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MANUEL PACHECO NETO PALMILHANDO O BRASIL COLONIAL: A MOTRICIDADE DE BANDEIRANTES, ÍNDIOS E JESUÍTAS NO SÉCULO XVII Dourados, MS – 2002 –

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MANUEL PACHECO NETO

PALMILHANDO O BRASIL COLONIAL: A MOTRICIDADE DE

BANDEIRANTES, ÍNDIOS E JESUÍTAS NO SÉCULO XVII

Dourados, MS

– 2002 –

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MANUEL PACHECO NETO

PALMILHANDO O BRASIL COLONIAL: A MOTRICIDADE DE

BANDEIRANTES, ÍNDIOS E JESUÍTAS NO SÉCULO XVII

Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Dourados, para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História, Região e Identidades.

Orientador: Prof. Dr. Cláudio Alves de Vasconcelos

Dourados, MS

– 2002 –

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MANUEL PACHECO NETO

PALMILHANDO O BRASIL COLONIAL: A MOTRICIDADE DE

BANDEIRANTES, ÍNDIOS E JESUÍTAS NO SÉCULO XVII

COMISSÃO JULGADORA

DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE

Presidente e orientador______________________________________________________

2° Examinador_____________________________________________________________

3° Examinador_____________________________________________________________

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Dourados,________ de______________de _________.

DADOS CURRICULARES

MANUEL PACHECO NETO

NASCIMENTO 29/11/1965 – São Simão/SP

FILIAÇÃO Manuel Pacheco Júnior

Marilena Dorothéa Toffoli Pacheco

1987/1990 Curso de Graduação em Educação Física

Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP

1996/1997 Curso de Pós-Graduação – Lato Sensu em Metodologia

do Ensino Superior

Faculdades Integradas de Dourados

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Dedico este trabalho

à minha esposa Ana Cláudia, companhia doce, norteadora e equilibrada ao longo de tantos anos. Aos meus filhos Diogo, Jorge, João e Manuel, dínamos de toda e qualquer luta. Aos meus pais, professores Manuel e Marilena, que na infância me propiciaram um ambiente onde o estudo se apresentava como valor fundamental.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Cláudio Alves de Vasconcelos, pelos preciosos ensinamentos na disciplina Metodologias da História e por ter, durante a elaboração deste trabalho, sempre com paciência e atenção, me possibilitado o vislumbrar de novas veredas e trilheiros, que me levaram a abordar aspectos historiográficos então por mim desconhecidos. Ao Prof. Dr. Paulo Roberto Cimó Queiroz, pelos ensinamentos precisos sobre as penetrações bandeirantes no oeste, abordados na disciplina Mato Grosso do Sul: história e historiografia, bem como pelas prestimosas sugestões quando fez parte da banca de qualificação que examinou este estudo. À Profª Drª Luiza Rios Ricci Volpato, pela gentileza e amistosidade com que me recebeu em Cuiabá, bem como pelos valiosos esclarecimentos sobre o período colonial brasileiro. À minha irmã, Profª Doutoranda Rita Pacheco Limberti, por ter me incentivado a me inscrever no processo seletivo para o curso de Mestrado em História, fazendo a revisão gramatical de meu anteprojeto de pesquisa e dando dicas importantes em termos de construção do texto inicial. Ao meu sogro José Marques Luiz, advogado e professor aposentado da UFMS, pela revisão gramatical deste trabalho. À minha esposa Ana Cláudia, pelo incentivo, pela compreensão em minhas horas de ausência, pela digitação dos textos e sobretudo pelo amor e carinho.

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RESUMO

No Brasil Colonial do século XVII a vivência da motricidade corporal foi cotidiana, assumindo por vezes configurações notadamente significativas. Bandeirantes, índios e jesuítas, uns mais outros menos, deslocavam-se pelas matas, buscando atingir seus objetivos específicos.

A motilidade das bandeiras, cujos integrantes marchavam à pé, tornou-se notória pela escravização de índios, pela descoberta de riquezas minerais e pela expansão territorial.

O presente estudo busca evidenciar as implicações referentes ao desempenho físico dos bandeirantes, entendido como conseqüência histórica da carestia da vila de São Paulo. Distâncias muito grandes foram cumpridas por esses homens, que buscavam solucionar seus problemas econômicos.

Buscamos analisar também o desempenho físico dos índios, homens naturais da terra, que demons traram no período em questão admiráveis e múltiplas habilidades corporais, que envolviam técnicas de caça e de procura de alimentos. Engajados nas bandeiras, muitos indígenas contribuíram para que pontos desconhecidos dos colonizadores fossem alcançados. Nascidos nas matas, os índios estavam portanto em seu elemento, revelando-se guias precisos, orientando as expedições por trilhas e veredas nunca antes palmilhadas pelos bandeirantes.

As bandeiras de apresamento, extremamente ofensivas puseram muitos índios em fuga, especialmente na região do Guairá, onde os jesuítas haviam estabelecido diversas reduções.

Em termos de performance física, buscamos evidenciar a fuga em massa dirigida pelos jesuítas guairenhos, que envolveu milhares de indígenas num avançamento rumo ao sul do Brasil, por vias fluvial e terrestre.

Preocupamo-nos também em relacionar a motricidade bandeirante à mudança contextual ocorrida na colônia após a descoberta do ouro.

Para tanto, em todas as partes deste estudo, pesquisamos em material bibliográfico pertencente às áreas da História e da Educação Física, com predominância na utilização de material historiográfico.

As conclusões sugerem a confirmação de nossos pressupostos primevos. A motricidade humana foi uma característica importante no Brasil Colonial, envolvendo homens de grupos e motivações distintas, tendo contribuído ainda para a nova orientação sócio-econômica brasileira, que subtraiu do nordeste a hegemônica prosperidade de seu parque açucareiro, que era caracterizado pelo antônimo do movimento: o sedentarismo.

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ABSTRACT

In Colonial Brazil of the century XVII the existence of the corporal motricity was daily, assuming notedly per times configurations significant. Members of the flags, indians and jesuits, some more other ones minus, they moved for forests, looking for to reach its specific objectives. The motricity of the flags, whose members advanced the on foot, became notorious for the enslavement of indians, for the discovery of mineral wealth and for the territorial expansion. The present study search to evidence the referring implications to the physical acting of the members of the flags, expert as historical consequence of the shortage of the villa os São Paulo. Very big distances were executed by these men, that looked for to solve its economic problems. We looked for to also analyze the physical acting of the indians, natural men of the earth, that demonstrated in the period in admirable subject and multiple corporal abilities, that involved hunt techniques and of search of victuals. Engaged in the flags, many indigenous they contributed so that the settlers unknown points were reached. Bom in the forests, the indians were therefore in its element, being revealed precise guides, never guiding before the expeditions for trails and sidewalks roamed for the members of the flags. The capture flags, extremely offensives, put many indians in escape, especially in the area of Guairá, where the jesuits had established several reductions. In termsof physical performance we looked for to evidence the escape in mass driven by the jesuits guairenhos, that in involved thousands of natives in na advancement heading for the south of Brazil, by waterways and terrestrial. We also worried in relating the motricity member of the flags to the change of context happened in the colony after the discovery of the gold. For so much, everywhere of this study, we researched in bibliographical material belonging to the areas of the History and Physical Education, with predominance in the use of material historiographic. The conclusions suggest the confirmation of our primeval presuppositions. The human motricity was as important characteristic in Colonial Brazil,involving men of groups and different motivations, having still contributed to the new brasilian socioeconomic orientation, that subtracted the dominant prosperity of its sugar park of the northeast, that was characterized by the antonym of the movement: the affixation.

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SUMÁRIO

Resumo vi

Abstract vii

Lista de ilustrações x

INTRODUÇÃO xi

CAPÍTULO I

O BANDEIRANTE E O BANDEIRANTISMO 30

1. Do mito ao homem comum 30

2. A luta contra a natureza 41

CAPÍTULO II

ÍNDIOS: CICERONES E MESTRES DO SERTÃO 56

CAPÍTULO III

FUGINDO DO “TEMPESTUOSO DILÚVIO” : ÍNDIOS E

JESUÍTAS NAVEGANDO E MARCHANDO NO SERTÃO 72

1. Vivendo bandeirantemente e morrendo cristamente: a remissão dos predadores

de gente 72

2. Capelães, beatões e padres: cúmplices da violência bandeirantista

80

3. A fuga do Guairá: medo historicamente construído e terror supersticioso

determinam sôfrega motricidade humana 88

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CAPÍTULO IV

BANDEIRISMO: DESEMPENHO CORPÓREO-MOTOR NO BRASIL

COLONIAL 110

1. Meninos, homens e anciãos: sede, fome e cansaço na marcha sertaneja 110

2. O papel da motricidade bandeirante na mudança da configuração contextual do

Brasil Colonial 119

CONCLUSÃO 137

FONTES E BIBLIOGRAFIA 139

ANEXOS 145

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LISTA DE FIGURAS

HOMENAGEM À EPOPÉIA DE 32.............................................................................. 49

GLÓRIA AOS HERÓIS................................................................................................ 50

SUSTENTAE O FOGO................................................................................................. 51

BRASÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO.................................................................... 52

CAPA DA REVISTA SUPERINTERESSANTE........................................................... 53

CAPA DA OBRA HISTÓRIA DAS BANDEIRAS PAULISTAS, DE AFFONSO

DE TAUNAY............................................................................................................. 54

CAPA DA OBRA CURSO DE BANDEROLOGIA, COLETÂNEA

DE CONFERÊNCIAS................................................................................................... 55

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INTRODUÇÃO

Desde nossos tempos de faculdade, nos anos oitenta do século passado, sentíamo-nos

atraídos pelo papel exercido pela motricidade humana na história. Por aquela época,

freqüentávamos com assiduidade a biblioteca da Universidade Metodista de Piracicaba, buscando

genericamente nos livros de história episódios onde as atividades físicas se mostravam aparentes,

apresentando-se como relevantes em diversos contextos interdependentes. Por conta desta

pesquisa de caráter informal, logramos com o tempo acumular uma considerável compilação de

textos, dentre os quais extraímos diversas configurações contextuais onde o papel das atividades

corporais nos parecia ressaltado. Torna-se válido mencionar a obviedade de que nossa pesquisa

era aleatória, posto que carente das diretrizes científicas formais da academia. Ainda na

graduação, aquela pesquisa bibliográfica acabou por nos nortear em termos mais específicos, no

sentido de que desenvolvêssemos nossa monografia de final de curso abordando o papel do

desporto como elemento alienante, auxiliador nas ações ditatoriais impostas pelo governo militar,

no contexto histórico brasileiro de 1970. Julgamos ser oportuno mencionar, que comumente as

monografias de graduação em Educação Física enfocam diversas modalidades desporto-

recreativas, levando em conta seus aspectos técnicos, táticos, competitivos, pedagógicos ou

didáticos. A pesquisa histórica não aparece com freqüência entre os graduandos em Educação

Física, que predominantemente abordam os desportos e as atividades corporais entendidos como

metodologia de trabalho, seja ela ligada à docência ou ao treinamento. Esta observação visa

esclarecer que nosso entendimento acerca do movimento humano transcende a concepção de que

as práticas corporais encerram-se em si mesmas, circunscritas aos dogmatismos doutrinários de

suas atribuições clássicas, como a promoção da saúde, a sociabilização e a alta performance. As

atividades corporais estão inseridas num universo incomensurável, que oferta possibilidades

inesgotáveis de análise. Desde que o homem existe sobre a Terra, configura-se sua situação

motriz. Desassombrados, expressamos nossa convicção de que a história é uma extensa crônica

de corpos em movimento, destacando a obviedade da não negação do psiquismo, uma vez que

entendemos o homem como ser uno, indivisível, na esteira das teorias de Santim, Morais, Rizzo e

Medina, que promovem desde os anos oitenta uma discussão filosófica humanista, dialetizando o

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pensamento de Descartes e Platão, que divide o homem ao meio, fragmentando-o

dicotomicamente. Já na nossa monografia de Pós-Graduação Lato

Sensu (Metodologia do Ensino Superior), que cursamos em 1997, revisitamos o mesmo tema

desenvolvido oito anos antes, agora sob a orientação da Profª Drª Marina Evaristo Wenceslau,

que contribuiu muito para que melhorássemos nossa pesquisa, revestindo-a de uma conotação

científica mais acentuada. Dessa monografia, extraímos alguns elementos e os inserimos em nosso

anteprojeto de pesquisa, apresentado em 1999 à comissão de seleção do programa de Mestrado

em História da UFMS, Câmpus de Dourados. Nesse anteprojeto, aberto e abrangente, constava a

jornada a pé do bandeirante Domingos Jorge Velho, visando dar fim ao Quilombo de Palmares.

Há muito, em nossas leituras informais, havíamos nos dado conta da possibilidade de abordagem

do bandeirismo sob a ótica do desempenho corporal, mercê das grandes distâncias cumpridas em

marcha sob condições não raro adversas. Com o estudo da bibliografia para a prova seletiva do

Mestrado, vislumbramos essa possibilidade de forma mais nítida, sobretudo por conta de Holanda

e Monteiro, que descrevem incursões bandeirantistas onde o desempenho corpóreo motriz se fez

verdadeiramente intenso. Com leituras posteriores – já cursando o Mestrado – de Nemésio,

Vasconcelos, Ellis, Volpato, Haubert, Ricardo e Taunay, definimos as bandeiras como objeto de

estudo em nossa dissertação de mestrado, que ora apresentamos. Nossa pesquisa, em seus

primeiros escritos, apresentou uma conotação um tanto quanto desconectada da história.

Alertados pelo Prof. Dr. Cláudio Alves de Vasconcelos, nosso orientador, passamos a entender

de forma menos unilateral as incursões dos bandeirantes, que foram empreendidas em

conseqüência da penúria verificada na Vila de Piratininga, configurando-se portanto como frutos

de uma contingência histórica. Reorientamos nossa redação neste sentido, buscando o

entendimento das atividades físicas dos bandeirantes como desdobramentos desta contingência

histórica, observada no contexto do Brasil Colonial. Outra orientação relevante do Prof.

Vasconcelos foi no sentido de que abordássemos o papel do índio nas bandeiras. Vale dizer que

essa orientação específica ensejou maior respaldo teórico ao nosso estudo, pois possibilitou novos

prismas de análise e observação, que ressaltam naturalmente a contribuição indígena – inclusive em

termos de desempenho corporal – para que as bandeiras alcançassem pontos longínquos do

continente. No trabalho que ora se apresenta buscamos enfocar prioritariamente o

bandeirismo do século XVII, por ser o recorte temporal onde despontam inúmeras incursões que

percorreram grandes distâncias, configurando as situações de maior desempenho físico-motor dos

sertanistas de São Paulo. No entanto, visando não causar detrimento na explicitação dos

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resultados primários de nossa pesquisa, não pretendemos omitir algumas expedições de grande

percurso, observadas fora dos seiscentos. Para tanto, servimo-nos dos esteios de Braudel no que

respeita ao tempo das mentalidades, que aborda as permanências atitudinais e comportamentais,

transcendendo a cronologia. Alicerçamo-nos também em Bloch, que postula o tempo histórico

como a possibilidade de entendimento dos fenômenos, pautando a temporalidade como algo

flexível, que possa assegurar, num sentido mais amplo, a inteligibilidade da produção

historiográfica. A postura destes dois historiadores encontramos em Prieto, que por sua vez

buscou resolver essa questão com maestria, enfatizando que “ el tiempo histórico, hemos señalado

antes, no es el tiempo cronológico.” Prosseguindo com seu arrazoado contundente, o historiador

espanhol escreveu: “... la estructuración positivista de la historia aprisionó el pasado de los

hombres y mujeres en las mallas de la cronologia y prescindió – no podia ser de outra maneira –

de los ritmos próprios de cada formación social histórica, de sus latidos” (PRIETO, 1995, p. 105-

6). Considerando o tempo cronológico como sendo “... el único tiempo de los historiadores

positivistas;” o mesmo autor observa que “tiempo vivido y tiempo cronológico son dos aspectos

diferentes.”

As incursões dos bandeirantes no século XVII configuraram um tiempo vivido que teve

sua gênese nos primeiros anos de fundação da Vila de São Paulo, tendo por outro lado a

predecessão de outras expedições posteriores ao recorte temporal da décima sétima centúria.

Nosso recorte temporal portanto não é estanque, posto que imprescinde de algumas abordagens

que tangem incursões sertanistas já no século XVIII, principalmente aquelas que devassaram o

sertão oeste, culminando com a descoberta do ouro cuiabano em 1718.

Entendemos as expedições do século XVII como elementos de um histórico fenômeno

caminheiro, que iniciou-se quando os primeiros homens do altiplano paulista penetraram as matas à

caça de índios, estendendo-se até princípios do século XVIII, quando as expedições fluviais

Araritaguaba-Cuiabá tornaram-se a principal via de acesso rumo às jazidas auríferas do oeste.

Centramos portanto o foco de nosso estudo nas bandeiras do século XVII, tendo esta

centúria como recorte temporal, cuidando no entanto para que algumas indispensáveis conexões

com a cronologia anterior não fossem lançadas no limbo, em detrimento da compreensão da

atividade corporal como elemento relevante na história do bandeirismo e no contexto do Brasil

Colonial.

Doravante trataremos das considerações sobre o teor de cada um dos capítulos deste

trabalho, buscando explicar as motivações e intencionalidades que lhes ensejaram.

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O Capítulo I, intitulado O Bandeirante e o Bandeirantismo, divide-se em duas partes,

que são: Do mito ao homem comum e A luta contra a natureza. No primeiro destes textos,

dedicamo-nos à tentativa de desconstruir a imagem apologética dos sertanistas de São Paulo,

tangendo a gênese da representação histórico-ideológica que acabou por elevar o andrajoso

piratiningano, paupérrimo e carente, à condição de destemido herói épico, portador de inúmeras

adjetivações enaltecedoras. O marchador das matas da América do Sul, ricamente paramentado e

profundamente religioso, foi uma representação histórica forjada com fins políticos, visando

garantir a manutenção do poder conquistado pelos paulistas no prorromper da proclamação da

República. Líderes natos de perigosas incursões sertanejas, responsáveis pela miscigenação racial

democrática, alargadores das fronteiras do Brasil e patriotas por excelência, os bandeirantes

haviam palmilhado boa parte do continente com suas botas de cano alto, povoando paragens

remotas e gestando cidades.

Donos do poder nos primórdios da República, os cafeicultores paulistas foram os

mentores da empreitada de alçar os bandeirantes à condição sobranceira de líderes ancestrais,

cujos descendentes deviam continuar sua saga de chefiar a nação. A obra de Cassiano Ricardo,

uma de nossas fontes principais neste capítulo, apresenta-se como um expoente em termos de

representação épico-heroística dos bandeirantes que, envergando escupis e portando arcabuzes,

arrostaram os perigos indisíveis das solidões e dos desertos sul-americanos.

Não apenas nos textos produzidos pela historiografia ufanista, mas também na iconografia

que os acompanha, os bandeirantes posam altivos para a posteridade. De suas faces barbadas,

sombreadas por grandes chapéus de feltro, emanam inquestionáveis liderança e irredutibilidade. O

sertanista paulista concebido imageticamente é também sempre branco, erguendo-se racialmente

incólume de uma população profundamente miscigenada. Nesta urdidura ideológica não o

mameluco era sugerido como chefe apto a governar o Brasil, mas o branco de ancestralidade

portuguesa, o descendente puro do europeu.

Eficazmente arraigada no imaginário brasileiro, sobretudo no paulista, a figura do herói

bandeirante paira como um paradigma histórico, passível de ser revista, revisitada e analisada sob

outros ângulos. Grande parte da obra de Sérgio Buarque de Holanda é dedicada à isso. A

contribuição deste historiador é sobremaneira digna de nota, pois foi iniciada nos anos 30 do

século XX, uma época em que o convencionalismo apontava predominantemente para o sentido

de pujança e desassombro ao tratar dos bandeirantes, que eram por sua vez apresentados como

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membros da raça de gigantes. Holanda mobilizou a abordagem do

bandeirismo efetivamente ligando-a ao fator econômico de São Paulo, onde imperava a

adversidade diária da miserabilidade, de onde certamente não haviam saído sertanistas

faustosamente vestidos, mas homens trajando modestas indumentárias, buscando amainar a

situação periclitante de suas vidas. O caminhante de Sérgio Buarque foi o contraponto do

bandeirante de Cassiano Ricardo. Ao furor épico deste último, contrapunha-se a pesquisa

histórica detetivesca do primeiro. A produção historiográfica destes dois autores foi

contemporânea, tendo gerado posturas ferreamente defendidas por ambas as partes. A famosa

controvérsia em torno da noção de homem cordial foi suscitada por Ricardo na obra Marcha

para Oeste, onde discorda enfaticamente das afirmações de Holanda em Raízes do Brasil. Esta

celeuma foi iniciada em 1940, com diversas argumentações divergentes entre os dois

interlocutores, estendendo-se até o ano de 1959, quando Ricardo, ainda de forma pertinaz,

explicita sua discordância ante Holanda, que já tinha escrito em 1948 sobre o seu receio de que

“que já tenha gasto muita cera com esse pobre defunto” (Holanda apud Robert Wegner, 2000, p.

54), mesmo tendo mudado a estruturação de suas assertivas na edição de Raízes do Brasil do

mencionado ano. Este acirrado antagonismo foi aqui evocado para que possamos avaliar

melhor a reação provocada pela metodologia historiográfica de Holanda. Vale lembrar que

Cassiano Ricardo era, antes de historiador, literato reconhecido. Entendemos ser esta observação

aqui necessária, para que se evidencie que este autor era, em primeira instância, mais passível de

enveredar-se pela inobservância das intrincadas minúcias da pesquisa histórica, quedando-se

perante sua inclinação de imaginativo e hábil romanceador, que muitos dilemas resolvia apenas

com o bico da pena, passando à larga das contingências e determinismos históricos. Já Holanda,

seu desafeto e contendor intelectual, dedicara sua vida ao labor historiográfico, fazendo disso sua

principal atividade e sendo reconhecido por muitos de seus pares como um pesquisador

equilibrado e incansável. A trajetória das obras de Holanda foi acompanhada por historiadores

como Affonso Taunay (que publicou o undécimo último volume de História Geral das Bandeiras

Paulistas em 1950, cinco anos após a primeira edição de Monções, de Holanda) e Alfredo Ellis

Júnior, que não demonstraram oponência ante o então novo viés historiográfico proposto pelo

autor, que apresentava os sertanistas paulistas como homens impelidos ao sertão pela carestia da

vida cotidiana na vila de Piratininga. A obra de Holanda, aqui mencionada, embora não tendo sido

utilizada na elaboração do texto que no momento enfocamos, sedimentou de forma efetiva o nosso

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entendimento, em termos mais ordinários, sobre a dimensão humana, não mítica, dos

componentes das bandeiras. Utilizamo-nos dos escritos de Holanda em outra parte de nossa

pesquisa, como ficará exposto adiante. Encontramos na obra Entradas e Bandeiras, de

Luiza Rios Ricci Volpato, uma elaboração textual clara e precisa sobre o bandeirismo. Essa obra

foi por nós utilizada como fonte na redação do texto que ora anunciamos, sobretudo por abordar

a situação embrionária que gestou a construção da representação mítico-épica do bandeirante na

historiografia, que remonta ao século XIX, quando do advento da proclamação da república do

Brasil. A recém instaurada república abrigava em suas cúpulas os representantes da cafeicultura

paulista, elite agrária que pretendia permanecer no poder. O mando no Brasil emanava portanto

dos homens de São Paulo, dos homens que então lideravam as terras ancestrais dos bandeirantes

e também toda a nação. A figura do bandeirante neste contexto foi então utilizada como

instrumento ideológico, como elemento de afirmação política. Neste sentido, o sertanista paulista,

herói e chefe magno, figurou como uma referência, uma alusão histórica que sugeria de onde

deveria emanar o poder não apenas naquele momento, como também no futuro. São Paulo era o

berço dos bandeirantes, abrigando em seu seio os descendentes destes comandantes natos. Nesta

ordem de argumentações, estava presente a idéia – ora implícita, ora explícita – de que os

paulistas eram herdeiros de aptidões naturais de comando. Além de tanger aspectos

significativos da construção da figura do bandeirante, Volpato faz afirmações que podem ser

entendidas como antíteses das assertivas constantes na historiografia apologética, sobretudo a

produzida por Cassiano Ricardo, a qual a autora evoca criticamente mais de uma vez. O homem e

a mulher nativos do Brasil, que na obra de Ricardo figuram como elementos secundários de uma

guerra de conquista encetada pelos bandeirantes, são enunciados por Volpato como atores

históricos, presentes inclusive nas expedições (neste caso os homens), mas passíveis dos mais

torpes aviltamentos e violências advindos dos paulistas. A idéia da bandeira como instituição

democrática, que perpassa a obra de Ricardo, foi antagonizada consistentemente por Volpato em

Entradas e Bandeiras, onde a presença de índios, mamelucos e até mesmo brancos de menor

prestígio – nas expedições – é explicada remetendo ao entendimento de que estes integrantes

estavam submetidos à ascendência dos mestres de campo e seus auxiliares, que não raro agiam

arbitrariamente, cometendo desmandos desbragados. Ressaltemos que muitas expedições

apresentavam características militares, organizadas sob rígida concepção hierárquica, onde

certamente não reinavam os prncípios democráticos, como pretendeu difundir Ricardo.

Ainda na primeira parte do primeiro capítulo, ocupamo-nos da procura de demonstrar

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como o mito do bandeirante – gestado com fins político-ideológicos no final do século XIX –, foi

novamente evocado com intenções parecidas na terceira década da centúria seguinte, quando do

deflagrar da Revolução Constitucionalista de 1932, oportunidade em que o estado de São Paulo,

tendo à testa seus dirigentes, pretendeu, sob o pretexto da reinstauração dos princípios

democráticos, mudar os rumos do poder nacional, então excercido ditatorialmente por Getúlio

Vargas. Na iminência da luta armada, bem como em seu trasncurso, a ancestralidade bandeirante

figurou massivamente na propaganda feita pelos representantes do poder paulista. O passado de

glória dos bravos piratininganos foi revivescido em hinos, jornais, panfletos e através da imprensa

falada. Mandatários do progresso no passado, os habitantes de São Paulo precisavam demonstrar

sua força novamente, agora não com mosquetes ou arcabuzes, mas com baionetas e fuzis calibre

44, configurando-se como os vanguardistas, os iniciadores de um novo tempo para o Brasil. O

povo que já desbravara os sertões da colônia agora devassaria as brenhas fechadas da ditadura

getulista. Para buscar demonstrar esse ressurgir do mito bandeirantista com

finalidades políticas, pesquisamos em livros impressos no estado de São Paulo, cujos autores

foram homens que se envolveram pessoalmente na Epopéia Constitucionalista de 1932.

Exploramos também o valioso arquivo pessoal do Sr. Pedro Toffoli, único combatente vivo dos

66 integrantes do Batalhão XX de Agosto, hoje com 92 anos de vida. Desse arquivo, extraímos

alguns jornais antigos e material propagandístico da Revolução, contendo representação

iconográficas e textos de conteúdo claramente ufanista, que visavam inspirar sentimentos épicos de

coragem e altivez nos componentes do Exército Bandeirante. Também na primeira

parte do capítulo que ora enunciamos, fizemos algumas considerações sobre como a figura do

sertanista herói está alojada no imaginário do senso comum, mercê principalmente da forma de

abordagem do tema bandeirismo no ensino fundamental.

Nossa intenção primordial, no primeiro texto deste

estudo, foi a de procurar encontrar o homem comum atrás do pesado e arraigado aparato

heroístico que reveste o bandeirante, uma vez que o objeto de nosso estudo situa-se na

perspectiva de uma construção historiográfica onde será mostrado o desempenho físico acentuado

do habitante piratiningano, que atormentado pela carestia que campeava em São Paulo, tornou-se

o maior viajor caminhante das matas coloniais.

Na segunda parte do primeiro capítulo, nomeada A luta contra a natureza,

procuramos abordar um aspecto pouco lembrado na historiografia do bandeirantismo, que foi a

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dificultosa transposição da Serra do Mar pelos primeiros homens que alcançaram os campos de

Piratininga. A subida deste grande acidente geográfico é mencionada por vários historiadores, mas

de forma fugaz, sem o devido detimento que parece merecer. Autores tanto da historiografia

crítica, quanto da apologética, são convergentes sobre as grandes dificuldades enfrentadas pelos

escaladores dos hostis rochedos, que quase perpendiculares, empertigavam-se como obstáculos

que por muito tempo haviam impedido o avanço dos habitantes da orla oceância para o interior da

colônia. Os ascencionistas da Serra do Mar foram

submetidos a esforços físicos extremos. O desempenho corporal deles exigido pela montanha

impassível foi brutal. No livro A economia paulista no século XVIII,

Alfredo Ellis Júnior, ao tratar da incipiência dos assentamentos dos vicentinos em Piratininga,

afirma que existe uma lacuna na historiografia que trata do passado paulista, pois esta o descreve

como se a Serra do Mar não existisse. Nesta obra de Ellis, que usamos como fonte para a

elaboração do texto que estamos anunciando, a Serra do Mar é entendida como um imponente

elemento da natureza, que somente foi vencido pelos homens mais aptos fisicamente. O autor se

preocupa em deixar expressa a sua percepção de que a montanha, silenciosa e inerte,

desencadeou uma triagem seletiva natural, de onde saíram vitoriosos os escaladores com maiores

predicados de motricidade e força, ou seja: os mais ágeis e os mais fortes.

Foram três as motivações que nos levaram a escrever um texto específico sobre a Serra

do Mar: a primeira delas é a evidente performance corpóreo-motora ensejada na transposição

deste acidente topográfico, já que o desempenho físico é nosso objeto de estudo; a segunda está

ligada ao nosso entendimento de que a situação germinal do bandeirismo estava ali sendo gestada,

já que num primeiro momento era preciso transpor a montanha, e noutro era necessário caminhar à

caça de índios; a terceira motivação foi a tentativa de demonstrar a condição de isolamento

imposta pela serra aos habitantes do planalto de São Paulo, que após transpô-la arduamente

romperam ligações com a região praiana, iniciando a história das bandeiras propriamente dita,

mercê da miséria econômica de Piratininga.

Trataremos agora do Capítulo II, intitulado Índios: cicerones e

mestres do sertão. Neste texto, procuramos mostrar o importante papel desempenhado pelo

índio nas bandeiras. Na historiografia apologética, a figura do homem natural da terra é

ensombrecida pelo vultoso protagonismo do bandeirante, que a tudo ordena e dá fluxo. O índio

literalmente ensinou ao sertanista paulista os segredos da sobrevivência no meio natural, garantindo

o cumprimento de grandes marchas pelo interior do continente. No entanto, a despeito disso, seu

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notável papel apresenta-se ora esmaecido, ora quase apagado ou até mesmo ausente ou omitido

na produção historiográfica mais convencional. Na caça, na coleta de alimentos, na procura de

água e sobretudo no guiar os paulistas por trilhas desconhecidas, o índio descortinou um novo

modo de vida àqueles homens ignorantes das técnicas nativas da América. Em termos de

desempenho físico, o indígena ensinou aos primeiros sertanistas, singularidades importantes para

atenuar o desgaste das marchas, revelando-lhes novas formas de pisadura, que não concentravam

esforços excessivos em poucas junturas ósseas, propiciando um trabalho mais generalizado das

articualções dos pés, diminuindo assim as possibilidades de surgimento de lesões tendíneo-

ligamentosas, bem como das dores que as acompanham, o que por fim favorecia o aumento das

distâncias percorridas. As adaptações corporais dos sertanistas às técnicas

indígenas não se restringiram à forma de pisar, requereram aprendizados significativamente mais

complexos, que envolveram remodelações e substituições importantes em seus padrões de

coordenação motora. Nas práticas de caça, os sertanistas aprenderam a usar o arco e a flecha,

instrumentos que até então não haviam utilizado. Para que se tornassem arqueiros ou flecheiros

eficientes, precisaram reordenar, reorientar seus padrões corpóreo-motrizes, ajustando-os à arma

indígena. Especificamente sobre este aprendizado, fizemos uma lacônica análise cinesiológica no

texto que ora enunciamos. A

contribuição dos índios nas bandeiras era sobremaneira aparente nas paragens carentes de caça.

Nessas oportunidades o índio assumia inteiramente o protagonismo, se assim pode ser dito.

Famintos, os paulistas dependiam inteiramente da perícia nativa em encontrar mel. Muitos índios

eram extremamente hábeis nesta tarefa, que consistia em avistar a abelha e correr atrás dela pela

mata, portando machados e cabaças, até que o vôo do inseto finalmente se finasse nos favos. Essa

destreza indígena, que impressionou muita gente no Brasil Colonial, envolvia dispêndio energético

acentuado, denotando apurado desempenho físico global, uma vez que exigia capacitações

múltiplas: relativas à resistência aeróbica, à coordenação motriz e à percepção espaço-temporal,

além da óbvia acuidade visual.

Nos sertões pobres de caça, a habilidade de prospecção melífera dos índios amainou a

fome de muitos bandeirantes, não apenas permitindo que continuassem seus avanços, como

também salvando muitos deles da morte por inanição.

Os índios foram importantes atores históricos da época bandeirantista, sobretudo no

século XVII, quando, segundo Monteiro, tornaram-se bem mais numerosos nas expedições. A

destreza em encontrar água foi outra grande contribuição dos indígenas engajados nas bandeiras.

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Tal perícia, que envolvia técnicas diversas, favoreceu o caminhar das expedições pelos sertões

sem água.

Para a elaboração desse Capítulo II servimo-nos da produção de dois autores da

historiografia crítica, Luiza Volpato e Sérgio Buarque de Holanda, utilizando respctivamente como

fontes suas obras Entradas e Bandeiras e Caminhos e Fronteiras.

O Capítulo III, que no momento passamos a comentar, intitula-se Fugindo do

tempestuoso dilúvio: índios e jesuítas navegando e marchando no sertão. O texto subdivide-

se em três partes: Vivendo bandeirantemente e morrendo cristamente: a remissão dos

predadores de gente (parte 1); Capelães, beatões e padres: cúmplices da violência

bandeirantista (parte 2) e A fuga do Guairá: medo historicamente construído e terror

supersticioso determinam sôfrega motricidade humana (parte 3).

Utilizamos como fontes bibliográficas as obras Índios e jesuítas nos tempos das missões

– de Maxime Haubert; Marcha para o Oeste – de Cassiano Ricardo e sobretudo A conquista

espiritual – de Antônio Ruiz de Montoya. Além destas obras, qualificadas como fontes, outras

duas também foram utilizadas de forma significativa: Negros da terra – de John Monteiro e

História das bandeiras paulistas – de Affonso Taunay.

Na primeira parte do texto, já nomeada, tratamos da questão da violência dos ataques

bandeirantes às reduções inacianas. Extremamente ofensivas, as expedições apresadoras

promoveram a matança de muitos índios reduzidos no Guairá, revelando uma situação de

agressividade repetitiva e contumaz, já que os ataques foram ocorrendo ao longo do tempo, na

primeira metade do século XVII, até que onze povoações fossem destruídas.

A ofensividade intensa dos sertanistas de São Paulo, com todas as suas implicações

predatórias, ressaltou-se como técnica militar nas bandeiras do século XVII. Matava-se parte do

contingente inimigo para capturar sua outra fração, que nem sempre era pequena. Chacinas para

obter a escravização, esta era a essência dos objetivos dos bandeirantes, que se organizavam

como regimentos de combate, caminhando pelas matarias à procura de índios. Desta forma, muitos

sertanistas atravessavam a vida, promovendo a violência e a devastação, derramando farto sangue

indígena no Brasil Colonial, principalmente no século XVII, quando o apresamento adensou-se

nitidamente. A despeito disso, a religiosidade fez-se presente entre os componentes das bandeiras.

Não aquela religiosidade estritamente cumpridora dos ditames católicos, mas uma religiosidade

profundamente temerosa, consciente de suas abominávies faltas e preocupada com o perdão

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formal dos homens do clero. É recorrente na historiografia a singular mudança de maneiras

observada em muitos bandeirantes idosos. Já se aproximando do fenecimento, o violento caçador

de índios buscava redimir-se perante Deus, deixando bens em espólio para confrarias religiosas,

comungando freqüentemente, solicitando a visita do padre quando doente e finalmente

reconhecendo filhos bastardos, frutos de cópulas (muitas vezes forçadas) com índias. Procuramos

portanto demonstrar essa devoção peculiar, que não sofreava a agressividade desabrida, mas que

atormentava os sertanistas por toda a vida, tornando-os na velhice obsecados com a salvação

eterna. Na segunda parte do texto, cujo título também já mencionamos,

buscamos o entendimento acerca da função dos capelães que acompanhavam as bandeiras. Estes

homens receberam do padre Montoya o depreciativo epíteto de beatões, dadas as particularidade

de suas maneiras condescendentes ao presenciar os assassinatos e os apresamentos dos indígenas.

Essa condescendência não era explí cita, mas sim atitudinal, uma vez que esses capelães buscavam

conversar sobre a devoção a Deus com os jesuítas das reduções no próprio momento do

apresamento, com a barbárie campeando à sua volta. Levar padres nas expedições fazia parte das

necessidades dos bandeirantes, especificamente visando obter perdão por seus atos.

Ainda nesta segunda parte do

Capítulo III, julgamos também importante buscar informações adicionais sobre a conduta dos

clérigos coloniais antes e depois do século XVII, visando sobretudo apurar se os falsos devotos –

como os adjetivou Haubert –, se fizeram presentes apenas nas expedições bandeirantistas. Nessa

procura, encontramos na obra A Companhia de Jesus e o plano português do Brasil, de

Vitorino Nemésio, importantes menções sobre a chegada do padre Manuel da Nóbrega ao Brasil,

na metade do século XVI, quando este sacerdote ficou estupefato com o desregramento e a

licenciosidade dos padres da Bahia e de São Vicente, que mantinham relações sexuais com índias,

sendo que alguns deles dispunham de seis delas para tal prática. Foram muitos os filhos naturais

advindos destas relações, valendo observar que vários padres se tornaram pais seis ou sete vezes.

Já na obra História Geral das Bandeiras Paulistas, de Affonso Taunay,

encontramos valiosas informações sobre as iniqüidades do clero no início do século XVIII, após a

descoberta das minas auríficas. Religiosos de diversas ordens afluíram para os locais de

mineração. Estes clérigos de má vida, como os alcunhou Taunay, iam para as áreas mineiras para

fugir às penas impostas pelas cúpulas católicas, ou até mesmo buscando evadirem-se das garras da

justiça real. Dessa forma, é fácil entender que estes homens não tinham um passado sem máculas.

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Agindo em contrariedade às ordens de seus superiores clericais, que reiterada e oficialmente os

admoestavam a retornar a seus conventos e paróquias, esses padres teimavam em permanecer nas

minas, onde levavam vida livre, inseridos num ambiente heterogêneo, onde pessoas de conduta

suspeita não eram necessariamente raras. Buscando a síntese desse texto,

esclarecemos que nosso intento primordial foi analisar a função dos capelães nas bandeiras, os

quais entendemos também como elementos apresadores passivos, já que não sofreavam, em

nenhum momento, as atividades destrutivas dos bandeirantes. Porém não nos furtamos de

pesquisar um pouco mais amplamente sobre a conduta do clero no período colonial, pesquisa essa

que nos propiciou a compreensão de que as atitudes condenáveis – aos olhos da igreja – dos

capelães paulistas não foram isoladas, não estando portanto circunscritas apenas ao bandeirismo.

Se os beatões de Montoya – que são os mesmos falsos devotos de Haubert – faziam vista grossa

à chacina e à escravização de índios no século XVII, os padres que indignaram Nóbrega na

centúria anterior já se regalavam sexualmente com mulheres indígenas, sendo que também no

começo dos oitocentos os clérigos de má vida, abordados por Taunay, viviam em notório

desregramento ao redor das minas de ouro. Revela-se, portanto, a notável incidência de religiosos

que contrariavam os dogmas da Igreja no Brasil dos séculos XVI, XVII e XVIII, avultando-se os

capelães bandeirantistas, pelos atos bárbaros que presenciaram sem nada fazer.

Na terceira parte do Capítulo III, cujo título já teve sua enunciação, tratamos da

abordagem de alguns aspectos significativos da retirada dos doze mil índios de San Ignácio e

Loreto, as duas últimas reduções dentre as treze anteriormente existentes no Guairá. Dirigida pelo

padre Ruiz de Montoya, essa fuga em massa para o extremo sul teve implicações singulares. Antes

da partida, onze povoados haviam sido devastados pelos bandeirantes. A face mais fria da vilania

havia se revelado portanto inúmeras vezes. Destarte, os índios de Loreto e San Ignácio

experimentavam uma profunda sensação de perigo iminente, presas do medo historicamente

construído. Entre os missionários, além do medo de homens, iniciou-se um processo de

exacerbação mística, onde as inquietações advindas de especulações sobrenaturais associavam os

bandeirantes ao diabo. Essas aflições religiosas forma naturalmente passadas para os índios, já que

estes estavam ali sendo doutrinados pelos jesuítas. Indícios malígnos eram entrevistos pelos

missionários, como estátuas suando ou chorando, aparições do diabo disfarçado de mameluco ou

até mesmo ardilosamente sob a forma da Rainha do Céu.

Estava presente no Guairá, de forma evidente, todo o arcabouço

dogmático espiritual da Idade Média européia, especialmente respeitante à Espanha, berço da

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Companhia de Jesus. A permanência da mentalidade religiosa medieval, com todo o seu fatalismo

e sobrenaturalidade, delineou-se detalhadamente em Loreto e San Ignácio. Os escritos de

Montoya deixam isso muito claro, pois anunciam a proximidade do final dos tempos, associando-a

ao determinismo da passagem de um cometa. Em recente obra, intitulada Ano 1000, ano 2000:

na pista de nossos medos, Georges Duby aborda esta questão dos sinais da natureza, que eram

entendidos no medievo como anunciadores do juízo final. O historiador francês inclusive cita as

aparições de cometas entendidas como presságios, prelúdios do fim do mundo. Montoya, em

certo trecho de A conquista espiritual, na iminência da partida para fugir dos bandeirantes,

expressa-se como alguém que teme a proximidade inadiável do juízo final, exteriorizando, pelo

teor ou conotação de suas palavras, sua convicção acerca do avizinhamento deste evento. Os

bandeirantes chegariam espalhando a devastação. Estátuas haviam suado ou chorado. Aparições

sob a forma de mamelucos haviam sido observadas ... As hordas anticristãs1, os destruidores

do gênero humano2 irromperiam em breve das matas, abatendo-se implacavelmente sobre as

duas derradeiras povoações guairenhas. Os índios, doutrinandos dos missionários, absorveram

todo esse denso imaginário apocalíptico, experimentando portanto não apenas o medo do

bandeirante cruel e palpável, mas também do sertanista avatar do mal, impregnado de

malevolência satânica. Para as intenções primordiais de nossa pesquisa,

que centram-se na análise do desempenho corporal humano, a abordagem dessa situação de

medo profundo e coletivo foi fundamental, pois abriu perspectivas coerentes, em termos

estritamente científicos, de entendimento sobre a fuga dos doze mil índios do Guairá, liderada pelo

padre Montoya.

A fisiologia humana, ciência que trata do funcionamento e das funções orgânicas,

possibilitou-nos o respaldo necessário para escrever com segurança sobre a intensa motricidade

evidenciada pelos retirantes. O temor é uma sensação que desencadeia uma grande gama de

modificações fisiológicas no corpo humano. Tendo sido os habitantes guairenhos submetidos ao

medo historicamente construído (onze reduções haviam sido devastadas), bem como ao terror

supersticioso (disseminado pelo s jesuítas), torna-se evidente que em seus corpos operou-se uma

importante mudança de padrões fisiológicos, cujas especificidades determinaram uma situação de

motricidade intensa. Em outros termos, pode ser dito sem reservas, que o desempenho corporal

durante a fuga foi intensificado pelo medo. Um desempenho corporal sôfrego e obviamente

1 Maxime Haubert, aludindo ao misticismo reinante no Guairá, escreveu que os mamelucos “ fariam parte das hordas do anticristo” (Haubert, 1990, p. 170).

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notável, que fez com que os fugitivos alcançassem os limites do sul brasileiro, depois do

padecimento da fome, da epidemia de disenteria e da exaustão física advinda da marcha e da

navegação.

As implicações fisiológicas advindas do medo são muitas. Pesquisamos na literatura

específica da fisiologia do medo, buscando informações precisas sobre a relação medo-

motricidade humana, visando sobretudo entender mais esmiuçadamente acerca do desempenho

motor dos retirantes do Guairá. Dessa pesquisa resultou um rol de informações indispensável para

as intenções desta dissertação. Dessa forma, muitas explicações de ordem fisiológica estão

inseridas no próprio texto que ora introduzimos, mas outras, necessariamente detalhadas, forma

introduzidas ao final do trabalho, em forma de anexo. As explicações fisiológicas contidas no

próprio texto, em nosso entendimento não reompem seu fluxo em termos historiográficos. Porém

as outras, que estão em anexo, se inseridas no texto causariam um hiato na sucessão dos eventos

analisados. Fazemos aqui estas considerações para justificar a presença das laudas em anexo, que

não obstante saibamos não ser procedimento ordinário em trabalhos científicos, foram apensas

motivadas precisamente por duas razões que emanam puramente do cientificismo. A primeira

dessas razões é a preservação do entendimento histórico, que como já dissemos seria prejudicado

por explicações fisiológicas detalhadas no próprio texto, uma vez que tais informações são

compactas e extensas. A segunda razão reside na imprescindibilidade, na indispensabilidade de

constar nesta dissertação todas as implicações fisiológicas do sentimento de medo, pois este

assunto está relacionado, de forma indissociável, ao desempenho físico dos retirantes do Guairá,

que é o que buscamos evidenciar no texto. A

caminhada para contornar as grandes quedas do rio Paraná, bem como a navegação em

cachoeiras e correntes pedregosas, exigiu dos guairenhos um dispêndio energético muito grande,

que exauriu seus corpos inopinadamente. Além da marcha e da navegação, mostrou-se também,

de forma evidente, a grande habilidade de nado dos índios, quando algumas embarcações

soçobraram. Muitos retirantes morreram pelo caminho, obstados pelas adversidades da disenteria,

da falta de alimentos e do esgotamento corporal advindo do caminhar e do navegar. Os que

alcançaram o sul do Brasil, alquebrados e esfalfados, ainda se puseram a reconstruir San Ignácio e

Loreto, edificando prédios e templos, amainando e lavrando a terra.

O êxodo dos índios e missionários do

Guairá foi, em nosso entendimento, um episódio histórico onde a atividade corpóreo-motora se fez

2 Montoya, sobre os bandeirantes, escreveu “É seu instituto ... destruir o gênero humano” (Montoya, 1985, p. 125).

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intensa, ensejada pelo medo de sertanistas agressivos e escravocratas, que humanos ou inumanos,

por sua vez também se movimentaram muito pelo Brasil Colonial, buscando aplacar a carestia de

suas vidas. Comentemos agora o Capítulo IV: Bandeirismo: desempenho corpóreo-motor

no Brasil Colonial. Este capítulo, o último de nossa pesquisa, divide-se em duas partes. Na

primeira delas, intitulada Meninos, homens e anciãos: sede, fome e cansaço na marcha

sertaneja, abordamos as implicações de notáveis adversidades verificadas nas caminhadas das

bandeiras, buscando demonstrar que nessas oportunidades a performance física revelou-se de

forma intensa, sobretudo pelos grandes percursos levados a termo. Milhares de quilômetros foram

vencidos em situações distintas, onde a exaustão, a fome e a sede não raro se fizeram presentes.

Nessas expedições, a presença de meninos ainda púberes, bem como a de homens idosos, foi por

nós entendida como passível de mais detida análise, já que em extremos opostos da vida, em

termos de idade, tais expedicionários denotaram ainda mais a performance física intensa, devido às

características anátomo-fisiológicas próprias dessas faixas etárias, comprovadas cientificamente

como limitantes em atividades que reivindicam esforços acentuados e constantes. Visando

propiciar melhor entendimento sobre a inclusão de meninos e anciãos nas bandeiras, em termos de

desempenho físico, lançamos mão de explicações fisiológicas e anatômicas, que esclarecem, em

termos precisos, as particularidades das limitações impostas ao corpo pela meninice e pela velhice.

Tais explicações, para não romper o fluxo do texto, foram colocadas em forma de notas de

rodapé.

No mesmo texto, tecemos também algumas considerações sobre a motivação primeva de

nosso estudo, que busca o entendimento acerca da atividade física do bandeirante não concebido

como herói, mas enfocado sob o prisma da historiografia crítica. Nesse sentido, julgamos ser

necessário dizer que a construção da figura do bandeirante herói, ao invés de ressaltar as evidentes

performances corpóreo-motrizes levadas a cabo nas marchas, acabou por ocultá-las, já que as

diluíram em partículas infinitesimais, inseridas em textos pomposos e empolados, onde profusos

adjetivos eruditos concorrem para alçar o viandante planáltico à categoria de personagem

epopéico. As marchas dos heróis, nesta representação apologética repleta de interfaces, padecem

sob o domínio das motivações ideológicas, calcadas predominantemente na sugestão de liderança

nata dos paulistas. Em outras palavras, o mito bandeirante, de certa forma e curiosamente, não se

detém na particularidade mais espantosa de seu pretenso protagonista: o desempenho corporal

evidentemente acentuado. A historiografia ufanista não se detém nisto pelo perigo daí decorrente

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em evidenciar demais a pobreza de São Paulo, fator econômico que ensejou as grandes jornadas.

Se percebidos como miseráveis, os paulistas iniciariam a ser entendidos como homens comuns,

começariam a ser despidos de suas vestes de heróis, perdendo sua aura mítica. O homem

ordinário seria então vislumbrado ... mas o Brasil está cheio de homens ordinários. A nação não

precisaria portanto de um paulista para governá-la. Poderia ser um mineiro, um pernambucano ou

um matogrossense, já que o paulista nada tinha de diferente. Estaria assim desconstruída a

representação heroística do bandeirante, caso a historiografia apologética o apresentasse como

homem envergado e condicionado pelos determinismos históricos de seu tempo. Para nós,

que procuramos visualizar o bandeirante sob o viés da historiografia crítica, evidencia-se ainda

mais a faceta do paulista viandante, que buscando se safar da carestia denotou notável rendimento

motriz, percorrendo áreas grandes não apenas no interior da colônia portuguesa, como também na

América espanhola. Entendemos que qualquer outra característica

construída do bandeirante não consegue, mesmo que tantas vezes reiterada na historiografia

apologética, sobrepujar a faceta mais significativa do homem piratiningano, que foi a de cumpridor

de extensas e extenuantes jornadas a pé, oprimido pela carestia do planalto paulista.

Na segunda parte do último capítulo, intitulada O papel da

motricidade bandeirante na mudança da configuração contextual do Brasil Colonial,

procuramos mostrar como a motilidade dos paulistas causou modificações significativas na

sociedade colonial. Nessa tarefa, a obra ¿ Y que és la História ?, de Saturnino Sanches Prieto,

de imediato descortinou importantes possibilidades de aplicação objetiva em nosso estudo,

apresentando-se como satisfatório respaldo teórico-metodológico. Utilizamos também os

conceitos de Romein citados na obra de Prieto sobre “ El Progreso”, ao abordar a prosperidade

dos engenhos nordestinos, em contraposição à penúria vivenciada em Piratininga, berço do

bandeirismo. Prieto, citando Romein, escreveu que a “ atmosféra de la autosatisfaccion es

suscetible de actuar como un freno a nuevos progresos”, observando ainda que “ el progreso

viene muchas veces de otros pueblos atrasados ...” , e ainda que “ ... el retraso, en ciertas

condiciones, es una vantaja que espole hacia nuevos esfuerzos” . O atraso de São Paulo em

relação ao Nordeste no século XVII era evidente. Nos sólidos engenhos nordestinos, alicerçados

no poder dos grandes senhores de terras, a “ atmosféra de autosatisfaccion” se fazia presente. Na

Vila de Piratininga, cujo cotidiano se fazia repleto de privações e adversidades, tal “atmosféra”

não era experimentada, ensejando condições onde a população buscou soluções práticas para

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seus problemas, configurando os “ nuevos esfuerzos” de um “ pueblo atrasado”, que devassou

as brenhas à cata de índios e minerais de valor. A leitura da obra de Prieto, além de ter sido útil em

termos de aplicação prática em nossa pesquisa, facilitou, através das teorias do historiador J.

Romein, um entendimento mais específico do que é entendido como progresso em termos

historiográficos, contribuindo sobretudo para que pautássemos, de forma mais embasada, a

situação econômica díspar verificada entre o planalto de São Paulo e as capitanias do nordeste.

Após feitas as considerações sobre os

fatores que determinaram as marchas dos bandeirantes, fatores esses entendidos como

contingências históricas, partimos para a análise de algumas expedições bandeirantistas do século

XVII, que por suas peculiaridades variadas configuraram-se como situações onde a faina física

avultou-se de forma perceptível. Abordamos a expedição de Domingos Jorge Velho, que cumpriu

seis mil quilômetros de percurso antes de assaltar o Quilombo dos Palmares. Enfocamos também a

bandeira de Antônio Raposo Tavares, que caminhou de dez a doze mil quilômetros pela América

Colonial. Nessas duas oportunidades as dificuldades foram extremas,com muitas baixas

registradas em seus respectivos contingentes.

Agruras significativas foram também vivenciadas pelas expedições do início do século

XVIII, que trouxeram à luz o ouro de Cuiabá, no Centro-Oeste brasileiro, afastado

aproximadamente dois mil quilômetros de São Paulo. Pululam na historiografia – tanto crítica

quanto apologética – os revezes enfrentados pela prospecção aurífica no oeste, à época em

muitos pontos intocado por homens não naturais daquela extensa área. A bandeira de Pascoal

Moreira Cabral jornadeou por caminhos incógnitos, antes de encontrar incrustações de ouro nas

barrancas do Coxipó-Mirim. Não menores adversidades enfrentou Miguel Sutil, que graças a dois

indígenas coletores de mel, encontrou o ouro de aluvião, no lugar onde germinaria a vila de

Cuiabá. Contemporaneamente, em terras goianas, a expedição de Bartolomeu Bueno da Silva

Filho perdeu quatro dezenas de integrantes, mercê do esgotamento corporal imposto pela fome.

Depois desse infortúnio, em nova arremetida, o próprio Bueno da Silva acabou por liderar outra

expedição, desta feita encontrando os jazigos auríferos de Goiás. Essa expedição, para Synésio

Sampaio Góes Filho – que publicou em 1999 a obra Navegantes, bandeirantes, diplomatas –

foi a última bandeira típica de que se tem notícia. Não faz parte de nossas intenções embasar

demoradamente nossa concordância ou discordância em relação às palavras deste autor, já que o

foco central de nosso estudo não procura tanger essa questão. Contudo, expressamos nosso

entendimento de que a passagem da época bandeirantista para a monçoeira não se deu de forma

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compartimentada, abrupta ou estanque. As monções foram gestadas no bojo do bandeiriamo, cujo

princípio primário era a locomoção, que entre estes dois períodos utilizou-se de vias de

penetração distintas: as veredas das matas e a rede hidrográfica.

A descoberta do ouro no Centro-Oeste deu-se no ocaso do bandeirismo. As últimas

expedições a pé propiciaram então, pelo sucesso de suas prospecções minerais, um afluxo de

grande contingente para a proximidade das minas. Essa migração envolveu não apenas os

moradores da colônia, como também os de além-oceano. Em face disso, foi aberto um caminho

pedestre para Goiás, ao mesmo tempo em que as expedições fluviais Porto Feliz-Cuiabá foram se

tornando a preponderante via de acesso para as paragens do ouro de aluvião. Esmaecia o

bandeirismo propriamente dito, que em primeira instância causara essa nova dinâmica na colônia,

uma nova época, no dizer de Alfredo Ellis Júnior. A transmigração acentuada,

que envolveu milhares de pessoas, acabou por deslocar as populações do nordeste para o

sudeste, ponto de partida para alcançar as minas recém-descobertas. Dessa forma, a

prosperidade que antes se associava ao cultivo canavieiro nordestino, passou a ser relacionada à

mineração. O rush do ouro no século XVIII acabou por adensar demograficamente outras áreas

do Brasil, que atraíram – com o correr do tempo – para si, até mesmo o poder político central,

que transladou-se da Bahia para o Rio de Janeiro em 1763. As monções partiam de São Paulo,

pelo rio Tietê, atraindo aventureiros provindos de diversos lugares. A capitania de São Vicente

aumentou drasticamente sua demografia, tornando-se paulatinamente a mais populosa da colônia,

característica que – guardadas as devidas proporções – ainda é observada no estado de São

Paulo do Brasil atual.

Estas últimas observações, quase um exercício parafraseático de alguns trechos da última

parte do Capítulo IV, foram ensejadas para que evidenciemos nosso entendimento de que a

motricidade corporal dos integrantes das bandeiras, tendo como fator desencadeante a pobreza

paulista, contribuiu, de forma importante, para a mudança da configuração contextual do Brasil

Colonial. O ouro estava no interior do continente, no hinterland, distante e escondido. Os

bandeirantes o encontraram, após uma miríade de expedições desvestidas de êxito. Marcharam

não raro exaustos, ultrapassando os limites de seus próprios corpos, acossados pela sede, pela

fome e pelo sentido de alerta ante as matas desconhecidas. O desempenho físico desses andejos

possibilitou o encontro do almejado metal, que por sua vez determinou as significativas mudanças

ocorridas no Brasil Colonial, já aludidas preliminarmente.

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CAPÍTULO I

O BANDEIRANTE E O BANDEIRANTISMO

A análise do movimento bandeirantista, fora da ótica do herói, a partir do estudo

das condições sociais de vida, evidencia o alto nível de violências perpetradas contra os silvícolas ...

Luiza Volpato

1. Do mito ao homem comum

O marco inicial da colonização efetiva do Brasil foi a fundação da Vila de São Vicente, por

volta de 1532. Situado em estreita faixa litorânea, o núcleo populacional nascente, instituído por

Martim Afonso de Souza, voltava-se para a Metrópole de além-mar. Já no princípio do

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povoamento, foi construído o primeiro engenho de açúcar da Colônia, sob o nome de São Jorge

dos Erasmos, tendo o segundo surgido quase simultaneamente, denominado Madre de Deus.

Distante duas léguas, nascia também a Vila de Santos, erigida por Brás Cubas.

O cultivo canavieiro em São Vicente logrou êxito, com produção suficientemente

satisfatória para que o porto de Santos sustentasse movimentado comércio. A navegação regular

que paulatinamente se estabeleceu, propiciou aos vicentinos um cotidiano sem graves carências,

permitindo-lhes inclusive a obtenção de produtos provenientes da Metrópole.

A Serra do Mar foi transposta duas décadas depois da fundação de São Vicente, a 08 de

setembro de 1553, ensejando a ocupação do planalto paulista. Estava lançada a semente de uma

sociedade que viria a se distinguir daquela que vivia na orla marítima. No lugar onde era a aldeia

Inhapuambuçú, do líder indígena Tibiriçá, os jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta

fizeram germinar a Vila de Piratininga, a 25 de janeiro de 1554, referência decisiva para o

engrossamento da ocupação planaltina.

Do povoado que então se formou surgiria a figura do sertanista, do andejo que viria a

adentrar as matas visando apresar índios para, num primeiro momento, escravizá-los no labor

assistencial e, posteriormente, com a demanda de mão-de-obra dos engenhos, comercializá-los.

Essa relevante faceta do bandeirante, caçador e traficante de indígenas, é minimizada

sobremaneira na obra de Ricardo, que engendra uma concepção identitária do homem planáltico

representado predominantemente como um desbravador heróico e cristão, em busca de ouro e

pedras de valor.

Confessa-se o chefe da bandeira antes de sair. Logo depois parte o grupo heróico e aguerrido. Rezarão por ele os poucos que ficaram. Também ele o fará, já nos confins do mundo ...(RICARDO, 1942, p. 211).

O autor de Marcha para Oeste ainda confere aos bandeirantes as qualidades de arautos

da democracia, de opositores do capitalismo mercantilista europeu e de promotores da

miscigenação racial.

Evidenciou-se em VOLPATO (1985) que as bandeiras não eram agregações

democráticas, caracterizando-se por uma rígida estratificação hierárquica, onde o mando do cabo-

de-tropa ou mestre-de-campo era proeminente. A participação indígena nas expedições

desenvolvia-se sob o espectro do autoritarismo, sendo que os trabalhos executados por não

índios, situados nos patamares hierárquicos inferiores, também ocorriam sob a mesma égide.

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Ressaltemos que muitos aborígenes engajados nas bandeiras de caça ao índio, eram eles

mesmos provenientes de apresamentos anteriores.

Essa prática remonta aos primórdios do bandeirismo, quando os primeiros índios foram

amansados pelos paulistas.

Na obra A questão indígena na província de Mato Grosso escreveu Vasconcelos:

Marcante, contudo, foi a formação de bandeiras com a presença de índios para combater e capturar outros índios. (...) Desde o século XVI os portugueses usaram intermediários indígenas na busca de cativos (VASCONCELOS, 1999, p. 105).

Tecendo considerações sobre os subterfúgios apologéticos de Ricardo, observou o

mesmo autor:

Na obra Marcha para oeste, Cassiano Ricardo tentou eximir o bandeirante da responsabilidade sobre a chamada fase da ‘bandeira de prea’, dando um significado mais complexo ao bandeirantismo (VASCONCELOS, 1999, p. 104).

Essas palavras de Vasconcelos são lapidares, uma vez que propiciam um entendimento

mais crítico acerca do tergiversar de Ricardo, que busca evasivas para ocultar a característica do

bandeirante como caçador de indígenas. Evidenciando não apenas o apresamento, como também

o engajamento do próprio índio nas expedições apresadoras, Vasconcelos contribui notadamente

para protrairmos a intencionalidade presente no discurso de Ricardo, que simplesmente

fundamenta a mobilidade bandeirantista na perspectiva de obtenção de minérios valiosos, lançando

mão de um vocabulário exageradamente épico, evocando até mesmo seres mitológicos, guardiães

de riquezas naturais ignoradas pelos paulistas. Vejamos as palavras de Ricardo sobre as

motivações das marchas bandeirantistas:

... Atrás daqueles mataréos trágicos que pareciam querer contar-lhes o segredo de uma fortuna escondida por dragões exclusivistas e odiosos. Esses mitos, sim – arrastaram os grupos terra adentro. Naquela mobilidade dramática e estrepitosa que ainda nos enche de espanto ... (RICARDO, 1942, p. 46).

Panegirista do bandeirismo, Ricardo afirma, na mesma obra, que o objetivo principal das

expedições era a busca de pedras preciosas, chegando a mencionar que “uma esmeralda valia

mais que um latifúndio” (RICARDO, 1942, p. 51). Nota-se claramente a tendência antagônica de

suas assertivas, posto que na mesma obra o autor atribui aos bandeirantes a característica de

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opositores do capitalismo mercantilista europeu. Parece-nos que quem parte para os mataréos

trágicos em busca de algo de grande valor, está em verdade raciocinando sob a lógica capitalista,

ansiando por lucro pecuniário. Expedições que buscavam unicamente riquezas minerais realmente

existiram, porém a maioria das bandeiras tinha como objetivo principal o apresamento de índios,

visando o labor escravo assistencial e o tráfico escravista para os engenhos canavieiros, o que

também era uma atividade mercantil do capitalismo, em sua fase de acumulação primitiva. Algumas

dessas expedições, ao mesmo tempo que apresavam aborígenes, não se furtavam de promover

também a prospecção de jazidas minerais, com as atenções de seus integrantes também voltadas

para este fim.

MONTEIRO (1994) explica que o ciclo bandeirantista de apresamento de índios só

findou-se no final do século XVII, quando a busca de jazidas auríferas robusteceu-se

notadamente.

No que tange à miscigenação, a representação mítica do bandeirismo engendrou a idéia de

igualdade e democracia racial. A igualdade inter-racial inexistiu nas bandeiras. Exemplo modelar é

o de Fernão Dias Pais, que para seus dois filhos dispensava atenções díspares. Um deles, Garcia,

“legítimo branco”, recebia atenções paternais convencionais; o outro, José, “mestiço-bastardo”,

experimentou o detrimento imposto por sua hibridez.

A última expedição de Fernão Dias partiu do planalto paulista em 1674. Já no sertão

houve um motim, que foi debelado com a execução dos amotinados. Entre os assassinados estava

José, o filho mestiço do chefe bandeirante.

Domingos Jorge Velho extinguiu definitivamente o Quilombo de Palmares em 1695,

quando matou o líder negro Zumbi. Tempos depois, instalado na propriedade que recebeu como

recompensa pelo feito, foi visitado pelo Bispo Dom Francisco de Lima. O religioso horrorizou-se,

quando Jorge Velho apresentou-se com suas sete concubinas índias.

Ao Bispo horrorizavam particularmente as ‘barbaridades, costumes e vícios’ do paulista, que andava ‘metido pelas matas à caça de índios e índias, estas para o exercício de suas torpezas e aqueles para o granjeio de seus interesses.’ (GRYZINSKI, 1995, p. 74)

A democratização biológica mitificada por Ricardo, parece em primeira instância,

esbarrar na poligamia. As relações sexuais entre bandeirantes e índias eram principalmente

pautadas por motivações unilaterais, com o sertanista subjugando a mulher, não se importanto com

sua disposição para o ato.

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Observemos o que escreveu Volpato:

Era comum ao homem do sertão o uso de índias como concubinas. Esse concubinato era ao nível da exploração, numa relação na qual a índia era aviltada, tanto em sua condição de mulher, como em sua condição de raça dominada (VOLPATO, 1985, p. 73).

O abuso sexual de mulheres autóctones era na verdade um costume claramente recorrente

entre os bandeirantes. Muitas vezes, as índias nem mesmo eram tomadas como concubinas, já que

o concubinato é entendido como convivência e conjunção carnal cotidianas. O uso de índias

como concubinas, como escreveu Volpato, talvez fosse uma prática menos ultrajante – se

podemos assim dizer – que a curra ou o estrupo propriamente ditos, verificados principalmente

nos ataques às reduções jesuíticas. Quando do assalto dos paulistas à redução de Jesus Maria,

observemos o que escreveu o Padre Ruiz de Montoya:

Às mulheres deste povo e de outros destruídos, quando de boa aparência, fossem elas casadas, solteiras ou pagãs, encerrava-as o dono consigo num aposento, passando com elas as noites como o faz um bode num curral de cabras (MONTOYA, 1985, p. 246).

Relações sexuais forçadas, onde a aquiescência das índias era obtida através da violência.

Estas são as situações mais recorrentes na história do sertanismo, sendo bem mais esporádicas as

ocasiões onde a cópula era precedida por cortejos, ou após o consentimento do autóctone

progenitor da mulher desejada.

Neste sentido, a democratização biológica que Ricardo atribuiu aos bandeirantes não

parece ter sido construída em bases essencialmente democráticas. Contudo, vejamos as palavras

desse autor: “... A mestiçagem é uma reação bio-democrática da raça contra uma condição social

anti-democrática” (RICARDO, 1942, p. 63, Vol. 2).

Conforme ficou claro em Gryzinski, Volpato e Montoya, o uso sexual das mulheres

naturais da terra era encetado pela vontade inflexível dos sertanistas. Em outras palavras,

parafraseando Ricardo, pode ser dito que a mestiçagem é uma reação bio-ditatorial contra

uma condição social democrática. Arriscamos essa paráfrase entendendo que em qualquer

condição social democrática a mulher é livre para escolher seu parceiro sexual, situação essa que

não era comum na conjunção física entre bandeirantes e índias. Parece-nos até que Ricardo

comete um anacronismo, ao perspectivar a análise da mestiçagem sob o prisma da democratização

racial, uma vez que aos atos cotidianos do Brasil Colonial não parece ser adequada a evocação

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dos valores da democracia, como ela era entendida nos anos quarenta do século XX, quando foi

publicada sua obra Marcha para Oeste, onde reiteradas vezes ele tange a miscigenação como

elemento fomentador da democracia racial.

A quintescência da antítese da democracia racial foi protagonizada por João Leme. Tal

sertanista mantinha uma índia como concubina, vindo a descobrir que ela era amante de um índio.

Aviltado em seus brios, João Leme mandou prender os dois, torturou-os, providenciou a

castração do rival e finalmente consumou a dupla execução. João Leme era um dos legendários

irmãos Leme, que mesmo inseridos no universo violento do bandeirismo, lograram granjear fama

de facínoras temíveis.

Os diversos crimes desses homens façanhudos3 acabaram por levar suas cabeças a

prêmio. Tais criminosos foram mortos, tendo sido o juiz Godinho Manso quem instituiu a

recompensa. Panegirista proeminente do bandeirismo, Taunay apelidou Godinho Manso como

abutre forense (Taunay apud Ricardo, 1942, p. 238).

A história do bandeirismo é sobretudo impregnada do derramamento de sangue indígena,

do despovoamento das matas e da exploração do homem pelo homem. Os núcleos populacionais

ensejados pelas expedições, em suas características iniciais, configuravam-se como pequenas

agregações humanas, próximas ou mesmo insinuadas nos perímetros então esvaziados, onde antes

aldeias inteiras existiram, povoando desde há muito o interior do continente. Arrancado de sua

vida tribal, o homem natural da terra tornou-se trabalhador escravo nos engenhos e nas lavouras

de cana, sendo também utilizado sobretudo como flecheiro, em novas expedições de apresamento.

Teríamos muitos exemplos para corroborar as mazelas impostas aos índios no Brasil Colonial. No

entanto, basta evocar dentre tantos outros, o caso da bandeira de Domingos Jorge Velho, que

promoveu o assassinato em massa de aproximadamente 300 tapuios no Nordeste, devastando

suas principais aldeias. Em 1638, o rei Felipe IV nomeou uma comissão de espanhóis e

portugueses, visando a apuração das denúncias feitas pelos jesuítas contra os bandeirantes. Tal

comissão acusou os andejos paulistas do apresamento ou morte de 300 000 (trezentos mil) índios.

Volpato, contudo, esclarece que não se sabe ao certo a quantidade de silvícolas arrancados das

matas e missões jesuíticas: “ Grande parte deste contingente se perdia nas longas caminhadas a pé

desde o local de apresamento até São Paulo” (VOLPATO, 1985, p. 14).

Levando-se em conta o que escreveu Monteiro, no que diz respeito ao fechamento

3 Adjetivo aplicado aos irmãos Leme por RICARDO, C., Marcha para Oeste, p. 237.

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do ciclo de caça ao índio no final do século XVII, conclui-se que após a apuração da comissão

mista em 1638, as muitas outras expedições de apresamento promoveram escravização e morte

de um número não estimado de indígenas, que elevou a estimativa calculada pelos portugueses e

espanhóis nomeados por Felipe IV. O próprio bandeirismo de contrato de Domingos Jorge Velho,

que devastou os tapuios no Nordeste, passando à larga do apresamento e praticando o assassinato

em larga escala, ocorreu já no último decênio dos seiscentos.

Com as bandeiras de busca ao ouro a

utilização de mão-de-obra indígena não se extinguiu, mas orientou-se de outras formas. O índio

continuou a servir os sertanistas em labores diversos, embora já não mais fossem objeto de tráfico

intensivo. Nas roças, na coleta de alimentos, na caça de subsistência, o homem natural da terra

continuava vivendo sob o despotismo de seus mandantes. O mel era alimento particularmente

apreciado pelos expedicionários paulistas, que para obtê-lo se serviam dos silvícolas, hábeis em

encontrar colméias seguindo as abelhas com os olhos. Em outubro de 1722, o sertanista Miguel

Sutil dirigiu-se do Arraial de Coxipó até a localidade onde hoje se ergue a cidade de Cuiabá,

visando observar uma roça já iniciada. Lá chegando, ordenou que dois índios saíssem à cata de

mel, munidos de machados e cabaças. Os índios demoraram a retornar, só o fazendo já noite

avançada, tendo Sutil os recebido com rispidez. Os meleiros haviam falhado na procura de

colméias, mas apresentaram ao irritado paulista um embrulho feito com folhas, contendo vinte e

três granitos de ouro, que pesavam cento e vinte oitavas. Assim, ao acaso, foi descoberto o ouro

em Cuiabá, por dois indígenas destros nos rastreamento melífico. Ocupamo-nos, até o

presente momento, em evidenciar alguns aspectos básicos do universo bandeirantista, emanados

das páginas da historiografia. Fez parte deste intuito divisar os bandeirantes como homens comuns,

que premidos pelas circunstâncias contextuais de seu tempo, buscaram alternativas práticas para a

solução de seus problemas diários. A conotação heróica do sertanista paulista foi iniciada pela

historiografia produzida no final do século XIX, tornando-se alentada no início do século XX.

Nos estertores do Governo Imperial, os cafeicultores de São Paulo prosperavam

pronunciadamente. Observemos o que escreveu Volpato:

Esse é o período em que os cafeicultores paulistas, impulsionados por um surto de desenvolvimento que o governo imperial não tinha como atender e premidos por exigências, ascenderam ao poder através da Proclamação da República (VOLPATO, 1985, p. 19).

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Já encarapitados no poder, os dirigentes cafeeiros iniciaram a urdir a legitimação popular

de suas aptidões hereditárias de mando. Nessa urdidura, tais aptidões eram sugeridas como

provindas da ancestralidade bandeirante.

Sertanistas paulistas, cafeicultores paulistas ... Gerações extemporâneas de uma mesma e

gloriosa linhagem, com habilidades já há muito comprovadas no exercício do poder.

Posteriormente, já nos anos 20 do século XX, o governo do estado de São Paulo investiu

significativamente em projetos de pesquisa sobre o bandeirismo, através de incentivos e

financiamentos. Essa iniciativa fez proliferar o número de trabalhos sobre o tema, com vários

livros sendo publicados. Surgiu deste rol a mais extensa obra sobre o assunto, História Geral das

Bandeiras Paulistas , de Afonso d’E. Taunay.

Heroicizado, o planaltino comum das origens de São Paulo, que outrora marchara para

oeste, foi identificado com a expansão dos cafezais, que então avançavam na mesma direção.

Herdeiros de um legado ancestral de liderança, instrumentalizado na representação mítico/política

do bandeirante, os cafeicultores paulistas buscaram a afirmação de seus dirigentes, catapultando-

os ao suposto nicho social que alojava os homens mais aptos para governar. Quanto a isso

explica Volpato:

Assim, os paulistas, descendentes dos bandeirantes, deveriam assumir o destino que lhes estava reservado e, a exemplo de seus ancestrais, tomar a liderança do país. Aos paulistas os brasileiros deviam as conquistas e as riquezas do passado; aos paulistas os brasileiros deviam o desenvolvimento do presente. Sua liderança não deveria ser questionada, porque lhes era própria. (VOLPATO, 1985, p. 19)

Confundindo os interesses de alguns com os de todos, ou seja, os interesses dos grupos

cafeeiros com os da Nação, a historiografia de então não apenas configurou-se como elemento

político-ideológico, mas também contribuiu sobremaneira na transmutação do sertanista planaltino

em figura mítico/legendária, herói épico de um contexto rústico, que lhe reivindicava características

excepcionais para a solução das portentosas adversidades que se multiplicavam. Como

corroboração, observemos as virtudes do bandeirante apresentado por Ricardo, após a queda

da República Velha, revestido como detentor das qualidades de chefe da ditadura nacionalista do

Estado Novo:

O costume de só vermos o herói no chefe de bandeira nos leva a esquecer, ainda, outros aspectos de sua figura - entre os quais o governador investido de todos os poderes, o chefe de um executivo que tudo ordena, o legislador que decreta as leis ... o juiz que dá remédio às desavenças e

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queixas ... provê todos os atos da vida civil. Ele não é apenas o cabo de tropa, o generalíssimo: é o próprio poder público, o ditador, o chefe de estado. (RICARDO, 1942, p. 27)

Essas palavras de Ricardo são emblemáticas tanto no que diz respeito à instrumentalização

política do bandeirante, como no que tange à sua representação heroicizante. Para o autor, o

bandeirante não é apenas herói - “O costume de só vermos o herói ...” -, mas também possuidor

de características administrativas que o qualificam a gerir expedições sertanistas ou nações:

“Ninguém como o chefe da bandeira encarna tão bem a concepção de governo forte.”

(RICARDO apud VOLPATO, 1985, p. 20)

As características de comando e capacidade administrativa são aqui atribuídas ao

bandeirante em adição à sua condição de herói. Ao mencionar que o sertanista paulista possui

outros atributos, em adendo à sua probidade heroística, Ricardo conota como inalienável esta sua

última faceta. Destarte, torna-se clara a insinuação do bandeirante como detentor de óbvio,

legítimo e irrefutável heroísmo. Ora, se o costume nos leva a só ver o herói em alguém, é porque

este alguém é supostamente herói em primeira instância. Se acaso este alguém possui ainda outras

qualidades, as possui além de sua condição primordial de herói. Em Ricardo, a historiografia do

bandeirismo engendrou um indivíduo que detém não apenas heroicidade, mas ainda inúmeras

outras qualificações em apêndice.

A própria hibridez racial do bandeirante, anteriormente desprezada e lançada no limbo das

etnias, passou a ser exaltada pelos panegiristas do bandeirismo, considerada como a forjadora de

um homem com características especiais. Um homem que reunia a inteligência do branco e as

habilidades físicas do índio. Este homem novo, apontado como privilegiado, era o mameluco, o

bandeirante mestiço. Em síntese, a mestiçagem, antes considerada degenerescente, passou a ser

apresentada como fator de aprimoramento racial, que propiciou o surgimento de um ser humano

excepcional, o mameluco, membro da raça de gigantes.

O interesse pelo estudo do bandeirismo, ensejado no fim do século XIX pelos próceres da

cafeicultura, e robustecido pelo governo paulista nos anos 20 do século XX, propiciou uma vasta

bibliografia sobre o tema. Autores como Taunay, Ricardo e Alcântara Machado tornaram-se

referências, em conseqüência de suas alentadas obras no que tange o assunto.

Bem antes dessas publicações, ainda no século XVIII, Pedro Taques de Almeida Paes

Leme escrevia sua Nobiliarquia Paulistana, Histórica e Genealógica. Essa obra, publicada

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juntamente com outros trabalhos na década de 20 do século XX, já enaltecia os feitos

bandeirantes, porém não em proporções tão desbragadas quanto à produção bibliográfica que foi

estimulada primeiramente pelas cúpulas da cultura cafeeira, e posteriormente pelo governo do

estado de São Paulo.

Desde então, intermitentemente, o mito do bandeirantismo ressurgiu como insuflador de

sentimentos de varonilidade e tenacidade entre o povo paulista. Ressalta-se como exemplo

modelar a Revolução Constitucionalista de 19324, quando São Paulo insurgiu-se ante a ditadura

de Getúlio Vargas, empunhando armas sob o argumento da reinstauração da democracia. O

Governo Federal apontou tal movimento como separatista. São Paulo contava inicialmente com o

apoio de Minas Gerais e Mato Grosso. Em dado momento, com o confronto bélico já deflagrado,

Minas Gerais inusitadamente aderiu às tropas governistas. A contribuição matogrossense foi um

batalhão de menos de uma centena de homens, comandado por Bertholdo Klinger. Nosso

objetivo, ao abordar essa luta armada, não é o de penetrar no âmago de suas implicações, mas tão

somente o de evidenciar a evocação da ancestralidade bandeirante5, num momento que

particularmente reivindicava a afirmação de sentimentos altaneiros e desassombrados. Atentemo-

nos para a letra do Hino da Revolução Constitucionalista, de autoria de Octávio Médice:

Marchai Paulistas

Bandeirantes da nova cruzada! Paulistas da terra de glória! Erguei-vos pela Pátria sagrada, Que o Brasil quer a nossa victória! As falanges valentes, guerreiras, De entusiasmo e ardor varonil, Formarão destemidas Bandeiras Para honra do nosso Brasil!

No horizonte brilha o sol O sol da Lei e da Verdade; E de São Paulo é o arrebol De toda a nossa liberdade! Piratininga! A tradição! Dos nossos filhos corajosos E a desejada salvação

4 Tal movimento é também conhecido como Guerra Cívica de 1932 ou Epopéia Constitucionalista de 1932. 5 Às páginas 49, 50 e 51 estão apensas representações imagéticas identificando os combatentes paulistas de 1932 com seus ancestrais naturais, os bandeirantes. Trata-se de material comemorativo da Epopéia Paulista.

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Dos brasileiros bravos e gloriosos!

Marchai, Paulistas! Fortes soldados da lei!

Marchai, altivos!;

Nosso Brasil defendei!

Bandeirantes de valor! Vede o nosso céu de anil! Vossos peitos e a altivez do nosso amor, São trincheiras da vitória do Brasil! Bandeirantes! Para a guerra! Em defesa da nação! A coragem que São Paulo encerra, É de toda a nossa gente redenção!6

Evocando os laivos épicos emanados da historiografia do bandeirismo, Médice construiu

versos incitadores.

A letra desse Hino Marcial denota a postulação do legado ancestral de liderança dos

paulistas, herdado dos sertanistas de Piratininga, revelando também a intenção de mesclar e

confundir interesses grupais (no caso os de São Paulo) com interesses gerais (os da Nação7). A

liderança hereditária por merecimento, bem como a generalização de interesses, segundo Volpato,

foram as tônicas da instrumentalização política do bandeirante, efetivada no último decênio do

século XIX pelos dirigentes cafeeiros, e robustecida, com incentivos financeiros, pelo governo

paulista, nos anos vinte do século XX, como já vimos anteriormente. Mencionamos novamente

essa manobra político/ideológica, pretendendo verificar sua eficácia no que diz respeito ao

espraiamento da mitificação bandeirantista junto aos paulistas. A letra do hino Marchai Paulistas

foi escrita em julho de 1932, época em que a obra de Taunay se avultava como a mais alentada

dentre as produzidas na década anterior, quando dos incentivos pecuniários governamentais.

A historiografia do bandeirismo, unilateral e desbragadamente elogiosa no que tange ao

sertanista piratiningano, parece ter logrado êxito nos seus intuitos, disseminando eficazmente nas

instituições de ensino a construção mítico/heróico/épica dos habitantes das origens de São Paulo.

A letra desse Hino Marcial Paulista, foi composta, portanto, num contexto em que inexistiam

trabalhos ou obras que contrapunham a representação mítica da figura do bandeirante. Atentemo-

6 OLIVEIRA, F., Elementos para a história de São Simão, p. 339 e 340.

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nos para o fato de que o autor da letra de Marchai Paulistas era um professor, um educador, que

no transcurso de sua própria formação escolar assimilara (e até muito bem, pelo conteúdo das

quadras escritas) a conotação heroicizante do bandeirante.

Até mesmo a concepção imagética dos livros didáticos atuais apresenta o sertanista

paulista como um homem alto, forte e viril, paramentado com chapéu de abas largas, botas altas,

gibão acolchoado e mosquetão. A expansão territorial lhe é atribuída em primeira instância,

qualificando-o como responsável pelas dimensões geográficas do Brasil. O corajoso desbravador

das matas é a figura primordial que se aloja no universo cognitivo dos educandos do ensino

fundamental, desdobrando-se no senso comum, onde se reproduz em dimensões consideráveis. A

reportagem publicada pela Revista Superinteressante (Abril/ 2000), aborda as bandeiras sob a

ótica acadêmica atual. O texto publicado apresenta como referências John Manuel Monteiro e

Sérgio Buarque de Holanda, enfocando os massacres de índios e missões jesuíticas, bem como o

apresamento e tráfico dos negros da terra. A capa da revista exibe mestiç os maltrapilhos,

encardidos e descalços, empunhando rústicas armas de fogo, encimados pelos dizeres:

Bandeirantes, a verdadeira cara dos conquistadores8. Parece-nos óbvio que tal chamada de

capa não seria necessária, caso o grande público tivesse conhecimento dessa configuração dos

bandeirantes. Em outras palavras, a concepção dos bandeirantes como heróis agrestes e bem

paramentados parece estar bem disseminada na sociedade brasileira9.

Até o momento, nossas considerações visaram abordar o processo que la nçou os

bandeirantes à linha limítrofe que separa mitologia e história, transformando numa representação

construída o homem comum de Piratininga. Na historiografia do bandeirantismo, a tênue linha que

divide história e mito foi notadamente ultrapassada, causando ação deletéria nas intenções de

compreensão do período colonial brasileiro. Oportuniza-se aqui observar o que escreveu Vilar:

“... não negligenciemos o mito, porém certifiquemo-nos de que ele seja inserido numa evolução

histórica mais concreta, que deve ser reconstituída.” (VILAR apud D’ALESSIO, 1998, p. 43)

Entendemos que negligenciar a aura mitológica que envolve o bandeirismo seria uma

omissão de nossa parte, embora não seja necessariamente o fulcro de nosso objeto de estudo. Por

esse motivo, detivemo-nos neste assunto até agora. Nossa intenção essencial foi desalojar o

bandeirante de seu nicho de glória, onde se torna difícil lobrigar o ser humano convencional.

7 À página 52, se encontra o brasão do estado de São Paulo, que à época da Revolução Constitucionalista sofreu uma interessante modificação. 8 À página 53, capa da revista Superinteressante, edição de abril de 2000.

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Fomos movidos pelo cientificismo, uma vez que nossa postulação centra-se na atividade física

proeminente do bandeirante-homem, não do bandeirante extra-humano, situado num patamar

onde seus feitos são exaltados e glorificados, em detrimento de sua condição não extraordinária.

2. A luta contra a natureza

As duas décadas que separam as fundações das vilas de São Vicente e Piratininga, são

fundamentais para que possamos entender claramente o surgimento do bandeirismo. Em São

Vicente, como já vimos no início deste trabalho, a navegação mercantil, estabelecida com a

Metrópole, supria a população de suas necessidades mais prementes. A cultura canavieira

propiciava poder de barganha aos vicentinos, ensejando uma rotina livre de carências profundas.

O açúcar garantia aos litorâneos mais abastados, proprietários de engenhos, a obtenção de artigos

importados e de escravos africanos.

Já a comunidade que se estabeleceu no planalto, experimentou desde o início um viver

adverso, que apresentava dificuldades novas, inexistentes na orla oceânica. Assim, os paulistas de

Piratininga praticavam a lavoura trigal de subsistência, produziam seu próprio vinho,

manufaturavam seu próprio tecido e apresavam índios para o trabalho escravo.

As características antagônicas dos povoados praiano e planáltico geraram sociedades

díspares. Os habitantes de São Vicente, em virtude da ausência de necessidades básicas,

vocacionaram-se para a afixação, para o sedentarismo; enquanto os planaltinos foram instados ao

movimento.

Na obra Caminhos e Fronteiras, Holanda aborda em minúcias o viver cotidiano na

Capitania de Martim Afonso, resgatando detalhes que revelam as adversidades enfrentadas pelos

paulistas, bem como as adaptações de costumes que ensejaram um universo misto, onde hábitos

indígenas e europeus se interpenetraram.

Na sociedade que se formou em Piratininga, nasceu o movimento bandeirantista, que

iniciou a adentrar as matas apresando índios. Nestas incursões iniciais, os caminhantes exploravam

9 Às páginas 54 e 55 capas de dois livros considerados clássicos do bandeirismo: História das Bandeiras Paulistas, ,de Affonso Taunay e Curso de Bandeirologia, compilação de conferências de diversos autores.

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as florestas relativamente próximas ao povoado, uma vez que seu objeto de caça, o indígena, era

suficientemente fácil de ser encontrado. Esta é a gênese oficialmente veiculada e aceita no que diz

respeito ao bandeirismo, com a qual somos cordatos, considerando que bandeiras foram

expedições organizadas com objetivos específicos. Por outro lado, no que tange ao movimento

humano, lançando vistas para os tempos da ocupação do planalto, percebe-se que os homens

que galgaram a Serra do Mar já haviam empreendido intensa atividade corporal. A região serrana,

durante vinte anos, fora obstáculo considerado quase intransponível, impedindo aos vicentinos o

avanço para o interior do continente. Vários autores já escreveram sobre a grande montanha, que

por duas décadas manteve completa inacessibilidade. No que diz respeito a este acidente

orográfico, os escritos transcritos abaixo parecem ser convergentes:

Íngreme (a Serra do Mar), cheia de despenhadeiros, de acesso tão difícil que os caminhantes tinham de marchar agarrando-se aos arbustos, a montanha impunha-se quase como uma ‘muralha’ a impedir a penetração pelo interior. (VOLPATO, 1985, p. 27)

... Subia o pessoal agarrando em raiz de árvore, machucando os joelhos em pedra e correndo o risco de rolar pela ribanceira. (RICARDO, 1942, p. 72)

Em concordância com Volpato e Ricardo, apresenta-se Taunay, comentando sobre o

caminho do mar:

... O caminho do mar ... este caminho primitivo que na Serra de Paranapiacaba tantos rumos tomou, vindo a ser chamado, no século XVI, caminho do Padre José, começou como de esperar por ser o peior dos que tinha o mundo ... era freqüentemente vencido pelos ascencionistas com a cooperação dos braços e até dos cotovelos ...(TAUNAY, 1946, p.14)

Também em conformidade com Volpato, Ricardo e Taunay apresenta-se Holanda:

Vencida porém a escabrosidade da Serra do Mar ... (HOLANDA, 1990, p. 15)

Aqui, a adjetivação da montanha aponta incisivamente para a hostilidade natural de sua

configuração topográfica. Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa,

escabrosidade significa: 1. Qualidade de escabroso; ingremidade, aspereza. 2. Dificuldade. Ainda

segundo o mesmo dicionário, escabroso significa: 1. Pedregoso, escarpado, áspero. 2. Difícil,

árduo. 3. Oposto às conveniências.

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Suspeitamos estar claro que a transposição da Serra do Mar exigiu intenso desempenho

corpóreo-motor dos homens que se estabeleceram no altiplano paulista. O aclive acentuado e

pedregoso, semi-coberto de vegetação e rochas soltas, ofereceu uma situação onde a atividade

física se fez plena10.

Esses caminhantes que alcançaram o planalto formaram o núcleo humano de onde

surgiriam os bandeirantes. Muitos destes homens que transpuseram a montanha, posteriormente

compuseram bandeiras, tornando-se portanto bandeirantes. Quando da transposição da

montanha, esses homens denotaram resistência suficientemente satisfatória aos esforços corporais

da empreitada.

Para nós, a relação bandeirante-desempenho corporal teve início nos paredões da Serra

do Mar, com os extenuantes esforços dos homens que avançavam rumo ao planalto.

Considerando que dentre eles houve integrantes de bandeiras, conclui-se obviamente que o já

bandeirante de um tempo posterior deixara seu rastro na montanha abrupta, explicitando as

primícias, os primórdios da principal característica bandeirantista, o movimento. As bandeiras,

expedições sertanistas organizadas, foram embrionariamente gestadas na Vila de Piratininga. Isto é

consenso. No entanto, a mobilidade dos paulistas do altiplano foi trazida pelos caminhantes que

venceram a Serra do Mar ... ou a própria mobilidade os trouxe, como queiramos.

Estas considerações pretendem buscar o entendimento de que o movimento é algo inerente

ao ser humano, não propriamente exclusivo de grupos específicos. É verdade que certas

configurações contextuais impelem o homem à atividades físicas mais intensas, como aconteceu na

Vila de Piratininga. Faz-se necessário, no entanto, divisar o rendimento corpóreo como elemento

presente em momentos assaz diversificados na história, permeando homens e grupos com

objetivos diametralmente opostos. O desempenho físico dos bandeirantes não lhes era inato em

exclusividade. Em termos anátomo-fisiológicos, os corpos dos caminhantes que compuseram as

expedições paulistas não eram excepcionais. Ali estavam homens comuns, que premidos pelas

circunstâncias, realizaram feitos físicos de envergadura verdadeiramente impressionante, como

teremos oportunidade de verificar adiante.

10 A escalada das escarpas da Serra do Mar envolveu quase a totalidade dos segmentos musculares dos corpos dos caminhantes. Braços e pernas em movimentos díspares, mãos que agarravam tenazmente nos galhos, com a força imposta pelo medo da morte. Pés que tateavam o solo, buscando o apoio mais seguro, evitando os elementos soltos. Cabeças que se voltavam para cima e para os lados, esquadrinhando o ambiente, procurando o caminho menos perigoso. Alta secreção de adrenalina, exacerbada sudorese, elevada freqüência cardíaca, grande ventilação pulmonar, fortes contrações miológicas, acentuadas vascularização e oxigenação muscular, pronunc iado dispêndio energético. Todos estes mecanismos fisiológicos levaram os homens que galgavam a serra a atingir seu objetivo, chegar ao altiplano.

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Estamos abordando a transposição da Serra do Mar para evidenciar que o movimento

físico, foi na oportunidade realizado por indivíduos que ainda não eram considerados bandeirantes,

portanto homens desprovidos da aura épica do bandeirismo. Destarte, parece aclarar-se a

concepção de que o rendimento físico, presente nas bandeiras, foi um desdobramento natural de

dois espaços de tempo diferentes: num deles era preciso transpor a montanha, no outro era

necessário caminhar em busca de índios. Curioso é observar que os escaladores da grande serra

não são considerados pela historiografia ufanista do bandeirismo como membros da raça de

gigantes, mesmo tendo sido muitos deles bandeirantes posteriormente. A historiografia aponta o

movimento corporal como vocação específica do homem já instalado no planalto, atribuindo

notadamente tal peculiaridade ao bandeirantismo, desconsiderando a escalada da região serrana,

com todas as suas adversidades naturais. Corroborando estas reflexões, numa só frase

explicitamos nosso entendimento de que a mobilidade não é atributo apenas dos sertanistas do

planalto paulista. A história não é carente de exemplos que respaldam esta asserção. Em diversos

contextos históricos o desempenho corpóreo-motriz se fez proeminente, envolvendo homens de

tempos e etnias diferentes.

O movimento bandeirantista no Brasil Colonial insere-se como mais um elemento neste

extenso rol, que abarca uma vasta gama de etnias e motivações variadas. Os homens que

venceram a escabrosidade da Serra do Mar, na iminência do prorrompimento da ocupação

planáltica, não premeditavam a organização de bandeiras. Eram migrantes vicentinos, não heróis,

não bandeirantes, eram indivíduos que deixavam para trás o caranguejar no litoral – no

conhecido dizer de frei Vicente de Salvador –, buscando os cumes da penedia imponente.

Inusitados alpinistas coloniais, desprovidos de acessórios que lhes conferisse maior segurança na

escalada, confiando unicamente na força e destreza de seus braços e pernas. Pretendemos com

estas considerações, alhear os bandeirantes já assentados no Planalto da condição de detentores

de características físicas especiais. Vejamos o que escreveu Volpato: “A grande mobilidade das

bandeiras não pode ser explicada a partir de condições físicas especiais dos paulistas.”

(VOLPATO, 1985, p. 21)

Por bandeiras entende-se expedições organizadas visando o apresamento de índios e a

procura de minérios valiosos. Nestas expedições a intensa azáfama corpórea fez-se notória, porém

sem que isso possa facultar-nos a possibilidade de alçar o bandeirismo ao zênite da escala das

proezas físicas constantes na historiografia.

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A gloriosa pujança da raça de gigantes provém em parte dos vicentinos que arranhavam

a costa como caranguejos, mas que acabaram por subir a Serra do Mar, usando suas frágeis

quelíceras11 na admirável escalada.

Entendemos que a Serra do Mar foi um obstáculo extremamente difícil de ser transposto,

arriscando-nos ainda a refletir que talvez muito poucas vezes as bandeiras propriamente ditas

tenham enfrentado formações orográficas tão ásperas. Neste sentido, parece-nos razoável dizer

que os esforços físicos necessários para a ascenção em local tão abrupto e fragoso foram dos

mais notáveis do período colonial brasileiro, em face da diversificada performance motora que

envolveu a estrutura corporal dos ascensionistas, em termos literalmente globais. Não-bandeirantes

que lograram realizar uma tarefa que muitos bandeirantes jamais viriam a realizar, posto que em

tempos posteriores as expedições piratininganas já partiam do Planalto rumo ao interior do

continente, de costas para a Serra do Mar, uma grande muralha natural já vencida.

Na obra A economia paulista do século XVIII, Alfredo Ellis Júnior dedica o segundo

capítulo inteiramente ao propósito de ressaltar a existência de um lapso na historiografia que trata

dos primórdios de Piratininga, onde a Serra do Mar não é levada em conta, mesmo tendo sido um

elemento da natureza que influiu de forma suficientemente perceptível no contexto da Capitania de

São Vicente. Nesse texto, o autor faz observações enfáticas e extensas sobre a ausência de uma

abordagem que denote a relevância da Serra do Mar, enquanto elemento dificultador do acesso

ao Planalto.Inexiste na historiografia um trabalho que trate dessa questão a fundo, conferindo a ela

a significação devida. Citemos as palavras de Ellis:

Infelizmente, ao se estudar o passado paulista, não tem sido atribuída à Serra do Mar a importantíssima função por este arestoso acidente geográfico exercida na evolução do agregado humano localizado em Piratininga. O estudo do passado da nossa terra vem sendo feito, como se essa muralha orográfica não existisse (ELLIS, 1979, p. 65).

Embora a muralha orográfica tenha imposto esforços físicos acentuados aos primeiros

povoadores da Vila de São Paulo, a historiografia faz menções vagas sobre isso. A confragosa

cordilheira, que por vinte anos vedou o acesso dos litorâneos para o interior do continente,

aparece quase que obliterada na história. Para isso contribuíram muito as enormes marchas

sertanejas, realizadas pelas bandeiras após a fundação de Piratininga. Tais empreendimentos, pela

característica recorrente de grandes distâncias percorridas a pé, ensombreceram a notável faina

11 Nome dado às patas dianteiras dos caranguejos, que são usadas para capturar suas presas.

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física levada a cabo quando da transposição da montanha. Ao ascender à crista da grande serra,

os vanguardistas dos assentamentos planálticos venceram uma adversidade natural implacável, que

no entendimento de Ellis funcionou como elemento selecionador, que só permitiu aos homens mais

vigorosos chegar ao término da tarefa bruta:

Constrangidos a grimpar pelas arestosidade da serra, os vicentinos, é evidente, não puderam todos atingir o objetivo. Muitos ficaram pelo caminho! Outros desanimaram! Outros pereceram na difícil empreitada! Não os ajudava o físico ou o moral. De fato, só venceram o páreo os mais bem dotados de músculos e de agilidade. A Serra do Mar foi um verdadeiro filtro seletivo, eliminando os indivíduos menos fortes... (ELLIS, 1979, p. 66) (o grifo é nosso)

Ellis aponta, de forma nítida e incisiva, para o importante papel desenvolvido pela

performance corporal na escalada das escarpas inclementes. O grande desempenho físico exigido

pelos paredões abruptos extrapolou os limites de não poucos homens, que se abateram pelo

desânimo, desistindo em algum ponto do traiçoeiro trajeto. Também não raros foram os que

despencaram das ravinas alcantiladas, encontrando a morte ao final da queda. Não aquinhoados

com elevadas qualidades corpóreo-motrizes, indispensáveis para o cumprimento completo do

escalamento, esses homens foram retidos pelo agigantado filtro seletivo da natureza. Ao escrever

que só saíram vencedores os mais bem dotados de músculos e de agilidade, Ellis tange uma

nota crua, incomum na historiografia, posto que as passagens históricas onde o corpo se ressalta,

via de regra padecem sob o dogmatismo acadêmico das explicações derivativas, que deslocam a

estrutura física humana para a orla dos fatos, como se ela não atuasse como fator significativo para

a mudança dos contextos sociais, que por sua vez são partes integrantes das contingências ou dos

processos históricos. Cabe aqui esclarecer nosso entendimento de que a historiografia necessita,

obviamente, dos elementos contingenciais, para alcançar a compreensão dos processos históricos

ou das conformações contextuais. Contudo, isso não se eleva como concepção antagônica ao

nosso viés de percepção dos fatos ou episódios históricos, onde vislumbramos o trabalho corporal

atuando como fator de relevante importância. A subida da Serra do Mar, abordada por Ellis de

forma minuciosa, promove o entendimento insofismável de que o rendimento dos corpos dos

escaladores foi fator determinante, para que o intento de chegar ao planalto fosse atingido. Mais

ainda, não apenas o rendimento dos corpos, como também suas particularidades individuais, de

caráter não apenas anatômico, mas também motriz.

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Corpos ágeis e corpos fortes, arrostando a impassibilidade inerte dos vultosos penedos,

das enganosas anfratuosidades dos paredões retos, correndo o risco da queda, da precipitação no

vazio. Corpos inábeis e corpos débeis, drenados pelo suor profuso, extenuados pelas contrações

musculares sequenciais ... corpos que não chegaram ao fim da ascenção, perdendo a vida ou

desistindo.

Dadas as particularidades da áspera escalada, os homens que chegaram ao topo da serra

certamente sofreram escoriações corporais diversas. Trabalhando simultaneamente com braços e

pernas, arrastando o abdômen e tórax nas encostas, avançando como quadrúpedes no aclive

rochoso, os escaladores da montanha não escaparam de esfoladuras nos joelhos e cotovelos,

arranhaduras na parte frontal do tronco, cortes e luxações, devido a situações de contrações

musculares em posições anti-anatômicas.

As grandes escarpas, depois de vencidas, voltaram a obstar o caminho dos homens que as

haviam transposto, agora em sentido contrário. Vejamos as palavras de Ellis:

Dificultando pela sua aspereza o livre trânsito entre o planalto e o litoral, fez com que a vila de Piratininga se voltasse inteiramente para o sertão, onde o paulista ia buscar ‘o remédio para a sua pobreza’: o índio. Ou pesquisar tesouros naturais de pedras e metais preciosos ... (ELLIS, 1989, p.277).

Desta forma, praticamente isolados da orla oceância e carentes economicamente, o

habitantes de São Paulo iniciaram a adentrar sistematicamente o sertão, iniciando a história das

bandeiras propriamente dita, que fora gestada, primariamente, na vanguarda da escalada da Serra

do Mar.

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CAPÍTULO II

ÍNDIOS: CICERONES E MESTRES DO SERTÃO

Bandeira quer dizer movimento, e o movimento é o índio.

Cassiano Ricardo

As marchas realizadas pelas bandeiras cobriram amplas distâncias, palmilhando

regiões até então infreqüentadas pelos europeus. Áreas ignotas, com densas massas

arbóreas, luxuriâncias verdes cujas copas ensombreciam troncos de diâmetros diversos,

irmanados e engastados pela trama do cipoal tropical. À primeira vista, não muito longe

das habitações perimetrais de Piratininga, a mataria parecia quase impenetrável. No

entanto, a inacessibilidade aparente das brenhas guardava trilhas toscas, que se espraiavam

para dentro do espesso emaranhado vegetal, avançando e entrecruzando-se rumo ao sertão

e à orla oceânica. À estreiteza dessas sendas somava-se ainda a profusão da galharia mais

baixa, obstando o avanço dos sertanistas do Planalto Paulista.

Na maioria das vezes os bandeirantes não devassaram florestas intocadas, mas

serviram-se dessas rústicas veredas ancestrais, que já existiam no continente.

Observemos o que escreveu Holanda: “Da existência efetiva destas vias já com

caráter mais ou menos permanente, antes de iniciar-se a colonização, nada autoriza a

duvidar” (HOLANDA, 1957, p. 23).

A origem de muitas dessas trilhas antigas, por vezes conferida aos índios, é também

atribuída às alimárias da fauna nativa. Quanto a isso, vejamos as palavras de Holanda:

E assim como o branco e o mameluco se aproveitaram não raro das veredas dos índios, há motivo para pensar que estes, por sua vez, foram, em muitos casos, simples sucessores dos animais selvagens, do tapir especialmente, cujos carreiros ao longo de rios e riachos, ou em direção à nascentes d’água, se adaptavam perfeitamente às necessidades e hábitos daquelas populações. Hábitos a que os europeus e seus descendentes tiveram de acomodar -se com freqüência nas viagens terrestres... (HOLANDA, 1957, p. 35).

Parece estar claro que os sertanistas paulistas predominantemente não

incursionaram por regiões nunca antes palmilhadas, mas sim percorriam as matas servindo-

se de uma rede rudimentar de trilhas exiguamente estreitas, desde há muito utilizadas pelos

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indígenas. Dessa forma, em primeira instância, a expansão das bandeiras foi auxiliada

pelas atividades caminheiras anteriores dos homens naturais da terra. Essas vias, por vezes

meros arremedos de acesso, serviam aos índios não apenas para sua locomoção em busca

de água, caça ou coleta de frutos, mas ainda para alcançar outras aldeias que pontilhavam a

mata. As andanças pelo continente começaram, portanto, muito tempo antes que as

embarcações dos portugueses atingissem as praias do Brasil. Não apenas os cascos do tapir

ou as patas da onça, mas muitos pés descalços já haviam pisado o húmus da floresta ou a

fragosidade dos campos, bem antes que a frota de Cabral zarpasse da Europa.

Especificamente sobre os Guarulhos, andejos do Planalto Paulista, observou Holanda:

Desses índios sabemos, por mais de uma referência, principalmente das atas da Câmara paulistana, que eram andantes e sem pouso certo. Muito caminho pisado mais tarde pelas bandeiras foi aberto e trilhado inicialmente por eles, e assim terão contribuído para marcar de modo definitivo a fisionomia da terra onde vagaram (HOLANDA, 1957, p. 33).

Furtiva e vigilante, mas sobretudo cons tante, a intensa movimentação do homem

natural da terra era indispensável para a manutenção da vida no ambiente selvagem.

Destarte, por serem então imprescindíveis à sobrevivência, o movimento e a atividade

física dos índios abriram picadas nas matas ínvia s da América, formando uma rede de

galerias rudimentares sob as copas das árvores. O cotidiano indígena, então ainda intocado

pelo europeu, configurava o antípoda do sedentarismo.

Vivendo em regime tribal, os nativos do continente não conheciam o

individualismo, partilhando comunitariamente com os de seu grupo os produtos advindos

da caça e da coleta. Por força deste hábito de partilha, que incluía informações sobre

veredas que conduziam a áreas de interesse comunitário, o fluxo intensificava -se a tal

ponto, que alguns caminhos se tornavam vias de trânsito regular, alargando-se mais do que

os outros, que eram predominantemente estreitos. Circunscritos ao meio agreste desde o

nascimento, os silvícolas naturalmente aprendiam, desenvolviam e apuravam, ao longo da

vida, uma vasta gama de técnicas que lhes assegurava a sobrevivência. Dentre esta miríade

de técnicas, que incluía práticas venatórias e de obtenção de alimentos, figuravam também

procedimentos que amenizavam o cansaço corporal advindo das grandes viagens a pé.

Viandantes de muitas jornadas, os indígenas granjearam experiência suficiente para

desenvolver uma pisadura singular, que diminuía os efeitos provenientes da exaustão

muscular e dos excessos causados às articulações dos pés. Quanto a isso, observemos o que

escreveu Volpato:

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Caminhando com as pontas dos pés voltadas para frente e com os dedos dos pés voltados para baixo, os índios conseguiam uma distribuição mais uniforme do peso do corpo sobre as juntas dos pés e, com isso conseguiam evitar o cansaço precoce e alongar mais as caminhadas diárias. Estas transcorriam entre a madrugada e o entardecer (VOLPATO, 1985, p. 66).

Também sobre a maneira indígena de caminhar, bem como sua eficácia ante a

exaustão, observou Holanda:

Com seu sistema peculiar, os índios não só economizam trabalho, pois a ponta do pé encontra naturalmente menos superfície de resistência nos galhos e macegas, mas também devido à distribuição mais proporcional do peso do corpo, nenhuma junta desenvolve mais trabalho do que as outras, nenhuma parte sofre maior cansaço, e assim – viribus unitis – tornam-se possíveis percursos mais extensos (HOLANDA, 1957, p. 35).

Comparativamente aos primeiros bandeirantes, o cumprimento de grandes

distâncias por parte da população indígena se fez com menor sofrimento corporal, uma vez

que as particularidades de seus deslocamentos, mercê principalmente da singularidade do

pisar, propiciou uma situação anátomo-fisiológica que coibia em parte o desgaste na

estrutura articular dos pés. O deslocamento e o rendimento físico-motriz era elemento

fundamental para os povos indígenas do Brasil, sobretudo nos primeiros tempos da

colonização. As necessidades do regime tribal impunham o aprendizado de diversas

habilidades corporais, tornando os homens naturais da terra destros em múltiplas atividades

físicas, das quais trataremos mais adiante. Detenhamo-nos por ora nas marchas indígenas,

que contribuíram enormemente para o avanço dos bandeirantes mato adentro. Sem o saber,

subjugados pela postura senhorial dos cabos-de-tropa piratininganos, os índios foram os

verdadeiros mestres sertanistas dos bandeirantes, ciceroneando-os e iniciando-os nos

segredos do viver cotidiano, num universo que reivindicava habilidades específicas.

Guiando os expedicionários paulistas por trilhas incultas, os índios possibilitaram o

descortinamento de áreas remotas, nunca antes percorridas por homens oriundos de além-

mar. Desta forma, o alcance destas paragens longínquas foi em grande parte devido à

colaboração indígena. Vejamos o que escreveu Monteiro:

No decorrer do século XVII, a participação ativa de índios nas expedições tornava-se cada vez mais essencial, à medida que se buscavam cativos em locais desconhecidos pelos brancos (MONTEIRO, 1998, p. 111).

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Pela metade do século XVII, profusa mataria cobria a região do atual estado de

Minas Gerais. Essa área, na época considerada sertão fechado e distante do Planalto

Paulista, apresentava, à semelhança dos arredores de Piratininga, significativo

entrelaçamento de veredas antigas, trilhadas pelos índios em tempos primevos. Respeitante

a isso, escreveu Barreiros:

Povoada por dezenas de tribos indígenas, essa área, que integra hoje o Estado de Minas Gerais, era certamente cortada por trilhas infindáveis, palmilhadas por ‘nações’ nômades de Tapuias, Pataxós, Tupimaés, e do famoso Cataguá, além de tantos outros, em suas constantes andanças. Sem a cooperação do chamado gentio manso, conhecedor desse intrincado emaranhado de caminhos incipientes, teria sido difícil a penetração do civilizado por aqueles sertões (BARREIROS, 1979, p. 05).

Destarte, suspeitamos estar claro que o avanço dos bandeirantes pelo sertão

incógnito contou com a importante colaboração dos indígenas, que familiarizados com as

tortuosidades, bifurcações e paralelismos das sendas , guiaram as expedições pelas brenhas

ínvias, por muitas vezes evitando que as marchas perdessem o norte. Por ignorar a

localização das sendas mais facilmente transitáveis, não raro as bandeiras enveredaram por

trilhas quase fechadas, nas quais perdiam tempo desbastando a galharia que obstava o

avanço, diminuindo o ritmo da marcha. No desbaste destes caminhos arremedados, o

trabalho físico era considerável. Usando facões e machados, os sertanistas, especialmente

os vanguardistas da expedição, empreendiam de sgastante atividade braçal, que aumentava

consideravelmente o cansaço corporal até ali advindo do caminhar. Para as muitas

bandeiras que contavam com índios conhecedores da trama formada pelas trilhas, o

avançamento era mais regular, uma vez que os caminhos menos incultos eram escolhidos,

sendo preteridos os menos batidos ou semi-abandonados.

A conformação das matas era familiar aos silvícolas, que sabiam onde estavam pela

observação das espécies vegetais e outros elementos. Sendo assim, se por vezes ocorria

adentrarem trilhas intransitáveis no ciceronear expedições, os índios, via de regra, não

tardavam muito em conduzir as tropas para uma via menos rústica. Uma determinada

árvore, uma pedra mais avultada, um toco à beira do carreiro ou um cipoal mais espesso; o

avistar de qualquer destes elementos comumente orientava os indígenas, não raro

indicando a proximidade de um trilheiro de melhor fluxo. Nessas oportunidades, os índios

guiavam as expedições no ato de abandonar a vereda, adentrando o mato fechado, onde

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depois de caminhar desbastando certo trecho, apresentava -se uma trilha mais espaçosa do

que a anterior, possibilitando a marcha regular, sem interrupções12.

Em carta ao rei de Portugal, em 26 de outubro de 1725, já quando os sertões haviam

sido pa lmilhados nas mais diversificadas direções, escrevia Rodrigo César de Menezes: “É

certo senhor, que sem o gentio não podem os paulistas talhar os sertões”

(NDIHR/Documentos Ibéricos – Mfcha 15 – Doc. 750 – Anexo 02). Cumpre observar que

essa missiva ao rei foi escrita já no fim do primeiro quartel do século XVIII, mais de um

século e meio após as primeiras entradas.

Servindo-se da submissa assistência dos índios, os bandeirantes obtiveram

preciosas facilitações em seus deslocamentos pelos sertões. Destit uídas desta assistência

calcada na experiência agreste, as jornadas das bandeiras muito provavelmente sofreriam

importantes ações deletérias em seus avanços, ao revelar inabilidade em situações díspares.

Muito mais numerosos teriam sido os desnorteios na trama das matas, mercê da ausência

do conhecimento necessário para avançar, utilizando os referenciais naturais do meio

agreste.

A colaboração indígena nas expedições paulistas foi de fundamental importância.

No entanto, faz-se necessário salientar que muitos grupos nativos do Brasil empreendiam

suas andanças circunscritos à satisfação de suas necessidades, ou seja, locomoviam-se por

sendas específicas, que os conduziam à caça, à água e aos frutos nativos, essenciais à

sobrevivência. Em outras palavras, es tes grupos indígenas caminhavam por áreas restritas,

prescindindo de avanços maiores, uma vez que nenhuma necessidade os impelia. Quando

escrevemos áreas restritas não queremos dizer necessariamente áreas pequenas, mas

procuramos promover o entendimento de que as andanças de muitos grupos indígenas

ligavam-se diretamente ao abastecimento de víveres, restringindo-se a paragens

específicas, onde a obtenção era certa.

Dissociadas das bandeiras, as caminhadas indígenas eram reguladas pelo senso

tribal, obedecendo a fundamentos que visavam o sustento coletivo, que por sua vez era

configurado como nítida linha limítrofe em termos de distância. Nesse sentido, parece-nos

razoável observar que as marchas dos índios apresentavam padrões de finitude. Obtendo

água e alimento, encerrava -se o estímulo para a continuidade da locomoção. Já as

expedições bandeirantistas, especialmente as que buscavam riquezas minerais,

12 Apenas para avançar caminhando, excetuando-se outras situações de esforço físico, os bandeirantes, guiados pelos ínidios, empreendiam atividade física que envolvia trabalho de membros superiores e inferiores, ora simultâneo, ora alternado.

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movimentavam-se muitas vezes sem padrões de finitude , uma vez que o objeto de sua

procura jazia desconhecido em algum lugar do sertão. Diferentemente dos indígenas - que

sabiam onde estava o regato para coletar água, onde era o carreiro do veado para caçá-lo -,

os bandeirantes concebiam previamente a possibilidade de percorrer extensões incertas,

ignorando a área onde seus objetivos poderiam ser eventualmente atingidos. Destarte, a

finitude do caminhar só se dava quando do encontro dos sertanistas com seu objeto de

busca. As expedições, portanto, operavam com a noção de distâncias desmedidas. As

longas jornadas a pé, empreendidas pelas bandeiras, de certa forma fizeram com que os

silvícolas nelas inseridos cobrissem distâncias maiores do que costumavam cobrir, quando

anteriormente palmilhavam determinadas áreas do sertão, buscando os elementos que sua

sobrevivência reivindicava. Ao trilhar distâncias mais amplas com as bandeiras, os índios

ultrapassavam os limites de seu primitivo território de ação, quando então os carreiros e

trilhas não mais lhes eram conhecidos. Nessa situação ulterior, onde sua faceta de

c icerones quase desaparecia, os indígenas continuavam contribuindo com o avanço das

expedições, especialmente com suas habilidades de encontrar água e alimento no ambiente

florestal.

A possibilidade de ficar sem água em suas incursões era uma das grandes

preocupações dos bandeirantes. Valendo-se da habilidade indígena, muitos paulistas foram

poupados de morrer de sede, mormente em regiões que não apresentavam minas ou

ribeirões. Os habitantes naturais da terra propiciavam aos expedicionários piratininganos a

presencialidade de situações inusitadas, onde técnicas aparentemente rústicas denotavam

grande eficácia. Como aprendizes ante doutos mestres, ainda que não o demonstrando em

termos atitudinais, os bandeirantes assimilaram ensinamentos valiosíssimos provindos dos

índios. No que diz respeito às maneiras utilizadas pelos indígenas para obter água,

escreveu Volpato:

... foi de valor extraordinário para os sertanistas as habilidades desenvolvidas pelos índios em descobrir olhos d’água ou mesmo córregos e algumas vertentes. Desde cedo os silvícolas aprendiam a descobrir a existência da água pela configuração e coloração do terreno, pela temperatura do vento e por outros sinais só perceptíveis àqueles que tinham uma vida toda passada no sertão... (VOLPATO, 1985, p. 69).

A perícia indígena em encontrar água potável não se restringia apenas a minas que

afloravam da terra ou de rochas, bem como a riachos ou ribeirões. Outras possibilidades,

perceptíveis apenas aos sentidos apurados dos nativos, se revelavam em meio aos profusos

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elementos silvestres. Determinadas espécies vegetais (como a árvore -fonte ou samaritana

do sertão, o umbuzeiro, o taquaruçu, o caraguatá e algumas espécies de cipó)

apresentavam-se como dádivas aos viajores das bandeiras, aplacando-lhes a tortura

imposta pela sede. Desconhecidos dos primeiros sertanistas piratininganos, tais vegetais

foram a eles revelados pelos índios. Com o decurso dos anos, após sucessivas incursões,

muitos bandeirantes tornaram-se tão destros quanto os índios, em suas técnicas de

prospecção hídrica. Holanda escreveu sobre a destreza de índios e bandeirantes no que diz

respeito a estas lidas, pautando em corroboração a argúcia no observar a natureza à sua

volta, abordando ainda como determinada árvore-fonte (samaritana do sertão) tornou-se

importante para as bandeiras que seguiam a rota para Goiás:

Os verdadeiros meios de que dispunham, tanto índios como sertanistas, quando procuravam algum veio d’água em lugar onde nada indicava sua presença, escapavam, todavia, a uma análise precisa e objetiva. Em regra, esses meios, decorrem de extraordinária capacidade de observação da natureza, peculiar a estes homens e inatingível para o civilizado. A longa prática do sertão ensinava-lhes que o remédio pronto para a sede poderia bem estar sob uma laje, ou um rochedo, ou mesmo disfarçado por um tronco de árvore, onde não o alcançariam viajantes descuidados ou inexperientes. Um dêsses verdadeiros tesouros ocultos existiu muito tempo no Campo dos Parecis, que atravessava a estrada para Vila Boa de Goiás. Num pau de cinco palmos de espessura e no ponto exato onde começava a ramar, havia um buraco sempre cheio d’água. Ali, por meio de canudos de taquara, costumavam refrescar-se os sequiosos. Consumida a água, em pouco tempo voltava-se a encher o buraco. Não fosse isso, o viajante poderia percorrer em todos os sentidos a vasta planície sem ter onde beber, pelo menos numa extensão de quatro léguas ( HOLANDA, 1957, p. 39).

Também sobre isso escreveu Volpato:

O contínuo andar pelo sertão, a observação da mata e o exemplo dos silvícolas fizeram com que os bandeirantes fossem adquirindo mais habilidade em encontrar água e aplacar a sede. Entre os meios encontrados para livrar o sertanista da tortura da falta d’água destaca-se a árvore-fonte, árvore-rio, samaritana do sertão. Estes eram os nomes que recebia uma árvore natural dos sertões goianos e baianos que, muito grande e copada, tinha nos ramos buracos cheios d’água, Estas árvores davam exatamente nos terrenos secos, onde, num raio de quatro léguas, dificilmente se encontraria água. Os viajantes, utilizando-se de pequenas varas de taquara matavam sua sede, Consumida a água, pouco tempo depois o buraco voltava a se encher, permitindo que outro sedento se saciasse (VOLPATO, 1985, p. 69).

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É notável a convergência de Volpato e Holanda no que respeita às informações

sobre a prospecção hídrica entre índios e bandeirantes. Igualmente, tais autores mencionam

ainda a utilização de vários tipos de cipó para amainar a sede. De tais espécies vegetais

serviam-se os membros das expedições, cortando-as e posicionando-as verticalmente,

donde vertia de sua extremidade um líquido fresco, apropriado para dessedentar

parcialmente as gargantas ressequidas. Esses cipós medravam em densas florestas, não

ocorrendo em terrenos fragosos. Ao palmilhar regiões rochosas, as bandeiras utilizavam-se

do caraguatá, que pela conformação de suas folhas configura um rústico vaso natural, onde

fica contida certa quantidade de água pluvial. Nas áreas relvosas, outra alternativa era o

taquaruçu, cujas hastes, entre seus nós, forneciam líquido semelhante ao obtido nos cipós

mencionados. Também em paragens ásperas, semi-áridas, era encontrado o umbuzeiro,

árvore leguminosa, fornecedora de tubérculos, que postos na boca, desmanchavam-se

facilmente, debelando a sede. Entranhados vários palmos sob a terra, os tubérculos do

umbuzeiro não eram fáceis de achar, exigindo peculiar procedimento da parte de quem os

procurava. Quanto a isso, observemos as palavras de Holanda:

Como esses turbérculos se achavam algumas vezes afastados cinqüenta e sessenta passos da árvore, os índios costumavam bater no solo com um cajado; pelo som das pancadas podiam saber onde lhes convinha cavar (HOLANDA, 1957, p. 41).

Vale aqui ressaltar a agudeza e a sutileza desta técnica nativa, que pela

reverberação do impacto no chão, captava através da percepção tátil, no empunhar o

cajado, a exata localização da raiz do umbuzeiro.

Em síntese, no que tange à obtenção de água e líquidos de efeito fisiológico

congênere, os homens naturais da terra foram de relevante importância para as bandeiras.

Não fossem os índios, muitos sertanistas, em especial os precursores, teriam cambaleado

nas matas ou pradarias do Brasil, antes de fenecerem vitimados pela sede.

Quanto à alimentação, a contribuição indígena para o avanço das expedições não

terá sido de menor monta. Falemos a princípio do mel, gênero que teve singular

importância para a manutenção da energia física dos sertanistas, mormente quando da

carestia de outros víveres. Muitos índios eram pronunciadamente experimentados nos

métodos de obter mel, sendo conveniente ressaltar que tal destreza não era generalizada.

Aqueles que demonstravam habilidade em localizar colméias eram denominados meleiros.

O rastreamento melífero era uma atividade notável, sobretudo aos olhos dos europeus.

Vejamos as palavras de Holanda:

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Acompanhando com os olhos atentos a pequenina abelha silvestre, tão pequena às vezes como um pequeno mosquito, o índio encontra muitas vezes os favos cobiçados, depois de buscá-los pelos atalhos da floresta. Tal importância chegou a assumir esse trabalho para a vida do selvagem que alguns, interpelados sobre o motivo que os levaria a arrancarem sobrancelhas e pestanas, prontamente respondiam que assim o faziam para melhor acompanharem as abelhas em vôo (HOLANDA, 1957, p. 47).

O olhar indígena, direcionado inarredavelmente para o pequeno inseto – que em

verdade tornava-se minúsculo ante a configuração imponente da floresta que lhe fazia

fundo – impressionou sobremaneira o pa dre Cardiael, jesuíta das Missões do Paraguai. O

religioso espanhol, espantado com a agudeza de visão dos meleiros, comparou-os ao lince,

animal de extraordinária acuidade visual, felino dotado de olhos tão poderosos, que figura

em diversas narrativas folc lóricas como sendo capaz de enxergar através das paredes. Em

Caminhos e Fronteiras, Holanda cita as palavras do padre Cardiael sobre a vista dos

índios: “ ... muitos a tem tão perspicaz como um lince, seja pela disposição particular de

seus olhos, seja, o que é mais natural, pelo exercício constante ...”

Comparações acaloradas à parte, evoquemos a racionalidade objetiva, que nos

direciona para a constatação de que a acuidade visual de alguns índios meleiros era

notável. Vale salientar, em corroboração, que a destreza no encontrar colméias não era

atributo generalizado entre todos os nativos do Brasil, porém também não eram poucos os

que se destacavam nessa lida. Uma quantidade considerável de silvícolas aprimorou-se

tanto na procura de mel, que durante as expedições eram incumbidos quase que apenas

disso. Lembremo-nos que foi, inclusive, a dois índios meleiros que o sorocabano Miguel

Sutil deveu o descobrimento do ouro cuiabano. Os indígenas saíram à cata de mel,

encontrando ao acaso o precioso metal de aluvião. Analisando de forma holística a

atividade corporal de rastreamento melífero, julgamos ser de fácil entendimento que não

apenas a acuidade visual levava o meleiro à colméia. Não apenas a agudeza ocular ou a

vista de lince , mas uma série de outras habilidades corpóreo-motrizes o conduzia aos favos

cobiçados. Ao avistar a abelha, ensejava -se a perseguição, que era desencadeada pelo

movimento global do corpo. Correndo pela mata, sem desfocar o olhar do inseto, o meleiro

revelava espantosa percepção espaço-temporal, desviando com rapidez dos obstáculos

naturais, que não eram poucos. O percurso da abelha não obedece a trilhas ou carreiros,

mudando de direção imprevisivelmente, adentrando o emaranhado arbóreo, por vezes

entrançado por cipoal e galharias. As mudanças constantes no curso da corrida, o desvio ou

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transposição dos elementos florestais, o aumento da velocidade quando da iminência de

perder de vista o inseto; tudo isso exigia do índio coordenação corpóreo-motora no mínimo

satisfatória. Pernas este ndendo-se em largas passadas na desabalada carreira, braços

movimentando-se intensamente, propiciando impulso adicional para a rapidez exigida pela

perseguição.

Com o foco do olhar centrado na abelha, o índio servia -se da visão periférica para

aperceber-se dos troncos ou galhos maiores, dos quais desviava-se com notável destreza.

As ramarias mais finas eram ignoradas, sendo vencidas pelo próprio corpo em

deslocamento. A entomologia nos ensina que uma abelha pode se afastar vários

quilômetros de sua colônia, buscando o pólen para a feitura do mel. Considerando esta

asserção científica, faz-se razoável concluir que o meleiro por vezes empreendia corridas

de proporções significantes pela mata, ou seja, carreiras de proporções quilométricas.

Vale mencionar, sem contudo pretender inferir que isso configurasse grande

estorvo, que os meleiros levavam consigo machados e cabaças, instrumentos utilizados na

coleta do mel. Concernente a isso, escreveu Holanda:

Quando, após a caminhada matinal, uma tropa de paulistas se arranchava em sertão pobre de caça ou de palmito, o trabalho maior competia talvez aos índios meleiros, armados de necessários apetrechos, que eram machados e cabaças (HOLANDA, 1957, p. 58).

Embora tais apetrechos não sejam necessariamente pesados, cumpre observar que o

volume por eles representado certamente contribuía para o aumento da dificuldade da

corrida, uma vez que a trama das matas não raro oferecia exíguos espaços úteis à passagem

do meleiro. Em síntese, corroboremos nosso entendimento de que a procura do mel era

uma atividade corporal notável, que exigia do índio destreza e agilidade. Entre o lobrigar a

abelha e o achado da colméia, desenvolvia-se uma situação de considerável desempenho

físico, singular percepção espaço-temporal e espantosa coordenação motora. Retornando

do âmago da mata, os meleiros entregavam aos paulistas não apenas o mel encontrado, mas

também um pouco de seu suor. Ao saciar-se com o precioso alimento produzido pelos

apídeos, os bandeirantes sorviam também uma parcela do suor dos índios, cujas mãos

molhadas haviam, a golpes de machado, retirado os favos dos ocos de pau.

Nos lugares ermos de caça, raízes comestíveis ou frutos, o mel manteve muitos

paulistas de pé, viabilizando a continuidade das marchas sertanejas. Sobre as áreas

desprovidas de outras opções alimentares, vejamos as palavras de Holanda: “Nesses casos,

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o mel tornava -se o único remédio para a fome e a sua ausência significou muitas vezes a

última penúria” (HOLANDA, 1957, p. 58).

Os índios meleiros salvaram muitos bandeirantes da última penúria. Livraram

muitos paulistas da mais atroz das fomes, quando até mesmo sapos eram ingeridos sem

repúdio.

Além do mel, os índios ensinaram os bandeirantes a consumir uma grande

diversidade de gêneros vegetais e animais. Insetos, vermes e raízes faziam parte dessa

dieta, esdrúxula aos olhos dos europeus. Para sobreviver no sertão, os paulistas foram se

ajustando aos hábitos alimentares indígenas. Sobre isso observemos o que escreveu

Holanda:

... a acomodação à dieta alimentar dos primitivos moradores do país, que constitui certamente resultado de um longo esforço de adaptação ao seu clima e às suas condições materiais, terá favorecido qualidades de energia e resistência, as mesmas qualidades que assinalariam os antigos paulistas, por exemplo, em todos os recantos do Brasil (HOLANDA, 1957, p. 63). (o gifo é nosso)

As palavras de Holanda, além de abordarem a adaptação das bandeiras concernente

à ingestão de víveres, ressaltam sobremaneira características de aptidão física advindas

desses hábitos de ingestão. Essa frase do autor de Caminhos e Fronteiras atribui

qualidades de energia e resistência aos antigos paulistas , qualidades estas que teriam sido

ainda aprimoradas pela dieta aprendida com os índios. Não terá sido essa a única vez que

Holanda teceu comentários claros no que diz respeito ao desempenho corporal dos

bandeirantes. Outra obra do autor, Monções, apresenta diversas observações sobre a

capacidade física dos expedicionários de Piratininga. Vejamos algumas: “sóbrios, tenazes,

afeitos à fadiga ... a capacidade de resistir longamente à fome, à sede, ao cansaço ... a

energia física necessária a muitos desses empreendimentos ...” (HOLANDA, 1990, p. 18-

9).

Essas observações, no entanto, são entendidas, via de regra, como ensejadas pela

vida carente em Piratininga. Holanda, conscienciosamente, associa a notável locomoção

das bandeiras à escassez de recursos vivenciada na Vila de São Paulo. Senão vejamos:

A grande mobilidade dos paulistas estava condicionada em grande parte, a certa insuficiência do meio em que viviam ... eles foram constantemente impelidos, mesmo nas grandes entradas, por exigências de um triste viver cotidiano e caseiro: teimosamente pelejaram contra a pobreza, para repará-la não hesitavam em des locar-se por espaços cada vez maiores ... (HOLANDA, 1990, p. 16 e 26).

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Entendemos terem sido as marchas bandeirantes motivadas pela situação de penúria

vigente no planalto piratiningano. Esta pobreza proeminente, que privava os paulistas de

confortos primários, configurou-se como uma contingência histórica, que alavancou as

marchas sertão adentro. Destarte, as bandeiras que vararam as matas, sobretudo as

primeiras, eram formadas por homens em busca de soluções práticas para suas

problemáticas particulares, que eram principalmente causadas por carências cotidianas

múltiplas. Tal entendimento, sobretudo, não antagoniza nossa concepção de que as

bandeiras foram agregações de homens comuns, que demonstraram desempenho físico

notável. Os habitantes de São Paulo foram para o sertão à caça de índios ou à procura de

riquezas minerais, visando amenizar a miséria material de suas vidas. Para tanto, lograram

cumprir marchas incomensuráveis, onde muitas vezes os limites da extenuação corporal

foram notadamente ultrapassados. As distâncias desmedidas percorridas pelos

bandeirantes, constam abundantemente na historiografia. Sobre essas grandes extensões

cumpridas a pé, escreveu Volpato: “... os paulistas organizaram uma infinidade de marchas

para o interior ... percorreram distâncias inacreditáveis, devassaram o sertão” (VOLPATO,

1985, p. 46).

Ao escrever distâncias inacreditáveis, a autora de Entradas e Bandeiras,

normalmente comedida em suas palavras - posto que em suas obras desmistifica a aura

épica do bandeirismo –, expressa-se revelando distâncias tão grandes, que o fato de terem

sido cumpridas a pé não é crível. Essa interpretação intencionalmente literal das palavras

de Volpato é, contudo, forçosamente equivocada. Esse nosso equívoco ensejado tem, no

entanto, o objetivo de elucidar que é impossível que tais percursos não tenham sido

cumpridos em marcha, já que constam profusamente na historiografia, seja ela ufanista ou

anti-épica. Na verdade, entendemos claramente que Volpato, ao mencionar distâncias

inacreditáveis, não pretendeu evocar o antônimo literal de distâncias acreditáveis, mas sim

enfatizar as grandes dimensões das andanças sertanejas. Para que essas andanças se

concretizassem, parece-nos óbvia a imprescindibilidade de significativo dispêndio

energético, que por sua vez só poderia ser subtraído de corpos não necessariamente débeis.

Impelidos pela contingência histórica da miséria piratiningana, os bandeirantes foram a

configuração da antítese do sedentarismo. Foram os baluartes (e isso não nos parece épico)

da locomoção, foram dos corpos que mais se movimentaram no Brasil Colonial, foram os

signos vivos do deslocamento humano. Não prescindindo dos índios, que os auxiliaram

significativamente, os bandeirantes foram os maiores caminheiros da América de então.

Homens ordinários, nada extraordinários, mas que impelidos ao sertão por adversidades

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contextuais, empreenderam enormes jornadas de pés descalços. Viajores de motricidade

não mensurável, os expedicionários de São Paulo tornaram-se os maiores sertanistas

daquele Brasil recortado de Capitanias, atingindo as mais longínquas delas, bem como

transcendendo os limites da colônia portuguesa, avançando a oeste e adentrando a América

Espanhola, contribuindo para o fracasso do Tratado de Tordesilhas.

Tendo absorvido dos indígenas as técnicas de sobrevivência agreste, os

bandeirantes – que já denotavam extrema mobilidade – puderam alongar a abrangência de

suas marchas. Já tendo abordado as habilidades dos silvícolas em encontrar água e mel,

gêneros preciosíssimos par a o êxito das expedições, mencionemos os métodos nativos de

caça, assimilados pelos bandeirantes. As práticas venatórias dos índios diferiam muito das

dos europeus, sendo mais furtivas, menos perceptíveis à presa. Vejamos as palavras de

Volpato:

Os índios orientavam os sertanistas na arte da caça, a partir de suas técnicas específicas. Eram utilizadas as armadilhas, como tocaia, juçana, jirau, juquiá, arapuca, etc. e também as armas indígenas. Estas ofereciam a vantagem de poderem ser fabricadas quase que a qualquer momento e não necessitavam de munição, elemento dispendioso no armamento de uma bandeira. Além disso, as armas brancas ofereciam a vantagem de não espantar a presa, uma vez que não fazem barulho. Com o tempo, os próprios bandeirantes se tornaram destros no uso do arco e flecha (VOLPATO, 1985, p. 67).

Acostumados aos mosquetes, os bandeirantes acabaram compreendendo o prejuízo

causado por essa arma às práticas de caça, devido ao estampido forte, que espantava todos

os animais das adjacências. Mais profícuo se configurava o andar cauteloso pela mata,

quase silencioso, acentuadamente vigilante. Atentos aos movimentos mais ínfimos, os

sertanistas paulistas aprenderam com os índios a grande importância de agir furtivamente

nas atividades venatórias.

Tornando-se hábeis no manejo do arco e da flecha, os bandeirantes assimilaram

novos padrões de coordenação motriz, no que respeita aos membros superiores.

Analisemos sucintamente, em termos cinesiológicos13, o uso do arco e flecha. De

diferente empunhadura em relação às armas de fogo, o arco requer maior precisão e justeza

de movimentos para fazer-se frutífero. Empunhando o arco verticalmente com uma mão, o

arqueiro executa a ação simultânea de puxar o cordel para trás com a outra mão, ao mesmo

tempo em que faz arrimo para a ponta de flecha e retém entre os dedos sua porção

posterior. Ao tensionar o cordel para trás, o arqueiro faz um movimento antagônico à força

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estática de seu outro braço, que retém o arco à frente. Este antagonismo de movimentos,

propiciado por contrações musculares díspares, requer coordenação motora específica, que

só é adquirida com a prática constante. A assimilação deste trabalho motriz é fundamental

para que a flecha seja lançada certeiramente. O alvo na verdade só será atingido quando da

automatização destes movimentos opostos. Fazer pontaria, mirar a presa, torna-se

improfícuo se a oposição dos movimentos não se harmonizar, propiciando estabilidade à

arma nativa.

A harmonização do antagonismo miológico14 somente é obtida após a repetição

sucessiva, ou seja, é resultado de treinamento. Um arqueiro não treinado, ao fazer pontaria,

não sustém a arma com estabilidade, comprometendo a direção da flecha. A coordenação

motora dos membros superiores deverá estar destra, para que no ato de mirar, a flecha

parta com destino certo.

Esta concisa análise cinesiológica sobre o uso do arco e flecha ensejou-se, devido à

evidente situação de aprendizado corpóreo-motor vivenciada pelos bandeirantes. Buscando

a eficácia venatória, os bandeirantes, até então acostumados ao uso das armas européias,

submeteram seus corpos a novos padrões motrizes, adaptando-os ao manuseio do arco e da

flecha.

Pode-se dizer dos métodos indígenas de caça, que além de serem mais eficientes do

que os europeus, contribuíram para que pontos distantes do sertão fossem alcançados.

Expressemo-nos melhor: os bandeirantes conduziam a pólvora – necessária para municiar

armas de fogo – em caixas encouradas. Quando do esgotamento dessas reservas, ou mesmo

da deterioração decorrente da umidade, o uso dos métodos venatórios indígenas, já

largamente utilizados, tornavam-se a única opção no predar animais para a alimentação. Se

dependessem exclusivamente de mosquetes ou mosquetões, as expedições bandeirantistas

não teriam atingido paragens tão remotas.

Muitas bandeiras permaneciam meses e até anos no sertão, sendo que nessas

oportunidades não raro os artigos de munição acabavam, quando então, em exclusividade,

as armadilhas e armas indígenas obtinham a caça, alimentando os expedicionários e

propiciando a continuidade da caminhada.

Suspeitamos que as linhas escritas acima denotem certa redundância de nossa

parte, apesar das diferenças vocabulares. No entanto, nossa intenção foi a de corroborar em

13 Respeitante à Cinesiologia, ciência que estuda o movimento humano. 14Relativo à Miologia – estudo dos músculos.

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ressalto a significativa contribuição dos métodos de caça nativos, fundamental para que as

mais extensas marchas fossem cumpridas.

Se nas práticas de caça os índios foram de fundamental importância, o mesmo não

pode ser dito quanto à pesca. Os estratagemas nativos incluíam espinhos e plantas tóxicas.

Ambos os procedimentos foram suplantados pelo anzol e pela rede, mais eficientes,

trazidos do Velho Mundo. Dos espinhos curvos os peixes escapavam com relativa

facilidade, sendo que a intoxicação ictiológica com tirigui e timbó foi restringida, pelo fato

de matar um número de peixes muito maior do que o necessário para o consumo.

Na alimentação frugívora, os nativos da terra ensinaram aos paulistas a utilização

do palmito, do pinhão, do araçá, do ananás, da guabiroba, do araticum, da jabuticaba, do

jataí,etc. Impelidos para o viver agreste, os bandeirantes foram viandantes de significativa

performance corpóreo-motora, vencendo distâncias espantosas. O desempenho físico dos

sertanistas de São Paulo, ainda que considerado o contexto em que estava inserida a Vila

de Piratininga, parece-nos ter sido no mínimo notável. Quanto à regularidade cotidiana das

marchas bandeirantistas, escreveu Taunay: “Descontadas as falhas, a bandeira poderia

facilmente caminhar 40 quilômetros diários” (TAUNAY, 1950, p. 61).

John Manuel Monteiro comenta, na obra Negros da Terra, a expedição de Raposo

Tavares, que cumpriu dez mil quilômetros, saindo de São Paulo, atravessando o Mato

Grosso e o Paraguai, adentrando novamente o Brasil pela Amazônia e alcançando

finalmente Belém do Pará, nas extremidades do norte do país. Domingos Jorge Velho,

antes de atacar Palmares, deslocou-se seis mil quilômetros do Piauí a São Paulo (visando

recrutar homens), e de lá retornando ao Nordeste, onde após dizimar aldeias tapuias iniciou

as investidas contra o quilombo liderado por Zumbi.

Fernão Dias Paes, passou os últimos oito anos de sua vida no sertão, morrendo na

barranca do Rio das Velhas, já longevo, aos 73 anos.

Incontáveis outros exemplos de ingentes esforços corporais constam na

historiogra fia do bandeirismo. A história do bandeirismo é sobretudo uma extensa crônica

de corpos em movimento. Nessa cena de intensa motricidade são escassos os corpos

estáticos. O movimento era a regra dos paulistas, sendo o sedentarismo a exceção.

De finitude imprevisível, as marchas bandeirantistas encontraram nos silvícolas

inestimáveis orientadores. Observemos as palavras de Holanda:

Em São Paulo, cuja população, particularmente a população masculina, se distinguiu durante todo o período por uma excessiva mobi lidade, a mistura étnica e também a aculturação, resultante do convívio assíduo e obrigatório, seja durante as entradas, seja nos sítios de roça, deram ao

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indígena um papel que será impossível disfarçar (HOLANDA, 1957, p. 68).

Os índios, mesmo tendo sido importantes agentes históricos do Brasil Colonial,

foram removidos estrategicamente do foco central do cotidiano da época, servindo de

títeres nas mãos dos historiadores apologéticos, que via de regra os mencionam

pejorativamente, sob o prisma comumente etnocêntrico do colonialismo europeu.

Para nós, os índios foram os verdadeiros mestres sertanistas dos bandeirantes.

Mestres obscuros, ensombrecidos pelos heróis épicos forjados nas páginas da

historiografia, sobretudo aquela produzida no fim do século XIX e primeiras décadas do

século XX, notadamente elaborada ideologicamente, visando ressaltar os paulistas como os

homens mais aptos a governar o Brasil.

John Manuel Monteiro entende que a função dos indígenas como elementos

históricos foi suprimida na histor iografia tradicional. Vejamos suas palavras:

De fato, a história dos índios apresenta um claro exemplo da omissão de um ator significativo nos livros de história mais convencionais, pois com a construção da figura do bandeirante, entre outros mitos da colonização, o papel histórico do índio foi completamente apagado (MONTEIRO, 1994, p. 119).

Sem os índios, as bandeiras não teriam realizado marchas tão notáveis. Sem os

índios, as bandeiras não teriam concretizado feitos de grande envergadura, tão decantados

na historiografia ufanista. Mais ainda, entendemos que em situações diversas os índios

foram os protagonistas de muitos devassamentos, colocando os paulistas como

coadjuvantes ou meros expectadores, ante a argúcia e a prática de quem sempre viveu nos

sertões.

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CAPÍTULO III

FUGINDO DO TEMPESTUOSO DILÚVIO: ÍNDIOS E JESUÍTAS NAVEGANDO E MARCHANDO NO SERTÃO

A história das nossas relações com os índios é, em grande parte uma crônica de chacinas ... Darcy Ribeiro

1. Vivendo bandeirantemente e morrendo cristamente: a remissão dos predadores

de gente

A extrema violência dos ataques dos bandeirantes às missões jesuíticas semeou

profundo temor entre indígenas e clérigos. Quando dos assaltos, o pânico generalizado

tomava conta das reduções, enquanto a destruição e o massacre reinavam imperiosamente,

em meio a corpos desmembrados e igrejas e edificações incendiadas. Uma babel de sons

instituía-se caoticamente, quebrando o funcionamento da ordem estabelecida pelos padres.

O alto crepitar das grandes labaredas que devoravam os edifícios, as vozes ríspidas

dos cabos -de-tropa ordenando a matança, os estampidos dos mosquetes, o choro das

crianças, os gritos das mães desesperadas, os lamentos de agonia dos moribundos, os

clamores de clemência dos missionários. Em termos simplistas, as expedições de

apresamento eram agregações de andejos se deslocando pela mata à caça de seres

humanos. Nesse sentido, passando à larga das implicações contextuais, os bandeirantes

eram caçadores de gente. Levando em conta ainda o morticínio quando do abrupto início

dos ataques – morticínio este que visava coibir qualquer forma de resistência, através do

pavor generalizado –, podemos adjetivar os bandeirantes não apenas como caçadores , mas

também como predadores de gente. Afirmamos isto embasados pela lexicologia, pois a

ascepção literal da palavra predador significa: o ser que destrói outro violentamente.15

Os aprestos para a organização de uma bandeira de apresamento incluíam

instrumentos diversos, sendo que muitos deles tinham como objetivo o combate e a

aniquilação da vida. Entre esses gêneros constavam o mosquete, o mosquetão, o alfange, o

15 Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.

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punhal e o machete. Para os sertanistas mais proeminentes acrescentava-se ainda a espada,

que não tinha seu uso generalizado entre os expedicionários.

Os flecheiros, predominantemente indígenas engajados nas bandeiras, ofertavam

também a opção das mortíferas setas envenenadas, bem como das incendiárias. Vale ainda

registrar que o facão e o machado, que em primeira instância tinham como fim o desbaste

dos caminhos e trilheiros, eram também utilizados contra os índios nos ataques às reduções

jesuíticas, como teremos oportunidade de observar adiante. Cumpre também afirmar que

mosquetes, mosquetões e flechas eram amplamente utilizados para as práticas venatórias

de subsistência, bem como para a defesa ante animais selvagens, especialmente os felinos

de grande porte 16, significativamente profusos nas matas do Brasil Colonial.

Como usurpadores da cobiçada mão-de-obra indígena, os bandeirantes das

expedições apresadoras de certo modo eram impelidos ao emprego da força e da

agressividade, já que muitos grupos indígenas – especialmente os já cristianizados – não

eram conquistados pelas artimanhas da oratória, artimanhas estas propaladas pela

historiografia apologética como pacificação dos índios, ou ainda como conquista pacífica

dos mesmos.

O braço do silvícola era necessário como lenitivo para a miséria do planalto de São

Paulo. Esse lenitivo era via de regra obtido através de métodos inumanos, porém práticos.

A eficiência das bandeiras de apresamento, muitas vezes, tinha ligação direta com o teor de

selvageria empregado nos ataques aos grupos indígenas. Não por acaso, os assaltos às

reduções jesuíticas constam na historiografia como dentre os que mais capturaram índios.

O elemento surpresa e o prorrompimento abrupto da agressividade extrema arrefeciam as

intenções de resistência, prostrando submissa a grande maioria da população da redução

invadida. A estupefação e o aturdimento ante a determinação destruidora do ataque,

normalmente sufocavam o ânimo guerreiro dos indígenas, num primeiro momento

fazendo-os expectadores da exterminação de diversos integrantes de sua comunidade, em

seguida tornando-os fugitivos amedrontados, em busca de salvação individual. Com o

pavor semeado, extinguia -se as possibilidades de oponência coletiva, emergindo o

comportamento de fuga, que naturalmente sucede o medo profundo.

No que tange à entrada dos paulistas na redução de Jesus Maria, observemos o que

escreveu Mont oya:

Foi assim, e a som de caixa, de banderia desfraldada e em ordem militar, que os paulistas entraram pelo povoado já disparando armas e,

16 Onças pintadas, onças negras e suçuaranas (onças pardas).

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sem aguardarem parlamentação, atacando a igreja com a detonação de seus mosquetes. Havia se acolhido a ela a gente do povo17 ... Malferido e cheio de cansaço protegeu-se um dos religiosos atrás de um tronco de madeira. Com isso todos assestaram a ele sua pontaria (MONTOYA,1985, p. 243).

Essas palavras, escritas na terceira década do século XVII, expõem de forma clara

que os assaltos dos sertanistas de Piratininga se caracterizavam predominantemente pelo

viés da aniquilação inicial de índios e padres, num furor predatório que imolava

considerável número de pessoas, antes que o apresamento propriamente dito se

consumasse. Sobre isso, na obra Capítulos de História Colonial, escreveu Capistrano de

Abreu:

... À primeira investida morrem muitos dos assaltados e logo desmaia -lhes a coragem;os restantes, amarrados, são conduzidos ao povoado e distribuídos segundo as condições em que se organizou a bandeira (ABREU, 1982, p. 114).

Privilegiando o entendimento sobre o aspecto militar dessa e de outras expedições

que devastaram as reduções jesuíticas do Guairá e Tape, observemos o que escreveu

Monteiro:

No sul, particularmente em São Paulo, os colonos desenvolveram formas específicas de apresamento, inicialmente privilegiando a composição de expedições de grande porte, com organização e disciplina militares. Foram estas as expedições que assolaram as missões jesuíticas do Guairá (atual estado do Paraná) e Tape (atual Rio Grande do Sul), transferindo dezenas de milhares de índios guarani para os sítios e fazendas dos paulistas (MONTEIRO,1998, p. 108 e 109).

Esta citação de Monteiro aqui é feita tão somente visando a elucidação das

características fortemente tendentes ao militarismo, presentes nas bandeiras de

apresamento até aproximadamente 1640. Milícias armadas e estratificadas

hierarquicamente invadiam as reduções, observando o cumprimento de estratégias

previamente elaboradas, empunhando bandeiras18 e tocando caixas de guerra. Eram

regimentos de combate em primeira instância, que chacinavam primeiramente um

determinado contingente do inimigo, incutindo pavor nos sobreviventes, que eram o

objetivo principal do ataque. Na obra Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens

de São Paulo, Monteiro escreveu sobre o triste destino de alguns índios no trajeto entre o

17 A gente do povo são os índios da redução em questão. 18 Aqui o termo tem seu significado mais usual.

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local de apresamento e o planalto paulista. Quanto a isso faremos menção adiante. Ainda

sobre o ataque dos bandeirante s à redução de Jesus Maria, vejamos a continuidade da

narrativa de Montoya: “Resolveram os inimigos queimar a igreja ... por três vezes atiraram

setas inflamadas ... o fogo fez, na quarta tentativa, a presa irremediável na palha da igreja”

(MONTOYA,1985, p. 244).

Lembremo-nos que a igreja estava apinhada, acolhendo a gente do povo em seu

interior, que para lá havia confluído quando do início da sanha assassina dos

expedicionários de São Paulo. O ato de incendiar o edifício propiciaria sua evacuação

forçada ou mesmo queimaria vivas as não poucas pessoas que lá se abrigavam do caos

exterior. Acuados pela fumaça e pelo calor que se adensavam, religiosos e índios foram

tomados pelo mais paroxístico desespero. No desnorteio coletivo, um impasse implacável

se apresentava: lá fora estavam à espera o chumbo, o aço ou na melhor das hipóteses o

apresamento; cá dentro as labaredas se avultavam rapidamente, cascatas de palhas

chamejantes caíam do teto, onde as vigas eram já de um vermelho vivo e incandescente.

As toras das paredes em pouco seriam grossos cilindros em brasa, que tombariam ao chão.

A morte por incineração seria uma amarga escolha, uma escolha praticamente impossível

de ser feita, dado seu caráter indizivelmente doloroso. A opção pelo abandono da igreja se

deu causada pela fuga do fogo. A porta principal do templo estava em chamas, restando

aos apavorados índios e jesuítas a saída por um baixo portão secundário. Destramelando-o

e passando em fila pela estreita abertura, muitos indígenas encontraram um hediondo fim

do lado de fora. Vejamos as palavras de Montoya:

Abriram então um portãozinho, pelo qual saíram os índios ... Com isso acudiram ao mesmo portãozinho, como possessos pelo demônio, aqueles tigres ferozes 19 e começaram, com espadas, facões e alfanges, a derrubar cabeças, matando com a maior brutalidade ou barbaridade já vista no mundo (MONTOYA, 1985, p. 244 e 245).

Fugindo do fogo, saindo em fila pela exígua passagem que conduzia para o exterior

da igreja, os índios foram trucidados pelos bandeirantes. A cena descrita pelo autor de A

conquista espiritual não nos sugere nenhuma espécie de confronto, nenhuma espécie de

refrega ou batalha. Aponta sim para um episódio onde vários assassinatos foram cometidos

por homens armados, cujas vítimas – adultos 20 e crianças – saíam desnorteados de um

19 Aqui MONTOYA (1985) se refere aos bandeirantes como tigres ferozes, numa alusão alegórica a predação e violência presenciada por ele na redução de Jesus Maria. 20 Sendo os índios adultos de ambos os sexos mercadorias valiosas no planalto paulista, é provável que fossem muitos deles poupados da morte, sem que isso possa conferir segurança para que afirmemos que não foram muitos os assassinados.

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prédio enfumaçado e incandescente, prestes a desabar. Nada de peleja, nada de contenda,

mas sim um grupo de sertanistas, deliberadamente esquartejando toda uma fila de índios.

Uma aberrante horda de carrascos, uma inconcebível turba de verdugos em ação, tangendo

a concretude bestial de um inimaginável festival sanguinário, surrealista e orgíaco, onde

pedaços de corpos caíam sucessivamente ao chão. O paroxismo da algidez humana

configurou-se quando os pequenos párvulos indígenas foram mortos. Recém-nascidos, que

há pouco tempo repousavam no calor do ventre materno, agora experimentavam a

frialdade cortante das lâminas afiadas. Como corolário de sua obra nefasta, os bandeirantes

cometeram sucessivos infanticídios na redução de Jesus Maria. Quanto a isso, escreveu

Montoya:

Digo sem exageros que aqui se viu a crueldade de Herodes, e se viu em muito acrescida, porque aquele, ao perdoar às mães, contentou-se com o sangue de seus filhinhos delicados. Mas estes (novos “Herodes”) não se fartaram nem com uma nem com outra coisa, não bastando à sua ferocidade insaciável sequer os arroios que do sangue inocente brotavam. Provavam eles o fio de aço dos seus sabres em cortarem os meninos em duas partes, em lhes abrirem as cabezas e despedaçarem os seus membros fracos. Importavam numa confusão horrenda os gritos, o berreiro e os uivos destes lobos, de mistura com as vozes chorosas das mães, que ficavam atravessadas pela espada bárbara e também pela dor de verem despedaçados os seus filhinhos ( MONTOYA, 1985, p. 245).

Este nefando morticínio junto ao templo fumegante, condenado pelas labaredas,

engendrou uma visão ultrajante aos olhos do jesuíta. Faz-se oportuno observar, à guisa de

ênfase, que na mentalidade sertanista o desencadear da mortandade obedecia a princípios

que visavam um propósito: o apresamento dos autóctones (que como já observaram vários

autores – citando trechos de escritos bandeirantistas – era o remédio para a pobreza do

povoado do planalto).

Analisar as investidas bandeirantes à luz dos conceitos que regem a sociedade do

Brasil atual, seria por demais pueril. O olhar do homem do século XXI, se dissociado de

todos os determinismos sociais do século XVII, seria desfocado, perdendo-se em algum

ponto entre duas palavras de significados diametralmente opostos: civilização e barbárie. É

certo que o significado de ambos os vocábulos, em termos conceituais (não literais ou

lexicológicos), encerram conotações digamos modificadas, decorridos quase quatrocentos

anos. Em outras palavras, o que hoje se entende por barbárie não é exatamente o mesmo

que se entendia na décima sétima centúria, podendo ser dito o mesmo em relação ao termo

civilização. As temporalidades diferentes, bem como o considerável espaço cronológico

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que medeia entre os setecentos e o início do século XXI, requerem uma postura científica

cautelosa quanto à essa questão da terminologia e suas concepções, que se flexibilizam no

decurso dos anos, apesar de, via de regra, as acepções literais das palavras serem mantidas.

Fazemos estas reflexões tão somente para evidenciar nossa preocupação no que

concerne ao cuidado em não lançarmos insinuações atemporais, desprovidas das

indispensáveis implicações históricas que envolveram as bandeiras, neste caso as

específicas de caça ao índio. Imiscuir qualquer conceito ou juízo de valor contemporâneo

ao abordar o Brasil Colonial, certamente resultaria num desmonte de qualquer arremedo de

compreensão do período em pauta. Nesta tarefa, a inserção desavisada de qualquer código

de conduta hoje concebido coletiva e tacitamente, ainda que não expresso na formalidade

das leis, evocaria, mesmo que involuntariamente, o anacronismo. Neste caso, o embuste

historiográfico se consumaria, ao limitar os atos dos homens do passado entre as raias que

balizam o comportamento dos homens de hoje. A mentalidade – mesmo levadas em conta

as permanências – é outra, os padrões sociais não são iguais, e o mais importante: os

contextos hitóricos não são similares, com toda a sua carga multifacetada de contingências

e fatores determinantes.

Os bandeirantes eram homens de sua própria época, regidos por peculiaridades

históricas específicas, onde o fator econômico desempenhou um papel preponderante. Os

maltrapilhos que habitavam a vila de São Paulo, logrando superar a carestia profunda de

suas vidas, lançaram-se ao sertão, tornando-se caminhantes de inusitadas longitudes. A

mentalidade dos bandeirantes também apresentava traços singulares, produto do

antagonismo entre a violência desenfreada e o catolicismo dogmático. Tementes a Deus,

mas descumpridores dos principais ditames do cristianismo, escoavam suas vidas de forma

mundana, escravizando, torturando, estuprando e matando. Escreveu Montoya: “Não há

dúvida que tenham fé em Deus, mas são do diabo as suas obras” (MONTOYA, 1985, p.

244).

Essa dialética traduzia -se na presença de capelães nas expedições. Estes não se

apresentavam trajados para confrontos, mas sim envergando hábitos religiosos, com

alentados terços e cruzes pendentes a cingirem-lhes as cinturas. Abordaremos adiante, em

maiores comentários, a função desses clérigos nas bandeiras. Em Entradas e Bandeiras ,

Volpato faz comentários interessantes sobre a relação dos sertanistas paulistas com a

espiritualidade cristã. A síntese das palavras dessa autora aponta os paulistas como homens

que pareciam buscar a reconciliação com Deus já à beira da morte. Exauridos da

juventude, rememorando as vilezas cometidas ao longo dos anos, os bandeirantes

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acovardavam-se ante a perspectiva da danação eterna no fogo do inferno. Ao avizinhar-se a

implacabilidade da justiça divina, não poucos cabos-de-tropa ou mestres-de-campo

transformavam-se em anciãos temerosos, configurando a antítese de si mesmos quando

moços. Não mais a impetuosidade agressiva e avassaladora; não mais a busca de soluções

práticas para os problemas imediatos; não mais a mortandade de índios indefesos ou

guerreiros; não mais a vazão da concupiscência com índias subjugadas à força; não mais

crianças despedaçadas; não mais missionários aviltados com injúrias; não mais igrejas e

altares destruídos! No crepúsculo da vida, no ocaso da existência terrena, muitos

bandeirantes adquiriam modos brandos, afáveis.

Nos testamentos da época, constam o reconhecimento de inúmeros filhos bastardos

por parte de sertanistas longevos. Filhos rejeitados ao longo da vida, repentinamente

aquinhoados na partilha dos bens do pai sertanista, o qual por vezes jamais vira. O

bandeirante idoso, antípoda esvanecente de si próprio, buscava redimir -se de todas as

formas, observando todas as convenções religiosas afoitamente, dada a exiguidade do

tempo que lhe restava. À procura da salvação, encenava -se a paródia do velho sertanista

sorvendo o sangue de Cristo na hóstia sagrada, ao invés de banhar o sabre no sangue

indígena. Os que se acamavam devido a moléstias longas, pediam a visita regular do padre

à beira do leito, ansiando por conforto espiritual. A boca que outrora, em voz tonitruante,

proferira impropérios aos inacianos, era a mesma que agora, murcha e ressequida,

murmurava para o missionário, confessando pecados ignóbeis, antes de abrir -se

flacidamente para receber a comunhão. Quando já em seus estertores, na iminência

imediata da expiração, o vetusto bandeirante recebia a extrema-unção, consumando sua

vida em sentido inverso ao que escreveu Cassiano Ricardo em Marcha para o Oeste :

“Cristãmente e bandeirantemente” (RICARDO, 1942, p. 210). Na verdade, os paulistas

agiam bandeirantemente por quase toda a vida, procurando apenas morrer cristãmente,

para expiar suas faltas. A obra de Ricardo é um inexaurível manancial de frases que

intentam conciliar os bandeirantes com a cristandade, apresentando-os como prestadores

de relevantes serviços ao catolicismo incipiente do Brasil Colonial. Vejamos esta: “Uma

coisa porém é certa: a bandeira prestou maior serviço ao cristianismo do que o cristianismo

à bandeira” (RICARDO, 1942, p.231). Sabedores que somos da sanha sanguinária das

expedições apresadoras, vejamos agora esta: “Cristãmente se realizavam, dentro da

bandeira, todos os atos da vida quotidiana” (RICARDO, 1942, p. 211). Pretendendo

arrazoar favoravelmente a respeito de João Leme, homicida considerado bandido até

mesmo pelos piratininganos e a quem Holanda adjetivou como facinoroso , Ricardo saiu-se

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assim: “O próprio João Leme da Silva (um dos irmãos Leme) não morreu no cadafalso mas

cristãmente?” (RICARDO, 1942, p. 211). Sobre Jorge Velho, o homem que chefiou a

matança e a degola de quase três centenas de tapuios, além de literalmente reduzir a

pedaços o corpo de Zumbi, dizimando ainda nas refregas de Palmares mais de duzentos

negros, escreveu Ricardo:

... o próprio Domingos Jorge doando, em testamento, trinta das suas fazendas de criar em favor dos jesuítas do Colégio da Baía, com o ônus, verdadeiramente cristão, de que as rendas se destinassem, também, ao amparo das viúvas indigentes (RICARDO, 1942, p. 220).

Para nós, a doação de Jorge Velho, que aquinhoou os jesuítas generosamente em

seu rol testamentário, exemplifica de forma clara o modus vivendi do bandeirante ancião,

que como já abordamos, caracteriza-se pelo pendor para a redenção, temendo a

sobrenaturalidade vindoura após o fenecimento. Vale lembrar que, o assaz considerável

patrimônio de Jorge Velho, foi em grande parte obtido com a exterminação dos tapuios e

dos palmarinos. Essas duas chacinas, que foram encomendadas pelo Governo Geral do

Brasil e ratificadas em contrato pela coroa portuguesa, previam o cedimento de muitas

terras para o bandeirante, além da posse de todos os negros sobreviventes das pelejas em

Palmares. Destarte, Domingos Jorge transformou-se num senhor de terras, com uma

escravatura farta, composta de braços indígenas e negros. Um mestre de campo, um andejo

que matara sob contrato para ser pago com terras ... um mestre de campo envelhecido, que

contempla os seguidores de Inácio de Loyola com uma grande área de três dezenas de

fazendas, granjeada à custa de farto derramamento de sangue. Em sentido figurado, pode

ser dito que Jorge Velho construiu seu patrimônio sob uma alentada pilha de corpos

humanos, desmembrados diga-se de passagem. A despeito disso Ricardo logra atribuir-lhe

o adjetivo piedoso , quando o enfoca em um de seus escritos. Jorge Velho, esclareça-se, era

dos raríssimos sertanistas que sabiam escrever, sendo apontado por Holanda em Raízes do

Brasil como detentor de certo atilamento intelectual. John Monteiro, na obra Negros da

terra escreveu: “Domingos Jorge não apenas falava como também escrevia em português,

algo inusitado...” (MONTEIRO, 1994, p. 164).

Ao procurar ressaltar a religiosidade do mestre de campo, quando este se ressentia

da morte de três de seus homens em certa campanha, escreveu Ricardo:

... a respeito de Domingos Jorge Velho, que é piedoso e diz: meu capelão saiu para fóra, estando eu a sair para a campanha; mandei-o buscar; não quis vir ... morreram-me três homens brancos sem confissão – coisa que mais tenho sentido nesta vida (RICARDO, 1942, p. 230 e 231).

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Segundo o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, o adjetivo piedoso

significa: que tem piedade. Na mesma obra o substantivo piedade significa: amor às coisas

religiosas; religiosidade; devoção; compaixão; dó; pena. Percebe-se aqui a complexa

problemática suscitada por Ricardo, que em seu discurso incursiona por labirintos

completamente inesperados, selecionando vocábulos que são verdadeiros primores de

representação apologética. A religiosidade bandeirantista, com suas especificidades todas,

é de fato apontada por muitos autores, como Holanda, Volpato, Taunay, Haubert, Azevedo,

Ellis, Monteiro, Vasconcelos e Montoya, sendo estes dois últimos missionários inacianos.

Neste sentido, o temor a Deus e a consciência de sua existência fazem-se claros na

mentalidade bandeirante, sendo recorrentes na historiografia. Por outro lado, as acepções

compaixão, dó e pena - que são mais diretamente associadas à idéia de piedade – são aqui

não apropriadas, uma vez que um sertanista como Jorge Velho não era movido pelos

parâmetros desses sentimentos sinônimos. Sua lógica era a da ação, que no momento de

sua prática esta va completamente dissociada de qualquer conotação convencional

castradora. A ação propriamente dita redundaria em obtenção, em grangeamento de bens.

Para Jorge Velho, como também para grande parte dos sertanistas de São Paulo, as coisas

de Deus e dos sentimentos humanos estavam apartadas de seus atos durante suas

empreitadas. Obter sesmarias através da guerra, ou apropriar-se da força de trabalho

indígena, eram objetivos que propiciavam benesses palpáveis, concretas.

2. Capelães, beatões e padres: cúmplices da violência bandeirantista

Como já tivemos oportunidade de mencionar, as expedições de apresamento

incluíam capelães em suas fileiras, que receberam de Montoya a jocosa alcunha de

beatões. Cumpre aqui observar que esses homens representavam a presença cristã nas

bandeiras, porém sem limitar ou refrear os atos dos bandeirantes. Sobre isso, vejamos o

que escreveu Montoya:

Levam eles (os bandeirantes) consigo uns lobos vestidos de peles de ovelhas, os quais não passam de uns verdadeiros hipócritas. Tem por ofício o de, enquanto os demais andam roubando e despojando igrejas, bem como atando índios adultos e despedaçando crianças, mostrarem eles mesmos grande rosários pendurados ao pescoço. Além disso se

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aproximam dos padres, pedem-lhes confessar e se metem a falar sobre a oração e o recolhimento (MONTOYA, 1985, p. 127).

Pelas palavras do inaciano, percebe-se que a figura do capelão no bandeirismo

escravizador não denotava qualquer arremedo de indício repressivo, no que diz respeito

aos crimes ou pecados praticados pelos paulistas. Para que possamos aquilatar melhor essa

situação contumaz, vejamos o relato deixado pelo jesuíta, quando do assalto dos

bandeirantes à redução de São Francisco Xavier:

Enquanto os demais arrebatavam tudo que viam, um ‘beatão’ daqueles que atrás descrevi, pôs-se sem pressa a falar com um padre sobre coisas muito espirituais, a confissão e as diferenças e graus existentes na oração ... tinha ele ... o rosário muito comprido nas mãos. Fingindo que rezava, ia passando com grande pressa as contas. Reparamos depois que ele contava, sem dúvida, os cativos que eles levavam, para calcular o seu quinhão ... ( MONTOYA, 1985, p. 130).

Aqui, o autor de A conquista espiritual, afirma que o capelão procede não apenas

de forma alheada ao que ocorre à sua volta. O saque após a abordagem hostil é feito pelos

bandeirantes, ao mesmo tempo em que o beatão se aproxima de um padre da redução,

iniciando um colóquio sobre as coisas de Deus. A vilania do assalto dos paulistas, em

pleno curso, parece não lhe dizer respeito. A ação que se desenrola em sua presença, com

todas as suas implicações anti-cristãs, não tolhe sua iniciativa de conversar com o padre da

redução sobre práticas religiosas e espirituais, que em seus propósitos doutrinários

promovem a asce nção do homem. Abstraído do ataque promovido por seus companheiros

de marcha sertaneja, o capelão age com placidez em meio ao apresamento que se consuma.

O germe da escravização está sendo gestado em concomitância com a palestra sobre os

ditames divinos, iniciada pelo capelão ante o desconfiado e estupefato jesuíta da redução

invadida. Além desta postura nada clerical, que aparentemente ignora atos condenáveis –

aos olhos da Igreja – acontecendo ao derredor, o beatão mencionado por Montoya ainda

finge que reza o terço, quando na verdade está contando os índios que estão sendo

aprisionados, para então calcular quantos escravos terá para si na hora da partilha. Vale

observar, portanto, que Montoya imputa ao capelão o desonroso procedimento de religioso

que anseia pela mão-de-obra indígena. Um homem com o rosário nas mãos, passando as

contas com os dedos ávidos ... cada conta um índio, cada conta um escravo. Quanto mais

peças aprisionadas, maior sua fração quando da distribuição delas entre os membros da

expedição.

Não sendo propriamente um agente ativo do apresamento, o capelão bandeirantista,

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com seu procedimento conveniente, apresenta -se como um elemento apresador passivo,

uma vez que não denota, de forma alguma, estar em discordância com os objet ivos

elementares dos bandeirantes. Isto num primeiro momento, pois ao receber sua cota de

presas após os ataques, o beatão demonstra de forma explícita sua concordância ou

anuência em relação à captura e escravização dos silvícolas. Analisando por outro pr isma,

considerando sua participação como membro efetivo da expedição, que tendo partido de

São Paulo, marchou pelas matas e deu caça aos índios, julgamos razoável o entendimento

de que ele – o beatão ou capelão – era também um expedicionário apresador, posto que

figurava nas fileiras de uma corporação organizada, que tinha como único fim o

apresamento dos autóctones. Em qualquer das duas proposituras, percebe-se às escâncaras,

que a presença formal da figura do religioso não inibia a atitude comumente atroz,

verificada no bandeirismo apresador.

A inclusão do capelão nas bandeiras foi concebida em estreita relação com a

necessidade de conciliar os sertanistas com Deus, a despeito de seus atos reprováveis

perante a doutrina da Igreja Católica. Destarte, torna -se compreensível – lembrando que

aqui nosso propósito não se alicerça no julgamento – a postura do beatão, quando

demonstra em suas maneiras aparentemente não notar os crimes perpetrados em sua

presença. Sua função não era sofrear a ação dos paulistas através de palavras ou ações. Na

verdade, em termos práticos, qualquer cerceamento ao comportamento dos expedicionários

implicaria em procedimento antagônico ao objetivo primordial da empresa. Os

bandeirantes embrenhavam-se pelas matarias para capturar índios, considerando

previamente todos os aspectos concretamente tangíveis da jornada. Não estava inclusa nas

deliberações dos paulistas todo o sentido abstrato da fé cristã, quando da organização de

uma bandeira escravizante. O que precisasse ser feito seria feito, desde que a mão de obra

silvícola fosse trazida do sertão. Nenhuma outra implicação sobrepujava esta ordem de

idéias, bastando para isso constatar na historiografia as abundantes chacinas que vitimaram

os indígenas à época das bandeiras, sobretudo no século XVII. Conhecedores dos

principais preceitos do cristianismo, mas também sabedores de que esses preceitos

limitariam suas práticas homicidas e escravocratas, os paulistas encontraram uma saída

singular, um escape pelo viés do perdão posterior , formalmente concedido por um homem

de Deus. A presença do capelão nas expedições foi engendrada desta forma, onde ficou

estabelecido entre os homens de armas e o representante de Deus o entendimento tácito de

que os primeiros eram caçadores de gente, sendo o último responsável pelo ato da

reconciliação dos primeiros com Deus. Pacificar as mentes atormentadas por muitas e

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implacáveis culpas, esse era o trabalho do capelão nas bandeiras. Isso fica muito claro em

Ricardo, onde o apologismo aos bandeirantes mescla-se indissoluvelmente à uma

desvelada hostilidade ante a religiosidade propalada pelos jesuítas, carregada de

conotações limitantes à violência. É nítida a aversão desse autor, no que concerne ao

balisamento da liberdade de ação apregoado pelas convenções cristãs.

Nada de rédeas, nada de freios dos beatões , capelães ou padres. Interessava aos

paulistas apenas o arrefecimento de seus tumultuosos conflitos interiores, gerados por uma

vida contumazmente sanguinária. Quanto a isso, observemos os escritos de Ricardo:

Precisava o bandeirante de alguém que lhe passasse esponjas na alma e recorria ao capelão como quem recorre àquele que nascera pra esse fim: perdoar em nome de Cristo. Si o padre não tivesse essa função misericordiosa de perdoar, então que fosse às urtigas. Sua função obrigatória era ‘descarregar a consciência’ ao sertanista atormentado. Fizesse isso e teria cumprido o seu dever (RICARDO, 1942, p. 222) (o grifo é nosso).

Estas palavras explicitam, de forma clara e enfática, que os sertanistas queriam de

seus capelães nada mais que o perdão. Findadas as tormentas da consciência, reiniciada a

bonança dos pensamentos apacentados, os sertanistas estavam prontos para cometer novos

pecados e obter novos perdões.

Curiosas são as incursões labirínticas no discurso de Ricardo, quando busca

justificativas estéreis para explicar os crimes dantescos cometidos pelos expedicionários

paulistas. Em diversos trechos de Marcha para Oeste, os bandeirantes são qualificados

como sentinelas vanguardistas da gênese da pátria brasileira. São os formadores da nação,

são patriotas emblemáticos, que levam padres em seus deslocamentos sertanejos. De

mentalidade simplista e rude, os homens andrajosos do planalto paulista são sugeridos

como semeadores de atitudes indispensáveis à formação inicial e ao fortalecimento da

pátria. Sabemos que esses homens, ao encetar distantes caminhadas pelas matas da

Colônia, estavam sendo movidos por motivos particulares, restritos. Volvidos para a

solução de sua indigência, os andejos do planalto de Piratininga não estavam preocupados

com a pátria, não estavam ocupados com elocubrações requintadas e coletivistas, uma vez

que nem mesmo possuíam agudeza intelectual para isso. Caçadores de mão de obra

escrava, os bandeirantes capturavam os nativos da terra para aplacar a miserabilidade de

suas vidas no altiplano de São Paulo. Para que este objetivo fosse concretizado era

necessário o emprego da violência, que não raro atingia matizes assustadores, cabendo aos

capelães o concedimento do perdão aos autores dos assaltos. Desta forma, percebe-se que a

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agressividade das empreitadas apresadoras era motivada por implicações históricas

específicas, não sendo gestada no bojo de sentimentos de patriotismo. Não obstante estas

considerações, observemos as distorções contextuais envolvendo a pátria, escritas por

Ricardo:

Fossem suprimidos os crimes, que explicam a origem de todas as pátrias e estas só existiram no reino do céo. As pátrias não se formam sem dor, sem ação, sem sangue. Daí a razão pela qual bandeirante nunca dispensou padre. Este seria obrigado, por bem ou por mal, a descarregar a consciência daquele, já que Cristo era bandeirante. Pois não é Cristo o pai dos bons e a esperança dos maus? Estes e aqueles não lhe pertencem, segundo a linguagem da própria bíblia? A técnica do perdão não é a grande arma do crinstianismo diante do irremediável? (RICARDO, 1942, p. 223).

Estas palavras disparatadas de Ricardo atingem culminâncias burlescas,

qualificando o próprio Cristo como bandeirante e afirmando ser obrigação – por bem ou

por mal – do padre aplacar os dramas das consciências homicídas. Entendendo o perdão

como técnica ou arma do cristianismo perante o irremediável, o autor acaba caindo na

armadilha engendrada por suas próprias palavras, pois vale lembrar que para ser perdoado

– segundo os cânones católicos – o pecador precisa demonstrar arrependimento. Ricardo

não menciona isso, mas analisando seu tom ou viés discursivo, não parece ser inidôneo

conjecturar que ele passa à larga de tanger o arrependimento, por tentar ressaltar que o

derramamento de sangue é instrínseco ao nascimento das pátrias, já que elas não se

formam sem dor, sem ação, sem sangue. Essa intenção trasparece nas frases de Ricardo. A

gênese das pátrias obedece em Ricardo à lógica do genocídio, sendo algo natural. Isso nos

parece muito claro. E já que a aniquilação de seres humanos formam pátrias, existe

heroísmo e patriotismo no ato de aniquilar. Em desdobramento, de forma implícita ou

subliminar, está presente nesse pensamento a idé ia de que não há nada do que se

arrepender, já que atitudes heróicas ou patrióticas são merecedoras de honra e admiração,

e não de irrompimentos individuais ou externações pias de acabrunhamentos ou remorsos.

Assassinatos e perdões, sem passar necessariamente pelo arrependimento exteriorizado. O

remédio serial para o irremediável serial. O perdão serial para assassinatos seriais.

Apresadores e capelães, respectivamente matadores reincidentes e promovedores de

perdões sequenciais. Para os sertanistas, o ajuste de contas ou a reconciliação com Deus

era algo posterior ao apresamento e ao morticínio. A necessidade de abastecimento e

reposição de mão-de-obra indígena era constante, sendo, portanto, constante a violência e o

perdão concedido pelos capelães em nome de Deus.

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Sobre a sanha dos bandeirantes quando dos ataques às reduções de Santo Antônio e

são Miguel, deixou escrito o padre Montoya:

...Entraram a som de caixa e em ordem militar nas duas reduções de Santo Antônio e são Miguel, destroçando índios a machadadas. Os pobres dos índios com isso se refugiaram na igreja, onde os matavam – como no matadouro se matam vacas - , tomaram por despojo as modestas alfaias litúrgicas e chegaram mesmo a derramar os santos óleos pelo chão (MONTOYA, 1985, p. 126).

Tratando desta mesma investida bandeirante, na obra Índios e Jesuítas no tempo

das Missões, escreveu Maxime Haubert:

Os assaltantes apoderam-se dos bebês para obterem as mães, depois quebram-lhes a cabeça contra as árvores; matam os neófitos até nos braços dos missionários e incendeiam as cabanas que abrigam os inválidos. Alguns falsos devotos tem por tarefa neutralizar os jesuítas. Com um grande rosário em volta do pescoço ... oram de várias formas, dissertam sobre a felicidade de servir a Deus, investigam o estado espiritual da redução ... (HAUBERT, 1990, p. 157).

Aqui, encontramos novamente a figura do capelão-beatão já mencionada por

Montoya. Enquanto crânios de crianças indígenas são esmagados de encontro às árvores, o

religioso expedicionário ora e parla menta sobre as virtudes da devoção. Esse ataque

paulista ocorreu em setembro de 1628, sob o comando de Antônio Raposo Tavares. Para

fornecer algumas informações adicionais sobre a qualidade dos padres no Brasil Colônia,

entendemos ser de utilidade refletir sobre a obra A Companhia de Jesus e o Plano

Português do Brasil, de Vitorino Nemésio. No capítulo XXI do citado trabalho, o autor

trata da chegada do padre Manoel da Nóbrega à Bahia, em 29 de março de 1549, na

incipiência da instalação inaciana na colônia . Nóbrega encontrou na Bahia sacerdotes que

contrariavam o rígido código disciplinar da Companhia de Jesus. Tais homens eram

impenitentes, levando vida libertária e desregrada, em dissonância gritante com os cânones

católicos. Sobre isso, vejamos o que escreveu Nóbrega:

Os clérigos que havia no Brasil eram por enquanto ‘a escória que de lá vem’, quando eram precisos sacerdotes ‘de vida aprovada’... (NÓBREGA apud NEMÉSIO, 1971, p. 203)

Se o modo de vida dos padres da Bahia já não era muito aprovado por Nóbrega em

1549, menos ainda dignificante era o modus vivendi dos religiosos afixados em São

Vicente, como teve oportunidade de constatar o mesmo e iminente Nóbrega em 1553,

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portanto cinco anos depois de seu estarrecimento ante os padres do Nordeste. Observemos

o que escreveu Nóbrega:

Dos dez padres de missa que lá havia, ‘só dois ou três não tem sete ou oito filhos como os outros’, e esses mesmos dispunham de serralhos de ‘cinco índias ou seis índias de má vida’. Havia dez anos que um deles não subia ao altar; outro, idem, há coisa de três ou quatro, e aos outros mais lhe valia não celebrar (NÓBREGA apud NEMÉSIO, 1971, p. 271)

Maculando, conspurcando os preceitos da Igreja Católica, esses padres causavam

estupefação nos clérigos inflexíveis, que guardavam as regras do sacerdócio com estrita

observância. Parece-nos fácil a compreensão das críticas de Nóbrega no que diz respeito a

estes homens de batina e vida libertina, que enodoavam a reputação do clero através da

concupiscência poligâmica. A causa da indignação de Nóbrega foi nesse caso a vazão de

desejos lúbricos com índias, que é válido lembrar, andavam semi-nuas na capitania de São

Vicente, com suas vergonhas à mostra.

Já em Montoya, as críticas são dirigidas à hipocrisia e à omissão dos padres

capelães das bandeiras, que oravam enquanto índios eram esquartejados perante seus

olhos. Cumpre aqui ressaltar que o puritanismo presente no discurso de Nóbrega e

Montoya é um desdobramento natural das convenções cristãs, que expresso através da

oralidade ou da pena, busca corroborar a imposição dogmática da fé, repudiando a prática

sexual livre e a violência, mas não prescindindo da evangelização etnocêntrica, calcada no

desmanche de todo o rico universo religioso indígena, depauperando o poder dos Xamãs e

Pagés e promovendo a destribalização. Esse processo incipiente de aculturação, visava

abrir espaço mítico-religioso-social para que a cruz cristã reinasse altaneira, onde outrora o

diabo havia obrado, através das práticas ritualísticas nativas.

Essas considerações sobre clérigos cumpridores e não cumpridores da doutrina

católica, bem como sobre os contundentes arrazoados de Nóbrega e Montoya,

submeteram-se, sobretudo, à nossa intenção de buscar entender – em termos contextuais –

as ações do clero no Brasil Colônia. Os homens naturais da América foram desrespeitados

tanto pelos padres lúbricos, quanto pelos evangelizadores. Uns faziam sexo com índias,

enquanto outros disseminavam que os líderes religiosos tribais obravam sob inspiração

demoníaca. Nesse sentido, faz-se necessário isentar Montoya da prerrogativa de protetor

dos índios. Essa asserção é fundamental para que possamos entender esse jesuíta como um

homem, que pela sua formação, entendia como execráveis as ações dos bandeirantes –

sendo elas escravistas ou homicidas –, mas que obviamente não estava ocupado em

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preservar as tradições mitológicas e comunitárias dos índios. Muito pelo contrário,

Montoya era um sacerdote proeminente, respeitado por seus pares de devoção, encarnando

a figura emblemática do evangelizador católico, que à toda espiritualidade não cristã

procura aniquilar. Adiante teremos a oportunidade de abordar uma ação concreta desse

padre, que procurou salvar doze mil índios da ferocidade dos bandeirantes ... doze mil

índios, doze mil ovelhas de seu rebanho, já usurpadas de suas tradições, em pleno processo

de aculturação, em pleno curso de aceitação dos padrões místico-culturais europeus ... doze

mil almas de Jesus Cristo, salvas da barbárie pela piedade da Companhia de Jesus. Esse

episódio, de fuga em massa pela mata, foi dirigido por Montoya quando da aproximação de

uma expedição de apresamento. Nessa empresa, o missionário e milhares de índios

cumpriram a pé um percurso significativo, enfrentando toda a sorte de fatores adversos,

quer geográficos, alimentares ou patológicos. A atividade corporal empreendida foi

intensa, propiciada por singularidades anátomo-fisiológicas particulares à situação de medo

ou pavor. Como dissemos, adiante trataremos desse êxodo com mais detalhamento. Por ora

julgamos ser elucidativo, em termos historiográficos, incursionar ainda um pouco acerca

do modo de vida dos padres no Brasil Colonial, visando sobretudo mostrar que as

iniqüidades do clero não ficaram cinrcunscritas apenas aos beatões das bandeiras.

Pontilham na historiografia, de forma facilmente perceptível, as menções sobre os

religiosos de conduta duvidosa no período colonial brasileiro. Em História Geral das

Bandeiras Paulistas, Taunay aborda a imigração de padres e frades para os arredores dos

jazigos auríferos de Minas Gerais, desvencilhando-se por conta própria de seus afazeres e

obrigações eclesiásticos, a despeito das determinações de seus superiores. Vejamos o que

escreveu Taunay:

Pelo território aurífero avultavam frades que pelo emprego de bons modos e paciência jamais se conformariam a se recolherem a seus conventos, pois na clausura não lhes seria possível continuar a vida licenciosa das minas (TAUNAY, 1936, p. 282).

Agindo desabridamente à revelia da hierarquia da Igreja, esses religiosos afluíam

para as áreas de mineração, onde se revelavam renitentes aos chamados de seus

responsáveis. Sobre isso deixou escrito Taunay:

Os bispos e os prelados de várias ordens viviam amargurados ao verificar que se não fazia conta alguma das suas censuras. Não conseguaim fazer voltar aos seus bispados e conventos os não poucos clérigos e religiosos, que escandalosamente andavam nas terras auríferas, onde havia muitos apóstatas, egressos e giróvagos (TAUNAY, 1936, p. 278).

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Refletindo sobre a inquietação da própria coroa perante essa situação, escreveu o

mesmo historiador:

Desde vários anos aliás preocupava-se o governo do reino com a presença e permanência destes clérigos de má vida, emigrados para o longínquo Brasil para fugirem às penas impostas pelos seus prelados, ou às justiças reais (TAUNAY, 1936. p. 278).

Observa-se aqui que tais clérigos tinham débitos anteriores não apenas com a

Igreja, mas também com a justiça majestática. Esses homens de sotaina aportavam no

Brasil em número cada vez maior. Para verificarmos isso, observemos ainda estes escritos

de Taunay:

A imigração de clérigos maus chegou a tomar tais proporções que em 1709 motivaria uma carta régia de Dom João V proibindo a passagem ao Brasil desses homens sem licença real ‘pelo grande dano e pertubação por eles causados nas minas para onde logo passavam’. Uma vez lá zombavam das ordens de despejo que lhes eram intimadas pelos governadores do Rio de Janeiro. Assim se exigiria de todos os mestres de embarcações partidas do reino e das ilhas a decalração formal de que não transportavam religioso clandestino, sob pena de multa de dois mil cruzados (TAUNAY, 1936 p. 279).

Enfatizemos que esse deslocamento de religiosos para as minas de ouro ocorreu na

primeira década do século XVIII, sendo esses imigrantes apontados como de conduta

reprovável. Montoya deixou escrito no século XVII sobre os beatões das bandeiras, que

em suas ações contrariavam os dogmas católicos, sendo que no século XVI Manuel da

Nóbrega adjetivou como escória os clérigos do Brasil. Destarte, em síntese, torna-se clara

a recorrência de considerações desabonadoras ao clero, tecidas ao longo de dois séculos de

escrita da história colonial brasileira, lembrando que muitas vezes as acusações partiram

de homens servidores da Igreja.

3. A fuga do Guairá: medo historicamente construído e terror supersticioso

determinam sôfrega motricidade humana

O bandeirismo apresador espalhou a morte, o terror e o trabalho forçado entre os

homens naturais do Brasil, principalmente aqueles que já se encontravam reduzidos pelos

jesuítas.O motivo desta predileção era óbvio, pois nas reduções os índios estavam

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concentrados em termos demográficos, configurando um manancial considerável e

populoso, donde se extraía grande número de presas a cada investida. A desmedida

agressividade também pode explicar-se – além da necessidade da imposição do medo

como fator intimidador – pela grande quantidade de índios presentes, que acaso

oferecessem resistência podiam causar estragos consideráveis à tropa sertanista, com

ferimentos e baixas no contingente invasor. Sob esta concepção, torna -se também não

descabido o raciocínio de que os bandeirantes agiam assim também por cautela, atacando

fulminantemente uma agregação de índios que, pela vultosidade numérica, podia se

transformar num importante fator antagonista, em termos de confronto aberto. É fácil

observar que a costumeira tática paulista pretendia impedir deflagrações de batalhas,

priorizando sobretudo o controle inicial e imediato da situação. Sobre a invasão dos

paulistas na região do Guairá escreveu Montoya:

Entrou essa gente em nossas reduções: cativando,matando e despojando altares. Fomo-nos com pressa três padres rumo a seus ranchos e alojamento, onde já retinham muita gente presa. Pedimo-lhes que nos devolvessem os que haviam cativado, pois não eram poucos os que possuíam acorrentados. Como loucos frenéticos gritaram de imediato, dizendo: prendam-nos! Prendam-nos, pois são traidores! Juntamente dispararam alguns arcabuzes, ferindo oito ou dez dos índios que nos acompanhavam. Morreu um deles, ali mesmo, devido a um balaço, que lhe deram numa das coxas. O padre Cristovão de Mendoza saiu ferido de um flechaço (MONTOYA, 1985, p. 125).

Acreditamos ser facilmente perceptível que nossa exposição desce às minudências

das características ominosas dos assaltos paulistas às reduções. Cabe portanto explicar, que

disto depende em grande parte, tanto em termos históricos quanto em termos de motilidade

física, qualquer intenção de entendimento deste deslocamento coletivo comunitário

encetado pelos sertões da colônia, que atravessou todas as capitanias do sul do Brasil. Para

tanto, observemos as ações dos bandeirantes, quando já consumado o apresamento e a

contagem dos cativos, na iminência da partida de retorno à Piratininga, após a devastação

das reduções de Santo Antônio e São Miguel. Sobre isso escreveu Montoya:

Soubemos que já pretendiam ir-se embora e que pensavam em queimar os enfermos e impedidos de viajar. Mandei que fosse ter com eles o Padre Cristóvão de Mendoza, para que lhes pedisse a permissão de antes os batizar ou ao menos a sua não-matança. Responderam, com suas astúcias costumeiras, dizendo que nos avisariam, mas, retirando-se daquele posto, que é uma espeçie de curral maior que a praça de Madrid, puseram fogo às choças, que todas de palha, onde queimaram muitíssima gente com inumanidade de feras (MONTOYA, 1985, p. 127).

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Deixando atrás de si um sulco de morte, incineração e ruínas, os bandeirantes

iniciavam a longa marcha de volta a São Paulo, conduzindo os indígenas capturados, que

seriam escravizados no trabalho de lavrar, plantar e colher. Na verdade, a partir do

momento do apresamento, os índios já eram escravos consumados. Acorrentados uns aos

outros, – para coibir movimentos individuais mais amplos, que lhes permitisse a fuga, – os

índios caminhavam pela mata, guiados por seus captores. Nesta viagem a pé, já totalmente

subjugados pelos bandeirantes, as presas sofriam toda a sorte de compungimentos.

Vejamos as palavras de Haubert:

... Forma-se em direção a São Paulo o cortejo dos cativos, que geme sob as sevícias, gritam de fome, urram de dor com a separação. Todos aqueles que não podem segui-lo são mortos ou abandonados à sua agonia (HAUBERT, 1990, p. 157).

No que diz respeito aos ataques paulistas e à condução dos cativos ao planalto

vicentino, escreveu o mesmo autor: “... seu rastro sendo reconhecido pelas aldeias

incendiadas e pelos cadáveres que juncam a floresta” (HAUBERT, 1990, p.157).

Montoya escreveu sobre os padres Simão Masseta e Justo Mansilla, que em janeiro

de 1629 acompanharam os bandeirantes e os índios apresados em Santo Antônio e São

Miguel, quando da marcha rumo a São Paulo. Observemos suas palavras:

Aos mortos que ficavam pelos caminhos, não era possível enterrá-los. Tendo percorrido quase trezentas léguas a pé, chegaram à Vila de São Paulo... (MONTOYA, 1985, p. 127).

Sobre o retorno desta mesma bandeira ao planalto paulista, acompanhada pelos dois

jesuítas já mencionados escreveu Volpato: “... não restam dúvidas sobre a grande perda de

prisioneiros pelo caminho” (VOLPATO, 1985, p. 82).

As expedições de apresamento, quando de retorno ao planalto e bem sucedidas em

termos de quantidade de apresados, deixavam nas matas uma trilha onde pontilhavam

homens mortos. Isso fica claro em Montoya, Volpato e Haubert. Uma trilha fúnebre,

lúgubre. Uma trilha de defuntos, um caminho de cadáveres.

Também sobre a triste marcha dos índios escravizados, citando partes do relato de

um jesuíta de nome não mencionado, escreveu Monteiro:

A longa caminhada até São Paulo prometia horrores adicionais, ‘como matar os enfermos, os velhos, aleijados e ainda crianças que impedem os pais ou parentes a seguirem viagem com a pressa e expediência que eles pretendem e procuram às vezes com tanto excesso que chegaram a cortar braços a uns para com eles açoitarem os outros’. Outro padre denunciou que os paulistas se comportavam com tanta crueldade que

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não me pareceu ser cristãos, matando as crianças e os velhos que não conseguem caminhar, dando-os de comer a seus cachorros... (MONTEIRO, 1994, p.73).

Todos estes horrores até aqui abordados – desde as chacinas dos ataques, passando

pela omissão dos beatães e culminando com a jornada até São Paulo –, incutiram um

sentimento de medo profundo nos silvícolas das missões, como também em muitos dos

missionários inacianos. A expectativa e tensão, ante a iminência ou irrompimento

inesperado de uma investida paulista era um sofrimento diário. A qualquer momento podia

acontecer o pior. Uma sombra de pressaga aflição pairava sobre as reduções do Guairá. De

uma hora para outra podia ser desencadeada a desolação completa, trazendo a morte e a

escravidão. Vejamos sobre isso as palavras de Haubert:

Durante muitos anos, a vida cotidiana das famílias reunidas pelos jesuítas é dominada pelo medo dos mamelucos, pelo terror das pilhagens, pelo horror das aldeias incendiadas. A vida cotidiana se resume em neófitos fugindo precipitadamente para a floresta e que, para evitar ser capturados, amarram o focinho dos animais domésticos e cortam a língua dos galos. A vida cotidiana é aquela velha que ficou sazinha em sua aldeia e se enforca de desespero (HAUBERT, 1990, p.158).

Esse denso suspense, além de pôr os índios em sobressaltos, serviu para alimentar

as tendências místicas de não poucos jesuítas, que passaram a conotar os bandeirantes

como asseclas de Satã. No que concerne a essa questão, escreveu Haubert:

Alguns missionários contam que, à aproximaçao dos mamelucos, viram lágrimas ou suor aflorarem nos quadros e estátuas da igreja. Por vezes, o próprio diabo se encarrega de trazer o presságio funesto, aparecendo, por exemplo, sob a aparência de um mameluco. É verdade que, por outro lado, ele assume o aspecto da Rainha do Céu para impedir o êxodo! (HAUBERT, 1990, p.158).

Essas palavras evocam não apenas o clima de misticismo reinante entre os

missionários, como evidenciam ainda suas intenções de fuga, que por sua vez eram

coibidas pelo estratagema do diabo disfarçado de Rainha do Céu , visando ludibriá-los,

persuadindo-os a permanecer nas reduções, esperando pela chegada dos paulistas sem o

saber. Esse exercício contemplativo de agouros e pressentimentos espirituais, assumiu, sob

certo sentido, propensões escatológicas. Sobre isso, verifiquemos o que escreveu Haubert:

Se realmente é o apocalipse que está começando, os mamelucos fariam parte das hordas do Anticristo: em San Miguel, o dragão derrubado pelo

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arcanjo é transformado em estátua com os traços de um paulista... (HAUBERT, 1990, p.170).

Aqui é mencionado o apocalipse, o início do fim dos tempos, como também a

transfiguração do dragão sob os pés de São Miguel Arcanjo, metamorfoseado em

bandeirante. Uma imagem foi talhada em madeira na redução de São Miguel,

representando um paulista onde deveria estar o dragão, abatido e encimado pelo arcanjo

guardião do céu, que brandiu sua espada contra Lúcifer e suas legiões, expulsando-os do

paraíso. Nas estátuas convencionais, o dragão é a representação imagética do demônio. Na

estátua de madeira da redução já aludida, não existe o dragão – representando o mal –, mas

sim um sertanista de São Paulo, com chifres na cabeça, representando também o mal, até

mesmo de forma mais direta, menos alegórica que o dragão. Nesse sentido, o bandeirante

nessa escultura foi conotado como o próprio Satanás. Deixada de lado essa especificidade

da escultura em madeira, notamos que os paulistas em geral são mitologicamente

considerados como sequazes do malígno, as hordas do Anticristo.

O pendor para as reflexões apocalípticas ou fantasias religiosas macabras, parece

ter sido bastante pronunciado no Guairá. Em diversas situações eram vislumbrados

prelúdios trevosos. Sinais sobrenaturais eram detectados sem muita dificuldade. Os escritos

deixados pelos jesuítas revelam um tom discursivo, que evoca a apreensão religiosa que

permeou o clero medieval europeu. Entendemos isso como uma questão de permanências

ou longa duração, já que a congregação inaciana tem suas raízes fincadas na espanha, país

onde a inquisição fora terrível, mandando milhares de pessoas para a fogueira, tendo como

embasamento os mais triviais eventos domésticos, que eram interpretados via de regra

como sinais indicativos da presença do mal. O humanismo da Europa Renascentista, que

floresceu na Itália, somente aos poucos – e com restrições – foi aceito na terra de Thomas

de Torquemada, onde boa parte da população, especialmente o campesinato, vivia

oprimida pelo poder do clero e dos senhores feudais. Na Espanha o catolicismo era rígido,

opressor e fatalista, evocando a sobrenaturalidade na posse caseira de uma coruja ou gato

preto, acusando de feiticeiros os donos desses animais. O mal espreitava por todas as

partes, disfarçado de diversas formas; sendo também vislumbrado em muitas partes, por

muitos homens que acreditavam piamente na presença satânica, diária e concreta. Esta

breve digressão sobre a Espanha Medieval, ensejou-se apenas para que possamos entender

melhor o comportamento místico dos jesuítas do Guairá, no Brasil dos seiscentos, quase

dois séculos após o auge da inquisição espanhola.

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Os missionários que atuavam no Brasil Colônia, traziam consigo toda a

mentalidade – long duré – das tradições canônicas da Espanha Medieval, que lidavam com

as abstrações da espiritualidade em grande parte ocupando-se dos indícios do demônio.

Quando os jesuítas do Guairá contam que o próprio diabo trazia o presságio funesto sob a

aparência de um mameluco , - quando da aproximação de uma bandeira – na verdade estão

reproduzindo as tendências místicas da Espanha da Idade Média, que entreviam o demônio

travestido ou disfarçado de diversas formas. Em recente livro intitulado Ano 1000, ano

2000-na pista de nossos medos, Georges Duby analisa as permanências de diversas formas

de medo, que medeiam entre o homem medieval e o contemporâneo. Nessa obra, em

trecho que trata especificamente dos membros da Igreja no medievo, escreveu o historiador

francês:

Somente os servidores de Deus sabiam escrever e ler ... Estavam convencidos de que não há barreiras estanques entre o mundo real e o sobrenatural, que existem sempre passagens entre ambos (DUBY, 1999, p. 17).

Considerando essas palavras de Duby, torna-se menos dificultoso entender de onde

provinha a mentalidade dos clérigos inaciano no Brasil do século XVII, que colonizado à

partir de sustentáculos nitidamente feudais, ainda retinha muito do pensamento

impregnado de fatalismo e superstições sinistras, característico do medievo europeu.

No livro Bandeirantes e pioneiros , ao mencionar a inevitabilidade do

antagonismo entre os inacianos e os sertanistas de São Paulo, Vianna Mog escreveu:

... A luta entre o bandeirante e o jesuíta era inevitável, pois, ao mesmo tempo que este encarnava a contra-reforma, o desejo de retorno à unidade espiritual da Idade Média , sob a égide do papado, o bandeirante, na sua ânsia de riqueza e poder ... ( MOG, 1985, p. 155).

No bojo dessas palavras, implicitamente, revolve-se a idéia de manutenção de todo

o arcabouço filosófico-eclesiástico do período mediévico no Brasil setecentista, uma vez

que o anseio jesuítico, segundo o autor, era de retorno à situação de unicidade espitirual

que vicejara na Europa anteriormente. Seguindo essa ordem de raciocínio, desdobra-se

ainda o entendimento de que essa unidade espitirual está intrinsecamente amalgamada com

toda a sobrenaturalidade inquietante e aflitiva, que caracterizou o período medieval. Nesses

termos, entendemos que as superstições terrorífico-religiosas da Idade Média, integravam a

mencionada unidade espiritual do mesmo período, permeando a sociedade de forma

significativa. Destarte, ao desejar a volta à uma situação de espiritualidade considerada

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como ideal em termos coletivos, é certo que os jesuítas do Brasil Colônia até mesmo

cultivavam intencionalmente seus valores e idéias, incluindo aí a atitude contemplativa

fatalista e entenebrecida. Se o retorno completo à espiritualidade medieval já não era

possível, fazia-se necessária a preservação, bem como a disseminação de seus dogmas

mais proeminentes, dentre eles a idéia de que o homem, em certas circunstâncias, tornava -

se títere de influências transcendentais trevosas e malfazejas.

Sendo esta uma questão de história de longa duração ou não, de permanência de

mentalidades ou não, entendemos que o elemento facilmente perceptível no Guairá foi a

presença de um acentuado terror supersticioso entre alguns missionários. Adicionado a isso

estava o medo concreto da violência concreta, o pavor quase tangível da destruição

palpável, promovida por sertanistas nada abstratos, nada extranaturais. Índios e

missionários, transidos de horror sobrenatural e horror emanado dos domínios do real.

Medo de homens e medo de entidades sinistras. Uns sobressaltados e tensamente alertas,

outros acabrunhados e sorumbáticos, à beira do desespero. As tropas de São Paulo

ressurgiriam novamente, da mesma forma que havia acontecido tantas vezes.

Das treze reduções do Guairá, os paulistas haviam destruído onze. As duas

remanescentes eram as de Loreto e San Ignácio. O clima coletivo de soturna aflição, nessas

povoações, era quase insuportável. Naqueles dias, o provincial, padre Francisco Trujillo,

havia visitado a região do Guairá, tendo presenciado pessoalmente o recente e fulminante

ataque bandeirante à redução de São Francisco Xavier, ficando estarrecido ante os atos

aberrantes lá cometidos. O provincial ordenou então aos líderes missionários, entre eles

Ruiz de Montoya, que metodicamente se organizassem para evacuar Loreto e San Ignácio,

quando da aproximação dos apresadores oriundos do planalto paulista. Imediatamente,

num posto avançado, foi colocada uma sentinela. Os aprestos para a partida foram

iniciados. Os índios dispuseram seus pertences e criações, de modo a agregá -los sem

demora, quando do limiar da jornada. Quando do aviso da sentinela, que vigiava suficiente

e estrategicamente distante das reduções, missionários e índios teria m tempo hábil para

tomar as providências necessárias para a retirada, com segurança e desafogo, segundo as

palavras de Montoya. Porém, o estado espiritual ou emocional das reduções, era

periclitante, não permitindo que ninguém agisse desafogadamente . Fatal e finalmente, o

que era um agouro angustioso e impalpável fez-se iminência de concretude, através do

aviso da sentinela, que esbaforida chegou às reduções, relatando a aproximação dos

destruidores do gênero humano21, os bandeirantes. 21 Assim MONTOYA, Antônio Ruiz adjetivou os bandeirantes em Conquista Espiritual, p. 125.

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O aviso da chegada dos paulistas desencadeou um afã coletivo singular, propiciado

pela certeza generalizada do grande perigo que em pouco tempo se faria presente. A

sofreguidão tomou conta de toda a população. Nada de desafogo, nada de fleuma, mas sim

afogadilho e frêmito geral. Em intensa agitação, índios e jesuítas iniciaram as atividades

indispensáveis para a partida, que se daria por navegação fluvial, descendo o Paraná.

Doravante trataremos da tentativa de explicar, em termos fisiológico-motrizes, o notável

desempenho corporal observado nesse êxodo pelos sertões do sul da colônia. Antes disso,

cumpre observar, que nessa oportunidade, o que impeliu os índios à fuga foi o sentimento

de medo. Já observamos, em mais de um ponto de nosso trabalho, que os bandeirantes

eram impelidos às marchas pela miséria, que é aqui entendida como contingência histórica.

Os bandeirantes partiam portanto como caçadores, motivados a predar e escravizar. Eram

os captores, experimentando o sentimento da procura, da busca de presas, que poderiam ser

obtidas com ou sem luta. Estavam prontos para os revezes das empreitadas. Eram os

perseguidores, não os perseguidos. O sentimento maior que os movia era retornar ao

planalto paulista com o maior número possível de cativos. Os enormes trajetos, levados a

cabo pelas bandeiras, sugerem até mesmo certa obstinação por parte dos paulistas. Muitos

chefes bandeirantes realizaram, ao longo de suas vidas, diversas incursões sertanejas,

sendo que, em não poucas oportunidades, o número de índios apresados não cobriu sequer

as despesas resultantes da organização das expedições. Entendemos que a miséria

planáltica foi o elemento histórico forjador desse comportamento contumaz, que por sua

vez revelou-se obsessivo em não poucos sertanistas. Essa obsessão, em solucionar seus

problemas econômicos, levou muitos bandeirantes a passar grande parte de suas vidas no

sertão, longe da vila de São Paulo. Para tanto, esses homens empreenderam não apenas

evidentes performances corporais. Em oportunidades diferenciadas, esses viandante s

demonstraram desempenho corporal que causou espanto aos homens de seu tempo,

inclusive ao padre Montoya. Cobiçosos da mão de obra indígena, os paulistas lançaram-se

ao sertão com irreprimível vontade, palmilhando o interior do continente com clara

dispos içào física, assassinando e escravizando os nativos da América. Em síntese, os

bandeirantes não experimentavam o sentimento de medo em primeira instância.

Experimentavam sobretudo a expectativa venatória, como captores ou predadores. E é

justamente aqui que se torna visível a diferenciação dessa situação com a vivenciada pelos

índios de Loreto e San Ignácio, quando se prepararam para fugir dos bandeirantes,

evacuando as últimas duas reduções do Guairá. Eles agiam como presas amedrontadas,

buscando o lenitivo da retirada. Quanto a isso, vejamos as palavras de Montoya:

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... os índios já se haviam prevenido de coisas relativas à retirada ou fuga, a fazer-se pelo Paraná abaixo ... causava espanto verem-se, por toda aquela praia, ocupados os índios em fabricare m balsas, que importavam na reunião de duas canoas ou de dois troncos grandes de madeira, cavados a modo de barco ... andava a gente toda empenhada em baixar à praia seus objetos caseiros, sua matalotagem, suas avezinhas e demais criação! O ruído das ferra mentas, a pressa e confusão, davam a impressão de aproximar-se o juízo final. E disso quem podia duvidar ...? (MONTOYA, 1985, p. 134).

Ao evocar o avizinhamento do juízo final, o missionário inaciano mais uma vez

explicita o acabrunhamento apocalíptico que lhe perpassava. Aqui, o eminente padre

associa a proximidade do juízo final à pressa dos índios na confecção das embarcações. De

certa forma, o jesuíta até mesmo justifica esta pressa, sugerindo sua explicação em termos

escatológicos. Neste sentido, ao ser incisivo em sua pergunta “... Quem podia duvidar ...?”

(do juízo final), o inaciano inusitadamente revela sua convicção sobre a proximidade do

final dos tempos. A tendência mística de Montoya fez sua pena traçar frases que são

sintomáticas, no que concerne à sua peculiar apreensão na iminência da partida.

Preparando-se para a fuga e simultaneamente procurando por indícios da natureza,

o padre do Guairá chegou a mostrar-se surpreso com a impassibilidade do céu, onde não

conseguiu vislumbrar nenhum cometa pressagiador do fim do mundo. Vejamos suas

palavras:

Este espetáculo foi tão horrendo e calamitoso, que o céu não desse sinais ele próprio de sentimentos dolorosos através de cometas, mas na Terra, por meio de uma imagem pincelada ... essa imagem, ao mesmo tempo em que deixávamos em desamparo os templos, chegou a suar gotas tão grandes e abundantes, que dois padres não dessem conta de recolherem o suor em algodões ... (MONTOYA, 1985, p. 135).

Através dessas palavras do jesuíta, torna-se fácil detectar, mais uma vez, que a sua

mentalidade era impregnada pelas permanências medievais. Ele procurou pelo cometa, mas

não o achou. Optou então por escrever sobre uma suposta sudorese observada numa

imagem. O céu não dera sinais, mas a imagem sim, suando profusamente. O evento

derradeiro para ele estava próximo, pois o sinal havia sido dado. Em sua procura pelos

sinais, Montoya assumiu, em termos atitudinais, o arquétipo do homem da Idade Média.

Sobre as aflições advindas da observação dos sinais da natureza no medievo,

escreveu Duby:

Tudo o que parecia ser um desregramento na natureza era cnsiderado um sinal, anunciando os tormentos que deviam preceder o fim do mundo.

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Dou um exemplo: todo o mundo pensava que, segundo a vontade divina, a trajetória dos astros é regular. O surgimento de um cometa, isto é, de uma irregularidade, suscitava a inquietação (DUBY, 1999, p. 17-8).

O padre Montoya procurou pelas irregularidades. Aliás, o inaciano procurou

precisamente pelo cometa, que como exemplificou Duby, era ente ndido pelos homens

mediévicos como um sinal do fim dos tempos.

Passando à larga desses tenebrosos êxtases contemplativos, característicos e

recorrentes nos relatos jesuíticos, adentremos à área da fisiologia humana, onde o

balisamento científico coíbe os arroubos da imaginação. Trataremos da tentativa de

explicar, em termos fisiológico-motrizes, o notável desempenho corporal, observado neste

êxodo pelos sertões do sul da colônia. Antes disso, cumpre observar, que, nesta

oportunidade, o que impeliu os índios à fuga foi o sentimento de medo. Este intento visa

explicar, em termos estritamente fisiológicos, que a pressa demonstrada pelos índios no

limiar da jornada, estava subordinada às leis que regiam os padrões motores de seus

corpos, que, naquele momento preciso, estavam respondendo ao estímulo externo de risco

de vida. São diversas as mudanças observadas nos corpos das pessoas, quando expostas ao

perigo extremo. Variados mecanismos fisiológicos são desencadeados 22, entrando em

rápido funcionamento, preparando os corpos para as ações específicas exigidas pela

situação. O estado de alerta é aguçado, propiciando percepção mais eficaz no que diz

respeito à fonte do perigo, facilitando assim sua identificação em termos precisos. Uma vez

identificada a identidade do elemento ameaçador ou afrontador, os corpos respondem

empreendendo fuga ou permanecendo para a confrontação ou o combate. Em qualquer

destas duas hipóteses, os corpos entram em hiperatividade motora. No caso dos habitantes

das duas últimas reduções do Guairá, ficara claro – com os anteriores assaltos dos

paulistas, que destroçaram onze povoações – que a permanência para o confronto aberto

com os invasores era temerária, podendo resultar facilmente em baixas numerosas. A

identidade do perigo era portanto conhecida. Os opróbrios, as injúrias e sobretudo a

selvageria desmedida eram conhecidos à exaustão, por índios e missionários de Loreto e

San Ignácio. Sabedores da aproximação de tão implacável inimigo, como também

conhecedores da impossibilidade de vencê-lo em luta, os moradores do que restou do

Guairá se puseram em fuga. Vale rememorar que essa fuga foi premeditada, submetendo

os índios e os próprios padres a uma angustiante expectativa, esperando pelo aviso da

22 Por ser necessariamente minudente, a explicação sobre este desencadeamento de mecanismos fisiológicos encontra-se em anexo às paginas 146 a 150.

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sentinela, que quando ocorreu, deu ensejo ao irrompimento coletivo de uma intensa faina

ou azáfama, conseqüência direta do desencadeamento de mecanismos fisiológicos

específicos, que puseram aqueles corpos em sôfrega motilidade, buscando o mais rápido

possível adiantar -se em grande distância de seus ignóbeis perseguidores. Vejamos as

palavras de Taunay:

Certo que a situação no Guairá era insustentável apressara Montoya o êxodo geral de seus índios de Loreto e Santo Inácio, únicas reduções que ainda subsistiam das treze recentemente florescentes. E o fez embarcando os seus gentios, nada menos de doze milhares de guaranis, em setecentas jangadas e canoas. As onze aldeias destruídas, contavam ao seu dizer, para cima de 33 000 habitantes (TAUNAY, 1951, p. 53).

Quanto à febricitante atividade motora dos índios, espicaçada pelo medo da

chegada dos bandeirantes, escreveu Montoya:

Fabricaram-se, em tempo brevíssimo, 700 balsas, sem contar canoas soltas em quantidade, embarcando-se nelas mais de 12000 almas, as quais importavam nas únicas a escaparem deste tão tempestuoso dilúvio (MONTOYA, 1985, p. 135).

Aqui, o jesuíta usa o sentido figurado em suas palavras, adjetivando ou qualificando

a expedição de apresamento como tempestuoso dilúvio . Isso denota todo o sentido de

maligna e mordaz implacabilidade, atribuído à bandeira que se avizinhava. Como sabemos,

segundo as escrituras, o mundo foi destruído pela primeira vez sob forte tempestade,

safando-se Noé e animais diversos numa grande arca. A analogia de Montoya aqui volve-

se novamente para a alegoria da destruição final. Torna -se também curioso observar que o

jesuíta, como Noé, buscaria sua salvação e mais a de milhares de índios, através da

navegação. Estas considerações são aqui ensejadas, para que se torne mais clara a

apreensão do jesuíta, sem contudo pretender inferir a natureza mais profunda de suas

convicções, o que seria insondável. No entanto, não é difícil compreender, através de suas

palavras, que os bandeirantes eram causadores de sentimetnos ominosos, prenunciadores

de acontecimentos terríveis. As dolorosas experiências anteriores eram revivescidas pela

memória do inaciano, que evocava lembranças ruins, suscitando e mesclando

amedrontamentos diametralmente opostos, que diziam respeito ao mundo material e ao

imaterialismo da dimensão relig iosa. Os bandeirantes eram homens de carne e osso, mas

eram também os novos herodes (MONTOYA, 1985, p. 245), os então atuais sequazes do

anticristo. Disso tudo, o que resultava para o missionário era a noção de virtude heróica,

calcada na obrigação de salvar seu rebanho dos gadanhos do mal. Os índios da redução,

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almas cristianizadas ou em processo de cristianização, deviam ser postos fora do alcance

de novos ataques. Os indígenas sentiam medo, muito medo; e entre eles esse medo era

também fruto das experiências vividas anteriormente. Esse pronunciado temor, enquanto

fonte geradora de singularidades fisiológicas, foi o elemento que provocou a intensa

atividade corpóreo-motora dos índios, fazendo-os construir as embarcações em tempo

brevíssimo , como deixou escrito Montoya. Toda a motilidade corporal dos índios estava

submetida a alterações fisiológicas significativas, causadas pelo pavor. Isso explica “o

ruído das ferramentas, a pressa e confusão...” (MONTOYA, 1985, p.134), que causaram

espanto ao jesuíta. Corpos perpassados de terror, desdobrando-se numa vasta miríade de

movimentos. Corpos em grande perigo, preparando-se para fugir do desmembramento,

apresentando um repertório gestual amplo, não hesitante; porém por vezes desrítmico e

impreciso, dada a instabil idade natural advinda da pressa e da tensão psíquica que se

traduzia somaticamente. Torna-se aqui oportuno observar o que escreveu Bárbara

Iwanowicz: “... o organismo biológico depende diretamente da estimulação externa, que o

faz funcionar e que determina as suas respostas...” (IWANOWICZ, 1986, p. 63).

A estimulação externa, que incidiu nos organismos biológicos dos índios de Loreto

e San ignácio, foi a aproximação do temível elemento invasor, que já havia subtraído

dezenas de milhares de moradores das onze reduções assaltadas, matando-os ou

escravizando-os. Esse fator externo agiu, infundindo pavor suficientem, para que os corpos

dos índios entrassesm em outros padrões fisiológicos, que acabaram por favorecer a

prestreza da fuga. Isso já mencionamos em outras palavras, porém, o recambiamos em

paráfrase, para que se torne suficientemente evidente que, na oportunidade em questão, a

fisiologia de cada fugitivo desempenhou um importante papel, empreendendo em seus

corpos um ritmo de acelerada atividade.

Dirigida pelo padre Montoya, a retirada dos índios de Loreto e San Ignácio foi um

dos mais significativos deslocamentos em massa do Brasil Colonial, senão o mais

significativo de todos. As particularidades dessa movimentação coletiva pelos sertões do

sul brasileiro, a diferem de outras constantes em outros períodos históricos, pois seu

contingente era formado por crianças, jovens, velhos, mulheres e homens adultos. Seus

integrantes não eram militares, como ocorreu por exemplo na retirada da Laguna, que

incluía soldados indígenas em suas fileiras. Ali estavam índios amedrontados, fugindo de

uma expedição de apresamento, tentando proteger não apenas a si próprios, como a seus

filhos e mulheres. A jornada envolveu navegação fluvial e marcha florestal. Dificuldades

diversas avultaram-se no trajeto, conferindo a essa empreitada características muito

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próprias. A escassez alimentar foi por vezes extrema, quando alguns índios chegaram a

comer coisas inusitadas. Moléstias insidiosas acometeram grande quantidade de retirantes.

Mortes decorrentes da predação de felinos selvagens, afogamentos e exaustão total. Esse

rol de eventos foi a tônica do cotidiano dos fugitivos do Gauirá. Vejamos as palavras de

Haubert:

A história desse êxodo foi contada várias vezes: o abandono das terras ancestrais, das reduções já florescentes ... o naufrágio das embarcações improvisadas, a caminhada penosa pela floresta para contornar as quedas do Paraná, as crianças, os anciãos, os enfermos carregados ou arrastados por várias léguas, os ataques das jibóias e dos jaguares, a fome, a epidemia de disenteria, os missionários magros que usam o resto de suas forças para impedir que as ovelhas se entreguem ao desespero, o risco de choque com os colonos, que querem impedir essa emigração de mão de obra, e finalmente a chegada às antigas reduções do Paraná. Mas, ainda nessas missões, a fome e a epidemia aguardam os neófitos: são obrigados a se alimentar de pedaços de couro, sapos, serpentes; as crianças brigam pela pouca comida ... os pais desenterram as sementes nos campos. Dez a doze mil pessoas haviam abandonado o Guairá; apenas quatro ou cinco mil sobreviveram à provação (HAUBERT, 1990, p.158).

Também sobre os percalços dessa empresa, observemos o que escreveu Taunay:

Além dos perigos da navegação fluvial, receavam os jesuítas que os espanhóis de Ciudad Real assaltassem os retirantes. E não o fizeram, aliás, por temerem o conflito armado com que os ameaçou o ilustre inaciano ... em desespero de causa. Terríveis calamidades trouxe aos fugitivos a transposição do Salto das Sete Quedas. Foi preciso abandonar as embarcações, fazendo-se a retirada a pé por 25 léguas até um ponto onde o rio novamente dava navegação franca e onde os pobres exilados embarcaram em canoas feitas às pressas e balsas de taquaruçu. Destes barcos frágeis muitos soçobraram. Muita gente pereceu na terrível marcha, morta de moléstia ou às garras dos tigres (TAUNAY, 1951, p. 53).

Fugindo dos paulistas, os retirantes do Guairá quase se viram apresados por outros

inimigos, os colonos espanhóis que habitavam a região, afixados nas proximidades das

Sete Quedas do Paraná. Uma emboscada havia sido armada, visando o assalto apresador

“...num espaço estreito e perigoso, próprio do célebre salto do Paraná ...” (MONTOYA,

1985, p. 136 e 138). Vindo a saber do caso com antecedência, para lá se adiantou sozinho o

padre Montoya, “...numa embarcação ligeira” (MONTOYA, 1985, p. 138). O inaciano

deliberou com os espanhóis, pedindo que deixassem ele e seus índios seguirem caminho,

sem nenhuma concessão conseguindo obter, sendo inclusive ameaçado com cinco espadas

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postadas contra o seu peito. Retornando para a sua gente, o jesuíta detalhou o ocorrido,

tendo sido consensualmente decidido que dois outros padres se adiantariam até os colonos,

para convencê-los através da parlamentação, o que também se revelou infrutífero.

Aconteceu por fim uma terceira tentativa, com Montoya se fazendo acompanhar por outro

clérigo. Dessa feita o colóquio tomou outro tom, com Montoya dizendo que forçaria

passagem a qualquer custo, conduzindo seu numeroso contingente em prontidão para o

confronto. Num rompante temerário, o jesuíta praticamente fez uma declaração de guerra

aos colonos espanhóis. Naquele dilema crucial, as alternativas não eram muitas e exigiam

atitudes rígidas. Era preciso continuar fugindo do tempestuoso dilúvio. A questão era vital.

As deliberações com os espanhóis incluíram também informações sobre a aproximação dos

paulistas, que certamente destruiriam aquele núcleo apresador adversário. Já não mais

senhoriais como antes, mas temerosos e reticentes, os colonos ouviam de Montoya frases

diametralmente opostas às de sua primeira visita. Vejamos o que deixou escrito o

missionário do Guairá:

Aproximando-me de um homem, que ali tinha sua mulher, avisei-lhe que a afastasse desse lugar, para que naquele dia não se contasse entre os mortos uma pessoa feminina (MONTOYA, 1985, p. 138).

Convencidos , os espanhóis se retiraram do local escolhido para a emboscada,

dando fluência ao deslocamento dos índios e missionários. Em ponto bem próximo de onde

os colonos haviam desfeito a tocaia, o rio Paraná fazia -se bravio. Vejamos o que escreveu

Montoya:

... Foi preciso abandonarmos as canoas. Porque dali em diante faz-se inavegável o rio, devido à queda d’água que forma tais redemoinhos, que a vista se nega de observá -los pelo temor que inspiram. Mesmo sendo assim, experimentamos lançar 300 canoas por aqueles despenhadeiros de águas, para ver se ao menos algumas se salvavam ou conservavam ilesas ... mas a impetuosidade da água, a profndidade imensa e o movimento excessivo com que elas davam em escolhos aspérrimos, faziam-nas em estilhaços (MONTOYA, 1985, p. 139).

Para contornar as violentas cachoeiras, a população de Loreto e San Ignácio

empreendeu uma marcha arriscada pelas matas espessas que margeavam o rio Paraná.

Naquelas brenhas as agruras não foram poucas. Levando às costas as crianças pequenas e

as provisões, homens e mulheres experimentaram o cansaço e a exaustão, chegando alguns

ao esgotamento físico absoluto, principalmente ao transportar enfermos, impossibilitados

de caminhar. Carregar ou arrastar enfermos por diversas léguas – como ressaltou Haubert –

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requer um dispêndio de energia física bastante considerável, mesmo para homens robustos,

saudáveis e bem alimentados. Sabemos que a alimentação, no episódio que ora abordamos,

não era necessariamente satisfatória; pelo contrário, havia escassez de víveres. É certo que

os retirantes se exauriram significativamente nessa caminhada desolada, que Taunay, como

já vimos, qualificou como terrível marcha onde muita gente pereceu. Entre o contingente

móvel constavam anciãos e crianças, que certamente cumpriram o trajeto muito

penosamente; os primeiros pelas limitações impostas aos seus corpos pela provecta idade,

e os últimos pelos ingentes esforços exigidos de seus organismos ainda precoces. Homens

de idade avançada, marchando recurvados sob o peso dos anos, sentindo dores lancinantes

em suas articulações desgastadas, experimentando a fadiga muscular e respirando

ofegantemente. Meninos franzinos, com suas estruturas miológicas e tendíneo-

ligamentosas em maturação, sentindo a imposição imperiosa da necessidade de continuar.

Lembremo-nos que essa marcha por terra deu-se após uma viagem fluvial de dois dias, que

levou os fugitivos desde Loreto e San Ignácio até as grandes catadupas do Paraná, onde

aconteceu o interrompimento do fluxo para que se resolvesse a questão com os colonos

espanhóis. É óbvio que, depois desta incursão fluvial de aproximadamente quarenta e oito

horas, os navegantes não desembarcaram propriamente descansados. Iniciaram a jornada

terrestre já sentindo, pelo menos, algumas das manifestações corporais próprias do

cansaço. Já estando inclusas neste texto as palavras de Taunay sobre a distância percorrida

a pé para flanquear as cachoeiras, vejamos as palavras do próprio Montoya:

... Vencidas 25 léguas à força de caminhar por terra, haveríamos de tomar o mesmo rio e rumo ... em questão de oito dias chegamos ao fim de nossa viagem terrestre, indo outra vez ao mesmo rio, agora já mais benigno e navegável. Julgamos fosse o término de nossa tribulação ... não o sendo, foi este o começo de outra provação bem grande (MONTOYA, 1985, p. 139).

Dessa provação bem grande trataremos logo adiante. Detenhamo-nos

momentaneamente, para que possamos entender melhor essa marcha a pé pelas matas que

perlongavam o rio. Torna -se necessário evidenciar que uma légua – antiga medida

brasileira de distância – equivale a 6 600 metros. Essas 25 léguas, transmudadas em

cálculo, equivalem a 165 000 metros, ou seja 165 quilômetros. Essa distância não foi

cumprida em campo limpo, sem obstáculos, mas sim em meio a uma intrincada

aglomeração arbórea, que tornava o avanço sobremaneira dificultoso. Em muitos pontos,

onde o entrelaçamento vegetal era muito denso, a direção da caminhada precisou ser

mudada, até que nova oportunidade de reorientação no rumo anterior se apresentasse.

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Essas mudanças de curso nas caminhadas sertanejas do Brasil Colonial, perpassam boa

parte da obra de Ségio Buarque de Holanda, que com visão acurada, busca um

entendimento mais preciso sobre as dificuldades enfrentadas pelos caminhantes. Muitas

vezes a via que se percorria era apenas uma rústica vereda, semi-aberta por animais, que

podia se tornar intransitável mais adiante. As matas que beiravam o Rio Paraná, quando da

realização da marcha em questão, eram extremamente fechadas, com características

próprias que as classificam como florestas sub-tropicais. Foi nesta labiríntica trama verde

que os índios e missionários caminharam por oito dias, percorrendo uma média de 21

quilômetros diários, distância assaz considerável levando-se em conta as implicações já

aludidas. A média diária dessa incursão florestal foi maior da que seria alcançada por

Domingos Jorge Velho no final do seçulo XVII, quando deslocou-se do Piauí a São Paulo

e retornou ao extremo norte do país (Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará) para dizimar

os tapuios e, depois investir contra Palmares. Jorge Velho e seus homens demoraram um

ano para levar a cabo essa longa caminhada de 6000 quilômetros, cumprindo uma média

de pouco mais que 16 quilômetros por dia. Nestes termos, a média percorrida pelos

retirantes das reduções, excede em quase cinco quilômetros a distância que seria percorrida

diariamente pela bandeira de Domingos Jorge Velho, muitas décadas depois. Em ambos os

casos, os padecimentos foram numerosos, como fome, doenças, mortes e ataques de feras;

porém a bandeira de Jorge Velho não fugia de ninguém, atuava sob contrato visando

benefícios posteriores. Os fugitivos do Guairá estavam amedrontados, e o resultado

fisiológico desta emoção os impelia para a frente, com energia singular, a despeito de todos

os obstáculos. Caminhar 165 quilômetros pela mataria ensombrecida que margeava o

Paraná, foi, ao nosso entendimento, uma tarefa que envolveu performance motora passível

de ser observada em destaque. O peso da matalotagem, o peso dos enfermos, o constante

estado de alerta ante a predação das feras. O andar trôpego, porém ininterrupto, dos mais

extenuados , que obstinada e instintivamente procuravam sobreviver à qualquer custo, com

a certeza de que cada passo dado os distanciava mais um pouco de seus algozes. Oito dias

serpenteando entre os obstáculos do terreno matagoso, ora avançando rápido, ora quase

parando. Oito dias que foram decisivos para a continuidade do trajeto. Oito dias onde a

morte esteve presente, fazendo a natureza impassível acolher em seu seio os corpos dos

fenecidos. Duas dezenas de quilômetros a cada um destes dias, em busca do local

almejado, onde a navegação seria recomeçada, em águas menos impetuosas.

Quando finalmente esse posto foi alcançado, iniciou-se a outra provação bem

grande, já mencionada atrás pelo chefe da expedição. A fome e a disenteria disseminaram-

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se largamente. Esses dois flagelos pareciam estar à espreita, apenas se insinuando durante a

marcha pelo mato, mas agora avançavam céleres, à toda brida, prostrando e causando

sofrimento a muitos. Sobre isso, vejamos o que escreveu Montoya:

A fome, a peste e a diversidade de opiniões, causou uma confusão muito grande. E como não haveria de ter fome uma imensa chusma de muchachos e tanta outra gente, que apenas pôde trazer comida limitada para aquele caminho e por não ter outra ajuda de transporte que a de suas costas e ombros?... (MONTOYA, 1985, p. 141).

Aqui o missionário menciona a epidemia e a fome, mas também observa o grande

dispêndio físico exigido dos retirantes, que a tudo transportavam nas costas. Pela

estruturação de suas palavras, é também perceptível sua intenção de atribuir a acentuação

da fome ao desgaste energético-corpóreo, advindo do transporte de pesos extras. Neste

particular, estamos plenamente cordatos com o ponto de vista do jesuíta, mas cumpre

também mencionar, que a fome se tornaria insuportável mesmo que os caminhantes

houvessem avançado de mãos vazias, sem nenhum peso às costas, pois com o esgotamento

dos víveres a fome coletiva seria insidiosa, uma vez que a pesca ou caça – tarefas para as

quais não estavam preparados – jamais seria suficiente para alimentar um contingente de

milhares de pessoas.

Esfaimados, os índios começaram novamente a fazer canoas para que a viagem

fluvial continuasse. Muitos deles fizeram embarcações de taquara, por ser este material ali

abundante. Para que se possa avaliar a flutuabilidade destas balsas, vejamos o que escreveu

Montoya:

... Outros, por fim, lançaram-se no rio em balsas de canas ou taquaras – há as que são tão grossas como a coxa, tendo 50 pés de comprimentos, confiando mais em sua destreza de nadar, que na segurança da embarcação. Encheu-se de gente uma delas, a qual havia apenas começado a movimentar-se, quando virou, despejando de si todas aquelas pessoas, que trataram de se salvar a nado. Somente uma mulher, tendo em seus braços à dois filhinhos gêmeos, que eram ainda de peito, logo se afundou à vista dos padres ali presentes. Meu companheiro chamou pelos índios, a que acorressem e se lançassem na água, para salvá-la (MONTOYA, 1985, p. 141).

A mulher e seus dois filhos foram salvos, bem como todos os outros que caíram na

água, após a balsa soçobrar. Exceto o da mãe e seus gêmeos, o salvamento de todos

dependeu de destreza individual na água, quando o nado foi exigido. Como ficou claro nas

palavras do missionário, os índios sabiam da fragilidade das balsas, mas embarcaram

mesmo assim, confiando em suas próprias habilidades como nadadores. Eis aqui mais uma

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atividade física realizada pelos retirantes do Guairá: a natação. Em mais uma oportunidade

foi preciso nadar para escapar à morte, como veremos logo adiante.

A viagem continuou, com as precárias embarcações conduzindo os fugitivos pelo

Paraná abaixo, deslizando famintos pelas águas caudalosas em torrentes nada afáveis, onde

desta vez a morte fez algumas presas. Sobre este incidente escreveu Montoya:

Correu ‘fortuna’ uma balsa de duas canoas muito belas, em que embarcaram cerca de 50 pessoas. A estas dei-lhes dois índios práticos daquele rio e lhes avisei que, nos passos perigosos, saltassem em terra, evitando-os dessa forma ... Aventuraram-se a entrar num grande rede- moinho, que sugou a balsa e toda a gente dela. Esta, valendo-se de seus braços e da destreza de nadar, tratou de salvar a sua vida, jogando-a à fúria da água, individualmente, para as mais diversas partes. ... Onze crianças contudo felizmente se afogaram e assim se libertaram das tribulações, que ainda as teriam esperado mais adiante (MONTOYA, 1985, p. 142).

Nesse segundo acidente, é fácil perceber que não era pouca a destreza dos índios na

água. A balsa tinha aproximadamente cinqüenta pessoas, sendo que apenas onze crianças

morreram afogadas. O primeiro incidente ocorrera logo nos primeiros movimentos da

balsa, donde se conclui que a embarcação ainda não havia se distanciado muito da

margem, acrescentando ainda, que não existe nesse caso, nenhuma menção sobre

correntes mais fortes. Em síntese, no primeiro evento, a habilidade natatória dos índios foi

mostrada, mas não em grau tão evidente. Já no segundo caso, quando um grande

redemoinho sorveu a balsa e seus tripulantes, viajava -se por um trecho de águas vigorosas.

Faz-se pertinente caracterizar aqui a ação de um redemoinho, que ao girar

concentricamente para dentro de si mesmo, arrasta para o fundo o que estiver à flor da

água. Destarte, os índios foram tragados até o fundo do rio Paraná, sendo que para salvar-

se precisaram fazer esforços vigorosos até retornar à superfície, onde correntes bravias os

aguardavam, exigindo deles novos e dispendiosos movimentos, não apenas para garantir a

flutuação, como também para vencer a força das águas e finalmente alcançar a margem. As

onze crianças, se já com idade de saber nadar, não tiveram a resistência e a força muscular

necessários para tal tarefa, por isso morreram afogadas. Estas considerações sobre a

habilidade de nado dos índios retirantes, estão subordinadas à nossa intenção de tornar

evidentes as implicações que envolveram o desempenho motor nesta empreitada de fuga.

Conhecemos a obviedade que permeia a relação de indígenas com habilidades natatórias

apuradas. Os rios, sejam eles caudalosos ou mansos, fazem parte do universo indígena.

Índios banham-se em rios, por isso aprendem a nadar bem cedo. A capa do livro Índios do

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Brasil, organizado por Enzo Grupioni, ilustra isso muito bem. Algumas nações autóctones

são inclusive estritamente navegantes, até mesmo dormindo em suas canoas, em estirões

hidrográficos amenos. Queremos expressar com isso, o nosso entendimento de que não é

algo espantoso que um índio nade bem. Por outro lado, ressaltamos também, que acidentes

como este – onde onze crianças morreram tragadas por um redemoinho – não eram comuns

na vida cotidiana dos nativos do Brasil Colonial. O silvícola é prudente, aprende cedo a

evitar o perigo de morte e não comete erros com freqüência, principalmente em situações

arriscadas. Contudo, no caso dos índios do Guairá, um escape estava sendo empreendido,

requerendo pressa e afoiteza. Veio daí a tentativa de vencer as águas traiçoeiras, onde

foram primeiramente tragados, sendo depois salvos por suas próprias e apuradas

habilidades de nado. Em circunstâncias outras, que não a de evasão, certamente o

redemoinho teria sido evitado; porém, ao afrontar aflitivamente o perigo, os índios do

Guairá acabaram por demonstrar suas capacidades múltiplas 23 no meio líquido, safando-se

de forma notável. Vale escla recer que, quando escrevemos índios, referimo-nos a homens

e mulheres no plural, já que entre os cinqüenta ocupantes da balsa dificilmente haveria

apenas homens, apesar do fato de Montoya não mencionar a presença de mulheres na

embarcação.

Depois desse segundo imprevisto seguiu-se a navegação, que daí prá frente foi

conduzida com muito mais cautela, posto que foi percebido que a afobação excessiva em

marcar larga distância dos paulistas podia resultar em desastres significativos, com grande

número de vítimas, principalmente crianças. Tendo já descido um trecho muito longo do

rio, os tripulantes das frágeis embarcações foram socorridos por dois padres de duas

reduções antigas, que existiam nas redondezas. Esses jesuítas haviam ficado sabendo da

retirada de Montoya e acorreram até ele, esperando-o junto a um arroio que desembocava

no Paraná. Eles haviam providenciado certa quantia de alimentos, que embora considerável

não bastou para todos os retirantes, que esfalfados comeram tudo sem sentir sacieda de.

Muitos ficaram sem experimentar os víveres, permanecendo famintos como antes. A

disenteria grassava, prostrando ainda mais os corpos já exauridos pela fome e pelo

23 Neste acidente, passando à larga da fome, os índios demonstraram excelente preparo ou condicionamento físico; grande capacidade anaeróbica, que diz respeito à movimentos intensos e de curta duração; excepcional capacidade aeróbica, que está associada aos movimentos não intensos, mas de duração maior; significativa capacidade pulmonar, que confere o fôlego ao organismo em movimento; notável oxigenação miológica, que propicia aos músculos resistência contra a fadiga, além de atribuir a eles força necessária para a execução da tarefa. Além de todas estas capacidades ou qualidades físicas, detectáveis facilmente neste acidente, os índios receberam novas e violentas descargas de epinefrina, secretadas por suas glândulas supra-renais no momento exato do evento, o que os propiciou uma situação de intensa motricidade, que aliadas às suas habilidades já descritas, ensejou o salvamento individual de cada um.

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cansaço. Estando já inclusa neste trabalho uma citação de Haubert, à página setenta e três,

onde é mencionada, em termos mais fugazes, a miserável dieta a que se submeteram os

retirantes, e onde também são tangidos os sofrimentos advindos da epidemia, verifiquemos

ora descendo a estas questões mais minudentemente, através do que escreveu Montoya:

Comiam os índios a couros velhos, laços, crinas de cavalos e, de uma cerca nossa, feita de paus em volta de nossa casa, tiraram de noite as correias, que eram de couro de vaca. Sapos, cobras e toda espécie de sevandijas, vistas por seus olhos, não conseguiam escapar de suas bocas. Sobreveio a peste, que em tais ocasiões nunca se mostra morosa. Mas acudiram também os padres com cuidado infatigável, a fim de cuidarem as almas e os corpos, trabalhando dia e noite. Ao céu deram suas almas 2 000 pessoas entre adultos e crianças, tendo recebido aqueles que eram capazes os sacramentos todos. E, mesmo que a memória da grande abundância gozada em suas terras lhes pintasse ao vivo o estado miserável em que ora viviam, morriam eles ... repetindo: ‘mais vale morrer o corpo, que perigar na fé a alma entre aqueles homens sem Deus, os vizinhos de São Paulo!’ À chusminha dos pequerruchos, desamparada pela impossibilidade de seus próprios pais, sendo não pequena parte deles órfãos, socorreu-se com todo o cuidade, dando-se-lhes suas porções cozinhadas ... (MONTOYA, 1985, p. 143).

Um socorro importante, apesar de também insuficiente, veio da parte do português

Manuel Cabral, proprietário de gado afixado na cidade de Corrientes, que franqueou

muitas vacas aos índios e je suítas. As bocas eram muitas e estavam ávidas. A epidemia de

disenteria matava muita gente, tornando-se, àquele ponto, uma preocupação capital. A

argúcia dos índios em encontrar remédio natural foi então posta à prova, revelando-se

frutífera, quando foi encontrada uma erva eficaz e benfazeja, denominada igau. Esse

vegetal, que recebeu dos jesuítas o nome de salsa marinha, salvou muita gente da morte

pela disenteria. A erva era cozida juntamente com a carne, sendo dada aos doentes em

pequenas porções, com resultados que surpreenderam os missionários, debelando a

moléstia que se espalhara amplamente.

Outras ajudas significativas naquelas horas difíceis, vieram através dos jesuítas

Diogo Alfaro e Diogo Boroa. Alfaro, que era reitor do Colégio Inaciano de Assunção,

enviou à Montoya boa quantidade de sementes para plantio; tendo Boroa, então provincial

da Ordem, levado pessoalmente aos índios uma esmola substancial, repartindo-a ele

mesmo entre a comunidade. Estas informações sobre os auxílios dados aos índios do

Guairá por Manuel Cabral e pelos padres Alfaro e Boroa, são aqui emanadas dos escritos

de Montoya, onde realizamos uma tarefa de paráfrase e sobretudo síntese, tamanhas as

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minúcias ou minudências do texto. Sobre estes socorros, em História das Bandeiras

Paulistas, escreveu muito laconicamente Taunay:

Afinal chegou o socorro dos jesuítas do sul, a quem vinha prestando o maior auxílio o mestre de campo português Cabral, morador de Corrientes (TAUNAY, 1951, p. 53).

Sobre a disenteria que se alastrou entre os índios, expressou-se assim o mesmo

autor:

Por mal de calamidades assaltou uma epidemia aquela turba desnutrida e tão provada, vitimando numerosíssimas pessoas. Afinal pôde Montoya localizar os escapos a tanta miséria às margens do Iabebiri, na Mesopotâmia Parano-Uruguaia (TAUNAY, 1951, p. 53).

Após a epidemia, verifica-se em Taunay que a bonança começava a se insinuar para

os sofridos retirantes, agora finalmente assentados próximos ao extremo sul.

Em Montoya verifica-se o início dos trabalhos cotidianos dos povoados incipientes,

com a construção de igrejas e choças, além do cultivo da terra. Não mais adoentados, os

índios ainda sofriam a escassez alimentar, mas a amainavam com a caça, que embora não

bastasse para todos, os sustinha de pé para o trabalho. Cada homem cuidava de mais de

uma roça, desdobrando-se em esforços para obter alimento em quantidade suficiente.

Vejamos as palavras do missionário:

Foi de grande provação aquele trabalho ... Voltou a primavera depois de um rigoroso estio. Com isso começou-se a trabalhar de modo varonil, fazendo cada qual três a quatro roças iniciando a terra a oferecer os seus frutos, a qual, não pouco agradecida, dá colheita fértil. Encheram os índios os celeiros de milho. A mandioca, como pão quotidiano, deu-se de maneira excelente. Todo gênero de legumes cresceu em abundância. Compramos ... patos, galinhas e pombas, sendo que tudo isso repartimo -lo entre os índios principais. Foi de tal forma que, depois desse dilúvio, aquela terra se enchesse por meio desses animais com singular abundância. Dela hoje se servem com gozo eles mesmos e com generosidade incomum distribuem aos necessitados de outras reduções (MONTOYA, 1985, p. 144).

Essas palavras efusivas de Montoya refletem a estabilização que foi sendo

alcançada pelos fugitivos do Guairá. As então renascidas reduções de Loreto e San Ignácio

floresciam, distantes da assombrosa ameaça dos bandeirantes. Na longa jornada por terra e

água haviam morrido entre cinco e sete mil pessoas, vitimadas pela fome, pela doença,

predadas por onças ou extraviadas na mataria labiríntica. Caminhantes, remadores e

nadadores, os índios de Loreto e San Ignácio levaram a cabo uma empresa modelar em

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termos de motricidade humana, cujo corolário explicitou-se nos novos assentamentos do

sul, onde os jornadeadores transmudaram-se em plantadores, lavrando a terra num labor

braçal notável, dificilmente exequível por corpos tão exauridos pelos esforços anteriores e

pela nutrição escassa. O grande percurso coberto pelos indígenas do Guairá, foi nesse caso

causado pela fuga dos bandeirantes, que por sua vez cumpriram costumeiramente grandes

distâncias, instados pelo fator econômico de grande insuficiência em São Paulo. No

vindouro capítulo, o derradeiro de nosso tabalho, trataremos do desempenho corporal dos

bandeirantes, que contribuiu para mudanças significativas na colônia.

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CAPÍTULO IV

BANDEIRISMO: DESEMPENHO CORPÓREO-MOTOR NO BRASIL COLONIAL

Ao fim da segunda década setecentista novos clamores atroaram o Brasil: Ouro!

Ouro! Affonso de E. Taunay 1. Meninos, homens e anciãos: sede, fome e cansaço na marcha sertanista

As atividades físicas que envolveram o bandeirismo, se efetivaram sob uma

considerável gama de particularidades, que culminou na envergadura por vezes

impressionante, no que diz respeito ao rendimento corpóreo-motriz em ocasiões e

expedições diferentes.

A despeito dessas proezas físicas, notadamente levadas a cabo e não obstante

tenham impressionado os indivíduos sedentários da época, relacionemo-as mais uma vez à

contingência histórica, que engendrou suas motivações concretas, analisando as palavras

de Holanda:

A verdade, escondida por essa espécie de mitologia, é que eles foram constantemente impelidos, mesmo nas grandes entradas, por exigências de um triste viver cotidiano e caseiro: teimosamente pelejaram contra a pobreza, e para repará-la não hesitaram em deslocar -se sobre espaços cada vez maiores, desafiando as insídias de um mundo ignorado e talvez inimigo (HOLANDA, 1986, p. 26).

Tais considerações de Holanda refutam a mitologia que orbita o bandeirismo,

inserindo-o numa perspectiva concreta, onde o deslocamento por espaços cada vez

maiores foi motivado pelo amargor da penúria. Neste trabalho, já nos ocupamos da

tentativa de resgatar o bandeirante como ser humano convencional. Doravante buscaremos

elementos que possam tornar mais visíveis o desempenho físico desse homem não

extraordinário, que no entanto protagonizou feitos físicos extremos.

Holanda menciona deslocamentos sobre espaços cada vez maiores, já Volpato, a

despeito de sua ponderação e prudência, assim se expressou sobre as marchas dos

bandeirantes no século XVII:

Abriram trilhas, transpuseram rios, percorreram distâncias inacreditáveis, devassaram o sertão. Na busca do silvícola

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disvirginaram a mata, descobriram e divulgaram seus mistérios (VOLPATO, 1985, p. 46).

No Capítulo II, às páginas 42 e 43, fizemos uma breve análise literal das palavras

distâncias inacreditáveis. Já aqui, o retorno de ambos os vocábulos visa a corroboração

objetiva e enfática da enormidade dos percursos bandeirantistas. Ao escrever distâncias

inacreditáveis, a autora de Entradas e Bandeiras atribui às marchas bandeirantistas

proporções ou extensões no mínimo bastante significativas. Que muitas marchas foram

extensas, atingindo regiões distantes e incógnitas, parece estar razoavelmente esclarecido.

Que tais marchas subtraíam a energia dos caminhantes, deles exigindo pronunciado

desempenho corporal, suspeitamos ser uma consideração isenta de sofismas. Vejamos as

palavras de Volpato: “A faina no sertão era dura ... pouco tempo existia para a ociosidade

na vida dura das marchas sertanistas” (VOLPATO, 1985, p. 72-3).

Lembremo-nos de que nessas marchas, não raro os sertanistas de Piratininga

padeciam sob adversidades díspares, como a fome, o calor, a frialdade, a intempérie, a

doença, a tocaia indígena, o desnorteio, a predação de animais selvagens. De imediato,

trataremos da nutrição e da hidratação, pelo motivo desses elementos estarem relacionados

diretamente ao desempenho corpóreo-motriz.

Não raro, o desespero causado pela fome intensa impunha aos caminhantes uma

dieta no mínimo esdrúxula, com alguns gêneros não ingeridos usualmente nem mesmo

pelos indígenas. Padecendo há muitos dias, esfaimados e enfraquecidos, os bandeirantes

não rejeitavam nada que se lhes apresentasse24, não raro comendo ratos e sapos. Da

alimentação indígena nada lhes escapava: cobras, raízes de guaribá, grelos de samambaia,

saúvas, formigas içás25 e bichos-de-taquara.

Na obra Viagem à Província de São Paulo, Auguste de Saint-Hilaire fez referências

ao bicho-de-taquara. Este botânico francês desembarcou no Brasil em 1816, visando

catalogar plantas sul-americanas, classificando-as cientificamente. Vejamos as palavras

desse pesquisador e viajante europeu:

Quando estive entre os malalis na capitania das minas, esses indígenas me falaram freqüentemente, de um verme ... verme denominado ‘bicho -da-taquara’, porque é encontrada nas varas dos bambus, quando os mesmos estão em flor. Alguns portugueses que viveram entre os indígenas, tornaram-se também apreciadores dêsses vermes ... (SAINT-HILAIRE, 1972, p. 321).

24 As informações desta dieta dos bandeirantes se encontram em VOLPATO, L., Entradas e Bandeiras, p. 68; e em MACHADO, A. , Vida e morte do baneirante, p. 238. 25 Espécie de formiga que era ingerida após ser torrada.

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Muitos foram os bandeirantes que morreram de inanição. Como exemplo isolado,

tomemos a bandeira de Bartolomeu Bueno da Silva, que em 1722 sofreu quarenta baixas

em conseqüência da desnutrição absoluta. A grande expedição de Raposo Tavares (1648-

1651, que cumpriu de dez a doze mil quilômetros), experimentou as agruras do sertão de

forma pronunciada. Nessa bandeira, alguns integrantes, após atingir as Missões do Guairá

e enfrentar os Paiaguás, retornaram ao planalto paulista, “não querendo se arriscar a

paragens tão longínquas” (MONTEIRO, 1994, p. 81).

O mesmo autor assim se referiu ao famoso mestre-de-campo, após seu retorno à

Vila de São Paulo:

... O Raposo Tavares que regressou a São Paulo era um homem acabado (...) de acordo com alguns, tão desfigurado que seus próprios parentes não o conheceram (MONTEIRO, 1994, p. 81).

Décadas antes de Monteiro, já escrevia Taunay sobre a volta de Raposo Tavares ao

povoado planáltico: “Tão desfigurado chegou à sua casa, conta -se que nem parentes nem

amigos o reconheceram” (TAUNAY, 1951, p. 100).

Parece que a fome e a exaustão extrema, experimentados rotineiramente no sertão,

deixaram suas marcas indeléveis na estrutura física desse líder sertanista. Evoquemos a

obviedade de que nenhuma atividade física branda promove a desfiguração corporal, que

segundo Monteiro e Taunay, ocorreu com Raposo Tavares. Em outras palavras, o

rendimento corpóreo-motor evidentemente foi de uma intensidade muito significativa

nessa importante expedição bandeirantista. Homens exauridos e esfomeados, caminhando

e remando, “perdidos na imensidão da América” (MONTEIRO, 1994, p. 07). Músculos de

pernas e braços em flexões extenuantes, sentindo as dores da jornada interminável. Corpos

humanos outrora robustos, tornados escanifrados pela escassez alimentar e pela exacerbada

motricidade da viagem sem norte. Pés descalços palmilhando trilhas diversas, sob as copas

das grandes árvores amazônicas. Punhos fechados, segurando tenazmente remos

improfícuos, orientando o avanço das débeis embarcações no curso caudaloso do Rio

Amazonas.

Considerando as particularidades da bandeira de Raposo Tavares, em especial sua

grande mobilidade sob condições tão adversas, entendemos que o desempenho físico foi

primordial, para que as proximidades do extremo norte do país fossem alcançadas. Isso até

mesmo nos parece óbvio. Foram trinta e oito meses no sertão, uma viagem

verdadeiramente notável, que partindo de São Paulo, atingiu Belém do Pará, após ter

passado por Mato Grosso, pelo Paraguai e Amazonas. A fome, como mencionou

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Monteiro, foi uma das agruras dessa expedição. Fome não saciada, energias não

recompostas. Atividade corporal acentuada, dispêndio energético profuso. Adicionados à

isso as doenças e os ataques indígenas, não parece ser difícil compreender os motivos da

desfiguração física do mestre-de-campo Antonio Raposo Tavares.

Inúmeras bandeiras padeceram também sob a inclemência da sede, enveredando-se

“muitas vezes por ermos que não dispunham de água potável” (VOLPATO, 1985, p. 69).

A alternativa, nessas circunstâncias, era aplacar a sede ingerindo frutas agrestes, seiva de

folhas e cipós e caldo de raízes. Na impossibilidade de encontrar tais gêneros e, frustrada

também a possibilidade dos índios integrados nas expedições descobrirem água, os

caminhantes sedentos concebiam uma atitude extrema ... bebiam sangue de animais26. O

caminhar sob o sol, a sudorese exacerbada pela canícula. Sede não mitigada, perda de

líquido não reposta. Corpos humanos minimamente hidratados, que no paroxismo do

desespero sorvem sangue de animais selvagens. Hematófagos racionais dessedentando-se à

custa de seres irracionais. Homens em marcha por lugares áridos, vertendo abundante suor,

sentindo o gosto do sal nos lábios gretados, sob o implacável sol zenital, deixando atrás de

si grandes respingos nas pedras ressequidas. A sede, quando muito intensa, figura entre as

mais torturantes sensações experimentadas por qualquer ser vivo, rompendo todas as

barreiras de repúdio, sobretudo no ser humano. Para a execução das tarefas mais simples

do dia -a-dia, o corpo necessita de água. Falamos de tarefas corriqueiras, ordinárias, como

atividades de baixo dispêndio energético. Um indivíduo, mesmo que sentado, imóvel, sente

sede diariamente. Seu corpo necessita da ingestão de líquidos, para que seus mais

elementares mecanismos fisiológicos funcionem normalmente 27. Antagonicamente a essa

situação, o homem envolvido em grande atividade física necessita de ingestão líquida

muito mais significativa, em quantidade consideravelmente maior. Isto é uma asserção

científica da medicina desportiva, calcada na lógica de equivalência de ingestão e

dispêndio. Destarte, a corroboração da obviedade que medeia a relação água-vida humana,

insere-se numa perspectiva que nos permite vislumbrar o bandeirante sedento como um

homem que caminha para a morte. Entendamos aqui a cessação da vida, como causada

pela sede que se exarcerbou, em virtude do ato físico-motriz. Entendamos também, por

26 Informação encontrada em VOLPATO, L., 1985, p. 68. e MACHADO, A., 1980, p. 238. 27 Em termos de imobilidade, evoquemos uma situação ainda mais extremada. Um homem com secção da medula espinhal na região cervical, com fratura do osso axis (estrutura óssea localizada abaixo do atlas, na base do crânio, encimando a primeira vértebra da região cervical), paralisado do pescoço para baixo, sem capacidade de fala ou deglutição. Um corpo em absoluta inércia, mas que não prescinde do soro que lhe é administrado endovenosamente. Mesmo sem qualquer ato motriz, sua fisiologia interna absorve o líquido, dependendo estritamente dele para continuar mantendo a vida silenciosa do corpo inerte.

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extensão natural, que a motricidade exercida em condições absurdas, levou a estrutura

corporal do caminhante além dos limites suportáveis. Em síntese, a associação exercício

físico/ausência de água configura-se aqui como um processo fatal, caso não seja

interrompido através de reidratação suficiente. Considerando que cada passo significa mais

suor expelido pelos poros, que cada flexão significa ascensão da fadiga muscular;

considerando também a incapacidade de obtenção de água, aliada ao movimento do corpo

para encontrá-la, evidencia -se um quadro de ínfima hidratação corporal, grande dispêndio

líquido e nenhuma reposição. Desta forma, sob o respaldo científico da fisiologia humana,

não julgamos inidôneo afirmar que o caminhante, nestas condições, caminha literalmente

para a morte. O corpo, nas circunstâncias mencionadas, é drenado e exaurido até não mais

agüentar, perecendo após ultrapassar as linhas limítrofes de suas capacidades funcionais.

Na obra Vida e Morte do bandeirante, Alcântara Machado aborda os sertões estéreis, os

lugares sem água, onde muitos sertanistas encontraram seu fim.

Outra característica deletéria, para a estrutura corporal dos sertanistas de

Piratininga, era a pesada atividade motora precoce. Ainda púberes, muitos indivíduos

eram integrados às bandeiras, acompanhando familiares mais velhos. Tal iniciativa

emanava do anseio de ascender rapidamente na atividade, visando apresar o maior número

possível de indígenas. Agindo assim, o garoto bandeirante tinha a possibilidade de atingir a

idade adulta já possuidor de uma grande quantidade de índios, assenhoreando-se do poder

e do status que tal posse significava. Esta lógica social era, em alguns núcleos familiares,

transmitida através das gerações. Sobre o ingresso precoce na vida sertaneja, escreveu

Volpato:

Antônio Pires de Campos e Bartolomeu Bueno da Silva (filho) contavam quatorze anos quando acompanharam seus pais pelo sertão, e Francisco Dias da Silva tinha dezesseis anos quando participou da bandeira de seu tio (VOLPATO, 1985, p. 63).

Garotos de quatorze anos, pré adolescentes ainda na puberdade, enfrentando os

revezes do difícil caminhar agreste. Aos quatorze anos, o sertanista mirim é um ser

humano cuja conformação corporal é inte iramente avessa à dura mobilidade sertaneja, em

virtude de sua imaturidade biológica. 28

28A estrutura corpórea de um indivíduo pertencente a esta faixa etária apresenta-se em fase de transição. Recém saído da infância, sua con formação anátomo-fisiológica está distante da maturação completa, que em média só é atingida aos vinte e um anos. Seus segmentos miológicos ainda não atingiram a hipertrofia (aumento de tamanho estrutural) suficiente para sustentar grandes pesos, não se adequando também às atividades aeróbicas (diz-se das atividades de longa duração), que requerem considerável resistência física, Seus tendões e ligamentos ainda não são tão resistentes para o caminho pedregoso, para o aclive abrupto,

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Abordemos agora outra faceta do bandeirismo, que apresenta homens idosos

devassando as matas com ímpeto inusitado.

O mestre-de-campo Fernão Dias Pais tinha sessenta e seis anos, quando deixou o

planalto paulista, em junho de 1674, comandando uma bandeira que continha em suas

fileiras os mais famosos sertanistas de seu tempo, como Manuel da Borba Gato, Matias

Cardoso de Almeida, Francisco Pires e Garcia Rodrigues Pais.

Sobre essa expedição chefiada por um homem de idade avançada, escreveu

Volpato:

A bandeira de Fernão Dias peregrinou quase oito anos no sertão, enfrentando toda sorte de dificuldades: falta de recursos, abandono da jornada por alguns cabos-de-tropa, perda do contingente em combates com o gentio ou por doença e até mesmo a existência de um motim do qual participou o filho bastardo de Fernão Dias, o qual, juntamente com os demais amotinados, foi executado. Já bastante desfalcada, a bandeira chegou aos cerros de Itacambira, onde encontrou pedras verdes em grande quantidade. Porém, acometido de impaludismo, o velho bandeirante veio a falecer em meados de 1681, possivelmente perto da barranca do Rio das Velhas (VOLPATO, 1985, p. 92).

Como ficou claro, a bandeira de Fernão Dias defrontou-se com dificuldades

diversas. Uma expedição comandada por um homem vetusto, que morreu aos setenta e três

anos, sendo que os últimos oito anos de sua vida foram passados no sertão.

Um homem longevo, cuja estrutura corporal experimentara a ação deletéria do

encanecimento natural. O corpo humano sofre degenerações gradativamente, através das

décadas, chegando à ancianidade consideravelmente menos eficiente do que foi na

juventude. A longevidade, mesmo que sadia, traz consigo uma vasta gama de efeitos,

causados pelos eventos paulatinos ocorridos no decurso do envelhecimento corpóreo29.

para a planície que se estende no horizonte. Sua produção de testosterona, ainda insuficiente, nega -lhe a força bruta e até mesmo o comportamento agressivo, tão importantes nas adversidades traiçoeiras das matas. Suas epífises ósseas, em acelerada expansão, fecham-se prematuramente, furtando-lhe, anos mais tarde, seu pleno potencial de estatura. Dores pronunciadas fustigam-lhe os grupos musculares mais exigidos, devido ao acúmulo de ácido lático nas micro-fibras não maturadas. A grande taxa de endorfina secretada por seu cérebro rouba-lhe a vivacidade, impondo-lhe um torpor estranho, ainda não identificado com prazer e sossego. A baixa produção de serotonina determina-lhe atitudes instáveis, ensejando oscilações emocionais inconvenientes ao ambiente, que requer posturas rígidas, às vezes inflexíveis. Sob a imposição da motricidade intensa, sua pequena caixa toráxica entra em hiperatividade, visando suprir a demanda de ventilação exigida pelos pulmões, deixando-o ofegante. As sístoles de seu miocárdio reduzido não ejetam sangue em quantidade suficiente, aumentando-lhe a freqüência cardíaca, ofertando-lhe o desconforto da taquicardia. 29Observemos brevemente alguns destes efeitos: flacidez muscular generalizada, enfraquecimento do tecido ósseo (com possibilidade do surgimento de osteoporose), desgaste das extremidades ósseas articulares, enfraquecimento das inserções tendíneo-ligamentares, redução da produção de líquido sinovial, acentuação das patologias da coluna vertebral (cifose, lordose e escoliose), redução do calibre periférico de vasos e artérias, redução da elasticidade do tecido alveolar pulmonar, redução da eficiência cárdio -vascular. Algumas

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As diversas mudanças sofridas pelo corpo, ao longo dos anos, são inexoráveis.

Neste sentido, torna -se notável a iniciativa de Fernão Dias Pais, que partiu para o sertão já

tendo adentrado a ancianidade. Quando da organização de sua bandeira, o mestre de campo

era um homem abastado, possuindo terras, gado, ouro e prata. Vendeu quase tudo que

tinha, conservando sua casa. Fernão Dias gastou seis mil cruza dos com a montagem de sua

expedição, soma bastante vultosa para a época, recebendo ainda pequena ajuda da Fazenda

real e da Câmara de São Paulo.

Desfrutando a prosperidade granjeada ao longo da vida, o experiente mestre de

campo não experimentava portanto o triste viver cotidiano (HOLANDA, 1986, p. 26) dos

homens que se fixaram primeiramente no planalto de Piratininga, ou mesmo dos mais

miseráveis de sua própria época. Destarte, o que o moveu não foi a penúria ou

dificuldades similares, que foram element os determinantes para a constituição de inúmeras

bandeiras. Fernão Dias partiu para o sertão atendendo à solicitação do Visconde de

Barbacena, então Governador da Capitania de São Vicente, que em nome do próprio

Regente, formulou-lhe o pedido de que organizasse uma expedição, visando a prospecção

de jazidas de prata e esmeraldas. Isso foi em 1671, três anos antes que sua bandeira

partisse. O velho bandeirante assentiu, atendendo o pedido e depauperando seu patrimônio

pessoal, amealhado no decurso de sua vida. Além da possibilidade do encontro de

riquezas, moveu-o a ânsia de elevar ainda mais o seu status . Efetivada a iniciativa de partir

para o sertão, configurava -se em desdobramento, o entendimento coletivo de que o

respeitado sertanista o fizera por solicitação direta do Governador da Capitania.

outras diferenciações são ainda mais perceptíveis, como a redução da capacidade visual, distúrbio auditivos, lentidão de raciocínio (causado pela vascularização cerebral reduzida, que por sua vez determina lentidão na dicção e nos reflexos instantâneos). Existem ainda outras particularidades anátomo-fisiológicas que se explicitam no organismo humano no decurso do tempo. Não trataremos de todas elas, posto que para a proposta de nosso estudo, as mais importantes são as gradações que causam maior detrimento para o desempenho motor global. A ciência da Educação Física, no que diz respeito ao atendimento às pessoas da terceira idade ( a tercei ra idade inicia-se aos sessenta anos), preconiza a realização de exercícios físicos de baixa intensidade, em função das particularidades diversas que determinam a especificidade corpóreo-motora dos indivíduos pertencentes à esta faixa etária. Todas as atividades dos professores de Educação Física que lidam com grupos da terceira idade, são caracterizadas por vigilante comedimento, pautadas pela observância de não ultrapassar a capacitação física global de corpos já desgastados pelas sucessão das décadas. As caminhadas são ministradas invariavelmente entre 07:00 e 09:00 h e das 16:00 em diante, evitando a exposição dos praticantes ao calor do sol. A ginástica, mormente visando fins de relaxamento, é realizada em ritmo contido, envolvendo os grupos musculares mais trabalhados no cotidiano. Todas as outras modalidades de atividade física, quando direcionadas aos indivíduos idosos, observam ditames específicos, que coíbem exageros. Numa só frase, a ciência da Educação Física incentiva os idosos às práticas corporais, porém, respaldada cientificamente, preconiza o cumprimento do respeito aos corpos humanos que já passaram por gradações que o tornaram mais limitados, mormente no que concerne à motricidade. Esta breve incursão pelo cientificismo anátomo-fisiológico, bem como as considerações sobre o que é entendido (à luz da Educação Física) como salutar aos indivíduos da terceira idade, visaram a busca de um entendimento mais específico sobre a inserção de um homem idoso numa rústica marcha sertanista.

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Ressaltemos que tais solicitações pessoais eram feitas apenas aos bandeirantes de maior

projeção social. Desta forma, esses pedidos eram considerados quase como honrarias, uma

vez que denotavam a confiança do governo no sertanista que era abordado, funcionando

também como atestados informais de eficiência na lida sertaneja. Fernão Dias estava

acostumado com essas deferências, tendo anteriormente recebido uma carta de próprio

punho do Rei de Portugal, que lhe pedia apoio na prospecção de riquezas, dez anos antes

da partida da expedição solicitada pelo Visconde de Barbacena. Até títulos eram

oferecidos aos bandeirantes mais proeminentes, visando estimular -lhe a montar

expedições. Observemos as palavras de Volpato:

... o monarca era aconselhado a usar determinadas estratégias: para os paulistas mais valiam honrarias do que riquezas. O Rei era aconselhado a oferecer, em troca das peregrinações, títulos e mercês. Para conseguir -lhes a adesão era importante estimular-lhes a vaidade. Com este intuito, o rei D. Afonso VI escreveu cartas de próprio punho aos bandeirantes mais famosos, pedindo apoio nos trabalhos de pesquisa de riquezas. Desse teor era a carta recebida por Fernão Dias Pais em 1664 (VOLPATO, 1985, p. 91).

Também sobre estas artimanhas da Corôa, que tinham como objetivo espicaçar o

ânimo jornadeador dos expedicionários paulistas, escreveu Taunay:

No caso de se realizarem novos descobrimentos tornava-se indispensável que o trono distribuísse mercês, sobretudo hábitos de Cristo a gente tão vaidosa como os paulistas, que só se lembrava de honras, desprezando conveniências (TAUNAY, 1951, p. 25-6).

Tendo montado sua expedição motivado por vaidade, obtenção de maior status ou

encontro de esmeraldas, o certo é que Fernão Dias Pais trocou o conforto de sua vida

estável pela rusticidade da marcha sertaneja. Por qualquer dos motivos, observa-se que a

afixação na terra e o sedentarismo não o dissuadiram do intento de partir pela derradeira

vez. Os últimos oito anos de sua vida foram marcados por intensa atividade corporal, a

despeito de sua avançada idade. Fernão Dias Pais, certamente, foi um homem de grande

resistência física. Tal asserção pode ser feita de forma desassombrada, respaldada pela

ciência da Educação Física, através da anatomia e da fisiologia humanas, que deslindam as

mudanças ocorridas no organismo ao longo do tempo.

Tendo já mencionado algumas dessas mudanças, não podemos, no entanto,

mensurar em que grau o corpo de Fernão Dias as apresentava. Não podemos afirmar que

Fernão Dias apresentava todas as características anátomo-fisiológicas que são atribuídas

aos indivíduos de sua idade. Por outro lado, é certo que Fernão Dias apresentava muitas

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características próprias de homens idosos. Para as lidas de caminheiro sertanejo, que exige

ingentes esforços físicos e consome grandes quantidades de energia, o mestre-de-campo

tinha idade demais. Fernão Dias Pais foi um ancião robusto, pois de outra forma não teria

agüentado as longas caminhadas, os combates com indígenas e o motim que ocorreu em

sua bandeira. Nos oito anos que antecederam sua morte, esse bandeirante engendrou um

exemplo modelar de desempenho físico notadamente acima da média, levando-se em conta

a sua ancianidade.

Pontuemos alguns elementos constantes na história do bandeirismo. Caminhadas

inacreditáveis, ingestão de animais insalubres para saciar a fome, batalhas sangrentas,

ingestão de sangue de animais para aplacar a sede, desnorteio, exposição ao sol e

intempéries, transposição de acidentes orográficos. A precocidade de Antonio Pires de

Campos e Bartolomeu Bueno (filho) na intensa faina física do sertão. O impressionante

rendimento físico de Domingos Jorge Velho em sua marcha de seis mil quilômetros,

buscando guerreiros para destruir o Quilombo de Palmares. Os descalabros da grande

expedição de Raposo Tavares, que cumpriu de dez a doze mil quilômetros, marchando e

remando, enfrentando índios e passando fome. O notável desempenho corpóreo-motor de

Fernão Dias, um ancião comandando uma grande bandeira, expondo seu corpo

envelhecido às agruras do sertão.

A história das bandeiras foi construída por corpos em movimento. O fenômeno

bandeirantista foi a configuração antagônica do sedentarismo.

Ao negarmos os bandeirantes como heróis, torna-se possível visualizar a verdadeira

envergadura de seus feitos físicos. Os corpos dos heróis não sentem dor ou cansaço, não

adoecem e não sentem fome ou sede. O bandeirismo mostrou homens comuns, realizando

atividades físicas impensáveis, verdadeiramente espantosas.

Todas as atividades das bandeiras (apresamento de índios, busca de ouro, busca de

pedras preciosas ou destruição de quilombos) foram concretizadas à custa de muito suor e

esforço corporal. Inexistem corpos estáticos nesse cenário de deslocamento constante. Se m

a motricidade obstinada dos sertanistas paulistas, a história do Brasil Colonial certamente

seria diferente.

Os sertanistas de Piratininga, heroicizados e mitificados pela historiografia do

bandeirismo, surgiram no discurso histórico instrumentalizados politicamente. Foram

contestadores do capitalismo, vanguardistas da democracia social e racial, descobridores de

jazidas minerais e responsáveis pela expansão das fronteiras do Brasil.

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Inseridos numa miscelânea vocabular que os adjetivava ufanisticamente, os

sertanistas paulistas foram representados na historiografia como protagonistas de feitos

épicos, supra-humanos.

Nessa construção político-ideológica, onde os desfechos dos acontecimentos

eclipsam o processo concreto que os efetivou, as atividades físicas dos bandeirantes são

mencionadas canhestramente, sob a intangibilidade da representação multifacetada. O

herói paulista, além de suas diversas outras virtudes , foi também um homem que deslocou-

se por espaços cada vez mais amplos.

O homem planaltino comum vivenciou a mobilidade sertaneja, experimentando os

revezes oferecidos por tal deslocamento.

O desempenho corporal, tão decisivo para que muitas expedições atingissem seus

objetivos, foi inserido num alentado rol de pseudo-virtudes, diluindo-se em meio a uma

profusão de adjetivações edificantes. Entendemos que o movimento humano foi uma das

principais características do bandeirismo.

O desempenho físico foi um elemento significativo nas incursões dos sertanistas de

São Paulo, tendo sido uma das facetas mais importantes da história das bandeiras.

2. O papel da motricidade bandeirante na mudança da configuração contextual do

Brasil Colonial

No século XVII, o fortalecimento dos engenhos de açúcar no Nordeste acompanhou

a decadência pronunciada da produção açucareira na região de São Vicente, que mais

distante do litoral europeu, marginalizou-se pouco a pouco da rota comercial marítima. Os

navios provenientes da Metrópole aportavam nas capitanias do Nordeste, cumprindo

navegação menos extensa e abastecendo-se satisfatoriamente, mercê da próspera produção

canavieira.

Diferentemente da aparente solidez dos núcleos populacionais do litoral nordestino,

cuja riqueza agrária traduzia -se nos latifúndios e nas casas grandes dos senhores de

engenho, a capitania de Martim Afonso de Souza, no Brasil Colonial, caracterizava -se

ainda pela imaturidade, pela carência de recursos e pela grande distância que a separava da

movimentação mercantil escravista e açucareira.

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A afixação na terra, o sedentarismo caracterizado pelas populações do Nordeste,

tornou-se a configuração da antítese, do antagonismo da situação vivenciada pelos

paulistas, especialmente os do planalto de Piratininga.

Impedidos de adquirir escravos africanos, devido às contingências contextuais já

descritas, os paulistas empreenderam longas marchas mata adentro, visando apresar índios,

os negros da terra , para o labor assistencial e para o comércio escravista. As bandeiras de

caça ao índio desbravaram florestas desconhecidas rumo ao sertão distante.

Sobre a sociedade paulista, escreveu Holanda:

Sua vocação estaria no caminho, que convida ao movimento; não na grande propriedade rural, que cria indivíduos sedentários ... A mobilidade dos paulistas estava condicionada, em grande parte, a certa insuficiência do me io em que viviam (HOLANDA, 1990, p. 16).

Visando ressaltar os grandes esforços a que se submetiam os sertanistas de São

Paulo, Barreiros evocou a óbvia lembrança da jornada pedestre, que era cumprida

predominantemente, sob o fator agravante dos pesos extras. Vejamos as palavras de

Barreiros:

Convém lembrar que se viajava a pé, carregando a bagagem às costas, por ínvios caminhos, representados por trilhas que se contorciam morro abaixo e morro acima, ou por densas florestas de rumos incertos, ou ainda, por campos infndáveis (BARREIROS, 1979, p. 20).

Analisemos as intrépidas incursões das bandeiras. Elas percorriam caminhos

rústicos, estreitas sendas, traiçoeiras picadas abertas a facão nas matas ínvias.

Atravessavam rios, transpunham morrarias, cruzavam planícies, enfrentavam a resistência

de grupos indígenas belicosos, expunham-se aos extremos climáticos no âmago da

natureza selvagem, experimentavam as inoculações de insetos e répteis peçonhentos,

sujeitavam-se aos descalabros de uma dieta inadequada e insuficiente. Para o sucesso das

empreitadas, mais do que qualquer outra característica, os paulistas expedicionários eram

compelidos a atingir as linhas limítrofes de suas capacidades físicas, que em diversas

oportunidades beiravam e até mesmo ultrapassavam a exaustão. O caminhar pela mata,

enfrentando as escabrosidades naturais e os relevos acidentados, envergando gibões 30

incômodos, levando às costas mosquetões 31 e alfanjes32, conduzindo ainda pesadas

30 Veste de couro para resistir a flechadas, algumas de couro de anta. 31 Armamento que de tão pesado precisava ser apoiado num tripé, media 1,75m e geralmente era carregado por dois expedicionários. 32 Sabre curto, para combates corpo a corpo.

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correntes para o apresamento dos negros da terra, víveres rudimentares e outros acessórios

... Razoável exercício físico! Junte-se a isso os esforços corporais nos embates com os

índios, o nado improvisado para vadear cursos d’água mais profundos, o trabalho

extenuante da derrubada da vegetação visando abrir novas sendas, as fadigas adicionais das

atividades de caça e extração de alimentos nativos ... Considerável exercício físico!

Passando à larga das menções burlescas considerável exercício físico e razoável

exercício físico, penetremos no terreno formalmente racional das constatações objetivas,

emanadas das páginas da historiografia, que mostram claramente os ingentes esforços

corpóreos dos bandeirantes. Faz-se necessário mencionar a obviedade de que o discurso

histórico, em sua totalidade, narra a saga desses expedicionários sob os prismas narrativos

múltiplos da busca de pedras preciosas e do aprisionamento e morticínio de indígenas, da

expansão dos núcleos populacionais, do fracasso do Tratado de Tordesilhas, da dilatação

das fronteiras e da extração aurífera. Ressaltadas pela historicidade (no sentido literal da

palavra: qualidade do que é histórico), estão contidas na historiografia, reiteradas vezes, as

variações rítmicas ou cíclicas do que é entendido como progresso, com suas debreagens e

deslanches. Conferindo salutar inteligibilidade aos fatos, num sentido mais amplo, o

entendimento do desenvolvimento ou progresso insere-se numa perspectiva que oportuniza

o deslindar de certos contextos regionais interdependentes. O atraso de São Paulo, em

relação ao Nor deste no século XVII, era proeminente. Os sólidos engenhos nordestinos,

alicerçados no poder dos grandes senhores de terras e na conveniente teia clientelista,

tecida politicamente na cúpula da sociedade, configurava à exatidão as teorias do

historiador holandês J. Romein:

El progresso realizado en el pasado es suscetible de actuar como un freno, a costa de nuevos progressos. Por la atmósfera de autosatisfacción se oponen obstáculos a nuevos progresos que implicariam un desmonstje de las instituiciones y de los equipos (J. ROMEIN apud CHESNEAUX, 1995, p. 112).

Tal atmosfera de auto-satisfação não foi experimentada pelos paulistas, que

vivenciavam um cotidiano rudimentar, habitando toscas edificações de taipa, onde não

havia camas (os paulistas dormiam em redes) nem banheiros. O atraso de São Paulo foi

ilustrado por Holanda:

... A lentidão com que, no Planalto Paulista vão se impor costumes, técnicas ou tradições vindos da Metrópole terá profundas conseqüências: só muito aos poucos, embora com extraordinária consistência, consegue o europeu implantar formas de vida que já lhe eram familiares no Velho Mundo (HOLANDA, 1990, p. 16).

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Em ¿ Y que és la Hstória?, Prieto cita também a tese de Romein sobre Los llegados

tarde da história , que se ajusta, à perfeição, ao progresso atingido por São Paulo, quando

do advento da extração aurífera, encetado pelas bandeiras e posteriormente robustecido

pelas monções:

... El progreso viene muchas veces de otros pueblos atrasados, los “llegados tarde” a la história ... La línea general de este argumento es demostrar que el retraso, en ciertas condiciones, es una ventaja que espolea hacia nuevos esfuerzos, mientras que un avance más rápido constituye un freno es la dialética del progresso (PRIETO, 1995, p. 112).

Nossa incursão pela análise do progresso visou abrir linhas essenciais para

enfocarmos a importância das bandeiras, que eram expedições que partiam de um lugar

sem recursos, levando-se em conta os padrões coloniais.

Doravante, pretenderemos demonstrar, que o progresso de São Paulo teve sua

configuração embrionária nas bandeiras rumo às paragens mais remotas do Centro-Oeste

brasileiro. Os nuevos esfuerzos dos bandeirantes impressionaram muita gente, como o

padre jesuíta Antônio Ruiz de Montoya (1585-1652), que escreveu que os paulistas, a pé e

descalços, andavam mais de dois mil quilômetros por vales e montes como se passeassem

pelas ruas de Madri. Para o religioso inaciano, crescido e educado num ambiente

civilizado, a extensão de tal marcha denotava capacitação física muito acima da média. O

espanto transparece claramente em suas palavras, principalmente quando traça o paralelo

comparativo da caminhada sertanista com um simples passeio pelas ruas da capital

espanhola. Tal analogia revela seu pasmo, concernente à singularidade do desempenho

corporal dos homens rudes que compunham as bandeiras. Enfoquemos brevemente a

lexicologia, ressaltando algumas acepções da palavra passeio e do verbo passear, visando

coibir detrimento no ato de interpretar a frase do padre Montoya. Segundo o Novo

Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, passeio significa: 1. Ato ou efeito de passear; 2.

O percurso de certa extensão de caminho, para exercício ou por divertimento; 5. Distância

curta; 7. Aquilo que se conquista sem nenhum esforço, em que se obtém vitória facílima. O

verbo passear , ainda segundo o dito dicionário, significa: 1. Ir a algum lugar, ou mover-se,

andar a passo, com o fim de entreter-se, divertir-se, tomar ar ou fazer exercício.

A fala do jesuíta, indubitavelmente inculca ênfase na performance motora dos

paulistas, dando ares de passeio a um percurso de 2000 quilômetros. Ficou claro, em nossa

incursão lexicológica, que passeio ou passear não implicam de forma alguma em cansaço

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físico. Isso entendido, faz-se nítida a intenção do jesuíta em comunicar -se procurando

expressar a negação de qualquer fadiga experimentada pelos sertanistas.

O assombro do padre Montoya emprestou cromatismos épicos à caminhada dos

bandeirantes, pintalgando-a com nuanças que sugerem uma proeza mitológica.

Expliquemo-nos melhor: é óbvio que não existem seres humanos que não se cansem ao

cumprir 2000 quilômetros de marcha, por lugares florestosos e de relevo acidentado. O

cansaço, a fadiga e a exaustão obviamente eram sentidos pelos paulistas, de forma que

deve ser levada em consideração certa densidade alegórica nas palavras do jesuíta, que

induziram a um entendimento de performance física no mínimo sobrenatural. Por outro

lado, é também óbvio o grande desempenho corpóreo-motor dos expedicionários

sertanistas, que cumpriram, em outras diversas oportunidades, percursos portentosamente

maiores do que este enfocado pelo religioso espanhol. Adiante, abordaremos alguns destes

percursos cumpridos pelas bandeiras.

No que diz respeito aos reveses enfrentados pelos paulistas, escreveu Holanda:

A capacidade de resistir longamente à fome, à sede, ao cansaço; o senso topográfico levado a extremos ... são algumas das imposições feitas aos caminhantes, nessas veredas estreitas e rudimentares. Delas aprende o sertanista a abandonar o uso de calçados, a caminhar em “fila índia’, a só contar com as próprias forças durante o trajeto ( HOLANDA, 1990, p. 17).

Instadas ao movimento constante, percorrendo regiões até então indevassadas, as

bandeiras configuraram-se como agregações de homens, que apresentaram performance

corpóreo-motora no mínimo notável. Mitificadas pela aura épica do desbravamento de

áreas infreqüentadas, pelo descobrimento de riquezas e pelo apresamento e morticínio de

indígenas, as bandeiras são, via de regra, ressaltadas na historiografia pelos resultados de

seus feitos ou atos, ou seja, pelos seus efeitos.

Evoquemos aqui as palavras de Prieto:

... Son las relaciones causa-efecto, en bloque, las que deben analizarse, ya que son las que nos muestran el proceso histórico y possibilitan su comprensión (PRIETO, 1995, p. 90).

Sob o prisma dessa concepção de Prieto, parece tornar -se nítida a percepção de que

a historiografia, muitas vezes, debruça-se sobre o desfecho dos fatos. Não raro são

preteridos os processos de construção desses fatos, com seus avanços e debreagens. Os

meandros da história, por vezes tortuosos, são eclipsados em benefícios dos desenlaces. No

caso das bandeiras, as relações causa-efeito foram, em sua literal totalidade, mediadas pelo

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desempenho físico-motriz. A historiografia, no entanto, não ressalta essa mediação de

forma significativa, ofertando versões de resultados finais. Senão, vejamos as ênfases: o

aprisionamento dos negros da terra, a expansão populacional, a expansão lindeira, a

descoberta das minas auríferas, a busca de pedras preciosas, a destruição de quilombos.

Para nós, a obviedade do papel desempenhado pelas atividades físicas à época das

bandeiras extrapola as fronteiras da investigação científica, levando-se em conta as grandes

evidências de suas implicações. Queremos dizer, com isso, que a proeminente relevância

do desempenho físico no período em questão faz-se muito clara, sendo, portanto passível

de ser abordada sob uma ótica que lhe confira contornos mais nítidos.

O episódio do desmanche do Quilombo dos Palmares nos parece ser ilustrativo, no

que diz respeito ao preterimento das atividades físicas nas páginas da história. O

protagonismo do Governador de Pernambuco, Cunha Souto, do bandeirante Jorge Velho e

do líder palmarino Zumbi, trespassa e domina todo o episódio da destruição do maior

núcleo de escravos refugiados do Brasil Colonial. A historiografia salienta essencialmente

a batalha travada na Serra da Barriga, em 06 de fevereiro de 1694, quando as tropas de

Jorge Velho dizimaram a principal cidadela de Palmares, matando 200 homens e

aprisionando outros 509, tendo o líder Zumbi conseguido escapar. Mais ressaltada ainda é

a consumação final do esfacelamento do mocambo33 palmarino, em 20 de novembro de

1695, quando o líder bandeirante e seus comandados finalmente emboscaram e mataram o

líder negro. O cruento embate se deu na garganta da Serra Dois Irmãos. Zumbi estava

acompanhado de vinte negros, remanescentes do confronto na Serra da Barriga. Desses

homens, apenas um foi capturado vivo. Após a refrega, o corpo de Zumbi apresentava

quinze perfurações de bala e muitos pontaços de lança. Seus algozes ainda esmeraram-se

em requintes de crueldade, tirando-lhe um olho, amputando-lhe a mão direita, castrando-

lhe e enfiando-lhe o pê nis na boca. A quintescência do tétrico ainda estava por vir: o corpo

inanimado foi degolado, sendo a cabeça acondicionada em sal fino e enviada ao Recife,

para ser exibida como exemplo aos negros, que julgavam Zumbi imortal.

Torna-se aqui oportuno determo-nos, momentaneamente, no que concerne ao

espetáculo macabro de um corpo barbaramente mutilado. O corpo de um revoltoso. Um

corpo que catalisara os anseios de liberdade dos negros. Um corpo que em vida recusara-se

a escravizar -se. Um corpo que em vida fora são e perfeito, mas que ao antagonizar a

servidão tombara inerte, trucidado, decapitado.

33 A palavra Quilombo ainda não havia sido inventada no século XVII.

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A cabeça de Zumbi, exposta em praça pública, foi um aviso funesto, um alerta aos

cativos africanos.

O corpo sente dor ... sente muita dor. As pessoas querem ser livres ... mas não

desejam ser imoladas.

A barbarização imposta ao corpo do líder palmarino, surtiu efeitos satisfatórios

dentro do sistema colonial escravista. Que grande importância teve um corpo mutilado no

Brasil de então ... que mórbida eficácia!

Em outras palavras, um corpo transfigurado, que pela hediondez de sua

configuração, abateu o ânimo latente dos escravos, minando-lhes as intenções de luta pela

liberdade. Após a morte de Zumbi, não consta na historiografia outro foco de resistência

negra de pr oporções semelhantes. Depois da martirização de Zumbi, não consta nas

páginas da história uma tão significativa organização coletiva de escravos. Um corpo

martirizado ... um silencioso aviso ... tétrica eficiência!

É válido lembrar, que o desmembramento corporal e a degola aparecem na História

do Brasil através dos séculos. O sofrimento corporal imposto aos inimigos do status quo

sempre foi instrumentalizado, senão vejamos: Zumbi, em 1695; Felipe dos Santos, em

1720; Tiradentes, em 1789 e Lampião, em 1938. As atrocidades cometidas pelos regimes

instituídos contra líderes subversores, sempre visaram a exemplificação, que por sua

natureza repugnante, invariavelmente surtiu seus ignóbeis efeitos.

O degredo ou a prisão, mesmo que perpétuos, não são exemplos tão eficientes ...

que assombroso exemplo é o corpo inanimado do subversor, exposto publicamente! Como

é importante o corpo!

Ao abordarmos o episódio do desmanche de Palmares, oportunizou-se esta breve

incursão reflexiva sobre as implicações de um corpo tr ucidado, exibido como exemplo. Tal

evasão foi intencional, objetivando pautar a enormidade da importância do corpo, mesmo

que morto, neste significativo fato da História do Brasil.

Ainda no que diz respeito à destruição de Palmares, doravante trataremos da

notável performance motora de corpo vivos , performance esta efetivada bem antes de 1694

(batalha da Serra da Barriga) e 1695 (massacre dos remanescentes na Serra Dois Irmãos).

Em 1687, Domingos Jorge Velho foi contactado pela primeira vez para assumir o

comando da luta contra os palmarinos. O contato foi feito pelo então Governador de

Pernambuco, João da Cunha Souto Maior. Na época, Jorge Velho estava com sua tropa no

Piauí, onde o levara a extraordinária mobilidade dos paulistas caçadores de índios, que se

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espalhavam pelo Brasil inteiro. Diante do exposto, o arguto mestre-de-campo34 exigiu

sesmarias35 em Palmares para ele e seus oficiais, posse de todos os negros capturados,

armas, munições e alimentos. O acordo foi feito, sendo firmado através de contrato

ratificado pelo Rei de Portugal.

Meticuloso e experiente, Jorge Velho optou por engrossar suas tropas

arregimentando homens no lugar em que confiava: São Paulo. Para tanto, o mestre-de-

campo empreendeu uma espantosa caminhada de seis mil quilômetros, que o levou do

Piauí a São Paulo, e de lá novamente ao Nordeste. A impressionante marcha durou um ano,

custando 396 baixas às tropas do intrépido sertanista. Em requerimento ao Rei de Portugal,

o próprio Jorge Velho escreveu: “... 196 homens morreram de fome ou doença e 200

desertaram dessa caminhada, a mais trabalhosa, faminta, sequiosa e desamparada que até

hoje houve no sertão, ou quiçá haverá” ( GRYZINSKI 1995, p. 75).

Ao voltar de São Paulo, o mestre-de-campo tinha sob seu comando 1000 homens de

arco, 200 de espingarda e 84 brancos com atribuições minoritárias de mando. Tal

regimento estava pronto para destruir os aquilombados, quando foi recebida uma contra-

ordem emitida pelo Governador Geral do Brasil, Matias da Cunha: desviar a rota e

combater os índios rebelados na Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

Naquele momento, os caribis (ou tapuias) representavam uma ameaça muito

maior do que os palmarinos. Os indígenas haviam matado mais de 100 colonos e dizimado

30 000 cabeças de gado, em reação ao movimento expansionista pastoril, que os desalojava

de suas terras.

Numa exibição cruenta de sua habilidade predatória, Jorge Velho literalmente

destroçou os focos revoltosos tapuios, combatendo-os com incêndios, flechas e balas,

durante quatro dias e quatro noites. A torpeza da decapitação foi praticada de forma

sistemática durante a peleja. Observemos as palavras efusivas do Governador Geral do

Brasil, Matias da Cunha, tecendo louvores ao sertanista paulista:

penetrando lá com a sua gente no interior da campanha, queimou as principais aldeias e degolou toda a nação que nelas estava ... pelejou com elas sempre em fogo vivo, além do sem-número de arcos e seta... (GRYZINSKI, 1995, p. 75).

34 Mestre-de-campo era o nome dado na época aos chefes das bandeiras. 35 Terreno inculto ou abandonado, que os reis de Portugal distribuíam a colonos ou cultivadores.

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A exaltação da torpitude praticada contra os índios teve ainda a part icipação do

arcebispo da Bahia, que tempos depois cumprimentou Jorge Velho pessoalmente: “felicito-

o por haver Vossa Mercê degolado 260 tapuias” (GRYZINSKI, 1995, p. 75).

Não é preciso ter imaginação exacerbada para evocar o cenário onde a luta (ou

chacina) se desenvolveu. O que pode ter restado após a contenda, senão ocas enegrecidas

pela incineração e uma grande profusão de corpos decapitados?

A glorificação da violência no Brasil Colonial faz-se aqui facilmente constatável,

através das tendências discursivas altamente elogiosas a Jorge Velho, formuladas por dois

homens de grande projeção social. Um deles, encarapitado em alto nicho hierárquico

eclesiástico, e o outro, ocupante de cargo político de majoritário escalão. Destacada

isoladamente de suas implicações contextuais, a felicitação do arcebispo baiano ao mestre-

de-campo configura-se como a antítese de todos os princípios que regem o cristianismo.

Ao cumprimentar o responsável pela decapitação coletiva de 260 pessoas, o religioso

promove a negação literal do quinto mandamento36 da Lei de Deus. Não pretendemos

avançar as linhas limítrofes do controvertido e complexo campo da religião. Tal

observação foi tão somente motivada, para que se evidencie que, na sociedade do Brasil

Colonial, os fins justificava m os meios. Para que a ordem estabelecida fosse mantida, até

mesmo os mais selvagens e cimérios atos eram aprovados sem reservas ou pudores. Na

verdade, o arcebispo da Bahia e o Governador Geral do Brasil foram panegiristas

explícitos de Domingos Jorge Velho.

Na chacina dos tapuios revoltosos, a degola praticada em larga escala antecedeu os

eventos modelares de líderes subversivos já mencionados, efetivados posteriormente na

história: Zumbi, Felipe dos Santos, Tiradentes e Lampião. Assassinatos perpetrados,

corpos destroçados, corpos decapitados. Martírios exemplificados, corpos vivos ... temor

disseminado, ideais silenciados.

Inebriado pela vitória contra os índios, coroado de glória pelos panegíricos tecidos

pelo Governador Geral e pelo Arcebispo baiano, Jorge Velho marchou diretamente para o

Quilombo dos Palmares, comandando suas tropas com o mais exaltado dos brios. As

batalhas que então se seguiram (Serra da Barriga e Serra Dois Irmãos), já foram abordadas

anteriormente, quando mencionamos a predominância do protagonismo, sempre presente

nos anais historiográficos. Corroborando em síntese, observamos que o episódio do

desmanche do Quilombo dos Palmares é narrado sobre três pináculos salientados:

36 Não Matarás.

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Pináculo 1: um núcleo de escravos prófugos, liderados por Zumbi, um homem radical, com

anseios intransigentes de liberdade.

Pináculo 2: um sistema ainda rigidamente escravista, que, afrontado pela ameaça

palmarina, faz-se representar pelo Governador pernambucano Cunha Souto, contratando

os serviços de um sertanista com grande experiência em morticínio, visando a extinção do

mocambo.

Pináculo 3: um bandeirante tenaz, um comandante sanguinário – Domingos Jorge Velho –

que, em troca de benesses, aniquila o Quilombo dos Palmares.

Nota-se, nitidamente, que este prisma narrativo – que é o que consta na

historiografia – enfoca primeiramente as partes envolvidas de forma fragmentária para, em

seguida, partir em busca da objetivação final, da consumação do fato em pauta.

Entendemos ser isto nada mais nada menos que a Histoire Événementielle (História dos

Acontecimentos), tão desdenhosamente criticada pelo historiador alemão Karl Lamprecht,

ainda no início do século XX, portanto, antes que Lucien Febvre e Marc Bloch viessem

também a rechassá-la duramente. A histó ria brasileira, mormente nos livros didáticos,

denota uma grande gama de elementos do paradigma tradicional ou rankeano. No episódio

da destruição do mocambo palmarino, são pautadas em ênfase as refregas entre os

comandados de Zumbi e as tropas de Jorge Ve lho, ou seja, são relatados os

acontecimentos. Fernand Braudel, em Mediterranean, rejeita a história dos

acontecimentos, como não mais que a espuma nas ondas do mar da história. Entendemos

a derrocada final de Palmares tão somente como as espumas das ondas de um fato extenso,

multifacetado e complexo, onde facetas de importante relevância jazem no mais recôndito

fundo do mar , mergulhadas no ostracismo.

A queda do núcleo palmarino, da mesma forma que outros episódios vultosos do

bandeirismo, parece-nos estar na superfície do oceano da história, encimando e

obscurecendo elementos estruturais importantes, no que tange à mobilidade sertão adentro.

Senão vejamos: desde os primórdios da Vila de Piratininga, acossados por um viver

marcado por necessidades variadas, os paulistas empreenderam incursões sertanejas à cata

de índios. Lembremo-nos que estas primeiras expedições ocorreram ainda no início da

segunda metade do século XVI, logo após a afixação dos iniciadores do povoado

planáltico. Já a campanha palmarina de Jorge Velho teve seu fecho na última década do

século XVII, em 1695, portanto quase no alvorecer dos oitocentos. Cronologicamente,

aproximadamente cento e cincoenta anos separam as marchas sertanejas iniciais da

empreitada contra o núcleo de escravos instalado na Serra da Barriga. Pretendemos dizer

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com isso, ao evocar este considerável espaço de tempo, que o deslocamento corporal

através da jornada a pé, constitui-se aqui (no episódio de Palmares) como conseqüência de

elementos estruturais provindos do modus vivendi do planalto de São Paulo. Observemos

o que escreveu Braudel:

La larga duración es la historia interminable e indesgastable de las estruturas. Para el historiador una estrutura no es solamente arquitectura, ensamblaje. Es permanencia; com frecuencia, más que secular (el tiempo es estructura) (BRAUDEL apud PRIETO, 1995, p. 96).

Ao empurrar os primeiros sertanistas para o interior do continente, a miséria

planáltica contribuiu para a instalação de um modo de vida específico, onde a formação de

bandeiras e as jornadas a pé passaram a integrar o cotidiano dos moradores. Brancos,

índios e mamelucos partiam para regiões cada vez mais longínquas, visando o apresamento

dos negros da terra ou o encontro de jazidas minerais.

A Câmara de São Paulo, enquanto poder político constituído, por sua vez, apoiava

de forma nítida as expedições bandeirantistas. Desta forma, uma vez fazendo parte dos

hábitos da população, e ainda alicerçadas pela oficialidade formal do poder constituído, as

incursões florestais configuraram-se como iniciativas apoiadas por elementos estruturais 37,

considerando-se aqui como elementos estruturais a aquiescência e icentivo dado às

expedições pelo poder político paulista. Entendendo ainda que el tiempo es estructura,

como observou Prie to, podemos considerar a própria marcha de Jorge Velho como

elemento estrutural propriamente dito, uma vez que o caminhar agreste era costume más

que secular entre os paulistas.

Natural de Santana do Parnaíba, Jorge Velho cresceu e viveu no universo

bandeirantista do século XVII, absorvendo os conceitos e referências daquela sociedade

onde o sertanismo era praticado não apenas como necessidade de subsistência, mas

também como alternativa para a obtenção de prestígio social. Até mesmo a ancestralidade

de Jorge Velho aponta para os dois elementos étnicos constantes nas bandeiras, ou seja, o

europeu e o índio brasileiro. Quanto a isso, escreveu Holanda em Raízes do Brasil:

... Domingos Jorge Velho, o vencedor dos Palmares e desbravador do Piauí. Na ascendência do grande régulo parnaibano o elemento português predomina francamente, embora, para acompanhar a regra, não isento de mestiçagem com o gentio, pois se não falham os genealogistas, foi tetraneto, por um lado, da filha de Piquerobi e, por outro, da tapuia anônima de Pedro Afonso (HOLANDA, 1981, p. 91).

37 Refiro-me aqui não à estrutura de longo tempo, mas à estrutura específica da sociedade do planalto.

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Jorge Velho, possuía, portanto, sangue mameluco, assim como uma enorme parcela

dos bandeirantes. Contudo, isso não é o fator principal que pretendemos enfocar no

momento. Queremos sobretudo evidenciar que este mestre-de-campo foi produto de sua

própria época, um homem de seu tempo, que absorveu os determinismos da estrutura

social em que estava inserido. Nessa estrutura social, como primitiva contingência

histórica impulsionada pela miserabilidade, despontavam as extensas marchas sertanejas,

que com o escoar do tempo (long duré), configuraram-se, elas próprias, como elementos

estruturais, presentes na mentalidade do povo paulista e na cúpula de seu poder político.

Jornadear pelas matas, seja apresando autóctones ou buscando minérios preciosos, era algo

tão profundamente assimilado pelos paulistas, que em algumas ocasiões o altiplano

vicentino ficava com uma notável parcela de sua população ausente. Sobre isso, vejamos

as palavras de Taunay:

Nada mais expressivo do que certos tópicos de atas de vereança como por exemplo, a de 20 de fevereiro de 1666, onde se fala da notificação feita a ‘alguns capitães que vão para o sertão’ ou a de 29 de novembro do mesmo ano, em que o escrivão municipal nos conta que ‘a maior parte dos moradores desta vila estava no Sertão’ (TAUNAY, 1951, p. 109).

Em 1666, grande parte do povo de São Paulo estava no sertão. Em outras palavras,

grande parte do povo de São Paulo estava em atividade física no sertão, experimentando as

fadigas corporais no meio selvagem.

Sessenta e quatro anos antes, 1602 portanto, ainda no prorromper do século XVII,

já havia sido verificado um considerável esvaziamento populacional no planalto de

Piratininga. Nessa oportunidade, diversos homens de significativa importância política

deixaram seus postos de trabalho para palmilhar as matas. Vejamos as palavras de

Azevedo:

Praticamente, a vila ficou despejada de seus moradores, como então se dizia. Quase todos os oficiais da câmara – Baltazar Gonçalves, vereador, Ascenso Ribeiro e Henrique da Cunha, juízes ordinários, e Jorge de Barros Fajardo, procurador do conselho – deixaram os seus cargos para listar -se na tropa do capitão Nicolau Barreto. Tanto assim que a 08 de setembro de 1602 se realizavam eleições para a substitu ição dos ausentes (AZEVEDO, 1971, p. 17).

Entendemos que isso sugere que a formação de bandeiras, e conseqüentemente o

caminhar pelo sertão, inseria -se numa perspectiva de evidentes implicações estruturais,

uma vez que não poucos homens revestidos da oficialidade do poder – e por conseguinte

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ocupantes de não baixos patamares na estratificação social do planalto – não apenas eram

cordatos com a organização de expedições, como também participavam, eles próprios, dos

avanços a pé pelo interior da América. Homens de funções burocráticas, que se lançavam à

mobilidade em paragens selváticas.

As marchas continente adentro, sejam elas consideradas primitivamente como

contingências históricas, ou como propriamente – num tempo posterior – desdobramentos

de elementos estruturais, são por nós também entendidas, em termos nítidos e simples,

como desempenho corporal intenso.

O bandeirismo foi um histórico fenômeno de irrefragável movimentação corpórea,

a despeito de trazer consigo várias facetas, como já o dissemos. Entendemos já ter

abordado algumas destas facetas, como a contingência histórica e os elementos estruturais.

Fizemos isso, buscando um entendimento mais eficaz no tocante à campanha de Jorge

Velho ante o núcleo de Palmares. Nesse episódio do bandeirismo avultou-se sobremaneira

uma importante particularidade ou faceta, e que também é a que postulamos: as atividades

físicas.

Salientamos, no entanto, que parece-nos evidente que não se trata apenas de uma

questão de postulado, já que o rendimento corpóreo-motor efetivamente desempenhou um

papel muito aparente, no mínimo majoritário, no que concerne a Palmares.

Observemos portanto: um grupo de homens incultos e rudes caminhando pela mata,

liderado por um mestre-de-campo acostumado à dura mobilidade sertaneja. Um grupo de

homens vencendo os mais escabrosos acidentes geográficos e as mais espessas brenhas.

Um grupo de homens reduzido pelas baixas, chegando a São Paulo, tendo partido do Piauí.

Um grupo de homens que, engrossado por novos arregimentados, regressa ao Nor deste,

recebe uma contra-ordem e estende a marcha até o Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará.

Um grupo de homens que, após combater os tapuios por quatro dias nos extremos do

Nordeste, marcha até a Serra da Barriga, para dizimar os negros aquilombados! Um

percurso certamente exaustivo de seis mil quilômetros, adicionado aos esforços das

pelejas. Tudo isso em um ano ... Que ano sedentário para Jorge Velho e seus comandados!

Caminhar, caminhar, caminhar ... Passar noites e noites, em cercos38 aos núcleos

adversários. Combater, combater, combater ... Empunhando mosquetes, facões, lanças,

flechas e alfanjes. Razoável esforço físico!

38 O cerco à cidadela de Zumbi, na Serra da Barriga, durou 21 dias; e o confronto com os índios tapuios durou 4 dias e 4 noites.

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Para nós, a performance corporal foi fator importante para que o desmoronamento

do mocambo de Palmares se consumasse. Nos preparativos para os combates, as atividades

de recrutamento - que foram seletivas e buscaram os homens de guerra mais aptos (os

paulistas) - propiciaram uma marcha que passou por vários estados brasileiros. Vale

ressaltar, que a nutrição inadequada e insuficiente foi um dos percalços significativos dessa

caminhada verdadeiramente notável. Somemos a isso as doenças tropicais, a natureza

selvagem, o peso dos víveres e equipamentos, os dispêndios energéticos com as atividades

de coleta e caça ... Racionalmente, acreditamos ter sido essa empreitada um feito físico de

envergadura impressionante, tendo também, corroboremos ainda uma vez mais, sido

evidentemente decisivo, e não merecedor de estar submergido, muitas braças abaixo da

espuma nas ondas do mar da história, como escreveu Fernand Braudel.

Se o jesuíta Ruiz de Montoya expressou seu assombro com uma marcha

bandeirante de dois mil quilômetros, – como se passeassem na ruas de Madri – o que diria

ele da caminhada de Domingos Jorge Velho, que cobriu o triplo dessa extensão?

Mencionemos outro passeio : entre 1648 e 1651, a bandeira de Antônio Raposo

Tavares percorreu de dez a doze mil quilômetros, a pé e de canoa, de São Paulo ao

Paraguai, e de lá até Mato Grosso, Amazonas e Pará. Como se expressaria o civilizado

padre sobre essa marcha sertaneja, que cobriu talvez o sêxtuplo da extensão daquela que o

assombrou? Não sabemos o que diria Montoya, porém vejamos o que escreveu Monteiro:

Em 1651, após uma longa marcha pelos sertões, alguns remanescentes da grande expedição do mestre-de-campo Antonio Raposo Tavares chegaram a Belém do Pará, tão castigados por doenças, fome e ataques de índios que, segundo o Padre Antonio Vieira, ‘os que restavam mais pareciam desenterrados que vivos’. No entanto, acrescentava o mesmo padre, a viagem ‘verdadeiramente foi uma das mais notáveis que até hoje se tem feito no mundo’: durante três anos e dois meses os integrantes da tropa haviam realizado um ‘grande rodeio’ pelo interior do continente, embora nem mesmo soubessem por onde andavam. Perdidos na imensidão da América, só descobriram que haviam descido o grande rio Amazonas quando sua precárias e improvisadas embarcações alcançaram o entreposto militar do Gurupá, na foz do Xingu, sendo disto informados pelos estarrecidos soldados do forte (MONTEIRO, 1994, p. 07).

Observemos agora, sobre a mesma bandeira, as palavras de Cortesão:

A maior e mais árdua de quantas expedições ... se realizaram em toda a América, não só até sua data, mas ainda até aos começos do século XIX. Pondo de parte o trajeto andino e considerando apenas o percurso fluvial, do Tietê ao Paraguai, e daí por terra ao Guapaí, e, baixando por ele, o Mamoré, o Madeira e o Amazonas até Belém, esse vasto périplo

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mede 10 000 quilômetros ... se lhe acrescentarmos a travessia do Chaco, as explorações desde os morros chiquitanos para oriente e os desvios e flutuações da grande aventura na região andina, ela terá excedido, por certo e de muito, os 12 000 quilômetros (CORTESÃO, 1958, p. 400).

Pela peculiaridade da bandeira de Raposo Tavares, que além de marchar utilizou-se

da navegação, oportuniza-se aqui a citação das palavras de Holanda, aludindo aos

devassadores do sertão:

Sóbrios, tenazes, afeitos à fadiga (...) A energia física, necessária a muitos destes empreendimentos, dispensava de ordinário qualquer ajuda, a não ser em face de obstáculos mais poderosos. Assim, diante dos rios maiores, rios de canoa, como se chamavam, era forçoso interromper a marcha a pé. E também não faltavam ocasiões em que os rios, deixando de ser um estorvo para o caminhante, se transformavam eles próprios em caminhos – ‘os caminhos que andam’ (HOLANDA, 1990, p. 18).

Doravante, buscando nossas considerações derradeiras no que diz respeito à intensa

mobilidade do bandeirantismo no Brasil, mencionaremos as expedições que marcaram o

crepúsculo das grandes marchas a pé, antes do advento das monções.

Em 1718, a bandeira de Pascoal Moreira Cabral descobriu ouro no rio Coxipó-

Mirim, no centro geográfico de Mato Grosso. Em 1722, portanto quatro anos depois, os

índios meleiros de Miguel Sutil encontraram o ouro de aluvião, que brotava à flor da terra,

no local onde nasceria a Vila de Cuiabá. Também em 1722, Bartolomeu Bueno da Silva

(filho) experimentava o sofrimento da fome, em um remota chapada goiana, assistindo à

morte de quarenta de seus homens, por inanição absoluta. Três anos depois, em 1725, o

próprio Bueno da Silva (filho) liderando a última bandeira típica de que se tem notícia 39,

descobria minas auríferas em Goiás. A descoberta ensejou um grande afluxo populacional

para o Planalto Central, propiciando a abertura de um caminho terrestre para Goiás, mais

tarde prolongado em mil quilômetros até Cuiabá. Iniciou-se assim, o que alguns autores

chamam de ciclo do muar: as expedições partiam de São Paulo com mulas carregadas,

passando por Goiás e por fim chegando à Mato Grosso, onde as mercadorias transportadas

eram comercializadas.

Por essa época, as monções, expedições sertanistas que se utilizavam da navegação

fluvial, robusteciam-se e tornavam-se prioritariamente a alternativa de locomoção rumo a

Cuiabá. As monções partiam do Planalto Paulista pelo rio Tietê, transpondo 113 (cento e

treze) cachoeiras, antes de chegar ao seu destino final, o Arraial do Ouro de Aluvião.

39 FILHO, S., Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas, p. 04.

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Muitas dessas quedas d’águas eram perigosas, catadupas vertiginosas, repletas de pedras

avolumadas e cobertas de limo. Nesses pontos, que não eram raros, “fazia-se necessário

passar por terra, arrastando as canoas ou guindando-as com cordas, no que se gastava

muito tempo e trabalho” (HOLANDA, 1990, p. 76).

Em alusão específica a certo trecho do caminho, onde as quedas são quase

ininterruptas, próximo à Barra do Orelha de Onça, Holanda escreveu:

... uma série de rochedos, de cerca de dez metros de altura, que cortam transversalmente o rio. Neste ponto era indispensável esvaziar completamente as canoas e transportar a carga por terra, num varadouro de quinhentos metros ... Os trabalhos eram efetuados sobre o barranco íngreme da margem oriental, à custa de grande esforço, e ainda hoje não se apagou de todo o sulco ali deixado pelos serviços de varação durante mais de um século (HOLANDA , 1990, p. 80).

Parecem ser bem nítidos os grandes esforços corporais realizados pelos

monçoeiros, que também combatiam a resistência dos índios Payaguás, Caiapós e

Guaicurus, silvícolas de grande ânimo guerreiro e famosos pelo seu porte físico avantajado

e desempenho motriz acima da média.

As monções setecentistas desempenharam um papel importantíssimo para a nova

configuração político-demográfica do Brasil Colonia l, posto que ensejaram uma nova

movimentação mercantil, distante do Nordeste, região que retinha o poder econômico na

época.

A descoberta do ouro pelas bandeiras – pouco antes das monções – em Mato

Grosso, Goiás e Minas Gerais, provocou aos poucos um deslocamento populacional muito

grande para essas regiões. Vejamos as palavras de Ellis:

Localizado o ouro, terminavam as entradas, substituídas pelo povoamento propriamente dito em torno das lavras, dos arraiais e das vilas, atraído pelos interesses que a mineração proporcionava e que inauguram na história do Brasil uma nova época ( ELLIS, 1989, p. 296).

Cerca de oitocentas mil pessoas deslocaram-se da Metrópole atraídas pelo ouro

brasileiro, e dentro da própria Colônia, houve um imenso movimento migratório , em que

as populações do Nordeste e do Extremo Sul dirigiram-se para as proximidades das minas

auríferas, mormente as de Minas Gerais.

Destarte, em outras palavras, o eixo populacional do Brasil transferiu-se do

Nordeste para o Sudeste e Centro-Oeste. Com o tempo, o próprio centro político da

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Colônia aproximou-se da região mineira, com a transferência da capital, de Salvador para o

Rio de Janeiro, em 1763. Sobre a estreita relação entre densidade populacional e poder

político, escreveu Vilar: “... A demografia é um fenômeno fundamental e influi no destino

político dos diferentes países” (Vilar apud Dáléssio, 1998, p. 36).

Atualmente, vivemos a herança desse deslocamento populacional ocorrido no

século XVIII, traduzido na densamente povoada região Sude ste.

Observemos o que escreveu Volpato: “os bandeirantes devassaram o sertão e

descobriram riquezas, que foram o móvel da fixação do povoamento nas regiões mais

centrais do continente” (VOLPATO, 1985, p. 101).

Simulando neste momento ignorar o desbravamento encetado pelo bandeirismo,

formulamos as seguintes perguntas: O deslocamento demográfico, político e mercantil no

Brasil-Colônia ocorreu em conseqüência do ouro ... Mas quem descobriu o almejado

metal? E de que forma aconteceu a descoberta? O ouro esta va no quintal das casas de seus

descobridores? Terá sido encontrado num regato próximo, onde era coletada a água para o

consumo?

À guiza de resposta à nossa ignorância hipotética ou virtual, entendemos ser lícito,

além de óbvio, afirmar que todas essas t ransformações - política, mercantil e demográfica -

tiveram suas configurações embrionárias na extrema mobilidade dos componentes das

bandeiras, que trouxeram à luz as minas auríferas, que jaziam desconhecidas nas mais

inospitaleiras regiões dos sertões.

Fadiga, exaustão extrema, fome, doença e combates com silvícolas propiciaram

uma situação germinal, que atingiria sua culminância na verdadeira metamorfose

demográfico-política, observada na configuração contextual do Brasil Colonial.

Entendemos ser ilibada a afirmação de que, a intensa migração para as regiões

mineiras teve como causa primordial as marchas bandeirantes.

Em outras palavras, acreditamos que a acentuada mudança na configuração

contextual do Brasil Colônia ocorreu em conseqüência do bandeirantismo. Acrescentamos

ainda, em apêndice, que a herança dessa transformação é atualmente por nós vivenciada,

como o atesta a densa demografia da região Sudeste.

Entendemos ter sido a espantosa mobilidade dos bandeirantes uma das causas

principais (senão a causa das causas, causa causorum) da transferência do poder político

colonial, da Bahia para o Rio de Janeiro. Numa só frase, as caminhadas sertanejas dos

bandeirantes mudaram a face do país e os ecos dessa mudança reverberam até hoje. O que

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é o progresso de São Paulo atualmente senão um de “los llegados tarde a la historia?”

(PRIETO, 1995, p. 112).

Embora evidente, o papel do desempenho corporal carece de contornos mais

nítidos na historiografia, que lhe confiram a justa e merecida relevância.

O historiador Edward Hallet Carr, citado por Prieto, ironiza a ausência de estudo

das causas, que invariavelmente traduz-se num entendimento simplista e dissociado dos

fatores determinantes mais profundos, abaixo da superfície dos fatos históricos.

Observemos suas ácidas palavras:

... puede leerse o escribirse acerca de los acontecimientos del passado sin tratar de saber por qué ocurrieron, o decir sólo que la Segunda Guerra Mundial tuvo lugar porque Hitler la queria, lo que es perfectamente cierto, pero no explica nada. Pero no entonces debe uno abstenerse de cometer la idiotez de llamar -se estudiante de historia o historiador ... El estudio de la historia es un estudio de causas, ... (CARR apud PRIETO, 1995, p. 85-6).

Causa entre causas, causa das causas ou causa causorum ... No palmilhar a mata

virgem, no apresar índios, no vadear corredeiras ameaçadoras, no dispersar mocambos, no

transpor morrarias, no trazer à luz o ouro, os bandeirantes causaram muita coisa. Porém, o

aspecto de rendimento físico de seus feitos jaz escondido nos anais da história, quase tão

oculto quanto o ouro que encontraram nos mais recônditos grotões do Brasil.

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CONCLUSÃO

A pretensa contribuição deste trabalho buscou abranger partes específicas de duas

áreas distintas: a História e a Educação Física. Desta forma, constituiu-se uma abordagem

historiográfica interdisciplinar, que naturalmente orientou-se pelas diretrizes da História

Nova.

Os aspectos conclusivos deste estudo, em nosso entendimento, apontam para um

contexto histórico muito rico em termos de atividade corporal humana. Tal contexto, o do

Brasil do século XVII, obviamente não explorado por nós até seu esgotamento, oferece

ainda muitas possibilidades de produção historiográfica, enfocando a motricidade do

homem.

As extensas marchas dos bandeirantes, que foram pautadas pelo aprendizado de

técnicas corporais indígenas, propiciaram o alcance de regiões à época desconhecidas pelos

europeus. Guias experimentados, conhecedores das matas, os nativos coloniais facilitaram

o cumprimento de longos percursos bandeirantistas, onde o desempenho motor foi intenso.

Antes disso, a transposição da Serra do Mar já revelava os extenuantes esforços

físicos exigidos dos ascencionistas. Muitos dos escaladores da grande montanha morreram,

caindo das escarpas quase retas. Outros deles desistiram, não suportando a exaustão

orgânica.

As expedições de préia, por sua vez, forçaram uma fuga em massa de milhares de

índios do Guairá, que cumpriram um trajeto tortuoso, ora fluvial, ora terrestre, até alcançar

a segurança temporária nos limites do sul brasileiro.

Já no início do século XVIII, com o apresamento quase fenecido, as bandeiras de

prospeção mineral encontraram as jazidas auríficas de Mato Grosso, lugar então

considerado distante de São Paulo. Por essa época, já havia sido encontrado o ouro de

Minas Gerais. A população da colônia então se deslocou para as regiões mineiras,

juntamente com uma grande leva de migrantes oriunda de Portugal. Resultou desse grande

deslocamento uma mudança político-social no Brasil, cujas conseqüências são perceptíveis

até hoje, se lançarmos vistas para a região Sudeste, densamente povoada e robusta

financeiramente.

As expedições paulistas encarnaram a motricidade humana, contraponto extremo do

sedentarismo nordestino. A motricidade bandeirante possibilitou o descobrimento da

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riqueza mineral, enfraquecendo o poder sedentário do pecúnio proveniente da monocultura

canavieira. Em outras palavras, tendo possibilitado a descoberta do ouro, a motricidade

bandeirante deu um novo norte econômico ao contexto do Brasil Colonial, o que acabou

por minar as bases da aristocracia rural, contribuindo para a diluição da hegemonia

latifundiária exercida pelos senhores de engenho.

Em síntese, neste estudo encontramos o sertanista paulista mítico, tentamos

vislumbrar nele o sertanista humano comum. Esse homem necessitado viveu intensamente

sua corporeidade. Neste estudo, encontramos também o indígena expedicionário,

extremamente hábil em atividades corporais múltiplas. Encontramos também os índios e

missionários guairenhos, que aterrados pelos bandeirantes e afligidos por inquietações

sobrenaturais, empreenderam uma jornada de espantoso rendimento físico, do Guairá ao

ponto mais meridional do Brasil. Neste estudo, encontramos também bandeirantes

descobrindo o ouro, cujas conseqüências, corroboramos, mudou o contexto do Brasil

Colonial.

A história colonial do século XVII é pontilhada profusamente por corpos humanos

em motilidade. Paulistas caçando índios e procurando ouro. Índios guiando paulistas e

fugindo deles. Jesuítas pamilhando o sertão, evangelizando índios e arrebatando-os para o

catolicismo, guiando-os para fugir dos paulistas. Tudo isso envolveu muita atividade

corpóreo-motora. Amplas distâncias foram vencidas de pé posto , como se expressou

Holanda. Situações distintas em empresas distintas, mas com a predominância evidente da

motricidade corporal, uma vez que a própria conjuntura favorecia a isso. Num tempo em

que o próprio cavalo ainda não era utilizado largamente, uma vez que não eram muitos e

que as matas fechadas não sugeriam o cavalgar.

No Brasil do século XVII, homens diferentes se movimentaram intensamente por

motivações diferentes. Corpos humanos em esforços ingentes. A história não nos parece

negar que essa motricidade se torne evidente.

Impassível como a natureza que foi percorrida por essa gente, a história espera que

os historiadores tornem tal motilidade mais aparente.

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ANEXO

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A fisiologia do medo: a adrenalina exacerbando a motricidade

LINDGREN e BYRNE (1982), abordando a ação da estimulação externa do meio

em relação à fisiologia humana, enfocando especificamente os motivos que levam à defesa

e à fuga, afirmam:

O medo ... tem início na percepção de estímulos perigosos, nocivos ou irratantes. O sistema nervoso simpático é ativado e as glândulas supra -renais lançam na corrente sangüínea quantidades diferentes de epinefrina e de norepinefrina, que por sua vez, ocasionam mudança no ritmo do coração. O sistema nervoso central e o sistema nervoso simpático, funcionando em conjunto, produzem as mudanças ocorridas na respiração (LINDGREN; BYRNE, 1982, p. 223).

Para que possam se tornar mais inteligíveis estas asserções de Lindgren e Byrne,

cumpre esclarecer que a epinefrina é um hormônio que tem importante atividade na

elevação da excitação emocional, com propriedades que se desdobram e modificam a

movimentação corporal, tornando-a mais ágil. A epinefrina é também conhecida como

adrenalina, sendo sua primeira denominação utilizada em círculos estritamente científicos,

ao passo que a segunda é mais amplamente divulgada em termos comerciais. Já a

norepinefrina é mais conhecida como noradrenalina. Estes dois hormônios produzem

efeitos diferentes no corpo humano, quando secretados pela glândulas supra-renais.

Visando distinguir com mais exatidão o princípio ativo de ambos os elementos fisiológicos

mencionados, vejamos as palavras de Funkenstein:

Enquanto a adrenalina provoca modificações fisiológicas profundas em quase todos os sistemas do corpo, a noradrenalina aparentemente tem apenas um efeito primário importante, a saber: estimula a contração de pequenos vasos sangüíneos e aumenta a resistência ao fluxo de sangue (FUNKENSTEIN, 1970, p. 210).

Décadas antes das afirmativas de Funkeinstein e Lindgren e Byrne, Walter B.

Cannon já relatava seus experimentos sobre a fisiologia do medo e da raiva. Cannon

descobriu que as reações fisiológicas observadas em suas experiências com animais

estavam diretamente relacionadas à adrenalina. Estas reações punham suas cobaias em

alerta, prontas para a fuga ou o combate, externando portanto pavor ou cólera (a cólera nos

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animais é consensualmente entendida em termos científicos como equivalente à raiva em

seres humanos). Este cientista, que foi um precursor do estudo das implicações fisiológicas

do medo, revelou que quando o córtex cerebral processa a percepção da ameaça, envia um

estímulo através do ramo simpático do sistema nervoso autônomo, tendo como fim atingir

as glândulas supra-renais, que por sua vez secretam a adrenalina. Sobre o conjunto das

reações fisiológicas da adrenalina, escreveu Cannon:

A respiração se aprofunda; o coração bate mais rapidamente; a pressão arterial sobe; o sangue é deslocado do estômago e intestinos para o coração, o sistema nervoso central e os músculos; cessam os processos no canal alimentar; o açúcar é liberado das reservas do fígado; o baço contrai -se e descarrega seu conteúdo de corpúsculos concentrados ... a chave dessas maravilhosas transformações corporais encontra-se no relacionamento com os acompanhantes naturais do medo e da raiva – fugir para escapar ao perigo ou atacar para dominá-lo. Qualquer que seja a ação, pode seguir-se um combate de vida ou morte ... são ajustamentos que, na medida do possível, colocam o organismo em prontidão para enfrentar as exigências que lhe serão feitas. A adrenalina secretada coopera com os impulsos nervosos simpáticos na liberação do glicogênio armazenado no fígado, irrigando, assim, o sangue com o açúcar necessário para os músculos em trabalho; auxilia na distribuição do sangue em abundância para o coração, o cérebro e os membros (isto é, para as partes essenciais do esforço físico intenso) ... elimina rapidamente os efeitos da fadiga muscular, de forma que o organismo, que pode juntar adrenalina no sangue, pode restaurar aos seus músculos cansados a mesma prestreza de ação que tinham quando em repouso, e torna mais rápida a coagulação sangüínea. A respiração acelerada, a redistribuição do sangue impulsionado por alta pressão e o maior número de glóbulos vermelhos liberados pelo baço respondem pela oxigenação essencial e pelo desembaraço do excessos de acidez, preparando para a ação suprema e instantânea. Em resumo, todas essas modificações são diretamente úteis em tornar o organismo mais eficiente no violento dispêndio de energia que o medo e a raiva podem envolver (CANNON apud FUNKEINSTEIN, 1970, P. 209).

No caso dos indígenas de Loreto e San Ignácio, o medo produziu todas essas

modificações fisiológicas em seus corpos. A informação da chegada dos bandeirantes foi o

estímulo externo, a gênese deste extenso rol de transformações orgânico-funcionais

processado nos índios, que reagiram de forma óbvia, regidos pelas leis naturais de seus

corpos. Observemos algumas lacônicas palavras de Lindgren e Byrne: “O medo implica

em movimento de afastamento da situação ameaçadora ...” (LINDGREN; BYRNE, 1982,

p. 253).

Entendemos como importante ressaltar que no caso dos habitantes das duas

reduções em questão, o medo propriamente dito foi antecedido por um período de

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torturante expectativa, gerando grande ansiedade. Isso fic ou claro em nosso texto,

especialmente através das citações de Haubert. Essa ansiedade, que precedeu o medo

ulterior, propiciou uma situação fisiológica latente e constante, nos limites do

prorrompimento abrupto do fisiologismo específico do comportamento fugitivo. Os índios

estavam alertas. Os mecanismos fisiológicos de seus corpos estavam alterados. A linha

tênue que distingue a fisiologia da ansiedade e do medo estava prestes a ser ultrapassada. E

quando isso se deu a movimentação corporal de todos se revelou de forma desabrida,

incontida. Eles esperavam o perigo. Seus corpos já estavam sub-preparados para a retirada

ou escape. A fuga já estava praticamente gestada em termos fisiológicos. Estava contida,

latente, esperando pelo estímulo externo, cuja natureza já era conhecida. Neste sentido,

faz-se necessário distinguir esta situação de outra qualquer, onde o estímulo externo não é

esperado, revelando-se de surpresa. Neste último caso o medo não tem a ansiedade como

prelúdio, gerando uma situação de motric idade não tão extrema quanto a dos indígenas em

questão, uma vez que inexistiu qualquer elemento denunciador da ameaça concreta, que

somente ao se manifestar provocou as mudanças nos padrões fisiológicos corporais,

anteriormente inalterados (ao passo que no caso dos índios já existiam as alterações

causadas pela ansiedade). Em síntese: no caso dos índios engendrou-se uma situação onde

a fisiologia do medo, mesmo antes do estímulo externo, já se processara em seus corpos,

aguardando o ensejo da vazão total; diferentemente de quando o estímulo externo abate-se

sobre um indivíduo desavisado e relaxado. Aqui a fisiologia do medo não estava nem

mesmo em seu estado germinal, ela inexistia antes da percepção da ameaça explícita, pois

somente à partir do evento estimulador foram processadas as transformações nos padrões

fisiológicas. Observemos estes quadros:

Índios de S. Ignácio/Loreto

Conhecimento anterior e espera pelo estímulo externo.

ANSIEDADE + MEDO = FUGA

Situação padrão de estímulo externo abrupto

Desconhecimento anterior do estímulo

externo

MEDO = FUGA

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Os índios de Loreto e San Ignácio experimentaram, e por tempo considerável, a

sensação de ansiedade, como já parece ter ficado bastante detalhado. Uma emoção à mais,

cujas implicações de ordem fisiológica potencializaram toda a ação da fisiologia específica

do medo, suscitada depois. Em termos estritamente fisiológicos, os índios estavam na

antecâmara, no vestíbulo do próprio medo, com muitos mecanismos fisiológicos inerentes

a esta emoção já suscitados. A ansiedade e o medo são emoções muito próximos. Vejamos

as palavras de Lindgren e Byrne:

Ela (a ansiedade) se parece com o medo em várias formas diferentes, sendo que, às vezes, a distinção entre essas duas emoções não pode ser estabelecida claramente. De maneira geral, entretanto, o medo é uma emoção mais intensa e é provocada por uma situação ameaçadora, percebida como imediata e potencialmente esmagadora. A ansiedade costuma ser mais difusa ... (LINDGREN; BYRNE, 1982, p. 25)

Ainda sobre ambas as emoções, escreveram laconicamente os mesmos autores: “A

ansiedade parece-se com o medo ... é mais vaga e passível de abranger acontecimentos

futuros” (LINDGREN; BYRNE, 1982, p. 269).

A ansiedade dos habitantes das duas últimas reduções do Guairá abrangiam

acontecimentos futuros terrificantes.

Os corpos dos índios de Loreto e San Ignácio já estavam, antes da partida,

produzindo taxas elevadas de adrenalina (epinefrina), uma vez que este hormônio atua

tanto no medo quanto na ansiedade. Quanto a isso, escreveram Lindgren e Byrne: “Embora

a epinefrina, por si só, esteja associada à excitação em geral, ela parece acentuar o setor

medo-ansiedade do comportamento (LINDGREN; BYRNE, 1982, p. 264).

Buscando esclarecimentos derradeiros no que diz respeito à ação da adrenalina,

vejamos estas outras valiosas considerações de Lindgren e Byrne:

O hormônio epinefrina, uma secreção da medula supra -renal, é há muito conhecido como acompanhante, ou mesmo causador, da excitação. Quando Cannon (1927) injetou apinefrina em diversos sujeitos, alguns deles disseram: ‘sinto-me como se estivesse com medo’, enquanto outros mostraram sintomas característicos da aflição. Em estudo mais recente, as amostras do sangue de sujeitos que viram filmes agressivos, sexuais, dramáticos e de horror apresentaram aumento de epinefrina (LINDGREN; BYRNE, 1982, p. 261).

Os índios de Loreto e San Ignácio não viram filmes agressivos ou de horror. Eram

conhecedores da realidade, que muitas vezes havia se revelado cruel e assassina, através

das investidas dos bandeirantes. Não viram filmes sexuais ou dramáticos. Eram sabedores

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das sevícias, dos estupros e da agressividade praticados pelos sertanistas paulistas. Sabiam

do perigo nada inverídico, e seus corpos responderam fisiologicamente a ele.

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Autorizo a reprodução deste trabalho.

Dourados,_____de________de 2002.

______________________________

MANUEL PACHECO NETO

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