento cientifico e manter viva a curiosidade humana na sua inteireza transdisciplinar. O principio da interdisciplinaridade pensada por Freire permite avanos na ideia de integrao curricular, para se trabalhar com disciplinas e preservar o interesse de cada uma destas, o que ele chama de "transversalidade". Neste principio, ele supera o conceito de disciplina. A transdisciplinaridade uma intercomunicao entre as disciplinas, tratando efetivamente de um tema/objetivo comum (transversal), j que, para Freire, no tem sentido trabalhar temas transversais atravs de uma nova disciplina, mas atravs de projetos que integrem as diversas disciplinas. Foi uma experincia realizada em sua gesto na Secretaria de Educao da cidade de So Paulo narrada no livro Ousadia no dialogo: interdisciplinaridade na escola pblica , durante a qual buscou capacitar os professores nesta modalidade, que basicamente era trabalhar coletivamente com o principio de que as vrias cincias contribuem e orientam para todo o trabalho escolar. Este advento, segundo o professor Adriano Nogueira, foi uma descoberta que ele chama de necessria, por ser por onde retotalizamos o apreendido nas retotalizaes necessrias docncia transdisciplinar (FREIRE, 1994, p. 23).

1.3. Uma concepo de valores pedaggicos.

No tpico 1.1., construmos uma concepo de "valor", dado pelo homem numa sociedade, em determinado tempo ou espao. Verifica-se que a problemtica do saber, ou do valor docente ou, ainda, dos saberes pedaggicos sempre surge nas pesquisas de mbito internacional e nacional, sendo uma chance, no caso de um docente que tenha comprometimento com a sociedade em se retotalizar.

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Para entender o que so valores pedaggicos, ou a construo de valores na concepo pedaggica, pensamos que o profissional precisa ter claro, na sua condio existencial, o que uma pessoa, um valor humano, uma concepo de ser humano, para da traarmos uma concepo pedaggica. Se no me vejo dentro da pessoa humana, no consigo ver na pessoa a mim mesmo, o Eu no Tu. Eu sou uma concepo de concepes de pessoas, de sociedade e de mundo, no mundo. Os problemas fundamentais que afetam a clula de base da sociedade a famlia e, por meio desta, o individuo dependem da interveno tcnico-cientfica, isto , do uso da cincia pura e da tcnica aplicada. Mas esta cincia leva o homem a uma reduo de competncia como cidado, porque ele se apia no cientifico, que cada vez mais formalizado, e desta formalizao cria-se uma mquina que produz especialistas. Nesse campo, so especialistas que elaboram as opes para as decises; a viso dessas pessoas compartimentada, em funo de seu campo de especializao, gerando a eliminao dos fatores humanos e culturais ou ignorandoos. a tendncia desapropriao dos cidados, que so mantidos em uma espcie de ignorncia selvagem relativamente aos problemas fundamentais ligados a uma democracia cognitiva. Sero reportados aqui alguns elementos reflexivos para a construo do agir educativo ocidental, sob a perspectiva da historicidade que constri um raciocnio pedaggico ou a prtica educativa, como tambm o estabelecimento de valores de referncia para a prtica educativa. Premidos pela juno do agir, os homens, assim que podem contar com os recursos sistemticos da subjetividade pensante, servem-se, originalmente, desses instrumentos para estabelecer parmetros para o bem agir. O problema que no estamos muito acostumados a refletir sobre essas questes. Na maioria das vezes, respondemos de uma forma quase que instintiva e automtica, reproduzindo alguma frmula ou receita presente no nosso meio social. Geralmente, seguimos comportamentos da e na sociedade ou do nosso grupo e assim nos sentimos dentro da normalidade, cmodos. Isso nos d a segurana e o alvio de no termos que nos responsabilizar por alguma atitude ou aes diferentes das tomadas por outros. Quando todos os aceitam, no h necessidade de muita discusso sobre os costumes e os valores morais estabelecidos na sociedade. Mas quando surgem questionamentos, surge tambm a necessidade de fundamentar teoricamente ou explicar estes valores vividos, praticados; e, para aqueles que no concordam, a necessidade de critic-los. No raro, na histria, o surgimento de

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filsofos ou profetas que propuseram uma revoluo nos valores e normas estabelecidas da sociedade, que no exclusiva. Todos ns vivemos ou podemos viver tais valores e normas: suficiente estarmos totalmente domesticados pelos valores morais vigentes para discordarmos de algumas ou muitas coisas que vemos ao nosso redor a experincia de "estranhamento" frente realidade, de sentirse estranho (fora da normalidade) diante do modo como funciona a sociedade ou at mesmo em relao ao modo de ser e agir de outrem. a descoberta da diferena entre o que e o que deveria ser. O ser humano deve, portanto construir ou conquistar o seu ser. Ele no nasce pronto: faz-se ser humano, torna-se pessoa. O grande desafio de nossas vidas este processo de construo do nosso ser (SUNG, 1995, p. 15). Ao buscar os sentidos de valores e seus fundamentos na construo profissional, a busca do fundamento dos prprios valores plenamente coerente com o modo de ser da subjetividade humana. A indagao sobre o fundamento possvel para os valores que so buscados impe que se reflita sistematicamente sobre o sujeito como agente e destinatrio da ao. O agir fundado em valores s tem razo de ser se levar em conta a condio existencial do sujeito. O pesquisador Elydio Santos Neto, em seu artigo "Formao de professores e contexto neoliberal", afirma:Trabalhar em qualquer atividade humana supe um mnimo de conhecimento deste universo particular, autoconhecimento, mas no campo da educao, no trabalho como professores/as, este mergulho em si mesmo ainda mais fundamental (SANTOS NETO, 2009, p. 7).

De fato, a autoconscincia a origem das mais altas qualidades humanas. se capacitar para distinguir entre o "eu" e o mundo. Confere ao indivduo o talento de ver-se a si mesmo como os outros o veem e tambm de sentir empatia. Permite que a pessoa se coloque no lugar do outro e imagine como se sentiria e o que faria em seu lugar. Pode-se dizer que este "mergulho" um valor humanizante. De acordo com Severino (2008, p.87), a busca de fundamentos valorativa para a ao no se expressa apenas como estratgia de convivncia e de enfrentamento dos desafios da prtica. A capacidade e a flexibilidade do equipamento subjetivo que se tornou disponvel colocam-nos diante da necessidade da construo no apenas de uma justificativa imediata, mas de uma justificativa

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que se sustente na significao da prpria existncia do homem, de seu modo especifico de ser. A prtica o problema fundamental que se coloca quando a subjetividade se expressa como instrumento de sua significao. Da a prioridade da busca de referncias valorativas, com o fito de se atribuir ao prtica um sentido norteador que garanta a esta uma posio aceitvel pelo grupo, de modo a no exacerbar os conflitos em que se tece a convivncia entre os indivduos que o compem e que ameaam a continuidade da vida. Do ponto de vista do atendimento das necessidades existenciais, a utilizao dos recursos subjetivos para explicitao de referncias para o agir tornase prioritria, expressando uma natural tendncia pragmtica na conduo estratgica da vida. Ao buscar os valores e seus fundamentos, instaura-se a necessidade de indagar sobre a antropologia da educao. Trata-se de indagao fundamental que diz respeito prpria condio da existncia concreta dos sujeitos da educao, como agentes da prtica. Vale lembrar que este agente esteja atento da existncia de um "outro" (o Tu), todo o tempo da sua prtica, que ser o termmetro da sua ao moral. Na sua ontologia, o homem um ser social, na sua concretude histrica referncia indispensvel o desvelamento da imagem de ser humano, para se pensar o homem e sua educabilidade. A busca da imagem do ser humano, como fundamento e lastro dos valores da prtica, no pode ser feita com referncia apenas a sua suposta natureza metafsica de ser humano ou a sua mera condio biolgica de ser humano. Isso porque os fins e valores da prtica humana no so transcendentais, mas imanentes histria, e nesta que precisam ser encontrados (SEVERINO, 2008, p. 88). Os fins e os meios que norteiam a ao humana, alm das coordenadas imediatas da pratica, so histricos. Somos humanos, portanto so estabelecidos pelo homem, graas a sua capacidade de simbolizar sua subjetividade, implicando que se d plena conta da humanidade dos homens, a partir de um mergulho na condio existencial das pessoas enquanto ser histrico no seu tempo e espao social (SEVERINO, 2008, p. 87, 88). As tenses vividas atualmente no sistema educacional so a expresso das transformaes sociais e das novas exigncias que se apresentam na formao de novas geraes. O acesso informao e ao conhecimento, as mudanas na famlia e nos prprios alunos, as modificaes no mercado de trabalho, os valores sociais emergentes, o fluxo migratrio em algumas regies e a rapidez das transformaes so caractersticas que afetam o exerccio da atividade docente. De acordo com

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Severino (2008, p. 96), quanto comunicao entre docentes e discentes, possvel defender uma viso da prtica pedaggica destinada explicitao dos valores que so considerados importantes, seja mediante a construo de uma imagem do homem que se precisa educar, seja, ainda, mediante a explicitao e elucidao dos processos de que se serve o sujeito nos seus esforos para compreender o sentido da educao. Explicitar a prtica educacional esclarecer as condies para que se realize como prxis, ou seja, ao realizada e pautada num sentido de ao antes pensada, refletida, apoiada em significaes construdas, explicitadas e assumidas pelos sujeitos envolvidos. Mas o que so valores pedaggicos? So atitudes, prticas e formas de relacionamentos importantes para realizar esta concepo pedaggica. Para que produza mudanas, necessrio um trabalho democrtico a servio da sociedade, de todos, sem preconceitos. Uma perspectiva que objetiva, na sala de aula, preparar cidados crticos, mas para isso, ns professores devemos ter clareza da nossa concepo de uma educao com um olhar tico, a fim de re-construir, re-totalizar nossos fazeres pedaggicos, substituir a indiferena por solidariedade, igualdade, diversidade, participao, liberdade, etc. So princpios de ordem poltica com funo social primordial na educao para formao da cidadania. A ao educadora no simplesmente uma atividade tcnica, que pode ser repetida vrias vezes sem reflexo, nem uma ao desprovida de comunicao e contato social. Exige, pelo contrrio, uma estreita relao de confiana entre o professor e os alunos, que no pode ser desenvolvida de maneira satisfatria sem a conscincia por parte dos docentes dos objetivos que se pretendem alcanar. possvel que grande parte da polmica educacional no Brasil e at no mundo decorra do fato de que educadores no se vejam como cidados participantes da construo da sociedade, ou seja, no se vejam como sujeitos capazes de criar ou mudar a ordem social atravs do seu trabalho, trabalho com o conhecimento e com os valores comprometidos numa sociedade. Ao desenvolver os fundamentos epistemolgicos, os saberes da sociedade, os valores, as tradies, a escola desempenha um papel fundamental na transmisso de contedos e habilidades necessrios participao do indivduo no mundo. Formar cidados conduzir, preparar para compreenderem a realidade da qual fazem parte, situar-se nela, interpret-la e contribuir para sua transformao.

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Precisamos acreditar que no espao escolar, como espao de luta, os interesses populares ou sociais podem ter voz e vez; um dos vrios meios de promover conhecimentos e experincias. Precisamos promover a autonomia de um ser humano entendido como ser ativo, crtico, transformador, consciente da sua importncia; em uma sociedade que no esttica, mas que pode ser mudada, transformada com o trabalho de todos. Essas ideias esto presentes no iderio pedaggico brasileiro, mas percebe-se que o trabalho docente, a escola e a humanidade perdem, no decorrer de tantos momentos difceis, crises e revolues, o verdadeiro objetivo e funo da educao cidad, trazidas nas LDB, Decretos e discursos de muitos outros. Valor pedaggico , portanto, ter atitudes comportamentais que demonstram, nos seus fazeres pedaggicos, atos que contribuam para formao de conscincias polticas, de cidados conscientes, inteligentes e crticos, capazes de usar o conhecimento aprendido na escola para se defender dentro de uma sociedade desigual. Cidados que no sejam simples e meros receptores de um saber desvinculado da realidade. Cada perodo da histria da educao brasileira apresenta traos e ideias pedaggicas do momento histrico e ideolgico, trazendo consigo, muitas vezes, alteraes na realidade escolar. Verifica-se aqui que as concepes pedaggicas pesquisadas esto imbricadas na curiosidade de saber, na interdisciplinaridade, no rigor cientifico e na intuio. Como tambm verificamos que na concepo do professor Paulo Freire, o conhecimento s ganha legitimidade no interior de uma prtica concreta. Por ser assim, o "valor" est na troca de experincia, no respeito ao trabalho dos outros, na abertura ao aprendizado, no dilogo, no olhar humanstico, no apego profissional, etc. O magistrio enfrenta, dentre outras, a crise de confiana e a crise de identidade profissional. Ambos os sentimentos esto estreitamente relacionados. A confiana permite que os professores tenham segurana nas aes que desenvolvem e enfrentem com mais fora os riscos envolvidos no magistrio. A suspeita de falta de profissionalismo est presente nas relaes e dificulta a necessria confiana mtua. As criticas permanentes sobre o nvel educacional baixo dos estudantes, sobre os problemas de convivncia nas escolas e as condies ruins do ensino despertam o sinal de alerta nos cidados e nas famlias e estendem a sensao de desconfiana em relao ao trabalho dos professores. Confiana e autoestima tambm so valores pedaggicos, e constituem o ncleo

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bsico da identidade profissional; ambos so sentimentos objetivos. A confiana implica segurana, domnio, tranquilidade e satisfao nas relaes, uma vez que no so vividas ou sentidas como ameaa. O ensino supe uma interao positiva entre um professor e um grupo de alunos que no nem voluntria nem livremente escolhida, como poderia ser a estabelecida entre um grupo de amigos. O objetivo da atividade docente que essa relao imposta, expresso das obrigaes dos professores e dos alunos, se transforme numa relao construtiva, que tenha a competncia, a confiana, o afeto e o respeito mtuo como elementos constitutivos. A docncia, por si s deve ser uma profisso moral, porque toda a sua ao, como todo o seu ato humano, cerceada por propostas e mtodos de ensino que o conduz a ter compromisso. Manter semelhante atitude ao longo dos anos uma tarefa exigente, porque provoca grande desgaste pessoal pela implicao vital que demanda, pelas caractersticas das relaes que estabelece e pelas funes que desenvolve. As dinmicas vitais dos professores, apesar do desgastes, devem envolver dedicao, mesmo que no se encontrem gratificaes, devem ser conscientes de que ensinar os outros uma tarefa que vale a pena, que nos conecta com o mais nobre do ser humano e nos situa, situa os professores, no lugar adequado para promover o bem-estar das novas geraes. Dessa maneira revelado o carter moral do magistrio a necessidade de descobrir seu valor e seu sentido para exerc-lo com rigor e viv-lo com satisfao. Considerando o trabalho docente nessa perspectiva, este pode ser uma fora motivadora que permita enriquecer a moralizao da docncia. Dessa afirmao no se deve extrair a concluso de que o componente moral do magistrio exige somente que os professores se apropriem um conjunto de normas e valores que os orientem em sua atividade e sirvam de referncia e o mantenham ao longo de sua vida. O raciocnio e o julgamento moral so um componente fundamental do comportamento tico, mas no o nico. A moralidade tem suas razes na experincia afetiva das pessoas, de modo que no possvel separar radicalmente a dimenso cognitiva da dimenso emocional na atividade moral e, portanto, na atividade educadora. Se for uma profisso moral, preciso manter na docncia, de forma equilibrada, os princpios racionais que sustentam o comportamento tico e os sentimentos e emoes que lhe outorgam a sensibilidade necessria para compreender os outros em seu contexto especfico. Estes sentimentos no devem ser valorizados como uma fonte de erro, a inteligncia deve

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se confrontar para evitar a irracionalidade nos julgamentos e a falta de foco nas decises; mas, devem ser valorizados como mais um componente necessrio orientao da moralidade dos atos, seja na docncia ou na vida regular social. Finalizando este tpico, tomo a liberdade de compreender que a ao docente uma dedicao constante que nos exige capacidades, de carter coletivo, para conviver com os conflitos da sociedade e entender a realidade como esta nos aparece, e a partir desta, e com os recursos j aprendidos, reavaliados e retotalizados, praticarmos a pedagogia, conforme os objetivos freiriano15.

Justificativa do uso do termo "freiriano": "E aqui queremos ratificar, definitivamente, nossa convico a respeito do uso do adjetivo "freiriano" e, no "freireano". Como sabemos, os radicais e os afixos so base de significao e, por isso, no podem se alterar. Ora, quando o sufixo "iano" aposto a nomes prprios que terminam com a vogal "e". por uma questo de eufonia, na Lngua Portuguesa, uma delas deve desaparecer. Assim ocorreu com "comtiano", "lockiano" etc., como se pode constatar nos melhores dicionrios do idioma mencionado" (Romo, apud Duran, Editorial, Educao e Linguagem, n 13, p. 9, 2006). Em coerncia com este pensamento em todo o trabalho ser utilizada a expresso "freiriano" e no "freireano".

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CAPITULO IICONCEPES FUNDANTES DE PAULO FREIRE E VALORES QUE DA DECORREM

2.1. Minha leitura da Pedagogia do oprimido

A obra de Paulo Freire nos obriga a rever preconceitos sociais, sexistas, racistas e de gnero. J no prefcio, percebemos, na perspectiva do professor Ernani Fiori (FIORI, 2005, p. 7), ser Paulo Freire um pensador que desnuda a pedagogia. Este desnudar permite que o autor, antes de tudo, altere o sentido e os meios de entender a "pedagogia". A leitura de Pedagogia do oprimido nos aproxima de uma critica fundamentada num mundo "cego", onde Paulo Freire, de forma incisiva, fornece instrumentos ou elementos para as intervenes que resultam na "transformao", na conscientizao que potencializa o homem inconcluso e inacabado. Os termos que o autor usa nesta obra, para representar as classes sociais, so o de "oprimido" e o de "opressor. A leitura que ainda fazemos da escola tradicional fornece elementos para pensar que ela consiste numa organizao sistemtica que se inicia pela alfabetizao e vai at a ps-graduao, e na transformao do conhecimento imediato em conhecimento mediato pelas estruturas dominantes, sem crtica sobre as relaes naturais e sociais. A concepo freiriana est em que o conhecimento e a teoria s ganham legitimidade no interior de uma prtica concreta. A figura histrica de Scrates exerce at hoje influncia na vida da humanidade. Como ele, tambm Paulo Freire desafiou, acreditou e props educao uma nova leitura da pedagogia. Ele coloca o homem como um desafio de si mesmo, isto , como problema (FREIRE, 2005, p. 31). Um problema no sentido de que no se conhece "conhecer a si mesmo", parafraseando Scrates, uma das causas da inquietao, das buscas sem saber o que esto buscando, a trgica descoberta do pouco saber, conscientizar-se de que pouco sabe. Trata-se da noo de "conscincia-de-si" de Hegel, que influenciou tanto pensadores marxistas como existencialistas, porque, sustenta Hegel, a conscincia no pode existir isoladamente. Para formar uma imagem apropriada de si mesma, a conscincia precisa de algum contraste, de algo do que possa se

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diferenciar. Assim, s posso tornar-me ciente de mim mesmo, se estou tambm ciente de algo que no sou. De acordo com Paulo Freire, o problema central da humanizao do homem, do ponto de vista axiolgico, uma preocupao de carter iniludvel e, ao ser constatada a sua existncia, ele traz a necessidade de avaliar a histria do problema da desumanizao. Para encontrar soluo para essa situao, Paulo Freire afirma que precisa entender a causa, pesquisando-a na historia humana. No dinamismo dessa pesquisa, ele defende a ideia de que, ontologicamente, o homem um ser inconcluso e inacabado, no est pronto nunca, mas vive em contnuas mudanas, e esta situao uma das causas da desumanizao, mas tambm da humanizao. A vocao histrica do homem est na humanizao, porque, segundo Paulo Freire, ele mantm presente o tempo inteiro os anseios justia e liberdade. Caso a vocao consistisse na desumanizao, no existiriam alternativas para mudar a atual situao desumana. Mas, por causa de certas inclinaes naturais, como o individualismo e o egosmo, ou por causa das necessidades de uma sociedade injusta, o indivduo caminha rumo desumanizao, contrariando sua vocao, e comete injustias e anula a liberdade dos outros, pela opresso. Assim, o homem vive uma tenso entre os dois polos, que representam duas possibilidades de ao: sabe que um o certo, mas tem dificuldade em realiz-lo, porque s vezes lhe menos conveniente. O homem sabe que desumano, mesmo assim age dessa forma. Entretanto, essa tenso permite certo otimismo, porque se a vocao opresso fosse natural e histrica, no teramos nada a melhorar (FREIRE, 2005, p. 32). Pelo contrrio, possvel reverter o curso da histria, "ser mais" do que somos agora, ser mais humano. Outra preocupao do pedagogo pernambucano a introduo de um pensamento democrtico, que defende a escola pblica e gratuita para todos, a fim de se alcanar uma sociedade igualitria e sem privilgios. Um terceiro tema que aparece em Pedagogia do oprimido uma abordagem dialtica16 da realidade brasileira, da educao, cujos determinantes se encontram nos fatores econmicos, polticos e sociais. Freire considera que o conhecer no pode ser um ato de "doao" do educador ao educando, mas um16

"Do grego, dia, advrbio e preposio que significa separao (dualidade), e lektiks, apto palavra, conveniente ao dilogo. Sentido de dualidade, oposies de razes, atitudes ou argumentos. Para Plato, a dialtica o mtodo para conseguir um conhecimento. Para Hegel e Marx, a dialtica, a partir de duas posies antagnicas, permite superar ambas, sem elimin-las, e chegar a uma terceira posio, a sntese, que representa um novo conhecimento, a partir dos dois primeiros (Corbisier, 1987, p. 31).

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processo que se estabelece no contato do homem com o mundo vivido, e este no esttico, mas dinmico, em contnua transformao. Na educao autntica, superada a relao vertical entre educador e educando e instaurada a relao dialgica. Paulo Freire defende a autogesto pedaggica: o professor um animador do processo, evitando as formas de autoritarismo que costumam minar a relao pedaggica.

2.1.1. A contradio entre opressores e oprimidos: superao possvel, segundo Paulo Freire.

Tanto os opressores como os oprimidos so desumanizados, com a diferena que uns so "ser mais", outros so "ser menos", situao em os primeiros utilizam o recurso violncia, bem como generosidade, com a qual controlam e mantm os oprimidos na submisso (FREIRE, 2005, p. 33). Freire define como uma falsa generosidade, porque o seu objetivo manter, de no mudar a situao e evitar a perda de controle. O verdadeiro objetivo do sujeito autenticamente generoso o primeiro, porque ele no recebe uma vantagem imediata para si, mas para a humanidade. A generosidade uma forma de solidariedade. Na condio de ser menos, na qual se encontram os oprimidos, eles desenvolvem tambm a violncia, para sair da opresso. H um risco que deve ser evitado, a simples troca de papis, que mantm a desumanizao de ambos. Para Paulo Freire, a grande tarefa humanista do oprimido se libertar no s dos opressores externos, mas tambm do opressor potencial que est dentro de si. Este "se libertar" possvel a partir do momento da autodescoberta. Quando os oprimidos se descobrem "hospedeiros"? Quando tomam conscincia de seu "inacabamento"?17 A oposio entre opressor e oprimido concebida por Paulo Freire o principal obstculo humanizao do homem. A descoberta crtica ocorre quando o sujeito se conscientiza da sua condio de oprimido atual e de possvel futuro opressor e, por conta da sua reflexo, se liberta sem se tornar um opressor, isto , tomando outra posio (FREIRE, 2005, p. 34-35). Esse seria o objetivo da pedagogia libertadora, que, pela conscientizao, deve evitar que o atual oprimido se transforme em um opressor ou que esse seja o seu objetivo de vida e deInacabamento: concepo antropolgica de Paulo Freire, marcada pela ideia de que o ser humano um ser inacabado, no pronto, fechado. Somos um ser por fazer-se.17

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libertao. Esse risco havia sido corretamente percebido, em outro contexto, por Montesquieu, na sua anlise dos governos despticos, nos quais no existe a aspirao igualdade, mas superioridade:As pessoas das mais baixas condies delas desejam sair apenas para serem senhoras de outras [...] indivduos que s tm diante dos seus olhos homens ricos, ou miserveis como eles, odeiam sua misria sem amar ou conhecer o que extermina a misria (MONTESQUIEU, C.-L. O esprito das leis, p. 70).

Dentro desta observao freiriana, h um risco muito forte que este oprimido, na nsia de se libertar, tome a posio do opressor. "A estrutura do seu pensar se encontra condicionada pela contradio vivida na situao concreta, existencial, em que se formam" (FREIRE, 2005, p. 35). Entende-se que este indivduo nasceu em um ambiente oprimido, aprendeu e apreendeu um padro comportamental real do seu ambiente e acha que a nica maneira de sair da opresso mudar de lado. O pedagogo pernambucano cita o exemplo de alguns "sem terra" que querem sair da situao de misria e explorao no campo, tornando-se proprietrio de terras; eles incorporam a viso dos antigos latifundirios que os oprimiam e podem at considerar os antigos colegas de luta como baderneiros resolveram o seu problema e no querem mais mudanas. Essa uma falsa concepo de libertao. Outra contradio a admirao que os oprimidos podem sentir por seus inimigos, pelo fato de que estes so bem-sucedidos. Dessa maneira, acabam por legitimar a situao de dependncia, que julgam inevitvel. De novo, a nica sada que vislumbram passar para o outro lado. Pela razo de s conhecerem as duas polaridades extremas, mais difcil encontrarem a verdadeira soluo

humanizadora, pela qual no devem existir nem opressores, nem oprimidos. Paulo Freire faz referncia a uma situao de aderncia que conduz o oprimido a se identificar sempre com o seu contrrio. Os oprimidos no conseguem ter uma compreenso de homem novo, que, para Freire, consiste em superar a condio de oprimido/opressor e em se libertar. Trata-se de uma viso individualista, do sujeito que deseja resolver somente o seu problema, e no o do grupo ou classe. Por conta da aderncia situao, que julga inevitvel ou natural, o oprimido fica

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impossibilitado de se conscientizar como pessoa pertencente a uma classe oprimida. (FREIRE, 2005, p. 34-36). Freire usa o exemplo do mundo dos camponeses, que vale tambm para os antigos escravos. O capataz mais feroz e mais devotado ao senhor exatamente um ex-campons (ou ex-escravo), que conhece a situao pela qual passou e se considera realizado como homem de sucesso, por ter sado, individualmente, da opresso. Ele deu vida ao opressor que estava hospedado dentro dele. Dessa maneira, a situao se perpetua, mudando apenas as posies. Nesta posio de no conscincia, o oprimido buscar e espreitar a chance de ser um opressor que, na maioria das vezes, mais cruel que o antecessor , numa tentativa de mostrar que merece a nova posio. Ele se torna opressor e, para provar que um dos opressores, mais duro que estes. Isso distancia ainda mais da "humanizao" (FREIRE, 2005, p. 36). Freire introduz o argumento de "medo da liberdade", que, para o oprimido, a liberdade de assumir responsabilidade, de no dar conta da nova tarefa, de no estar altura de uma situao qual no est acostumado ou preparado ou por necessidade de se mostrar e capaz e eficiente, de ser cobrado e observado continuamente, de merecer o "prmio" de no ser mais oprimido. No opressor, segundo Paulo Freire, o medo de perder a liberdade de oprimir, com todas as vantagens materiais e espirituais que isso traz. Freire define esse processo com o termo "prescrio". O oprimido segue o comportamento prescrito que aliena,18

que o torna hospedeiro da conscincia

opressora (FREIRE, 2005, p. 36-37). nesse sentido que o oprimido teme a liberdade, que uma ruptura com essa prescrio e implica a necessidade de desenvolver sua autonomia, ou capacidade de governar a si prprio, condio ltima adquirida aps expulso da sombra do opressor nele hospedado. Esse tipo de liberdade temido, porque exige uma busca permanente, um esforo para se educar e melhorar o seu conhecimento, para tomar as rdeas do seu futuro. Isso no fcil, sobretudo para as pessoas acomodadas com a sua submisso, para a qual contribuem fatores culturais, religiosos e histricos. A liberdade no algo que vem de graa; preciso lutar por ela, defend-la dia aps dia, porque o risco de

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Alienao no sentido marxista e que afasta o indivduo dos seus reais interesses de classe e passe a fazer o jogo dos seus opressores, que podem se perpetuar no poder.

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perd-la permanente.19 A conquista e a defesa da liberdade fazem parte desse homem inconcluso que busca "ser mais". Entretanto, a escolha entre tentar libertar-se e se manter na situao de oprimido no fcil, ento ele continua cindido entre as duas opes. O medo da liberdade e da mudana (talvez para uma situao pior) deixa-o indeciso, e isso provoca um conflito interior entre se desalienar e continuar alienado, entre escolher lutar contra o opressor e aceitar a situao, espera de uma oportunidade de se transformar em opressor. Paulo Freire faz uma analogia e compara a conquista da liberdade ao parto, porque tambm doloroso e leva tempo para que nasa o homem novo. Este vivel pela superao da contradio entre opressores e oprimidos (FREIRE, 2005, p. 35-37). Vem ao mundo um homem novo, superado o medo da liberdade, do vazio; um homem capaz de reconhecer que o motor da ao libertadora est na admisso da existncia de uma opresso. Ele saiu do senso comum? Por isso, o autor compara essa libertao necessria s classes menos favorecidas com um "parto", por meio do qual estas abandonam definitivamente a condio servil em que vivem. O reconhecimento da opresso, do falso ser, ainda no a libertao do indivduo, mas a primeira etapa para a superao da contradio em que ele se encontra. S depois de se reconhecer oprimido ele poder lutar para se libertar. Freire faz uma referncia dialtica do senhor e do escravo de Hegel: cada um deve conscientizar-se que depende do reconhecimento do outro; sem o escravo, no existe o senhor, e vice-versa. Isso j o primeiro estgio de liberdade, no civil, poltica ou material, mas metafsica e espiritual. Mas isso no suficiente. Segundo Freire, necessrio que o oprimido passe ao, porque o opressor obtm da situao uma utilidade bem maior, apesar de depender do outro. A solidariedade que um senhor mais esclarecido eventualmente manifesta com relao ao escravo com alguma ajuda material ou o alvio de certas punies, por exemplo no a soluo, porque mantm a desigualdade. Essa atitude deve se transformar em solidariedade verdadeira ou objetiva, que provoque uma real transformao e permita a passagem da liberdade abstrata (aquela que surge pela conscientizao do reconhecimento por parte do senhor) para uma liberdade concreta porque o escravo tambm um ser humano e deve ser livre como tal, isto , como serEsse pensamento foi largamente defendido por Rousseau que, no Contrato Social, chega a dizer que preciso merec-la.19

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concreto e no abstrato. Assim, Freire considera o pensamento de Hegel como ponto de partida, para depois super-lo, da mesma forma que fez Marx. Freire aponta que o grande mrito de Marx (FREIRE, 2005, p. 41-42) foi ter reconhecido que a contradio entre opressor e oprimido um produto da ao humana, no da natureza ou de Deus. um fato histrico: ento, pode ser mudado pelo mesmo homem, desde que se conscientize de que as duas posies so desumanizadoras. Nessa luta devem entrar tanto o oprimido, quanto o opressor que queira ir alm da simples solidariedade. A falta de conscincia critica de ser uma classe oprimida um dos problemas mais graves, porque impede a libertao dos homens de seus opressores. A realidade opressora funciona como um mecanismo que absorve, como uma fora de imerso das conscincias. Para libertar-se, exigese a emerso da conscincia, que, para Marx, a conscincia de classe, e isso produto de uma reflexo e depois de uma ao. A reflexo crtica auxilia um possvel libertar-se da ideologia da classe dominante, a qual convence a classe dominada de que aquele estado das coisas melhor para todos e de que todos tm a real chance de mudar de lado. Se a mudana acontece para uma minoria, isso suficiente para iludir e enganar a todos. s nesse momento de superao da ideologia e de surgimento da conscincia crtica de classe que Marx julga ser possvel passar ao. a prxis marxista. A prxis tem seu pilar na reflexo e na ao dos homens sobre o mundo, para o transformar. Para Freire, um mero reconhecimento da realidade, sem ao, sem objetividade, conforme o pensamento de Hegel, no traz transformao, limita-se a uma aceitao da situao. Pelo contrrio, devemos acreditar na transformao a partir